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_______________________________________________________________ Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 1 Com o cérebro entre os trópicos ------------------------------- Abraão Carvalho ------------------------------ Cariacica, Espírito Santo, Brasil, janeiro de 2008

COM O CÉREBRO ENTRE OS TRÓPICOS. Ensaios_julho2008

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1. Filosofia moderna. 2. Filosofia brasileira. 3.Filosofia – ensaios. Nogueira, Abraão Carvalho.

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Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 1

Com o cérebro entre os trópicos

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Abraão Carvalho ------------------------------

Cariacica, Espírito Santo, Brasil, janeiro de 2008

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2008, Abraão Carvalho Nogueira e-mail: [email protected] Revisão: O Autor Diagramação: O Autor 1. Filosofia moderna. 2. Filosofia brasileira. 3.

Filosofia – ensaios. Nogueira, Abraão Carvalho.

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Índice

Prefácio...............................................................................8 A cidade na ótica de Chico Science...............................13 Eletri-cidade: entre antenas eternas e pedras evoluídas...........................................13 Vigilância e continuidade das desigualdades sociais.............................................18 Mentira e lucro: entre ruas e uma sociabilidade descontínua...................................28 A cidade não pára: e os urubus continuam tendo a sua carniça....................................40 Entre o caos e a criação: do encontro da vida com a própria vida..........................................57

Orquestra Manguefônica.................................................63 Mutantes, Picassos Falsos e Nação Zumbi: fios avessos de um mesmo tecido..................................68 Tecnologia & música pop: o novo em experimento...72 Experiência brasileira: entre Tom Zé, Sérgio Buarque e Aracruz Celulose................................77 O homem que comia diamantes: a fantasmagoria do arcaico sobre o moderno...............87 Neoliberalismo e a negação do agir ético......................92 Do conluio entre política, dissimulação e violência...104 Da relação entre o combate e o fogo no pensamento de Heráclito..........................................111 A filosofia tem que servir para algo?............................122 Filosofia, a encruzilhada do conhecer: entre a criação e a técnica...............................................131 Ciência, natureza e sociedade........................................141 Trabalho e manipulação do corpo e das vontades.....155

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Educação e sociedade: entre a técnica e a ojeriza ao pensar............................................168 Linguagem e sociabilidade...........................................168 Indivíduo e sociedade...................................................175 Educação, ciência e técnica..........................................177 Otimistas em relação à Educação?..............................182

A educação no ES: entre a lascívia da mediocridade e o fascínio pelo estrangeiro...................184 Entre Hegel, Marx, Bakunin e o filme O preço da ambição............................................193 Conhecimento e vida: o em-si e o para um outro..........................................................193 Consciência-de-si: entre o ser para si e o ser para um outro, o risco............................................200 Da relação trabalho e desejo: entre Hegel e Marx........................................................206 Da consciência infeliz...................................................212 Da relação entre as consciências-de-si: entre o reconhecimento e a sua negação...................213 Do reconhecimento como ordenação hierárquica, reciprocidade ou ressentimento: entre Hegel,

Bakunin e o filme O preço da ambição.....................216 Referências bibliográficas, fonográficas e cinematográficas................................................................224 Sobre o autor.....................................................................233

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AGRADECIMENTOS:

Aos amig@s, parceir@s de pensamento e ouvidos, Lee “Scratch” Perry, Hudson Ribeiro, Sandro Juliati (Mukeka di

Rato), Valeria Landeros (artista plástica – Temuco/Chile), Charlene Coutinho, Zumba (Negritude Ativa), Fela Kuti (em memória), Bianca Trindade, Manu e Rômulo, Fábio Araújo,

Thiago C., André Demarchi, Bernardo Oliveira, Cláudia Murta, Bajonas Brito (Departamento de Filosofia - UFES), Chico Science (em memória) & Nação Zumbi, Sabrina Silva, Fabíola Melca, Adilson, Desereé (priminha), Paulo Henrique (Grupo de Teatro Motim – Cariacica, ES), René Malacarne,

Charles, Marilda Maracci, André Ely, familiares.

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“Um murro na cabeça é o que você ganha por perguntar

e um murro na cabeça é o que você ganha por não perguntar”

Morrissey

“Os alquimistas estão chegando Estão chegando os alquimistas Eles são discretos e silenciosos Moram bem longe dos homens

Escolhem com carinho, a hora e o tempo do seu precioso trabalho São pacientes, assíduos e perseverantes

Executam segundo as regras herméticas Desde da trituração, à fixação, à destilação e à coagulação

(...) Todos bem iluminados

Evitam qualquer relação com pessoas De temperamento sórdido De temperamento sórdido”

Jorge Ben

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Prefácio

A ordenação que se segue no percurso da reunião dos textos, ensaios e artigos encontrados neste volume Com o cérebro entre os trópicos, que foi tomando alguma forma no raio de 2002 e janeiro de 2008, fora tecida não sem o diálogo com a tradição filosófica do pensamento moderno ocidental como encontramos em um dos artigos reunidos aqui de nome Entre Hegel, Marx, Bakunin e o filme O preço da ambição, em que as noções de reconhecimento e trabalho tratadas por Hegel e Marx, na Fenomenologia do Espírito e nos Manuscritos Econômico-filosóficos são os aspectos a serem perseguidos, fixando-se no problema da distinção da noção de reconhecimento em Hegel, Bakunin e no filme O preço da ambição de 1994, com Kevin Spacey (Beleza Americana e A vida de David Gale).

Neste movimento de diálogo com a tradição filosófica do pensamento moderno ocidental, não é de nosso alvitre lançar ao esquecimento a perspectiva de que, ao fixarmos olhar em nossa experiência histórica, o que não nos afeta é justo a distância em relação a certo fio de pensamento que encontra em nomes como Tom Zé, Sérgio Buarque e Manguebeat, referências de uma mesma tradição de pensamento no Brasil. A saber, Com o cérebro entre os trópicos inscreve-se justo do lado oposto a algo como o emblema que aparece na obra de Rubem Fonseca, Áureo de Negromonte, o encantado com a nobreza do estrangeiro para o qual o pensar é mero adorno, signo

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de ostentação espalhafatosa: “meus canutilhos, meus paetês, meus estresses... tudo importado, do melhor...”

Neste sentido, Com o cérebro entre os trópicos se move não sem desvios, desde uma dinâmica atenta ao percurso dos vôos afrociberdélicos funkeados, sampleados e sambeados da Nação Zumbi e Orquestra Manguefônica, algo estranho ao fascínio de Áureo de Negromonte com o estrangeiro. Traço este deveras fixado nas vísceras de nossa experiência histórica e situado - incongruentemente, enquanto fascínio que embota o pensar - entre as zonas tórridas do planeta demarcadas pelos paralelos de Câncer e Capricórnio.

No artigo A cidade na ótica de Chico Science, percorremos uma interpretação do texto A cidade da canção de Chico Science & Nação Zumbi encontrada no álbum Da lama ao caos de 1994. Através do samba groove guitarrado swingado A cidade, acabamos por percorrer problemas que atravessam e persistem em nosso raio histórico, tais como o vínculo entre vigilância oficial e continuidade dos abismos sociais, sobretudo no que diz respeito à fotografia e sua relação com a identificação oficial do corpo e do indivíduo nos grandes centros e subúrbios urbanos, bem como, nos lançamos ao problema de pensarmos no sentido e horizonte, por nossas terras, em que se fixam as mediações cambiantes para a continuidade e prevalência de nossas fantasmagóricas bizarrices e incongruências sociais, sobretudo no que se refere à dimensão econômica, social e cultural.

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No breve artigo de nome Mutantes, Picassos Falsos e Nação Zumbi: fios avessos de um mesmo tecido, percorremos indícios que demarcam o trabalho dos pernambucanos como antenado àquela tradição da música pop no Brasil que vai desde Os Mutantes nas décadas de 60 e 70, passando pelos Picassos Falsos na década de 80, até a década de 90 do século passado com o Manguebeat, procurando situar algumas de suas referências sonoras, sobretudo no que diz respeito às articulações entre influências globais como o rock, o funk, o dub e o soul, com certas referências territoriais, regionais ou nacionais como o samba e o repente. Ainda neste papo sobre som, apresentamos o artigo Tecnologia & música pop: o novo em experimento, em que percorremos algumas das possibilidades de relação entre as transformações tecnológicas e a música pop.

Em Experiência brasileira: entre Tom Zé, Sérgio Buarque e Aracruz Celulose, há um interesse em demarcar o sentido de “moderno”, “época moderna”, na leitura da experiência histórica brasileira. Nesta direção, nos fixamos no problema do sentido de falarmos que no Brasil estamos vivendo em um período moderno, tal como nos referimos à experiência histórica do hemisfério norte. Todavia, nos atentamos ao vínculo deste problema em relação ao horizonte de uso da terra no Brasil como aquele alvo do prometéico e feroz discurso de desenvolvimento e progresso.

O homem que comia diamantes: a fantasmagoria do arcaico sobre o moderno, move-se por entre as intersecções e mediações da literatura e do ensaísmo enquanto forma do pensar, que no Brasil se posicionaram radical

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e ironicamente em relação àquele outro modo de pensamento, que em sua forma por nossas terras, não passa de tema para caricatura, objeto de escárnio senão como aquele saber espalhafatoso, ostentoso, como signo de distinção cultural fundado que é no encobrimento da criação como culpa, que o lança para compensar, ao mero e raso fascínio com o estrangeiro em nossa experiência histórica.

O artigo Filosofia, a encruzilhada do conhecer, entre a criação e a técnica realizou-se a partir de leituras do livro Conhecer é criar de Gilvan Fogel. Tais leituras ecoaram quando da oportunidade do contato com um breve artigo de Heidegger de nome Que é isto - a filosofia? O artigo que ora apresentamos trata de temas como a distinção da filosofia em relação à ciência, bem como, caminha em direção de demarcar como os afetos, o humor, dito de outro modo, a disposição, abrem o ser humano para o ser das coisas desta ou daquela maneira, algo que caminha em outra direção em relação à perspectiva da ciência, que demarca o ser das coisas desde a quantificação e repetibilidade dos fenômenos na natureza.

Em Ciência, natureza e sociedade nos lançamos à perspectiva de relacionar os temas propostos a partir de passagens do ensaio Racionalidade Tecnológica e Lógica da Dominação, de Herbert Marcuse, encontrado no livro Ideologia da Sociedade Industrial, com observações encontradas no artigo Que é isto - a filosofia? As relações entre natureza, sociedade e ciência, para não se deterem em abstrações sem algum rumo, caminham no sentido de aproximar algumas das posições de

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Marcuse em relação ao emprego da ciência e da técnica no mundo moderno, com a questão dos alimentos transgênicos, os organismos geneticamente modificados, e temas como a divisão técnica do trabalho, de certo problemas cristalizados em nosso raio histórico aos quais não escolhemos não ser afetados.

Com o cérebro entre os trópicos, além dos textos brevemente comentados compõe-se ainda dos artigos: Orquestra Manguefônica, Neoliberalismo e a negação do agir ético; Do conluio entre política, dissimulação e violência; Da relação entre o combate e o fogo no pensamento de Heráclito; Trabalho e manipulação do corpo e das vontades; Educação e sociedade: entre a técnica e a ojeriza ao pensar; A educação no ES: entre a lascívia da mediocridade e o fascínio pelo estrangeiro.

Nesta reunião de artigos, textos, ensaios, nossa perspectiva é fisgada pelo movimento de ser afetado por nossa experiência histórica não sob a ótica do fascínio ou da pena de pavão, mas de outro modo, que atende pela alcunha do sonoro Com o cérebro não tão somente ou meramente entre os trópicos, mas por mediação da literatura ao manguebeat, do ensaísmo à filosofia.

Abraão Carvalho, janeiro de 2008.

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A cidade na ótica de Chico Science

“Levantei toda a vista olhei reto na vida e acabei no sentido

é que os olhos não esquecem quando a vida aparece

com uma saudade danada” Pixel 3000, Fred Zero Quatro

Eletri-cidade: entre antenas eternas e pedras evoluídas

Tirando energia aonde a vida encontra a sua

própria negação, - através da miséria promovida por mediação da exploração do corpo e da terra, levada ao extremo por nossos ladrões de gravatas floridas e perfumadas -, o pernambucano Chico Science canta tomado por extraordinário humor e cólera a condição histórica da cidade brasileira e contemporânea, não sem um pulso poético. Isso, como nossos aguçados ouvidos não podem privar-se, é acompanhado por tambores eletrificados referenciados na cultura popular e tradicional brasileira, o velho e vigoroso maracatu, colocado lado a lado da virtuosa, funkeada e pesada guitarra de Lúcio Maia, não sem a utilização de recursos tecnológicos que a ciência abriu para o homem em relação à música pop. Velho e novo se encontram aí dando nova vida para a arte brasileira, um legado que as futuras gerações não pensarão ter sido criado em um passado distante, tamanha é a

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posição de vanguarda que a Nação hoje ocupa no cenário e na história da música pop.

Deste modo a música pop, não só brasileira, pôde ser demarcada historicamente nos expressemos assim, em antes de Da lama ao caos e depois de Da lama ao caos (!!!) álbum radicalmente inovador e enraizado na dimensão do que nomeamos história da música pop. E é a partir de Da lama ao caos (1994) no qual encontramos a canção A cidade, que pretendemos nos encontrar como fio a ser perseguido em nossa interpretação.

Com seu primeiro registro fonográfico (Chaos, Sony Music) a Nação Zumbi de Chico Science gestada e nascida nos subúrbios de Peixinhos, Recife-PE, passou desde então a ser reconhecida em vários pólos do mundo. No passado, meninos que caçavam caranguejos nos mangues da capital pernambucana, hoje, mesmo depois da morte acidental de Chico, artistas reconhecidos em circuitos e palcos dos trópicos e da Europa, por exemplo. Este passeio do cidadão do mundo, ao contrário do que é solapado no fugaz e homérico mainstream, não fez com que se distanciassem de suas referências territoriais e culturais, retomando as apresentações esporádicas nas ruas e becos dos morros da caótica Recife, Alto José do Pinho e tal, para um público de descamisados e famintos por cultura, bem como, no percurso de sua obra, quatro álbuns sem Chico Science além de outros projetos como Orquestra Manguefônica, Los Sebosos Postizos e Maquinado, por exemplo, maturando sua sonoridade que ecoa das antenas eternas, funk, soul,

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samba, dub, hip hop, Fela Kuti, Jorge Ben, maracatu, samples de Can (Vitamin C/ Côco dub (afrociberdelia); In: Da lama ao caos - 1994), Stooges (Loose / Manguetown; In: Afrociberdelia – 1996) e Kraftwerk (The Man Machine – 1978/Arrancando as tripas (Rádio S.AMB.A); e Antenna - Radioactivity - 1975)/ Antene-se; In: Da lama ao caos). É neste sentido que demarca o próprio Jorge Du Peixe, sintonizando as freqüências captadas de um lugar a outro do globo pela “antena parabólica enfiada na lama” 1 , “Imagem símbolo” do Manguebeat, ondas sonoras que vão:

“Dos tambores, às batidas dos maracatus. Do baque solto da Zona da Mata, onde os caboclos de lança festejam sua hora em movimentos coreoagrafando sua batalha. Do baque virado das nações eletrizando a calunga que sobe e desce no espaço. E das antenas que no subúrbio da Manguetown captavam ecos de outros batuques. Das rufadas nas caixas praieiras dos cirandeiros contando as batidas do mar. E na vontade elétrica das palavras no ritmo e poesia dos repentistas. Nada errado em encontrar Grand Master Flash com Caju e Castanha. Kraftwerk com côco de roda. Batidas virtuais que nos levam ao côco, maracatu, ciranda, soul, calypso, makossa, funk e samba.” 2

Retomemos a freqüência: em alguns dos traços sobretudo no aspecto sonoro, Da lama ao caos demarca

1 Caranguejos com cérebro – Mangue: a cena. In: encarte do álbum

Da lama ao caos. Chico Science e Nação Zumbi. 1994. 2 Jorge Du Peixe. In: encarte, Chico Science & Nação Zumbi –

1998. Sony Music Entertainment (Brasil).

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sua indelével importância na história da música pop no Brasil dando continuidade de maneira singular e visceral, do mesmo modo que se distancia em sua proposta de criação, àquela tradição ou fio de continuidade que vai desde Os Mutantes, passando pelos anos oitenta com os Picassos Falsos, ou outros um pouco mais distantes ainda do limbo do mainstream como o samba-noise-rock-decrépito do Vzyadoq Moe ou o tecnosamba experimental do Felline de Thomas Pappon e Cadão Volpato, sendo este último memorado na canção Criança de Domingo no álbum Afrociberdelia de Chico Science & Nação Zumbi, parceria de Cadão Volpato e Ricardo Salvagni para o projeto Funziona Senza Vapore, que contava ainda com a participação da cantora e compositora Stela Campos3. E é justo neste rastro do movimento demarcado no álbum Da lama ao caos, no qual encontramos a canção A cidade, que a Nação Zumbi invade nossas caixas de som sem aviso prévio.

Deste modo, acompanhado pela guitarra funkeada de Lúcio Maia, ouvimos ao começo da canção A cidade: “O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas”4, pedras essas que através da história, com

3 “O Funziona Senza Vapore não durou o ano inteiro de 1992. Três de seus integrantes vieram do Felline, grupo paulistano: Cadão Volpato, Jair Marcos e Ricardo Salvagni, que se uniram a Stela Campos, mas o disco teve sua master perdida. Dele, Chico Science gravou Criança de Domingo no álbum Afrociberdelia.” Revista Zero n° 5, p. 2. Os originais foram encontrados, o que gerou um CD lançado recentemente.

4 A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos. Sony Music. 1994.

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as transformações feitas pelas mãos dos homens, se transformaram em tijolos e blocos, com os quais a força de pedreiros que nem sequer sabemos quem são, vivos e mortos devido a uma queda de algum andaime, construíram por mediação de conluio entre calor e suor, as nossas prisões, escolas, cinemas, shoppings centers, igrejas, casebres, edifícios que querem alcançar o céu, ministérios públicos, etc. É neste sentido que “as pedras evoluídas” que se mostram e se tornam mais visíveis à luz do sol, “Cresceram com a força de pedreiros suicidas”, que nem mesmo sabemos quem foram e muito menos onde estão enterrados e putrefatos.

Ora, mas qual o sentido de Chico Science se referir aos pedreiros que construíram nossas “pedras evoluídas” como sendo eles “suicidas”? Suicidas na medida em que o trabalho braçal ao qual estão sujeitos os pedreiros não se constitui como um caminho para a realização da vida, tanto nos aspectos econômicos quanto físicos, pelo contrário, é através do trabalho, efetivado de maneira desumana, predatória e exploradora, que o corpo a ele sujeito encontra a sua vida sendo ocupada no decorrer do tempo pela morte. Ao passo e na medida em que é por mediação de seu trabalho, que a fama, a glória e a riqueza de uma minoria se dissemina. Anônimos e sem história são estes trabalhadores para nós, que construíram com um suor quase que gratuito, seguido de um esgotamento extremo do corpo, as “pedras evoluídas” que ao nascer do sol aparecem em nosso horizonte quando atravessamos a urbe.

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Vigilância e continuidade das desigualdades sociais

“ Mil clarões estão por vir, mil promessas vi partir, mil clarões estão por vir,

será um deus, o sol... quem o vê subir verá o dia chover no sol,

breve para ti será talvez o sol” Hojerizah

Demarcar historicamente o sentido de vigilância significa por extensão situá-la no turbilhão de transformações pelas quais a cidade e a experiência histórica no raio do que nomeamos mundo moderno, atravessou naquele movimento de encontro e ao encontro daqueles outros valores fixados pela tradição, e pela limitação das transformações técnicas no que se refere ao precisar o sentido de vigilância em uma cidade que cresce vertiginosamente sua população e em que as delimitações geográficas pormenorizadas abstraem-se deste ou daquele fortuito ou traçado percurso pela urbe.

A vigilância demarcada no eclodir da frase “Cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ Não importa se são ruins, nem importa se são boas” na canção A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos (1994), trata-se sobretudo da vigilância oficial, aquela que encontra na identificação das individualidades através de traços corporais, seja com a marca do ferro em brasa no corpo como há cerca de dois séculos atrás, ou com a fotografia e com a câmera

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no mundo moderno, a sua eficácia e continuidade. Esta vigilância, sobretudo não a devemos tomá-la

como em si, mas a serviço de forças sociais e econômicas que sobrepõem-se à norma de uso e instrumentalização desta vigilância oficial. Como nos indica Tom Gunning em seu ensaio O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema, em que procura situar alguns dos contornos acerca da relação entre vigilância e tecnologia, a fotografia, historicamente, no que se refere à identificação das individualidades à margem dos hábitos dominantes, “tornou-se codificada no século XIX como um ritual de poder no qual o corpo do transviado (incluindo, além dos criminosos, populações problemáticas, como os inválidos, os loucos e os politicamente suspeitos) estava sujeito a um aparelho de olhar fixo e registrador possuído pela autoridade.” 5 Neste sentido, enquanto traço da experiência urbana contemporânea, a vigilância, com seu aperfeiçoamento por mediação da fotografia e dela mesma em movimento, que diz respeito à técnica audiovisual, indica-nos antes um acontecimento histórico, uma das mediações da sociabilidade urbana contemporânea.

De todo, para darmos melhores contornos à expressão “cavaleiros” encontrada na canção de Chico Science e Nação Zumbi, na cidade contemporânea também circulam aqueles que, para assegurar que as

5 Tom Gunning; O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema; Parte: Como fixar uma imagem de culpa: o corpo pego no ato; p. 63. In: Christian Péline, L’Image accusatrice, Paris: Cahiers de la Photographie, 1985, p. 10.

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desigualdades sociais permaneçam, utilizam-se da vigilância. Vigilância sob qualquer suspeita de ato que venha a colocar em risco a fartura e o brilho ocioso mediocremente ocupado de nossas elites. Deste modo, a observação silenciosa coadunada com o aperfeiçoamento de certas técnicas de identificação visual, como a fotografia e a técnica audiovisual no século XIX, como nos indica Tom Gunning, é levada ao extremo no olhar que pretende vigiar, para se necessário, punir, no interesse de preservar a situação histórica da cidade atravessada por abismos sociais, direcionando fulminantemente seu olhar ao “corpo do transviado”.

Neste sentido, este olhar vigilante acompanha sorrateira ou escancaradamente a prática de nossa vigilância oficial e paramilitar, a saber, a polícia 6 e os

6 O Relatório de Execuções Sumárias no Brasil (1997-2003), elaborado pelo Centro de Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros (NEN), aponta que “episódios internacionalmente conhecidos como Eldorado dos Carajás, Candelária, Carandiru, Corumbiara e Favela Naval são expressões máximas de uma sistemática de extermínio e opressão perpetrada diariamente, direta ou indiretamente, por agentes do Estado em praticamente todo o território nacional.” Violência Policial – Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado, Ignacio Cano – Professor da UERJ e membro do Laboratório da Análise da Violência – p. 7, In: Relatório de Execuções sumárias no Brasil.

No Acre, “A partir de 1987, a Secretaria de Segurança Pública criou um ‘esquadrão de elite’, leia-se ‘grupo policial de extermínio’. Em 1989, a imprensa acreana contabilizava 150 vítimas dos grupos de extermínio e, neste mesmo ano, surgem as disputas entre os grupos da Polícia Militar e os da Polícia Civil. À frente deles, delegados e coronéis. Tamanha é a guerra que, entre as vítimas, estão militares de alta patente e delegados da Polícia Civil.

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grupos de extermínio. Em relação à prática da polícia em nossa experiência histórica contemporânea, de acordo com o Relatório de Execuções Sumárias no Brasil (1997-2003), elaborado pelo Centro de Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros (NEN), inscreve a sua atuação tendo como principal mediação o uso excessivo da força, pois segundo o relatório, “o número de pessoas mortas pela polícia no Brasil é muito elevado e uma parte destas vítimas corresponde a execuções sumárias.” 7 E no que diz respeito à formação dos grupos de extermínio, sua articulação enquanto força social e militar paralela e arbitrária, também de acordo com o relatório,

“nascem como estratégia de comerciantes, empresários e outros segmentos da sociedade para abolir grupos sociais ou políticos indesejados. Faz parte de uma cultura arraigada à sociedade brasileira, que tem se utilizado de grupos de

Rapidamente, o poder econômico do tráfico se apodera desses grupos e se beneficia da ‘mão-de-obra’ formada e armada pelo Estado.” (p. 72); “O dossiê dos Centros de Defesa (Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Diocese de Rio Branco e Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Acre) aponta setenta casos documentados entre 1986 e 1989 e apresenta a notícia de que as investigações resultaram no encarceramento de 21 policiais militares, treze civis e cassou mandatos parlamentares, desmontando o esquema que perdurava há quase duas décadas.” - p. 72 e 73. Grupos de extermínio. In: Relatório de Execuções Sumárias no Brasil (1997-2003), elaborado pelo Centro de Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros (NEN). Setembro de 2003.

7 Violência Policial – Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado, Ignacio Cano – Professor da UERJ e membro do Laboratório da Análise da Violência. - p. 15. In: Relatório de Execuções sumárias no Brasil.

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extermínio para promover a chamada ‘limpeza social’. Tais grupos atuam em zonas pobres ou periféricas (...) Fenômeno mais recente são os grupos de extermínio a serviço do crime organizado, em particular do narcotráfico.”8

Ainda tendo como referência o Relatório de Execuções Sumárias no Brasil (1997-2003), vemos que também o próprio Estado promove esta prática de “limpeza social” direcionada ao “corpo do transviado” ou desajustado – ou ainda de acordo com Tom Gunning, “além dos criminosos, populações problemáticas, como os inválidos, os loucos e os politicamente suspeitos.” Trata-se, sobretudo da prática da violência política de Estado promovendo a negação do outro, tratado como risco à estabilidade social, curiosamente fundada em desequilíbrios sociais extremos. Segundo o relatório do Centro de Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros (NEN), casos como o do Rio de Janeiro chamam a atenção por promover não só a prática da violência de Estado como seu fundamento político, mas sobretudo, como política salarial, que entre os anos de 1995 e 1998 através da Secretaria de Segurança Pública, promoveu e incentivou a prática das execuções sumárias e arbitrárias, através de uma política de acréscimo salarial à corporação policial, agraciada e azeitada com concessões financeiras dissimuladamente chamadas de

8 Grupos de extermínio. In: Relatório de Execuções Sumárias no Brasil

(1997-2003), elaborado pelo Centro de Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros (NEN) - p. 69. Setembro de 2003.

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“premiações por bravura” 9, lubrificando com sangue a eficácia do aparato oficial de vigilância.

Nesta direção, o raio histórico do que nomeamos experiência histórica contemporânea, e sobretudo brasileira, através da mediação de certas técnicas de identificação corporal e de segurança oficial e extra-oficial, inclina-se historicamente na perspectiva de asseguramento e continuidade das condições econômicas e sociais da urbe, fundada que é em abismos sociais e arbitrariamente tendo como sua mediação universal o pendor para punir.

De todo, esta vigilância articulada que é a uma prática fundada na violência, atravessa as ruas, comércios, instituições e espaços privados, seja por mediação da vigilância oficial ou privada, e invade sob outra configuração o espaço do trabalho - fundada também que é por hierarquias, que tem seu fundamento enquanto desdobramento histórico na

9 “No estado do Rio de Janeiro a Secretaria de Segurança Pública aplicou entre os anos de 1995 e 1998 um programa de ‘premiações por bravura’, concedidos preferencialmente a policiais envolvidos em ocorrências com resultado de mortes de suspeitos. Essas premiações incrementavam a remuneração do agente em 50%, 75% e até 150% sobre o salário original. Como era de se esperar esta polícia aumentou o número de mortes em intervenções policiais e agravou os indicadores de uso excessivo da força (Cano, 1997). A concessão dessas premiações foi cancelada pela Assembléia Legislativa do Estado em 1998, mas os policiais que já tinham recebido a premiação continuam a recebê-la até hoje por decisão judicial.” (p. 20); Violência Policial – Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado, Ignacio Cano – Professor da UERJ e membro do Laboratório da Análise da Violência. In: Relatório de Execuções sumárias no Brasil.

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divisão técnica do trabalho. Polícia, patrões e grupos de extermínio, no conluio entre vigilância, violência, tecnologia e exploração do trabalho alheio, encontrando sua efetividade histórica como um dos traços da sociabilidade urbana contemporânea.

No que se refere aos desdobramentos históricos desse traço da vida na urbe, indica-nos antes um modo peculiar, embora premente, de atuação do poder oficial em uma cidade fragmentada e segregada, em que em algumas regiões o único braço do Estado é a polícia, como ouvimos no depoimento do capitão Pimentel do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE do Rio de Janeiro, ao vídeo Notícias de uma guerra particular (Direção de Kátia Lund e João Moreira Sales) 10: “O único poder do Estado que vai ao morro é a polícia. Só a polícia não resolve.” O que nos indica algo da pré-ocupação do Estado em relação a estes espaços segregados da urbe, a saber, vigilância como asseguramento e continuidade de nossas disparidades sociais. O que encontra seu desdobramento também no trato violento com os trabalhadores, como bem nos indica reportagem do jornal A Nova Democracia, de nome É a prefeitura que agride os camelôs do Rio:

“A repressão da Guarda Municipal do Rio de

Janeiro (GM – Rio) aos camelôs da cidade continua a todo vapor. De acordo com os ambulantes do Centro, (...), a prática fascista dos

10 Notícias de uma guerra particular. Cena: 11. Direção: Kátia Lund

e João Moreira Sales. Inclui o documentário Santa Marta, duas semanas no morro, de Eduardo Coutinho (DVD duplo).

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“defensores da ordem pública” se mantém inalterada: repressão física, econômica, humilhações e apropriações indébitas de mercadorias – mesmo as legais, das quais o proprietário dispõe de nota fiscal.” 11

Ao olhar que pretende vigiar, comum a certa extensão da polícia, aos grupos paramilitares, e que invade a gerência técnica do trabalho em nome do triunfo da produtividade, sobretudo intensificado na medida em que a população urbana cresce e concorre vorazmente entre si por um espaço no mundo do trabalho, interessa assegurar a situação histórica da sociedade brasileira. Para que o “de cima” permaneça em seu movimento ascendente e o “de baixo” em sua decadência e barbárie, se quisermos os termos de Chico Science & Nação Zumbi na canção A cidade, é necessário que os que estão “em cima” voltem suas ações para a preservação de sua segurança. Segurança dos que estão “em cima” significa permanência e continuidade das desigualdades sociais radicais. Ora, para a preservação da posição daquele que está “em cima” é necessário a vigilância. Mas de todo, quem precisa ser vigiado? Aquele que está “em cima” com melhores condições materiais de vida, tem o interesse de expor a sua situação ao risco da descida, da negação da vida?

A polícia, os grupos de extermínio, os patrões, vigiam para manter a ordem. Que ordem? A ordem

11 Jornal A Nova Democracia, número 15, dezembro de 2003: “É

a prefeitura que agride os camelôs no Rio”, p. 16.

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estabelecida. Qual é a ordem que possui tal extensão? A saber, a ordem que a vigilância, seja de grande parcela dos órgãos de segurança pública ou privada, seja dos patrões nos locais de trabalho, é a ordem que “O de cima sobe e o de baixo desce” 12. Deste modo, para que o “de cima” permaneça em sua posição e sobretudo em direção ascendente, faz-se necessário a vigilância, que vigia para punir.

Tomemos como exemplo a gênese histórica dos detetives, que segundo Ricardo Piglia em seu breve artigo de nome Sobre o gênero policial, em que trata dos contornos e traços da ficção policial, aparecem historicamente como a serviço da continuidade da ordem, isto é, a serviço da lei da exploração extremada do trabalho alheio. Com base em informações de outro autor e pesquisador, nos indica Ricardo Piglia: “Maurice Dobb cita vários documentos sobre a situação social dos EUA nos anos 20 que permitem ver surgir o detetive particular nas grandes cidades industriais como uma polícia particular contratada pelos empresários para espiar e vigiar grevistas e os agitadores sociais.” 13

Nesta perspectiva, esta vigilância inclina-se aos “de baixo”, sobretudo aqueles que encontram-se em tensão com sua própria consciência e constatam suas subumanas condições materiais de vida, situações-limite, ou representam risco social como no caso de

12 A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos. Sony Music. 1994.

13 Ricardo Piglia, O laboratório do escritor, Sobre o gênero policial; Iluminuras, 1994, SP.

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agitadores sociais, desajustados, incongruentes à dinâmica do triunfo da produtividade. De todo, esta vigilância é necessária para que não aconteça uma inversão da situação histórica da cidade contemporânea, “Podia ser Berlim, cidade fria, podia ser Japão, jardins de areia, podia ser Pequim, cidade cheia, podia ser que não, cidadezinha” 14 , como ouvimos na canção Cinema cidade de João Bosco.

Dito de outro modo e fixando com mais precisão o olhar para nossa experiência histórica, esta vigilância em conluio com a mais desmedida violência, como nos indica o Relatório de Execuções sumárias no Brasil, efetiva-se historicamente justo para que os que estão “em baixo” não se organizem visando uma resistência popular, com o interesse em diminuir as desigualdades sociais radicais, assim como o fez uma das grandes referências sociais e estéticas para Chico Science e a galera do Manguebeat: Zumbi dos Palmares, vigiado, perseguido e assassinado em 1695 na região hoje conhecida como Pernambuco, que organizou os escravos para se rebelarem contra os latifundiários dos engenhos de açúcar e criarem os Quilombos, regiões para onde os escravos fugiam na tentativa de viver em uma comunidade onde a exploração não existisse. 15

14 João Bosco, Malabaristas do sinal vermelho, Cinema cidade (João Bosco e Francisco Bosco); 2002; Sony Music.

15 Quilombos - A História do povo afro-americano. Jurema Batista. Revista Nação Brasil, abril de 2003.

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Mentira & lucro: entre ruas e uma sociabilidade descontínua

“A televisão e a música pop tinham corrompido

o vocabulário dos cidadãos, das prostitutas principalmente”

Rubem Fonseca

Nas décadas de 60 e 70 no Brasil o mito da vida promissora na cidade foi a propaganda necessária para atrair milhões de pessoas do campo para o nascente espaço urbano brasileiro. As TV’s, rádios, cartazes e outdoors da nascente cidade, promovidos e financiados pelas grandes indústrias e outros grupos econômicos, não sem propósito com a pré-ocupação em atrair mão-de-obra barata, lançavam seu apelo prometéico e convocatório para a vida na urbe, indicada como uma vida mais vida do que a vida no campo.

Sedutoras ilusões e situações econômicas limite, afetaram de tal modo a efetivação desordenada deste movimento de passagem abrupta e violenta do campo para as cidades ou subúrbios urbanos no Brasil, que a produção de riquezas que tanto insuflou brilho sobre o slogan “milagre brasileiro”, precioso escudo metálico de nossa recente ditadura militar, acabou por encontrar o reconhecimento aparente e dissimulado de sua contradição histórica até mesmo por nomes como Garrastazu Médice, que em uma viagem ao nordeste no período do “milagre” afirmava ambiguamente: “O

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país vai bem, mas o povo vai mal”16. Nesta perspectiva, muitos milhares de pessoas do

campo se jogaram rumo à cidade, terreno de uma possível ascensão social. Grande parcela tendo suas terras tomadas através da força por grandes "donos" de terra, forçosamente forjados juridicamente por mediação do conluio entre investidores e burocracia local, ou de outro modo, afetados abruptamente por uma política agrária - herança fixada no rastro da experiência histórica brasileira-, que em sua dinâmica ou desdobramento prático reuniu esforços no sentido de atribuir primazia ao latifúndio de tal modo, por mediação de concessões e privilégios - por exemplo, através do monocultivo para exportação em grandes extensões de terra, de todo alheio às necessidades econômicas nacionais, e deveras crivado violentamente em nossa experiência histórica-, que grande parcela da população do campo fora afetada e forçada historicamente a vender suas terras para continuarem sobrevivendo, sobretudo aquela população órfã de políticas agrárias fundadas justo na perspectiva de atender às demandas nacionais por mediação da agricultura familiar. De certo, eram ambições que moviam as pessoas das mais diferentes classes sociais para a busca da possibilidade de outra maneira de viver. Ora, é neste sentido que ouvimos na funkeada A cidade lá para meados do álbum Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos:

16 História e vida – Brasil: da independência aos dias de hoje – Volume 2; p. 87 – Garrastazu Médice: a face mais cruel da ditadura. Nelson Piletti e Claudino Piletti; Oitava edição; Editora Ática S.A. – SP. 1991.

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“E a cidade se apresenta centro das ambições Para mendigos ou ricos e outras armações Coletivos, automóveis, motos e metrôs

Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs” 17

Por ambição entendemos ser um movimento irrefreado ou mesmo limitado em certa cadência ou devaneio, ao encontro do que nomeamos como poder, riqueza ou glória, ou mesmo um desejo de mudar radicalmente as condições materiais de vida. É na urbe que se concentra o centro das ambições como ouvimos na canção A cidade, seja para ricos ou pobres. É referenciada na idéia de que tempo é dinheiro, que “Coletivos, automóveis, motos e metrôs”, correm a todo vapor pelas ruas asfaltadas ou por trilhos no subsolo da urbe, mercadorias devem ser entregues, trabalhadores não podem chegar atrasados em seus locais de trabalho, um grande negócio pode ser perdido caso o patrão venha a piscar o olho diante do relógio, quanto mais rápido e veloz as mercadorias circulam, mais lucro para os invertidores, digo, investidores.

É esse o ritmo da urbe, o barulho das moedas e o cheiro do dinheiro, estranho embora sedutor forçosamente, o passar dos segundos, minutos e horas no rígido e metálico, embora derretido relógio como o de Salvador Dali 18 , ofuscam e encobrem qualquer outra idéia no pensamento de muitos seres humanos

17 A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos.

Sony Music. 1994. 18 A persistência da memória, Salvador Dali, 1931.

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que não a sorumbática e frenética ordem de ser tragado pelo turbilhão da dinâmica por excelência que se desdobra historicamente, a saber, a proximidade e unidade forçada e incongruente entre o tempo megalomaníaco da produção e o tempo da vida mesma.

Ora, o quadro de Dali, um dos precursores do surrealismo junto com Buñuel e outros, indica-nos justo a crise desta imersão e submersão do tempo da vida no algébrico tempo da produção, trata-se da racionalidade do tempo e da produção encontrando-se com sua incongruência, descompasso. Sobretudo, indica-nos uma racionalidade do tempo da produção negando-se a si mesma, e promovendo deste modo o seu oposto, a saber, sua crise, fundada que é no descompasso do tempo do relógio com o tempo da vida.

Não sem propósito Dali nomeia este quadro de 1931 como A persistência da memória, ao passo que o tempo da memória indica-nos um certo entrelaçamento com o tempo da história. Esta proximidade entre o tempo da memória e o tempo da história, da efetividade histórica, na perspectiva do quadro de Dali, encontra na sistematização do tempo como unidades de medida quantificáveis, como os segundos, os minutos, as horas, os dias, meses, anos, etc., a sua derradeira e ácida crise. Pois é justo esta tentativa, embora hegemônica em nossa experiência histórica contemporânea, de coadunar o tempo do relógio com o tempo da memória e da história, que se dissolve em ácida incongruência na pintura de

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Salvador Dali. Sobretudo, A persistência da memória indica-nos antes a persistência de uma dinâmica de tempo que não cabe na quantificação fria e objetiva do tempo do relógio, amigável e cúmplice que é do tempo do triunfo da produção.

De todo, situar estes traços que afetam a vida na urbe nos abre a possibilidade de demarcar alguns dos contornos do modo através do qual as condições históricas de sociabilidade se desdobram no mundo contemporâneo. Nesta direção, nos cabe aqui situar que a mediação por excelência no que se refere à sociabilidade na urbe ocidental passa tão somente pela mercadoria, - filho primogênito do resultado deste entrelaçamento do tempo da vida com o tempo da produção, seja como força de trabalho ou mesmo no sentido estrito do termo-, que os vínculos sociais e culturais não ultrapassam a esfera do descontínuo, inconstante ou fragmentário.

Inclinamo-nos a esta perspectiva ao passo que o modo de sociabilidade que tem como sua mediação tão somente a mercadoria, embota e dissipa aquelas outras maneiras de efetivação de vínculos sociais e culturais que não fixados por mediação da multifacetária e dissimulada moeda a que damos o nome de mercadoria. Segundo o filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin, em seu ensaio A Paris do Segundo Império em Baudelaire, mais precisamente no trecho de nome O Flâneur, as condições históricas de sociabilidade próprias àqueles que têm a urbe como espaço de vivência, situam-se de certo modo no fato de que na cidade ocidental seus habitantes quase não

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se vêem em outra condição histórica senão enquanto “devedores e credores,... vendedores e clientes,... patrões e empregados – sobretudo... se conheciam entre si como concorrentes.”19

Ora, é justo este traço de uma sociabilidade descontínua fixada por mediação da mercadoria, que Tom Zé satiriza, o encontramos em uma canção do álbum Se o caso é chorar (1972) de nome A briga do edifício Itália com o Hilton Hotel, em que o dissidente compulsório do tropicalismo trata, não sem um tom de ironia, ficção e historicidade, do processo de urbanização no Brasil, onde o edifício Itália que “era o rei da Avenida Ypiranga”, tem suas atenções roubadas pelo novo, “gracioso, moderno e charmoso” prédio do Hilton Hotel, que segundo o edifício Itália,

“só pensa em dinheiro, não sabe o que é amor, tem corpo de aço, alma de robô,

porque coração ele não tem pra mostrar, pois o que bate no seu peito é uma máquina de somar” 20

De todo, o emblema daquele que tem no peito uma máquina de calcular, embora possa nos parecer apenas produto do delírio ou devaneio, ocupa seu

19 Walter Benjamin, Organização: Flávio R. Koethe; Coordenador: Florestan Fernandes; Editora Ática S.A, São Paulo, 1991 – p. 68.

20 A briga do edifício Itália com o Hilton Hotel. Tom Zé. Séries dois momentos (Se o caso é chorar- 1972/ Todos os olhos- 1973). Warner Music Brasil. 2000.

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devido lugar em nossa experiência histórica contemporânea, ao passo que a mediação por excelência da sociabilidade urbana fixa-se no privilégio e na dignidade hierárquica dada à mercadoria. “Muitos vêem no homem o $ifrão, esqueceram o bater do coração” 21, ouvimos em uma canção do grupo Ira! de nome Nas ruas, escrita por Edgard Scandurra. Aos olhos do homem cifrão que tem no peito uma sedenta máquina de calcular, o outro que aparece no percurso ou na paisagem da urbe, é sobretudo tomado como uma mercadoria, um cifrão, a saber, uma unidade de medida quantitativa, que por sua própria característica enquanto quantidade, dissipa e elimina tudo que remete à diversidade, peculiaridade, irrepetibilidade e individualidade, na medida em que uniformiza as diferenças por mediação da quantificação.

Em outra direção, convivem aterrorizantemente em harmonia, nos termos de Alexandre Matias em seu ensaio sobre o Clash a partir do London Calling, a “nascente nova classe dominante, jovens executivos engravatados que mandariam nos anos 80 achando que eram modernos porque usavam brincos e... cheiravam cocaína” 22 . Assim nos indica a canção Koka kola do Clash citada no artigo de Alexandre Matias:

21 Nas ruas. IRA! Vivendo e não aprendendo. 1986. Warner Music Brasil. 2000.

22 Clash, por Alexandre Matias. In: Joe Strummer 1952-2002. Editado em 24.12.02. http://www.geocities.com/trabalhosujo/20021224clash.html

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"Nos corredores lustrosos do 51º andar Dinheiro pode ser feito se você quiser mais

Decisão executiva - precisão clínica Pula da janela, cheio de indecisão

Recebi uma boa nova do mundo da propaganda (...) Koka adiciona vida onde não existe” 23

Cenário este que na urbe contemporânea convive historicamente lado a lado de um vertiginoso contingente de trabalhadores, mendigos, camelôs, vendedores ambulantes, megalomaníacos edifícios esbanjando o brilho da arquitetura de vidro, favelas 24,

23 Clash, Koka kola, London Calling, Strummer & Jones; 1979. Sony Music Entertainment. “In the gleaming corridors of the 51st floor/ The money can be made if you really want some more/ Executive decision – a clinical precision/ Jumping from the windows – filled with indecision/ I get good advice – from the adversing world/ (…) Koke adds life – where there isn’t any (...).

24 “No Brasil, 6,5 milhões de pessoas vivem em, como define o próprio governo federal, aglomerados subnormais. Num país que se classifica como emergente, é inconcebível que uma população equivalente à de toda a cidade do Rio de Janeiro more em favelas. Em dez anos, o número de habitantes nessas submoradias aumentou cerca de 40% nas capitais. São Paulo e Rio de Janeiro são as cidades com o maior contingente em números absolutos: 2, 07 milhões e 1,38 milhão de pessoas, respectivamente. Em termos relativos, porém, o crescimento mais espantoso ocorreu em João Pessoa (265%) e Brasília (400%). Já Belém apresenta a maior densidade populacional residente em favelas. De cada cem habitantes da capital paraense, 35 estão nesses espaços. As causas da favelização são diversas, mas as mais recorrentes são a queda o poder aquisitivo do brasileiro, a urbanização acelerada e a falta de política habitacional para a população de baixa renda. País emergente ou da emergência? Eis a questão.” Revista Discutindo Geografia, O país das favelas - Escala Educacional - Ano 2, número 9 – São Paulo/SP.

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moradias tomadas por aquele tom cinzento próprio das ruínas, o cheiro repugnante dos esgotos a céu aberto, saneamento básico dissipado de qualquer planejamento urbano. A fantasmagoria das prisões superlotadas, sono no chão com alimentação de massa disforme e cinzenta.

Na esfera da suposta legalidade de nosso Estado ainda não tão laico como o queriam os mais otimistas dos humanistas, a impunidade de nossa justiça pública inscreve sua atuação acobertando os crimes de nossos ladrões diplomados ou ancorados no mainstream da política e economia locais ou internacionais, dois pesos, duas medidas. O peso dos braços de nossa justiça pública incide com mais eficácia e violência nos incipientes roubos e saques de alimentos promovidos por militantes do MST, do que se posiciona com veemência em relação àqueles que roubam grandiosas cifras de nossos cofres públicos, seja legalmente ou dissimuladamente.

Coletivos e metrôs constantemente lotados, a tarifa da passagem avolumasse e o serviço do transporte público não é aprimorado, pois as cifras das empresas de transporte têm que aumentar 25, mesmo

25 “A justificativa de empresários e governos para esses aumentos é a elevação do preço dos insumos do transporte e a queda da demanda. Formou-se um ciclo vicioso: a população de baixa renda deixa de andar de ônibus porque a tarifa é cara, a tarifa sobe porque a quantidade de usuários não pára de cair e acaba expulsando ainda mais gente dos coletivos.” Folha de São Paulo, Folha Cotidiano, Tarifa alta cria os excluídos do transporte, por Alencar Izidoro e Simone Iwasso, Página C 1 – São Paulo/SP, Domingo, 5 de outubro de 2003.

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que para isso seja necessário entupir os ônibus com trabalhadores, pedreiros, domésticas, vendedores ambulantes, etc. No trato com o corpo: atendimento médico em tempo hábil somente por mediação do nem sempre tão seguro sistema privado de saúde, em outra direção, ilimitadas filas nos postos de saúde do Estado, na espera, isto é, na esperan-ça de um possível atendimento. Uísque para os ricos, e em expressão de Fred Zeroquatro do Mundo Livre S/A: “cachaça para os pobres, e como já dizia minha prima Katarina, deus nos dê fígado” 26.

Faces diferenciadas de uma mesma urbe, com suas modernidades e fantasmagorias. Lucro, acumulação crescente e ilimitada para uns, senão como ostentação e ócio mediocremente ocupado por nossas elites, morte e negação da vida para tantos outros, coexistem na cidade brasileira lado a lado, aterrorizantemente em harmonia frenética, pacientemente desleixada e desleixadamente dissimulada. Como nossos atenciosos olhos não se deixam seduzir tão somente pelo fascínio, demolido quando atentamos às nossas mais arcaicas ou modernas bizarrices, o progresso econômico estampado em nossa bandeira em um certo tom de amarelo positivista, e sobretudo radicalmente distinto daquele tom cantado pela Nação Zumbi em Tempo Amarelo, só beneficiou a poucos, de modo que ao invés de ordem e progresso, em nossa experiência

26 Zeroquatro; E a vida se fez de louca (homenagem à minha saudosa prima zapatista); O outro mundo de Manuela Rosário - Mundo Livre S/A; Candeeiro Records.

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história o que se inscreve como que de modo fantasmagórico dilui-se em desordem e barbárie.

De todo, como ouvimos em um dos primeiros partos do que se nomeou como Manguebeat, Da lama ao caos, Chico Science e Nação Zumbi, canção A cidade, a situação da urbe contemporânea e brasileira “não está tão mal”, pois o desemprego27, a pobreza, a falta de informação e cultura não afeta a todos, e por extensão, para a “esperteza internacional”, - representada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Schwaznegher, Bush, Pentágono, Hollywood, Tony Blair 28 , entre outros tantos... - de certo, privilégios não se dissipam tão menos se diluem historicamente. É nesta direção que a situação histórica da cidade brasileira está “mais ou menos”. Isto é, de um lado uns com mais comida, apropriação de riquezas, mais acesso à informação e à cultura, mais saúde, moradias e edifícios reluzentes, de todo uma vida mais vida. E de outro lado, tantos

27 Por onde anda o trabalho? “Nunca houve no mundo tantos desempregados. O triste recorde foi publicado pela OIT (Organização internacional do trabalho), e registrou em 2005, 191,8 milhões de pessoas sem emprego. A taxa global chegou a 6,3%, sendo maior entre pessoas de 15 a 24 anos. A entidade afirma que raras foram as ocasiões em que alguns países conseguiram converter seu Produto Interno Bruto (PIB) em criação de novos postos de trabalho ou no aumento de salários. Dos mais de 1 bilhão de trabalhadores no mundo que estão expostos a condições de pobreza extrema, apenas 14,5 milhões conseguiram superar a linha de pobreza de US$ 1 por dia.” Revista Discutindo Geografia - Escala Educacional - Ano 2, número 9 – São Paulo/SP.

28 Zeroquatro; Azia Amazônica; O outro mundo de Manuela Rosário; Mundo Livre S/A; Candeeiro Records.

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outros com menos comida, moradias em ruínas, menos acesso à informação, educação e cultura, saúde em coma, menos transporte, menos bebida, nível de escolaridade menor... enfim, menos vida.

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A cidade não pára: e os urubus continuam tendo a sua carniça

“Oh Josué, eu nunca vi

tamanha desgraça quanto mais miséria tem

mais urubu ameaça” Chico Science

Compreendendo a sociedade contemporânea como atravessada por desigualdades sociais radicais, abre-se então a possibilidade para que possamos entender a dinâmica própria da cidade versada em perspectiva de Chico Science & Nação Zumbi na canção A cidade. A saber, quanto mais cresce a população da cidade, mais crescem também as desigualdades sociais radicais. É a concentração cada vez maior de poder e riquezas nas mãos de poucos, que permite a continuidade e permanência dessa condição histórica na qual se encontra a cidade brasileira cantada pela Nação Zumbi de Chico. O abismo que separa ricos e pobres se aprofunda de maneira crescente e ilimitada, pois por abismo entendemos aquilo que não nos é dado a saber, qual o seu limite. 29

29 “A política de arrocho fiscal (baseada no aumento de impostos e em cortes de investimentos) e de juros altos”, indica o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, “opera como um Robin Hood às avessas: tira recursos dos pobres (via cobrança de impostos e redução de gastos públicos, que afeta a qualidade dos serviços oferecidos às faixas de renda mais baixa) para transferi-los aos mais ricos, por meio do pagamento de juros elevados aos donos do capital, participando da ciranda financeira.” Políticas favorecem os

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De todo, esta dinâmica social fundada em hierarquias que mediam a continuidade de nossas disparidades sociais, indica-nos que aquele que está “em cima” - se quisermos os termos de Chico Science na canção A cidade-, realiza seu movimento ascendente ao passo e na medida em que encontra no “de baixo” a sua mediação por excelência, ou antes mesmo o seu apoio. Neste sentido, aquele que está na posição superior perdura seu movimento ascendente sobretudo por se apoiar-em quem está na posição inferior.

Todavia, cabe-nos aqui ressaltar que as noções de superior e inferior são tomadas aqui a partir das condições materiais de vida, não se trata aqui de valores morais, éticos ou culturais. Nesta direção, o inferior por ser mediação e apoio do superior, realiza seu movimento de afirmação como sua própria negação em detrimento de um outro. Outro este que quanto mais tem na negação daquele outro o seu perdurar, promove o abismo em relação ao seu oposto, o “de baixo”, ao passo e na medida em que este se encontra com sua decadência e ruína.

Ora, mas o que significa este apoiar-em, quando estamos tratando de distâncias sociais assentadas desde uma certa hierarquia? Como o sabemos, de acordo com a tradição filosófica que passa por Hegel até Marx, uma das formas de mediação que asseguram a continuidade de tais abismos sociais, em nosso raio

mais ricos. Juros altos e arrocho nos gastos públicos tiram recursos dos mais pobres e concentram ainda mais renda. Lauro Veiga Filho. Jornal Brasil de Fato, ano 2, número 68, São Paulo/SP, de 17 a 23 de junho de 2004.

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histórico, atende em certa extensão pela alcunha de trabalho. Trabalho é mediação entre superior e inferior, e realiza aquele movimento que aparece para nós como ordenação hierárquica que assegura a continuidade de nossas disparidades sociais, ao passo que a extensão dessa relação consiste na afirmação da vida de um na medida em que nega a vida de um outro. Nesta direção, trabalho é apoio para a fixidez e afirmação do superior.

Sobretudo em perspectiva de Karl Marx, quando pensamos em trabalho no mundo contemporâneo estamos nos referindo basicamente a dois pólos: aos “possuidores de propriedade” (não-trabalhador) e aos “despossuidores de propriedade” (o trabalhador). Este modo de vida mostra-se na relação com o não-trabalhador não em outra condição senão a de mercadoria, que aparece como sua força de trabalho. Ora, mas como pensar a força de trabalho como mostrando-se nas relações econômicas na condição de mercadoria? Em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, mais precisamente em trecho de nome O trabalho alienado, Marx afirma que o trabalhador “desce até ao nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria” 30 . Este modo de trabalho que aparece como mercadoria mostra-se como a negação do auto-conhecimento do trabalhador a partir de seu próprio trabalho.

30 Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos – p. 110. Trad. Alex

Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002.

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Nesta direção, para Marx o trabalho faz de seu sujeito “uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz” 31, e por extensão, faz do mundo das coisas, isto é, dos produtos reproduzidos em grande escala pelo seu trabalho, algo que “se opõe a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor”. Ora, ao reproduzir em larga escala algo que se separa dele (do trabalhador), a saber, a mercadoria, promove não sua afirmação por mediação do trabalho, ao passo e na medida em que assegura o enrijecimento de um poder estranho a ele, poder este que promove as rédeas de sua própria mediação, a saber, da vida do trabalhador, que se lança ao mundo do trabalho tão somente por sua energia física, que aparece para nós como sua moeda de troca, de sobrevivência, reduzida pois à condição de mercadoria. Segundo Marx, o trabalhador portanto “não se afirma no trabalho, mas nega- se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito” e sobretudo, “no trabalho se sente fora de si.” 32

É neste sentido que a organização do trabalho no mundo contemporâneo, em sua forma, contribui radicalmente para a continuidade de nossas bizarrices sociais, fazendo dos despossuidores de propriedade uma mera mercadoria. Ao passo que é também este tipo de mercadoria, configurada como a força física do

31 Idem - p. 111. 32 Idem – p. 114.

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trabalhador, que assegura a mediação e continuidade da relação entre superior e inferior, fundada que é na hierarquia.

Neste sentido, temos na posição superior uma vida mais vida, e na posição inferior uma vida menos vida. Ora, subir pode significar afirmação e realização da vida, encontro da vida com a própria vida, descer significa aqui, encobrimento da vida, desencontro da vida com a vida mesma, por extensão, descer significa morrer, e morrer significa negação e des-realização da vida.

Nesta direção, se descer é o desencontro da vida com a própria vida, descer é o encontro da vida com a morte. Por descida entendemos o movimento que encurta a distância entre vida e morte. Tomemos como exemplo o sol. O nascer e o viver do sol se dão na aurora e na vigência do dia, sendo a decadência e o obscurecer do sol ocasionado pelo crepúsculo da tarde e pela caída da noite, que trás consigo a negação da vigência do sol. Na cidade contemporânea brasileira, o que encontramos é um sol eterno para os “de cima” e uma noite eterna para os “de baixo”. Ora, mas o que com isto estamos querendo indicar?

Vida o é desde que pensamos em seu oposto, a saber, morte. Para os “de baixo”, habitantes de uma cidade atravessada e afetada por desigualdades sociais radicais, a morte invade com uma violência maior o espaço da vida. Isto significa dizer que aos “de cima”, a morte ocupa em um grau menor o espaço da vida. Neste sentido, sendo o sol vinculado à vigência e aurora da vida, e descida da vida relacionada à

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decadência do sol e à vigência da noite, podemos afirmar que aquele que desce, encontra-se em uma noite eterna. Assim, encontra-se em um sol eterno aquele que sobe ilimitadamente, afastando assim a morte do espaço da vida em um grau maior. Afasta a morte do espaço da vida em um maior grau aquele que, tal como o sol em sua vigência ao dia, sobe.

De todo, sendo o “de cima” aquele que encontra no “de baixo” a sua mediação e apoio, é a vida de quem está “em cima” que perdura e permanece na terra por mediação da morte dos que estão em baixo. Aquele que está em baixo, com a força do de cima, desce abruptamente, diminui-se, abstrai-se forçosamente de suas necessidades e faculdades, ocupando a morte o espaço de sua vida em uma maior intensidade. Isto é, a vida do “de cima” se torna mais vida na medida em que a vida do “de baixo” vai sendo tomada violenta ou sorrateiramente pela morte, tornando-se menos vida.

Ora, em relação ao trabalho, é por mediação da morte que ocupa o espaço da vida, através da exploração extrema da energia física do outro, basta lembrarmos das mais recentes denúncias de trabalho escravo no Brasil33, e da morte no sentido estrito do termo, que na experiência histórica brasileira encontramos este perdurar que é a continuidade de nossas bizarrices sociais, que tem como sua mediação

33 Jornal Brasil de Fato, número 31, São Paulo/SP, de 2 a 8 de outubro de 2003, Aumentam as denúncias em Tocantins: denúncias envolvem 839 lavradores, a maior parte desempregados aliciados para trabalho em latifúndios, por Lucas Milhomens.

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universal a negação e barbárie da vida de um na medida em eleva e garante a vida de um outro.

Todavia, quando ouvimos ao som de tambores eletrificados de maracatu, guitarras distorcidas e samplers (programações eletrônicas de áudio), Chico Science entoar seus versos em ritmo martelado e funkeado pela Nação Zumbi: “A cidade se encontra prostituída/ Por aqueles que a usaram em busca de saída” 34 , encontramos aí a dinâmica que move esta cidade que “não pára,... só cresce” 35. Por prostituição entendemos ser qualquer tentativa de transformação daquilo que é humano e não tem preço, em mercadoria. É o ser humano, habitante do “centro das ambições” que é a urbe, confundindo-se com a mercadoria, algo não só próprio do comércio do prazer, no qual a prostituta, rentável acolhedora de corações solitários, perturbados ou libertinos, participa. O que vale também dizer, que quando estamos exercendo este ou aquele outro modo de trabalho inscrito na divisão técnica e hiearquizante do trabalho no mundo contemporâneo, estamos em certa medida nos prostituindo (!!?!).

É a ambição do ser humano, em certa medida, que o encobre em sua identidade e peculiaridade irrepetível, e o abre e o lança à possibilidade e efetividade histórica do transformar-se em mercadoria, de todo pela mediação de certos modos de trabalho no mundo moderno em que a impessoalidade é a marca.

34 A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos. Sony Music. 1994.

35 Idem.

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Ora, é justo neste terreno de vulnerável dissipação da diversidade que é o transformar-se em mercadoria, que submerge à uniformização que a técnica impõe, que o ser humano a ele sujeito é lançado ao risco do tornar-se mais uma mediação e apoio para o movimento ascendente do “de cima”. “I am not a product!! I am not a product!!!” 36 Gritou histericamente Iggy Pop ao final da groove-punk-jazz entorpecente e libertina clássica canção Fun House, em uma de suas mais recentes apresentações com os Stooges.

Entretanto, a vida social urbana indica-nos antes que aos “de baixo”, o interesse privilegiado é o de não promover a denúncia ou crítica em relação ao abismo que se impõe fantasmagoricamente em nossa experiência histórica, e que assegura distancias hierárquicas que mediam as relações sociais e políticas entre nossas elites econômicas e as classes populares, e nesta medida, abstrai-se e priva-se daquele outro modo de agir, que realiza sua ação de encontro à lógica na qual se assenta a condição histórica da urbe.

Mas de outro modo, deveras curioso, o interesse primeiro para muitos dos “de baixo”, se quisermos os termos da Nação Zumbi em Da lama ao caos, consiste em um perdurar naquele delírio ilusório de que é possível passar para o outro lado do abismo, no qual se encontram os “de cima”, no entanto, de todo sem conflitos ou contradições históricas. Ora, pensa aquele que desce, e que tem sua vida negada a si mesma, que

36 Iggy & The Sooges. Ao vivo em Detroit. Indie Records. MVD

– Music video distributors.

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um dia poderá realizar aquele movimento ascendente ao encontro da vida consigo mesma, passando de uma vida menos vida para uma vida mais vida, e justo nesta extensão do agir, e sobretudo para historicizar esta vontade, torna-se sob qualquer pretexto como mediação, mercadoria, ou antes mesmo, carniça para os urubus, se nos inclinarmos à estética um tanto quanto putrefata do álbum Da lama ao caos, que sobretudo se inscreve enquanto demarcando traços históricos da urbe contemporânea e brasileira.

Nesta perspectiva, a saída para a sobrevivência encontrada por muitos na cidade contemporânea e sobretudo brasileira, se inscreve naquele submeter-se e submergir à condição uniforme de vulnerável mercadoria, a saber, ser tomado afetado por aquele movimento mudo, repentino e dissimulado, do transitar por entre os limites do mando, fundado que é em hierarquias. De todo, neste movimento este modo de ser vulnerável ao mando, lança ao esquecimento a efetividade e continuidade histórica secular que nos indica aquele abismo que separa violentamente ricos e pobres, abismo no qual sem o saber podem sucumbir, cair, permanecendo, ao contrário do que se promovia ao seu modo, na condição de decadência, barbárie e negação da vida.

De todo, é obedecendo ao mandonismo patricarcal que ainda perdura fantasmagoricamente por entre o asfalto sobretudo da urbe brasileira, quase tão moderna ou pós-moderna como o queríamos, movendo-se de maneira passiva, tomados por mudez mecânica ou ressentida, movidos pelas rédeas do

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mando, agindo e promovendo historicamente o que a ordem do “de cima” exige, que essas vidas prostituídas recolhem as migalhas que caem e sobram dos incansáveis e excessivos banquetes de nossas elites, e permanecem vivendo como o carrapato por entre os pêlos do cachorro, ou antes mesmo como o capim que alimenta o cavalo ou como a carne podre que alimenta o urubu. Ora, o urubu é aquele que vive da carne em decomposição, de matéria putrefata, onde a vida não mais pulsa, dissolveu-se, trata-se da vida que se nutre e se alimenta da morte de um outro aniquilado, que sua mediação para a vida por excelência. Não sem propósito, daí a necessidade da violência para a continuidade das desigualdades sociais. Nesta direção, na ótica martelada e funkeada da Nação Zumbi de Chico Science na canção A cidade, a urbe sobretudo se apresenta como

“Ilusora de pessoas de outros lugares A cidade e sua fama vai além dos mares No meio da esperteza internacional A cidade até que não está tão mal E a situação sempre mais ou menos

Sempre uns com mais e outros com menos” 37

É o devaneio de ultrapassar sem conflitos o abismo que separa ricos e pobres, sem que se possa cair, que toma de assalto aos “de baixo” para os quais é fazendo favores para os “de cima”, e obedecendo mudos os mandos de nossas mais arcaicas elites sob a

37 A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos. Sony Music. 1994.

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carapaça de modernas, a via e extensão do agir que pretensamente possa ser a mediação outra que não o submergir em noite eterna, a saber, aquele movimento que aproxima a distância entre vida e seu oposto, ao passo e na medida em que aos “de baixo”, a morte invade sorrateira ou violentamente o espaço da vida em uma maior intensidade, sobretudo em relação à apropriação do trabalho alheio não só na experiência contemporânea, como também brasileira.

Entretanto, quando empregamos aqui a palavra favor, não estamos tratando tão somente de um modo de tratamento pessoal recíproco e tão corriqueiro entre nós, mas também, de um dos traços mais marcantes embora arcaicos e fantasmagoricamente disseminados na sociedade brasileira, fundada que é em uma hierarquia que permite as mediações que harmonizam desleixadamente a continuidade de nossas disparidades sociais.

Ora, se este sistema assentado em desigualdades sociais radicais ainda encontra sua continuidade, é porque a inclusão, predominantemente assentada em laços de dependência que tanto punem quanto abrem para a participação no privilégio, se dá de forma que seja possível perdurar a situação histórica da sociedade brasileira, que mesmo estando diante de tempos modernos, ou mesmo pós-modernos, não se vê de todo a salvo da atuação de forças arcaicas que ainda persistem com todo o seu vigor, maturados violentamente do mesmo modo que dissimuladamente no percurso de nossa experiência histórica.

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Esta arcaica mediação em nossa experiência histórica e que harmoniza e dissimula desleixadamente aquela intimidade entre inclusão e exclusão, a saber, o favor, realiza-se enquanto mediação hierárquica ao passo e na medida em que por um lado promove com violência desmedida uma megalomaníaca e voraz exclusão, e por outro, também se inclui, esta inclusão via de regra tendo sua abertura por mediação daquela participação no privilégio, que tanto promove o azeitar e o agraciar, como também o punir e o violar.

Todavia, a mediação harmoniosa e violenta do favor, promove hierarquias que asseguram a continuidade de nossas desigualdades sociais radicais, sobretudo tendo em seu âmago viciadamente fixado no percurso de nossa experiência histórica, a persistência do arcaico mesmo que sob dourados modernos, que se diluem fugazmente, dando lugar a outros modernismos fantasmagoricamente assombrados por outros arcaísmos.

Nesta direção, ao precisar melhores contornos para as mediações que promovem a inclusão como participação no privilégio, nos encontraremos com algumas das noções de Bajonas Brito em seu livro Lógica do disparate em relação a este tema, sobretudo em algumas das passagens ao capítulo cinco de nome Liberdade e hierarquia. De todo, Liberdade e hierarquia trata de traços da formação cultural e política brasileira, de modo que a perspectiva desenvolvida consiste em indicar a extensão daqueles traços viciadamente fixados em nossa experiência de cultura política, sobretudo em relação àquele entrelaçamento

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desmedidamente desleixado e tão corriqueiro e familiar entre as esferas do público e do privado, abrindo-nos a perspectiva de precisar o quanto os vínculos sociais no Brasil fundam-se, promovem-se e se harmonizam hierarquicamente por mediação da ambígua noção da lógica do favor.

Neste sentido, a própria mediação do favor consiste na própria hierarquia, que é tanto sua abertura quanto fim último a ser preservado, assim nos indica certa passagem da Lógica do disparate, a saber: “A hierarquia, afirmamos, é pré-condição do favor. Contudo, o fato é que o favor é uma certa relação na hierarquia, a qual, por sua vez, e por isso mesmo, não é uma hierarquia qualquer, mas uma tal que inclui na determinação de sua natureza o favor. O caráter fundamental da liberdade do favor, Schwarz localizará na participação no privilégio.” 38

Desde essa perspectiva, exclusão e inclusão não estão dispostas, necessariamente, desde uma oposição. Deste modo, segundo o autor, “integração e exclusão caminham juntas e, ao invés de se confrontarem, se promovem mutuamente.” 39 Neste sentido, a noção de liberdade em uma sociedade hierárquica funda-se pela participação no privilégio, sendo isto mesmo o que permite a continuidade das desigualdades sociais radicais no Brasil. Assim lemos à Lógica do disparate:

38 Bajonas Brito, Lógica do Disparate. Capítulo V - Liberdade e

Hierarquia p. 193. EDUFES - CCHN Publicações, 2001, Vitória. 39 Bajonas Brito, p. 178.

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“Considerando pois as diversas inserções do favor, devemos concluir que sua extensão cobre todas as relações sociais fundamentais da sociedade escravista brasileira e que, portanto, o modo de liberdade que lhe é próprio possuirá idêntica extensão. O favor atravessa todas as relações sociais: senhores e comissários, senhores e escravos; senhores e senhores, senhores e homens livres pobres (agregados); senhores e funcionários do estado e das instituições privadas. O favor será então, como já afirmou alguém, a mediação universal dessa sociedade hierárquica. Mas deveremos crer que seu domínio desaparece com a extinção da sociedade escravista? De modo algum, em primeiro lugar é fato absolutamente familiar a permanência do favor no modo do coronelismo, do clientelismo e do mandonismo na Primeira República e em todas as repúblicas que a sucederam.” 40

De todo, por um lado o favor inscreve-se em

nossa experiência histórica tal como O abutre de Kafka, a saber, de modo violento, desmedido e abrupto, como também, por outro, o favor perpassa as relações sociais azeitando, apaziguando e encobrindo iras, promovendo deste modo a mediação por excelência de nossas hierarquias, e sobretudo nesta extensão, harmonizando os opostos, inclusão e exclusão, arcaico e moderno, público e privado, progresso e barbárie, o contestar e o engolir silencioso. Ora, lembremos de cena do filme Sábado de Ugo Giorgetti, e citada em

40 Bajonas Brito, Lógica do Disparate, p. 190-191.

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artigo de Hudson Ribeiro a partir do filme, em que encontramos este coadunar harmoniosamente os opostos, a saber, o contestar e o calar:

“o personagem que ensaia um protesto

ao denunciar o projeto modernista como invasão pura e simples, é como a classe média ou a classe subalterna através dos seus representantes mais esclarecidos que, tratados de forma diferenciada, enchem a boca e abdicam do discurso contestatório. Note-se que o personagem em questão é agraciado duas vezes com guloseimas.” 41 Nesta direção, o contestar subitamente cede lugar

ao seu oposto, a saber, o calar-se ou o engolir silenciosamente como no caso das guloseimas apaziguadoras do filme Sábado, como nos indica Hudson Ribeiro, de modo que tal mediação entre um e outro se inscreve desde aquele agraciar próprio da dinâmica do favor, que aproxima opostos e perdura hierarquias, ao passo que tal perdurar e harmonizar opostos abre-se desde aquele conluio entre mando e subordinação, na medida em que tal “relação de favor redunda em ganhos reais para aquele que sabe se subordinar de modo eficiente” 42 , como nos indica Bajonas Brito, bem como por outro lado, é o próprio

41 Hudson Ribeiro, O filme “Sábado” e o que ele nos provoca a pensar - p. 87. In: Idéias com pernas. Flor & Cultura. Vitória, 2004.

42 Bajonas Brito, Lógica do Disparate. Capítulo V - Liberdade e Hierarquia p. 194. EDUFES - CCHN Publicações, 2001, Vitória.

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favor, aquela mediação e abertura para o punir, que se dirige a todo agir deslocado de uma eficiente subordinação.

Ora, se no conto O abutre, de Kafka, os opostos se diluem a partir da anulação de um de seus pólos, ao passo que o tal abutre promove a violência mais desmedida aniquilando abruptamente a vida de seu pretenso quase assassino - “Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.” 43 -, na experiência histórica brasileira, por outro lado, os opostos se promovem não tão somente a partir da tensão inconciliável como no conto de Kafka, mas sobretudo se afirmam e se encobrem um pela mediação do outro, ao passo que a mediação para o perdurar e promover a vida dos urubus, realiza-se pelo alimentar-se e nutrir-se do putrefato, da vida diluída e dissipada, em decomposição e barbárie, na extensão que tais opostos, a saber, urubu e carniça, superior e inferior, perduram desde certa abertura propiciada pelo favor, sobretudo para a ponta inferior da hierarquia, em direção àquele harmonizar entre o mando e a subordinação, o punir e o agraciar, possíveis desde a abertura para certo modo de inclusão, que aparece em nossa experiência histórica senão como participação no privilégio, promovendo

43 O abutre. Franz Kafka.

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deste modo como que dissimuladamente em harmonia, suas hierarquias compensatórias não sem a mediação do arcaico, o coronelismo, o patriarcalismo, o clientelismo, etc., que indica-nos antes o putrefato infestando e assombrando o que insiste em atender pelo signo de moderno.

De todo, se no conto de Kafka a dinâmica da relação funda-se desde o embate frontal e abrupto, movendo-se a partir na aniquilação do outro pelo seu oposto, a saber, O abutre, em nossa experiência histórica, por outro lado e em certa medida, as relações entre os opostos aparecem-nos como que amanteigadas por mediações que se promovem reciprocamente, a saber, urubus e carniça, superior e inferior, “de cima” e “de baixo”, afirmação e decomposição, inclusão e exclusão, público e privado, barbárie e desenvolvimento, investimentos e parasitismo, perfume e azedume, o laico, o fanatismo e a charlatanice religiosa, protesto e apaziguamento. Todavia, em nossa experiência social e política, o urubu é um tanto mais sorrateiro, ardiloso, manhoso e velhaco do que o violentamente desmedido agir do abutre no conto de Kafka, embora igualmente violento quando as circunstâncias históricas assim o exigem, “gás de pimenta para temperar a ordem...” 44 , nos indicou certa vez Jorge Du Peixe em canção da Nação Zumbi.

44 Propaganda (letra: Jorge Du Peixe, Rodrigo Brandão e Gilmar Bola 8/ Música: Nação Zumbi e Marcos Matias). Nação Zumbi. Trama. 2002. São Paulo/ SP.

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Do caos à criação: do encontro da vida consigo mesma

Ora, para situarmos de todo o sentido de um dos

marcos do Manguebeat, a saber, Da lama ao caos, Chico Science & Nação Zumbi, interessa-nos por agora precisar o sentido de caos, estampado na estética deste álbum de 1994. Neste movimento de tatearmos melhores contornos para o sentido de caos, nos inclinaremos ao diálogo com um artigo do filósofo Emmanuel Carneiro Leão, em que demarca o sentido de caos a partir da cosmovisão grega, este movimento o encontramos em artigo de nome O sentido grego de caos, publicado na Sofia, Revista de filosofia, também em 1994.

De acordo com Carneiro Leão, pensar sobre o sentido de caos indica-nos desde já uma incongruência, um deslocamento, um descompasso, de modo que pensar sobre o sentido de caos indica-nos antes precisar um sentido em relação a algo em que o princípio primeiro trata-se justo da ausência de determinação de sentido (!!!). Segundo Carneiro Leão: “Ninguém nunca consegue pensar sobre o caos, por mais que deseje e se empenhe. (...) Pois só é possível pensar sobre o que tem sentido, nunca sobre o princípio de ordem e articulação da possibilidade de haver sentido.” 45 Ora, neste sentido o caos sobretudo

45 Emmanuel Carneiro Leão. O sentido grego do caos (p. 7 – 13). Sofia – Revista de filosofia – Ano 1 – Número 0 – Outubro de 1994. Departamento de Filosofia – Universidade Federal do Espírito Santo. Gráfica da Ufes - Vitória- ES.

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diz respeito ao vácuo e desordem do qual toda e qualquer ordem ou sentido se realiza, vem a ser, a saber, trata-se do lugar desde o qual irrompem as possibilidades de sentido e determinação, seja no falar, no agir ou no pensar, de modo que na perspectiva do filósofo:

“Na possibilidade de se pensar, de se falar, de se agir, não de certo sobre – o que será sempre impossível - mas a partir do caos. (...) Trata-se da possibilidade que sempre se dá e tem sempre de se dar, para se poder pensar, falar ou agir sobre qualquer coisa que seja. (...) é a impossibilidade de o caos ser alguma coisa e não obstante deixar surgir em e de seu seio toda e qualquer coisa. Sem ele, não se daria nem o real, nem o possível, nem o necessário.” 46

De todo, o caos aparece-nos como aquela mediação por excelência da possibilidade de haver sentido, ordenação, dizer, agir, sobretudo ao passo que o caos não se trata de uma coisa, mas antes a possibilidade de existir qualquer coisa. Nesta direção, o caos aparece-nos como que progenitor de toda e qualquer criação, trata-se do lugar desde o qual toda realidade vem a ser, inaugura-se, mostra-se historicamente, a saber: “Trata-se de uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se origina tudo que é e não é, nela se nutre toda criação

46 Carneiro Leão. Idem.

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em qualquer área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário e ou contingente.” 47

Sobretudo, o caos trata tão somente da mediação de todo criar, determinar, separar, diferenciar ou hierarquizar, ao passo que é a abertura indeterminada de toda determinação e criação. Nesta direção nos indica o filósofo: “... o caos é o poder, em si mesmo, indeterminado e indeterminável, mas determinante de qualquer determinação ou indeterminação. (...) O caos é, ao mesmo tempo (...) criação e aniquilação das realizações.” 48 Ora, não é nesta direção que Hegel nos indica o sentido do movimento do começo do pensar? De acordo com Hegel:

“Quando se começa a pensar, não temos outra coisa que o pensamento em sua carência-de-determinação, pois para a determinação já se requer um e outro. O carente-de-determinação, como temos aqui, é o imediato, (...) a imediatez da carência-de-determinação, a carência-de-determinação prévia a toda determinidade, o carente-de-determinação enquanto o que é o primeiro-de-todos.” 49

A saber, este um e outro indica-nos antes um algo

bem como o seu oposto, que é a sua própria mediação, ao passo e tão somente na medida em que se promove e se realiza por mediação da noção de caos, que segundo Carneiro Leão trata-se do princípio do que é

47 Carneiro Leão. Idem. 48 Carneiro Leão. Idem. 49 F. Hegel – Primeira parte da lógica – A doutrina do ser.

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e do que não é, de um algo e de seu oposto, criação e inércia, ordem e desordem. Ora, não seria o começo do pensar na ótica de Hegel assim como o sentido de caos, partícipes de um mesmo princípio? A saber, o caos aparece-nos como a ausência de qualquer determinação possível, do mesmo modo que para Hegel o começo do pensar configura-se como carente de determinação, ao passo e na medida em que esta carência de determinação e de definição é também o princípio e mediação através do qual toda determinação e definição se faz possível, e é justo neste sentido que nos aponta Carneiro Leão, indicando-nos que todo cindir, separar, diferenciar ou hierarquizar: “Do caos provém, para o caos remete, no caos se mantém e de volta ao caos retorna toda ordem e toda desordem, (...), tudo que está sendo como tudo que não está sendo.” 50

Neste sentido, passando subitamente do caos à criação, da ausência de determinação a determinação, a saber, juntando eletricidade e caos, plugando guitarras, tambores de maracatu e microfones em caixas de som, Chico Science e Nação Zumbi no percalço do Da lama ao caos, promovem e absorvem energia afrociberdélica e vida onde a morte sorrateira e violentamente tenta invadir o espaço da própria vida. De todo, é não se diminuindo ou se calando diante da situação histórica da cidade brasileira que a Nação Zumbi evoca

50 Carneiro Leão. O sentido grego do caos (p. 7 – 13). Sofia – Revista de filosofia – Ano 1 – Número 0 – Outubro de 1994. Departamento de Filosofia – Universidade Federal do Espírito Santo. Gráfica da Ufes - Vitória- ES.

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estilhaços da cultura popular enraizada por nossas terras entrelaçada com os recursos de que a ciência moderna através da tecnologia de áudio dispõe, bem como, antenados estão eles às mutações e maturações da música pop e de suas antenas eternas, que vão do funk ao soul, passando pelo dub, hip hop, até aos martelados baques dos punhos nos tambores. Assim ouvimos na canção A cidade:

“Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu tudo bem envenenado,

bom pra mim e bom pra tu pra gente sair da lama e enfrentar os urubu” 51

Nesta direção, só na criação na esfera da cultura é

que a vida menos vida materialmente, promovendo aquele movimento do caos à criação, inverte em certa extensão a sua situação sócio-econômica, quando na criação dá o salto de passagem de uma vida menos vida para uma vida mais vida. Daí ouvirmos na ação cultural dos pernambucanos uma recusa, com seus riffs e rufadas, à morte que tenta ocupar sorrateiramente o espaço da vida. Neste sentido, nos indica a Nação Zumbi que não é necessário para viver, calar-se e obedecer aos valores culturais fixados

51 A cidade, Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos.

Sony Music. 1994.

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historicamente pelos “de cima”, nestes cinco séculos de exploração extrema do corpo e da terra no Brasil. “Sair da lama e enfrentar os urubu” é o que querem os pernambucanos, a saber, ir de encontro à perspectiva daqueles outros que nos querem como mortos, como alimento putrefato para a sua permanência e enriquecimento fácil no mundo.

Tendo a certeza de que a morte é o fim para onde todos nós vamos, a Nação Zumbi com sua antena parabólica fincada na lama, promovendo aquele movimento que vai do caos à criação, encontra na desordem, na barbárie e no caos que é a cidade em que vivemos, assim como na eletricidade transformada em arte, um dos caminhos possíveis de encontro da vida com a própria vida em tempos de miséria social e cultural. Neste sentido, tendo ainda os urubus o seu alimento putrefato e azedume, entoa Chico Science em seus versos martelados: “Num dia de sol Recife acordou/ Com a mesma fedentina do dia anterior”. O sol continua a nascer todos os dias, e a fedentina dos urubus e da carne putrefata e em decomposição que os alimenta, que se deixou levar vulneravelmente pela morte para que os urubus continuem vivendo, permanece mais viva do que possamos pensar, nosso nariz não nos deixa mentir.

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Orquestra Manguefônica Para nos afastar, de certo modo, da mesmice da

vida provinciana na região da Grande Vitória, decidimos, eu e min’ Áfricagirl, nos lançar para um acontecimento memorável, um instante de infinitude, isso mesmo, nada mais nada menos que a mais bem sucedida aliança do baque solto e do baque virado: Nação Zumbi e Mundo Livre S/A juntos no mesmo palco!! Como assim? Tal aliança atendia pela alcunha de Orquestra Manguefônica. Local: Circo Voador, noite de 2 de abril de 2005, sábado. Objetivo dos mangueboys: em homenagem ao eterno Chico Science, tocar o álbum Da Lama ao Caos praticamente na íntegra e fixarem sua marca indelével na memória de um público sedento por ouvir e ver a aliança mais poderosa surgida nos trópicos na história da música. A abertura ficou por conta de seus conterrâneos Mombojó, jovens rapazes que traziam algo como um flerte da bossa com o groove, contando com a participação, ao final da apresentação, de China do Sheik Tosado.

Enfim, passado o percurso da viagem até a cidade de Jorge Ben e Picassos Falsos, para não nos estendermos muito, embora transbordando ansiedade e voracidade através de ouvidos e olhos, estávamos lá, na espreita do que nenhum relato pode tornar conciso, Orquestra Manguefônica meus caros!!

Subitamente um repentista aparece no palco, é o prenúncio dos mangueboys, com a linguagem sendo

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dosada a golpes de martelo, é anunciada a entrada do groove, do funk, do protesto sujo de lama e vivo, muito vivo, depois de muitos ataques dos urubus e alvo de inúmeros “mísseis desgovernados”. Inicia-se a introdução de Monólogo ao pé do ouvido, Fred 04 de posse de seu cavaquinho assume os vocais, “Modernizar o passado é uma evolução musical, cadê as notas que estavam aqui, não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”, quando braços em punho cerrados se levantam para cantar em coro: “Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi, Antônio Conselheiro, todos os panteras negras, Lampião sua imagem e semelhança, eu tenho certeza eles também cantaram um dia”.

É dado o sinal para que mangueboys tomem seus postos, duas baterias, percussão, três tambores, a pungente guitarra de Lúcio Maia.... Banditismo por uma questão de classe torna-se um cadenciado funk-groove, com o negão Gilmar Bola 8 nos vocais, para só então Jorge Du Peixe assumir Rios, Pontes & Overdrives. Subitamente, Lúcio Maia, do lado direito do palco para o público, solta um fulminante riff irreconhecível de guitarra, a Orquestra acompanha, o mais atencioso ouvinte estranha a levada, quando de repente Jorge Du Peixe entra com a letra de A cidade, como se não bastasse, o groove continua, com Fred 04 sem aviso prévio tomando um dos microfones a cantar trechos de Guns of Brixton do Clash. A cidade tornara-se groove session, Du Peixe retoma os vocais e vai de A message to you Rudy, “Rudy, a message to you, Rudy”, dos Specials (composição de Lee "Scratch" Perry/Lee

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Thompson), em seguida, evoca o Ben com Ponta de lança africano (umbabarauma). A esta altura já estava indicado que as versões de estúdio das canções de Da Lama ao Caos tinham passado por incríveis, maturadas e constantes mutações.

A praieira tornou-se um flutuante e equilibrado ska. Em seguida, Marcos Matias do fundo do palco, imponente com seu tambor em punho, subitamente assume a regência quando o assunto é samba, Samba Makossa, a intensidade vai aumentando na medida em que Pupillo vai acelerando os galopes de sua bateria sob as rédeas do pandeiro de Toca Ogan, até que o groove da Orquestra dá os seus saltos, “Cerebral, é assim que tem que ser, maioral, é assim que é, mão na cabeça e um foguete no pé”, agarra o público um fragmento do samba-groove com as vozes em coro, enquanto chão de Circo Voador é trampolim para a “Ladeira do limiar do gosto pelo infinito, já querendo o depois”, em expressão de Du Peixe. Lúcio, ao final de Makossa, troca de guitarra, o “depois” atende pela alcunha de Da lama ao caos, em sua Tsunami version, é a Cavalaria Manguefônica deixando o seu rastro a golpes de martelo. “Mais uma música nova aê” dizia Du Peixe a cada passagem de uma música para outra.

O arsenal do Mundo Livre não poderia deixar de fazer sua intervenção, começando sua andada com Livre Iniciativa, que deixara sua versão samba-groove de estúdio ao encontro de sua Manguefônica version, em que só no refrão: “Samba esquema noise!!”, é o público que aguardava o estouro do groove, nocauteado pelo conluio entre samba e reggae, com o

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cavaquinho de Zeroquatro marcando o swing da levada. Em seguida, a Orquestra vai de Manguebit com 04 na regência, que no breque evoca London Calling do Clash, com Dengue no baixo chamando pra si a regência martelada da Manguefônica, para só então encerrar a canção com o retorno à enérgica Manguebit.

Na seqüência, o no início sorrateiro e em seguida fulminante Salustiano song, é responsável por poupar as vozes dos mangueboys, abrindo destaque para a harpa Manguefônica de Lúcio Maia, para só então Du Peixe retornar à regência com Antene-se: “Sou, sou, sou, sou, mangueboy! Recife cidade do mangue, onde a lama é a insurreição, onde estão os homens caranguejos,..., procure antenar boas vibrações”. Com antena manguebólica dissipando boas vibrações através das ondas eletroafrociberdélicas sobre o infinito, abre-se espaço para o canto do outro lado do mundo para a amada Risoflora, é o caranguejo de andada deixando o seu rastro solitário: “E em vez de cair em tuas mãos preferia os teus braços, e em meus braços te levarei como uma flor, pra minha maloca na beira do rio, meu amor!”.

Como uma cavalaria que vem ao longe e vai impondo seu ensurdecedor volume e medida ao passo que vai chegando, aparece o Lixo do Mangue, Pupillo e companhia soltam os braços, enquanto Gilmar Bola 8 vem como um lutador de boxe do fundo do palco largando o seu tambor para assumir com voracidade os vocais: “Vamo se embora que o mundo arrudiô, e se eu ficar aqui parado eu não vô, me diz que som é esse que vem de Pernambuco.”

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Mais uma intervenção do Mundo Livre S/A na Orquestra Manguefônica: Pastilhas coloridas, “Como se não houvesse lugar pra nós na Nação Zumbi”, canta Zeroquatro. Em Coco Dub (Afrociberdelia), Black Alien é convidado ao palco, Toca Ogan entra em transe afastando-se dos instrumentos e ocupando o centro das atenções com seus malabarismos corporais, enquanto 04 evoca trechos de Guns of Brixton aos microfones e amplificadores bem ajustados, calibrados.

Embora Maracatu de tiro certeiro tenha ficado de fora dos sons, após passagem de Orquestra Manguefônica diante de olhos e ouvidos famintos, cair em si insistiu em se afastar de ouvidos, olhos ensolarados em noite tranqüila, espírito eletrizado no burburinho que ecoava da multidão, apenas instante de infinito deixando seu rastro por demais crivado em memória, é isso aê!! Longa vida aos caranguejos com cérebro!!!

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Mutantes, Picassos Falsos e Nação Zumbi, fios avessos de um mesmo tecido

“Pois os passos respiram o que a hora faz andar e a vontade empurrando tudo isso pra acordar que provando os sabores e odores dos melhores

momentos não sejam em vão guardados na cabeça os rastros do tempo deixados ali no chão”

Jorge du peixe

Nossa intenção aqui, como nos indica o título, trata-se de estabelecer um fio de continuidade no raio histórico da música pop brasileira, entre Os Mutantes (década de 70), Picassos Falsos (década de 80) e Nação Zumbi (década de 90). Este fio que atravessa a proposta cultural destes três expoentes-marcos da música brasileira torna-se visível ou audível na medida em que compreendemos as influências e referências que nortearam a criação destes trabalhos. A saber, o que ecoa tanto nos trabalhos dos Mutantes, formado em São Paulo, como dos Picassos, nascido no Rio de Janeiro, e da Nação (Pernambuco), consiste justo no vínculo entre modalidades diferenciadas da música popular brasileira, com centelhas de rock, e referências captadas pelas antenas eternas que ecoam da América Central, Brasil, África e música negra, como o dub, o funk, o samba e o soul ou aquele jazzy-groove de um Fela Kuti.

Nos Mutantes, em canções como Não vá se perder por aí e Dois mil e um, é nítida a influência das violas caipiras do interior paulistano, nesta última canção,

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vale lembrar, temos a participação de Tom Zé. Já na canção Top Top, recentemente gravada por Cássia Eller em um registro gravado ao vivo, Os Mutantes mostram a sua face tomada pela agalopante e dissonante guitarra distorcida de Arnaldo Baptista, não sem a companhia de uma vigorosa e rápida bateria, que caminha aos galopes ao som de um teclado sorrateiro.

Os cariocas dos Picassos Falsos, por sua vez, carregam em sua musicalidade influências que vão desde o samba bem humorado de Adoniran Barbosa ou um Ismael Silva, memorado na canção Carne e osso através da canção Se você jurar, até ao funk visceral e dançante de James Brown, lembrado na canção Quadrinhos através da clássica Sex Machine – ambas as canções do Picassos constam no primeiro álbum que leva o nome da banda de 1987-, passando pelo violento groove da Band of Gypsys de Jimi Hendrix, como se ouve na canção Bolero, memorado com riff’s de 3rd Stone From The Sun no incendiário e swingado Supercarioca de 1988.

Pandeiros, violões elétricos, guitarras gritantes e funkeadas, uma refinada e veloz bateria, um sorrateiro baixo e a poesia urbana de Humberto, dão o tom radicalmente único que os Picassos Falsos inauguram. Além disso, cabe ressaltar, que em 2004 os Picassos Falsos retornaram com o lançamento de seu último álbum de inéditas, mas não tão criativo quanto o Supercarioca, de nome Novo Mundo. Neste trabalho, que passa longe do rastro deixado pela banda na década de 80, a banda mostra outras referências que não

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aparecem no primeiro álbum, que leva o nome da banda, nem mesmo no grandioso Supercarioca, que imortalizou os cariocas na história da música pop. Neste último álbum, o visceral Picassos de Supercarioca abriu espaço para canções em que o samba encontra o seu lugar, como na canção Rua do desequilíbrio, ou mesmo experimentações que poderíamos nomear de tecnosamba, como ouvimos na canção Me diga seu nome, do sambista carioca Ismael Silva.

São justo nestas freqüências e referências que conseguimos vislumbrar e demarcar ao nosso modo, o vínculo destas bandas com o trabalho da Nação Zumbi de Chico, que dá continuidade, de maneira inovadora e única, a esta tradição da música pop brasileira, que reúne o velho e o novo. Na Nação Zumbi o que ouvimos em suas criações é a influência não só da música popular pernambucana, através dos tambores de maracatu, acompanhados de guitarras funkeadas ou jazzísticas, como também percebemos a utilização de grande matilha de recursos da nova tecnologia de áudio.

Estilhaços da tradição popular maturada durante séculos e fragmentos de modernidade se encontram tanto nos trabalhos dos pernambucanos da Nação como nos trabalhos dos Mutantes e Picassos Falsos, na medida em que articulam certos elementos regionais, nacionais, ou territoriais, com influências de linguagens globais como o rock, o jazz, psicodelia, dub, funk, soul e samba. É não esquecendo o passado e sintonizado com as transformações tecnológicas que a ciência abriu para o homem, que a Nação Zumbi,

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juntamente com a suja, e por vezes, refinada e dançante guitarra de Lúcio Maia, e a violência e cadência dos punhos dos percussionistas nos tambores, faz nascer o novo.

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Tecnologia & música pop: o novo em experimento

“Música eletrônica figura rítmica

até política na era atômica”

Kraftwerk

Sem dissimular a distância abismal existente entre as transformações tecnológicas ocorridas desde o início do século passado até os dias atuais e o acesso restrito a estas transformações, fechado para grande parte da humanidade no raio deste último século, vale ressaltar o quanto tais transformações afetaram o modo de vida do habitante urbano e a obra de arte moderna ocidental.

Neste sentido, cabe aqui não deixarmos no esquecimento, que aquilo que nomeamos enquanto tecnologia, de certo, que através de suas transformações bruscas, ocorridas principalmente a partir do início do século XIX, imprimiram historicamente novas formas de percepção sensorial. Deste modo, foi através da intermediação da ciência e da técnica que se abriu para o homem a possibilidade da criação da técnica cinematográfica, que se edifica desde o princípio formal do corte de imagens e sons, e assim sendo, faz-se possível desde a reprodução técnica. A percepção sensorial cinematográfica, se aproxima sobretudo, da percepção fragmentária daqueles que transitam na cidade contemporânea, ora

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distraidamente, ora tomados e atravessados por um súbito interesse extraordinário.

Tendo a dimensão de que a arte cinematográfica caminhou rumo ao aperfeiçoamento da utilização das técnicas audiovisuais, foi também por mediação da tecnologia que se abriu para o homem ocidental, principalmente a partir do final do século XX, a possibilidade de alterações abruptas no âmbito das técnicas de áudio. Neste sentido, foi através da ciência e da técnica que se abriram novas perspectivas de criação artística na esfera da música pop de vanguarda, através da utilização de equipamentos de gravação digital.

Tais transformações nas técnicas de áudio, ocorridas nas últimas décadas, tornaram possíveis historicamente, por exemplo, os trabalhos do Kraftwerk (Alemanha) e do Depeche Mode (Londres) nas décadas de 70 e 80 do século passado, respectivamente, ou mesmo de um Lee Scratch Perry, produtor, compositor e engenheiro de som jamaicano, um dos responsáveis por um dos mais bem sucedidos partos prematuros da música pop: o dub. Retomemos a freqüência: De todo, cabe também ressaltar que tais transformações tecnológicas provocaram, em certa medida, a difusão em escala crescente da obra de arte que se edifica desde a reprodução técnica, através do que convém chamar de indústria cultural, de modo que se tornou mais importante a apropriação das transformações tecnológicas na forma artística do que o conteúdo daquilo que é criado junto com a

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intermediação da ciência e da técnica - basta ouvir as FM’s(!!).

Neste sentido, aproximar-se da criação de uma obra de arte “moderna”, significou em certa extensão, apropriar-se das possibilidades que a ciência e a técnica abriram para o homem, sem que se tenha a dimensão de como o envio através da tecnologia poderia estar situado. Dito de outro modo, confunde-se criação com utilização dos recursos que a ciência moderna dispõe. Neste horizonte, a reprodução técnica aparece aí tanto na forma de criação, como na distribuição da obra de arte através da nossa inescrupulosa e dissimulada indústria fonográfica.

Nesta direção, abre-se para o homem a perspectiva ou interesse, de criação na esfera da música através da mediação da ciência e da técnica, uma vez que certos modos de se criar no âmbito da música pop só foram possíveis desde que foram abertas possibilidades de criação a partir do sampler, do corte de gravações em estúdio, e de equipamentos de gravação digital, possíveis a partir da tecnologia de codificação de áudio. É o que lemos no texto que abre o álbum Rádio S. AMB. A, da Nação Zumbi, nomeado Fome e Tecnologia, de Hermano Viana: “A combinação do sampler com o computador e com o equipamento de gravação digital (cada vez mais baratos), facilitou a pirataria entre os estilos do pop e suas simbioses com tradições de todas as culturas”52.

52 Hermano Viana. Fome e tecnologia. In: encarte do álbum RÁDIO S.AMB.A – Serviço ambulante de afrociberdelia. Nação Zumbi. Y Brasil Music?

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Este tema em torno das relações entre ciência e arte, e por extensão, entre homem e ciência, encontramos também em uma canção que aparece no álbum Da lama ao caos. Trata-se da canção Computadores fazem arte, embora seja o texto de Fred Zero Quatro, que a imortalizou no álbum Guentando a ôia. Canta tomado por certa cólera guitarrada Zero Quatro, do Mundo Livre S/A: “Computadores fazem arte/ artistas fazem dinheiro/ computadores avançam/ artistas pegam carona/ cientistas criam o novo, artistas levam a fama”.

Neste sentido, entendemos serem as transformações tecnológicas na esfera das técnicas de áudio, impulsionadoras de transformações na esfera da própria história da música pop, de modo que certas possibilidades de criação somente vieram à tona desde que certas transformações técnicas sobrevieram. Como nos indica Hermano Viana, a abertura de tais transformações técnicas promoveram não só uma intensidade maior da circulação da diversidade cultural e das mais diversas tradições, através do formato MP3 por exemplo, bem como promoveram mutações na própria maneira de lhe dar e de se apropriar das tradições culturais, lançando para esta tensão entre tradição e modernidade certos saltos criativos que se aproximam ao mesmo tempo que se distanciam da tradição, tomemos como exemplo as simbioses da Nação Zumbi que articulam em um mesmo plano a música eletrônica de um Kraftwerk com o canto martelado de um Caju e Castanha, ou mesmo os

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viscerais galopes de tambores de maracatu com guitarras ao modo Hendrix.

A respeito desta posição diante das tradições culturais, que indicam certa filiação histórica, territorial, e que articulam pontos de ligação entre o passado e o presente, ao mesmo tempo em que promovem certa abertura para o novo, nos é de grande importância, a guisa de conclusão, nos lançarmos ao problema levantado por nomes como o sergipano DJ Dolores, que experimenta interseções entre o coco, maracatu e batidas eletrônicas, e que a respeito da bandeira do regionalismo polemiza: “Isso pode ser moeda forte com a globalização, mas sem essa de ‘preservar a cultura popular’. Quem disse que ela quer isso?”53 Neste sentido, a noção de ‘preservar a cultura popular’ não pode ser tomada como uma via de mão única, ao passo que a extensão e continuidade de traços da tradição no percurso da história, passa sobretudo pela noção de que tais tradições precisam ser revigoradas justo através de mutações e maturações, que todavia lançam o novo a experimentos que ao mesmo tempo se lançam ao autêntico e original sem perder de vista certo enraizamento cultural.

53 Cidadão do mundo – DJ Dolores gasta agulha no exterior,

por Diego Muniz. Revista Bizz. Outubro de 2006. Editora Abril.

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Experiência brasileira: entre Tom Zé, Sérgio Buarque

e Aracruz Celulose

“somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”

“O que o português vinha buscar

era, sem dúvida, a riqueza, mas a riqueza que custa ousadia, não a riqueza que custa trabalho”

Sérgio Buarque de Holanda

No raio histórico do que nomeamos experiência brasileira, desde a colonização ibérica em solo americano até os nossos dias, podemos afirmar que a intensificação dos abismos sociais foram promovidos através de um violento trato com a terra e com o corpo humano. É deste modo que a distância abismal entre ricos e pobres se acentua. Neste sentido, mesmo estando diante de tempos modernos, no Brasil forças arcaicas ainda perduram e permanecem com todo o seu vigor, maturados nestes cinco séculos de exploração extrema do ser humano e da natureza.

Ora, mas que significa esta proximidade entre o arcaico e o moderno? Tomemos como exemplo a transmigração da Assembléia Legislativa no ES, saindo de Cidade Alta para em frente ao shooping em Vitória. Embora esteja posicionada eficazmente sob nova carapaça, com os dourados da mais moderna arquitetura de vidro, bem como, sistema de segurança e vigilância serenos e eficazes, signos de um certo

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vinculo à uma demarcação temporal que atende pela alcunha de modernidade, por outro lado, em negação a este mesmo vínculo com o “moderno”, as práticas políticas que ocorrem através dessa mesma arquitetura de vidro, nos remetem a um Brasil arcaico, marcado por traços que evocam o “coronelismo”, através do conluio ou reciprocidade de nossas elites econômicas e seus representantes políticos por mediação de favores, privilégios, etc.

O interessante notar é o caráter de ambigüidade que marcou e continua a marcar o modo próprio de exploração de nossas elites, seja no trato com a natureza, de onde se extrai o máximo de riquezas sem nada retribuir, seja no trato de nossas elites com o ser humano exterior a ela, tratado de modo violento e desumano, e por extensão, tendo a sua vida, através do trabalho, sendo ocupada paulatinamente pela morte, basta lembrarmos das mais recentes denúncias de trabalho escravo no Brasil. Ou seja, é por mediação da morte que ocupa o espaço da vida, através da exploração extrema promovida pelo trabalho, e da morte no sentido estrito do termo, que nossas elites escondidas atrás da face do desenvolvimento e do progresso, promovem a ferro e fogo a alteração arbitrária do ciclo próprio à natureza, edificando assim as suas riquezas materiais de maneira crescente e ilimitada.

Uma canção de Tom Zé pode abrir caminhos para que possamos tomar a dimensão do caráter de ambigüidade próprio à ação política de nossas elites no raio histórico destes últimos cinco séculos, a saber, essa herança histórica de ambigüidade é evidenciada na

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canção Glória. Canta Tom Zé tomado por certo estado de humor e ironia:

“Como um grande chefe de família Ele soube sempre encaminhar Seus filhos para a glória

Glória eterna Mas aguardando o dia do juízo Por segurança foi-lhes ensinando

A juntar muito dólar Dólar, dólar na terra”

Desde a colonização ibérica no Brasil, essa lógica colonizadora fundada na ambigüidade, que reúne em uma unidade o que nos parece estar disposto desde uma oposição, a saber, “glória eterna” vinculada à acumulação de “muito dólar... na terra”, é de certo um dos traços eficazmente fixados no modo próprio de exploração de nossas elites até os dias de hoje. Na prática política de nossas elites o que se tornou evidente, sobretudo no período de colonização, trata-se do vínculo estreito e íntimo entre a devoção cristã e a sedutora ambição pela ostentação de riquezas, tal qual denuncia Tom Zé. Lógica esta fundada em um certo modo de dissimulação, e sobretudo responsável historicamente pelo trato violento junto às comunidades indígenas e negras, bem como junto à terra e aos recursos naturais do solo brasileiro.

Neste sentido, Tom Zé identifica no emblema “do grande chefe de família”, a dinâmica do modo de vida que enraizado na tradição e na autoridade do passado, busca através da dissimulação ou

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encobrimento, a pretensa “glória eterna” não desvinculada da acumulação desenfreada de recursos materiais em solo terrestre. Ora, mas em que consiste esta “glória eterna”? Tornar algo digno de eternidade - se é que exista algo que não pereça - significa, antes de tudo, fazer com que determinado valor cultural esteja para além de um indivíduo temporalmente e constitua-se, por extensão, enquanto o significado do elo de ligação, da herança entre pai e filho e consequentemente como fio de continuidade, ao menos provisório historicamente, entre as gerações. E o que permanece enquanto fio de continuidade necessário para a efetivação dos interesses políticos, econômicos e culturais europeus, quando do período de colonização ibérica no continente americano, consiste justamente na exploração extremada do homem e da terra.

Ora, ainda percorrendo a interpretação da canção Glória em seu vínculo com nossa experiência histórica, Tom Zé realiza uma inversão do que na tradição do pensamento cristão está dis-posto desde uma tensão inconciliável entre opostos, a saber, “glória eterna” versus acumulação de “muito dólar na terra”. Deste modo, na experiência brasileira estes opostos aparecem desde uma ausência de tensão ou proximidade. Ora, mas o que permite esta passagem do dis-posto desde uma tensão entre opostos, para o inverso disso, a saber, para o ex-posto desde uma ausência de tensão ou cumplicidade entre campos opostos?

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Em nossa perspectiva, é a dissimulação que opera esta passagem do dis-posto desde uma oposição inconciliável para o ex-posto desde uma proximidade ou cumplicidade entre opostos. Vejamos este trecho da canção de Tom Zé para melhor situarmos a dissimulação como aquilo que opera a proximidade entre opostos:

“Ensinou-lhes bem cedo que a honra

Todos devem cultivar Entretanto, ao tomar decisões Ela nunca deve atrapalhar Mostrou que as boas razões A causa justa e que é nobre Convive com milhões E tudo isso ensinou Com poucas palavras E muitas ações”

Daí compreendermos que dissimulação opera a cumplicidade entre opostos, a saber, devoção cristã e a possibilidade de acumulação de riquezas materiais, uma vez que no ensinamento do “grande chefe de família”, a “honra que todos devem cultivar” precisa por sua vez ser encoberta, disfarçada, dissimulada, quando o assunto é a vida prática, pois esta mesma “honra”, na realização das ações e tomadas de decisões mais dignas, como ouvimos na canção de Tom Zé, “nunca deve atrapalhar”. Ora, aquilo que “nunca deve atrapalhar”, em nossa experiência

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histórica, trata-se do que deve ser encoberto 54, mesmo que o que tenha de ser encoberto seja o outro, como bem nos mostrou Enrique Dussel.

A partir daí podemos compreender a exploração extremada do homem negro e indígena, e sobretudo da terra no âmbito do solo terrestre americano, como o alvo de um projeto colonizador em que “tudo tende, como notou Gilberto Freyre, para o extremo. Na produção, a monocultura; no trabalho; a escravidão; na propriedade da terra o latifúndio; na relação com a metrópole, o monopólio, nos vínculos sociais, o mandonismo; na família, o patriarcalismo autoritário” 55.

Ora, a indicação da dignidade hierárquica do “grande chefe de família” na canção de Tom Zé, remete-se, por seu turno, a um dos traços mais enraizados em nossa cultura: o patriarcalismo. Justamente este aspecto de nossa cultura é que não nos permite falar, no Brasil, de uma nítida distinção entre o público e o privado. Estas esferas em nossa experiência histórica, antes de estarem dispostas desde uma separação ou distinção, acabam por confundir-se, entrelaçar-se.

54 Ora, encobrimento, simulação, dissimulação é também o

que opera a cumplicidade entre esferas opostas que aparecem no cinema-templo de Rubem Fonseca, que abriga em um mesmo local na cidade do Rio de Janeiro, para clientela e horários distintos, um cinema pornográfico e um templo salvador das almas.

55 Bajonas Brito, Os Sertões e a fundamentação do pensamento crítico brasileiro do século XX, p. 32.

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Uma certa charge pode bem explicar o que estamos querendo demarcar: um homem, ao chegar no gabinete de um deputado, se depara com um quadro de anotações. Neste quadro estão escritos as seguintes expressões: “eu, filho, filha, esposa, irmão, tio, nora, irmã, primo, sogro, sobrinho e cunhado”. Tomado de espanto e curiosidade pergunta o homem ao deputado: “Isto é uma espécie de árvore genealógica?”, ao que o deputado responde: “Não, é o organograma de meu gabinete”.

Ora, como bem o sabemos é neste sentido que a estrutura familiar em nossa experiência histórica invade a esfera da coisa pública, pois a relação entre pessoas fundada em laços afetivos e graus de parentesco ou proximidade, tem mais elevada dignidade hierárquica do que as relações sociais fundadas em idéias, objetivos ou méritos. É nesta direção que nos indica Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil, mais precisamente ao seu capítulo 3 de nome Herança Rural:

“O quadro familiar torna-se, assim, tão

poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar a nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, (...), o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família

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colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família.” 56

No trato com a terra, desde a colonização ibérica até nossos dias, a relação fundamental não se efetivou baseada no zelo e no cuidado, modo de relação com a natureza que compreende os recursos naturais não como inesgotáveis, mas sim como algo que deve ser utilizado, porém, preservado em sua essência para que as futuras gerações também possam desfrutar. Antes, como nos aponta Sérgio Buarque, “Essa exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono.” 57 Este “desleixo” com os recursos naturais fundou-se sobretudo no interesse de “extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios” 58. Nesta direção, em relação à forma de tal “desleixo” com a terra, realizou-se através da lavoura de tipo predatório, fundada que é na utilização de queimadas. Acerca deste modo de utilização da terra nos aponta Sérgio Buarque:

56 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Herança Rural, p.

82. III Edição, 1955. 57 Idem, Trabalho e aventura, p. 43. 58 Idem, p. 52.

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“Além de prejudicar a fertilidade do solo, as queimadas, destruindo facilmente grandes áreas de vegetação natural, trariam outras desvantagens, como a de retirar aos pássaros a possibilidade de construírem seus ninhos. ‘E o desaparecimento dos pássaros acarreta o desaparecimento de um importante fator de extermínio de pragas de toda espécie. O fato é que, nas diversas regiões onde houve grande destruição de florestas, a broca invade as plantações de mate e penetra até à medula nos troncos e galhos, condenando os arbustos a morte certa. As próprias lagartas multiplicam-se consideravelmente com a diminuição das matas’.” 59

Neste mesmo horizonte de uso da terra, de modo

violento e predatório, está a atuação da empresa Aracruz Celulose no ES. Quando o complexo Aracruz, tendo como perspectiva a monocultura voltada para a exportação, desvia sem amparo jurídico vários córregos no intuito de atender a alta demanda de água necessária ao crescimento do eucalipto, não sem a utilização de agrotóxicos e herbicidas que diminuem o tempo de corte do eucalipto, reduzindo e alterando deste modo o fluxo natural de peixes e animais na região, de maneira a criar sérios desequilíbrios ecológicos, bem como quando desapropriam de forma violenta as comunidades indígenas e negras de suas terras, as tirando os meios de subsistência, e lançando-

59 Idem, Nota ao capítulo 2 – Persistência da lavoura de tipo predatório,

p. 68.

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as para os subúrbios urbanos onde a necessidade por dinheiro é mais imediata, logo os portadores da vontade de verdade de tais práticas políticas que têm como mediação a ciência e a técnica, enunciam e sobretudo justificam tal maneira violenta de tratar a natureza, enquanto depositária daquilo que é necessário ao desenvolvimento social e econômico do ES.

É neste sentido que podemos encontrar a caráter de ambigüidade e dissimulação comum à prática política de nossas elites. Na propaganda da Aracruz Celulose lemos: “Cultivando juntos a riqueza da nossa terra”, no entanto, a riqueza acumulada pela maior exportadora de poupa de celulose do mundo, nunca foi em nenhum momento dividida junto às comunidades próximas das regiões onde o deserto verde se ergue. Pelo contrário, é por mediação da miséria e morte das comunidades locais, indígenas, negras e pesqueiras, que a opulência do grupo privado Aracruz se constrói.

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O homem que comia diamantes: a fantasmagoria do arcaico sobre o moderno

“... uma certa defasagem cronológica na importação de conceitos

e doutrinas pela elite intelectual brasileira poderia explicar por que certas idéias,

mesmo as mais poderosas ou prometéicas, dão a impressão de se encontrar um pouco fora

de seu lugar ou deslocadas em seu tempo de realização efetiva.”

Paulo Roberto de Almeida

A perspectiva aqui trata-se de nos lançamos ao risco do pensar pelos trópicos distante daquele viver “parasitáriamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa” 60 em expressão de Euclides da Cunha. Por nossas terras, interessa-nos aqui demarcar que o que atende pela alcunha de moderno ou pós-moderno, ainda não se dissipou de todo da fantasmagoria do arcaico.

Para nos situarmos melhor acerca do problema da extensão por nossas terras do signo do moderno ou pós-moderno, iremos não sem desvios ao encontro da alegoria indicada ao nome deste breve artigo. A encontramos na literatura, que se fez mais pensamento em nossas terras que filosofia, tratada em certo tom de ironia, por exemplo, por nomes como Rubem Fonseca.

60 Os sertões, Euclides da Cunha, Nota preliminar, 23ª. Edição, Rio de Janeiro 1954.

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Não sem propósito a filosofia, em sua origem européia, no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro é tratada em um tom de ironia. Na medida em que filosofia e pensamento no Brasil, em nosso raio histórico têm sido tomados por aquele fascínio “à frase rara, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara” 61 , como nos afirma Sérgio Buarque em Raízes do Brasil. É o pensamento como adorno, como a pena de pavão, deslocada de seu habitual lugar.

Em trabalho de nome Estética e Extética – Crítica Literária e Pensamento no Brasil, Bajonas Brito nos indica que uma vez “Feita desde o início supérflua, à filosofia restou apenas associar-se as lides do adorno.”62 É neste sentido que se inscreve o tom de ironia que Rubem Fonseca atribui à filosofia no Brasil:

“Augusto está sentado num banco, ao lado de um homem que usa um relógio digital japonês num dos pulsos e uma pulseira terapêutica de metal no outro. Aos pés do homem está deitado um cão grande, a quem o homem dirige as suas palavras, com gestos comedidos, parecendo um professor de filosofia a dialogar com seus alunos numa sala de aula...” 63

Nesta direção, literatura e pensamento no Brasil podem nos abrir valiosos caminhos para uma

61 Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, p. 83. 62 Bajonas Brito, Estética e extética: Crítica literária e pensamento no

Brasil (não – publicado). 63 Rubem Fonseca, A arte de andar nas ruas do Rio de

Janeiro; Contos Reunidos, p. 605 e 606.

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interpretação acerca de nossa experiência histórica. A alegoria a que estávamos nos referindo anteriormente, a encontramos em outra obra de Rubem Fonseca de nome Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, um homem que para viver tem a necessidade orgânica de comer diamantes, isso mesmo, comer diamantes, estamos nos referindo ao emblemático Alcobaça, líder do grupo de contrabandistas de pedras preciosas, emblema que nos afeta por mediação de espanto e curiosidade na medida em que se trata de uma anedota, um delírio, ou antes mesmo um devaneio, pensarmos em um homem que come diamantes para manter-se vivo!!!!.

O aparecimento do homem que comia diamantes é também o aparecimento do pensamento como delírio, isto é, do pensar que ganha seus contornos e precisão por mediação do devaneio, e que ganha lugar e forma no romance de Rubem Fonseca. Assim lemos na enunciação de Alcobaça acerca de sua irrefreável necessidade de consumir diamantes, quando da oportunidade em que o narrador anônimo é seqüestrado pelos contrabandistas que acompanham Alcobaça à procura das pedras preciosas que estavam no “embrulho de papel pardo” levado por aquela mulher que subitamente aparece ao início do romance como sendo perseguida:

“Alcobaça sentou-se na poltrona, de olhos

fechados. Estava mais pálido do que nunca. Ficou uns dois minutos com ar de morto. Depois disse: “Sou dominado por uma estranha patologia, uma ruptura da harmonia interna do meu corpo, de

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etiologia desconhecida”. Uma pausa. “Minha vida daria um filme.” 64

Ora, não é esta “estranha patologia” que afeta

nossas elites desde a colonização ibérica até o nosso raio histórico no seu trato com a natureza? Este trecho do romance de Rubem Fonseca mesmo tratando do Brasil contemporâneo, remete-se, desde a ótica de Alcobaça, ao modo de exploração da natureza comum ao Brasil arcaico, colonial, natureza de onde se extrai o máximo de riquezas sem nada retribuir, fundado historicamente no uso do fogo sob extensão do monocultivo para exportação... Daí não podermos pensar no emblema de Alcobaça como algo desvinculado de nossa mais arcaica experiência histórica, uma vez que um dos traços do modo de exploração de nossas elites em seu trato com a natureza no raio destes cinco séculos, trata-se justamente da extração das riquezas materiais de forma extremada, predatória e sem limites.

Isto é, o aparecimento do homem que comia diamantes no romance de Rubem Fonseca deve ser tomado como o ponto de acordo e cumplicidade entre o arcaico e o moderno em nosso raio histórico, daí que o emprego do conceito de modernidade comum à experiência européia, ser algo, de certo modo,

64 Rubem Fonseca, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Círculo do Livro S. A. São Paulo.

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incongruente e ambíguo quando transportado de modo mecânico para a experiência brasileira. Nesta direção, o arcaico e o moderno convivem desde certa proximidade, a saber, desde certo conluio fundado em uma ausência de tensão entre esferas que a princípio nos parecem opostas.

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Neoliberalismo e a negação do agir ético

“Tudo dava errado: papéis não foram encontrados nos arquivos; uma importante concorrência foi perdida por diferença mínima;

um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cálculos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime

de urgência. À noite, mesmo com os tranqüilizantes, mal consegui dormir”

Rubem Fonseca

O que se pretende aqui trata-se de uma tentativa de reflexão em relação a alguns valores culturais e políticos referenciados na visão do neoliberalismo. Ora, para nos envolvermos com esta questão, precede-nos aquele movimento de demarcar o que nomeamos como neoliberalismo, e em seguida, pensar desde o seguinte problema: é possível um agir ético referenciado na perspectiva neoliberal?

O que hoje entendemos por neoliberalismo tem sua origem no período posterior à II guerra mundial. Tal perspectiva de compreender e realizar a organização da sociedade como um todo, ganha seus desdobramentos práticos no contexto mundial enquanto uma re-ação teórica e política ao Estado de bem-estar social, em que o Estado intervém na economia de maneira a criar compensações sociais dentro do próprio capitalismo. O neoliberalismo surge também com o interesse e a pré-ocupação, sobretudo, em criar uma linha divisória mais nítida no contexto geopolítico mundial, entre o capitalismo em sua nova face, e o socialismo burocrático do leste europeu.

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O ensaio teórico que inaugura a tradição neoliberal demarcando seus princípios, fora escrito em 1944 por Frederico Hayek, ensaio de nome O Caminho da Servidão. Segundo Perry Anderson “trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política.” 65Ora, mas a que liberdade política e econômica o neoliberalismo está se referindo? Ou antes mesmo, se na esfera da economia a intervenção do Estado é tida como contrária à visão neoliberal de liberdade, como compreender a intervenção violenta, de maneira crescente, do Estado moderno à autodeterminação dos povos e junto aos movimentos sociais? É necessário, todavia, para nos encontrarmos com as questões propostas, situar o abismo entre a visão de liberdade referenciada no neoliberalismo, e a visão de liberdade a partir de um possível agir ético.

O neoliberalismo em sua extensão, dito em outros termos, em seus desdobramentos práticos no percurso de nossa experiência histórica, orienta-se a partir de certos princípios indispensáveis à sua continuidade e prevalência, dos quais interessa-nos aqui demarcar alguns: o corte crescente de investimentos em políticas sociais; a apropriação da ciência e da técnica no campo da divisão do trabalho de maneira a criar um crescente desemprego, necessário por sua vez à precarização e à desvalorização do trabalho como forma de des-

65 Neoliberalismo: Origem e conseqüências, p. 1.

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construir o poder de atuação dos sindicatos; “redução drástica de impostos sobre altos rendimentos” 66 ; e sobretudo a ambígua noção da mínima intervenção do Estado em relação à circulação de mercadorias e capitais, como suposto meio de garantir certa dimensão da liberdade da coletividade humana. O curioso a se notar, é que tais princípios estão voltados segundo o discurso neoliberal, para o suposto desenvolvimento econômico e social e para o exercício pleno da democracia da coletividade.

Nesta direção, a concepção de liberdade que se ergue desde a ótica neoliberal, transforma o ser humano no seu exercício mais elevado de liberdade em um mero consumidor ou eleitor, pois a liberdade à qual o neoliberalismo está se referindo consiste antes de tudo na liberdade de compra, ou seja, na liberdade do consumidor comprar este ou aquele produto. Poderíamos dizer também que no neoliberalismo o ser humano não-consumidor, privado dos direitos fundamentais à vida como moradia, vestimenta e alimentação, consiste naquela modalidade de vida que por não deter algum poder de compra ainda assim resta-lhe a liberdade de morrer, pois não interfere no mundo dos negócios, na medida em que não altera o fluxo e a movimentação de mercadorias e capitais.

Deste modo, o conjunto de transformações no mundo moderno às quais o universo neoliberal vai ao encontro, fixam-se justo por mediação de alterações radicais nas condições históricas de sociabilidade, na

66 Idem, p. 5.

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medida em que alguns dos traços dessa sociabilidade no mundo moderno assentam-se por mediação da ausência de laços sociais e culturais que tenham outra mediação senão a competição ou a mercadoria. Nesta perspectiva, o dinheiro ou o que a sua extensão alcança, capaz de mover paixões, ódios e ressentimentos, bem como, a necessidade da busca desenfreada e bizarra por uma ocupação remunerada, aparecem como radicalmente fixadas na mediação das relações sociais e políticas na nova concepção de capitalismo. Ora, isto resulta no fato de que o homem urbano só se encontra em meio à multidão desde o momento em que é também um consumidor, é por entre as mercadorias que o habitante urbano estabelece vínculos aparentes e fragmentários com os demais passantes do solo urbano. Como nos indica o ensaísta alemão Walter Benjamin, na cidade moderna ocidental seus habitantes quase não se vêem em outra condição histórica senão enquanto “devedores e credores,... vendedores e clientes,... patrões e empregados – sobretudo... se conheciam entre si como concorrentes”. 67

Nesta perspectiva, a relação entre mercado e sociabilidade, mercado e sociedade, mercado e realidade, fixa-se desde a noção de mercado como entidade autônoma, que encontra na fabricação de necessidades para a humanidade que não são requeridas por ela mesma, a sua força vital. O mercado

67 In: Walter Benjamin, Organização: Flávio R. Koethe; Coordenador: Florestan Fernandes; Editora Ática S.A, São Paulo, 1991 – p. 68.

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é o horizonte através do qual a realidade e as necessidades devem se curvar, e não o inverso. Em nossa experiência histórica, o mercado sobrepõe-se à realidade, isto é, sobrepõe-se às necessidades reais da humanidade, ofuscando deste modo, a possibilidade das necessidades reais da comunidade humana determinarem o mercado, ao passo que tais necessidades são postas de lado na mesma medida em que o mapeamento das necessidades lançadas à mercadoria, são justo necessidades estranhas ao ser humano. Assim nos indica o cenário de traços do mundo contemporâneo demarcados no texto da canção Propaganda da Nação Zumbi:

“Necessidades adquiridas na sessão da tarde... comprando o que parece ser, procurando o que parece ser

o melhor pra você proteja-se do que você vai querer... o poder ainda viciando cofres,

revirando bolsos, rendendo paraísos nada artificiais, agitando a feira das vontades,

e lançando bombas de efeito imoral, gás de pimenta para temperar a ordem...” 68

Neste sentido, a fome por mais mercado, a fome pela criação de necessidades estranhas à comunidade mesma, aparece-nos como um dos princípios da prática neoliberal solidamente crivado em nossa

68 Propaganda (letra: Jorge Du Peixe, Rodrigo Brandão e Gilmar

Bola 8/ Música: Nação Zumbi e Marcos Matias).

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experiência histórica, ao passo que os problemas da realidade, isto é, as necessidades reais da humanidade, são lançadas ao esquecimento na mesma medida que ao mercado não cabe este mapeamento das necessidades reais da humanidade, os desequilíbrios ecológicos, sociais, etc. Daí este sistema que se realiza desde uma irracionalidade, rotular a resistência à absolutização do mercado como irracional.

Nesta direção, afirma-se a autonomia do mercado, para o qual não devem ser movidas intervenções, por outro lado, ao negar esta intervenção no mercado, não está se deixando a possibilidade sempre presente de intervenção neste mesmo mercado, que como apregoam os neoliberais, deve estar livre das intervenções reguladoras do Estado. É justo aí que reside o paradoxo desta política anti-intervencionista, que também se configura como anti-social e arbitrária, e sobretudo, fundada em uma política de Estado policialesca, não hesitando em liberar sua força oficial, material e humana, como mediação para o sobrepor-se diante de insatisfações públicas, tecidas através da sociedade civil. Para o banquete das indiferenças, “gás de pimenta para temperar a ordem”, como ouvimos na canção Propaganda da Nação Zumbi.

Ora, se por um lado o neoliberalismo propõe e efetiva a mínima intervenção do Estado na economia enquanto signo de uma suposta liberdade, por outro, na esfera policial e militar, o Estado neoliberal leva ao extremo a violação à autodeterminação dos povos, bem como age com radical violência no trato com os movimentos sociais. “Pior ainda: as polícias políticas

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começaram a agir com muito mais arrogância e desenvoltura contra os movimentos sociais e populares” 69, como nos indica José Arbex.

Neste sentido, interessa-nos aqui demarcar o vínculo entre violência política de Estado, negação do outro e a pretensa autonomia do mercado. Tal conluio que se ergue na medida da relação do poderio econômico com a militarização das relações políticas e sociais, aparece no mundo contemporâneo como poder absoluto, contra o qual nenhum outro poder de resistência tem legitimidade. A afirmação e continuidade deste conluio entre as dimensões econômicas, políticas e militares tem em sua extensão a apropriação arbitrária do desenvolvimento técnico e científico, que em sua dimensão planetária encontra na liberação das armas atômicas a sua principal ameaça diante de toda e qualquer forma de resistência aos ditames do mercado, tido como entidade autônoma e absoluta.

Tal ameaça por mediação do armamentismo indiscriminado, bem como, do intervencionismo militar internacional, a qualquer resistência em relação aos ditames da entidade autônoma mercado, funda-se não em uma racionalidade, mas, sobretudo, em seu oposto, ao passo que o agir do Estado absoluto em seu conluio com a energia das armas atômicas e forças militares funda-se, em sua própria dinâmica, em uma irracionalidade e na arbitrariedade.

69 O Reichstag de Bush, Revista Caros Amigos, número 55, outubro

de 2001, p. 10.

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Neste sentido, ao passo que na perspectiva neoliberal o mercado é visto como totalizante, sem limitações geográficas ou políticas, a afirmação de sua própria dinâmica passa pela negação de que este sistema possa sucumbir toda a humanidade em ruínas, do mesmo modo que diante das crises econômicas recorre-se ao apelo de que tais crises apenas requerem mais mercado como alternativa. Em outra direção, este apelo por mais mercado, leva a cabo a perspectiva da inesgotabilidade da exploração dos recursos naturais. Deste modo, a extensão e continuidade do mercado, e bem como, os seus inevitáveis ciclos de crise, não são vistos como indicação de que as necessidades abstratas do mercado não podem se fixar como o único horizonte das necessidades da humanidade, em outra direção, tais crises consistem naqueles momentos em que a própria dinâmica de não intervencionismo é negada.

Se por um lado, a dinâmica de não intervencionismo do Estado na economia é a máxima que acompanha o falacioso discurso neoliberal, por outro, este mesmo Estado não abre mão de intervir quando o assunto é o risco da continuidade dos privilégios de certos segmentos da sociedade. A política de não intervencionismo o é justo o não intervencionismo sistemático, ao passo que torna-se intervencionismo circunstancial.

Ora, se esta intervenção do Estado no mercado totalitário aparece-nos agora como circunstancial, sua continuidade e permanência passa tão somente pela militarização das relações políticas e sociais. Nesta

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direção, toda e qualquer resistência a esta redução da dimensão das relações sociais e culturais à esfera do mercado, precisa, pela sua própria irracionalidade do ponto de vista neoliberal, ser demonizada. A demonização dos movimentos sociais passa justo pela criminalização da resistência, que encontra no estereótipo imposto pela publicização da satanização dos movimentos sociais, a sua maior eficácia. Ora, aquilo que é demonizado, precisa ser eliminado, é justo aí que se ergue o terrorismo de Estado, que se volta contra toda e qualquer possibilidade de utopia contrária à absolutização do mercado.

Nesta direção, é através do pretenso discurso de combate ao terrorismo que Bush e Tony Blair, por exemplo, tem lançado à ordem do legítimo as intervenções militares no Afeganistão, Iraque, Colômbia e recentemente no Haiti 70. Este pretenso discurso de combate ao terrorismo tem por interesse, sobretudo, dissimular e deixar “na sombra o vínculo que prende necessariamente violência mundial e economia política mundial” 71 , como nos indica Marilena Chauí em seu ensaio Ética, Política e Violência.

O neoliberalismo trata-se portanto de uma negação extremada de um possível agir ético, ou em

70 No caso do Haiti, cabe ressaltar, o governo brasileiro com o

interesse em assumir uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, enviou tropas do exército para aquele país, atendendo às exigências da ONU e violando assim os princípios de soberania nacional e autodeterminação dos povos.

71 Ética, Política e Violência, in: Ensaios sobre violência. Organização de Thimoteo Camacho, Edufes, 2003, p. 45.

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outros termos, a perspectiva neoliberal consiste em um aniquilamento dos “campos de abertura e realização coletiva do possível no tempo” 72. Ora, mas o que significa este agir ético? Em perspectiva de Marilena Chauí, “A ação ética só é virtuosa se for livre, e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando ou a uma pressão externos. (...) é autônomo aquele que é capaz de dar a si mesmo as regras e normas de sua ação” 73. De certo que, ao nos determos com a reflexão devida em relação à demarcação de contornos mais precisos a este agir ético, identificamos o paradoxo que media a relação entre aquele agir ético fundado na autonomia e sua relação com os valores morais da coletividade, que só pode ser pensado a partir da dimensão da alteridade e da liberdade do outro. Em perspectiva de Giovanni Semeraro em seu artigo Da sociedade de massas à sociedade civil: a concepção de subjetividade em Gramsci, encontramos um precisar melhor a noção e a relação de autonomia entre os diferentes:

“O percurso, neste sentido, vai do ser privado

ao ser social. O indivíduo, aqui, sem deixar de ser centro autônomo de decisões, consciência livre e ativa, nunca é entendido como ser isolado e "mônada" auto-suficiente em si mesma, mas é sempre visto como um sujeito... com outros (...), com os quais se defronta e constrói

72 Idem, p. 43. 73 Idem, p. 40.

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consensualmente a vida em sociedade. Neste sentido, a concepção de liberdade, para Gramsci, adquire uma conotação positiva, de expansão social, não de diminuição e de limitação: a liberdade individual não termina onde começa a dos outros, mas se desenvolve ainda mais quando se encontra com a dos outros”. 74

Deste modo, a noção de autonomia à qual se referem Marilena Chauí e Giovanni Semeraro, encontra na perspectiva neoliberal a sua antípoda, ao passo que a mediação por excelência das relações políticas e sociais no mundo contemporâneo passa não pelo encontro das consciências autônomas fundado na liberdade, mas em outra direção, aos pares da comunidade humana inscrita no raio histórico da sociedade moderna, a mediação passa tão somente pelo fascínio da mercadoria, quando a pensamos como necessidade estranha à comunidade humana, bem como, quando a pensamos na dimensão do valor do trabalho no mundo moderno, que aparece para nós também como mercadoria.

Neste sentido, a mercadoria, seja na face do trabalho ou na face do produto que se lança ao mercado como necessidade abstrata e estranha à coletividade, converge para si o horizonte imediato das

74 Da sociedade de massas à sociedade civil: a concepção de subjetividade em Gramsci. Giovanni Semeraro. Texto apresentado no Congresso Internacional: "Antonio Gramsci: da un secolo all'altro", organizado pela International Gramsci Society, no Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, Nápoles, 16-18 out. 1997.

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relações sociais e culturais em nossa experiência histórica, ofuscando deste modo a dimensão do agir ético fundado na autonomia.

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Do conluio entre política, dissimulação e violência

“(...); é o que Maquiavel fez ver com evidência. Fingindo dar lições

aos reis, deu-as, grandes, aos povos”.75 Rousseau

Para nos encontrarmos com os temas lançados ao

título deste breve artigo, iremos percorrer indícios de interseção entre estes temas a partir da obra de Nicolau Maquiavel, sobretudo com a perspectiva de demarcar alguns traços de seu pensamento político a partir da obra O Príncipe. Neste sentido, em um primeiro momento nos cabe ressaltar que o contexto histórico no qual se inscreve o surgimento da obra de Maquiavel em questão, trata-se de uma Itália radicalmente fragmentada politicamente, onde pipocam constantes conflitos por disputa de território, o que torna o espaço da península bastante vulnerável às empreitadas militares estrangeiras.

O fato de ter inscrito a sua marca indelével na história do pensamento político moderno, não pode nos levar a pensar que Maquiavel tenha sido um pensador surgido do ventre da academia européia, muito pelo contrário. Se Maquiavel, mesmo depois de pouco mais de 400 anos desde a publicação de O príncipe, ainda não foi lançado ao esquecimento, isto se deve, dentre outras questões, ao fato de ter sido

75 Rousseau. Do contrato social III. Capítulo VI - Da monarquia.

Página 89. Coleção Os Pensadores. Nova cultural. São Paulo. 1991

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Maquiavel também um homem de intensa atuação política, seja na esfera diplomática ou militar, principalmente nos domínios de Florença, onde em 1505, insatisfeito com a atuação das milícias daquele território, passou a recrutar soldados para uma nova milícia, pautada em outros princípios que não os meramente mercenários. Acerca desta questão, isto é, dos riscos de uma milícia meramente mercenária e circunstancial na segurança de um príncipe, nos aponta Maquiavel: “Por experiência, notamos que somente os príncipes e os exércitos republicanos protagonizam grandes feitos e que as milícias mercenárias só fazem provocar prejuízos.”76

No percurso da obra O príncipe, dedicada ao Magnífico Lourenço de Médice - “... desejoso de apresentar-me à Vossa Magnificência com alguma prova de minha submissão...” 77 -, o que lemos é o interesse de Maquiavel em apontar como um príncipe agir para conquistar o poder de um determinado território, expandir seus territórios, e sobretudo como manter estável e seguro o poder político do príncipe diante de levantes, rebeliões ou revoluções que tenham o interesse de colocar em risco tal domínio.

Nesta perspectiva, procurando situar o pensamento político de Maquiavel no contexto da história da filosofia política ocidental, poderíamos aqui indicar que encontramos um bom número de pensadores filiando-se àquela tradição do pensamento

76 O príncipe, p. 70 77 Idem, p. 3

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político que tem um certo interesse em pensar a política como ela deveria ser mas ainda não é. Platão finca na história da filosofia a sua ideal “República”. Rousseau imagina uma sociedade em que sua idéia de “contrato social” se realize, como um contrato jurídico e cultural entre as partes, isto é, entre o povo e a sociedade política. Marx, Gramsci e Florestan Fernandes no Brasil, por exemplo, projetam para o futuro a “sociedade socialista”, fundada no equilíbrio da distribuição e organização das forças econômicas. Bakunin lança a ação política para o caminho futuro da “sociedade anarquista”, a sociedade sem Estado, sem governo e implacável em relação à Igreja, que segundo Bakunin trata-se de um aprisionamento da liberdade do ser humano. E Maquiavel, como pensa a política em relação a estes pensadores?

A política situada no campo ideal do dever ser, cultivada pela tradição da filosofia política até então, que trata da política como idealização da prática como ela poderia ser, mas ainda não é - daí o trabalho da reflexão filosófica -, tem no pensamento político de Maquiavel o seu derradeiro e súbito deslize pelo ralo, na medida em que o interesse de Maquiavel trata-se de, a partir de um olhar arregalado para o passado, para a história, orientar a ação no presente.

Dito de outro modo, Maquiavel não se lança à elaboração de uma doutrina política inovadora, mas sim, seu trabalho trata-se de reunir o que a leitura do passado pôde fornecer de útil para o triunfo dos novos símbolos da política à época da publicação da obra O príncipe, tais como Lourenço de Médice, para o qual,

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como “prova” de sua “submissão” escreve a obra. Daí lermos a seguinte afirmação em certo trecho da obra, do qual fala do “homem prudente”: “... o homem prudente deverá constantemente seguir o itinerário percorrido pelos grandes e imitar aqueles que mostraram-se excepcionais...” 78 . Ainda sobre esta questão, mais adiante encontramos a seguinte passagem:

“Quanto ao exercício de suas meditações, o

príncipe deve ler os relatos da história e neles considerar as ações dos grandes homens; notar como comportaram-se nas guerras; examinar as razões das suas vitórias e das suas derrotas – para estas poder evitar e aquelas imitar...”79

A noção de Maquiavel acerca da política, do Estado, nos cabe ressaltar, está intimamente ligada à sua visão acerca da natureza humana, se é que podemos utilizar esta categoria, já que o uso deste termo, natureza humana, indica uma certa substância perene que atravessa as ações dos seres humanos no percurso da história, o que nos parece duvidoso quando nos fazemos reflexões acerca daquelas características que são inatas a todos seres humanos e que estão fora do campo biológico. Mas enfim, passemos à noção de Maquiavel acerca do agir humano: “Dos homens em realidade, pode-se dizer genericamente que eles são ingratos, volúveis,

78 Idem, p. 29 79 Idem, p. 85

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fementidos e dissimulados, fugidios quando há perigo, e cobiçosos.” 80

Por entender certas características do ser humano como desta forma, tal como lemos há pouco, Maquiavel marca a sua posição diante da política e do Estado como situada desde a perspectiva da dissimulação, do engodo, encobrimento, disfarce, ou antes mesmo, falseamento, na medida em que a todo o momento, circunstância ou conjuntura política, a dissimulação pode aparecer, se o interesse de um certo político profissional ou grupo político é conquistar um território ou manter-se no poder.

O conluio, reciprocidade, ou intimidade entre as esferas da política e da ética, cultivadas pela tradição da filosofia política até então, tem no pensamento de Maquiavel a sua radical separação, distância, ou antes mesmo, abismo. Isto significa dizer: entre a ética cristã fundada nos valores do agir bem, e a política, aparece, meio que por modos similares ao das placas tectônicas, um radical abismo. Sobre aquele que situa em seu agir o valor da bondade como a sua meta, nos afirma Maquiavel:

“(...) um homem que de profissão queira fazer-se permanentemente bom não poderá evitar a sua ruína, cercado de tantos que bons não são. Assim, é necessário a um príncipe que deseja manter-se príncipe aprender a não usar [apenas] a bondade, praticando-a ou não de acordo com as injunções.” 81

80 Idem, p. 95 81 Idem, p. 87

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Na medida em que o agir na esfera da política no pensamento de Maquiavel, não é marcado pela noção de “bondade”, abre-se espaço então para o que ele mesmo designou como “crueldades proveitosas” 82 . Ora, mas no que consistem estas “crueldades proveitosas” quando nos referimos ao campo da política? À nossa interpretação, estas “crueldades proveitosas” que lemos em certo trecho da obra O príncipe, aproximam-se, sobretudo do agir fundado na dissimulação e na violência. Isto significa: se não é somente a bondade que deve orientar o príncipe, este, para se manter no poder, pode se valer por exemplo da prática da violência ou da fraude. A partir daqui começamos a nos situar melhor acerca da relação entre política, dissimulação e violência no pensamento de Maquiavel. Vejamos este trecho de Maquiavel acerca do Duque César Bórgia, grande exemplo para suas reflexões sobre a política:

“Quem, portanto, julgar necessário, para o bem do seu nascente principado, garanti-lo contra os seus inimigos, vencendo-os pela força ou fraudulentamente; fazer novos aliados; fazer-se benquisto ou temido pelo povo, acatado e respeitado pelos soldados; liquidar aqueles que poderão ou deverão agir em seu prejuízo; (...) demonstrar severidade e gratidão: dizimar as milícias infiéis e instituir uma nova; conservar a amizade dos reis e dos príncipes, de modo que estes lhe sejam de bom grado prestadios ou que o afrontem com respeito, não poderá encontrar

82 Idem, p. 52

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exemplos mais atuais que os das ações desse Duque.” 83

O pacifismo, a diplomacia irrestrita, fundada na

prática exclusivamente do diálogo, como lemos neste trecho, não ocupa lugar nenhum, já que a manutenção de uma certa ordem política na ótica de Maquiavel, para ser preservada não pode abrir mão do conluio entre as armas e as máscaras, importantes para ludibriar ou aterrorizar quem quer que seja.

83 Idem, p. 44 e 45

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Da relação entre o combate e o fogo no pensamento de Heráclito

“Tudo é um” Heráclito

O artigo que ora se segue percorrerá indícios em

alguns dos fragmentos de Heráclito no intuito de demarcar a relação entre o combate e o fogo no pensamento do filósofo de Éfeso. Nesta direção, a relação entre estes temas que aparecem no fragmento 53 e 100 terá sua mediação através do fragmento 66. O nosso ponto de partida será aquele em que nos fixaremos no problema de demarcar o sentido de combate no pensamento de Heráclito (cerca de 540-470 A. C.), bem como, perseguiremos indícios que nos aproximem do sentido de fogo em seus fragmentos. Nesta direção, nos encontremos com o fragmento 53 de Heráclito em que a posição do combate é demarcada: "De todas as coisas o combate é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres."

Ora, tomando como referência a demarcação no pensamento de Hegel, em seus comentários sobre Heráclito - sua grande referência quando da elaboração de sua Lógica 1 -, em que situa a íntima relação entre linguagem e conceito: “Em toda enunciação da percepção e experiência e sempre que o

1 Segundo o próprio Hegel: “Não existe frase de Heráclito que eu não tenha integrado em minha Lógica.” (Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F. Hegel; tradução de Ernildo Stein; pág. 102; Editora Nova Cultural, São Paulo, 2000).

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homem fala, já se manifesta em tudo isto um conceito - nem se pode impedir que aí esteja, renascido na consciência;" 2. Poderíamos situar os primeiros problemas que aparecem após a leitura do fragmento 53, a saber: Como poderíamos demarcar o conceito de combate no pensamento de Heráclito? Ou antes mesmo: como se dá a primazia do combate em relação à criação de todas as coisas?

No fragmento 53 de Heráclito lemos: "o combate é pai de todas as coisas". Que é isto? Ora, sendo aquele do qual provém a criação de todas as coisas, este tanto fez de uns livres, quanto fez de outros escravos. Nota-se que a criação, deste pai, o combate, não aparece disposta em uma determinada homogeneidade ou horizontalidade. Logo, percebemos uma caracterização de oposição 3 entre as criações deste combate, o criador. Isto significa: quanto à criação, os resultados são extremamente diferentes, distintos. Daí Heráclito situar que a

2 Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F.

Hegel; tradução de Ernildo Stein; pág. 111; Editora Nova Cultural, São Paulo, 2000.

3 Esta oposição é hierárquica, pois para serem opostos, pressupõe-se que estes sejam distintos. E justamente por serem os opostos, distintos, a distinção é o que aproxima e não aquilo que distancia. Assim como a semelhança é aquilo que afasta, pois o que de mais comum existe é a própria distinção, aquilo que difere, e não o que há de igual, que por sua vez é menos comum que a própria distinção, o ato originário de distinguir, julgar. Esta distinção aparece, em perspectiva de Bajonas Brito, como uma "oposição hierárquica através da inversão e da compensação" entre as criações deste pai, o combate.

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primazia da criação de todas as coisas pertence ao combate, à guerra, ao conflito, à disputa.

Neste sentido, há também uma íntima relação entre a criação e a inversão. Em que sentido? Ora, criar significa mostrar que o que não existia veio a ser somente a partir do momento de sua criação, do seu mostrar-se. Quando Heráclito afirma que o "pai combate" fez de uns escravos e de outros livres, está demarcando que apenas o combate é capaz de distinguir escravos e livres enquanto e como tais. Enfim, quando o combate faz de uns livres, isto significa que antes de estes o serem, era-lhes fadado o suplício da escravidão e que, somente a partir da disputa, da guerra, do conflito, do enfrentamento e do combate (o pai de todas as coisas), lhes foi possível sair da condição inferior de escravos e mostrarem-se agora na condição superior de livres. Isto é, no processo de disputa e de embate para chegarem à situação de livres, estes eram ao mesmo tempo não-livres e livres. Esta liberdade então, devido a sua superioridade diante da escravidão, passa a aniquilar e a anular esta a partir do combate. Daí situarmos o aparecimento da inversão social que estes, agora livres, passaram para efetivamente o serem.

Retomemos o fio: se o combate é aquilo que é distinto de todas as coisas, pois estas são procedentes de uma mesma origem, e se o combate não é esporádico, isto nos leva a pensar que a possibilidade de qualquer criação, isto é, a possibilidade de qualquer coisa que não exista vir a existir, compete somente ao combate, que portanto é permanente, sendo que todas

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as coisas, tudo, está disposto para nós desde uma ordenação cíclica, através daquilo que designamos tempo.

Entretanto, este combate não é algo que se desenvolve somente a partir de uma mera abstração. É preciso que a ação dê subsídio ao ato criador do combate, pois como afirmaria Carlos Marighela muitas centenas de anos depois: "A ação é que faz a vanguarda." 4 Heráclito situa este vínculo entre a realização das coisas e a ação em seu fragmento 44: "É preciso que lute o povo pela lei, tal qual pelas muralhas."

Ora, quando Heráclito compara a luta do povo pela lei com as muralhas, está indicando que esta luta só se faz criadora a partir da efetivação real desta luta, tal qual a muralha, que para ser denominada enquanto tal é necessário que se tenha o contato imediato das mãos de trabalhadores com o material indispensável para a construção de uma muralha. Ou seja, a meta – enquanto objetivo e fim – é o que induz o vir a ser do ser em potência.

4 Esta máxima foi extraída de um panfleto de agosto de 1969

da ALN - Aliança Libertadora Nacional - da qual fazia parte, dentre outros, Carlos Marighela. O trecho do qual foi extraído esta máxima está disposto da seguinte forma: "Na primeira fase de nossa luta, os maiores recursos são encaminhados para a formação dos quadros e para a ação estratégica e não para estruturar a organização abandonando a ação revolucionária. Isto põe a questão da revolução não nas costas de uma organização perfeita e acabada, mas ao contrário, a ação é que tem preferência. Jamais a estrutura orgânica precede à ação ou à revolução. A ação é que faz a vanguarda”.

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Portanto, a luta do povo pela lei se realizará como ato criador somente a partir do combate. Conquistada a lei, através do combate pelo povo, estará efetivada uma inversão quanto à primazia de tais ou tal lei. Dado que a luta pela lei só se fez necessária ao povo devido ao fato de estes, do povo, não possuírem a primazia de tal lei. 5

5 A questão principal que deve ser visada neste fragmento 44 é que somente a partir do combate é que será dada ao povo a dignidade hierárquica de elaborar, criar e dirigir a efetivação das leis que lhes são convenientes (próprias), e não mais ficarem sujeitos e submissos às leis de um agrupamento minoritário, porém hegemônico politicamente, e as tomarem como suas. Isto é, para o povo só o combate pode possibilitar esta inversão.

Do contrário, ficará o povo como o camponês do conto de Kafka intitulado Diante da Lei, em que é o camponês incapaz de saciar a sua necessidade e vontade de entrada à porta da lei – necessidade esta que fez com que o camponês viesse de seu povoado imaginando ingenuamente que a lei fosse acessível a todos. Neste sentido, é o camponês do conto de Kafka incapaz de ação para que possa entrar pela porta que o separa da lei, sendo tal porta vigiada diuturnamente por um guardião. Apenas um é visto pelo camponês, mas segundo este mesmo guardião, ele próprio é “apenas” o último dos guardiões, o mais fraco de todos eles que defendem a entrada da lei, porém, este é ainda poderoso e mais ainda os guardiões que o sucedem salão a salão, o terceiro é tão, tão terrível que suportar seu aspecto é uma faculdade que nem mesmo ele (o guardião que está à entrada da lei) possui, sendo o camponês inferior a este último dos guardiões no que se refere até mesmo às dimensões físicas, pois a desproporcionalidade de tamanho entre eles aumentaria demasiadamente com o tempo, em prejuízo do camponês.

Esta incapacidade do camponês de conseguir entrar na lei por mediação do embate, fez com que este após ter chegado diante da lei, ficasse até os últimos suspiros de sua vida somente a esperar pela possibilidade de permissão de entrada na lei por parte do guardião,

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Realizado este percurso para situarmos a posição de separação originária que o combate possui na criação de todas as coisas, como nos foi possível a partir do fragmento 53, faz-se necessário agora fixarmos o pensar acerca da relação entre o sol (o fogo) e o combate, a partir do fragmento 100. Nesta direção, nos encontremos com fragmento em questão:

“Limites e revoluções, em que o sol, preposto

e vigia, para definir e arbitrar, revelar e fazer aparecerem as mudanças e estações, que trazem tudo, como diz Heráclito, colabora não nas coisas vis e pequenas mas nas maiores e nas mais essenciais, associado ao guia e Deus principal.”

Como lemos, o sol, preposto e vigia, distingue e determina todas as coisas, isto é, o sol trás tudo, tanto o verão quanto o inverno, tanto a vida quanto a morte, tanto livres quanto escravos. Neste sentido, ao sol é dada também a primazia da criação de todas as coisas. Mas para que o sol tenha esta capacidade em primazia é necessário algo que lhe é íntimo: “o fogo”. É somente o fogo que permite ao sol definir e arbitrar, isto é, em perspectiva de Bajonas Brito, “o fogo é a

que caricatamente disponibiliza um banquinho para que o camponês possa sentar-se a um dos lados da porta, oportunidade em que, ansioso por receber a ordem de permissão tão obedientemente aguardada, é o camponês - quando do momento em que pergunta ao guardião se já que não é possível a entrada na lei agora se mais tarde o deixarão entrar -, tomado por um espanto atônito quando ouve do primeiro guardião: “a porta que dá para a lei está aberta, como de costume”.

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fonte propriamente criadora” 6, e somente para aquele que cria é que se abre o poder de distinção e reunião das coisas, isto não sem uma determinada ordenação hierárquica.

E este Deus principal? Que sentido pretende Heráclito demarcar? O fragmento 100 afirma que o sol, aquele que define e arbitra, trás tudo, ao passo que está associado ao guia e Deus principal. Isto nos leva a pensar que o sentido dessa associação do sol ao guia e Deus principal, caminha na mesma direção do vínculo que o Deus principal possui com o combate. Neste sentido, o fogo (do sol) é a fonte propriamente criadora de todas as coisas, sendo do mesmo modo o Deus principal também criador das coisas. Ao passo que, através da distinção que o sol realiza as coisas vêm a ser desde uma ordenação hierárquica fundada na oposição, a saber, a expansão da vida e a contração da vida, a fertilidade e a esterilidade, inverno e verão, etc. Ao passo que o fio que liga combate, Deus principal e sol, situa-se na ação de separação originária das coisas.

Daí compreendermos que o Deus principal no pensamento de Heráclito ocupa a mesma posição que o combate, o sol e o fogo. Pois se o Deus principal, quanto à forma, ocupa a mesma posição que o combate, que se remete ao fogo, originário do sol, o que há de comum entre estas designações trata-se da capacidade de criação e distinção de todas as coisas, ao

6 Bajonas Brito Júnior in: Os Começos do Pensamento Ocidental,

Heráclito, pág. 100.

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passo que aquele que cria está situado em uma posição superior em relação às coisas criadas. Isto nos leva a compreender que Heráclito designava tanto o Deus principal, como o combate, o sol e o fogo, como criadores de todas as coisas.

Isto é, a aparente diferença entre estas quatro designações, quanto à capacidade de distinção e reunião das coisas, e sobretudo à forma, não é diferença alguma, ao passo que são o mesmo, têm o mesmo significado em substância, a não ser que tentemos estabelecer uma disposição hierárquica entre eles. Nesta direção, considerando que fogo, sol, Deus principal e combate são o mesmo quanto à forma, podemos compreender que o comum entre tais designações trata-se da capacidade de separação originária entre as coisas, desde uma ordenação hierárquica. Ora, se combate, fogo, sol e Deus principal são o mesmo quanto à forma, a fonte criadora por excelência no pensamento de Heráclito seria uma só, porém sem designação absoluta e unívoca.

O vínculo do fragmento 66 com o fragmento 53, talvez nos traga indícios para que melhor possamos estabelecer a relação entre o fogo e sol, bem como estabelecer também a relação entre o fogo (o sol) e o combate (o mesmo que o Deus principal). Assim lemos no fragmento 66: “O fogo, sobrevindo, há que distinguir e reunir todas as coisas”.

Ora, assim como o sol no fragmento 100 realiza a distinção hierárquica das coisas fundada na oposição, isto é, se o sol permite a coexistência hierárquica das

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coisas fundada na tensão 7, seja entre inverno e verão, permissão e proibição, legal e ilegal, digno e indigno, noite e dia, vida e morte, aquecimento e umedecimento, ou seja, entre todas as coisas, também o fogo, assim como o combate, possuem a mesma primazia, a saber, a capacidade de distinção (que bifurca hierarquicamente) e da reunião de todas as coisas (que reúne desde uma determinada coexistência hierárquica).

No fragmento 66 o fogo tem a primazia de distinguir e reunir todas as coisas, isto é, ao fogo é dada a dignidade hierárquica de realizar a criação por mediação da distinção e da reunião de todas as coisas, para a constituição do “um”, da unidade do cosmos. Nesta direção, compreendemos que o fogo em sua ação, como fonte criadora de todas as coisas em suas duas funções, a de distinguir e reunir, o é quanto à forma tal qual o combate, que é pai de todas as coisas, ao passo que é o combate que abriga também a primazia de distinguir e reunir todas as coisas. Esta criação, fundada na distinção e na reunião, através do tempo, trata-se de uma criação hierárquica, fundada na tensão e na inversão.

Ora, se Heráclito não nomeia a essência criadora de todas as coisas como sendo determinada

7 Esta coexistência hierárquica é temporal (calcada em uma

visão cíclica de tempo) e fundada na tensão. Entendida a existência como um valor não em si mesmo, mas existência no sentido também hierárquico, com valores que possuem grau de dignidade distintos, opostos e portanto hierárquicos. Isto é, a vida de um livre não é a mesma vida que a de um escravo.

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univocamente ou uniformemente, nomeando como fonte criadora tanto o combate, o fogo, o Deus principal e o sol, isto nos leva a constatar que Heráclito designa “o mesmo”, “o um”, tanto como resultado do fogo como do combate. Neste sentido, compreendemos que Heráclito ao situar em seus fragmentos a essência originária e criadora de todas as coisas como sendo o fogo e o combate, está demarcando que tudo provém de ambos – ambos, no sentido da distinção de nomeação, mas o mesmo considerando seus sentidos expostos nos fragmentos de Heráclito, os sentidos de fogo, combate, sol e Deus principal.

Nesta direção, se é dado a estes (fogo e combate) a capacidade de criação, da distinção hierárquica de todas as coisas através da inversão, não seria “o mesmo” (o um) aquilo que sucede à capacidade de distinção e reunião do fogo e do combate? Ora, já que estes segundo Heráclito criam todas as coisas, criam também a unidade do cosmos, pois “o um” só pode ser designado como tal se possuir a sua unidade, que lhe é própria e inerente, do contrário, “o um” não se torna “um”, se torna no mínimo “não - um”, em suma, diferente de “um”. Logo, “o mesmo” ou o “um”, é criação tanto do combate (pai de todas as coisas e Deus principal) quanto do fogo (o sol).

Neste sentido, no percurso de nosso pensar podemos compreender que a posição de distinção e reunião atribuída ao fogo no fragmento 66 coincide plenamente com a posição do sol no fragmento 100, e por extensão, o vínculo entre o fogo e o combate,

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exposto no fragmento 53, situa o combate como vinculado ao Deus principal 9. Daí compreendermos que, embora Heráclito possa atribuir designações diferentes à essência originária de todas as coisas, não é de seu interesse abrir mão de identificar e nomear o que cria todas as coisas, indagação que o inquieta. Em outra perspectiva, deixa como indeterminável o que de fato cria tudo, pois não atribui somente, e a todo momento em seus fragmentos, uma determinação em particular àquele que cria, ora fogo (sol), ora combate (Deus principal). O que nos leva ao encontro desta compreensão é o fato de que tanto o fogo quanto o sol, o combate e o Deus principal, são todos precedentes à criação de tudo o que possa existir, bem como antecedem à distinção e à reunião do “mesmo”, “o um”, no qual coexistem todas as coisas hierarquicamente e relacionadas umas com as outras por mediação da tensão e da oposição. Isto significa: todas as coisas sucedem àquele que cria, pois este cria todas as coisas. Portanto, a criação só é criação quando distingue e reúne, criando “o mesmo” e a unidade do “um”.

9 “O Deus principal na tarefa de trazer todas as coisas,... não

importando que um nome lhe possa ou não ser designado, mostra-se como o mesmo que o combate: este é pai e senhor de todas as coisas;” (Bajonas Brito Júnior in: Os Começos do Pensamento Ocidental, Heráclito, pág. 100).

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A filosofia tem que servir para algo?

Não agüento ver você filosofando no meu ouvido... me irrita.

Dizia realmente já se irritando, a histeria ultrapassando os poros

os ouvidos até chegar à boca, que interrompia abruptamente

qualquer coisa que tentasse falar sutilmente. Abraão Carvalho

A tentativa (o movimento) de Abraão Costa

Andrade84 em seu breve artigo com o nome-problema “Para que serve a filosofia?”, consiste em problematizar sobre o sentido histórico de nosso hábito em atribuir dignidade hierárquica às coisas somente em função de sua utilidade prática imediata. Ora, mas qual o sentido de atribuirmos um valor mais elevado somente àquelas coisas às quais podemos utilizar na vida prática imediatamente? Dito de outro modo: as coisas só têm valor se puderem ser utilizadas imediatamente na vida prática?

Ora, indicar um valor, trata-se aqui de ordenar, por estes ou aqueles outros motivos, uma certa hierarquia. A que hierarquia estamos nos referindo? A uma hierarquia de valores. Ora, o que nos leva a tomar estas ou aquelas decisões? Decidir é separar, separar ordenando desde uma certa hierarquia. O que nos leva a indagar: porque então, à utilidade imediata das coisas

84 Poeta, ensaísta, atualmente é professor de Filosofia da

UFRN.

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na vida prática atribuímos um mais elevado valor? De todo, por lançarmos a uma posição inferior tudo aquilo que não remete a uma utilidade prática imediata, como um copo, um martelo, um “curso técnico”, etc.

Nesta perspectiva, nos parece que quando nos voltamos para a filosofia, o que nos frustra, nos perturba e nos atormenta, é justo o espanto em não encontrarmos uma tal utilidade prática imediata à bendita ou maldita da filosofia!!! Nesta medida, a viciada pergunta: para que serve isto? Para que serve aquilo? Quando nos indagamos sobre a utilidade dos objetos e dos saberes técnicos, encontra sua incongruência 85 ou deslocamento quando nos perguntamos desesperadamente para que serve a filosofia!!!

Ora, quando dissemos que a filosofia serve para isto ou aquilo, este “isto” não dá conta de determinar o horizonte da filosofia, ou mais precisamente, do filosofar, ao passo que o “isto” próprio ao olhar filosófico desdobra-se em uma infinidade de determinações que se sobrepõem umas às outras, posto que no movimento de determinar o “isto” para o qual a filosofia “serve” imediatamente, já nos escapa aquele determinar unívoco ao qual estamos habituados quando nos referimos ao mundo dos objetos sensíveis e às finalidades dos diferentes modos de saber técnico.

Contudo, do mesmo modo que nos indagamos para que serve a filosofia, poderíamos, antes, nos

85 Incongruente – adj. m. e f. Que não é congruente, que não condiz, que não convém; incompatível, impróprio. (Dic – Michaelis – UOL – digital)

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perguntar se em nosso raio histórico, em nossa época, dita moderna, atribuímos valor e dignidade hierárquica às coisas que não têm utilidade prática imediata. Dito de um modo mais preciso, algo que não têm utilidade prática imediata tem algum valor?

Por mediação do embotar que é o hábito, aquilo que nos habituamos sem nos darmos conta por mó de quê aconteceu às nossas vidas, somos conduzidos sorrateiramente ou materialmente, a nos seduzirmos pela idéia de que as coisas realmente só têm algum valor se tiverem uma utilidade prática!!! Ora, quem seria o baratinado a dar algum valor, inda “mais maior”, a algo que não tem utilidade na vida prática imediata? Seria este um desvairado, uma aberração do resultado das mais populares das normas sociais e culturais vigentes? De todo, interessa-nos agora, demarcar outro problema correlato ao problema em identificar uma tal utilidade à filosofia, a saber, o que significa algo ter sua utilidade prática?

Retomemos o exemplo dos objetos do mundo sensível, aqueles que na ótica de Kant nos afetam por mediação dos sentidos, da sensibilidade, alto, baixo, maior, menor, quente, frio, ruído dissonante ou límpido, etc, a esta capacidade de determinação da consciência através dos sentidos, enquanto saber, pode nos afetar em algo que nos faça tomar esta ou aquela ação, aproximar ou se distanciar do quente ou o fogo de acordo com as circunstâncias. Ora, com isto queremos demarcar que existem objetos do mundo material e sensível que encontram no pensamento uma certa “correspondência” entre nome e coisa. Isto, a

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coisa, encontra-se com seu nome, certo objeto de forma retangular no qual se serve a comida, encontra-se com o seu nome, maturado no percurso da tradição, a saber, mesa.

Todavia, existem aquelas idéias e noções que não encontram um objeto no mundo material e sensível. Ora, a estas idéias, por não encontrarem repouso na realidade material percebida pelos sentidos, pela sensibilidade, podemos desde já, apenas por esta constatação, tratar como inúteis, sem utilidade prática? Já que seus princípios e definições não encontram lugar na transformação material e objetiva da realidade? Ora, mas de que distinção estamos tratando? Da distinção entre aquilo que tem utilidade prática imediata e o seu oposto, o que não tem utilidade prática, e o nosso problema inicial, situar daquele ou daquele outro lado, a posição da filosofia. Afinal de contas, a filosofia tem ou não tem utilidade prática?

Para nos situarmos diante de tamanho problema, nos aproximemos de algumas de nossas noções em relação ao desdobramento para o pensar o vínculo e distinção entre pensamento e prática, ou em outros termos, pensamento e ação. Ora, estamos habituados a ligar de um modo fundado na tensão entre opostos quando nos referimos ao sentido de pensamento e ao sentido de ação. Pensar, de acordo com nosso hábito, é o oposto de agir. A ação preserva um campo totalmente distinto em relação ao pensamento, que por vezes tomamos como a negação do agir. Pensar não é agir!!!! Podemos desesperadamente afirmar

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afoitos por convulsões que alteram a realidade existente.

Todavia, se permanecemos nesta perspectiva, a saber, a de que pensar não é agir, quando nos referimos à filosofia, podemos afirmar desajustadamente que ela não sirva para nada!!!! Pois não encontra seu objeto correspondente na realidade como o encontra a determinação e ligação entre o nome mesa com o seu objeto. A filosofia, na extensão dos objetos do mundo sensível ou material não encontra sua correspondência, na medida em que não serve imediatamente para isto ou aquilo. No que se refere àquele modo de vida entregue ao suprir as demandas das necessidades materiais mais imediatas, a filosofia aparece como carente de utilidade prática, ao passo que no movimento dos negócios o fim último trata-se da utilidade prática das atividades de permuta e negociação.

Ora, mas se nos rebelarmos em relação à idéia de que pensar não é agir, procurando situar a interligação ou reciprocidade entre pensar e agir, indicando deste modo que o pensar, por orientar os rumos da ação, consiste justo em um modo de agir, chegamos à constatação de que pensar é também um agir. À indicação de que pensar é agir, deixamos de lado o desprezo em relação àquelas coisas que não tem utilidade prática imediata, pois na medida em que lançamos o pensamento ao campo da ação humana, o pensamento pode ganhar contornos de utilidade prática, ao passo que o pensamento demarca o seu percurso por mediação de problemas. O aparecimento

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de problemas lança o pensamento às suas convulsões, que se inscrevem na tentativa de dar soluções a estes problemas.

Ora, viver significa ser afetado por problemas, aquecimento global, AIDS, clonagem, desemprego, cultura de massa, necessidades imediatas da vida, violência, diante de tais problemas, o pensamento não pode pedir licença sorrateiramente e sair de fininho como quem diz: “isso não é comigo.” Sermos afetados por problemas no percurso da vida indica-nos necessidade histórica de agir por mediação do pensar, que é agir.

Se percorrermos esta perspectiva, a de que pensar é agir, que tem sua dinâmica no sobrevir de problemas que nos afetam, filosofia ganha sua “utilidade”, ao passo que o movimento de ser afetado ou provocado por problemas que brotam do processo histórico da realidade, desertificação, trabalho, violência policial, nos remete ao decidir diante destes mesmos problemas, ao passo que decidir é separar desde uma hierarquia, separar que se abre desde um relacionar por mediação de uma distinção.

Um contorno mais preciso acerca da relação histórica entre pensar e agir indica-nos o filósofo Hegel: “O pensamento é um produto não menos que vida e atividade de se produzir a si próprio.” 86 Esta

86 b) O início na história da exigência filosófica (p. 416) - In: Introdução à história da filosofia, Capítulo B) Relação da filosofia com as outras partes do que se pode saber. F. Hegel. Tradução de Orlando Vitorino. Os pensadores. Círculo do Livro. Editora Nova Cultural. 1996.

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atividade de se produzir a si próprio em sua tensão com a realidade, dito em outros termos, problemas que nos afetam, aquecimento global, reconhecimento, alternativas energéticas, cultura, ciência, convenções políticas e morais, indica-nos do mesmo modo o seu oposto, a saber, a negação do existente, ao passo que produzir na ótica de Hegel remete-nos ao seu oposto, destruir. Que p.. é essa!!?? Esta atividade de se produzir a si próprio segundo Hegel:

“... contém o momento essencial duma negação, já que produzir é também um destruir. A filosofia, ao produzir-se a si própria, toma o natural como o seu ponto de partida para o superar. (...) O espírito apenas ultrapassa a forma natural, passa da moralidade imediata e do impulso da vida ao refletir e ao conceber. Deste modo, fere e derruba esta forma real e substancial de existência, esta moralidade e esta fé, e inicia o período da destruição.” 87

Nesta direção, a filosofia aparece como uma exigência histórica, como uma necessidade histórica, ao passo que realiza sua dinâmica desde aquela tensão entre o produzir a si próprio e os problemas que nos afetam, de modo que as formas de organização da cultura, da política, da natureza, da religião, da família, da província, não mais satisfazem, a filosofia aparece então quando determinados valores culturais encontram-se com sua crise, sua decadência, sua ruína, sua corda bamba, seu abismo. Segundo o filósofo

87 Hegel, Introdução à história da filosofia, p. 416.

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Hegel, a filosofia aparece na história “em tempos infortunados88 para o mundo e de decadência na vida política”, quando os antigos sistemas religiosos e formas de cultura, começam a ser minados “por um processo de dissolução e renovação.” 89

De todo, é preciso demarcar que este produzir a si próprio a partir da tensão com o real, com os problemas que nos afetam, que é também destruir – “produzir é também destruir” -, indica-nos um pensar por si próprio até suas últimas conseqüências, ao passo que segundo Hegel, “a ninguém é dado pensar por outrem.” 90 E é justo neste sentido que Abraão C. Andrade encontra uma mediação para a tensão entre o produzir a si próprio por mediação do real, dos problemas que nos afetam no percurso da história, a saber, segundo este outro filósofo, a filosofia aparece como um “desconfiômetro” 91, como um instrumento de ação, ao passo que pensar é agir, do mesmo modo que é produzir que é também destruir, exorcizar fantasmas, arcaísmos.

Deste modo, a filosofia aparece como aquele “desconfiômetro” ativado “para não engolirmos a primeira certeza que nos oferecem como sendo uma verdade indiscutível.” 92 Neste sentido, a filosofia serve,

88 Infortunado: adj. Desventurado, infeliz, desgraçado. –

Dicionário Michaelis – UOL (digital) 89 Hegel, Introdução à história da filosofia, p. 417. 90 Idem, p. 422. 91 Abraão Costa Andrade. Para que serve a filosofia? – Revista

Discutindo Filosofia – p. 12. 92 Idem.

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por exemplo, para desconfiarmos de que a importância ou dignidade hierárquica de algo está em sua utilidade prática imediata. Ora, feito este percurso meus caros, pensar por si próprio não tem utilidade prática? Se cochilo pegar.... jacaré abraça!!

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Filosofia, a encruzilhada do conhecer: entre a criação e a técnica

“...a ciência nunca existiria se a filosofia não a tivesse precedido e antecipado.”

Martin Heidegger

Em um primeiro momento afetados por uma certa cultura utilitária, poderíamos situar filosofia como algo da ordem do incongruente, na medida em que não se assemelha a nenhuma das ciências. Ora, mas como poderíamos situar o que diferencia radicalmente a ciência da filosofia?

O princípio orientador da ciência moderna 93 no mundo ocidental está situado na sua posição diante da questão do conhecimento, e por extensão, como este posicionar-se diante do conhecimento é aplicado na natureza e na sociedade. Nesta direção, para toda e qualquer ciência é válida a estrutura sujeito (ser humano) e objeto, sendo o objeto o ponto desde o

93 Quando empregamos o termo ciência estamos a tomando no seu sentido moderno, uma vez que “No seu começo, a ciência estava ligada à filosofia, sendo o filósofo o sábio que refletia sobre todos os setores da indagação humana. Neste sentido, os filósofos Tales e Pitágoras eram também geômetras, e Aristóteles escreveu sobre física e astronomia.

(...) A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu promove a autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Pouco a pouco, desse período até o século XX, aparecem as chamadas ciências particulares – física, astronomia, química, biologia, psicologia, sociologia etc. -, delimitando um campo específico de pesquisa.” (O que é filosofia?; Maria Arruda Aranha e Maria Pires Martins; p. 72 e 73.)

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qual toda observação acerca da realidade se faz possível, vem a ser. Em outros termos, a realidade só aparece para a ciência desde que se tenha um objeto que é de interesse da investigação do sujeito. Isto é, quando nos perguntamos acerca do objeto de investigação da biologia, por exemplo, podemos responder de modo apressado que o seu objeto consiste na investigação sobre os seres vivos em suas manifestações animais, vegetais e humanas...; este será sempre o ponto de partida para toda e qualquer investigação (ou observação) que é de interesse da biologia. A partir daí podemos compreender que a perspectiva de conhecimento da ciência está sempre desde um objeto específico de investigação, que constitui o seu ponto de observação, medição ou cálculo.

Tomados subitamente, ou mesmo seduzidos pela idéia de que toda forma de conhecimento que encontramos na estrutura do currículo escolar possui o seu objeto de estudo específico, somos levados a pensar que a filosofia tem como interesse um campo particular de investigação da realidade. Mas enfim, qual é o objeto de investigação da filosofia? De certo não encontraremos como na ciência que predomina no mundo contemporâneo ocidental, bem como habitualmente ouvimos na vida escolar, nenhum objeto particular de estudo próprio à filosofia, uma vez que a postura da atitude filosófica se diferencia radicalmente da ciência justamente em virtude de sua posição diante do problema do conhecimento. Ora, mas qual é a posição da filosofia diante da questão do conhecimento? Ou antes mesmo, como podemos

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situar a distinção de posição diante da questão do conhecimento, da filosofia em relação à ciência que predomina em nosso raio histórico?

A atitude filosófica se diferencia da ciência justamente por ser o seu modo de investigação não dirigido a um objeto particular de observação, medição ou cálculo, uma vez que é de interesse da filosofia a investigação da realidade em sua totalidade, universalidade.

Heráclito, filósofo que viveu na Grécia antiga, já indicava a natureza mesma da investigação filosófica ao afirmar que “Tudo é um”. Isto é, a realidade constitui-se como uma totalidade, e não como um conjunto de partes somadas, tal como nos seduz a pensar certo modo de ciência. Ora, se a filosofia tem como interesse investigar a realidade em sua totalidade, é a filosofia capaz de dar sentido e nome a tudo, uma vez que “Tudo é um”? Dito de outro modo, se “Tudo é um” segundo Heráclito, pode a filosofia dar nome ao “um”, ao todo, ao mundo, de maneira acabada e definitiva?

De certo que não, pois a investigação do ser humano acerca das coisas e da realidade como um todo é por sua vez inesgotável. O conhecer a realidade, que é próprio da dinâmica da vida, consiste em uma atividade permanente, inacabada, e por isso mesmo inesgotável. Ao ser humano não cabe a decisão de conhecer ou não. Viver é conhecer.

Este conhecer, sobretudo não se trata de um conjunto de regras acerca de como se deve proceder ao ato de conhecer, isto é, uma vez sendo a relação ser

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humano–mundo, o acontecimento existir-no-mundo, o horizonte da filosofia, esta por sua vez não trata de como o conhecer tem que ser realizado, ou antes mesmo, que regras devemos dominar anteriormente ou previamente ao ato de conhecer.

A criação de regras e princípios que antecedem ao ato de conhecer é algo próprio da ciência moderna, isto é, para a ciência o conhecimento só é alcançado pelo ser humano se este antes estiver de posse de regras que o levem para tal fim, meta. Ora, mas de que regras que vêm antes do ato de conhecer, comum à ciência, estamos falando? Estamos nos referindo à maneira como a ciência compreende e se posiciona diante da questão do conhecimento, que situa entre ser humano e mundo, entre ser humano e conhecimento, uma (inter-) mediação. Ora, mas de que mediação entre ser humano e mundo, criada pela ciência, estamos nos referindo? Estamos nos referindo ao método científico. Método em grego significa caminho. Caminho é percurso a ser atravessado. Ora, mas que caminho, percurso, tem a ciência para levar o ser humano ao conhecimento, à verdade, ou mesmo à possibilidade de verdade?

O caminho entre ser humano e conhecimento para a ciência, é (inter-) mediado pela experimentação, medição, cálculo, quantificação. Deste modo, o cálculo, a quantificação, a experimentação, consistem no meio, no caminho, no percurso através do qual o ser humano é conduzido ao conhecimento daquilo que é. Cálculo por sua vez significa ordenamento, controle, asseguramento, planificação, uniformização,

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decodificação, isto é, cálculo (quantificação), consiste em um dis-por desde uma ordem aquilo que antes do cálculo estava dis-posto de maneira caótica, desordenada. É a passagem através de um método, caminho ou percurso, do sem sentido para o dis-por de sentido, do desconhecido para o conhecido, do desorganizado para o organizado, isto tendo como meio, regras que precedem, vêm antes do próprio ato de conhecer.

Portanto, é através do método científico que o sujeito controla e domina o objeto, uma vez que só se abre para o ser humano a possibilidade de dominar, alterar e modificar o objeto desde que também venha a dominar o percurso, o caminho, as regras que levam o ser humano em direção ao conhecimento. Domínio sobre o método significa também possibilidade de domínio sobre o objeto. Isto é, domínio sobre o método de investigação da natureza ou do corpo humano, significa também possibilidade de domínio e alteração da natureza e do corpo humano.

Nesta direção, dissemos que filosofia não se trata de um conjunto de regras que antecedem ao ato de conhecer, tal como é na ciência. Ora, como é então o conhecer desde o horizonte da filosofia? Ou antes mesmo, como tudo que há e é no mundo, o é desde um olhar filosófico?

A filosofia se posiciona diante da questão do conhecimento sobretudo o compreendendo desde uma dis-posição possível. Na filosofia, ou melhor, no filosofar, tudo aquilo que é, o é desde uma dis-posição, e é a partir desta dis-posição que as coisas aparecem e mostram-se para o ser humano deste ou daquele modo.

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Dis-posição é o lugar desde o qual todas as coisas são para o ser humano. Aquilo que aparece, no seu vir-a-ser, aparece como isto, como aquilo ou como aquilo outro 94.

Ao invés de compreender o conhecimento unicamente como método, técnica, quantificação, cálculo, como regra que antecede ao ato de conhecer, o que encaminhamos aqui consiste em uma tentativa possível, não a única, de compreender de modo inacabado o problema do conhecimento como condicionado e afetado que é, pela experiência, ou seja, pelos afetos ou mesmo tonalidades de humor que

94 Gilvan Fogel em seu livro Conhecer é criar, nos dá uma indicação precisa acerca desta questão:

“Tenho diante de mim uma laranja e, apesar de parecer supérfluo, pergunto: o que é uma laranja? Um botânico, um agrônomo, provavelmente técnico... de O globo rural (!!), responde-me algo mais ou menos assim: ‘é um fruto da espécie citrus sinensis, com a forma de uma grande baga esférica, dividida em vários... gomos e cuja a casca é de um amarelo dourado (cor de laranja!)’. Surpreende-me que, para o sitiante que a planta e a cultiva, assim como para o caminhoneiro que a transporta, ela, a laranja, é subsistência, sobrevivência – pão para seus filhos e família; ela é vida, é um extraordinário sentimento de elevação e de redenção para o enfermo, para o convalescente, que sorve seu sumo saboroso; dois guris a surrupiam do cesto e, na farra deles, ela é bola de futebol; abandonada na fruteira ou jogada sobre a mesa ela é, ela ‘vira’ ‘natureza morta’ (...) ela é ainda tão-só a ‘cor laranja’ que embriaga um descuidado contemplador do horizonte ao anoitecer; ela é também uma ‘porcaria’, uma ‘droga’, uma ‘sujeira’ para o varredor de rua, que a encontra esmagada, pisoteada e toda mosquitos pelo chão, depois da feira...

Surpreende-me o fato de que a laranja, na verdade, não é tão tranqüilamente laranja, isto é, não é tão uniforme, tão unidimensional ou tão univocamente laranja.” (p. 19 e 20.)

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impulsionam as disposições dos modos diferenciados de existir, agir no mundo e nomear as coisas e a realidade. Por extensão, tudo aquilo que é para o homem o é desde um certo estado de humor, dis-posição, a saber, tonalidade afetiva, uma vez que tudo aquilo que aparece para o ser humano mostra-se no acontecer da experiência.

Ora, se viver é inseparável do conhecer, na perspectiva filosófica conhecer é uma atividade permanente, pois a realidade é inesgotável quanto ao seu sentido. Nesta direção, como poderíamos pensar tendo como referência a ciência, em um lugar (ou posição) que está situado antes do conhecer? Dito de outro modo, existe para o ser humano em seu estar no mundo um lugar fora do conhecer, de onde podemos previamente (anteriormente) criar regras seguras para o ato de conhecer, tal como encontramos na pretensão da ciência? Em outros termos, se tudo aquilo que há e é para o ser humano, o é desde uma dis-posição, existe um lugar antes, ou mesmo fora dessa dis-posição?

Ora, se todas as coisas que são para o ser humano, o são desde uma dis-posição, interesse ou perspectiva, o homem não conhece o mundo, as coisas, de outro modo senão já em relação com o mundo e as coisas, que se mostram, se fazem visíveis não como previamente estabelecidas, mas sim como modos de ser que aparecem no súbito acontecer da experiência. Nesta direção, na perspectiva filosófica não há este lugar ou posição situado antes ou mesmo fora do ato de conhecer.

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Portanto, o acontecer da experiência é como que o começo que instaura e inaugura toda realidade possível, isto é, que faz visível para o homem tudo que há e é. Interesse, dis-posição ou perspectiva é o que faz possível o vir-a-ser das coisas e do mundo para o homem. Não somente o vir-a-ser das coisas que mostra-se para o homem, mas também o homem vem a ser aquilo que é desde que é tomado e afetado de súbito pela abertura de possibilidades criadas pelo próprio acontecimento que é o existir no mundo.

Neste sentido, poderíamos ser levados a compreender que todos os seres humanos possuem interesses que são criados e projetados pelo próprio homem no mundo. (Isto seria tratar da questão do conhecimento com certa ingenuidade, e antes de tudo compreendê-la de maneira unilateral.) Antes mesmo, trata-se da inversão disso, a saber, é o interesse e a perspectiva que tem o homem, pois é necessário entender a “vida mesma como condicionada pelo perspectivístico”, como o afirma Nietzsche ao Prefácio de Humano, demasiado humano. Ou seja, aquilo que é, aparece para o homem sempre desde uma perspectiva, interesse, ou dis-posição que tem o homem. Não é o homem que tem o interesse, a dis-posição, a perspectiva, mas de modo inverso, o interesse ou a dis-posição que tem o homem. Acerca de um sentido mais preciso para dis-posição, é Heidegger em seu texto Que é isto - a filosofia?, que nos dá uma indicação:

“...o nosso comportamento é cada vez dis-posto desta ou daquela maneira.(...) Se

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caracterizarmos a filosofia como a correspondência dis-posta, não é absolutamente intenção nossa entregar o pensamento às mudanças fortuitas e vacilações de estados de ânimo. Antes, trata-se unicamente de apontar para o fato de que toda precisão do dizer se funda numa disposição...” 95

“(...) Muitas vezes e quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer dis-posição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade… da planificação são sinais de um tipo de dis-posição. Não apenas isto; mesmo a razão que se mantém livre de toda influência das paixões é, enquanto razão, pre-dis-posta para a confiança na evidência lógico - matemática de seus princípios e regras.” 96

Daí compreendermos que não há ser humano

sem dis-posição, ou nas palavras de Gilvan Fogel em seu livro Conhecer é criar, “não há homem sem ‘lugar’, sem ‘situação’, sem algum ‘interesse’”. Deste modo, ao homem não é dada a possibilidade de colocar-se fora ou antes desse interesse, perspectiva ou dis-posição, para daí apreender e conhecer o mundo e as coisas.

Neste sentido, podemos situar duas maneiras possíveis de compreensão da questão do conhecer, condicionado, atravessado e afetado que é pela experiência, dis-posição ou interesse. A saber, uma consiste na perspectiva que predomina em nosso raio histórico,

95 Heidegger, Que é isto – a filosofia? - p. 21. 96 Idem, p. 22 e 23.

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trata-se da ciência moderna, para a qual as coisas são desde que sejam quantificáveis, e que a verdade ou mesmo possibilidade de verdade acerca do mundo e das coisas se dá a partir desta dis-posição que nega outras possibilidades de conhecimento. Essa “É a postura da ‘razão técnica’ - era técnica... E o que quer dizer isto: suposição de categorias, as quais se atribui somente uma função cibernética, isto é, uma posição de controle, de ordenamento, de planificação, enfim, de ‘cálculo’?!” 97

A outra maneira possível de compreensão da questão do conhecimento é na perspectiva de Gilvan Fogel a “interpretação-apropriação (criação-liberdade)”, que não trata de compreender todo o real como técnica. Isto é, tal perspectiva consiste em uma necessidade de “compreensão e determinação do real, a partir de uma experiência possível, então, necessária - enfim, nesse âmbito, o conhecimento caminha junto com o ‘real’, quer dizer, com a experiência, à medida que esta..., (em) sendo a própria dinâmica da vida, é criação.” 98

97 Gilvan Fogel, Conhecer é criar, p. 60. 98 Idem, p. 61.

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Ciência, natureza e sociedade

“O raio conduz todas as coisas que são”

Heráclito O que pretendemos aqui trata-se de uma tentativa

de compreensão das relações entre ciência, sociedade e natureza. Nesta direção, o que nos cabe agora consiste em delimitar melhor a nossa questão fundamental, a saber, qual a relação entre a estrutura (forma) do conhecimento científico e a organização, alteração e modificação da natureza e da sociedade realizada pelo ser humano no percurso da história contemporânea ocidental?

O nosso ponto de partida consiste em compreender que o pensamento que se guia pela ciência, isto é, pelo método da experimentação, cálculo, medição, quantificação, não pode ser tomado como algo separado de uma prática. Prática esta que altera, transforma e modifica a natureza e a sociedade como um todo. Ora, se todas as coisas que são, o são para o ser humano no seu aparecer, no seu mostrar-se, como pensar então o modo próprio como a ciência aparece predominantemente no mundo contemporâneo ocidental? Dito de outro modo: se, nas palavras de Heráclito, “O raio conduz todas as coisas que são”, como dar sentido então aos raios que a ciência tem lançado em nossa realidade? Em outras palavras, que relações podem existir entre o pensamento científico e a prática científica?

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A noção de conhecimento da ciência se ergue sobretudo, como unilateral, ou em outras palavras, como sendo de mão única. Ora, que é isto? A perspectiva de conhecimento da ciência, fundada na estrutura sujeito e objeto, trata do conhecimento como sendo ele unicamente determinado pelo sujeito, que para isso, dis-põe do instrumento do cálculo, da quantificação, medição. Deste modo, para a ciência que predomina em nosso raio histórico, a determinação daquilo que é, cabe unicamente ao sujeito. Dito de outra maneira, para certo modo de ciência, a realidade, a natureza, é unicamente determinada em seus termos, nomes, pelo ser humano, e não compreende portanto, o conhecimento como uma relação de mão dupla, fundada desde uma reciprocidade, em que não só o sujeito determina o que a realidade é, mas também, o ser humano vem a ser aquilo que é desde que é afetado de súbito pela realidade.

Sendo o método científico uma via, um caminho, um percurso através do qual o homem alcança a verdade ou mesmo possibilidade de verdade, tendo o instrumento do cálculo, da quantificação, da medição, como unidades de medida, é este instrumento como tal um instrumento de ação, que resulta em uma prática real de alteração, transformação e modificação da realidade como um todo. Neste sentido abre-se para o pensamento a seguinte questão: como instrumento de ação e transformação da realidade, como podemos situar a prática da ciência no mundo contemporâneo ocidental?

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Herbert Marcuse em seu livro Ideologia da sociedade industrial, mais precisamente ao capítulo de nome Racionalidade tecnológica e lógica da dominação é que nos dá uma orientação: “Em vista do caráter instrumentalista interno do método científico, (...) Uma relação... estreita parece existir entre o pensamento científico e sua aplicação, (...) - uma relação na qual ambas se movem sob a mesma lógica e racionalidade de dominação.” 99 Isto significa dizer que a ciência enquanto instrumento de ação tem se posicionado, predominantemente, como um instrumento de dominação, ou seja, enquanto instrumento que assegura a permanência e a continuidade das desigualdades sociais radicais. Nesta direção nos cabe aqui ressaltar que o processo que deu origem à própria ciência moderna, como meio ou mesmo instrumento de asseguramento dos abismos sociais, não pode ser desvinculado da história ocidental européia, ou mais precisamente, da filosofia. Ora, o que com isto estamos querendo dizer? É Heidegger em seu texto Que é isto - a filosofia?, acerca da relação entre filosofia ocidental e origem da ciência moderna, que nos abre uma compreensão possível acerca desta questão:

“Pelo fato de elas (as ciências) brotarem da marcha mais íntima da história ocidental - européia, o que vale dizer do processo da filosofia, são elas capazes de marcar hoje, com seu cunho específico, a história da humanidade pelo orbe terrestre.

99 Marcuse Ideologia da sociedade industrial, p. 151.

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Consideramos por um momento o que significa o fato de caracterizarmos uma era da história humana de ‘era atômica’. A energia atômica descoberta e liberada pelas ciências é representada como aquele poder que deve determinar a marcha da história. Entretanto, a ciência nunca existiria se a filosofia não a tivesse precedido e antecipado.” 100

Neste sentido, desde a perspectiva de Heidegger, se hoje temos a ameaça das armas nucleares como resultado da transformação da natureza através da mediação da ciência e da técnica, este processo foi precedido pela própria filosofia, uma vez que o surgimento das ciências modernas não pode ser desvinculado da história ocidental-européia, lugar em que a filosofia surge. Isto significa dizer que a ciência, enquanto instrumento de ação, tem tido papel decisivo nos rumos de nossa história, ou em outros termos, tem tido papel fundamental na continuidade das desigualdades sociais radicais. Isto porque o método científico concentra em sua forma, que dá privilégio ao cálculo e à quantificação enquanto unidades de medida, os meios necessários para a alteração e modificação da natureza sem que a dominação dos recursos naturais esteja separada da dominação e escravização do homem pelo homem através da exploração do trabalho.

Isto significa: se é a ciência que nos abre a possibilidade de compreender o conhecimento como

100 Que é isto – a filosofia? Heidegger, p. 15.

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algo que se ergue de maneira unilateral, de mão única, onde só o ser humano é quem determina o que o objeto é, nesta perspectiva é possível então lançar à ordem do legítimo, por exemplo, a exploração violenta, extremada e predatória do meio ambiente, de onde se extrai o máximo sem nada retribuir. Este explorar sem doar ou preservar, desatento que é ao destino das futuras gerações, ocorre sempre de modo ilimitado, ao passo que os recursos naturais são tomados como inesgotáveis na mesma medida em que o ser humano impõe-se como senhor da natureza, que é, neste horizonte, inferior ao poder do homem que a seu bel prazer ou capricho, pode alterar a natureza deste ou daquele modo, não tendo como perspectiva o equilíbrio entre a apropriação dos recursos naturais e uma certa consciência ecológica articulada a uma perspectiva de equidade social, mas de outro modo, inclinando-se para a continuidade acentuada dos abismos sociais radicais.

Nesta direção, a mediação da ciência e da técnica na relação do ser humano com a natureza trata-se antes de tudo de uma possibilidade de alteração, modificação, desde uma posição de controle, do homem sobre o recursos naturais, alteração esta voltada para a acumulação de riquezas materiais capaz de mover paixões e ódios. A natureza portanto, pode ser submetida à determinação quantitativa, na medida em que visa atender à vontade do homem em dominar a natureza tendo como mediação a ciência e a técnica.

Os OGM's, os organismos geneticamente modificados, enquanto resultado de certo modo de

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ciência, se inscrevem neste interesse do homem em alterar a natureza para a viabilização da acumulação de riquezas materiais. É aí que aparece a relação entre ciência, aumento da produtividade e aceleração da circulação de mercadorias e capitais. Com o interesse na acumulação de riquezas o homem altera de modo radical o ciclo próprio à natureza, não importando os impactos ambientais daí decorrentes. Em reportagem de nome Olho nos transgênicos!, publicado na revista Caros Amigos – Especial, Reforma Agrária, de setembro de 2003, Natália Viana nos dá um esclarecimento mais preciso acerca dos impactos dos alimentos geneticamente modificados:

“Um dos maiores perigos é a contaminação

de plantas naturais através do pólen de plantas transgênicas. Sezifredo 101 lembra o acidente que aconteceu nos EUA em setembro de 2000, quando o milho estarlink, produzido para alimentação animal e alergênico para pessoas, contaminou outras espécies de milho, atingindo cerca de trezentos produtos, que tiveram de ser retirados dos supermercados.

Outro grande problema é o aumento do consumo do herbicida glifosato, o único que pode ser aplicado junto à soja Roundup Ready, patenteada pela multinacional de sementes Monsanto. Para Sezifredo, a adoção da soja transgênica implica um aumento do consumo desse veneno, que pode causar desde irritações na

101 Sezifredo, na ocasião, era um consultor técnico do Instituto

Brasileiro de Defesa do Consumidor, o IDEC.

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pele até intoxicação, passando pela contaminação de rios e águas subterrâneas”. 102

A ação de muitos grupos financeiros tal como a Monsanto, também caminha nesta mesma direção, pois é através da mediação da ciência e da técnica enquanto instrumento, que se abre a possibilidade para o homem de alteração e violação da natureza, vinculada por sua vez à continuidade das desigualdades sociais radicais sem que se tenha em vista os problemas a serem gerados, seja no corpo humano ou no meio ambiente.

A atuação do complexo Aracruz Celulose no Espírito Santo, também se inscreve nesta mesma perspectiva. Tendo como interesse a monocultura voltada para exportação, prática antiga em nosso raio histórico, o complexo Aracruz Celulose, maior produtora e exportadora de poupa branqueada de eucalipto no mundo, altera e desvia, sem amparo jurídico, vários córregos no norte do Espírito Santo, no intuito de atender a alta demanda de água necessária ao crescimento do eucalipto, água, vale ressaltar, que não é paga pela empresa, devido aos seus benefícios governamentais.

Para o crescimento do eucalipto são utilizados muitos agrotóxicos e herbicidas que alteram a estrutura do vegetal diminuindo o seu tempo de corte, visando o corte em um tempo mais curto para a comercialização cada vez mais rápida. Deste modo,

102 Caros Amigos – Especial - Reforma Agrária; setembro de 2003,

p. 21.

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modifica-se por meio de uma certa técnica, o ciclo próprio à natureza, abrindo a possibilidade de através das chuvas estes resíduos serem levados até os rios, reduzindo e alterando desta maneira, o fluxo natural de peixes e animais na região de modo a criar sérios desequilíbrios ecológicos.

A ação violenta do complexo Aracruz Celulose junto aos recursos naturais não sem a mediação da ciência e da técnica, tem também a sua continuidade no seu trato com as comunidades locais. Na medida em que ao desapropriar de forma violenta as comunidades indígenas e negras de suas terras, as tirando os meios de subsistência e lançando-as para os subúrbios urbanos onde a necessidade por dinheiro é mais imediata, isso não sem o apoio do Estado, logo os portadores da vontade de verdade de tais práticas políticas que têm como instrumento certo modo de ciência e técnica, enunciam e sobretudo justificam tal maneira violenta de tratar a natureza e o outro que nela habita, enquanto algo que é necessário ao “desenvolvimento social e econômico” do Espírito Santo, sendo aqueles que enunciam tal perspectiva unilateral, muitos biólogos, químicos e demais cientistas.

Nesta direção, a perspectiva da ciência e da técnica aparece e mostra-se aí como instrumento de acumulação de capital e aprofundamento dos abismos sociais e desequilíbrios ecológicos. É nesta perspectiva que ganha sentido a afirmação de Marcuse acerca da íntima relação entre exploração do homem e dominação da natureza promovida a ferro e fogo

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através de certo modo de ciência, “uma ligação que tende a ser fatal para esse universo” 103, pois para o pensador alemão, “O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza.” 104

Todavia, esta categoria, ser humano, homem, tal como foi lançada por Marcuse, não nos diz muita coisa se quisermos aqui traçar uma certa distinção entre um algo e outro algo, dito em outros termos, entre uma forma e outra de se posicionar diante de um mesmo tema ou ação prática. Neste sentido, quando falamos do trato do ser humano com a natureza, nos é necessário ter a dimensão de que não podemos encontrar em nosso raio histórico um conceito universal sobre o que seja tal trato, um conceito desta ordem teria a incongruência de eliminar as diferenças e contextualizações históricas e econômicas, uma vez

103 Marcuse, Ideologia da sociedade industrial, p. 160. 104 Idem, Ideologia da sociedade industrial, p. 154. Mais adiante nos

indica Marcuse: “O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e promoveu um universo no qual a dominação da natureza permaneceu ligada à dominação do homem - uma ligação que tende a ser fatal para esse universo em seu todo. A natureza, cientificamente compreendida e dominada, reaparece no aparato técnico da produção e destruição que mantém e aprimora a vida dos indivíduos enquanto os subordina aos senhores do aparato. Assim a hierarquia racional se funde com a social. Se esse for o caso, então a mudança na direção do progresso, que pode romper essa ligação fatal, também afetaria a própria estrutura da ciência - o projeto científico.”; p. 160.

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que o trato com a natureza não é do mesmo modo para este ou aquele outro segmento social, sobretudo quando pensamos na dimensão da divisão técnica fixada na organização do mundo do trabalho. Uma indicação mais precisa em relação ao encaminhamento do problema nos trás Maurício Waldman em seu livro Ecologia e lutas sociais no Brasil, ao seu capítulo 1 de nome Ecologia na perspectiva dos trabalhadores:

“Ora, é uma descomunal cegueira política

falar em desequilíbrio ambiental apontando-se responsáveis tão indiferenciados quanto “atividade industrial”, “homem”, etc. De que “homem” ou “atividade industrial” estamos, enfim, falando? Em uma sociedade dividida em classes como a nossa, este “homem” estaria identificado com o proprietário dos meios de produção ou com o trabalhador “livre e assalariado”? Em outras palavras: em uma companhia de celulose que devasta a floresta, colocaríamos em um mesmo plano o proprietário e o trabalhador, ou seria necessário fazer um “corte social” para melhor identificar o problema?

(...) Assim, é necessário recordar que vivemos em um regime regido por uma divisão social do trabalho, onde a uns cabem decisões e a outros, o cumprimento de diretrizes previamente traçadas. O caráter privado da propriedade no regime capitalista determina uma apropriação privada da natureza, seja em escala local, nacional ou mesmo

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mundial, dado o caráter de internacionalização do capitalismo. ”105

Nesta direção, no campo da organização do trabalho, que é uma das possíveis formas de mediação do homem com o mundo, com a sociedade e com a natureza, realizou o pensamento guiado por unidades de medida quantificáveis, isto é, pelo cálculo, transformações radicais nas relações entre os seres humanos na esfera da organização do trabalho, que por sua vez se torna cada vez mais especializado em sua divisão técnica.

Na perspectiva de Marcuse no que se refere à organização do trabalho em nosso raio histórico, a ciência inaugurou a relação dos homens “entre si de acordo com qualidades quantificáveis - a saber, como unidades de força de trabalho abstratas, calculáveis em unidades de tempo.” 106 Isto é, para a gerência técnica do mundo do trabalho no mundo contemporâneo, a medida do trabalho é a quantidade, ou seja, a medida do trabalho é o tempo do relógio em sua relação imediata com o tempo da produção. Neste sentido, o modo de relação entre os homens fundado na quantidade, que aparece no modo de organização do trabalho no mundo moderno, indica-nos um uniformizar as diferenças, ao passo que a individualidade, a autonomia e a singularidade de cada

105 Maurício Waldman. Ecologia e lutas sociais no Brasil. Capítulo

1: Ecologia na perspectiva dos trabalhadores. Editora Contexto. Coleção: Caminhos da Geografia. São Paulo, 1994, segunda edição, p. 11 e 12.

106 Marcuse, Ideologia da sociedade industrial, p. 152.

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indivíduo dissipa-se e se dissolve na uniformidade que a técnica impõe, articulando produtividade, execração da autonomia e consequentemente dominação da vida e do trabalho alheio, isto desde uma racionalidade fundada na quantificação da realidade. É nesta direção que nos indica Marcuse:

“... a tecnologia também garante a grande racionalização da não-liberdade do homem e demonstra a impossibilidade ‘técnica’ de a criatura ser autônoma, de determinar a sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato técnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produtividade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege, assim, em vez de cancelar, a legitimidade da dominação...” 107

Em outra direção, quando pensamos nas relações entre a organização do trabalho e as transformações tecnológicas, nos deparamos com um problema, a saber, costumamos relacionar de modo imediato e impensado, as inovações tecnológicas com desemprego, de modo a criarmos uma certa negação ou aversão em relação à ciência e suas inovações técnicas na esfera do trabalho. Não que relacionar desemprego com transformações técnicas esteja de todo equivocado, mas para chegarmos a esta afirmação, o pensamento precisa atravessar um certo percurso.

107 Idem, p. 154.

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Na divisão técnica do trabalho, as transformações tecnológicas podem ser utilizadas de modo a reduzir a carga horária dos trabalhadores, sem redução de salário, não só com a perspectiva de não gerar desemprego em massa, mas também como alternativa de inclusão daqueles que estão à margem do mundo do trabalho. No entanto, historicamente, as inovações no campo da ciência e da técnica têm sido utilizadas como instrumentos de alargamento dos abismos sociais no mundo contemporâneo e urbano, na medida em que, com o interesse de diminuir os custos e aumentar a produtividade, os patrões optam pela demissão em massa e não redução das horas de trabalho. O que resulta em uma apropriação da ciência e da técnica, neste aspecto, como meio de acumulação e concentração de riquezas materiais de modo ilimitado.

De todo, a estrutura de conhecimento da ciência, fundada que é na estrutura sujeito e objeto, encontra na modernidade ocidental a sua primazia ao passo que converge para si uma posição de dignidade hierárquica mais elevada, na medida em que nega e lança em uma posição inferior todo modo de conhecimento que não esteja fundado na noção de conhecimento empírico, como a ficção ou a própria filosofia. Deste modo, diante do problema do conhecimento, a ciência reivindica-se como situada desde uma posição de dignidade, ao passo que o modo de conhecimento científico toma para si o topo da hierarquia racional no mundo moderno, justo por seu caráter empírico fundado que é na quantidade, na medição e no cálculo.

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Neste sentido, tomando a perspectiva de Marcuse, a saber, a de que o conhecimento científico ofereceu em sua forma - conceitos, métodos -, os meios necessários para a dominação da natureza - que é tomada como objeto -, por mediação da dominação e exploração do trabalho alheio, indicando deste modo a necessidade histórica entre conhecimento científico e prática científica, abre-se então a indicação de que esta primazia na hierarquia racional pleiteada pela ciência, em seu desdobramento histórico, encontra também sua continuidade na hierarquia social e na divisão técnica do trabalho, ao passo que as disparidades sociais e a apropriação privada da natureza, responsáveis por nossos apocalípticos desequilíbrios ecológicos, não podem ser desvinculados da pretensão e efetividade histórica da ciência enquanto forma de conhecimento que toma para si o topo da hierarquia racional, ao passo e na mesma medida em que nega tudo o que não é empírico, quantificável ou medido. É neste sentido que, segundo Marcuse, “a hierarquia racional se funde com a social. Se esse for o caso, então a mudança na direção do progresso, que pode romper essa ligação fatal, também afetaria a própria estrutura da ciência - o projeto científico.” 108

108 Marcuse, Ideologia da sociedade industrial, p. 160.

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Trabalho e manipulação do corpo e das vontades

“we are the robots

functioning automatik and we are dancing mekanik

we are the robots” Kraftwerk

O trabalho, tal como predominantemente o conhecemos, consiste em uma forma privilegiada de mediação da relação do ser humano com a natureza, isto significa: se o ser humano altera e transforma a natureza para atender às suas mais diversas necessidades físicas ou espirituais, isto não se efetiva sem a mediação do trabalho. Deste modo, é através do trabalho que o ser humano transforma a natureza, bem como a si mesmo, isto quer dizer: ao realizar a sua intervenção na natureza para atender esta ou aquela necessidade, o ser humano está também se transformando, uma vez que após o ato de transformar a natureza o ser humano não permanece o mesmo.

O que pretendemos aqui trata-se de uma tentativa de compreender como o trabalho aparece no mundo contemporâneo, suas relações com o(a) trabalhador(a), bem como as relações deste(a) com o produto de seu trabalho, e por extensão, pensar as relações entre o(a) trabalhador(a) e o(a) não-trabalhador(a). Sobretudo, cabe ressaltar, que o objeto de nosso pensamento consiste naquele modo de trabalho que na sua realização produz alguma mercadoria, algum produto,

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que uma vez separado do trabalho ou do trabalhador que o produziu, é lançado ao mercado, de modo que um valor em dinheiro, ou mesmo um valor de troca, é nele (no produto do trabalho) fixado de acordo com as circunstâncias econômicas da sociedade.

Com o surgimento das grandes cidades no início do século XIX na Europa, não só a distribuição da população no espaço geográfico passa por radicais transformações, passando a concentrar nos centros e subúrbios urbanos a grande maioria da população, mas também, a organização do mundo do trabalho passa por alterações nunca vistas antes na história da humanidade. É neste período que começa a se extinguir a figura do artesão, aquele trabalhador que possui tanto os seus instrumentos de trabalho, como também, conhece todas as etapas da produção de sua mercadoria. A partir da Revolução Industrial 109 uma série de transformações técnicas irão exigir não só novas formas de trabalho, uma vez que o trabalho passa por uma certa divisão de funções, como também,

109 “Por Revolução industrial convencionou-se designar o processo de transformações econômicas e sociais, caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela consolidação da produção capitalista. Tal processo assinala, ainda, a passagem em definitivo da produção baseada em relações feudais para a produção em que o capital e o trabalho estão definitivamente separados, isto é, a produção capitalista. A introdução do sistema de fábricas e a crescente mecanização das forças produtivas iniciou-se na Inglaterra, em fins do século XVIII, espalhando-se posteriormente, ao longo dos séculos XIX e XX para outros países.” In: Capítulo 5. A Revolução industrial e a nova sociedade do trabalho, p. 187, História – volume I. Ricardo de Moura Faria, Adhemar Martins Marques, Flávio Costa Berutti. Editora Lê S/A, Belo Horizonte, Minas Gerais, 1989.

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a circulação de mercadorias passa a ser realizada em uma escala cada vez mais crescente. Nesta direção, é com o surgimento das indústrias que estas transformações no mundo do trabalho e no movimento de circulação de mercadorias e capitais se faz possível, vem-a-ser.

Ora, como é então o trabalho desde a sua organização voltada para a produção fabril? Ou antes mesmo, que preço tem o trabalho desde esta perspectiva? É o valor do trabalho suficiente para atender às necessidades físicas e espirituais do trabalhador? O trabalho, como nos afirma o dito popular, dignifica o homem? Quanto mais trabalha mais o trabalhador ganha?

De certo que, é através do trabalho que nos tornamos consumidores, adquirimos o direito de compra, deste ou daquele produto que nos interessa ou que é de nossa necessidade, nas limitações que o valor quantitativo do trabalho, o salário, nos impõe. Ora, ser consumidor, na atual forma de organização da vida e do trabalho, é ser humano, se não participamos do mundo das coisas através do ato de comprar, perdemos a nossa condição humana, nos aproximamos do animalesco, pensando bem, nos aproximamos de algo que nem sequer temos nome, uma vez que fora do conjunto dos consumidores não realizamos nossas necessidades mais vitais, mais imediatas, como alimentação, moradia, e vestuário.

Enfim, nos encontremos com as questões a pouco lançadas, não pretendemos fugir delas. Na perspectiva de Karl Marx em seus Manuscritos econômico-

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filosóficos, escritos em 1844, a sociedade contemporânea se divide em basicamente duas classes sociais, a saber, uma consiste nos possuidores de propriedade, e a outra, em maior número, compõe-se de trabalhadores sem propriedade 110. Ora, o que resta aos trabalhadores sem propriedade, sem instrumentos de trabalho? Resta-lhes sua energia física e espiritual, que permite a uma parte dos trabalhadores participar do mundo do trabalho. Deste modo, em troca de sua energia física e espiritual, uma vez participando de algum modo de trabalho, aos trabalhadores sem propriedade é pago um valor quantitativo, isto é, um salário. Ora, em que consiste este salário, que os trabalhadores sem propriedade recebem em troca do esgotamento de suas energias físicas?

Na perspectiva de Marx o salário é, nada mais, que um valor correspondente à permanência do trabalhador em seu trabalho, isto é, “[para que] a raça dos trabalhadores não se extinga.” 111 Isto significa: o valor do salário paga somente a ida do trabalhador ao seu local trabalho, bem como, paga aquilo que é necessário para que ele literalmente permaneça em pé. Ou seja, o que é consumido com o salário consiste apenas naquilo que permite ao trabalhador continuar vendendo a sua força física. Ora, se a mercadoria é aquilo que se atribui, em determinada situação, um valor de troca, um valor em dinheiro, é também o trabalhador uma mercadoria, na medida em que o

110 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, Trabalho estranhado e propriedade privada, p. 79.

111 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, Caderno I, Salário, p. 24.

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salário é o valor desta mercadoria, que é sua energia física. Nesta direção afirma Marx: “A existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição de existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele conseguir chegar ao homem que se interessa por ele.” 112

Uma vez que a máquina impôs a divisão técnica do trabalho, separando por funções as partes de determinado trabalho, e também pelo fato de o trabalhador ser ele mesmo uma mercadoria, podemos afirmar a partir daí que o trabalho trata-se da relação entre uma mercadoria e outra, que no ato produtivo gera outra mercadoria. Ora, que é isto? Se a energia física do trabalhador é ela mesma uma mercadoria, no trabalho, o ser humano não é tratado como tal, mas sim como uma mercadoria que possui um preço, o salário, daí que “o trabalhador, longe de poder comprar tudo, tem de vender-se a si próprio” 113 . Deste modo, a mercadoria que é o trabalhador, em sua relação imediata com outra mercadoria, a máquina, produz outra mercadoria, que consiste no resultado da relação entre duas mercadorias, que não os produtos do trabalho. O trabalhador, portanto, não só trabalha com máquinas, mas também, como uma máquina.

Em Tempos modernos, “Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em busca

112 Idem. 113 Idem, p. 28.

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da felicidade” 114 , o modo de vida que Chaplin interpreta em cena de nome E o tempo corre, de tão fora de si e tão perturbado pelo tempo veloz do trabalho, passa, de repente, a esquecer que está fora do trabalho, continuando repetidamente os gestos necessários exigidos na indústria, após o momento em que fora interrompido por outro trabalhador, pois aquele (Chaplin) tentou realizar o delírio de ser mais rápido que a máquina, e logo em seguida, permanecendo em seu delírio, realiza inesperadamente uma ação que nos abre a possibilidade de compreender melhor que não só os trabalhadores trabalham com máquinas, mas também, como máquinas. De repente, subitamente, Chaplin pega um recipiente com óleo e passa a jorrar este líquido usado habitualmente em máquinas e o lança no corpo dos outros trabalhadores, como se quem precisasse de óleo não fossem somente as máquinas, mas em primeiro lugar, os trabalhadores, que exercem suas funções com gestos tão mecanicamente repetitivos tais como o de uma máquina.

Nesta direção, na ótica de Marx, ao trabalhador é pago “somente tanto quanto for necessário para ele existir, não como ser humano, mas como trabalhador, não para ele continuar reproduzindo a humanidade, mas sim a classe de escravos [que é a] dos trabalhadores.” 115 Assim, como a um determinado

114 Tempos modernos, escrito, dirigido e produzido por Charles Chaplin com Paulette Goddard; Cena 1: Dirigido por Charles Chaplin.

115 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, Caderno I, Salário, p. 28.

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animal dá-se somente o necessário para a sua sobrevivência, também ao trabalhador dá-se o necessário para que ele continue não vivendo, mas sim, sobrevivendo 116.

Neste modo de trabalho, o capital 117, que na ótica de Marx é “trabalho armazenado” 118, consiste naquele poder que decide quais as exigências práticas do mundo do trabalho, isto significa: não são os trabalhadores sem propriedade que decidem que modalidades de trabalho desejam realizar, mas sim um outro poder que não o dos trabalhadores.

Isto é, ao capital é dado o privilégio de decidir que modalidades de trabalho devem existir no mundo. Nesta direção, para os possuidores de propriedade, de capital, aos trabalhadores não cabe a decisão de escolher este ou aquele modo de trabalho, uma vez que para o capital, os trabalhadores não têm nomes, são anônimos, pois são unidades de medida quantificáveis. Ora, o que mede o salário senão a

116 Aqui, sobretudo nos cabe realizar uma certa distinção, entre viver e sobreviver. Em uma canção do álbum Clube da esquina 2 ouvimos acerca de uma certa gente que “não vive, apenas agüenta” (Maria Maria – 1978, Emi-Odeon Brasil). Em canção de nome Propaganda, da Nação Zumbi, ouvimos na voz de Jorge Du Peixe: “É melhor viver do que sobreviver” (Gravado por Marcos Ferrari nos estúdios Trama entre maio e abril de 2002 em São Paulo/SP).

117 Posses, quer em dinheiro quer em propriedades, possuídas ou empregadas, em uma empresa comercial ou industrial por um indivíduo, firma, corporação; Importância que se põe a render juros; Riqueza ou valores acumulados, destinados à produção de novos valores; (Dicionário Michaelis – UOL, digital)

118 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, I – Ganho do capital, 1. O capital, p. 40.

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abstrata relação entre as horas de trabalho e o movimento da produção?

Predominantemente, para o capital, os trabalhadores não têm interesses, desejos, afetos, estados de humor, capacidade de criação, mas, em primeiro lugar, têm energia física e espiritual que pode através de um valor, que é o salário, ser submetida e colocada ao serviço da produção de mercadorias que possam gerar o maior ganho possível com o mínimo de custos. É neste sentido que afirma o filósofo alemão: “O capital é, portanto, o poder de governo sobre o trabalho e os seus produtos. O capitalista possui esse poder, não por causa de suas qualidades pessoais ou humanas, mas na medida em que ele é proprietário do capital. O poder de comprar do seu capital, a que nada pode se opor, é o seu poder.” 119

Ora, compreendido aí que para o capital o interesse primeiro é o de gerar o máximo de riquezas possível, isto de modo ilimitado e constante, não sem uma concentração destas riquezas nas mãos de poucos, poderíamos nos posicionar diante do seguinte problema que se abre para o pensamento: os interesses do capital estão de acordo com os interesses da sociedade em seu conjunto?

Ora, este modo de organização do mundo do trabalho que faz da realização do trabalho a negação da vida do trabalhador, trata-se, sobretudo, de um modo de organização em que os interesses do capital não somente não estão de acordo com os interesses da

119 Idem.

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sociedade em sua totalidade, como também, estão na direção contrária aos interesses desta. Isto significa: os interesses do capital estão, salvo hipotéticas situações, necessariamente contra os interesses e perspectivas da comunidade humana como um todo.

Nesta direção, ao produzir riquezas através de seu trabalho, é o trabalhador lançado cada vez mais na miséria. Ora, em que sentido? A afirmação de que quanto mais o trabalhador trabalha mais ele ganha, perde todo o seu fundamento, isto é, perde todo o seu sentido, se pensarmos que no ato de produzir esta ou aquela mercadoria, o trabalhador engrandece um poder de um ser outro que não ele mesmo, engrandece um poder estranho que nem mesmo o trabalhador consegue definir precisamente qual a sua face. Neste sentido afirma Marx nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, em capítulo de nome Trabalho estranhado e propriedade privada:

“O trabalhador se torna tanto mais pobre

quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.

Este fato nada mais exprime, senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe

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defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor.” 120

Isto significa precisar que o produto do trabalho realizado pelo trabalhador, uma vez separado daquele que o produziu, se mostra como um poder, como o afirma Marx, “independente do produtor”, ou seja, o mundo das coisas, das mercadorias, que foram geradas a partir do emprego da energia física e espiritual do trabalhador, se separa dele, e justamente nesta separação entre resultado do trabalho e produtor, é que se ergue um poder que vai contra ele mesmo, ou em outros termos, o objeto produzido se volta contra o seu produtor, na medida em que retira (suga) deste o máximo de energia física e espiritual.

Neste sentido, este modo de trabalho mostra-se não como encontro da vida com a própria vida, mas em direção oposta, mostra-se como desencontro da vida com a própria vida. Isto significa dizer: através da realização deste modo de trabalho ocorre a desrealização do trabalhador, ou em outros termos, a negação ou mesmo ruína da vida deste.

Daí compreendermos que no trabalho o trabalhador se torna outro ser que não ele mesmo. É justo neste aspecto que ganha sentido a afirmação de Marx, a saber, de que no trabalho o trabalhador “não pertence ao seu ser, (...) ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, (...) não se sente bem, mas infeliz, (...) não desenvolve nenhuma energia

120 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, Trabalho estranhado e

propriedade privada, p. 80.

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física e espiritual livre, mas mortifica... e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, (...) em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho.” 121

O mais assombroso, assustador e demoníaco, é que a grande maioria da população no mundo foi reduzida, em um pouco menos de dois séculos, a este modo de trabalho que comete de modo radical, não só o assassinato da criação, a ruína do corpo humano, a exploração extremada da natureza, da qual se extrai o máximo sem nada retribuir, como também, manipula - dando outra direção- o livre desenvolvimento dos poderes da alma, ou em outros termos, das potencialidades humanas. Deste modo nos afirma Marx:

“...quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos o trabalhador pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo.” 122

A vida do trabalhador, portanto, é tomada ou mesmo roubada pelo trabalho, pois no percurso de sua vida não vive para si, mas somente para o trabalho. Isto significa: é no trabalho (não estamos nos referindo a qualquer modo de trabalho) que a morte

121 Idem, p. 82 e 83. 122 Idem, p. 81.

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ocupa o espaço da vida com uma intensidade maior. Isto, nos cabe ressaltar, em relação ao não-trabalhador, aquele indivíduo ou grupo que emprega de algum modo a energia física do trabalhador para a geração do máximo de riquezas materiais em um curto espaço de tempo. Riquezas que se separam do trabalhador, pois no resultado do trabalho não mais pertencem a quem as gerou, ou seja, não pertencem aos trabalhadores sem propriedade aos quais é pago em troca um medíocre valor quantitativo, ao passo que a medida da extensão do trabalho é a quantidade e não a qualidade.

Nesta direção, a alma dos trabalhadores só é útil no trabalho, que rouba toda a sua energia física e espiritual para a geração de riquezas materiais que ao trabalhador não pertencem. Para outras coisas além do trabalho mecânico e repetitivo, a alma dos trabalhadores torna-se inútil na mesma medida que atrofia sua criação, ao passo que não desenvolve livremente aquilo que está no horizonte de seus interesses e necessidades.

Nesta perspectiva, a feroz concorrência entre os trabalhadores não abre a possibilidade da realização de interesses que não os mais imediatos para a sobrevivência, como alimentação, moradia e vestimenta. Isto não de modo satisfatório, mas sobretudo de modo precário e medíocre. Uma canção dos meninos do Mundo Livre S/A, de Recife, de nome A bola do jogo, pode nos abrir indícios para uma melhor compreensão acerca da alma dos trabalhadores, assim ouvimos Fred Zero Quatro cantar tomado por certo estado de humor e cólera:

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“Minhas pernas são bastante fortes Como as de todo trabalhador Meus braços são de aço Como os de todo operário

Mas como já dizia um velho casta ‘A merda dos trabalhadores

É sua alma inútil’ E eu tenho uma alma que deseja e sonha Mas como já dizia uma velho casta

‘A alma dos trabalhadores É como um carro velho Só dá trabalho’ ” 123

123 A bola do Jogo, letra de Zero Quatro; canção do álbum Samba

esquema noise, de 1994; Mundo Livre S/A.

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Educação e sociedade: entre a técnica e a ojeriza ao pensar

Se você está aqui É porque veio

Se você veio até aqui É porque está atrás

de alguma coisa Se você não quer nada

Porque não vai embora? Titãs

Linguagem e sociabilidade O breve ensaio que ora se segue terá como fio a

ser perseguido tratar do problematizar o educar, ou nos fixando melhor em nosso alvo: a educação, justo a partir de sua relação com a linguagem, a sociedade, a técnica e a ciência. Ora, mas que diabos significa pensar a Educação? Em nossa perspectiva inicial, significa antes de tudo pensar na própria origem do conhecimento, ou seja, no percurso de aprendizagem a partir da formação de nossa própria linguagem. Que é isto?

O espaço da escola não se constitui enquanto o único espaço em que aprendemos a formar a nossa própria linguagem e as nossas visões de mundo. Entendemos por linguagem o conjunto de símbolos que utilizamos para nomear o real, sendo a tentativa de nomear a realidade um ato criativo. Justamente por ser a linguagem um ato que se renova e que portanto se

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cria, podemos entender essa criação como cultura, ou seja, tudo aquilo que é criado pelo ser humano pode ser definido como cultura. Sem a linguagem não há memória e muito menos conhecimento sobre a realidade. Entre nós e a realidade está justamente a linguagem, que nos permite compreender os diversos aspetos do real. Neste sentido, podemos entender a educação como cultura.

No que se refere à linguagem oral, a formação de nossa própria linguagem é efetivada pela apropriação daquilo que já foi criado pelas gerações que vieram antes de nós, ou seja, nos apropriamos daquilo que foi construído através de séculos. “Para atingirmos o grau de conhecimento e consciência que temos hoje foram necessários muitos séculos de conquistas, de avanços, de descobertas” 124, assim nos indica Antônio Vidal. À linguagem e ao conhecimento formado e fixado através de séculos podemos dar o nome de tradição. Essa tradição não permanece imutável, é antes de tudo renovada e recriada por nós mesmos quando queremos nos comunicar com o outro, ou quando a natureza é transformada pelo ser humano. Temos também a noção de que o homem para viver no espaço urbano tem a necessidade de viver com outros seres humanos, pois não pode viver isolado da comunidade humana.

Nesta direção, a formação de nosso conhecimento através da linguagem não é, portanto, adquirida somente na escola. É antes de tudo no

124 Antônio Vidal, Cultura: uma conversa inicial, p. 2.

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espaço em que vivemos, ou seja, na comunidade humana, que o processo educacional se desenvolve. Educação portanto não é somente aquilo que ouvimos na escola. Ao entendermos educação como cultura podemos nos lançar ao seguinte problema: como se dá a formação de nossa cultura?

É a partir da nossa vivência que aprendemos a formar e elaborar a nossa própria cultura através do ato de transformar a natureza para atender às nossas necessidades, e por extensão, a partir do ato criativo de nomear a realidade através da linguagem, e sobretudo – e aí está nosso grande movimento-, quando desejamos nos comunicar com o outro. Neste sentido, é por mediação da experiência concreta, ou em outros termos, através da convivência e daquilo que nos chega através da tradição, que construímos nossas visões de mundo. Ou seja, é na família, na rua, na igreja, no trabalho e na escola que adquirimos valores culturais através da linguagem.

Nesta direção podemos entender a escola como um dos espaços em que aprendemos parte do nosso conhecimento e de nossa cultura através da linguagem transmitida entre aqueles que freqüentam este mesmo espaço, isto é, a escola. Essa transmissão através da linguagem oral ou escrita, que nomeamos como educação, não é uma tarefa fácil, se é que o sentido de educação reside aí. Ora, diante deste problema poderíamos nos posicionar: porque o estudar não pode ser tomado como uma tarefa fácil? Em nossa perspectiva, é necessário nos confrontar precisamente com a idéia de que o estudar e o formar consiste em

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uma tarefa simples que pode ser efetivada sem o mínimo de esforço, como se fosse uma maneira de passar o tempo de forma “agradável”. É o filósofo italiano Antônio Gramsci que nos lança o alerta para a necessidade de nos confrontarmos com a idéia de que o estudo é algo da ordem do simples. Segundo ele,

“Deve-se convencer a muita gente que o

estudo é também um trabalho, e muito fatigante, com um tirocínio 125 particular próprio, não só muscular – nervoso, mas intelectual: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e mesmo sofrimento. (...) Muitos pensam, inclusive, que as dificuldades são artificiais, já que estão habituados a só considerar como trabalho e fadiga o trabalho manual.” 126

Segundo o filósofo, estamos habituados a caracterizar como trabalho cansativo somente o trabalho manual, assim, passamos a compreender o estudar, o formar e as atividades do espírito, como algo que possui as mesmas características da “brincadeira”, mero voluntarismo, algo que se realiza somente na base do espontaneísmo. Ora, nos fixemos então em nosso problema: que é então brincadeira?

125 Tirocínio: s.m. 1. primeiros exercícios; aprendizado. 2. prática ou exercício militar para desempenho de um cargo. (Dicionário Michaelis – UOL – digital)

126 Gramsci, Para a investigação do princípio educativo, pág. 138 e 139. Artigo encontrado no livro Os Intelectuais e a Organização da Cultura.

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Em certa perspectiva, brincadeira é antes de tudo algo que podemos realizar sem o mínimo de esforço, de modo espontâneo. É também aquilo que não possui objetivo outro senão passar o tempo de uma forma que nos agrade. É preciso então compreender o ato de conhecer e realizar descobertas novas como algo que exige esforço e atenção, pois o estudar e o formar é também um trabalho, e principalmente um trabalho que não é simples.

Nesta direção, nos cabe também exorcizar a idéia de que o professor é somente aquele que possui ou detém a “verdade”. Ora, se o processo ou o movimento de formação do conhecimento através da linguagem depende da transmissão ou confronto de valores culturais de uma pessoa para outra ou entre uma e outra, podemos entender a educação como algo que só se abre na dimensão do possível caso exista diálogo entre professor e aluno. Caso esse diálogo não ganhe pernas, também não caminhará o movimento do educar e do formar, ao passo que, nesta ausência de alteridade nada se articulará de fixo em terreno de conhecimento. Percorrendo esta perspectiva, se entendemos que a nossa linguagem e a nossa cultura se renova e se recria a cada dia a partir da nossa relação como o outro, podemos dizer que tanto o professor quanto o aluno, quando criam pontes entre si por mediação do diálogo, estão em constante processo ou movimento de aprendizagem. A idéia de verdade nesta perspectiva, é portanto formada historicamente, ou seja, algo que a humanidade há 400 anos atrás tinha como verdade, como referência

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cultural, hoje já não mais tem validade na comunidade humana.

Pensar em negar a idéia e a imagem da verdade que depositamos na figura do professor de modo indiscriminado, significa também refletir sobre a relação entre linguagem e poder. Ora, se posicionarmos o professor na extremidade superior da verdade, isto significa imaginar que o aluno é órfão ou oco de qualquer poder de fala, e que nesta extensão, só a fala e o dizer do professor tem proximidade com a verdade. Mas enfim, o que é a verdade? Como vimos, a idéia de verdade é fixada historicamente, e justo nesta extensão, as verdades têm validades históricas, pois se situam no tempo e no espaço. Para além disso, não é de nosso alvitre nos fixar sempre previamente em verdades universais, isto é, verdades que tenham validade para todos os seres humanos indiscriminadamente, pois cada modo de ser realiza seu movimento no que se refere à formação cultural que lhe é própria. Portanto, uma verdade em que um ser humano deposita crença, pode não ser referência para o outro, e assim sucessivamente, pois em sociedade nos relacionamos como diferentes no que se refere às distintas formações culturais. E é justamente por mediação desta diversidade cultural, do entendimento da cultura do outro, que se movimenta o processo do educar. Entendimento nesta direção, entretanto, é distinto de aceitação e submissão passiva.

Portanto, a noção de que só o professor possui ou detém a verdade, precisa ser exorcizada, pois na extensão da ação do ser humano não se encontra a

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capacidade de, através da linguagem, nomear a realidade em sua totalidade, inteireza acabada ou em repouso. Posto que, por mais que se conheça em relação à realidade, a dimensão do que ainda não foi conhecido, habitado pela palavra ou discernimento, está fora do alcance de nossa linguagem, e nesta extensão, o pensamento incomunicável terá sempre a sua posição, embora nos escape à racionalidade. Isto é, a linguagem sistematizada e racionalizada, justo por suas limitações, não dá conta de tornar todo e qualquer pensamento comunicável.

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Indivíduo e sociedade O tema em torno das relações entre indivíduo e

sociedade, se instaura como o problema do pensamento que deseja orienta-se para uma melhor compreensão acerca da relação entre educação e comunidade humana. Trata-se de um problema em que encontramos no percurso do pensar, ora a prevalência de uma vaga idéia de sociedade, ora o privilégio de uma ideal ou utópica noção da ação individual. Isto cabe ressaltar, em campos distintos, uma vez que o privilégio real da ação social, em perspectiva de Marx, é dos “possuidores de propriedade” 127, que se sobrepõe ao indivíduo, e em outra direção, está no campo ideal um possível privilégio da ação individual, situada em uma posição de ainda não, um porvir ou “por pouco”.

Ao encaminhar reflexões como estas o que permanece é que, apesar da auto-formação como um orientar-se para o desenvolvimento das potencialidades individuais ser algo realizável no tempo, na história, não podemos perder de vista que de algum modo a sociabilidade, a con-vivência, ou melhor, as formas e condições materiais de sociabilidade no percurso de uma vida, operam um certo (ou indeterminado) poder sobre o indivíduo, a pessoa.

127 Marx, Manuscritos econômico - filosóficos; Trabalho estranhado e

propriedade privada; p. 79.

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Por outro lado, assim como a decisão acerca de parte dos postos de trabalho que devem existir no mundo, não ser do privilégio dos “trabalhadores sem propriedade” 128 , na ótica de Marx, para o qual é o capital “o poder de governo sobre o trabalho e os seus produtos” 129, também o trato com o financiamento da educação, terá o mesmo interesse ou perspectiva, a saber, a permanência e continuidade dos abismos sociais desde instituições de ensino e pesquisa orientadas hegemonicamente para este horizonte de ação, pois o público que a escola agrega não decide de todo, como a educação deve ser desenvolvida e realizada.

128 Idem, p. 79. 129 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos; I - O ganho do capital, 1.

O capital; p. 40.

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Educação, ciência e técnica

Para situarmos melhor o pensamento acerca da educação, em um primeiro momento não devemos tomá-la como algo isolado ou em si mesma, na medida em que educação é afetada por forças econômicas, sociais, culturais e políticas. Deste modo, nos cabe aqui situar educação como prática institucionalizada, que ocupa certo lugar no mundo do trabalho.

Como indicamos há pouco, a divisão social do trabalho no mundo contemporâneo tem íntima relação com a organização da instituição escola. Ora, que significa isto? Tendo como referência a perspectiva de Marx acerca da relação entre capital e trabalho, que entende ser o capital “o poder de governo sobre o trabalho”, é também a escola, tal como habitualmente a entendemos no mundo contemporâneo, afetada radicalmente pelo mesmo poder que afeta e transforma o mundo do trabalho. Isto significa: é a educação principalmente voltada para a formação da técnica necessária para a continuidade da acumulação de riquezas materiais para poucos em detrimento da negação ou desrealização da vida da maioria dos seres humanos através do trabalho. Ora, que é isto?

Não sem propósito, é o currículo do ensino médio afetado pela primazia das ciências, bem como são os campos de investigação científica os mais privilegiados nos orçamentos de muitas empresas e Ministérios de Ciência e Tecnologia de grande parte do mundo. A indicação de que é este currículo

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radicalmente positivista130, nos abre a possibilidade de compreender que tipo de ser humano a instituição escola tem contribuído a formar. Não somente isto, o fato também do ensino técnico ou profissionalizante ter encontrado na educação brasileira o seu lugar privilegiado, deixando de lado, durante algumas décadas o ensino de filosofia, lançado a uma posição menos importante, ou mesmo sem importância ou rentabilidade, indica o quanto o mundo do trabalho, ou em outros termos, o mundo da divisão técnica do trabalho, exerce poder na organização das instituições de ensino, sejam elas públicas ou privadas.

O conluio entre certo modo de ciência e o capital, realiza na divisão por áreas de ensino na instituição escolar uma influência de modo que a quantificação, o cálculo, isto é, a compreensão da realidade como técnica, ocupe lugar privilegiado. A primazia da quantidade tem a sua extensão até mesmo na forma de relação da escola com o estudante, uma vez que é o envio do pensamento através da quantificação, o critério primeiro não só de identificação do estudante com a instituição, através do número de chamada, mas também, como critério de avaliação, ou como habitualmente ouvimos: “rendimento escolar”, que tem sua variação na abstração da escala de 0 a 10.

130 Positivismo: s.m. 1. Filos. Sistema criado por Augusto

Comte, que se baseia nos fatos e na experiência, e que deriva do conjunto das ciências positivas, repelindo a metafísica e o sobrenatural. 2. Tendência para encarar a vida só pelo seu lado prático e útil. (Dicionário Michaelis – UOL – digital)

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Nesta direção, é justamente a compreensão do mundo como quantificação das coisas, da ciência desdobrando-se em técnica como utilidade prática imediata, que afeta radicalmente a hierarquia do saber no interior da instituição escolar. Estando a escola mais interessada em propagandear a dignidade hierárquica do saber técnico em detrimento do conhecimento como criação e exercício de liberdade, uma vez que é o conhecimento como técnica que de certa maneira lança o indivíduo para alguma posição na esfera do mundo do trabalho. Pelo menos é o que nos leva a pensar, por exemplo, certa propaganda da Secretaria de Educação do Governo do Estado do ES, em que aparecem lado a lado, a Carteira de Trabalho e o emblema da SEDU, quando da oportunidade da difusão da inauguração da escola Vasco Coutinho em Vila Velha, indicando por seu turno a relação imediata entre saber técnico e trabalho, o que para nós não passa de um engodo, quando pensamos em cursos técnicos como “Gestão Empresarial”, sedutor principalmente, de parcela da juventude desorientada das classes populares, que logo logo percebe a distância abissal entre o objetivo de tal curso técnico, isto é, formar indivíduos capazes de organizar a gestão de negócios e empresas, e seu desdobramento prático, a saber, na melhor das hipóteses um emprego de recepcionista. 131

131 Com isto, não queremos negar de todo que de fato o saber técnico é depositário de possibilidades de inserção no mundo do trabalho, o problema aqui, é estabelecer uma relação imediata e necessária entre qualquer saber técnico e trabalho, de modo que o

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Este saber técnico que uniformiza as diferenças, vinculado à busca de uma posição no mundo do trabalho, não só difundido através dos chamados cursos profissionalizantes, como também por meio de um currículo escolar marcadamente positivista, trata-se de uma negação do ideal de educação como forma de livre desenvolvimento das potencialidades individuais, uma vez que esta não é a perspectiva de uma educação sensível aos apelos do mercado.

Neste sentido, a relação entre técnica, trabalho e educação em nosso raio histórico, tem fundado a forma de gerir a unidade educacional, como o demonstra a proliferação indiscriminada das escolas e cursos profissionalizantes ou técnicos, que têm por meta atender às demandas da mão de obra que o conjunto das forças produtivas necessita. Nessa perspectiva, acerca da relação entre ciência, técnica e educação nos afirma Gramsci:

“Pode-se observar que, em geral, na civilização moderna, todas as atividades práticas se tornaram tão complexas, e as ciências se mesclaram de tal modo à vida, que toda atividade prática tende a criar uma escola para os próprios dirigentes e especialistas e, consequentemente, tende a criar um grupo de intelectuais especialistas

passo daquele para este envolve uma série de questões, como por exemplo, necessidade prática e econômica deste ou daquele curso, e tratando-se de nossas terras, laços de afetividade, parentesco, ligação política ou situação econômica, que tanto contam para o ingresso no mundo do trabalho, ao passo que no Brasil o talento ou mérito individual têm menos, ou quase nenhuma importância, daí ganhar sentido a expressão popular: “O que conta é o Q.I., quem indica”.

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de nível mais elevado que ensinam nessas escolas”. 132 Em outra direção, quando pensamos no modo e

na forma de ensino de nossas instituições, sejam elas públicas ou privadas, os conteúdos e formas de conhecimento das ciências em geral, física, matemática, química, por exemplo, a maneira que isto é veiculado, trata-se de uma compreensão de que somente se está passando o saber da ciência pura, deslocada de uma prática real no mundo. Nesta direção, o pensamento que se guia pela ciência, pelo método da experimentação, medição, cálculo, quantificação, não pode ser tomado como algo separado de uma prática. Prática esta que altera, transforma e modifica a natureza e a sociedade como um todo. É nesta perspectiva que ganha sentido a afirmação de Marcuse acerca da íntima relação entre exploração do homem e dominação da natureza promovida a ferro e fogo através de certo modo de ciência, “uma ligação que tende a ser fatal para esse universo”, pois para o pensador alemão:

“O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza”. 133

132 Gramsci, A Organização da Escola e da Cultura, p. 117. 133 Herbert Marcuse, Ideologia da sociedade industrial, p. 154.

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Otimistas em relação à Educação?

O cenário da educação institucionalizada134 como a tratamos até aqui, poderia nos lançar a um apelo desesperado de retorno aos valores do passado, “antigamente não era assim”, poderíamos resmungar, e é justamente aí que se abre para o pensamento uma questão lançada por Sérgio Buarque de Holanda, assim questiona o pensador brasileiro:

“E será legítimo, em todo caso, esse recurso

ao passado em busca de um estímulo para melhor organização da sociedade? Não significaria, ao contrário, apenas um índice de nossa incapacidade de criar espontaneamente?” 135

Este apelo ao passado, ora evocando valores de

uma tradição dissipada no percurso do tempo, ora evocando os valores culturais e educacionais do mundo europeu, nos parece um pouco ingênuo, e nesta direção, encaminhar uma perspectiva otimista em relação à educação a partir destes fundamentos, consiste em um perder de vista acerca da íntima relação entre divisão social e técnica do trabalho e a organização das instituições de ensino e pesquisa, como há pouco já apontamos. Parece-nos mais

134 Em outra direção, tal cenário, além dos traços tratados até aqui, conta ainda com um certo desleixo e ojeriza em relação à formação individual por parte dos profissionais da educação, tão descompromissados com sua atividade, em sua maioria, que o agir reduziu-se ao mero, vazio e sintomático reagir.

135 Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, p. 33.

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consistente a afirmação de Rubem Fonseca acerca do caráter das instituições de ensino, que em sua perspectiva, fabrica “milhões de semi-analfabetos..., consumidores de uma arte cômoda representada pela música pop, pelo cinema e pela televisão...” 136

136 Rubem Fonseca, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, p. 15.

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A Educação no ES: entre a lascívia da mediocridade e o fascínio pelo estrangeiro

A perspectiva que se abre desde o tema que nos

vinculamos ao título trata-se de situar o pensar em relação à educação, na mesma medida em que nesta visada educação não é em si mesma, ao passo que em relação às atuais condições históricas do sistema educacional do ES, bem como, em relação a algumas de nossas nuanças culturais sorrateiramente fixadas no percurso de nossa experiência histórica. Portanto, pretendemos fazer um breve discurso a partir de tal experiência cultural, isto cabe ressaltar, não sem um tom de ironia. Nesta direção, pretendemos aqui traçar um breve cenário da experiência educacional nas escolas de ensino fundamental e médio da rede estadual do ES.

Ora, nos situar em relação à experiência da educação pública em solo capixaba significa ter a perspectiva de que tal (des)organização tem seus galopes dosados pelas rédeas da lógica das práticas políticas neoliberais. Onde a instituição educacional de caráter público é dirigida sob uma lógica administrativa sensível aos apelos, delírios e bizarrices do mercado: “Temos que agradar nosso cliente!!”, dizia uma ilustre pedagoga na velha cidade. Lógica de mercado esta que fez com que a extensão da administração da coisa pública fosse tomada como patrimônio privado de quem a dirige, sendo a continuidade e prevalência desta administração

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afastada de qualquer via de gestão da coisa pública sob o percurso de uma prática democrática, o que de certo nos demonstra a persistência em nossas instituições da invasão do público pelo privado, como bem o sabemos, herança de nosso mais arcaico patriarcalismo, já não tão rural, pois sua carapaça em território urbano aparece-nos mesmo que banhado de piche.

Quiséssemos nós que este panorama não fosse balizado em nossas leis públicas e oficiais.... Recentemente, na gestão do então governador José Inácio, foi aprovada uma lei na Assembléia Legislativa que por sua vez impôs fim à eleição direta para diretores(as) de escola, excluindo da comunidade escolar (professores, alunos, servidores administrativos) o direito de indicar através de voto direto aquele que estaria no cargo mais elevado, pelo menos em cifras, dentro da instituição escolar. Dando aos deputados estaduais o poder de escolher aquele “servidor” que, através de um cargo público, mantém e expande desejos e interesses de um determinado grupo político, como bem o sabemos algo não estranho em nossa experiência histórica.

Todavia, não podemos limitar nossa perspectiva em relação à gestão democrática nas escolas somente a partir do momento que identificamos as problemáticas da indicação institucional d@s diretores(as). O Conselho de escola, onde participam todos os segmentos da comunidade escolar, ao contrário de promover uma participação de modo a estabelecer o mínimo de “orga” em uma gestão escolar, no que se refere aos rumos da unidade educacional, através de

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projetos que aproximem as áreas do conhecimento por exemplo, em direção oposta, não atende às demandas de uma maior participação coletiva nos rumos da unidade, tanto em relação à criação quanto em relação às decisões político-orçamentárias. A oficialidade do Conselho de escola passa tão principalmente pelas finanças que acaba por se tornar espaço para homologação de prestação de contas, pelo menos. E em perspectiva de professores em relação ao próprio ofício, é a continuidade do mesmo perfazendo-se em terreno de mediocridade e banalidades, é o agir que se reduziu ao sintomático e frenético re-agir.

***

No que se refere às condições de trabalho nas escolas de ensino fundamental e médio do ES em relação aos recursos materiais, desde a infra-estrutura até bens culturais, etc., se impõem certos limites. A começar pela questão do uso da máquina de xérox, assunto deveras medíocre, porém motivo de encalourados debates por corredores dos prédios das unidades escolares, tema irresoluto, “Não há recursos!”, ouvimos, para amaciar nossa inquietude. Em relação às bibliotecas, tornara-se centro dos mais banais e nobres diálogos, enquanto as estantes, vez em quando se mostram como encostos para os ombros da mulekada. E tratando-se dos recursos técnicos de impressão, circulação de cópias, informática, vídeo, nos parece que o fascínio e encantamento sobre tais bens técnicos por parte da administração escolar criam

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um certo encobrimento das possibilidades de uso destes bens técnicos. “Vamos conservar as máquinas!! Não pode ficar usando muito!!”, ouvimos; motivo, por exemplo, para taxar xérox em qualquer circunstância a ponto desta taxa na escola ser maior que a média deste valor em geral na urbe.

***

Passando da forma ao conteúdo em relação à educação no Estado do ES, mais precisamente em terreno de difusão cultural, vídeos e canções principalmente, quando não empregados sem vinculação temática alguma, apenas como entretenimento fabricado por nossa inescrupulosa cultura de massa, esbarra ainda na questão da formação, em uma sociedade em que predomina a imagem, como forma de ser afetado por informações tratando-se de juventude em geral - grande parcela do público de ensino médio -, boa parte dos professores esbanja ora ecletismo, bem como indispostos à pesquisa cinematográfica, animações, documentários, informação e canções que estejam em diálogo com a ação, com a experiência histórica.

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No que se refere à arquitetura – mais precisamente a arquitetura das escolas do tipo “Polivalente”, lugar comum em nossa paisagem -, a primazia de certo tom cinzento próprio das construções desgastadas pelo tempo, e por extensão, um flerte com o fantasmagórico, sanatório e presídio,

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e é claro não poderia faltar, aquele encantador fascínio com o estrangeiro no que se refere às instalações de ventilação através de janelas, projetadas e construídas para regiões de clima frio, isso quando as janelas não são deixadas de lado na construção da edificação!!! Este gratuito fascínio com o estrangeiro fora capaz de realizar nos trópicos, em incontáveis exemplos, o mesmo projeto arquitetônico dos ícones do hemisfério norte, indiscriminadamente. “O nosso projeto arquitetônico não é daqui, veio de fora, deu certo lá, tem que dar aqui também!”, cheio de si afirma um pretenso cosmopolita provinciano, certo de que seu vínculo com o estrangeiro é signo de superioridade, distinção cultural.

Ora, ainda no domínio da arquitetura e tratando-se de nossa experiência histórica não tão longínqua, é este mesmo estigma do fascínio pelo estrangeiro que seduziu o então prefeito da cidade do Rio de Janeiro no início do século passado, como nos indica José Murilo de Carvalho em seu livro Os bestializados – a República que não foi. Segundo o autor, no empreendimento das reformas de embelezamento da cidade do Rio de Janeiro, Pereira Passos visava ornamentar a cidade carioca com “fórmulas européias, especialmente parisienses”.

Se por um lado é o fascínio com o estrangeiro que orientou as reformas de ornamentação da urbe carioca da “República que não foi”, por outro, tal empresa promovida por Pereira Passos visava garantir a segregação social através do espaço, paisagem comum em nossa experiência histórica. Neste sentido, para

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José Murilo esta dinâmica de fascínio com o estrangeiro fixa-se desde seu conluio com o fantasma da vergonha de traços de um Brasil que precisa ser encoberto, dissimulado. Segundo o autor, “No Rio reformado circulava o mundo belle-époque fascinado com a Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro” 137.

Esta relação com o estrangeiro mediada pelo fascínio, fascínio que embota o pensar, como bem o sabemos afetou variados aspectos de nossa cultura, desde a arquitetura à literatura, como nos indica ainda José Murilo quando comenta sobre alguns traços da cultura da cidade do Rio de Janeiro quando capital da república no início do século passado. Acerca da literatura, nos afirma o ensaísta:

“O brilho republicano expressou-se em

fórmulas européias, especialmente parisienses. Mais do que nunca, o mundo literário voltou-se para Paris, os poetas sonhavam viver em Paris e, sobretudo, morrer em Paris.” 138 Nesta direção, encontrarmos edificações de

escolas sem janelas nas salas de aula em um país onde se faz um calor dos infernos quase o ano inteiro, em expressão de Rubem Fonseca no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, não deve nos levar a tomar tal incongruência histórica como deslocada

137 Os bestializados – a República que não foi - José Murilo de

Carvalho, p. 41. 138 Idem, p. 39.

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daqueles traços fantasmagóricos de nossa experiência cultural, a saber, aquele gratuito fascínio com o estrangeiro índice de nossa tão banal e corriqueira distância em relação à criatividade e autenticidade, que vai da arquitetura à literatura, da filosofia à música pop.

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Passando para outra questão, em relação às condições materiais para permanência e continuidade do vínculo do estudante com unidade educacional, políticas públicas que tenham por meta este interesse têm ficado de fora da pauta da Secretaria de Educação do Estado do ES nos últimos anos. Ao passo que o Estado em nosso raio histórico que nomeamos como contemporâneo, tem deixado de cumprir a sua função social, pois não cria formas, por exemplo, para combater o trabalho infantil, que é um dos grandes responsáveis pela evasão escolar e pela mortalidade infantil. Por outro lado, em relação ao vínculo cultural do estudante com a escola, passa pela ojeriza e escárnio, algo como um trecho de um episódio dos Simpsons, em que Bart tem o seu sono atormentado pela expectativa de uma prova, e acaba por ter um sonho, um delírio que resolvesse seus problemas: a demolição frenética da escola pelos estudantes, tamanha a recusa pelo o que é veiculado naquele espaço. 139

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139 Os Simpsons. Acampamento de Krusty.

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Outra questão que merece nosso cuidado é a maneira pela qual o Estado compreende a educação pública no que tange às relações de trabalho à que são submetidos os profissionais de educação. O interesse político-ideológico em “flexibilizar” os direitos trabalhistas a partir de uma política que privilegia o regime de contratação temporária em detrimento dos concursos públicos, deixados de lado e no esquecimento próprio daquelas gavetas uniformemente empoeiradas, reflete antes um auscultar atenciosamente o capital, que insiste a todo custo criar em nós mesmos uma aversão ao trabalho prolongado e à necessidade da lenta efetivação e maturação na memória coletiva de uma linguagem comum, capaz de ser depositária de valores culturais que possam ir de encontro à lógica que compreende a escola como sendo uma instituição normalizadora, disciplinadora e sobretudo contrária à autonomia de pensamento. Nesta direção, o regime de contratação temporária acentua a submissão passiva diante do poder institucional que o diretor de escola hoje possui, pois a constante catástrofe da demissão é a ameaça mais intimidadora que os trabalhadores em educação estão sujeitos.

Nesta direção, o privilégio dado ao regime de trabalho por designação temporária em detrimento de concursos públicos, significa em sua extensão e desdobramento prático, limitar as possibilidades de criação de laços culturais e sociais em uma determinada comunidade escolar. Ao contrário, tal regime de trabalho avesso a uma política de concursos

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públicos no ES, significa não sem propósito, a legitimação da lógica da desagregação social e cultural, tão eficaz e rentável ao capital e às burocracias que alimentam seu poder a partir do silêncio da maioria, que a submissão passiva ao poder é capaz de criar.

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Entre Hegel, Marx, Bakunin e o filme “O preço da ambição”

Conhecimento e vida: o em-si e o para um outro

Para Hegel, as coisas não são pensadas

isoladamente, e sim umas em relação com as outras. Isto significa: aquilo que é, o é em relação com outro algo. Aquilo que definimos como quente, o é em relação ao frio. Vida é em relação à morte. O sol em relação à lua. Neste sentido, a unidade das coisas é fundada na recíproca negação, o que significa dizer que a unidade das coisas é fundada na oposição. A afirmação e realização do sol, trata-se da negação da lua ou da noite, que quando vem, realiza a negação do dia e do sol. Assim é a relação entre preconceito e conceito. A afirmação do preconceito trata-se da negação do conceito, o que vale também dizer que quando queremos, através da reflexão, negar um preconceito, levantando argumentos contra o racismo, por exemplo, estamos à procura de um conceito sobre convivência entre os diferentes. Neste caso, negar algo também significa superar, elevar, passagem do mais simples (preconceito), para o mais elaborado (conceito). Ao passo que, na ótica de Hegel: “Chamamos conceito o movimento do saber...” 140

140 Hegel, p. 119. Fenomenologia do Espírito.

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De todo, é preciso também demarcar que conceito aparece para nós como sendo aquele movimento de camadas de definições que se sobrepõem umas sobre as outras, não que isto tenha em sua própria dinâmica de determinação, ao “carente de determinação” na ótica de Hegel, outra coisa senão por mediação da negação, que lança outro problema que exige sua superação, elevação, daí Hegel indicar-nos que “conceito é movimento do saber”, ao passo que neste movimento está o negar, o elevar, o superar, passagem de um ponto menos a um ponto mais. Por outro lado, conceito não indica tão somente camadas de determinações que se sobrepõem umas às outras por mediação apenas da negação, ao passo que conceito é linguagem, indica-nos encontro entre coisa e nome através da tradição. E é justo nesta perspectiva que nos indica Hegel: “Em toda enunciação da percepção e experiência e sempre que o homem fala, já se manifesta em tudo isto um conceito - nem se pode impedir que aí esteja, renascido na consciência" 2.

Pois bem, nos fixemos melhor em nosso tema de interesse: Comumente, temos como hábito em nossa língua, o uso da expressão “em-si”. Ora, quando afirmamos que a coisa em-si é isto ou aquilo, sobretudo este em-si não permanece isolado, separado da consciência, e isolado em relação às outras coisas. O em si, em uma primeira visada da consciência, o é justo a partir da consciência. - Aqui, se ergue uma

2 Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F. Hegel; tradução de Ernildo Stein; pág. 111; Editora Nova Cultural, São Paulo, 2000.

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questão acerca da relação entre pensamento, realidade e conhecimento. As coisas são o que a consciência pensa? Ou a consciência pensa o que as coisas são? É a consciência que determina a realidade? Ou a realidade que determina a consciência? A verdade em relação ao que os objetos são, está nos objetos ou na consciência? Dito de outro modo: aquilo que a coisa é, é determinado pela consciência ou pela própria coisa? Hegel percorrerá o itinerário do primado da consciência, filiando-se ao idealismo. Marx, em perspectiva de pensamento de modo inverso ao de Hegel, irá perseguir os indícios da realidade que determinam o que pensa a consciência, sobretudo a realidade material, filiando-se ao materialismo histórico.

Retomemos o fio: na visão de Hegel, este em si não existe senão em relação à consciência, que percebe as coisas não em si mesmas, mas umas em relação às outras. Ora, quando um jogador de futebol, após uma frustrada partida, tenta injetar ânimo em seus parceiros cabisbaixos, afirmando que “em-si” seu time não foi tão ruim, isto significa isolar o juízo de valor em relação à atuação de seu time naquela partida específica. Neste sentido, quando o mesmo jogador pretende ser mais fiel aos acontecimentos, relacionando a atuação de seu time com a atuação de seus adversários em outras partidas, acaba por afirmar que em relação à atuação dos outros times, a atuação de seu time foi realmente frustrante. O em si, portanto, não é tão somente em-si, mas para um outro, isto é, para a consciência, que define o que algo é somente

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em relação a outro algo. Ao passo que o ser das coisas o é em relação às outras coisas, e não isoladamente. No caso do exemplo posto, a qualidade da atuação do time de nosso prezado jogador, não é em si, mas em relação às qualidades outras dos demais times.

Neste sentido, para nos situarmos melhor em relação ao pensamento de Hegel, faz-se necessário que nos aproximemos das noções de Kant em relação à intuição, ao conhecimento e sua relação com a extensão dos objetos do modo como nos afetam subitamente: em um primeiro momento, há para a consciência-de-si a extensão do sensível, que nos afeta imediatamente através da intuição, assim lemos na abertura da Estética Transcendental de Kant:

“Seja de que modo e com que meio um

conhecimento possa referir-se a objetos, o modo como ele se refere imediatamente aos mesmos e ao qual todo pensamento como meio tende, é a intuição. Esta, contudo, só ocorre na medida em que o objeto nos for dado; (...) isto só é por sua vez possível pelo fato do objeto afetar a mente de certa maneira. A capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade. Portando, pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos fornece intuições; pelo entendimento, em vez, os objetos são pensados e dele se originam conceitos. (...) pois de outro modo nenhum objeto pode ser-nos dado.” 141

141 I. Kant. Crítica da Razão Pura, Primeira parte da doutrina

transcendental dos elementos. Estética Trancendental; p. 71; Os pensadores.

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Neste sentido, a partir da leitura deste trecho de Kant, não podemos perder de vista que para Hegel, o conceito, que é “movimento do saber”, ocupa no pensamento uma posição situada desde uma ordenação hierárquica em que o conceito ocupa posição de dignidade, em relação à extensão da imediatez do sensível, que nos abre para as intuições, modo imediato de relação com as coisas, isto é, mais pobre em definições. Nesta direção, este primeiro momento da consciência-de-si, tem a primazia da imediatez do sensível, isto é, daquilo que nos afeta através dos sentidos. Daí o movimento a si da consciência a partir do objeto como seu ser outro. Ao passo que o movimento que aparece a partir daí, trata-se da unidade da consciência consigo mesma, em outros termos, é a unidade da consciência com a diferença, diferença que operou a distinção do objeto em relação à consciência, objeto que aparece como seu ser-outro. Este objeto, por sua vez, aparece como fenômeno. - “A consciência-de-si é reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-outro.” 142

Esta unidade da consciência-de-si, com o seu ser outro, para Hegel, é fundada no desejo. Isto é, a unidade da consciência com aquilo que é diferente da consciência mesma, a saber, o objeto, realiza seu movimento como desejo. “A consciência-de-si é desejo,

Trad. de Valério Rohden e Udo Moosburguer. Editora Nova Cultural, São Paulo, 1996.

142 Hegel, p. 120, Fenomenologia do Espírito.

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em geral.” 143 . Através da mediação daquele súbito movimento histórico que é a convivência, para a consciência-de-si, o objeto do desejo vem-a-ser vida. Vida é objeto de desejo para a consciência-de-si. Ao passo que realização da vida é afirmação do desejo, e negação da vida, negação do desejo. Vida portanto, é movimento de interesse para a consciência-de-si, que na ótica de Hegel, em sua perspectiva histórica, irá se desdobrar na afirmação do desejo para um, fundada desde uma ordenação hierárquica na vida do senhor, ao passo que para o escravo, é desrealização da vida ou do desejo, o que tem primazia. Para o escravo a morte ocupa o espaço da vida com mais intensidade do que a vida do senhor, que afirma seu desejo diante de outra consciência-de-si, na medida em que para Hegel, “o objeto do desejo imediato é um ser vivo.”

Vida não é em si mesma, ao passo que realiza seu movimento em relação a um outro: reconhecimento por mediação do embate, conflito, convivência. Ao passo que vida é desejo, a afirmação do desejo passa pela nulidade ou negação de um ser que não a consciência mesma; esta nulidade aparece como gozo. Tomemos como exemplo de nossa relação com os alimentos, duas maças, diante da necessidade orgânica de comê-las, quando o fazemos, subitamente estamos impondo a nulidade ou negação das maças como mediação para a satisfação do desejo de comer. Em outra direção, esta nulidade ou negação de um ser outro que não a consciência mesma, pode aparecer como uma outra

143 Hegel, Idem.

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consciência-de-si. “Mas o Outro é também uma consciência-de-si: um indivíduo se confronta com outro indivíduo”, nos indica Hegel. Portanto, vida ou consciência-de-si, realiza seu movimento de encontro à natureza e diante de outra consciência-de-si, pois este ser outro que é objeto do desejo, na ótica de Hegel, como vimos, “é um ser vivo”.

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Consciência-de-si: entre o ser para si e o ser para um outro, o risco

Ora, ao passo que consciência-de-si ou vida, não é em-si mesma, a relação entre as consciências-de-si irá aparecer como demarcada desde uma ordenação hierárquica, em que, nessa relação, o ser humano é aquilo que é somente em relação com outro indivíduo. No entanto, este ser em relação ao outro, poderá aparecer de duas maneiras: a saber, uma como aquela consciência que é ser para si, ao passo que aparece para outra consciência-de-si como consciência independente. De modo que, na ótica de Hegel, aquela outra consciência-de-si, irá aparecer como consciência dependente, ao passo que seu ser não é para si, pois desdobra-se como uma consciência-de-si que tem a sua ação não demarcada por si mesmo, mas submetida a um outro agir. Isto é, para a consciência dependente, o agir se torna um agir estranho a si mesmo, ao passo que tem a decisão acerca de seu agir nas mãos de um outro.

Neste sentido, neste outro movimento que Hegel nos apresenta, a consciência-de-si não é em si mesma, mas em relação a um outro. Esta disposição posta ultrapassa a imediatez da certeza sensível (mais pobre em definições), e desdobra-se em coisa pensada socialmente, a saber: a mediação entre as consciências-de-si passa pelo trabalho. Trabalho, em certa extensão, aparece como afetado por determinada ordenação hierárquica. Esta disposição posta, é a relação entre senhor e escravo. Nesta direção, ao passo que vida é desejo, ora

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para um o trabalho de um outro aparece como mediação para realização do desejo, ora para este outro o trabalho aparece como negação da vida, o que resulta em gozo negado. Isto significa: a extensão da afirmação ou negação do desejo percorre a ordenação hierárquica que media a relação entre senhor e escravo. Afirmação da vida para um é negação da vida do outro.

No desdobrar-se dessa relação entre extremos, senhor e escravo, um converge para si o resultado do trabalho de um outro como gozo próprio, a saber, o senhor, que aparece como essência, ao passo que para o outro, o que há trata-se de uma vida que em seu percurso tem como movimento a realização da vida de um outro, e não de si mesmo.

Nos termos de Hegel, a disposição da relação entre as consciências-de-si, fundada que é desde uma ordenação hierárquica, aparece como relação entre “a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência”, ao passo que seu oposto se refere a uma “consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo.” 144 . No entanto, apesar desta consciência independente afirmar-se enquanto ser para si, sua verdade não ultrapassa a verdade da consciência dependente. Segundo Hegel ao parágrafo 193 da Fenomenologia do Espírito 145, “A verdade da consciência independente é por conseguinte a consciência

144 Hegel, p. 120, Fenomenologia do Espírito. 145 Fenomenologia do Espírito. G. W. F. Hegel. Parte I. Editora

Vozes. Petrópolis. 1992. Segunda edição. Tradução: Paulo Menezes, com a colaboração de Karl-Heinz Efken.

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escrava.” Ao passo que para o senhor, o formar que se abre através do trabalho, é para ele estranho.

Retomemos o fio: a mediação dessa ordenação hierárquica (entre os extremos senhor e escravo) passa pelo reconhecimento de um sobre o outro. Nesta direção, este reconhecimento aparece como unilateral e desigual, ao passo que os limites dessa relação desdobram-se na afirmação da vida de um, e o oposto se refere ao escravo. O escravo não é para si, mas para um outro que não ele mesmo, pois nega a si mesmo através do trabalho, para que a afirmação do senhor possa perdurar, é o fixo sobrepondo-se ao não-fixo. Nesta direção, trabalho é mediação entre superior e inferior. Na extensão dessa relação, esta consciência-de-si que não é para si, aparece como angústia abocanhada pelo medo, medo daquele outro que é a essência de sua relação com o trabalho e a obediência, ao passo que essa consciência que não é para ela mesma, mas para um outro, se dissolve diante da afirmação do senhor:

“Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. Aí de dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de fixo, nela vacilou.” 146

Daí ser o senhor amparado e fixado no percurso da história, por meio do apoio (fundado na força) daquele outro para o qual o agir é negar a si mesmo,

146 Hegel, p. 132, Fenomenologia do Espírito.

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pois não é essencial na prevalência que resulta da relação entre as consciências-de-si (senhor e escravo nos termos de Hegel). É a vida do senhor que perdura por mediação da morte do escravo. Neste sentido, o agir de um aparece como inessencial, a saber, o agir do escravo, que não é ser para si, pois a decisão acerca de sua vida é mediada pelo senhor147, ao passo que o agir do escravo é um agir voltado para um outro que não ele mesmo, “pois o que o escravo faz é justamente o agir do senhor... O agir do escravo não é um agir puro, mais um agir inessencial”, assim nos indica Hegel.

No filme O preço da ambição (1994), este tema da relação entre ser para si e ser para um outro, aparece na relação entre Buddy (interpretado por Kevin Spacey) e Guy (interpretado por Frank Whaley). A relação de trabalho entre ambos desdobra-se desde a lógica da consciência independente (ser para si), em relação com uma consciência dependente (ser para um outro). Ao passo que a consciência dependente tem sua extensão naquele agir em que não é ser para si, pois é subordinada a um outro agir que não o dela mesma, a saber, submetida a um agir de um Outro.

Este Outro que é ser para si, tem a extensão do seu agir no seu próprio agir e também no agir do outro, subtraído que é na decisão acerca de seu próprio agir.

147 Assim lemos ao parágrafo 228 da Fenomenologia do Espírito de

Hegel: “Assim, nesse meio-termo, a consciência se liberta do agir e do gozo como seus. Repeli de si, (...), a essência do seu querer, e lança sobre o meio termo, ou o ministro, a peculiaridade e a liberdade da decisão, e, com isto, a culpa do seu agir. Esse mediador, (...), desempenha seu ministério aconselhando sobre o que é justo.”

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Assim vemos em certa passagem do filme, em que Buddy, tomado por cólera gratuita, fica insatisfeito com Guy logo em seu primeiro dia de trabalho, insatisfação esta resultado dos caprichos excêntricos de Buddy:

Buddy: “Você pensou, é? Faça-me um favor.

Cale essa boca, me escute e aprenda. Sei que é seu primeiro dia, você não sabe bem das coisas... mas eu vou te explicar. Você não... tem cérebro. Não é para pensar nada. O que você pensa ou sente não me interessa! Cuide dos meus interesses e atenda às minhas necessidades. (...) E agora é a sua responsabilidade providenciar aquilo que eu quero. Fui claro?”

Guy: “Sim, senhor.”

Ora, a negação do pensar imposta por Buddy em relação ao seu funcionário Guy, situa de certo modo a ordenação hierárquica entre senhor e escravo na ótica de Hegel, ao passo que esta negação do pensamento do outro, levada ao extremo por Buddy, consiste na afirmação de que, nessa relação, apenas um dos pólos tem a primazia da ação e do pensamento, na medida em que esta negação do pensar exigida de Guy aparece também como negação de seu agir, ao passo que Guy, na imediatez dessa relação, tem o seu agir, em perspectiva de Hegel, demarcado como um agir inessencial, na medida em que não está voltado a atender seus interesses e necessidades como prioridade, mas sim, como vemos na passagem do filme O preço da ambição, está intimado, através da ordenação

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hierárquica que se abre por mediação do trabalho, a atender as necessidades e interesses de um outro que não ele mesmo.

Nesta direção, ao passo que vida não é em-si, ou recurvada sobre si mesma, sobretudo vida se afirma enquanto tal por mediação de um ser outro que não ela mesma. Ora, que é isto? Esta mediação com o outro que podemos chamar de convivência, passa pelo conflito, trata-se do embate entre as consciências-de-si, pois um precisa afirmar sua verdade no outro, ao passo que esta verdade não é em si, pois abre-se para o outro por mediação do “pôr a vida em risco”148. Nos termos de Hegel,

“... a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou morte. Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista];” 149

148 Neste sentido, este afirmar a verdade um no outro, está

relacionado no pensamento de Hegel à relação de dominação e escravidão.

149 Hegel, p. 129, Fenomenologia do Espírito.

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Da relação trabalho e desejo: entre Hegel e Marx

Trabalho é mediação da relação entre as

consciências-de-si: uma para a outra se expondo desde uma ordenação hierárquica como ser para si e ser para um outro. Nesta direção trabalho realiza aquele movimento que aparece para nós como ordenação hierárquica entre estas duas categorias que Hegel agarra-se com afinco, a saber, senhor e escravo. Categorias aqui não significam conceitos puramente abstratos ou meramente lógicos, sobretudo, para Hegel a dinâmica de relação entre as consciências-de-si como relação senhor/escravo passa pela noção de que esta relação não se trata meramente de categorias abstratas de pensamento, mas sim com enraizamento histórico.

Ora, ao passo que trabalho é mediação entre as consciências-de-si, entre os extremos senhor/escravo em certo fio do pensamento de Hegel, relação aqui (que tem como mediação o trabalho), é fundada no “combate”, embate entre as consciências-de-si. Este embate entre as consciências-de-si, à luz do fragmento 53 de Heráclito: “a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.” - Nesta direção, cabe ressaltar não sem propósito, a filiação de Hegel ao pensamento de Heráclito. Segundo o

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pensador alemão: “Não existe frase de Heráclito que eu não tenha integrado em minha Lógica.” 150

Retomemos o fio: Trabalho é então apoio para a fixidez e afirmação do senhor. Neste sentido, é preciso demarcar: O que aqui significa este apoio para a fixidez e afirmação de um, quando estamos tratando de posições assentadas a partir de uma certa hierarquia? Ora, uma destas formas de mediação entre posições hierárquicas extremadas, consiste na organização do trabalho humano, como dissemos há pouco. Hegel encaminha aqui uma demarcação na visão filosófica acerca da sociedade que é radicalmente retomada por pensadores como Marx, que funda sua interpretação acerca do mundo do trabalho na relação de dominação e escravidão desenvolvida na Fenomenologia do Espírito de Hegel, mais precisamente em capítulo de nome Independência e dependência da consciência de si: Dominação e Escravidão. Nesta direção, a negação do desejo para o escravo, aparece para o senhor como gozo. Segundo Hegel,

“O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa; o escravo, enquanto consciência-de-si em geral, se relaciona também negativamente com a coisa... Porém, ao mesmo tempo, a coisa é independente para ele, que não pode portanto, através o seu negar, acabar com ela até a aniquilação; ou seja, o escravo somente a trabalha. Ao contrário, para o

150 Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F.

Hegel; tradução de Ernildo Stein; pág. 102; Editora Nova Cultural, 2000.

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senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem-a-ser a pura negação da coisa, ou como gozo... o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza; enquanto o... escravo, ...a trabalha.” 151

Neste sentido, segundo Hegel, a relação entre

senhor, escravo e coisa (produto do trabalho), tem sua extensão na afirmação do gozo para o senhor. Ao passo que entre o senhor e a coisa encontra-se justamente o escravo, que trabalha a coisa para o senhor. Ora, trabalho, em certa extensão, consiste em uma forma de mediação da relação do ser humano com a natureza. Isto significa: se o ser humano altera, transforma e nega a natureza para atender às suas mais diversas necessidades físicas ou espirituais, isto não se efetiva sem a mediação do trabalho. Porém, este negar, alterar e transformar a coisa através do trabalho, aparece para o escravo não como negação da coisa como gozo. Pois para o escravo não se abre a possibilidade de negar e acabar com a coisa até sua “aniquilação”, ao passo que não usufrui do produto de seu trabalho. Pois a coisa, para o escravo, é independente. Nesta direção, para o escravo, trabalho não aparece como gozo, ao passo que não nega a coisa para a sua satisfação, na medida em que só trabalha a coisa.

Em outra direção, para o senhor, na relação imediata com a coisa, trata-se da pura negação da coisa

151 Hegel, p. 130- 131, Fenomenologia do Espírito.

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como gozo, pois sua dependência em relação à coisa aparece como afirmação do desejo, na medida em que não trabalha a coisa. Ao passo que a coisa, para o escravo, ganha independência, pois só a trabalha e não a goza.

No pensamento de Marx, as categorias de senhor e escravo desdobram-se nas categorias de “possuidores de propriedade” e “despossuidores de propriedade”. Que principalmente a partir do período de Revolução Industrial na Europa, passou a desdobrar-se, para Marx, nas categorias de “trabalhador” e “não trabalhador.” Para o outro, o percurso da vida é afetado pela estrutura de circulação e acumulação de capitais. Este modo de vida, do trabalhador ou do escravo, aparece na relação com o senhor ou não-trabalhador, não em outra condição senão a de mercadoria, que aparece como sua força de trabalho.

Ora, mas como pensar a força de trabalho como mostrando-se nas relações econômicas na condição de mercadoria? Marx, em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos 152, mais precisamente em trecho de nome O trabalho alienado, afirma que o trabalhador “desce até ao nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria”153 . Este modo de trabalho que aparece como mercadoria mostra-se como a negação do autoconhecimento do trabalhador a partir de seu próprio trabalho. Ao passo que, esta negação da

152 K. Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002.

153 Marx, p. 110, MEF.

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unidade da vida consigo mesma, ou em outros termos, negação do encontro da vida com a vida mesma, aparece para o escravo ou trabalhador como consciência cindida, entre a medida do trabalho e a medida do usufruto do próprio trabalho, a cisão entre estas duas medidas, aparece para Hegel como consciência infeliz. 154

Nesta direção, para Marx, o trabalho faz de seu sujeito “uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz” 155 . Isto significa: a quantidade da produção em escala crescente, para o trabalhador, não resulta em aumento da valorização de seu trabalho. Ao contrário, como nos indica Marx, a força de trabalho, que é mercadoria, moeda de troca para a sobrevivência, se torna tanto mais barata na mesma medida em que se aumenta aquilo que se produz com esta mesma força de trabalho, ao passo que quanto maior a circulação de mercadorias no mercado, mais barato se paga pela força de trabalho necessária para produzi-las. Neste sentido, quando afirmamos que o aumento da quantidade da produção de bens não implica em aumento da valorização do trabalho, com isto temos por interesse demarcar: que quanto maior é a produção, maior é também a distância entre valor da mercadoria força de trabalho, e valor gerado com circulação e comercialização dos bens que esta força de trabalho produz.

154 Um melhor contorno à noção de consciência infeliz em Hegel, daremos no percurso do trecho deste trabalho dedicado a este tema. (“4. Da consciência infeliz”)

155 Marx, p. 111, MEF.

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Nesta perspectiva, para o trabalhador, o mundo das coisas, isto é, dos produtos reproduzidos em grande escala pelo seu trabalho, torna-se algo que “se opõe a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor” 156 . Ao passo que o produto do trabalho é separado de quem o realiza, é como se a criatura (o produto do trabalho), engolisse seu criador (o trabalhador). Através deste acontecimento que é o trabalho em nosso raio histórico, em perspectiva de Marx, o que há é o não encontro da vida com a vida mesma, na medida em que por mediação do empenho de sua força física como mercadoria, o trabalhador, em seu agir, “não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito”, e sobretudo, “no trabalho se sente fora de si.” 157

Em outra direção, que de certo forneceu caminhos para o pensamento de Marx, o trabalho, na perspectiva de Hegel, aparece para o escravo como “desejo refreado” 158 , na mesma medida em que o objeto do trabalho ganha independência do produtor. Nesta visada, o trabalho para o escravo - ou para o trabalhador na ótica de Marx -, aparece como desejo limitado, na medida em que através do trabalho o desejo encontra suas metálicas rédeas, pois não encontra sua plena realização.

156 Marx, p. 111, MEF. 157 Marx, p. 114, MEF. 158 Hegel, Fenomenologia do Espírito, p. 133

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Da consciência infeliz A consciência infeliz aparece como aquele modo

de vida que, por ter se separado do resultado de seu trabalho, para o “aquietar-se no gozo” do senhor, é afetado pela cisão entre o resultado do trabalho e o gozo a partir do trabalho, pois para o escravo, ou o trabalhador nos termos de Marx, isto significa: o desfrutar dos resultados do trabalho é negado, ele é privado nesta extensão que é a afirmação do desejo como gozo. Sua consciência é uma consciência infeliz ao passo que é uma consciência cindida, entre o formar que é o trabalho, e a privação em relação ao que é produzido com o seu próprio trabalho. Ao passo que seu ser não é ser para si, mas para um outro que não ele mesmo, segundo Hegel “seu agir efetivo se torna um agir de nada, e seu gozo se torna sentimento de sua infelicidade. Por isso, agir e gozo perdem todo conteúdo e sentidos universais...” 159. Sobretudo este agir, ao passo que caminha na infelicidade, quando apegado ao zelo pelo trabalho que o mata, segundo Hegel, ao invés:

“de ser algo essencial, é o mais vil; em vez de ser algo universal, é o mais singular; assim nos deparamos com uma personalidade só restringida a si mesma e a seu agir mesquinho, recurvada sobre si; tão miserável quanto infeliz.” 160

159 Hegel, Fenomenologia do Espírito, p. 149. 160 Hegel, p. 149.

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Da relação entre as consciências-de-si: entre o reconhecimento e a sua negação

“Andando por cima da terra Conquistando seu próprio espaço

É onde você pode estar agora” Chico Science

A ex-posição entre as consciências-de-si: uma para a outra tendo como objeto visado o reconhecimento. Este reconhecimento vem-a-ser por mediação da convivência, do embate - ou do “combate”, nos termos de Heráclito, ou “Combat Rock” (?!!), nos termos do Clash de Joe Strummer e Mick Jones. Ora, o que significa o oposto disso? Privada do risco do embate para uma outra consciência-de-si, também é este ser outro, esta consciência-de-si outra, nos termos de Hegel: “privada da significação pretendida do reconhecimento.”

Nesta direção, para o escravo, a não exposição ao risco do embate, desdobra-se em reconhecimento negado: negação de si para uma outra consciência-de-si que não ela, que afirma seu desejo, vontade. É a prevalência hierárquica do senhor, que converge para si, materialmente, politicamente, militarmente, o que é movimentado com o trabalho, lembremos sobretudo que Hegel tem como referência o percurso da história européia como sol.

Esta negação de um e afirmação de outra, a saber, escravo e senhor, o é na ótica de Hegel não negação da consciência, na medida em que é negação abstrata, em certa extensão. Esta prevalência do senhor em relação à extensão de desejo, que é vida, sobre outra

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consciência-de-si, pensada no raio histórico, desdobra-se em vida para a vida e vida para morte.

Vida para a vida em que o objeto do desejo, que é vida, aparece como horizonte de risco – “Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se conquista;” 161. Ao passo que vida para a morte, na ótica de Hegel, aparece como aquela personalidade “restringida a si mesma e a seu agir mesquinho, recurvada sobre si; tão miserável quanto infeliz.”

Morte é negação natural da consciência mesma. Afirmação da vida de um é negação da vida do outro. Desde a posição de senhor reconhecimento o é em relação a um outro, ao passo que, desde a exposição do escravo, é negação do reconhecimento para uma outra consciência-de-si situada em uma posição mais, desde uma ordenação hierárquica. Ao passo que a negação desse reconhecimento passa pelo privar-se a si mesmo do embate entre as consciências-de-si. Sobretudo, a negação desse reconhecimento aparece como vida recurvada sobre si e fechada em si mesma, na medida em que não se expõe a nenhum risco que possa abrir-lhe a possibilidade da passagem de uma consciência dependente (ser para um outro), para uma consciência independente (ser para si). Esta consciência dependente que não é para si, aparece como recurvada sobre si na medida em que tem a extensão do seu agir situada naquele zelo e cuidado pelo trabalho que lhe nega a vida, este zelo, como

161 Hegel, p. 129, Fenomenologia do espírito.

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vimos, aparece para Hegel como aquilo que é o mais vil, isto é, desprezível e mesquinho.

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Do reconhecimento como ordenação hierárquica, reciprocidade ou ressentimento: entre Hegel, Bakunin e o filme “O preço da ambição”

Esse é o problema dessa sua geração... da MTV e do microondas! Vocês são

imediatistas! Só porque querem, acham que merecem! Não é bem

assim! Você tem de batalhar, conquistar, ganhar seu espaço! Mas, antes disso, você tem de decidir o que quer da vida.

Buddy Ackerman162

Como afirmamos há pouco, vida não é em-si, mas para um outro que não ela mesma. Neste sentido, a mediação para a realização da vida, na ótica de Hegel, passa pelo reconhecimento. Este reconhecimento do ser humano não é em-si, ao passo que a mediação para o reconhecimento, ou afirmação da vida como exercício de liberdade, passa pelo expor a vida ao risco, que se abre para o ser humano a partir do embate, do conflito entre as consciências-de-si. “Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; (...) O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse

162 O preço da ambição - The Buddy Factor (1994)/ Kevin Spacey/

Frank Whaley/ Michele Forbes/Co – producer: Kevin Spacey, Buzz Hays / Produced by Steve Alexander, Joanne Moore/ Directed by George Huang. 92 min.

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reconhecimento como uma consciência-de-si independente.” 163

O reconhecimento, sobretudo não é reconhecimento de si mesmo ou recurvado sobre si, ao passo que reconhecimento aparece através da convivência, que desdobra-se não harmoniosamente, como já o dissemos, e muito menos sem esforços. No caso do desdobramento da relação entre senhor e escravo, desenvolvida por Hegel na Fenomenologia do Espírito, o reconhecimento não aparece do mesmo modo para ambas as consciências de si, ao passo que só um dos extremos é reconhecido no que se refere à afirmação do desejo em relação ao que é produzido com o trabalho, a saber, o senhor.

“Consideremos agora este puro conceito do reconhecimento, (...), tal como seu processo se manifesta para a consciência-de-si. Esse processo vai apresentar primeiro o lado da desigualdade de ambas [as consciências-de-si] ou o extravasar-se do meio termo nos extremos, os quais, como extremos, são opostos um ao outro; um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece.”164 Ora, como lemos, para Hegel reconhecimento

aparece desde uma ordenação hierárquica em que “um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece”, ao passo que a visada de Hegel está demarcada na relação senhor e escravo. Pensadores

163 Hegel, p. 129, Fenomenologia do Espírito. 164 Hegel, p. 127-128, Fenomenologia do Espírito.

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como Bakunin, influenciados pela filosofia de Hegel – Bakunin, que iniciara sua graduação em filosofia na Universidade de Berlim em 1840 –, irá retomar alguns traços da noção de reconhecimento desenvolvida por Hegel na Fenomenologia do Espírito. No entanto, ao passo que a noção de reconhecimento em Hegel é fundada desde uma ordenação hierárquica, em Bakunin, a noção de reconhecimento ganhará outro contorno, ao passo que reconhecimento para Bakunin é fundado não nos pólos reconhecido e aquele que reconhece, assim como nos indica Hegel, mas sobretudo a noção de reconhecimento para Bakunin, além de passar pelo embate, passa também pela reciprocidade. Reconhecimento de uma consciência de si diante de outra consciência de si, passa pelo reconhecimento recíproco. Nos termos de Bakunin: “o homem só realiza sua liberdade individual ou sua personalidade completando-se com todos os indivíduos que o cercam e somente graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade...”

Neste sentido, para Bakunin a noção de liberdade passa pelo reconhecimento como reciprocidade. Assim como em Hegel, para Bakunin vida e liberdade não são em si mesmas, mas em relação aos outros. Segundo Bakunin: “o homem isolado não pode ter a consciência de sua liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por um outro homem”.

Nesta direção, se em Hegel, as consciências-de-si devem travar uma luta de vida ou morte, visando o reconhecimento de um sobre o outro, para Bakunin,

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em outra perspectiva, liberdade para um não significa imediatamente negação ou morte do outro. Nos termos de Bakunin, de modo distinto aos de Hegel, “A liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre... Ao contrário, é a escravidão dos homens que põe uma barreira na minha liberdade...” 165.

Isto é, o reconhecimento entre as consciências-de-si, na ótica de Hegel, realiza aquele movimento em que os extremos se relacionam dispostos desde os pólos reconhecido e aquele que reconhece. A dinâmica de relação entre estes extremos dis-postos desde uma ordenação hierárquica, é fundada na relação escravidão (mediação para a dominação) e dominação (mediação para a escravidão) - uma através da outra.

Em perspectiva inversa a de Hegel, para Bakunin, liberdade e reconhecimento fundados na reciprocidade entre os pares, não o é por mediação da escravidão, que ao invés de abrir para a mediação daquele reconhecimento do qual fala Hegel de um sobre um outro, ao invés, é limite para o movimento de reconhecimento como reciprocidade do qual partilha Bakunin. Daí o embate entre as consciências-de-si, em Hegel, desdobrar-se na história da filosofia, em embate entre classes sociais no pensamento de Marx e Bakunin.

Em outra direção, mais próxima do pensamento de Hegel, tendo agora como referência o filme O preço

165 In: Filosofia. Textos Anarquistas. Michael A. Bakunin. Trechos tirados do manuscrito de Bakunin Império Knouto-germânico, 1871. In Obras, I: 275, 277-8, 281, 287-8, 324-5. (Nota de Daniel Guérin)

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da ambição, o reconhecimento de um não passa pelo reconhecimento do outro, ao passo que, nas relações de trabalho que aparecem desde o início da obra, o que se desdobra trata-se justamente de uma ordenação hierárquica entre as consciências-de-si em que um dos extremos é o reconhecido, a saber, Buddy (vice-presidente do setor de produção da Keystone), e o outro o que reconhece, o jovem assistente Guy.

No entanto, como vemos ao desfecho de O preço da ambição, a via de reconhecimento para Guy, isto é, a passagem daquele que reconhece para o que é reconhecido, não o é através do trabalho ou da afirmação da vida como exercício de liberdade, ao passo que seu movimento de reconhecimento diante de Buddy tem o seu súbito salto no ressentimento tecido na vingança.

Isto é, Guy conquista seu reconhecimento diante de Buddy mediante o expor a sua vida ao risco, no entanto, este expor a vida ao risco não se realizou mediante àquele trabalho que conquista reconhecimento de seus pares através de determinadas qualidades. Isto é, o reconhecimento de Guy diante de Buddy, não passa pela independência de sua consciência-de-si, ao passo que a relação entre ambos, no desfecho do filme, permanece desigual, porém uma desigualdade menos desigual, de certo.

Em certa cena, vemos o quanto Guy deposita no ressentimento, na mediocridade, o seu modo de relação com Buddy. Guy, ao ver seus créditos quanto ao final do roteiro de Dawn, serem surrupiados por Buddy na apresentação do projeto que faz a Cyrus

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Miles (Presidente do setor de produção da Keystone), impotente para reagir através de um embate público diante daquela situação, se limita a cuspir no café de Buddy, servido ironicamente, bem como em um sutil tom dissimulado, em uma xícara com os dizeres: “I love you”.

Portanto, o que se passa ao final de O preço da ambição, no caso de Guy, é o reconhecimento enquanto pessoa, e não o reconhecimento enquanto consciência-de-si independente, que segundo Hegel, é o reconhecimento que tem sua extensão situada em uma posição de dignidade mais elevada. Ao passo que no pensamento de Hegel, há uma certa distinção, desde uma ordenação hierárquica, entre o reconhecimento como pessoa e o reconhecimento por mediação do “expor a vida ao risco”, que realiza aquele movimento de reconhecimento que alcançou a sua efetivação como “uma consciência-de-si- independente.”

Ora, para que ocorra este reconhecimento de Guy como pessoa diante de Buddy, acontece uma inversão da situação hierárquica inicial, mesmo que provisória, quando Guy decide compensar as humilhações de Buddy mediante o seqüestro deste que aparece como seu patrão. Por outro lado, na condição de consciência dependente que não é para si, Guy acaba por aparecer para os outros como sendo supostamente ser-para-si, afirmando e dissimulando sua identidade ou dignidade hierárquica desde o seu mero vinculo público à personalidade de Buddy. Assim nos indica certa passagem do filme O preço da ambição, que se passa na

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casa de Buddy quando este é seqüestrado e amarrado em uma cadeira, e que tomado por cólera afirma:

“Você estava ficando cheio de si...

desmotivado para o trabalho. E eu percebi! Estava pouco se fodendo! Passeando por aí, dizendo que fazia o meu trabalho... que mandava em mim, que sem você, eu não era nada! É, estou sabendo das coisas! Não me venha falar em justiça! Você não é mártir, nem herói, é um hipócrita! É como tantos outros por aí que querem entrar no ramo!”

Nesta direção, Guy aparece para os outros não como realmente é, ao passo que encontra na dissimulação e no mero vínculo à figura de Buddy, a sua identidade de si. No entanto, tal identidade de si, para Guy, não é identidade de si coisa alguma, antes mesmo tal identidade de si não passa de um engodo, na medida em que afirma sua personalidade (imagem pública) na personalidade (imagem pública) de um outro que não ele mesmo. Trata-se daquele modo de vida que se afirma para os outros não como ser para si, embora o pareça, mas sobretudo, como um ser para um outro, outro este situado em uma posição hierárquica mais elevada socialmente - seja por mediação de reconhecimento como pessoa, nos termos de Hegel, ou não.

Deste modo, Guy realiza uma inversão, no campo do delírio, da situação de trabalho na qual se encontra, ao menos para os outros que não Buddy, compensando sua consciência de si dependente e sua posição inferior em relação a Buddy, através da

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dissimulação, que opera este movimento compensatório. Este movimento compensatório fundado que é na dissimulação, se realiza a partir da passagem de uma certa posição inferior a uma suposta dignidade hierárquica e consciência de si independente.

Neste sentido, o reconhecimento de Guy para os outros aparece como pessoa, alimentado que é por sua própria dissimulação fundada em um delírio compensador de sua vida medíocre. Seu gozo, nesta extensão, aparece como gozo da situação do outro, e não a partir de seu ser-para-si, ao passo que seu reconhecimento diante de Buddy, ao desfecho da obra O preço da ambição, como já o dissemos, não passa pela afirmação de sua consciência-de-si independente.

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Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 229

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• Chauí, Marilena. Ética, Política e Violência. In: Ensaios sobre violência. Organização de Thimoteo Camacho, Edufes, 2003.

• Semeraro, Giovanni. Da sociedade de massas à sociedade civil: a concepção de subjetividade em Gramsci. Texto apresentado no Congresso Internacional: "Antonio Gramsci: da un secolo all'altro", organizado pela International Gramsci Society, no Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, Nápoles, 16-18 out. 1997.

• Maquiavel, Nicolau. O Príncipe. Editora Martin Claret. Tradução: Pietro Nassetti. 2003. São Paulo.

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Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 230

• Os Pensadores, Pré-Socráticos; Heráclito de Éfeso, pág. 81-102; Editora Nova Cultural, 2000.

• Panfleto da ALN de agosto de 1969, Sobre a Organização Revolucionária.

• Kafka, Franz, in: A Colônia Penal, Diante da Lei. Livraria Exposição do Livro, 1965, SP.

• Costa Andrade, Abraão. Para que serve a filosofia? In: Revista Discutindo filosofia. Editora Escala Educacional. Edição 01. São Paulo/SP, 2005.

• Hegel, G. W. F. Introdução à história da filosofia. Tradução de Orlando Vitorino. Os pensadores. Círculo do livro. Editora Nova Cultural, 1996.

• _______________Fenomenologia do Espírito. Parte I. Editora Vozes. Petrópolis. 1992. Segunda edição. Tradução: Paulo Menezes, com a colaboração de Karl-Heinz Efken.

• Kant, I. Primeira parte da doutrina transcendental dos elementos – Estética transcendental. In: Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Moosburguer. Os pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996.

• Arruda Aranha, Maria Lúcia & Pires Martins, Maria Helena. Introdução à filosofia. In: Filosofando. Editora Moderna, São Paulo, 1993.

• Fogel, Gilvan. Conhecer é criar: um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003.

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Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 231

• Heidegger, Martin. Que é isto – A Filosofia? (p. 13-24). Os pensadores; tradução de Ernildo Stein; Nova Cultural, São Paulo, 1991.

• Marcuse, Herbert. Do pensamento negativo para o positivo: Racionalidade tecnológica e lógica da dominação (p. 142-162); Ideologia da Sociedade Industrial; tradução de Giasone Rebuá; Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1964.

• Viana, Natália. Olho nos transgênicos! (p. 21-23); Revista Caros Amigos – Especial, Reforma Agrária, número 18, setembro de 2003; Editora Casa Amarela, São Paulo.

• Waldman, Maurício. Ecologia e lutas sociais no Brasil. Editora Contexto. Coleção: Caminhos da Geografia. São Paulo, segunda edição, 1994.

• Moura Faria, Ricardo de, Marques, Adhemar Martins & Costa, Flávio. História – Volume I; Berutti; Editora Lê S/A, Belo Horizonte, Minas Gerais, 1989.

• Chaplin, Charles & Goddard, Paullet (roteiro, direção e produção). Tempos modernos, Uma produção Charles Chaplin – United Artists. Estréia: 5 de Fevereiro no Cinema Rivoli, New York, 1936.

• Nascimento, Milton. Clube da esquina 2. EMI/ Odeon Brasil. Direção de produção: Mariozinho Rocha. Produção executiva: Milton Nascimento. Técnicos de gravação: Roberto de Castro, Dacy Rodrigues e Toninho Silva. Mixagem: Nivaldo Duarte. 1978

• Vidal, Antônio. Cultura: uma conversa inicial - não publicado.

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Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 232

• Gramsci, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Quarta edição. Civilização Brasileira. RJ/RJ. 1982.

• De Carvalho, José M. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi; São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

• Simpsons, Os. Acampamento de Krusty. Disco 1. Quarta temporada. Created by Matt Groening. Developed by James L. Brooks, Matt Groening, Sam Simon. Written By David M. Stern. Directed By Mark Kirkland.

• O preço da ambição - The Buddy Factor (1994)/ Kevin Spacey/ Frank Whaley/ Michele Forbes/Co – producer: Kevin Spacey, Buzz Hays / Produced by Steve Alexander, Joanne Moore/ Directed by George Huang. 92 min.

• Filosofia. Textos Anarquistas. Michael A. Bakunin. Trechos tirados do manuscrito de Bakunin Império Knouto-germânico, 1871. In: Obras, I: 275, 277-8, 281, 287-8, 324-5. (Nota de Daniel Guérin)

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Com o cérebro entre os trópicos - Abraão Carvalho 233

Sobre o autor Natural da cidade do Rio de Janeiro (1981-), tendo

vivido o maior período da vida na área urbana do Espírito Santo, sobretudo em Cariacica, e ingressado na Universidade Federal local em 2001 na graduação de Filosofia, tendo terminado a Licenciatura em 2007. De 2002 a 2007 envolvido com o trabalho docente no ensino fundamental, médio e EJA em diferentes escolas nos municípios de Cariacica e Vila Velha, através da rede estadual de educação.

No percurso da graduação, aluno bolsista, PIBIC/UFES, PIBIC - CNPQ/ UFES, tendo desenvolvido três projetos na linha de pesquisa de Filosofia e Literatura. Os períodos de desenvolvimento de tais projetos ocorreram entre agosto de 2002 e julho de 2003, agosto de 2003 a julho de 2004, e agosto de 2004 a julho de 2005, respectivamente, sendo a primeira bolsa financiada pela própria UFES, e as outras duas pelo CNPq. Os projetos de pesquisa resultaram em três ensaios, a saber: Kafka, a narrativa denúncia da pobreza de experiência da comunidade humana; Cidade, violência e dissimulação: de Baudelaire a Rubem Fonseca; e Ação e Dissimulação em Rubem Fonseca, respectivamente. Tais projetos de pesquisa bem como os ensaios daí resultantes tiveram a orientação do professor Bernardo Barros C. de Oliveira, Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas e Naturais, sendo o tempo de desenvolvimento de cada projeto de um ano.