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Colônia de Alienados de Engenho de Dentro (1911-1932) CARINE NEVES ALVES DA SILVA* Resumo Este trabalho investiga a criação da Colônia de Alienados de Engenho de Dentro, em 1911 1 , e dos seus serviços anexos, embasados na ideia de profilaxia e higiene mental, no início dos anos 1920, no subúrbio do Rio de Janeiro. Neste sentido, busca enfocar a historicidade da “mulher louca” 2 , o papel dos médicos psiquiatras e da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), bem como a relevância do espaço geográfico do subúrbio carioca na constituição da primeira instituição psiquiátrica feminina do Brasil, no início do século XX. O recorte temporal dessa pesquisa, encetado com a criação da Colônia (1911), compreende as administrações dos seus dois primeiros diretores, Simplício de Lemos Braule Pinto (1911-1918) e Gustavo Köhler Riedel (1918-1932), com ênfase para as políticas e práticas desenvolvidas por esse último gestor em relação a uma psiquiatria preventivista e seus impactos médico- sociais. Tal recorte abarca uma época de grandes transformações no papel da mulher na sociedade brasileira, na orientação do conjunto de ideias da referida Liga e na própria paisagem do subúrbio carioca. Palavras-chave: Colônia de Alienados de Engenho de Dentro, Mulheres “loucas” e Eugenia e Higiene Mental. Introdução Em 15 de fevereiro de 1890, durante o governo provisório de Deodoro da Fonseca, através do decreto nº 206-A, era forjada a Assistência Médico Legal de Alienados, então constituída pelo Hospital Nacional de Alienados (HNA), pelo Pavilhão de Observações, e por duas colônias de alienados, denominadas São Bento e Conde de Mesquita, para indigentes homens, na Ilha do Governador RJ. * Graduada em História, mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutoranda do Programa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC- FIOCRUZ). 1 A Colônia de Alienados de Engenho de Dentro foi renomeada, em 1927, como Colônia de Psychopathas (mulheres) de Engenho de Dentro e, em 1934, como Colônia Gustavo Riedel. 2 Neste estudo, entendemos a loucura como um fenômeno que pode ter origem sociológica, cultural, psicológica ou biológica, sendo, entretanto, mapeado, pelo comportamento: moral e social. Assim, buscaremos simultaneamente apreender a loucura a partir de um eixo sociocultural e histórico, e a Psiquiatria como discurso e prática originária de um campo científico específico.

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Colônia de Alienados de Engenho de Dentro (1911-1932)

CARINE NEVES ALVES DA SILVA*

Resumo

Este trabalho investiga a criação da Colônia de Alienados de Engenho de

Dentro, em 19111, e dos seus serviços anexos, embasados na ideia de profilaxia e

higiene mental, no início dos anos 1920, no subúrbio do Rio de Janeiro. Neste sentido,

busca enfocar a historicidade da “mulher louca”2, o papel dos médicos psiquiatras e da

Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), bem como a relevância do espaço

geográfico do subúrbio carioca na constituição da primeira instituição psiquiátrica

feminina do Brasil, no início do século XX. O recorte temporal dessa pesquisa,

encetado com a criação da Colônia (1911), compreende as administrações dos seus dois

primeiros diretores, Simplício de Lemos Braule Pinto (1911-1918) e Gustavo Köhler

Riedel (1918-1932), com ênfase para as políticas e práticas desenvolvidas por esse

último gestor em relação a uma psiquiatria preventivista e seus impactos médico-

sociais. Tal recorte abarca uma época de grandes transformações no papel da mulher na

sociedade brasileira, na orientação do conjunto de ideias da referida Liga e na própria

paisagem do subúrbio carioca.

Palavras-chave: Colônia de Alienados de Engenho de Dentro, Mulheres “loucas” e

Eugenia e Higiene Mental.

Introdução

Em 15 de fevereiro de 1890, durante o governo provisório de Deodoro da

Fonseca, através do decreto nº 206-A, era forjada a Assistência Médico Legal de

Alienados, então constituída pelo Hospital Nacional de Alienados (HNA), pelo Pavilhão

de Observações, e por duas colônias de alienados, denominadas São Bento e Conde de

Mesquita, para indigentes homens, na Ilha do Governador – RJ.

* Graduada em História, mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ) e doutoranda do Programa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC-

FIOCRUZ). 1 A Colônia de Alienados de Engenho de Dentro foi renomeada, em 1927, como Colônia de Psychopathas

(mulheres) de Engenho de Dentro e, em 1934, como Colônia Gustavo Riedel. 2 Neste estudo, entendemos a loucura como um fenômeno que pode ter origem sociológica, cultural,

psicológica ou biológica, sendo, entretanto, mapeado, pelo comportamento: moral e social. Assim,

buscaremos simultaneamente apreender a loucura a partir de um eixo sociocultural e histórico, e a

Psiquiatria como discurso e prática originária de um campo científico específico.

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Em 1903, por meio do decreto nº 1.132 (BRASIL, 1903), foi criada a primeira lei

federal de assistência aos alienados no Brasil. De acordo com Venâncio, a aprovação

desse decreto e a indicação do psiquiatra Juliano Moreira, no mesmo ano, para a direção

do Hospital Nacional de Alienados, “reforçavam as iniciativas ‘modernizadoras’ do

Estado e as estendiam para a esfera da assistência pública a alienados” (VENÂNCIO,

2011, p. 39). Nessa época, “Juliano Moreira já estava voltado para o desenvolvimento da

Psiquiatria como prática assistencial pública e como conhecimento científico médico”

(VENÂNCIO e CARVALHAL, 2005, p. 70) e ficaria à frente da instituição até 1930. Por

meio do decreto nº 8.834, de 11 de julho de 1911 (BRASIL, 1911), foi reorganizada a

Assistência a Alienados. A partir disso, transmutou-se o primeiro hospício da América

Latina em Hospital Nacional de Alienados e criou-se uma colônia de alienados para

mulheres indigentes no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro.

O início do século XX foi marcado por um deslocamento crescente de setores

populares em direção ao subúrbio carioca3, acompanhado da expansão do seu comércio e

indústria. Contudo, a região continuou a demandar largamente por serviços de

saneamento básico. A população deste subúrbio, simbolizado então como a antítese da

capital, passou a reivindicar do poder público, sobretudo, higiene (SANTOS, 2011, p.

271). Conforme sinaliza Santos, o subúrbio “é apresentado no imaginário comum (no

Brasil, América Latina e Europa) como uma região dominada pela pobreza, uma mistura

de usos rurais e urbanos e falta de serviços públicos” (SANTOS, 2011, p. 1).

Com a criação da Colônia de Alienados Engenho de Dentro, objetivava-se fazer

frente ao problema da superlotação de mulheres no HNA e, assim, poder, inclusive,

modernizar a Secção Esquirol do hospício, destinada a indigentes do sexo feminino

(BRASIL, 1912). No seu primeiro ano de funcionamento, a colônia feminina passou por

3 Segundo Fernandes (2010), o conceito de subúrbio sofreu, no início do século XX, no Rio de Janeiro, um

“rapto ideológico”. Tal expressão foi cunhada por Lefebvre (1978) para descrever mudanças bruscas e

drásticas no significado de categorias (ibidem, p. 12). De acordo com esse autor, a partir do século XX, o

subúrbio deixaria de ser apreendido por seu sentido tradicional para designar, especificamente, bairros

ferroviários e populares da área urbana do território municipal (ibidem, p. 9), e, de modo, paradoxal, quanto

mais esses bairros, situados, geograficamente, nos setores norte e oeste da cidade, se urbanizavam, mais

eram representados pela toponímia subúrbio (ibidem, p. 8). Segundo Fernandes, o conceito carioca de

subúrbio é descendente de uma tradição essencialista e desvalorizadora que, além de destituir seu sentido

geográfico original e geral, oculta sua rica polissemia. Assim, a posição periférica e extramuros dá lugar a

uma representação da distância política, social e cultural (ibidem, p. 12). Consoante esse autor, a produção

do conceito carioca de subúrbio, no contexto da primeira república, tinha a função de “reafirmar e colocar

certos lugares e grupos sociais para fora da cidade” (ibidem, p. 15).

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algumas reformas e teve mais um pavilhão construído para outras 200 pacientes

(CENTRO CULTURAL DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016a).

As críticas à assistência aos alienados eram recorrentes desde o tempo do

Império, e o Hospício Nacional logo depois de suas primeiras décadas de existência

achava-se ameaçado pelo problema da superlotação (VENÂNCIO e CARVALHAL,

2005, p. 67; VENÂNCIO, 2011, p. 38). Para Amarante, as colônias além de ampliarem a

importância social e política da Psiquiatria, atualizavam o compromisso desta com a

realidade moderna e neutralizavam parte das críticas feitas ao hospício tradicional

(AMARANTE, 1995, p. 28). As colônias agrícolas deveriam receber o excesso de

pacientes crônicos ou incuráveis que, além de onerarem a assistência, impediriam a

consolidação do hospício como local de cura.

Gonçalves, em seu estudo sobre o Hospício Pedro II entre 1850-1880, apontou

“o constante esforço desempenhado pelos médicos diretores do, principalmente por

Manoel José Barbosa, na luta pela consolidação do espaço asilar como um local de

cura” (GONÇALVES, 2011, p. 57). Segundo a autora, tal intento, no entanto, “se

contrapunha ao interesse de diversas famílias, senhores de escravos e setores do

governo, que visavam utilizar o hospício como um depósito de indigentes incuráveis”

(Ibid. p. 46).

A concepção de loucura curável era inicialmente permeada pela ideia de um ser

racional alienado mentalmente e previa para este um “tratamento moral”, o qual

abarcaria como terapêutica o próprio trabalho. No entanto, no início do século XIX,

com a descrença nesse tratamento, passou se a pensar no trabalho como uma estratégia

para os incuráveis, destinados a permanecerem na instituição asilar (VENÂNCIO, 2011,

p. 36).

A Colônia de Engenho de Dentro, a primeira instituição psiquiátrica feminina do

Brasil, foi instalada na Rua Maria Flora, na base da Serra dos Pretos Forros, à margem

esquerda do Rio dos Frangos, erguida a partir de “sobras” de um hospital de beribéricos

da Marinha4 (CENTRO CULTURAL DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b;

4 “A Colônia de Alienadas surgiu em função de uma negociação realizada entre a Marinha e Governo

Federal. A intenção da Marinha era ceder o terreno do Engenho de Dentro em troca da retirada da Colônia

de Conde de Mesquita da então chamada Ponta do Galeão, ponto estratégico para a Marinha que

pretendia ali instalar a sua recente Divisão Aérea, a atual Base Aérea do Galeão” (CENTRO CULTURAL

DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).

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OLIVEIRA, 2004, p. 49-50). Atualmente compreende o Instituto Municipal de

Assistência à Saúde Nise da Silveira (IMAS-NS).

Desde o início da história da Colônia de Engenho de Dentro, é possível perceber

que a localidade também era demandada para atender a questões de saúde pública do

subúrbio e dos “sertões” da capital federal. A enfermaria desta instituição psiquiátrica

teria sido utilizada como hospital para tratamento de vítimas da epidemia de paludismo

(malária), em Jacarepaguá, no início de 1913 (O PALUDISMO, 1913). Logo no princípio

da gestão de Gustavo Riedel – que assumiu a direção da Colônia após o falecimento de

Braule Pinto em outubro de 1918, em plena conjuntura da gripe espanhola5 – as estruturas

da Colônia serviriam, mais uma vez, às necessidades sanitárias da população pobre da

região. De acordo com o relato de Alfredo Neves, “afluíram àquele nosocômio

verdadeiras avalanches de doentes, em sua maioria mulheres, trazendo ao colo e às mãos

os filhos enfermos”, no entanto, a Colônia pouco pôde fazer em socorro dessas pessoas

(NEVES, 1943, p. 281). Além disso, a pandemia gripal vitimara ainda, perto da Colônia

de Alienadas de Engenho de Dentro, o único irmão de Riedel (ALMEIDA, 1943, p. 295-

296). Estes fatos marcariam profundamente o diretor desta instituição que conseguiria,

com o Ministro da Justiça, autorização para organizar, nas dependências da Colônia, uma

policlínica voltada a socorrer a população pobre da região. O estabelecimento, aberto ao

público em fevereiro de 1919, passou a fornecer, gratuitamente, assistência médica e

medicamentos, tendo ficado conhecido como “Policlínica dos subúrbios” (NEVES, 1943,

p. 282-283). Riedel, entretanto, intencionava ampliar esta policlínica, transformando-a no

primeiro Instituto de Profilaxia Mental da América Latina.

Em 13 de junho de 1920, conforme noticiado amplamente nos jornais da época,

que destacavam, inclusive, a grande lacuna que o instituto viria a preencher, foi

inaugurado, no âmbito da Colônia de Alienados do Engenho de Dentro e integrando-se ao

patrimônio da Assistência a Alienados, o então denominado Ambulatório Rivadávia

Corrêa (AMBULATÓRIO, 1920), então a cargo do psiquiatra Plínio Olinto. Este

ambulatório era dividido em seis pavilhões: de clínica médica, pediatria, cirurgia geral,

otorrinolaringologia e oftalmologia, clínica dermatológica e sifiligráfica, e de farmácia,

possuindo ainda um laboratório e um serviço de radiologia.

5 Sobre a epidemia da gripe espanhola no Distrito Federal, ver HOCHMAN, 1993.

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Após a criação da “policlínica dos subúrbios”, seriam ainda instaladas em terreno

da Colônia, como serviços anexos a ela, nesta ordem: a Escola Profissional de

Enfermeiras Alfredo Pinto, a Assistência hetero-familiar, o dispensário para profilaxia das

doenças venéreas – construído pela Fundação Gaffrée-Guinle (conhecido, posteriormente,

como Ambulatório nº 2 da referida fundação), o serviço aberto de internação de

psicopatas agudos e, por fim, o Laboratório de Psicologia Experimental.

Gustavo Riedel, ao assumir a direção da Colônia de Alienados do Engenho de

Dentro, empenhou-se para instalar, nesta instituição, a seção feminina da Escola de

Enfermeiros e Enfermeiras, que havia sido criada, no âmbito do HNA, por meio do

decreto nº 791, de 27 de setembro de 1890. Esta seção feminina foi oficialmente fundada

em 1921, graças à aprovação, pelo Ministro da Justiça e Negócios do Interior, Alfredo

Pinto Viera de Mello, da portaria nº 1 intitulada “Regimento Interno da Escola

Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras da Assistência a Alienados”, em fins de 1920.

Assim, em homenagem a esse ministro, a escola de enfermagem instalada na Colônia de

Alienados do Engenho de Dentro foi denominada Escola Profissional de Enfermeiras

Alfredo Pinto (EPEAP).

Os serviços da Assistência Hetero-familiar, previstos pelo decreto nº 8.834 (1911),

começaram a ser organizados, na Colônia de Engenho de Dentro, no início de 1920. Em

30 de maio de 1921, o ministro da Justiça e Negócios do Interior, Alfredo Pinto de Mello,

inaugurava a “Assistência doméstica”, um conjunto de seis casas, das quais duas

encontravam-se prontas (INAUGURAÇÃO, 1921, p. 3). Segundo Rezende, tratava-se de

pavilhões do tipo bangalô, com bastante terreno para policultura, “destinados às

enfermeiras e suas famílias com a obrigação de cuidar de duas internadas em condições

de aproveitar o tratamento em família, de modo a preparar a sua readaptação social”

(REZENDE, 1943, p. 289).

Outras reformas seriam feitas ao longo do período estudado como a construção do

primeiro estabelecimento destinado ao tratamento da toxicomania no Brasil, inaugurado,

em meados de 1923, sob o nome de Pavilhão Epitácio Pessoa (TÓPICOS, 1923, p. 4).

Com este pavilhão, forjava-se uma nova forma de ingresso na Colônia que prescindia da

passagem pelo HNA, pois os psicopatas poderiam ser transferidos pelo diretor da

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instituição para o sistema de regime fechado da localidade, ou enviados ainda para o

Hospital Nacional (RIEDEL, 1928, p. 22, 29).

Em 1923, Riedel adquiriu, com verba doada por Guilherme Guinle da Fundação

Gaffrée-Guinle, uma aparelhagem significativa e variada, a fim de fundar um laboratório

psicológico para a profilaxia das doenças mentais na Colônia de Engenho de Dentro. No

início de 1925, contratou o psicólogo polonês Waclaw Radecki para organizá-lo. Assim,

surgia o Laboratório de Psicologia Experimental, concebido como instituição auxiliar

médica, núcleo científico e centro didático para formar técnicos brasileiros

(GUIMARÃES, 1928, p. 391)6.

Em 1923, em meio a esse processo de expansão da Colônia de Engenho de

Dentro, Riedel fundou, no Distrito Federal, a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM)

e, em 1925, lançou sua publicação oficial: os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental.

Gustavo Riedel, além de ter sido o fundador da LBHM, foi seu presidente durante seus

primeiros dois anos de existência, sendo substituído por Ernani Lopes, que ficaria neste

cargo até o início de 1936, a 14 de março, renunciando por motivos de doença (LIGA,

1936). Segundo Costa, de 1923 a 1925, a Liga seguiu a orientação de Riedel que

intencionava “aperfeiçoar a assistência aos doentes” e, a partir de 1926, os psiquiatras, de

um modo geral, se voltaram para a elaboração de projetos que “visavam a prevenção, a

eugenia e a educação dos indivíduos” (COSTA, 2007, p. 46).

O recorte temporal da presente pesquisa abarca a existência de duas legislações

sobre a Assistência, os decretos nº 8.834 de 11 de julho de 1911 e nº 17.805 de 23 de

maio de 1927 (BRASIL, 1927). Em 1911, a Assistência a Alienados apresentava como

finalidade “socorrer as pessoas que carecerem de tratamento em virtude de alienação

mental” (art. 1º). Já em 1927, além de socorro, a Assistência a Psicopatas tinha como

finalidade “estudar os problemas relativos á hygiene mental e á psycho-physiologia

normal ou morbida, applicadas ás diversas actividades sociaes, no intuito de fixar os

meios mais efficazes de organizar a prophylaxia das perturbações nervosas e mentaes”

(art. 1º, 2º). As colônias seriam o lugar, por excelência, dos enfermos capazes de

entregarem-se à exploração agrícola e a outras pequenas indústrias. Neste sentido, é

interessante destacar que a próxima lei da assistência psiquiátrica, o decreto nº 24.559 de

6 Para mais informações sobre a história desse laboratório e do psicólogo polonês Waclaw Radecki que viria

ajudar a organizá-lo, ver CENTOFANTI, 1982, p. 6-9.

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3 de julho de 1934, não traria mais os termos colônia e trabalho. A ideia, portanto, de

uma colônia agrícola (feminina) destinada à laborterapia teria malogrado?

Esse trabalho visa, assim, responder a algumas questões antepostas pelos dados

apresentados. Qual seria, a priori, o perfil das mulheres transferidas do HNA para a

Colônia de Engenho de Dentro e seu lugar nesta instituição psiquiátrica?

Muitas questões apresentadas neste artigo são centrais na pesquisa do

doutoramento, entretanto extrapolam os limites desse texto, o qual focou,

especialmente, em uma análise preliminar do perfil demográfico da Colônia de

Alienados de Engenho de Dentro e das dinâmicas institucionais entre esta e o HNA.

Fontes e banco de dados

Este estudo tem sido desenvolvido na perspectiva da História das Ciências e da

Saúde e da História Social, através da análise de um variado conjunto de fontes

primárias: documentos clínicos e administrativos da Colônia de Alienados de Engenho de

Dentro, de textos médico-psiquiátricos presentes nos Annaes da Colonia de Psychopathas

(1928-1930), nos Anais da Assistência a Psicopatas (1931), no Boletim de Eugenía

(1929-1933), nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental (1925-1932), revista oficial da

LBHM e nos Archivos Brasileiros de Neurologia, Psychiatria e Medicina Legal (1911-

1918) – órgão oficial da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina

Legal (SBNPML) –, transformado, em 1919, em Archivos Brasileiros de Neuriatria e

Psychiatria (1919-1932). O escopo de pesquisa estende-se ainda aos relatórios do

Ministério da Justiça e Negócios Interiores (1911-1927) e jornais de grande circulação na

época, na cidade do Rio de Janeiro.

Trata-se de um conjunto de fontes significativas para a história da

Psiquiatria no país, especialmente no que diz respeito à loucura feminina e à práxis

de higiene mental. No Acervo Permanente do Centro de Documentação e Memória

(CDM), ligado ao Centro de Estudos, Treinamento e Aperfeiçoamento Paulo Elejalde

(CETAPE) do IMAS-NS, analisamos os 613 dossiês de internação da instituição

existentes para o recorte de 1911 a 1932. É preciso destacar, porém, que este universo

de dossiês não condiz, por motivos de perda de documentação, com o número total de

mulheres internadas na Colônia de Alienados de Engenho de Dentro.

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Entre maio e julho de 2016, realizamos uma pesquisa documental preliminar

em 205 dos 2067 dossiês que cobrem o período de 1911-1915, os quais, por terem mais

de 100 anos de feitura, puderam ser consultados sem passar pela apreciação do Comitê

de Ética em Pesquisa (CEP), necessária, no entanto, para a análise de documentos

médicos com menos de 100 anos.

Resultados preliminares e discussão teórica

O estudo da Colônia de Alienados de Engenho de Dentro, fundada em 1911,

mais de 20 anos após as colônias masculinas na Ilha do Governador, traz ainda mais

nuances para a história da Psiquiatria no Brasil. Através de uma análise documental

inicial nos dossiês de internação de 1911-1915, da colônia feminina, logramos tecer

alguns resultados parciais sobre o perfil das internas e o seu lugar na assistência aos

alienados.

De acordo com essa pesquisa inicial, a população da Colônia era composta

majoritariamente por brasileiras (94%), solteiras (60%), com idades entre 15 e 34 anos

(64%), remetidas à assistência principalmente pela polícia e pela Santa Casa, mais de

75% no primeiro caso e mais de 10% no segundo. O conjunto dos dados etários8

permite salientar ainda que, por razões claras ligadas ao trabalho, a Colônia não era um

destino para a velhice. Acerca do estado civil, convém sublinhar ainda que 21% foram

declaradas casadas e 17% viúvas.

Nos seus primeiros cinco anos de funcionamento, encontramos 35,61% de

mulheres brancas, 34,15% de pretas e 30,24% de pardas na colônia feminina. Segundo

Facchinetti, Ribeiro e Muñoz (2008), na instituição da Praia Vermelha, entre 1900 e

1939, com base na análise de cerca de três mil prontuários, em torno de 40% do total de

pacientes eram mulheres, das quais 24,47% eram brancas, 35,97% pretas e 39,56%

pardas.9 Os autores apontam que a população do hospício era além de pobre,

majoritariamente, masculina e branca (FACCHINETTI, RIBEIRO e MUÑOZ, 2008, p.

240). A respeito da disparidade entre homens (maioria branca) e mulheres (maioria

7 No momento da nossa consulta um dossiê de internação estava fazendo parte de uma exposição. 8 O conjunto dos dados etários mostra que 2% das pacientes tinham entre 12 a 14, 32% de 15 a 24, 32%

de 25 a 34, 23% de 35 a 44, 6% 45 a 54, 4% de 55 a 64 e 1% mais de 65. 9 Esses dados foram derivados da análise apresentada por Facchinetti, Ribeiro e Muñoz (2008) que

utilizaram como base três mil prontuários, dos quais se pode estimar 1226 mulheres e 1774 homens.

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parda seguida de preta) quanto às diferenças de cor, os autores supõem que a Psiquiatria

nacional, em busca de credibilidade no Estado, estaria concentrando os casos agudos no

HNA e transferindo o excesso de pacientes crônicos e refratários ao trabalho, para as

colônias, fato que explicaria o contingente maior de homens brancos e trabalhadores

internados no hospício, em contraste com o perfil, negro ou mestiço, da grande massa

de “degenerados” pobres da cidade (Ibid. p. 235).

Deste modo, cotejando os dados coletados pelos autores com o ensaio estatístico

construído até o momento em nossa pesquisa, não é possível afirmar que a Colônia de

Alienados de Engenho de Dentro estivesse tendo o mesmo uso conjeturado para as

colônias masculinas, de uma espécie de “receptáculo” de população parda e negra. Ao

contrário, parecem estar sendo transferidas para a instituição de Engenho de Dentro em

geral mulheres de todas as cores, com certa preeminência de mulheres brancas, seguida

de pretas e pardas. É possível ainda perceber um aumento quantitativo de 10% de

mulheres brancas na Colônia em relação à proporção dessas no HNA.

Acreditamos que o lugar das mulheres removidas para a Colônia era

atravessado, prioritariamente, pelo menos, neste primeiro período, por uma expectativa

em relação à capacidade de trabalho das internas; talvez mais do que por uma tentativa

de disciplinarização para o trabalho.

Neste sentido, cabe mencionar que 42% das pacientes transferidas para a

colônia foram removidas para o HNA, ou seja, retornaram para a instituição central, em

geral, por dois motivos: de incompatibilidade ou de não-adaptação ao regime colonial

(63%) e por necessidades médico-hospitalares (20%). A primeira questão abarcava,

principalmente, inadequação ao serviço braçal e agitação por parte das pacientes. Já a

segunda dizia respeito à necessidade de realização de exames e tratamentos médicos,

como cirúrgicos e ginecológicos, e, sobretudo, referentes à tuberculose (mais de 9%

retornaram para tratamento dessa doença). É preciso ponderar, no entanto, que a

incompatibilidade ou inadequação ao regime colonial poderia estar englobando as

motivações médico-hospitalares, visto que a Colônia não surge como um espaço

hospitalar. Como dissemos, tratou-se de local para onde deveria ser enviada parte do

excedente de mulheres da instituição central que pudesse trabalhar. A Colônia deveria

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minorar, deste modo, a superlotação de pacientes e o déficit nas contas da assistência

aos alienados.

Corroboram com esta tese um conjunto de fatores. No início de 1915, por

exemplo, o jornal A Época apontava, em uma reportagem a respeito das dificuldades

financeiras enfrentadas por Braule Pinto na administração da Colônia de Alienados do

Engenho de Dentro, que naquele momento encontravam-se internadas na instituição 261

mulheres, das quais apenas 79 estariam em serviço ativo, o restante “gozaria a boa

vida”, pois não era possível estabelecer a obrigatoriedade (COLÔNIA, 1915, p. 3).

Também, no final dos anos 1920, Álvaro Cardoso, administrador da Colônia de

Alienados de Engenho de Dentro, salientava que era preciso transformar o alienado de

“peso morto” para o Estado em “elemento produtivo”. Com essa perspectiva, defendia a

legitimidade da exploração da força de trabalho dos pacientes indigentes e salientava que

os doentes que não se adaptassem à vida colonial deviam ser internados nos hospitais

(CARDOSO, 1928, p. 88). Cardoso aponta ainda que a Colônia, apesar de possuir apenas

oito hectares, contava com pequenos trabalhos agrícolas, acessíveis às mulheres, como

criação de aves, e oficinas de costuras, rendas e bordados (Ibid. p. 91).

Sobre a relação entre a Colônia e o HNA, é importante destacar também que

mais de 30% das pacientes analisadas foram a óbito dentro da assistência, sendo que

todos esses óbitos tiveram lugar no HNA (na verdade, as pacientes estavam retornando

à instituição da Praia Vermelha, muitas vezes, poucas semanas ou meses antes de

morrer). Deste modo, elas regressavam ao HNA também, de certa forma, para

experienciar a própria morte. Isso reforça a ideia de que a Colônia não era o lugar para

morrer, mas para se trabalhar. As “loucas” seriam escrutinadas antes de serem

transferidas para a Colônia, e nesta deveriam permanecer, especialmente, durante sua

vida produtiva.

Um outro dado relevante aponta que a Colônia de Alienados de Engenho de

Dentro se revela também somente como um lugar de passagem para muitas mulheres. É

possível constatar, a partir do universo de prontuários analisado, que 38% das pacientes

encaminhadas para a instituição – para onde em teoria deveriam ser remetidas pacientes

crônicas ou incuráveis – obtiveram, nesta instituição, alta, sendo o mais surpreendente

que 53% dessas altas foram concedidas em menos de seis meses de internamento. O

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grande número de altas parece, à primeira vista, indicar também que a Colônia de

Engenho de Dentro não se configurou como um espaço destinado a mulheres crônicas

ou incuráveis. Na verdade, sob outra ótica, a instituição parece ir tornando-se, ao menos

entre 1911 e 1915, cada vez mais um local para pacientes agudos curáveis. Neste

sentido, é possível observar, por um lado, uma queda no diagnóstico de demência

precoce (de 23% do total em 1911 para 5% em 1915) e, por outro, um significativo

aumento das doenças relacionadas ao álcool, como alcoolismo e psicose alcóolica (de

10% do total em 1911 para 30% em 1915). Já a psicose periódica mantém-se durante os

cinco anos analisados em torno de 20% a 30% do total de diagnósticos. Assim, dos 227

diagnósticos relativos às 205 mulheres (visto que algumas pacientes recebiam mais de

um diagnóstico), a psicose periódica (24,6%) era o mais expressivo, seguido do

alcoolismo e da psicose alcoólica em conjunto (15,4% e 7,5%), da epilepsia (10,5%), da

demência precoce (9,2%) e, por último, da debilidade mental (7,9%).

Tudo indica que a Colônia também não teria sido um lugar para maníacas

depressivas (3,9%) nem mesmo para ditas histéricas (3%). Nesta perspectiva, é

interessante apontar que no HNA, entre 1900 e 1919, figurou principalmente o

diagnóstico de histéricas e a partir de 1920, o de maníaco-depressiva, como aponta

Facchinetti, Ribeiro e Muñoz (Op. Cit., 2008, p. 238-239). Os autores, relacionando

gênero e loucura, sublinham o fato dessas mulheres estarem sendo apreendidas a partir

de um padrão de normalidade feminina calcado em pressupostos sobre reprodução e

casamento.

Facchinetti, Ribeiro e Muñoz (2008), dialogando com Dorlin (2006) e Laqueur

(2001), atentam, em suas exposições, para o fato de que a ciência médica foi

fundamental na compreensão da diferença sexual desde a Antiguidade, quando, a partir

das representações originárias do corpus hipocrático, o temperamento fleumático foi

tomado como o típico temperamento feminino. Entretanto, a partir do século XVIII, em

face das descobertas anatômicas e das questões populacionais em torno da formação do

Estado Nacional, a procriação e a saúde da mulher tornaram-se primordiais. Neste

cenário, a procriação e a maternidade definiam a função e a identidade da mulher e as

suas doenças eram percebidas, na verdade, como denúncias de comportamentos ilícitos

ou anormais, que iam de encontro à aceitação do seu papel passivo e da sua natureza

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frágil, a qual fazia com que as mulheres demandassem maior controle para assegurar

sua normalidade, traduzida enquanto adoção dos papéis de mãe e esposas exemplares.

Segundo Laqueur (2001), desde o início do século XVIII, atestar as diferenças

organicamente fazia parte de um projeto político. O poder do gênero, no qual se pautara

o modelo galênico do sexo único, entrava em colapso na nova ordem social e os “fatos”

da diferença sexual incomensurável do modelo dos dois sexos deveriam reorganizar o

mundo. Para o autor, ambos os modelos são, fundamentalmente, produto da cultura;

construído por uma linguagem científica inseparável da de gênero (LAQUEUR, 2001,

Ibid. 193). É interessante perceber que a criação da diferença incomensurabilidade entre

os sexos, “consagrada” pelo conhecimento anatômico, ao deslocar a ideia de

imperfeição e tecer a noção de desvio, abria, de modo significativo, espaços para o

poder médico-científico realizar intervenções terapêuticas, “correções”.

A Psiquiatria europeia do século XIX e início do XX, notadamente, o modelo

germânico passava a defender a ideia de que a doença psiquiátrica era orgânica, ou seja,

tinha um sítio específico ainda que oculto e também uma causa objetiva e um potencial

evolutivo. Esta inferência está relacionada à emergência da concepção de

degenerescência do psiquiatra franco-austríaco Morel10 (1857), na qual a doença é

apreendida a partir de uma etiologia e não por meio de uma sintomatologia

eminentemente “moral” como era na escola francesa de Pinel e Esquirol. Morel definia

as degenerescências como desvios patológicos de caráter hereditário que podiam ter

origem física ou moral. Os processos de degeneração nervosa desencadeavam-se tanto

em função de intoxicações diversas como de distúrbios psíquicos oriundos de

comportamentos anormais. Deste modo, esses comportamentos deviam ser

acompanhados longitudinalmente, como foi balizado pelas teorias científicas do

psiquiatra alemão Émil Kraepelin (1856-1926), a fim de se compreender e mesmo

prevenir o surgimento das próprias patologias (PORTOCARRERO, 2002).

Neste sentido, vale ressaltar que, em 1907, Juliano Moreira como representante

do Brasil no Congresso de Assistência a Alienados de Milão, associou-se ao Instituto

Internacional para o Estudo da Etiologia e Profilaxia das Doenças Mentais (1906) e

votou a favor do seu programa, que defendia a criação de ambulatórios para a população

10 A teoria da degenerescência foi apresentada por Bénedict-Augustin Morel (1809-1873) no Traité des

dégénérescences (Tratado das degenerescências) em 1857.

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pobre, com o intuito de tratar do importante fator de revigoramento das raças

(AMBULATÓRIO, 1920, p. 3-4). O Ambulatório Rivadávia Corrêa seria reconhecido

como o primeiro pavilhão do gênero na América do Sul e Riedel como o precursor da

prática da eugenia no Brasil.

Costa na obra História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico (2007)

pesquisou o pensamento psiquiátrico da LBHM11, entre 1920 e 1930, através dos artigos

publicados nos Archivos de Hygiene Mental. Esta obra é considerada um marco do fazer

historiográfico sobre a Psiquiatria, pois nela buscou-se analisar, de modo inaugural, a

relação desta especialidade médica com a sociedade (VENÂNCIO e CASSILIA, 2010,

p. 28). No entanto, estudos recentes apontam que o autor, “calcado numa perspectiva

que separa ciência e cultura e, consequentemente, na adoção de uma dupla ideia de

ciência – uma pura e outra corrompida pela cultura e ideologia” (VENÂNCIO e

CASSILIA, 2010, p. 28), entendeu que os psiquiatras da LBHM produziam uma espécie

de “má ciência”. Segundo Costa (2007), com a adoção da ideia de prevenção das

doenças mentais, a noção de eugenia12 teria dominado o pensamento psiquiátrico desta

entidade. O autor ressalta que apesar do tema fundamentar-se racionalmente na

psiquiatria organicista, o pensamento da LBHM não teria derivação científica, mas

ideológica, imiscuída aos preconceitos culturais da época (antiliberalismo, racismo,

xenofobia e um moralismo calcado no nazismo ou em um catolicismo puritano) e

marcada pelas aspirações político-sociais de seus membros (COSTA, 2007).

A nossa pesquisa, ainda em andamento, tem identificado a Colônia de Alienados

de Engenho de Dentro como um espaço privilegiado de apropriação e negociação das

ideias de eugenia e higiene mental no locus do subúrbio e de atuação de um grupo em

torno da LBHM e da própria população da região. Até meados dos anos 20, a questão

da educação eugênica parece ter sido bastante significativa, especialmente, no

Ambulatório Rivadávia Corrêa, apontado por Riedel como um “órgão de educação

11 Outro trabalho importante sobre a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) é a dissertação de mestrado

de Jose Roberto Franco Reis, intitulada Higiene mental e eugenia: o projeto de “regeneração nacional” da

Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-30), defendida em 1994, sob orientação de Maria Clementina

Pereira Cunha no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Campinas (UNICAMP). Sobre a LBHM ver também Fabrício (2009). 12 Eugenia é um termo inventado pelo fisiologista inglês Francis Galton para designar “o estudo dos

fatores socialmente controláveis que podem elevar ou rebaixar as qualidades raciais das gerações futuras,

tanto física quanto mentalmente” (COSTA, 2007, p. 49).

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social”, onde a profilaxia mental seria realizada mediante o concurso de uma assistência

médico-cirúrgica e por meio de visitas domiciliares efetuadas pelo serviço social

(RIEDEL, 1928 p. 21). Resta verificar, na pesquisa em curso, se esta dimensão seria

solapada ou ressignificada nos anos posteriores.

Considerações finais

A análise dos prontuários de 1911 a 1915 da Colônia de Engenho de Dentro

revela um conjunto de possibilidades de análise. Primeiramente, um certo esforço da

instituição para manter no estabelecimento apenas mulheres dispostas a trabalharem,

removendo para o HNA as ditas inadequadas ao regime colonial ou serviço braçal, além

das agitadas. Além disso, é possível notar a carência de uma infraestrutura hospitalar,

que determinava um outro quantitativo de remoções para o Hospital. Neste sentido, este

ensaio sugere uma relação não apenas de complementariedade ou dependência da

colônia feminina em relação ao HNA, mas também de conflito. O quadro dos anos 1920

seria amalgamado pela criação dos serviços anexos de profilaxia e higiene mental; a

exemplo, a Colônia passaria a ter sua “própria porta de entrada” para a assistência aos

alienados, especialmente através do Pavilhão Epitácio Pessoa. A construção dessa

instituição de psiquiatria feminina e sua remodelação na década de 1920 seria nutrida

por uma confluência de fatores e agências: pela crescente importância das questões de

gênero e do ideário de profilaxia mental, pela própria urbanização da região e pela

atuação da sua população em prol de uma saúde pública.

Desde dentro e das “beiras” da instituição psiquiátrica feminina, ou seja, voltada

tanto para dentro (loucas) quanto para fora (subúrbio), surgia o “edifício eugênico”13 no

limiar entre doença, loucura e degeneração, precariedade, pobreza e atraso. Assim, uma

dimensão concreta e também simbólica de espaço e gênero aparece inscrita na criação

desses serviços. Esse edifício era erguido frente ao contraexemplo de mulher: a “mulher

louca”, débil, de sexualidade exarcebada, insubordinada, e pautava-se sob uma retórica

de modernização e higienização da nação e civilização brasileiras: de prevenção da

13 Expressão utilizada por Gustavo Riedel. (RIEDEL, op. Cit. 1928, p. 15).

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loucura, da degeneração das linhagens familiares e das raças, da ignorância e do atraso

do meio. A própria disposição híbrida da Colônia seria, em si mesma, um novo e

importante tipo de tecnologia psiquiátrica, que comungava as ideias de asilamento e

regeneração.

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