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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ALANE FRAGA DO CARMO Colonização e escravidão na Bahia: A Colônia Leopoldina (1850-1888) Salvador- Bahia 2010

Colonização e Escravidão Na Bahia a Colônia Leopoldina

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Colonização e Escravidão Na Bahia a Colônia Leopoldina

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    ALANE FRAGA DO CARMO

    Colonizao e escravido na Bahia:

    A Colnia Leopoldina (1850-1888)

    Salvador- Bahia

    2010

  • ALANE FRAGA DO CARMO

    Colonizao e escravido na Bahia:

    A Colnia Leopoldina (1850-1888)

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em

    Histria Social, Faculdade de Filosofia e Cincias

    Humanas, Universidade Federal da Bahia, como

    requisito parcial para a obteno do grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Joo Jos Reis

    Salvador Bahia

    2010

  • Carmo, Alane Fraga.

    Colonizao e escravido na Bahia: a Colnia Leopoldina, 1850-1888./ Alane

    Fraga do Carmo- Salvador, 2010.

    Orientador: Joo Jos Reis.

    Dissertao (mestrado) UFBA / Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas/

    Programa de Ps graduao em Histria social, 2010.

    Referncias bibliogrficas: f. 129-136.

    1. Escravido. 2. Colonizao - Bahia Colnia Leopoldina. 3. Bahia Histria social 1850-1888. 4. Brasil Histria. I. Reis, Joo Jos. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,

    Programa de Ps-graduao em Histria social. III. Ttulo.

  • TERMO DE APROVAO

    Alane Fraga do Carmo

    Colonizao e escravido na Bahia:

    A Colnia Leopoldina (1850-1888)

    Dissertao de mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Histria

    Social da Universidade Federal da Bahia- UFBA, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do grau de Mestre em Histria Social.

    Aprovada por:

    BANCA EXAMINADORA:

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Joo Jos Reis (Orientador)

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Isabel Cristina Ferreira dos Reis

    Salvador, _____ de _____________ de 2010

  • A minha famlia.

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar agradeo a meus pais que apesar de todas as dificuldades da

    vida no pouparam esforos para assegurar aos filhos o amor e a educao.

    Universidade Federal da Bahia agradeo a oportunidade de estudar, e espero

    que esta instituio continue assegurando aos estudantes de poucos recursos a mesma

    oportunidade.

    Para a elaborao desta dissertao contei com o auxilio de muitas pessoas, o

    que fez este trajeto mais leve do que seria caso o trilhasse sozinha. Sou especialmente

    grata ao professor Joo Jos Reis, que no mais digno exerccio de sua profisso esteve

    sempre disposio auxiliando com sua orientao, sua leitura atenta e interessada, e

    suas crticas fundamentais para o amadurecimento do trabalho. Aos professores da

    graduao agradeo a dedicao e o apoio, especialmente Helen Mello e Dilton Arajo,

    pelo incentivo, por terem despertado em mim o desejo pela pesquisa, servindo sempre

    de inspirao.

    Agradeo aos professores e colegas da linha de pesquisa Escravido e Inveno

    da Liberdade pelas sugestes, crticas e observaes pertinentes que contriburam para

    este trabalho. Sou especialmente grata aos colegas Cnthia, Jacira, Ktia Lorena,

    Cludia, Valria, Carlos e Daniele pelas sugestes, cesso e indicao de fontes, alm

    de fazerem das aulas na ps-graduao momentos de alegria e descontrao.

    um amigo muito especial devo a coragem para me lanar a uma pesquisa que

    sabia rdua mas ao mesmo tempo promissora: Ricardo Tadeu Caires Silva. A ele devo a

    sugesto do tema, a indicao das primeiras fontes, das primeiras leituras, o auxilio na

    construo do projeto de pesquisa e leituras atentas e interessadas das verses deste

    trabalho.

    Devo muitssimo aos funcionrios do Arquivo Pblico do Estado da Bahia,

    especialmente a Paulo, Marlene e sua equipe, Edith, Helena e Elaine, Lindemberg e

    Raimundo. Aos meus colegas de arquivo, que me ajudaram sempre na coleta de

    fontes e nas sugestes quanto a possibilidades nos maos do mesmo arquivo, a Vera

    Natlia, Bruna Ismerim, Cleide Cardin, Lgia Santana, Pablo Iglesias e Neuraci Moreira.

  • As amigas Cinthia Cunha e Dbora Bastos, pela amizade, incentivo e o carinho de

    sempre.

    Aos colegas da escola municipal Clriston Andrade e do Projeto Pelourinho de

    Arqueologia, pela ajuda, compreenso e apoio em alguns dos momentos mais difceis,

    especialmente a Eduardo Pitta, Rosana Najjar, Cludio Csar e Samuel Gordenstein.

    As minhas amigas Josane, Geovana e Rosilane por colocarem seus

    conhecimentos e talentos minha disposio, me auxiliando em algumas das tarefas

    mais espinhosas.

    No tenho palavras para agradecer a minha famlia. Meus pais, por tudo o que

    fizeram e ainda fazem por mim. Meus irmos Alan e Anderson, pelo amor e carinho de

    sempre. A minhas cunhadas, minhas afilhadas queridas, meus tios e tias sempre

    generosos. A meus avs, a quem tambm dedico esta conquista como primeira neta a

    alar vos um pouco mais altos.

    Um agradecimento especial a Dcio Pereira, meu companheiro de sempre, que

    esteve comigo nessa caminhada, me apoiando, incentivando e ajudando em tudo com a

    pacincia e a compreenso dos que amam.

  • RESUMO

    Este trabalho estuda a populao escrava da Colnia Leopoldina, localizada no extremo

    sul da Bahia, durante a segunda metade do sculo XIX. Na tentativa de compreender

    como uma colnia de estrangeiros fundamentada na produo agrcola familiar e no

    trabalho livre enveredou pelo trabalho escravo, abordamos de forma complementar os

    primeiros anos de existncia da colnia, fundada em 1818. Foi traado um perfil parcial

    da sua populao livre, assim como um perfil demogrfico da populao cativa para

    melhor elucidar quem eram os sujeitos envolvidos nas diversas histrias de fugas,

    revoltas, disputas judiciais, denncias de maus tratos, crimes e histrias de amor,

    envolvendo senhores e escravos. Baseada em mtodos quantitativos e uma anlise de

    cunho qualitativa, a pesquisa revelou a importncia da famlia escrava na colnia, tanto

    como instrumento utilizado pelos senhores para o controle e reproduo da fora de

    trabalho, como para os prprios escravos, que contavam com uma parentela solidria e

    certamente acessvel nos momentos decisivos como fugas, compra da alforria e terras

    onde trabalharam aps a liberdade. Esses dados revelaram ainda que o casamento

    escravo, no catlico e possivelmente baseado em ritos protestantes, gozou de certa

    legitimidade conferida pela prpria comunidade local, a ponto de os proprietrios

    preservarem os casais unidos na hora da venda ou partilha, mesmo antes da lei obrigar a

    esta prtica. Os dados revelaram ainda que a rotina de trabalho, ao contrrio do que

    declararam proprietrios e moradores da colnia, era rdua e por vezes o direito dos

    escravos folga no foi respeitado, pois alguns proprietrios a reduziram a apenas

    metade do dia de domingo. Entre inventrios post mortem, testamentos, registros de

    matrcula, escrituras de compra e venda, aes de liberdade, processos crimes, registros

    eclesisticos de terra e correspondncia entre autoridades consulares, administrativas e

    policiais, encontram-se histrias surpreendentes que servem como ponto de partida para

    a anlise dos fatos e processos histricos que viabilizaram as conquistas dos escravos na

    segunda metade do sculo XIX, e como estes processos foram sentidos em uma regio

    to distante do centro da provncia.

    Palavras-chave: Escravido, Colnia Leopoldina - Bahia, Histria - Brasil, Sculo XIX.

  • ABSTRACT

    This study examines the slave population of the Leopoldina Colony, located on the

    southern tip of the state of Bahia, during the second half of the nineteenth century. In an

    attempt to understand how a colony made up of foreigners and relying on family

    agricultural production and free labor switched to slave labor, a secondary strand of

    analysis focuses on the first years of the colony founded in 1818. By providing a sketch

    of the colonys free population as well as a demographic profile of the resident captive

    population this study aims to elucidate the actors involved in the numerous stories of

    flights, revolts, judicial disputes, accusations of ill treatment, crimes, and love stories

    involving masters and slaves. Using quantitative methods and qualitative analysis, the

    research revealed the importance of family to slaves in the colony, both as an instrument

    used by the masters to maintain the workforce, and for the slaves themselves, who could

    rely on solidary kin that were certainly accessible in the most decisive moments, such as

    during flights, or to buy freedom and land to be used after manumission. The data also

    reveals that slave marriage, non-catholic and possibly based on protestant rites, carried a

    certain legitimacy that was conferred by the community itself to the point where the

    proprietors kept the couples united during sales or partitions, even before these practices

    were legally enforced. The data also reveal that the work routine, contrary to the

    declarations by the colonys proprietors and residents, was arduous, and that sometimes

    the slaves right to time off was not respected, as some proprietors reduced it to only

    half a day on Sunday. Within these post-mortem inventories, testaments, enrollment

    records, purchase and sales deeds, freedom-related suits, criminal lawsuits, church land

    records, consular correspondence between consular authorities as well as administrative

    and police correspondence, are surprising stories that serve as a departing point for an

    analysis of historical events and processes that led to the slaves gains during the

    second half of the nineteenth century, and help to understand their impact in a region so

    distant from the center of the province.

    Key words: Slavery, Colnia Leopoldina Bahia, History Brazil, 19th century.

  • SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................. .........13

    Capitulo I

    A Colnia Leopoldina: processo de formao e perfil da populao livre........................22

    Schaeffer: um agente da colonizao a servio do Governo Imperial.............................26 De colonos a senhores de escravos..................................................................................30 Terras frteis nas margens do Perupe.............................................................................33 A cultura de caf na Colnia ..........................................................................................36 Populao livre................................................................................................................44 As maiores fortunas da Colnia Leopoldina: um perfil da elite proprietria..................48

    Capitulo II

    Caf no cesto da escrava Suzana: rotina de trabalho e relao senhor-

    escravo......................................................................................................................................55

    A presena da indstria europia no extremo sul da Bahia.........................................58 Insurreio na senzala da Alta Ribeira............................................................................62 Economia domstica dos escravos...................................................................................66 A histria do escravo Alberto..........................................................................................68 Sublevao na fazenda Monte Christo: um clima de liberdade nos ltimos anos da

    escravido .......................................................................................................................71

    Males de todos os males do termo: algumas palavras sobre o padre Geraldo Xavier de Santana.............................................................................................. ..............................75

    Escravos que no esperaram pelo 13 de maio.................................................................78 Libertos na carreira agrcola ...........................................................................................80

    Captulo III

    Populao escrava e relaes de parentesco........................................................................84

    Casamento entre escravos................................................................................................85 Decentes e respeitveis ncleos familiares..................................................................89 Legitimidade e estabilidade da famlia escrava..............................................................94 Possibilidades de unio conjugal entre escravos nas propriedades da colnia...............96 Taxas de crescimento da populao negra: escravos e ingnuos .................................106 Aes extremas em defesa da famlia e da liberdade....................................................112 Redes familiares no auxilio liberdade.........................................................................118

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................122

    ANEXOS....................................................................................................................... .........126

    FONTES E REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................133

  • Lista de mapas, tabelas e grficos.

    Mapa 1 : Extremo sul da Bahia...................................................................................... 21

    Mapa 2: Mapa de localizao das propriedades da Colnia Leopoldina em 1857 com

    relevo...............................................................................................................................42

    Mapa 3: Localizao espacial das propriedades da Colnia Leopoldina em

    1857................................................................................................................................ 43

    Tabela 1: Nmero de escravos por proprietrio que no exportou caf em

    1839.............................................................................................................................. ...39

    Tabela 2: Nmero de ps de caf por lavradores sem escravos em

    1840.................................................................................................................................40

    Tabela 3: Nmero de escravos por proprietrio, 1840...................................................41

    Tabela 4: Populao livre da colnia por ocupao, 1840-1850....................................47

    Tabela 5: Distribuio da populao escrava por idade e origem, Colnia Leopoldina,

    1860-1888........................................................................................................................91

    Tabela 6: Distribuio dos escravos por sexo e idade, fazenda Pombal 2,

    1859......................................................................................................................... ........93

    Tabela 7: Distribuio de brancos e escravos por fazenda, Colnia Leopoldina

    1847.................................................................................................................................97

    Tabela 8: Distribuio dos escravos por sexo e origem, fazenda Pombal 2,

    1859...............................................................................................................................100

    Tabela 9: Distribuio dos escravos adultos por origem e estado conjugal, fazenda

    Pombal 2, 1859................................................................................ .............................100

    Tabela 10: Distribuio da populao escrava por sexo e origem, Colnia Leopoldina,

    1860-1888......................................................................................... .............................102

    Tabela 11: Distribuio da populao escrava por sexo e idade, Colnia Leopoldina,

    1860-1888......................................................................................... .............................103

    Tabela 12: Distribuio da populao escrava por origem e tamanho da posse, Colnia

    Leopoldina, 1860-1888............................................................................................... ..105

    Tabela 13: Distribuio da populao escrava por idade, Colnia Leopoldina, 1850-

    1870.................................................................................................. .............................112

  • 12

    Tabela 14: Distribuio da populao escrava por idade, Colnia Leopoldina, 1871-

    1888.................................................................................................. .............................112

    Tabela 15: Relao dos lavradores da Colnia Leopoldina tanto nacionais quanto

    estrangeiros 1840.......................................................................................................126

    Tabela 16: Distribuio da populao escrava por fazenda e sexo (Colnia Leopoldina,

    1860-1888 )....................................................................................................................128

    Tabela 17: Valor dos bens dos proprietrios na Colnia Leopoldina (1861-

    1884)..............................................................................................................................129

    Quadro 1: Famlia originria da africana Juliana, escrava de Ana Sofia Ida Joseph

    (fazenda Grully,1872)....................................................................................................129

    Quadro 2: Famlia originria de Tereza, escrava de Ana Sofia Ida Joseph (fazenda

    Grully,1872)..................................................................................................................130

    Quadro 3: Famlia originria de Roberto Cabinda e Rosa Moambique, escravos de

    Zlia Huguenin Montandon (fazenda Pombal 2,1858)................................................131

    Quadro 4: Famlia originria de Vicente e Esperana, escravos de Zlia Huguenin

    Montandon (fazenda Pombal 2,1858)..........................................................................131

    Quadro 5: Famlia originria de Antonio e Felisarda Benguela, escravos de Zlia

    Huguenin Montandon (fazenda Pombal 2,1858)..........................................................132

    Quadro 6: Famlia originria de Jos Muleque e Romana Benguela, escravos de Zlia

    Huguenin Montandon (fazenda Pombal 2,1858)..........................................................132

    Figura 1: Corte transversal de algumas partes de compem o Despolpador Beaven,

    1880, Acervo do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro........................................................59

    Figura 2: Nova maquina de secar caf Taunay-Telles, 1881. Acervo do Arquivo

    Nacional, Rio de Janeiro..................................................................................................60

    Figura 3: Debulhador de caf sendo usado por escravas na fazenda de caf Entre-Rios,

    no Vale do Paraba, provncia do Rio de Janeiro, em 1878. J.B. Wiegandt, Acervo do

    Instituto de Estudos Brasileiros/ USP..............................................................................62

    Grfico 1: Distribuio da populao escrava por faixas etrias e sexo, Colnia

    Leopoldina, 1860-1888..................................................................................................106

  • 13

    INTRODUO

    O Brasil tentou durante quase todo o sculo XIX, sem sucesso, atrair

    imigrantes estrangeiros que trouxessem suas indstrias e cabedais para este longnquo

    destino na Amrica. As primeiras experincias de colonizao com estrangeiros no

    Brasil datam de 1808, quando um decreto de D. Joo VI permitiu a doao de terras a

    estrangeiros que quisessem formar colnias agrcolas. A instalao da monarquia lusa

    nos trpicos viria alterar definitivamente a feio da Amrica Portuguesa. A partir de

    ento, muitas aes polticas, econmicas, culturais, etc. - foram efetuadas com vistas

    a dotar a regio de uma estrutura digna do imprio portugus. A vinda de imigrantes

    europeus fazia parte do conjunto dessas estratgias e tinha por objetivo branquear a

    populao, povoar as fronteiras at ento inabitadas e estimular a produo de gneros

    alimentcios necessrios ao abastecimento da populao. Entretanto, conquanto

    estivesse integrada nos projetos polticos de D. Joo VI, de um modo geral, pouco se

    conhece sobre essas primeiras experincias de imigrao no Brasil.1

    Segundo Henrique Jorge Buckingham Lyra, a poltica de colonizao empregada

    na primeira metade do sculo XIX era regida por uma sucesso interminvel de leis,

    portarias e decretos que modificavam constantemente os direitos e obrigaes dos

    colonos, que inclusive obedeciam a leis diferentes segundo a data de entrada no pas. O

    estudo dos dispositivos legais que regeram essas experincias demonstra a precocidade

    de um projeto que comeou a ser executado antes mesmo da construo de um aparato

    legal que o fundamentasse.2

    Em 1818 foram doadas as primeiras sesmarias para a formao de colnias

    agrcolas pelo decreto de 1808. No mesmo ano outro decreto assinado por D. Joo VI

    facilitava a formao de colnias agrcolas por estrangeiros, pois alm de ceder a terra

    criava um fundo para subvenes a imigrantes que se radicassem no pas. Nesse

    momento a idia era uma colonizao dirigida. O governo pagaria as despesas da

    viagem, daria subsdios nos primeiros tempos e os isentaria de impostos por um perodo

    1 Uma exceo o estudo de Martin Nicoulin, A gnese de Nova Friburgo, Rio de Janeiro, Fundao

    Biblioteca Nacional, 1995. 2 Sobre os projetos de colonizao no Brasil na primeira metade do sculo XIX ver Henrique Jorge

    Buckingam Lyra, Colonos e Colonias Uma avaliao das experincias de colonizao agrcola na Bahia na segunda metade do sculo XIX, Dissertao apresentada a UFBA, Salvador-BA, 1982; Carlos

    H. Oberacker Jr., Jorge Antonio Von Schaeffer, criador da primeira corrente emigratria alem para o

    Brasil, Porto Alegre, Metrpole, 1975, pp. 2-26; e Nicoulin, A gnese de Nova Friburgo.

  • 14

    de dez anos. Segundo Lyra, a principal caracterstica da poltica de colonizao

    empregada na primeira metade do Oitocentos seria o acesso terra, o que contrariava os

    interesses dos grandes proprietrios.

    As colnias deveriam se localizar em pontos distantes dos centros urbanos e

    pouco povoados, obedecendo a um objetivo de povoamento e defesa do territrio- no

    caso das colnias militares -, alm de desenvolverem a agricultura e no utilizarem

    trabalho escravo, a no ser para a derrubada das matas, o que na prtica no foi

    respeitado por quase nenhuma delas. Essas experincias diferem em muitos aspectos do

    sistema de parceria implementado a partir de 1840 por setores da lavoura cafeeira.

    Nesse ltimo caso houve a utilizao do imigrante como fora de trabalho em

    substituio ao escravo africano, ao mesmo tempo em que lhe foi negado o acesso

    terra. Alis, a poltica de restrio do acesso terra por parte de estrangeiros foi

    consolidada em 1850 com a promulgao da Lei de Terras, a lei n 601 de 18 de

    setembro de 1850.3

    Na Bahia, as principais experincias de colonizao agrcola ocorreram no sul da

    ento capitania. A primeira, fundada em 1818, foi a Colnia do Rio Salsa, uma colnia

    mista de brasileiros e estrangeiros formada pelo Conde da Palma e extinta j em 1827.4

    A Colnia de So Jorge dos Ilhus foi formada em Ilhus, em 1822, por 28 casais de

    alemes. Constitua uma experincia de colonizao com auxilio de particulares j que

    as famlias imigrantes foram financiadas pelo arquiteto holands Pedro Weyll, que havia

    recebido sesmarias na regio em 1818. Datam de 1855 as ltimas notcias sobre sua

    existncia, quando havia se transformado em um conjunto de propriedades produtoras

    de cacau.

    Outra tentativa de colonizao estrangeira foi a Colnia de Santa Januria,

    fundada em 1828, em Tapero, tambm no sul da Bahia. Essa colnia foi formada por

    irlandeses vindos do Rio de Janeiro para ocupar a regio. Em 1857, provavelmente

    3 Sobre a Lei de Terras ver Lgia Osorio Silva, Terras devolutas e latifndio- efeitos da Lei de 1850, Ed.

    Unicamp, Campinas, 1996; Ruy Cirne, Sesmarias e Terras Devolutas, Livraria Sulina, Porto Alegre,

    1954; e Emlia Viotti da Costa, Da Monarquia Repblica, Edusp, So Paulo, 1992. 4 O rio Salsa localiza-se no municpio de Canavierias, sul da Bahia, e liga o rio Pardo ao rio

    Jequitinhonha, em Minas Gerais. Segundo Joo da Silva Campos, Cronica da Capitania de So Jorge dos

    Ilhus, Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1981, p.207, essa colnia foi formada por

    estrangeiros e soldados brasileiros, com o objetivo principal de promover a navegao pelo rio Salsa e

    estabelecer relaes comerciais com a provncia de Minas Gerais. Em 1826 os colonos haviam

    desaparecido e a tropa, que constitua o Destacamento de So Francisco da Palma, deixou a regio em

    1836.

  • 15

    devido as dificuldades advindas com a suspenso dos incentivos financeiros do

    governo, os colonos abandonaram a regio.5

    E finalmente, em 1845, foi estabelecida no extremo sul da provncia a colnia

    militar do Mucury. Essa foi a primeira colnia agrcola formada apenas com nacionais

    estabelecida na Bahia. Segundo o chefe da explorao do Mucury e Belmonte, capito

    Inocncio Vellozo Pederneiras, a colnia tinha uma feio fortemente militar, o que

    desagradava as famlias ali instaladas. Pederneiras ainda alegava que os colonos

    selecionados no tinham qualquer experincia agrcola, e na sua maioria eram ex

    militares, pescadores, alfaiates, caixeiros, marinheiros, enfermeiros, carapinas, etc. A

    colnia foi dissolvida apenas cinco anos depois de sua fundao, em1849.6

    Mas foi a Colnia Leopoldina, fundada em 1818 no municpio de Villa Viosa, a

    primeira experincia de colonizao agrcola fundada na Bahia. Essa experincia com

    colonos alemes e suos alcanou relativa prosperidade, principalmente em

    comparao com os empreendimentos agrcolas mencionados, devido exportao do

    caf ali produzido, de onde advinha sua importncia e reconhecimento pelas autoridades

    provinciais, e a decorrente maior referncia nas fontes administrativas.

    A Colnia Leopoldina ficava situada no municpio de Vila Viosa, atual Nova

    Viosa, pertencente comarca de Caravelas, no extremo sul da Bahia. A freguesia de

    Nova Viosa foi criada em 1720, na foz do rio Perupe, com o nome de Arraial de

    Campinho do Perupe, para abrigar portugueses e ndios catequizados. Foi elevada

    categoria de Vila em 1768, com o nome de Vila Viosa, e mais tarde, em 1775, ao nvel

    de municpio, em territrio desmembrado de Caravelas.7

    A Leopoldina foi durante algum tempo uma experincia de colonizao

    espontnea, como previa o decreto de 1808, em que estrangeiros adquiriam terras e

    atraam colonos para cultiv-la. Quem adquirisse as sesmarias e trouxesse outros

    compatriotas tinha direito a metade das terras, o restante seria cultivado pelos demais

    colonos. Em troca, os colonos deveriam fornecer parte dos produtos no alimentcios

    produzidos na colnia, como o caf, por exemplo. A insatisfao dos colonos com esse

    5 Sobre as colnias do Rio Salsa e Santa Januria ver Lyra, Colonos e colnias, p. 24, 31. 6 Relatrio sobre os colonos do Mucury feito pelo Capito Engenheiro, chefe da comisso de Explorao

    de Mucury e Belmonte, em 20 de maro de 1849, Arquivo Pblico do estado da Bahia (doravante APEB)

    seo Colonial, Colonos e colnias, mao 4607. 7 Durval Vieira de Aguiar, Descries prticas da Provncia da Bahia, com declarao de todas as

    distncias intermedirias das cidades, vilas e povoaes, 2 ed., Rio de Janeiro: Ctedra; Braslia: INL,

    1979, pp.291-194.

  • 16

    tipo de contrato, a falta de braos estrangeiros para cultivar a terra, e a falta de uma

    administrao aps a morte de um de seus fundadores, em 1825, fizeram com que os

    colonos empregassem escravos, repartissem a terra em lotes particulares e investissem

    seus recursos na produo de caf para exportao. 8 Essas medidas implicaram no

    descumprimento das normas estabelecidas nos decretos reais, principalmente quanto

    utilizao de escravos, e assim a Leopoldina foi descaracterizada enquanto colnia por

    volta de 1850.

    Esta dissertao se dedica a conhecer as vicissitudes dessa colnia e as

    experincias sociais ali vivenciadas por imigrantes europeus e escravos desde sua

    fundao, em 1818, at a provvel data de sua extino, em 1888. Aqui discutiremos

    como e porqu a colonizao ali implantada enveredou, com sucesso, pelo trabalho

    escravo, que estratgias de dominao foram adotadas no cotidiano entre imigrantes e

    seus escravos, qual o papel dos escravos no processo de desestruturao da colnia a

    partir da dcada de 1860, e quais as possibilidades de autonomia escrava nas fazendas

    da regio. Dessa forma, pretendemos contribuir para o conhecimento das relaes

    escravistas no extremo sul baiano.

    Apesar do crescimento de pesquisas relevantes sobre a escravido em outras

    regies da Bahia que no Salvador e o Recncavo, pouco se conhece sobre o extremo

    sul baiano. A maior parte dos estudos sobre a regio refere-se cidade de Ilhus e seu

    entorno, e muitos deles esto relacionados com a temtica indgena. 9

    Assim este

    trabalho torna-se relevante tanto pelo ineditismo, no sentido de estudar uma pequena

    8 Sobre as experincias com colnias agrcolas formada com estrangeiros na Bahia ver Lyra, Colonos e

    Colnias, pp.24-33; sobre os anos iniciais da Colnia Leopoldina ver principalmente Carlos H. Oberacker

    Jr. A colnia Leopoldina-Frankental na Bahia meridional; uma colnia europia de plantadores no Brasil. RIHGB, Rio de Janeiro,v. 148 (1987), pp 116- 140. 9 Alguns trabalhos sobre o sul baiano: Mary Ann Mahony, Instrumentos necessrios: escravido e posse de escravos no sul da Bahia no sculo XIX, 1822- 1889, Afro-sia, n 25-26 (2001), pp. 95- 139; Joo Jos Reis, Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro-Bahia, 1806 in Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes (org.). Liberdade por um fio: histria dos quilombos no Brasil. So Paulo, Companhia

    das Letras, 1996, 332-373; e sobre a temtica indgena na regio ver Maria Hilda Baqueiro Paraso, A

    guerra do Mucuri: conquista e dominao dos povos indgenas em nome do progresso e da civilizao In

    Lus Svio de Almeida (Org), J. ndios do Nordeste: temas e problemas II, Macei, Edufal, 2002; Maria

    Hilda Baqueiro Paraso, O sul da Provncia da Bahia na tica dos viajantes do sculo XIX entre 1815 e 1820, In Anais do XI Congresso da Sociedade Brasileira de Arqueologia Brasileira, Rio de Janeiro, SAB; Telma Mriam Moreira de Souza, Entre a cruz e o trabalho: explorao da mo-de-obra indgena no Sul da Bahia (18451875), dissertao apresentada a UFBA, Salvador-BA, 2007.

  • 17

    mais expressiva comunidade agrcola e escravista na regio, como pela singularidade,

    por se tratar de uma das poucas experincias documentadas de relaes entre escravos e

    senhores europeus, que no portugueses no Brasil oitocentista.

    Diversos trabalhos sobre colnias agrcolas ou sobre a presena de estrangeiros

    na Bahia referem-se Colnia Leopoldina, ainda que superficialmente. Os estudos que

    mais detidamente se debruaram sobre a colnia e apresentaram alguma documentao

    sobre ela foram o artigo de Carlos Oberacker Jr., e o trabalho dos linguistas Dante

    Luchesi e Alan Baxter, que ao estudarem a composio tnica e lingustica dos

    habitantes do atual distrito de Helvcia, localizado nas terras da antiga Colnia

    Leopoldina, foram os pioneiros no estudo dos testamentos e inventrios post-mortem

    dos colonos da Leopoldina. Atravs da anlise destes documentos os lingistas

    apresentaram uma pequena viso da demografia escrava da regio.10

    O estudo de Carlos Oberacker Jr. versa principalmente sobre a fundao da

    Colnia Leopoldina, baseado principalmente na literatura alem sobre o tema, mas

    tambm nos registros dos viajantes que passaram pela Bahia. Oberacker Jr. Foi quem

    mais tempo dedicou escravido na colnia, apesar de no contar com dados mais

    substanciais sobre o assunto. Ele sugere uma possvel data para a entrada do elemento

    escravo na colnia, e este seria o momento em que ela deixaria de ser propriamente uma

    colnia para ser um conjunto de empreendimentos particulares destinados exportao

    de gneros agrcolas. Oberacker Jr. ainda apresenta os primeiros colonos que ocuparam

    a regio, permitindo o cruzamento dessas informaes com outras coletadas por esta

    pesquisa. 11

    Waldir Freitas Oliveira reuniu dados sobre a presena dos suos no Brasil, e

    enfatizou essa presena na Bahia atravs de um breve estudo da Colnia Leopoldina,

    baseado principalmente no opsculo A Colnia Leopoldina, de Hermann Neeser,

    publicado em 1951. Esse autor enfatizou a relao entre os colonos suos que se

    10 Ver Carlos H. Oberacker Jr. A colnia Leopoldina-Frankental na Bahia meridional; uma colnia europia de plantadores no Brasil. RIHGB, Rio de Janeiro,v. 148 (1987), pp 116- 140; e Alan N. Baxter & Dante Lucchesi. (2004) A comunidade de fala de Helvcia . Ba. Disponvel em:< http:// www.vertentes.ufba.br/comunidades.htm>; e, Alan N. Baxter & Dante Lucchesi. A relevncia dos processos de pidginizao e crioulizao na formao da lngua portuguesa no Brasil. In: Estudos

    Lingsticos e literrios,1997, n. 19, p. 65-84. 11 Oberacker Jr. A colnia Leopoldina, p. 118-119.v. Conseguimos identificar as propriedades e a descendncia de alguns dos primeiros colonos da Leopoldina segundo Oberacker Jr., como Filipe

    Huguenim, Henri Borel, Eugenio Borel e Pedro Henrique Beguim.

  • 18

    dirigiram para a colnia a partir de 1840 e a firma sua Meuron & Cia, fundada em

    1823 por Franois Meuron, e que posteriormente passou a funcionar no imponente

    casaro Solar do Unho, na freguesia da Vitria, em Salvador, para onde se dirigiram

    vrios estrangeiros, segundo verificamos nos livros de pedido de residncia para

    estrangeiros, disponveis no Arquivo Pblico do Estado da Bahia.12

    Hermann Nesser nos ofereceu elementos que serviram como ponto de partida

    para a anlise. O romantismo com que descreveu a colnia e as relaes escravistas a

    partir da tese do mdico e tambm proprietrio na colnia Carlos Augusto Toelsner,

    chamou nossa ateno por estar totalmente em desacordo com as histrias de rebeldia,

    fugas, maus tratos e violncia entre senhores e escravos.13

    As relaes eram sobremodo

    tensas e a prpria superioridade numrica dos escravos no deixava que fosse diferente.

    A pesquisa revelou que muitas vezes essa circunstncia levou senhores a cederem s

    vontades dos escravos, assim como ao recrudescimento da disciplina.

    O estudo de Henrique Jorge Buckingham Lyra, aborda apenas superficialmente

    a Colnia Leopoldina. Da mesma forma a pesquisa de Moema Parente Auguel, cujo

    foco a presena de estrangeiros na Bahia, refere-se Colnia Leopoldina apenas

    enquanto uma regio desbravada por viajantes estrangeiros que visitaram a provncia

    durante o sculo XIX . 14

    Todos estes trabalhos foram de grande importncia para o

    levantamento das fontes, assim como para o entendimento da Colnia Leopoldina como

    um empreendimento ambguo, que ora preservava caractersticas de colnia (pois

    continuava cobrando a ajuda financeira e a proteo do governo da provncia, recebendo

    mdicos europeus pagos pelo mesmo governo, educando seus filhos na lngua alem e

    na religio protestante, e mantendo-se de certa forma isolados naquela regio), ora

    comportava-se como um empreendimento totalmente independente, (utilizando

    escravos, organizando sua exportao via Rio de Janeiro e desafiando as autoridades

    locais).

    12 Nos Livros de Registro de entrada de estrangeiros referentes aos anos de 1842 e 1855 localizamos Salomon Jaccard, Emilio Champion, e Carlos Augusto Hertsch declarando o endereo da fbrica de rap

    Meuron & Cia como o endereo para onde se dirigiam ao entrar na Bahia. APEB, seo colonial, Polcia,

    Livro de Registro de entrada de estrangeiros, 1855, mao 5667, p. 16 verso; e Livro de Registro de

    entrada de estrangeiros, 1842, mao 5657-1, p.26 e 31 verso. 13 Nesser, A Colnia Leopoldina. 14

    Lyra, Colonos e Colnias; Moema Parente Auguel, Visitantes Estrangeiros na Bahia Oitocentista, So

    Paulo, Cultrix; Braslia, INL, 1980.

  • 19

    Os inventrios post mortem constituem a documentao bsica desta pesquisa.

    Trata-se de um conjunto de 55 documentos referentes a senhores escravistas e ex

    escravos que viveram e morreram na regio da Colnia Leopoldina. Esses documentos

    se encontram disponneis no Arquivo Pblico do Estado da Bahia e foram registrados

    nos cartrio das cidades de Salvador, Vila Viosa, Caravelas, Porto Alegre (que na

    verdade se trata do termo de So Jos de Porto Alegre, um entreposto comercial da

    regio de Vila Viosa), e principalmente da cidade de Mucuri. Desses documentos

    foram retiradas informaes como o nome, sexo, nacionalidade, estado civil, ramo de

    atividade, e poder aquisitivo do proprietrio; nome, extenso e benfeitorias da

    propriedade; nome, naturalidade e estatuto jurdico dos administradores e feitores da

    propriedade; nome, sexo, naturalidade, ocupao, valor, estado de sade, e na maioria

    dos casos idade dos escravos da propriedade. Muitos inventrios trouxeram em anexo a

    certido de matrcula dos escravos da propriedade, onde podemos verificar sua

    procedncia, ou seja, de quem e de onde foram comprados. Esses dados foram

    fundamentais para traar o perfil tanto da populao livre e proprietria da colnia,

    como da populao escrava, baseado principalmente nas variveis sexo, idade e

    naturalidade.

    Os inventrios nos permitiram identificar a recorrncia da famlia escrava nas

    senzalas leopoldinenses. Devido a um raro cuidado da parte de proprietrios e

    administradores, em algumas propriedades os escravos foram organizados por famlias

    no momento da avaliao dos bens do inventariado, tornando possvel o levantamento

    de dados sobre as relaes de parentesco escravo em uma mesma posse.

    Os processos cveis e crimes trazem informaes s vezes detalhadas sobre a

    economia de subsistncia dos escravos empreendida aos domingos e feriados e, em

    alguns casos, o emprego desses valores para a compra da alforria. Esses documentos

    foram de fundamental importncia para a anlise das tenses e conflitos subjacentes s

    relaes de trabalho no sistema escravista, e tornou possvel contar algumas histrias de

    vida e resistncia na colnia. Histrias de levantes, fugas coletivas, assassinatos de

    senhores e feitores, filicdios, e denncias de maus-tratos, compem algumas das

    histrias que emergem dos processos crimes, inventrios e testamentos pesquisados.

    Assim como os processos criminais que narram histrias dos que transgrediram

    de alguma forma as normas da sociedade escravista, as aes de liberdade apresentam

    histrias de vida dos escravos pautadas pela luta e pela esperana de dias melhores. Essa

  • 20

    fonte nos colocou em contato com as estratgias de escravos que no pouparam esforos

    para a obteno da alforria, com episdios de concesso de terra e dinheiro deixados

    escravos, e com a possibilidade de acmulo de peclio principalmente atravs do

    cultivo de roas nos dias de folga. Essas histrias nos permitiram aproximar das vises

    de liberdade forjadas por essas pessoas, uma liberdade que estava em grande parte

    ligada terra e famlia.

    Recorremos, ainda, a outras fontes, como os relatrios dos presidentes de

    provncia e as correspondncias entre o consulado suo, as autoridades provinciais e o

    governo central, que fornecem valiosas informaes sobre as atividades econmicas, a

    concesso e venda das terras, as dificuldades dos colonos nas primeiras dcadas de

    desenvolvimento da colnia e as discusses sobre a questo do elemento servil. As

    posturas da Cmara de Viosa, leis e resolues provinciais e imperiais nos informaram

    sobre a existncia e o funcionamento do poder pblico, como delegacias, escolas,

    cartrios e igrejas. Os registros eclesisticos de terra, os livros de notas do municpio de

    Mucuri e os testamentos, aliados aos inventrios post-mortem dos colonos, nos

    possibilitaram elaborar um mapa das propriedades, j que informam sobre a extenso

    dos lotes, modo de aquisio da terra, localizao espacial das propriedades, as

    benfeitorias existentes e culturas em desenvolvimento. documentao manuscrita se

    somam os registros de viajantes estrangeiros que passaram pela regio.

    Dividimos a dissertao em trs captulos. No primeiro, intitulado A Colnia

    Leopoldina: processo de formao e perfil da populao livre, apresentamos o perfil

    dos fundadores e dos primeiros colonos que se dirigiram regio de Vila Viosa a partir

    de 1818. Devido presso do tempo no foi possvel traar um perfil de toda a

    populao livre da colnia. Optamos, ento, por dar preferncia a dois grupos bastante

    distintos entre si: os administradores e feitores das fazendas, e os donos das maiores

    fortunas da Colnia Leopoldina. A seguir apresentamos alguns elementos que ajudam a

    explicar a transformao de uma colnia baseada no trabalho livre em um conjunto de

    fazendas baseadas no trabalho escravo. Consideramos em seguida o processo de

    aquisio da terra, que de forma geral foi adquirida por doao e apenas aps a Lei de

    Terras, de 1850, passou a ser comprada.

    Ainda no primeiro captulo tentamos acompanhar o desenvolvimento da cultura

    de caf na regio desde pelo menos a dcada de 1840, a data mais remota a que se refere

    nossas fontes, passando pelo auge da produtividade e desembocando no endividamento

  • 21

    dos colonos e na posterior alienao da terra. Para tanto foi necessrio um breve

    levantamento da estrutura produtiva e de escoamento na regio em que foi estabelecida

    a colnia, bem como das formas de obteno de crdito pelos colonos. Organizamos um

    mapa para facilitar a visualizao da organizao do espao da colnia baseado

    fielmente nas declaraes feitas pelos proprietrios no ano de 1857, de acordo com o

    registro das propriedades, como obrigava a Lei de Terras.

    No segundo captulo, Rotina de trabalho e relao senhor-escravo, discutimos

    a distribuio da propriedade escrava, a estrutura e organizao do trabalho, e os

    mecanismos de controle utilizados pelos senhores e administradores estrangeiros para

    manter a paz em suas senzalas. Atravs destes elementos foi possvel conhecer um

    pouco mais sobre a rotina de trabalho nas fazendas. Em seguida discutimos o

    desenvolvimento de uma economia de subsistncia dos escravos, que tinha lugar aos

    domingos e feriados, e que em alguns casos facilitava a compra da alforria. Ainda neste

    captulo analisamos os conflitos subjacentes s relaes de trabalho sob a escravido,

    atravs das histrias de vida e de resistncia, principalmente nas ltimas dcadas da

    escravido, quando as sucessivas leis destinadas abolio gradual fizeram sentir seus

    efeitos. Encerramos o captulo apresentando as histrias dos libertos bem sucedidos na

    carreira agrcola.

    No terceiro e ltimo captulo, Populao escrava e relaes de parentesco na

    Colnia Leopoldina, empreendemos a anlise demogrfica da populao escrava da

    colnia. Foram analisadas variveis como sexo, origem, idade, taxa de masculinidade e

    taxa de natalidade e a presena da famlia escrava nas fazendas. Analisamos os laos de

    parentesco e afetividade entre os cativos e a decorrente formao de ncleos familiares.

    Discutimos, finalmente, o grau de estmulo dos proprietrios a reproduo endgena da

    posse, seja por motivos relacionados dinmica do trfico ou, possivelmente,

    influenciados por valores religiosos.

    As histrias de escravido e liberdade que emergem das diversas fontes so

    apenas um fragmento da vida das pessoas que viveram na Colnia Leopoldina. Esses

    fragmentos encontram-se nos documentos depositados nos arquivos, mas tambm nos

    modos de falar, de cantar, de fiar a palha, de plantar, de remar, nas casas ao estilo

    europeu construdas em Nova Viosa, e nas senzalas das fazendas que sobreviveram ao

    tempo.

  • 22

    CAPITULO 1. A COLNIA LEOPOLDINA: PROCESSO DE

    FORMAO E PERFIL DA POPULAO LIVRE.

    A Colnia Leopoldina foi fundada no municpio de Vila Viosa, atual Nova

    Viosa, pertencente comarca de Caravelas, extremo sul da Bahia.15

    Aps longa

    viagem explorando a regio, o cnsul hamburgus Pedro Peycke e os naturalistas

    Freyreiss e Morhardt, naturais de Frankfurt, receberam do governo da provncia a

    doao de cinco sesmarias nas margens direita e esquerda do rio Perupe, a oito lguas

    de distncia de Villa Viosa, onde deram incio a uma colnia formada por suos,

    alemes e franceses, principalmente.16

    Mapa 1: extremo sul da Bahia.

    Fonte: Instituto Virtual de Turismo-RJ.

    15 Ver Aguiar, Descries prticas da Provncia da Bahia, p.291-293. 16

    Fala que recitou o presidente da provncia da Bahia, o desembargador Joo Jos de Moura

    Magalhes, 'abertura da Assemblia Legislativa da mesma provncia em 25 de maro de 1848. Bahia,

    Typ. de Joo Alves Portella, 1848, p.41.

  • 23

    Georg Wilhelm Freyreiss, considerado um dos fundadores e primeiro

    administrador da Colnia Leopoldina, era um naturalista suo, especializado em

    ornitologia, que conheceu a regio enquanto acompanhava o prncipe Maximiliano de

    Wied-Newwied em sua viagem de explorao pelo Rio de Janeiro e sul da Bahia entre

    1815 e 1817. Freyreiss parece ter idealizado a colnia junto com outros imigrantes e

    reunido financiadores que pudessem contribuir com capital suficiente para a fundao

    de uma colnia agrcola.

    Freyreiss, que parecia ter algum capital, uniu-se a outros empresrios mais

    abastados como o Baro Von Dem Busche, um agrimensor alemo que, ao que parece,

    era cunhado de Pedro Weyll, um holands que j tentava a agricultura no extremo sul

    baiano, na regio de Ilhus, desde pelo menos 1816, e que tambm se interessava pela

    colonizao.17

    Aos dois juntaram-se Abraham Langhans, Louis Langhans e David

    Pasche. Os fundadores da colnia aparecem reunidos em uma carta de 1824 localizada

    por Carlos Oberacker Jr, em que os entitulados fondateurs de La Colonie Leopoldina

    do noticias do empreendimento provavelmente ao ministro dos estrangeiros. Todos

    estes assinaram a carta, alm dos primeiros colonos que j haviam ali chegado em 1824:

    Pedro Henrique Beguin, P.H. Huguenin, Eugenio Borel, J. G. Phillip, Nicolaus Kross e

    Johannes Graban.18

    Alguns desses nomes nunca mais foram relacionados Colnia Leopoldina,

    talvez por a terem abandonado ou por terem morrido sem deixar herdeiros que

    quisessem assumir seus papis. Pedro Henrique Beguin, Philippe Huguenin e Eugenio

    Borel, no entanto, permaneceram na colnia ainda por muito tempo.

    A famlia Borel parece ter chegado regio antes mesmo da fundao da

    colnia, acompanhando Pedro Weyll e um tal Scheuermann, e ocupou as proximidades

    da fazenda Almada, em Ilhus. Em 1818, Henri Borel j havia fundado a fazenda

    Castelo Novo, onde plantava caf. No se sabe exatamente se o suo de Neuchantel

    17 Pedro Weyll recebeu a concesso de uma lgua quadrada de terras na regio de Ilhus onde fundou a fazenda Almada, um empreendimento que reuniu outros estrangeiros, alm de ndios e alguns escravos

    africanos. Em 1820 fundou a colnia de So Jorge dos Ilhus formada por 28 casais de alemes que se

    dedicariam a cultura do caf e do cacau. A colnia no obteve xito ao que parece devido a muitas mortes

    ocorridas no inicio da fundao e os colonos sobreviventes espalharam-se pela regio. O prprio Weyll

    retirou-se para Salvador onde deu seguimento a sua carreira de arquiteto. Pedro Weyll faleceu em

    Salvador em 1839. Ver Oberacker Jr., A colnia Leopoldina-Frankental, p.119. 18 Idem, p.118.

  • 24

    abandonara o empreendimento de Weyll em 1824, e foi juntar-se aos colonos da

    Leopoldina, ou se foi seu parente Eugene Borel quem ocupou terras na referida colnia.

    Segundo Waldir Freitas Oliveira, Henri Borel, junto com Weill, deixou as terras de

    Ilhus para se dirigir a capital da provncia, passando inclusive a trabalhar na firma de

    Meuron & Cia, de quem se tornaria scio.19

    De sua famlia identificamos o referido

    Eugene Borel, Gustave Borel, seu irmo, Carlos Luis Borel, Alexandre Borel, Luis

    Borel e Henrique Borel.20

    Em 1845, Eugenio Borel estava residindo na Sua e era scio

    do seu irmo, a esta data falecido, na firma Eugene & Gustavo Borel, e na plantao

    Castelo-Pombal.21

    Huguenin e Beguin dividiram a propriedade Pombal em duas

    fazendas: Pombal I e II, e seus herdeiros permaneceram na regio at a dcada de 1880.

    Outros dois estrangeiros so apontaados na literatura como fundadores da

    Colnia Leopoldina: o naturalista Carlos Guilherme Mohrardt e o cnsul de Hamburgo

    Pedro Peyck. Mohrardt era mdico em Viosa desde 1818, de onde enviava material

    cientfico para a Alemanha. Faleceu naquela regio em 1841, deixando uma plantao

    com alguns escravos, mas no temos indcios de que essa propriedade fosse situada na

    Colnia Leopoldina.

    Pedro Peick morava em Salvador e tinha uma propriedade na colnia

    administrada por seu sobrinho Ernesto Krull. Ao que parece contribuiu diplomtica e

    financeiramente com a fundao da colnia, mas nunca a administrou. Em ofcio

    enviado ao presidente da provncia, em 1832, o cnsul fala sobre sua propriedade no

    sul: Tendo de me retirar quanto antes para a minha Plantao Leopoldina cita acima de

    Villa Viosa na Comarca de Porto Seguro, onde a minha assistncia muito [necessria]

    se faz para o andamento e boa ordem de tal estabelecimento [...]22

    Restaram poucas informaes sobre os primeiros colonos da Leopoldina, o que

    dificulta o entendimento sobre a transformao da colnia em um conjunto de

    propriedades particulares cultivadas com escravos africanos. A morte prematura do

    19Waldir Freitas Oliveira, A saga dos suos no Brasil, 1557-1945, Santa Catarina, Editora Letradgua,

    2007, pp. 31-33. 20 Relao remetida ao Dr. Juiz de Direito pelo Dr. em medicina Carlos Backmamm Eike em 27 de janeiro de 1848, APEB, seo colonial, Colonos e colnias, Colnia Leopoldina, 1848, mao 4603-3. 21 Ofcio do Cnsul da Confederao sua ao Presidente da provncia em 12 de fevereiro de 1845,

    APEB, seo colonial, Presidncia da provncia, consulado da Sua, 1841-1887, mao 1210. 22A grafia das palavras nos documentos manuscritos e impressos citados no texto foi atualizada.

    Ofcio do Consulado Hamburgus ao Presidente da Provncia em 15 de outubro de 1832, APEB, seo

    colonial, Presidncia da provncia, consulado da Alemanha, Hamburgo e cidades Anseticas, 1828-1869,

    mao 1165.

  • 25

    idealizador e administrador da colnia, Georg Freyreiss, em 1825, parece ter marcado

    de alguma forma a transio.

    Schaeffer, que visitou a colnia em 1821, afirma que a encontrou se

    desenvolvendo bem, com alguma plantao de caf cultivada por quatro famlias. A

    carta dos fundadores da colnia afirma que em 1824 j havia 50 mil ps de caf

    plantados, que poderiam render 5.000 arrobas de caf.23

    Nesses documentos no h

    referncia presena de escravos durante este perodo, e os diversos presidentes da

    provncia da Bahia que se referiram transformao da colnia em um conjunto de

    fazendas, deixam claro que no comeo o brao escravo no era utilizado, j que a

    colnia deixaria de existir enquanto tal justamente se passasse a utiliz-los. O mesmo

    Schaeffer, que havia recebido uma sesmaria numa regio prxima a Leopoldina, em

    1821, onde fundou a colnia Frankental, no deixaria de comentar o uso de escravos na

    Leopoldina se l os tivesse visto. Em seu livro de 1824 ele enfatizou o prejuzo

    decorrente do uso de escravos nas colnias agrcolas para os projetos de colonizao no

    Brasil.24

    Tanto a Colnia Leopoldina como a Frankental foram regidas pelo decreto de 16

    de maro de 1820, que previa que os colonos receberiam cerca de 50 hectares de terra,

    casas, sementes, animais de criao e alimentos, com a obrigao de devolver, aps

    quatro anos, as sementes, animais e alimentos recebidos. Teriam direito caa,

    retirada da madeira de que precisassem, e o pasto seria coletivo. Em contrapartida, os

    colonos no poderiam deixar a colnia nos dois primeiros anos, e entregariam a metade

    dos produtos, no alimentcios, beneficiados para a exportao, como o caf, por

    exemplo. Os artfices ainda tinham a obrigao de iniciar ndios jovens em suas artes.

    25Provavelmente, o sistema de meao no agradava os colonos, quanto mais que no

    chagavam Bahia as levas de estrangeiros prometidas por Schaeffer para as colnias do

    sul da provncia. Aps a morte de Freyreiss, as tentativas de uma experincia apenas

    23 Segundo afirma Alice P. Canabrava, A grande lavoura, In Sergio Buarque de Holanda, Histria Geral da Civilizao Brasileira, So Paulo, Difiso Europia do Livro, 1971, p.93. 24 O livro de Schaeffer cujo ttulo original Dr. Ritter von Schaeffer, Brasilien als unabhngiges Reich in Historischer, merkantilistischer und politischer Beziehung. Altona, Hammerich, 1824, no se encontra

    traduzido do alemo. Tivemos acesso traduo de alguns trechos disponveis em Oberacker Jr., Jorge

    Antonio Von Schaeffer , p 3. 25 Oberacker Jr., A Colnia Leopoldina, p.128.

  • 26

    com colonos livres ficou mais difcil e os colonos passaram a comprar escravos para

    cultivar as lavouras de caf.

    SCHAEFFER: UM AGENTE DA COLONIZAO A SERVIO DO GOVERNO

    IMPERIAL

    Jorge Antonio Von Schaeffer faleceu em 1838, provavelmente na Europa, e teve

    seu inventrio aberto em Caravelas no ano de 1843. Naquela comarca era proprietrio

    da fazenda Jacarand, na Colnia Leopoldina, onde aps sua morte passou a morar a

    viva Guilhermina Florentina de Schaeffer, e sua nica filha, D. Theodora Romana

    Luiza de Schaeffer, que aparece numa relao de fazendeiros no ano de 1840 como

    produtora de caf, brasileira e solteira.

    Em 1848, D. Theodora Schaeffer estava casada com Joo Vicente Gonalves de

    Almeida, membro de uma das mais influentes famlias da regio, e em 1857 a fazenda

    Jacarand, herdada por ela, foi registrada no livro de registro eclesistico de terras de

    Vila Viosa em nome do seu marido, que informou se tratar de uma sesmaria de 170 por

    1500 braas (3.300m) de terra, doadas ao seu sogro, o Coronel Jorge Antonio von

    Schaeffer.

    Georg Anton von Schaeffer era natural da Francnia, atual Baviera. Como

    mdico e naturalista, se aproximou da princesa Leopoldina em 1818, quando a

    Companhia Russo-Americana da qual fazia parte empreendeu uma viagem de

    explorao da costa norte americana fazendo escala no Rio de Janeiro. Manifestando

    famlia real sua vontade de permanecer em terras tropicais para atenuar sua doena

    sofria de gota- recebeu de D. Joo VI uma sesmaria no sul da Bahia. Nas terras

    concedidas, Schaeffer estabeleceu no ano de 1821, uma colnia de alemes a que deu o

    nome de Frankental, vale dos francos, nas margens do rio Jacarand, prximo ao

    Perupe, acima do stio onde foi fundada a Colnia Leopoldina.

    Na dcada de 1820, Schaffer tornou-se um dos mais importantes agentes de

    colonizao a servio do imperador D. Pedro I. Aps uma viagem pelas provncias de

    So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, onde teve oportunidade de conhecer algumas

    colnias agrcolas, como a de Nova Friburgo. Ele tornou-se um dos mais entusiastas

    defensores da colonizao no Brasil. Ao que tudo indica, foi Schaeffer quem despertou

  • 27

    em Jos Bonifacio o interesse pela colonizao organizada pelo Estado, recomendando-

    lhe um sistema militar agrcola.26

    As instrues dadas por Jos Bonifcio a Schaeffer, em 21 de agosto de 1822,

    pouco antes da independncia do Brasil, encarregavam-no de promover uma imigrao

    espontnea de alemes para formar colnias rurais militares na divisa entre as

    provncias de Minas Gerais e Bahia, prximo a Caravelas. 27Os colonos artistas e

    lavradores receberiam terras, segundo o decreto de 16 de maio de 1820, que servia de

    base para a imigrao espontnea ou organizada por particulares, e que previa a

    concesso de 400 braas (880m) de terras a serem cultivadas, e mais terras para a

    fundao de uma vila. Os europeus ainda seriam naturalizados e gozariam dos mesmos

    privilgios dos cidados portugueses. Schaeffer tambm prometeu ajuda financeira nos

    primeiros meses enquanto a lavoura dos colonos no produzisse; e mais: sementes,

    gado, ferramentas para o trabalho, alm de padres, pastores e mdicos pagos pelo

    Estado, o que parece ter sido cumprido pelo menos em relao maioria dos imigrantes

    que foram encaminhados futura colnia de So Leopoldo, no Rio Grande do Sul.

    O governo oferecia esse tipo de subsdio e em troca exigia que os colonos

    prestassem servio militar em tempos de guerra e desenvolvessem a agricultura. Mas

    segundo Carlos Oberacker Jr., isso tudo no passava de um disfarce para a verdadeira

    inteno dos portugueses: recrutar militares europeus sob o disfarce de colonos para

    formar um dique militar no norte de Minas e no sul da Bahia, impedindo a passagem

    das tropas portuguesas para o sul. Segundo o mesmo autor, em 1823 a misso de

    Schaeffer foi abortada, segundo ordens de Jos Bonifcio, que acreditava no necessitar

    mais do engajamento de militares europeus nas tropas do imperador. 28

    No entanto, a misso de trazer soldados alemes foi retomada em 1824, quando

    cresceram as dificuldades na Cisplatina, e desta vez foi solicitado a Schaeffer engajar

    3.800 soldados suos ou outros europeus, para servir ao Imprio. No mesmo ano ele

    conseguiu reunir 2.200 homens entre mendigos, ladres, vagabundos e alcolatras da

    Europa.

    26Oberacker Jr., Jorge Antonio Von Schaeffer, p.8. 27 Ver Edgard de Cerqueira Falco, Obras cientificas, Polticas e Sociais de Jos Bonifcio de Andrada e

    Silva. Coligidas e reproduzidas por, So Paulo, Grupo de Trabalho Executivo das Homenagens ao

    Patriarca, 1965, tomo II, p.349 e ss., onde se encontram as Instrues a Schaeffer. 28Oberacker Jr., Jorge Antonio Von Schaeffer, p.8.

  • 28

    Diversas cartas enviadas por D. Pedro e por D. Leopoldina a Schaeffer e seu

    amigo Joo Martinho Flach, referem-se imigrao de soldados custa do Estado. Em

    carta de 10 de maio de 1826, enviada a Schaeffer pela Imperatriz, esta falava em alguns

    milhares de soldados que deveriam ser contratados a pedido do Imperador.

    Excelente Schaeffer So Cristvo 10 de maio de 1826.

    Suas ltimas duas cartas agradam-me cordialmente e espero,

    com verdadeira impacincia, os livros e o resto. A respeito de

    dinheiro j seguiu a ordem para o Gameiro a fim de que sejam

    pagos os soldados e colonos j contratados, mas o senhor no

    deve contratar nenhum mais, visto que o amadssimo

    supracitado (!!) diz que lhe falta dinheiro (parece-me que no

    no bolso dele).29

    O Imperador faz votos para que o senhor j tenha contratado

    alguns milhares, assim o outro no teria remdio seno pagar, e

    s com este estratagema poder a coisa andar direita e a batalha

    ser ganha contra o partido bem-intencionado do Brasil. Aqui

    no vai tudo como eu desejaria, mas queremos esperar a melhor

    soluo do Todo-Poderoso.

    Assegurando-lhe minha eterna amizade e benevolncia,

    continuo sua bem afeioada

    Leopoldina. 30

    Segundo Carlos Oberacker, ainda que naquele primeiro quartel do sculo XIX

    muitos colonos europeus tenham embarcado com suas famlias rumo ao Brasil, o Estado

    no estava verdadeiramente interessado na vinda de colonos, e estes s foram aceitos

    como forma de camuflar a vinda de soldados, o que era expressamente proibido na

    Alemanha. Ainda segundo este autor, a maior parte dos militares trazidos por Schaeffer

    foram tidos oficialmente por colonos, e alguns, aps anos de servio militar, realmente

    se tornaram lavradores e comerciantes em colnias estabelecidas nas provncias do sul e

    na Bahia. Esse foi o caso de alemo Carlos Metzker, estabelecido na Leopoldina desde

    pelo menos 1823. O Major Metzker era natural da cidade de Osnabruck, Westflia, e

    29 O amadissimo supracitado a quem se refere a imperatriz era, provavelmente, o ministro do Negcios Estrangeiros, Antonio Luiz Pereira da Cunha, visconde e depois marqus de Inhambupe, que havia

    anteriormente enviado carta a Schaeffer orientando que no trouxesse mais soldados ao Brasil. Na carta

    ainda h uma referncia a um tal Gameiro, trata-se de Manuel Gameiro Pessoa, um agente brasileiro

    enviado a Paris para recrutar soldados europeus. 30 Bettina Kann e Patricia Souza Lima( org), Cartas de uma imperatriz, traduo Tereza Maria Souza de

    Castro e Guilherme Jos de Freitas Teixeira, So Paulo, Estao Liberdade, 2006, p. 444.

  • 29

    veio para o Brasil por volta de 1820. Antes de chegar a Caravelas, viveu no Rio de

    Janeiro e era um dos soldados europeus que, aps cumprir seu tempo de servio,

    dedicou-se a carreira agrcola em uma colnia de conterrneos. Em 1840, seu nome

    aparece na relao de lavradores da Colnia Leopoldina como proprietrio de 27.000

    ps de caf e 18 escravos, e consta a seguinte observao: oficial reformado do

    Exrcito do Brasil. Carlos Metzker faleceu na sua fazenda Destacamento, em 1856, aos

    80 anos.31

    Os colonos que chegavam ao Rio de Janeiro e no se encaixavam na condio de

    soldados, ou seja, tinham pagado sua passagem, podiam se dirigir para qualquer regio

    onde quisessem obter terras. A maior parte dos trazidos por Schaeffer foram parar no

    Rio Grande do sul e na Bahia, ou se fixaram nos arredores do Rio de Janeiro. Na Bahia,

    a colnia de Frankental deve ter recebido a maior parte dos colonos trazidos pelo seu

    fundador. Consta que Schaeffer prometeu terras a alguns emigrantes alemes providos

    de recursos em sua colnia e em outras fundadas por conterrneos.32

    A Frankental,

    segundo Schaeffer, era cultivada sem o uso de escravos, apenas com a mo de obra dos

    prprios colonos e de alguns ndios na derrubada das matas. Ao que tudo indica

    Frankental foi a primeira experincia com colonos no Brasil baseada apenas no trabalho

    livre.

    Schaeffer deixava claro que era contra o uso do trabalho escravo pelos colonos.

    Acreditava que atravs da agricultura familiar era possvel desenvolver uma lavoura

    lucrativa, como a do caf, e no apenas gneros destinados subsistncia, como se

    queixavam os colonos de Nova Friburgo, que diziam s ter conseguido lucro quando

    lanaram mo de escravos. Em seu livro de 1824, escreveu

    preciso permitir que nas colnias agrcolas haja somente

    poucos ou nenhuns escravos negros, pois pelo trabalho escravo,

    perder-se-ia uma vantagem da emigrao alem, continuando

    uma economia que j existe no Brasil. E cujo resultado no

    constitui uma beno geral para a ptria braslica. O Brasil

    necessita do dinamismo norte-americano.33

    31 Relao dos lavradores da Colnia Leopoldina tanto nacionais como estrangeiros, 1840, APEB, seo

    colonial, Agricultura, mao 2329; ver ainda inventrio de Carlos Augusto Metzker, APEB, seo

    judiciria, Inventrios, doc. 04/1482/1951/18. 32 Oberacker Jr., Jorge Antonio Von Schaeffer, p.93. 33 Idem, p. 6.

  • 30

    Os documentos no deixam claro, mas, ao que parece a fazenda Jacarand que

    foi de Schaeffer, assim como a propriedade de Joo Martinho Flach, passaram a fazer

    parte do conjunto de fazendas denominado Colnia Leopoldina aps a extino da

    Colnia Frankental, em 1838, inclusive aderindo ao uso da mo de obra escrava na

    lavoura de caf. Em 1840, o nome de Theodora Schaeffer, filha do Coronel, estava entre

    os lavradores da Colnia Leopoldina, e constava ter em sua posse 37 escravos, 25

    adultos e 12 crias. Em 1848, a referida fazenda Jacarand contava com trs brancos -a

    viva, a filha e o genro de Schaeffer- e 30 escravos.

    A unio da antiga colnia Frankental Leopoldina marca o fim das duas

    colnias agrcolas e o comeo de um novo empreendimento formado por capitalistas

    estrangeiros desejosos de enriquecer nas terras brasileiras atravs da produo escravista

    do caf. Essa integrao parece marcar, assim, a insero do africano como principal

    mo de obra naquele empreendimento, demonstrando ao governo imperial que o Brasil

    no estava preparado para empreender qualquer projeto de substituio dos escravos por

    trabalhadores livres.

    DE COLONOS A SENHORES DE ESCRAVOS

    Em 1855, Joo Mauricio Vanderley, ento presidente da provncia da Bahia,

    afirmava que a Colnia Leopoldina

    Foi fundada em 1818, no municpio de Vila Viosa margem

    do rio Peruhype. Ignora-se o nmero de colonos que para ali tem

    entrado desde a poca de sua fundao at hoje; mas o seu

    estado relativamente florescente. Entretanto no pode ser

    considerada como uma colnia regular; por quanto na

    agricultura empregam-se quase exclusivamente braos escravos. 34

    A presena de escravos como fora de trabalho nos empreendimentos agrcolas

    fez com que o viajante Robert Av-Lallemant tambm encontrasse inconvenincia em

    34 Fala recitada na abertura da Assemblia Legislativa da Bahia pelo presidente da provncia, o doutor Joo Mauricio Wanderley, no 1.o de maro de 1855, Bahia, Typ. de A. Olavo da Frana Guerra e Comp.,

    1855,p.40.

  • 31

    denomin-la colnia. Assim ele descreve o processo de estruturao da Leopoldina em

    sua visita a regio em 1859:

    Deve fazer mais ou menos 40 anos que os primeiros colonos se

    fixaram no Peruipe. Foram sobretudo suos diligentes os

    primeiros colonos que, antes de todas as outras nacionalidades,

    iniciaram os trabalhos ali. Logo se lhes seguiram franceses e

    alemes que, com o auxilio de alguns escravos, foram pouco a

    pouco fundando uma serie de fazendas, que fizeram prosperar,

    at que muitos brasileiros mesmo, vieram reunir-se a eles. Disso

    resultou uma longa cadeia de cafezais em ambas as margens do

    rio, sob o nome de Leopoldina, que por isso no quero chamar

    uma colnia, uma vez que toda essa cultura feita por braos

    escravos.35

    Os vrios relatrios dos presidentes da provncia e documentos do consulado da

    Sua na Bahia discutem a questo da mo-de-obra empregada no cultivo do caf na

    Colnia Leopoldina. So quase exclusivamente braos escravos, africanos e crioulos em

    nmero muito superior ao de colonos estrangeiros. difcil, entretanto, precisar a exata

    populao escrava na colnia ao longo dos seus quase setenta anos de existncia.

    Segundo Carlos Oberacker Jr., colonos compraram escravos quando estes eram

    baratos, isto , antes da proibio do trfico em 1850. Ou seja, os africanos disposio

    dos colonos foram comprados antes do auge produtivo da colnia, que ocorreu

    exatamente na dcada de 1850. Nesse perodo a maioria dos colonos no comprava

    mais escravos, embora contasse com mo-de-obra escrava suficiente para uma produo

    em crescimento. Uma das sadas encontradas pelos escravistas da Leopoldina foi a

    procriao de escravos atravs do incentivo formao de famlias. O fazendeiro

    Augusto de Coffrane, por exemplo, possua 25 escravos adultos e 45 crias em 1840.

    Se, como afirma Oberacker Jr., o que assegurou o sucesso da Leopoldina era,

    no a extenso ou a qualidade da terra, mas a eficincia no seu aproveitamento, atravs

    de uma maior engenhosidade no plantio, na colheita e no beneficiamento do caf, era de

    se esperar um aumento no ritmo de trabalho e uma exigncia ainda maior da parte dos

    trabalhadores escravizados. Alm do aumento do nmero de escravos, os colonos

    apostavam na explorao mxima da fora de trabalho diminuindo o tempo de folga.

    35Av-Lallemant, Viagens pelas provncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, 1859, Belo

    Horizonte, Ed. Itatiaia, 1980, p.152.

  • 32

    Sobre a compra dos primeiros escravos, temos poucas informaes. Podemos

    apenas tecer algumas consideraes sobre o capital disposio dos colonos para a

    compra de escravos. Suspeitamos que o capital proveniente das primeiras safras

    pudessem assegurar a compra dos primeiros braos. Ainda que os colonos tivessem

    dvidas a sanar com os fundadores da colnia, eles conseguiram comprar as

    propriedades aps o desmembramento da sesmaria e da mesma forma poderiam adquirir

    escravos. Os estrangeiros que vieram posteriormente para a regio contaram com o

    apoio financeiro da firma Meuron & Cia, estabelecida em Salvador desde pelo menos

    1822.

    O suo Franois Meuron era dono de uma fbrica de rap instalada no antigo

    casaro chamado Solar do Unho, que lhe foi arrendado por Antonio Joaquim Pires de

    Carvalho e Albuquerque, Baro e depois Visconde da Torre de Garcia dvila, por

    volta de 1827. Segundo Waldir Freitas Oliveira a firma funcionou como um ponto de

    apoio aos compatriotas recm-chegados. Muitos colonos que seguiram para o sul da

    Bahia contaram com apoio financeiro da firma, que lhes garantia os custos dos seus

    empreendimentos, ao menos at a colheita das primeiras safras. 36 De fato, alguns

    colonos que se dirigiram para a Colnia Leopoldina declararam no registro de entrada

    de estrangeiros que se dirigiam ao Unho, freguesia da Vitria, na fbrica de rap.37

    Ainda segundo Freitas Oliveira, citando um manuscrito indito de Hermann

    Nesser sobre a colonizao sua no sul da Bahia, diversas firmas comerciais de

    estrangeiros interessados na exportao atuaram como consignatrios dos colonos

    estabelecidos na Bahia. Devido a essa parceria financeira os colonos da Leopoldina se

    livravam de execues judiciais quando no conseguiam sanar suas dvidas, mantendo

    as terras e os escravos dados como garantia.38

    Mais tarde os prprios colonos mais

    abastados desempenhavam esse papel, concedendo emprstimos vultosos a seus

    vizinhos. Alguns formaram firmas como Eugenio & Gustavo Borel, Maulaz,

    Jeanmonod & Giroud, Coussandier & Tavares, e ainda uma Sociedade Colonial

    36 Oliveira, A saga dos suos no Brasil, pp33-35. 37, APEB, seo colonial, Polcia, Livro de Registro de entrada de estrangeiros, 1842, mao 5657-1, p.26,

    31 verso, e 93. 38 Oliveira, A saga dos suos no Brasil, p. 53.

  • 33

    formada pelos maiores proprietrios da colnia destinada a conceder crdito aos

    fazendeiros.39

    Provavelmente, as firmas comerciais, tanto de estrangeiros como de brasileiros,

    dispensavam aos cafeicultores da Colnia Leopoldina o crdito necessrio para a

    compra de escravos e tudo o mais que precisavam para incrementar sua produo. Esse

    crdito tambm possibilitava a compra de terras nas margens do rio Perupe, j que

    desde a Lei de Terras ela passou a ser vendida e no mais doada a estrangeiros, ainda

    que a mesma lei fosse destinada, entre outras coisas, a promover a colonizao.

    TERRAS FRTEIS NAS MARGENS DO PERUPE

    A compra de terras foi fundamental para o aumento da colnia e o incremento da

    cafeicultura na regio. Ainda que a maioria das terras dos colonos tivesse sido doada

    antes da Lei de Terras que restringiu a doao de lotes a estrangeiros e dificultou a

    apropriao das terras devolutas nacionais por particulares, muitos dos estrangeiros

    chegados posteriormente tiveram que obter seu lote por compra. Compravam pequenos

    lotes a herdeiros dos primeiros colonos e a brasileiros residentes na rea, de preferncia

    com alguma plantao de caf, e os reunia formando propriedades com rea suficiente

    para uma produo de caf para exportao.

    Alguns conseguiram formar verdadeiras plantations, como destacou Bert

    Barickman. De acordo com este autor, a Colnia Leopoldina foi o nico caso baiano em

    que a lavoura cafeeira deu origem a grandes propriedades como as desenvolvidas no

    Sudeste.40

    Porm, ele ressalta que as reas produtoras eram modestas, e algumas no

    tinham escravo algum. As fontes apontam que o tamanho mdio dos lotes doados aos

    primeiros colonos era de 1500 braas de terra, ou 3.300 metros, mas as propriedades

    registradas segundo exigncia da mesma lei de Terras variavam muito de tamanho:

    algumas no passavam de 50 braas (110m) enquanto outras ainda conservavam o lote

    39 APEB, seo colonial, Agricultura, Livro de registro eclesistico de terras de Villa Viosa, 1857-1863,

    mao 4827. 40 Ver Bert J. Barickman, Um contraponto baiano, Acar, fumo, mandioca e escravido no Recncavo, 1780-1860, R.J.Civilizao Brasileira.2003, p.63; sobre a expanso da lavoura cafeeira no Sudeste ver

    principalmente, Emlia Viotti da Costa, Da senzala colnia, 3 ed. So Paulo, Fundao Editora da

    Unesp, 1998; Stanley Stein, Vassouras: um municpio brasileiro do caf, 1850-1900, Rio de Janeiro,

    Nova Fronteira, 1990.

  • 34

    original. O desmembramento das terras como forma de saldar as dvidas da propriedade

    parece ter sido muito comum como identificamos em alguns inventrios dos

    estrangeiros de segunda gerao.

    Beguim declarou em 1859 que obteve a fazenda Monte Christo por compra. No

    mesmo ano Joo Flach declarou: sou senhor de uma Sesmaria concedida ao defunto

    meu Pai pelo Governo Imperial, cuja Sesmaria tem mil e quinhentas braas de frente, e

    mil e quinhentas de fundos. 41 E ainda

    Declaro que possuo por ttulo de compra feita aos herdeiros do

    finado Henrique Borrel, hum terreno de cem braas de frente, e

    mil e quinhentas de fundos, extremando a Leste com Joo

    Martinho Flach, ao Oeste com Gustavo Vignet, ao Norte com as

    terras publicas devolutas, e ao Sul com o Rio Perupe. Joo

    Flach. Colnia Leopoldina, 11 de julho de 1859. 42

    Respondendo exigncia da lei n 601 de 1850, de que as pessoas que tivessem

    recebido sesmarias, ou terras concedidas pelo governo deveriam registr-las sob pena de

    perderem a posse, o subdelegado da Colnia Leopoldina informou:

    Passo a informar a VEx que nele (2 distrito de Vila Viosa)

    existem sesmarias concedidas pelo Governo a mais de trinta

    anos, assim como posses em poder de primeiros ocupantes, sem

    outro ttulo mais do que a sua ocupao, e em poder de segundos

    ocupantes tendo sido transferida a estes por ttulo de legitimas.

    Tambm existem terras concedidas pela Cmara Municipal

    ainda no poder dos primitivos concessionrios, considerados

    como simples posses e sujeitas a legitimao na forma da lei. 1

    de novembro de 1860.43

    Mas o subdelegado nada informava sobre a subdiviso dos lotes doados aos

    colonos. Muitos lavradores obtiveram mais terras atravs da compra de lotes a

    proprietrios que receberam terras concedidas pela Cmara como prova o registro das

    41 A medida da propriedade equivale a 3.300m, de largura e comprimento. 42APEB, seo colonial, Agricultura, mao 4827. Livro de registro eclesistico de terras de Villa Viosa,

    1857-1863. 43 Oficio do subdelegado de polcia da colnia Leopoldina ao presidente da provncia em 1 de novembro

    de 1860, APEB, seo colonial, Polcia, mao 3005.

  • 35

    terras feito em 1857. Uma dcada antes, o mdico Joo Conrado Lang informava que na

    colnia havia pequenas propriedades, chamadas por ele de stios que no seriam

    enumeradas numa relao encomendada sobre as propriedades agrcolas da colnia,

    pois mudavam de dono a todo momento.

    Alguns desses stios pertenciam a ndios e a africanos libertos. No conseguimos

    identificar os ndios proprietrios de terra na colnia, mas temos informaes sobre

    alguns africanos. Manoel de Alfredo e Honrio de Alfredo eram africanos libertos,

    senhores e possuidores de 50 braas (110m) de terra no lado sul do rio Perupe, as

    quais tinham comprado com plantaes de caf. Ceclia Flach, africana liberta, havia

    comprado na dcada de 1870, por 440 mil ris, 25 braas (55m) de terras no lado sul da

    colnia. O vendedor era Otvio Maurcio Joseph, herdeiro de um dos primeiros colonos

    da regio.

    A questo da terra e das riquezas propiciadas pela cultura do caf, bem cedo

    causaram desentendimentos entre colonos e autoridades administrativas brasileiras.

    Diversas peties enviadas ao cnsul da Sua demonstram a forte presso que havia

    sobre os fazendeiros por parte de delegados, juzes de paz, juzes de direito e

    proprietrios brasileiros que viam os estrangeiros como usurpadores de suas terras e

    riquezas. Os estrangeiros acusavam as autoridades nacionais de um cime

    antipatritico, enquanto os brasileiros os acusavam de tomar as matas mais prximas

    a Villa Viosa, privando aos brasileiros de as lavrarem, alm de introduzirem

    costumes no adequados a este pas. Infelizmente o informante no explicou quais

    seriam estes costumes inadequados, talvez se referisse a religio.44

    A disputa era por terras produtivas naquela regio. Aquelas terras, apesar de

    reputadas fertilssimas, tinham uma produtividade questionvel. Carlos Oberacker Jr.,

    baseado em Carlos Toelsner, afirma que a terra era boa, mas no da melhor qualidade.

    Em 1847 o juiz de direito da Colnia Leopoldina informava que aquela poca j havia

    falta de terra porque j aqui tem fazendas que no lhe existe mais aonde lavrar, e todas

    as matas da beira do rio j esto reduzidas a campos, que era este o terreno mais

    frtil.45 Exatamente neste perodo h registro de brasileiros que estavam deixando Vila

    44 Oficio Ao Sr. Dr. Caetano Vicente de Almeida Junior, em 04 de maro de 1847, APEB, seo colonial,

    Agricultura, Colnia Leopoldina,1845-1880, mao 4603-3. 45 Oficio Ao Sr. Dr. Caetano Vicente de Almeida Junior, em 04 de maro de 1847.APEB, seo colonial,

    Agricultura, Colnia Leopoldina,1845-1880, mao 4603-3.

  • 36

    Viosa em direo a colnia devido ao xito da cultura do caf, o que agravou os

    conflitos entre brasileiros e estrangeiros.

    Vila Viosa era por volta da dcada de 1850 uma vila quase abandonada

    segundo relatos de viajantes e autoridades da regio. Em relatrio da Cmara Municipal

    de Caravelas ao presidente da provncia, em 1857, se l que a vila no representa hoje

    seno runas, e o nmero de seus habitantes se acha muito limitado. O motivo seria a

    retirada em massa dos agricultores para a Colnia Leopoldina, pois os povos preferem

    sempre seu bem estar e suas comodidades a qualquer outra considerao. O relatrio

    ainda informava que houve uma tentativa fracassada por parte da Cmara de manter os

    moradores em Vila Viosa, atravs da aprovao de posturas impedindo que as

    embarcaes subissem Colnia, centralizando assim o comrcio naquela vila.

    A debandada dos agricultores de Vila Viosa refletia o bom momento

    econmico da colnia. verdade que a maioria dos agricultores migrantes no tinha

    grandes posses, mas junto aos pequenos proprietrios vieram representantes de algumas

    das maiores famlias da regio como Almeida Vellozo, Barbosa de Oliveira e Pereira de

    Sena. A presena de lavradores e comerciantes brasileiros sem dvida ajudou a

    incrementar a economia da colnia, mas tambm agravou os conflitos entre estes e os

    estrangeiros.

    A CULTURA DE CAF NA COLONIA

    Apesar de o Brasil j produzir caf desde o primeiro quartel do sculo XVIII,

    apenas a partir da dcada de 1810 ele passou a atuar efetivamente no comrcio

    internacional de caf. Aproveitando, ainda que tardiamente, as oportunidades oferecidas

    pela revoluo do Haiti na virada para o sculo XIX, o Brasil aumentou as cifras de

    1.500 toneladas anuais, entre 1812-16, para 6.100 toneladas entre 1817-1821.46

    Em

    1830 o caf passava a ser o principal produto brasileiro de exportao, desbancando o

    acar, e em 1850 correspondia a mais da metade das exportaes brasileiras.47

    46 Rafael de Bivar Marquese, A Ilustrao luso-brasileira e a circulao dos saberes escravistas caribenhos: a montagem da cafeicultura brasileira em perspectiva comparada, Hist. cienc. saude-.Manguinhos, vol.16, n.4,pp.869. 47 Barcikman, Um contraponto baiano , p.61.

  • 37

    A Bahia participava com modestas somas em relao s provncias do Rio de

    Janeiro e So Paulo. Segundo Barickman, mesmo no auge da sua produo, na dcada

    de 1850, a Bahia s fornecia cerca de 2% do caf exportado.48

    Por esta poca haviam se

    destacado trs centros cafeicultores na provncia da Bahia: o Recncavo baiano; a

    regio de Ilhus, Camamu e Valena; e a regio de Porto Seguro e Caravelas, no

    extremo sul.

    O destaque da regio de Caravelas se dava principalmente por causa da Colnia

    Leopoldina que se destacava como centro produtor e exportador de caf. Seus cafezais

    exportaram em 1839 o total de 36.277 arrobas de caf. Barickman informa que em 1848

    estes produtores j exportavam 65 mil arrobas. Tendo em vista que a exportao total

    da provncia naquele ano era prxima a 130 mil arrobas, Caravelas e a Colnia

    Leopoldina contribuam com quase a metade do valor exportado. Ainda assim, o mesmo

    autor afirma que esses valores sequer se aproximavam do montante de caf produzido

    no Sudeste, que chegava a 9.201.355 arrobas de caf exportado pelo porto do Rio de

    Janeiro naquela data.49

    No se sabe ao certo como os estrangeiros enveredaram pela cultura do caf nas

    margens do rio Perupe. A tradio local apresenta uma verso para o aparecimento da

    planta de caf na regio desde 1787, antes da chegada dos colonos em Viosa. Segundo

    relato do Capito Manoel da Silva Chaves Snior, um agricultor morador em Vila

    Viosa, o caf chegou regio pelas mos dos missionrios Barbadinhos italianos, que

    vieram do sul, e por terra a fim de pregarem a Misso nesta Comarca. Estes

    missionrios trouxeram um escravo que torrava o caf e oferecia a bebida aos

    moradores da vila. O tio do capito tomou uns gros e os plantou no seu sitio, de onde

    vendia arbustos da planta aos agricultores de mandioca, espalhando assim a nova

    cultura que perfeitamente se adaptou ao solo da regio.50

    48Idem, p.63. 49 Para dados de exportao de caf na regio de Caravellas e na provncia da Bahia, ver Barickman, Um contraponto baiano, p. 62-63, 153; e para dados sobre as exportaes de caf das provncias do sudeste

    na primeira metade do sculo XIX, ver Sebastio Ferreira Soares, Notas estatsticas sobre a produo

    agrcola e carestia dos gneros alimentcios no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Typografia Imp. E

    Const. De J. Villeneuve e Comp., 1860, p. 209. 50 Joo Antonio de Sampaio Vianna, Breve noticia da primeira planta de caf que houve na comarca de Caravelas ao sul da provncia da Bahia escripta segundo dados authenticos, RIHGB, n05(1843), p.77-79.

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    Pelo que se sabe, as terras ao longo do rio Perupe eram propcias ao

    crescimento da planta. O caf crescia com facilidade e dava bons frutos. A escolha dos

    estrangeiros que se fixaram na Colnia Leopoldina pela cultura do caf sem dvida

    estava ligada as oportunidades que o caf poderia oferecer no mercado internacional,

    principalmente aps a Revoluo do Haiti, principal produtor. A doao de terras pelo

    governo imperial e provincial, as estreitas relaes com comerciantes de Salvador e da

    Corte, com membros do governo imperial, como a prpria imperatriz Leopoldina,

    somados a facilidade de escoamento da produo, viabilizavam o negcio.

    Os produtores escoavam a produo pelo porto de Caravelas. Para chegar a

    Caravelas, o caf era transportado em lombo de burro at o pequeno porto de Viosa, e

    de l seguia em canoas at a cidade. Da era exportado para Salvador e Rio de Janeiro.

    Segundo ofcio de diversos proprietrios de Viosa ao presidente da provncia, em

    1857:

    A via de transporte para o comercio por mar, sendo o porto de

    embarque e desembarque a cidade de Caravellas, e os veculos,

    os vapores das companhias Pedroso e Mucury, e embarcao de

    vela de grande e pequeno porte, convindo notar que as diferentes

    produes, para que cheguem ao porto de embarque e sejo

    recebidos nestes veculos so trazidos de diversas partes do

    municpio em animais at os portos de beira rio, e da em

    canoas. 51

    Todos os inventrios consultados apresentam pelo menos uma canoa grande para

    este servio. Apesar de muitas vias fluviais e martimas disposio dos produtores, o

    transporte era dificultado pela pequena profundidade do rio Perupe e a formao de

    bancos de areia que provocava o encalhe de muitos barcos. No havia pontes ou canais

    para reduzir as distncias, assim como quase no havia estrada por terra.52

    Alm das

    dificuldades e do alto custo, esse transporte de trecho em trecho facilitava a ao do

    roubo da carga.

    51 Oficio da Cmara Municipal de Caravellas ao Dignssimo Presidente da Provncia, em 15 de junho de 1857. APEB, seo Colonial, Presidncia da provncia, 1852-1888, mao 1296. 52 O problema do transporte para escoar a produo da colnia preocupou plantadores, comerciantes e autoridades provinciais durante todo o tempo de sua existncia. Autoridades pediam a construo de

    pontes, estradas e melhoria das empresas de navegao. Na dcada de 1880 houve uma presso da

    Cmara de Caravelas para que a estrada de ferro Bahia-Minas tivesse uma estao na Colnia Leopoldina

    para facilitar o escoamento da produo, oferecendo outra alternativa de transporte alm do mar. Em 1897