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Comida Não é Mercadoria

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O hábito de comer émais antigo do que a própria humanidade e sem dúvidas, é a partir dele que elacria as condições para se desenvolver. Esta necessidade nos coloca em relaçãodireta com o meio em que vivemos, afinal precisamos extrair e coletar o que anatureza tem disponível para manter nosso corpo ativo e vivo.A forma como satisfazemos esta nossa necessidade biológica é culturale cada cultura organiza preceitos, técnicas, filosofias e métodos para comer, deacordo com sua realidade, por isso, a alimentação não possui apenas umaimportância social, mas têm sobretudo, um caráter político. Todo povo possuíuma ética sobre o que comer e porque comer e ela é construída basicamentepelos alimentos que o meio em que se vive oferece, pela sua construção sociale histórica e pelas compreensões éticas, espirituais ou religiosas. Esta relaçãopermite que as culturas tenham na alimentação um campo bastante propíciopara repassar e consolidar seus mais importantes valores e princípios. Por isso,uma cultura alimentícia tem um forte compromisso para a manutenção de umacultura política e social.O projeto de civilização ocidental foi consolidado a partir daindustrialização e rapidamente vimos refrigerantes, produtos enlatados emisturas químicas cheias de conservantes e realçadores de sabor – elaboradascriteriosamente para atingir sensações captadas pelas nossas papilasgustativas – invadirem nossas refeições e rituais, fortalecendo uma lógicadependente, mecanizada, padronizada, alienadora e subserviente.Nosso objetivo é repensar nossa cultura alimentar e resgatar hábitos dealimentação que sejam mais justos e norteados por uma ética não hierárquica.Nesta primeira publicação, que demos o nome de “comida não émercadoria”, temos a pretensão de alertar e denunciar a apropriaçãoinescrupulosa da alimentação pelo grande projeto capitalista e cientificista queestá nos deixando mais obeses, doentes, subnutrides e reféns dos laboratóriosfarmacoquímicos.

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hakhonEDIÇ

ÕES

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Comida não émercadoria

“Os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os otimistas

estão encantados com o que há.”

José Saramago

2014hakhonED

IÇÕ

ES

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edições hakhon é um projeto independente, autônomo, livre e autogestionado que visa levantar questionamentos aos padrões da sociedade e propagar assuntos de interesse libertário.

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comida não é mercadoriaeditoração e ilustrações: edições hakhon

capa: edições hakhonorganização: publicações dhuzati

revisão: edições hakhontextos: andré luis bianco e dhuzati coletiva vegetariana

artesanalentrevista: adaptado do original de thomaz favaro

recife, verão de 2014

hakhonED

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APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................

A Dhuzati, enquanto coletiva, ainda é relativamente prematura e um tanto inexperiente mas sabemos muito bem onde queremos chegar. Surgimos de uma inquietação sobre os rumos e as diretrizes de umas das nossas necessidades mais elementares: a alimentação. O hábito de comer é mais antigo do que a própria humanidade e sem dúvidas, é a partir dele que ela cria as condições para se desenvolver. Esta necessidade nos coloca em relação direta com o meio em que vivemos, afinal precisamos extrair e coletar o que a natureza tem disponível para manter nosso corpo ativo e vivo. A forma como satisfazemos esta nossa necessidade biológica é cultural e cada cultura organiza preceitos, técnicas, filosofias e métodos para comer, de acordo com sua realidade, por isso, a alimentação não possui apenas uma importância social, mas têm sobretudo, um caráter político. Todo povo possuí uma ética sobre o que comer e porque comer e ela é construída basicamente pelos alimentos que o meio em que se vive oferece, pela sua construção social e histórica e pelas compreensões éticas, espirituais ou religiosas. Esta relação permite que as culturas tenham na alimentação um campo bastante propício para repassar e consolidar seus mais importantes valores e princípios. Por isso, uma cultura alimentícia tem um forte compromisso para a manutenção de uma cultura política e social. O projeto de civilização ocidental foi consolidado a partir da industrialização e rapidamente vimos refrigerantes, produtos enlatados e misturas químicas cheias de conservantes e realçadores de sabor – elaboradas criteriosamente para atingir sensações captadas pelas nossas papilas gustativas – invadirem nossas refeições e rituais, fortalecendo uma lógica dependente, mecanizada, padronizada, alienadora e subserviente. Nosso objetivo é repensar nossa cultura alimentar e resgatar hábitos de alimentação que sejam mais justos e norteados por uma ética não hierárquica. Nesta primeira publicação, que demos o nome de “comida não é mercadoria”, temos a pretensão de alertar e denunciar a apropriação inescrupulosa da alimentação pelo grande projeto capitalista e cientificista que está nos deixando mais obeses, doentes, subnutrides e reféns dos laboratórios farmacoquímicos.

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O título deste material é sobretudo uma provocação à imposição deste grande projeto capitalista. Não seremos hipócritas em não reconhecer que trabalhamos vendendo comida, contudo, temos claro que esta condição nos foi imposta, e dentro deste contexto, preferimos ter o controle e o domínio dos meios que facilitam nossa produção para, a partir disso, conquistar nossa autonomia e poder experimentar uma outra relação de produção. Também estamos construindo outras alternativas que não sejam meramente financeiras ou de troca, mas também de dádiva, de solidariedade, de apoio mútuo e de propagação de informação. Queremos ainda dar voz à iniciativas menores, independentes e locais inspiradas nos conhecimentos da agricultura familiar, produção orgânica, agroflorestal e artesanal, bem como incentivar práticas de coleta de alimentos como forma de boicote e emancipação à produção industrial. Um bom inicio pra uma mudança estrutural pode começar com a colher.

Boa LeituraDhuzati Coletiva Vegetariana Artesanal

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Superalimentados, mas subnutridos

André Luis Bianco.....................................................................................................................

Os produtos alimentares têm se multiplicado nas prateleiras dos supermercados mais rapidamente do que nunca. Apesar do intenso fluxo de informação proveniente de cientistas, marqueteiros da alimentação, jornalistas e diretrizes alimentares do governo, as pessoas parecem cada vez menos capazes de responder à simples pergunta: “O que devo comer?”. Michael Pollan, autor de“Em defesa da comida: um manifesto” e “Dilema do Onívoro”, além de não fugir da pergunta sobre o que devemos comer, faz um preciso e bem documentado diagnóstico dos motivos que nos levaram a essa condição de desorientação. Seu objetivo é fazer uma crítica à dieta ocidental (alimentação industrializada), que minou a cultura alimentar estadunidense, substituindo durante o século XX a “comida de verdade” por “produtos alimentares”. Em cinco anos de pequisa, Pollan analisou três cadeias alimentares: a industrial, a orgânica e aquela associada à caça e à coleta. e esmiuçou como surgiu e como se deu o funcionamento de cada uma delas. A posição do autor é evidente, ele quer defender a comida e a alimentação da ciência da nutrição, da indústria alimentícia e do jornalismo (intermediário entre os cientistas e o público). Ele nos apresenta um diagnóstico do sistema alimentar ocidental atual e dá suas recomendações de como podemos nos alimentar da melhor forma possível dentro deste sistema – ou fugindo o máximo que podemos dele. O Atual sistema alimentar foi construído no século XX com base em uma ideologia do nutricionismo, defendida pela indústria alimentar, que conseguiu ter poder e influência para gerar consenso em torno de três mitos: 1) o mais importante não é o alimento, mas sim o nutriente; 2) por ser este invisível e incompreensível, precisamos de especialistas para decidir o que comer; e 3) o objetivo da alimentação é promover a saúde física. Porém, para

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compreendermos como se chegou o estado atual de confusão nutricional precisamos retomar o surgimento da ciência da nutrição. Desde o século XIX, a ciência procurou determinar os componentes fundamentais dos alimentos (macronutrientes: proteínas, gorduras e carboidratos) e, a partir do início do XX, passou a pesquisar os micronutrientes (vitaminas). Essas descobertas possibilitaram a cura quase imediata de doenças como escorbuto e beri-béri, legitimando a então incipiente ciência nutricional. A partir dos anos 1950, difundiu-se a “hipótese lipídica” – isto é, a gordura e o colesterol oriundos principalmente de carnes e laticínios são responsáveis pelo aumento de doenças do coração. Na ocasião esta hipótese abalou o lobbie de indústrias de carne e laticínios, pois ameaça contundentemente os mercados e o consumo de carne e laticínios. A Comissão Superior do Senado dos EUA para Nutrição e Necessidades Humanas elaborou um documento contendo recomendações alimentares que foram orientadas pela hipótese lipídica, mas ele teve que ser reformulado às pressas devido a reação do setor industrial alimentício. Então, substituiu-se a recomendação “reduza o consumo de carne” por “escolha carnes que reduzam o consumo de gorduras saturadas”. O reflexo do nutricionismo no mercado é a eliminação da distinção entre natural e processado: mesmo um alimento altamente processado pode ser considerado “mais saudável” se possuir as quantidades apropriadas de nutrientes. O princípio nutricionista operacional é a capacidade científica de determinar a equivalência nutricional entre quaisquer alimentos, assim tornando-os substituíveis. Enquanto os alimentos naturais sobem e descem de acordo com o que é convencionado pela ciência da nutrição, os alimentos processados podem ser continuamente reformulados pela indústria. O efeito mais importante disso foi a mudança na linguagem: deixou-se de falar em alimentos e passou-se a falar em nutrientes. A “língua alimentar oficial” – falada em termos como poliinsaturado, colesterol, monoinsaturado, carboidrato, fibra, polifenóis, aminoácidos, flavonóis, etc. – logo passou a fazer parte “do espaço cultural previamente ocupado pelo material tangível, antes conhecido como comida” A “hipótese lipídica” é exemplo da instabilidade, controvérsia e incerteza dentro da ciência da nutrição, como um paradigma desta ciência. Os cientistas têm reconhecido que, já no princípio da formulação dessa hipótese, os fundamentos eram insuficientes. Apesar do esforço nas últimas décadas para a redução do consumo de gordura, os problemas de saúde relacionados não diminuíram. Deixa-se de consumir gorduras, mas se consome mais carboidratos.

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Segundo Pollan, “o resultado de trinta anos de conselhos nutricionais fez as pessoas mais gordas, mais doentes e mais mal nutridas”. O autor aponta que hoje se sabe que um conjunto de doenças, chamadas de ocidentais (obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão e tipos de câncer ligados à dieta), aparece quando um povo abandona a sua dieta e adota a dieta ocidental. Pollan apresenta estudos das primeiras décadas do século XX que já identificavam essa relação. Cita, por exemplo, estudos de médiques europeis e estunidenses que trabalharam com populações nativas em diversos lugares do mundo e notaram os malefícios da “dieta industrializada”. Entretanto, as críticas que fizeram à “civilização industrial” não sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, as pessoas dependiam da indústria para sobreviver, o que a consolidou e contribuiu para que os estudos desses médicos fossem, em sua maioria, esquecidos. A dieta ocidental como conhecemos hoje se constituiu basicamente das seguintes mudanças radicais nos alimentos e em nossas relações alimentares ao longo dos últimos 150 anos:

I) Dos integrais aos refinados: os grãos de cereais vêm sendo refinados desde a Revolução Industrial e passaram a ter mais prestígio por conta da imagem, higiene e durabilidade. Além disso, facilitavam o comércio por não estarem presos às amarras de tempo e lugar;

II) Da complexidade à simplicidade: em cada nível, do solo ao prato, a industrialização alimentar envolveu um processo de simplificação química e biológica

III) Da qualidade à quantidade: com a industrialização dos alimentos se produz muito mais calorias, mas com menor valor nutritivo. Como resultado da superprodução, o preço cai, possibilitando que as pessoas comam mais, porém com menos qualidade;

IV) De folhas a sementes: os grãos passaram a compor a maior parte dos alimentos industrializados. Além disso, a superprodução de grãos simplifica a paisagem agrícola, reduzindo a disponibilidade de uma variedade maior de alimentos;

V) Da cultura à ciência do alimento: com a era da alimentação moderna, a orientação sobre o que se deve comer deslocou-se da cultura étnica e

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regional para a ciência nutricional. Essas mudanças tiveram consequências para a saúde humana, para aspráticas sociais e para o ambiente. O argumento da simplificação está presente nas cinco transformações. A simplificação da paisagem agrícola tem reflexos diretos na dieta humana. Os seres humanos são onívoros, necessitando de aproximadamente cem compostos químicos e elementos diferentes para uma boa saúde. No entanto, milho, soja, trigo e arroz processados compõem a maior parte da dieta ocidental. O percurso do milho na cadeia industrial, por exemplo, começa com a extração de petróleo, necessário para tornar utilizável o nitrogênio não reativo encontrado na natureza, que, por sua vez, será utilizado na fabricação de fertilizantes artificiais. Aliando isto à manipulação dos cruzamentos genéticos, é possível aumentar a produção de milho por hectare, cujo excedente torna-se tão barato que é usado de alimento para animais ruminantes, e assim por diante. Além dessa pequena variedade, o refino moderno retira dos alimentos nutrientes e outros elementos importantes para a nutrição humana, o que faz crescer a incidência de doenças causadas por deficiências. Mesmo com a estratégia de adição de nutrientes por parte da indústria, os alimentos refinados não contêm o mesmo valor nutricional que os integrais. E, ao mesmo tempo em que perdemos elementos fundamentais para a dieta, aumentamos o consumo de calorias: podemos estar superalimentados, mas subnutridos – e, ainda assim, não necessariamente saciados. Outra perda grave para a saúde humana é a redução no consumo de folhas a favor do elevado consumo de grãos. Deixamos de consumir elementos essenciais (ou seja, que nosso corpo não pode produzir por si só), por exemplo, os ácidos graxos ômega-3. Além das consequências ambientais e biológicas, a mudança na cultura alimentar causou desorientação e ansiedade nas decisões de consumo alimentar, pois elas são baseadas em ciências cujo conhecimento é constantemente revisto e está sujeito a falhas. Frente ao quadro apresentado sobre o sistema alimentar moderno, sugere-se orientar as escolhas, a fim de priorizar a história, a cultura e a tradição, além de se empenhar em ações que envolvem a produção, a compra, o preparo e as circunstâncias de consumo.

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EntrevistaMICHAEL POLLAN

Timótea Wolf.....................................................................................................................

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“A nutrição é uma ciência nova e imperfeita, e por isto não deveríamos nos apoiar unicamente nela para escolher

nossos alimentos. A nutrição está na mesma posição que a cirurgia no século XVII: É uma ciência jovem e promissora, mas você não quer ser sua cobaia.”

Instigades pelo artigo de Andre Luis Bianco, a Hakhon entrou em contato com o Michael Pollan, jornalista e pesquisador estadunidense, autor dos livros “A Dieta do Onívoro” e Em Defesa da Comida: Um Manifesto”, ambos citados por Bianco. Pollan é contundente em sua aversão aos exageros da ciência da nutrição. Ele diz que a humanidade está iludida e obcecada pelo falacioso discurso dos “benefícios” da alimentação na saúde e que não deveríamos nos pautar unicamente pelos conselhos dos nutricionistas na hora de decidir o que comer. Nossa colaboradora Timótea Wolf, bateu um papo com Pollan via internet, e traduziu esta conversa para gente:

É possível dizer que estamos nos alimentando pior que nossos avós?

Atualmente, os alimentos são vendidos apenas com base em seus benefícios para a saúde: um é capaz de reduzir seu colesterol, outro tem muitas fibras. Os nutrientes tornaram-se mais importantes que a comida em si. O alimento é apenas um intermediário na entrega destas substâncias. Como os nutrientes são invisíveis para todos, exceto para o cientista e seu microscópio, escolher o que comer tornou-se uma decisão para profissionais, e não para amadores. Tem-se a impressão de que é necessário ter um diploma de bioquímica para tal

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escolha, o que não é correto. Além disso, as mensagens científicas com relação a comida são muito confusas. Há muita divergência entre nutricionistas sobre o que é ou não saudável.

O senhor afirma que estamos vivendo a 'era do nutricionismo'. O que quer dizer com isso?

Nutricionismo é a atual ideologia em torno da comida. O nutricionismo parte de alguns pressupostos, muitos dos quais nós compartilhamos sem perceber. Acreditamos, por exemplo, na possibilidade de dividir o mundo em nutrientes bons e ruins. Os ruins precisam ser removidos da comida, enquanto os bons, quanto mais, melhor. Atualmente o bom é o ômega-3 e o ruim é a gordura trans, mas isto muda constantemente ao longo da história. Cem anos atrás, as proteínas eram os nutrientes ruins, que deveriam ser substituídos por carboidratos. Outra premissa é que comemos para manter a saúde. Alimentamo-nos para melhorar ou piorar nossa saúde, e apenas isto. Na verdade, comemos pelas mais diversas razões: por prazer, para socializar com os amigos, para participar de rituais familiares e até para demonstrar nossa identidade cultural e religiosa. A saúde é só uma das razões, e por isso não pode se tornar nosso único parâmetro de escolha dos alimentos.

Há muitos alimentos que, como o ovo, eram considerados vilões da saúde e hoje foram reabilitados pela ciência. Por que é tão difícil encontrar um

consenso entre nutricionistas?

Os nutricionistas têm uma tarefa muito difícil. É muito complicado entender o que se passa no fundo da alma de uma cenoura ou de um ovo. Estas comidas são mais do que a soma de seus nutrientes, são verdadeiros sistemas com relações complexas entre si. Quando se isola um nutriente da comida para ver como funciona, ele não se comporta da mesma maneira que dentro do alimento. Eis um exemplo: o betacaroteno, nutriente presente na cenoura, é um antioxidante que se converte em vitamina A. Quando extraído da cenoura e ingerido em forma de pílula, não funciona. Também sabemos pouco sobre o outro lado da cadeia alimentar: o corpo humano. Ainda não se conhece muitos aspectos da digestão humana, como funciona exatamente nosso metabolismo ou como o corpo reage a diferentes açúcares. A nutrição é uma ciência nova e imperfeita, e por isto não deveríamos nos apoiar unicamente nela para escolher

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nossos alimentos. A nutrição está na mesma posição que a cirurgia no século XVII: É uma ciência jovem e promissora, mas você não quer ser sua cobaia.

Quais os principais problemas nos estudos de nutrição atuais?

É muito difícil estudar as propriedades dos nutrientes dentro de um contexto. Não comemos apenas nutrientes, fazemos refeições completas. Comer tomate com azeite é diferente de comê-lo sozinho, pois o azeite aumenta a quantidade de antioxidantes do tomate que o organismo é capaz de absorver. Além da combinação de alimentos, é preciso levar em conta a quantidade de exercício que uma pessoa pratica, seu estilo de vida, sua cultura. São estudos muito complexos. Cortadores de cana em Cuba comem 6.000 calorias por dia, a maior parte puro açúcar. Isso faria de qualquer um de nós diabético, mas eles não ficam doentes. Não ficam sequer gordos, pois estão queimando todo este açúcar no trabalho. Outro problema ao estudar a alimentação de populações é a metodologia, é praticamente impossível conseguir respostas honestas dos entrevistados. Se você der um questionário para uma pessoa escrever o que ela comeu nos últimos três meses, ela não vai se lembrar de tudo e vai mentir. As pessoas se esquecem do que comeram.

Como deveríamos selecionar nossos alimentos?

Usamos o olfato para saber se a comida está estragada. Comidas muito amargas também não nos apetecem, justamente porque a maioria das toxinas têm esse sabor. A maioria de nós percebe que comer fast-food em grandes quantidades nos faz sentir mal depois. Nós temos instintos, mas está difícil confiar neles, sobretudo depois de tanta exposição ao sal e açúcar.

Como assim?

Atualmente é muito fácil manipulá-los. Biologicamente, estamos condicionados ao açúcar e a gordura. Quando se coletava alimentos diretamente da natureza, isto não era um problema. Há poucas fontes de doces disponíveis além de mel e frutas maduras. No passado, só era possível conseguir gordura animal depois de uma boa caçada, o que não acontecia todo dia. Mas com a agricultura e a pecuária modernas, dar açúcar e gordura para as pessoas tornou-se fácil demais. Os alimentos processados e fast-foods contêm níveis

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altíssimos de açúcar, gordura e sal. Os cientistas da comida também podem criar substâncias que mentem para o para o nosso corpo, como adoçantes e gorduras artificiais. A manipulação dos alimentos torna mais difícil confiar em nossos instintos.

Há 50 anos, não havia tanta informação detalhada a respeito de nossas comidas, mas também não tínhamos tantos problemas de saúde relacionados à alimentação. Poderíamos afirmar que a nutrição foi usada como estratégia

política para o desenvolvimento da industria alimentícia?

Um dos principais guias sobre o que nós deveríamos comer é a cultura, que na verdade é só uma palavra rebuscada para referir-se a nossa tradição. É através da cultura que a sabedoria da comida é transmitida através das gerações. Nós atualmente rejeitamos a culinária em nome desta dieta pseudocientífica, e passamos a ouvir cientistas e vendedores de comida ao invés de nossas mães. Ignorar nossa cultura alimentar é uma burrice. Quando eu era pequeno, cientistas e o governo estadunidense diziam que manteiga era ruim para a saúde e margarina fazia bem, por ser uma gordura vegetal. Minha mãe, a contragosto, resolveu ouvir a sabedoria deles e nos deu margarina. Ela dizia que eles estavam errados, mas nós dávamos risada. Hoje a ciência provou que ela estava certa. Quando se interpreta a cultura como uma história da carochinha, corre-se o risco de perder conhecimentos importantes. Porém nem tudo foi perdido: nós realmente aprendemos algo com os estudos acadêmicos. A ciência da nutrição, apesar de não ser ética politicamente, não é uma perda de tempo. Há muitas coisas que sabemos sobre composição dos alimentos e sobre metabolismo que nós não conhecíamos há cinquenta anos. Muito desse aprendizado está justamente comprovando que a sabedoria popular estava certa.

O que dizer para as pessoas que se assustam com algumas culinárias tradicionais desalinhadas ao padrão nutricional ocidental moderno?

Não existe algo como uma culinária típica maléfica: ela não teria durado até hoje se não mantivesse as pessoas vivas e saudáveis. Qualquer comida tradicional é melhor que a moderna dieta ocidental. As pessoas podem escolher de acordo com a sua preferência. Mas atenção: ir a um restaurante japonês ou francês não é garantia de que você estará comendo a comida

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tradicional do país. Em muitos lugares, serve-se a comida dos banquetes, que é diferente do que aquela nacionalidade come cotidianamente. Muito do que achamos que é comida chinesa são pratos servidos em ocasiões especiais, pois são repletos de carne.

Você diria que a primeira atitude para uma má alimentação é fazer compras em supermercados?

Sim e não. É fato que atualmente podemos encontrar diferentes frutas e vegetais do mundo todo no supermercado, muito mais do que encontraríamos cinquenta anos atrás. Por outro lado, ao analisar as fontes de calorias, nota-se que a nossa dieta está menos diversificada. Mais de dois terços das calorias consumidas diariamente vêm de apenas quatro vegetais: milho, soja, trigo e arroz. Um século atrás, havia maior diversidade. Esta aparente diversidade no supermercado obscurece a realidade de que a diversidade de nossa dieta vem encolhendo.

Além da insustentabilidade ecológica os alimentos industriais nos deixa alienades em relação ao produção do que comemos. A contramão da premissa industrial, algumas religiões como a hindu e as de matriz africana vêm na alimentação uma possibilidade concreta de vivenciar seus preceitos, principalmente no que se refere a preparação, mas elas não teriam

necessariamente uma preocupação nutricional.

A comida tem, de fato, uma dimensão espiritual. É uma maneira de conectar-se com o mundo, com as outras espécies com as quais convivemos e também com outros seres humanos. Uma comunhão acontece toda vez que se faz uma refeição com a família ou amigos. A ideia de obter os nutrientes corretos na alimentação tornou-se uma obsessão, é uma percepção errônea de que basta comer a comida correta que tudo estará bem com você e o mundo todo. Não é tão simples assim. Precisamos voltar a nos preocupar com toda a cadeia produtiva dos alimentos e não ficarmos obcecados com este ou aquele nutriente. A manutenção da saúde deve ser apenas uma consequência, e não o objetivo de comer bem. É claro que se você está doente, a comida pode ser um excelente remédio. Mudanças na dieta podem ter um enorme efeito em sua saúde.

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tradicional do país. Em muitos lugares, serve-se a comida dos banquetes, que é diferente do que aquela nacionalidade come cotidianamente. Muito do que achamos que é comida chinesa são pratos servidos em ocasiões especiais, pois são repletos de carne.

Você diria que a primeira atitude para uma má alimentação é fazer compras em supermercados?

Sim e não. É fato que atualmente podemos encontrar diferentes frutas e vegetais do mundo todo no supermercado, muito mais do que encontraríamos cinquenta anos atrás. Por outro lado, ao analisar as fontes de calorias, nota-se que a nossa dieta está menos diversificada. Mais de dois terços das calorias consumidas diariamente vêm de apenas quatro vegetais: milho, soja, trigo e arroz. Um século atrás, havia maior diversidade. Esta aparente diversidade no supermercado obscurece a realidade de que a diversidade de nossa dieta vem encolhendo.

Além da insustentabilidade ecológica os alimentos industriais nos deixa alienades em relação ao produção do que comemos. A contramão da premissa industrial, algumas religiões como a hindu e as de matriz africana vêm na alimentação uma possibilidade concreta de vivenciar seus preceitos, principalmente no que se refere a preparação, mas elas não teriam

necessariamente uma preocupação nutricional.

A comida tem, de fato, uma dimensão espiritual. É uma maneira de conectar-se com o mundo, com as outras espécies com as quais convivemos e também com outros seres humanos. Uma comunhão acontece toda vez que se faz uma refeição com a família ou amigos. A ideia de obter os nutrientes corretos na alimentação tornou-se uma obsessão, é uma percepção errônea de que basta comer a comida correta que tudo estará bem com você e o mundo todo. Não é tão simples assim. Precisamos voltar a nos preocupar com toda a cadeia produtiva dos alimentos e não ficarmos obcecados com este ou aquele nutriente. A manutenção da saúde deve ser apenas uma consequência, e não o objetivo de comer bem. É claro que se você está doente, a comida pode ser um excelente remédio. Mudanças na dieta podem ter um enorme efeito em sua saúde.

Pollan, as informações que você compartilhou conosco é de muita importância para começar a pensar nossa comida distante da pilantragem da industria alimentícia e para impulsionar a construção de uma nova cultura alimentar. Agradeço a disponibilidade para esta conversa e gostaria que

deixasse um recado para as pessoas que irão ler este material.

Reconheço imensamente o esforço da equipe da Hakhon, e acho muito importante este trabalho de difusão de informação sobre as más intenções da ciência e da indústria de alimentos. Agradeço terem buscado o contato comigo e como jornalista, fico honrado em contribuir com este trabalho de informação. Tanto a publicidade quanto a indústria estão se sofisticando para nos enganar a tal ponto que não sabemos mais de onde vem nossa comida. A cadeia é tão grande que muita gente acha que a comida vem do supermercado. Muitas crianças hoje não entendem que a cenoura é uma raiz. Elas se perguntam de que parte da planta são estes pedaços laranjas dentro de um saco plástico. A indústria alimentar nos desconectou do fato de que dependemos destas outras espécies, com as quais compartilhamos o planeta, para sobreviver. Nós entregamos a preparação dos alimentos para empresas de grande escala. Isto pode nos ajudar a conseguir uma hora a mais na frente da televisão ou da internet, mas estas empresas não cozinham bem. Elas usam muito sal, gordura, açúcar e inúmeros produtos químicos. A comida se torna altamente calórica e não é tão nutritiva. A consequência é que nos tornamos mais vulneráveis. Somos vítimas mais fáceis das manipulações dos alimentos fast-food e das propagandas de dietas milagrosas. É uma das razões pela qual nós temos tantos problemas de saúde relacionados à alimentação. Não confiamos mais em nossas tradições, não sabemos mais como cozinhar. Precisamos tomar de volta a decisão sobre nossas escolhas alimentares e sobre a preparação das refeições.

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para mais informações:

GIDDENS, Antony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.

MOSS, Micheal. Salt, Sugar, Fat: How the Food Giants Hooked Us. New York: Random House, 2013

POLLAN, Michael. O Dilema do Onívoro: Uma história natural de quatro refeições. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca. 2007.

POLLAN, Micheal. Em defesa da comida. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2008.

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