Como Ler Um Texto de Filosofia - Antonio Joaquim Severino

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  • 5/10/2018 Como Ler Um Texto de Filosofia - Antonio Joaquim Severino

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    Ler textos filos6ficos deve representar a busca de urndialogo com aqueles que nos precederam nessa tarefade desvendar 0 sentido das coisas. Este livro propoe-se a apresentar aos jovens estudantes algumas orien-tacoes para que se iniciem na leitura sistematica dostextos filosoficos. E preciso que incorporemos algumasorientaooes, pois a leitura de textos cientfficos e filos6-ficos nao e urn procedimento espontaneo: exige umaintervencao mais sistematica para a decodificacao dotexto do que quando se trata de textos Iiterarios, nosquais a apreensao da mensagem se ap6ia mais em nossafamiliaridade com a linguagem coloquial e em nossaimaginacao.

    ANTONIO]OAQUIMSEVERINOe licenciado em Filoso-fia pe la Universidade Cat6l ica de Louvain - Be lgica ,doutor pela PUC-SP e l ivre -docente em Filosofia daEducacao na Univer sidade de Sao Paulo , onde atual-mente e professor titular.

    Antonio J oaquim Severino

    Como lerurn textode filosofia

    P A U L U S

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    Antonio Joaquim Severino

    Como le~ lAm textode filosofia

    P A U L U S

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    Editorac;aoPAULUS

    A filosofia sempre ocupou urn lugar proeminente nacultura ocidental. Pode-se ate mesmo dizer que ela foi umadas principais forcas que contribufram para a construcaohist6rica dessa cultura, pois todo 0conhecimento cientffico etecnico que seencontra na base do ediffcio de nossa civilizacaoemergiu sob essa modalidade filos6fica, leina Grecia classica,cerca de 500 anos antes de nossa era.

    Matriz da cultura ocidental, a filosofia se faz continua-mente presente na educacao, pois e intimo 0 vfnculo entre acultura de uma sociedade e a educacao que ela pratica, Naopodia ser diferente na hist6ria cultural da sociedade brasi-leira, herdeira da tradicao europeia. Ainda que enfrentandoobstaculos e solavancos decorrentes das muitas lirnitacoesde nosso processo civilizat6rio, a filosofia nunca esteve au-sente da nossa vida sociocultural e de nossa educacao, nestesnossos 500 anos de experiencia hist6rica. Mesmo que seulugar nao tenha sido dos mais privilegiados, mesmo que suairnportancia nao tenha sido reconhecida e valorizada portodos, nem por isso ela deixou de existir entre n6s, sob suasdivers as formas.

    A filosofia e, fundamentalmente, uma modalidade deconhecimento mediante a qual pretendemos conhecer algoa respeito dos diversos aspectos da realidade, exatamentenaquilo que concerne a nossa relacao com 0mundo no qualnos encontramos situados. Conhecer e tornado aqui numsentido bern amplo: toda representacao que podemos ter,subjetivamente, da realidade que nos cerca. Filosofar e, pois,

    CoordenacaoClaudeni r M6do loC l au d ia n o A v el in o d o s Sant os

    Im ag em d a c ap aSXC- Fo tomon tagem

    i rnp ressao e acabamen toPAULUS

    2a edkao, 2009

    PAULUS- 2008Rua F ranci s co C ruz , 229 04117-091 Sao Pau lo (B ras il )Fa x (11) 5579-3627 Tel.(11) [email protected]

    ISBN 978-85-349-2870-0

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    ~_...:.4 Como Ie.. "'m texto de filosofia

    uma experiencia intelectual, urn exercicio de nossa faculdadede pensar as coisas, de apreender os seus sentidos, de buscara significacao que elas tern para nos.

    Mas essa experiencia de pensar 0 mundo, de buscarconhece-lo, nao pode ser uma tarefa soliraria, Ate porquepara pensar, nos ja precis amos estar inseridos numa cultura,ou seja, quando cornecamos a pensar, dependemos de todauma experiencia de pensamento praticada e acumuladaantes mesmo de termos nascido. Ademais, 0 nosso acesso aessa experiencia acumulada, a essa cultura que nos envolve,dar-se-a sobretudo mediante a linguagem. E principalmentepor meio do uso da linguagem que nos compartilhamos comnossos semelhantes todos os saberes e valores que foramsendo acumulados pela humanidade, em geral, e pela nossasociedade, em particular.E por isso mesmo que as experiencias do pensamento eda linguagem praticamente seconfundem, desde a sua genese,integrando-se dialeticamente, uma dependendo intrinseca-mente da outra. E a linguagem que gar ante urn minimo deobjetividade e de.exterioridade ao pensamento que, sem ela, 'ficaria entrincheirado no intimo de nos sa subjetividade, 0queinviabilizaria toda cornunicacao.E assim que, quando falamos de pensamento, de conhe-cimento, de cultura, de ciencia, de filosofia, imediatamentenos lembramos da educacao, Pelo fato de nao nascermossabendo nada disso, temos de aprender tudo. E essa aprendi-zagem corneca desde nossa mais tenra idade, num processoque so acabara mesmo com a falencia de nossa vida organicae mental, com a morte.

    A educacao e esse processo total que nos envolve desde 0nascimento e por meio do qual vamos sendo progressivamenteinrcgrados ao nosso mundo cultural. Nesse sentido, ela se dad~'modo informal e difuso, no seio da propria vida social. Dai'.t' Inlar de educacao informal, que acontece no seio da fami-

    lia, nos grupos de amigos, nas relacoes sociais, nos diversosambientes em que estabelecemos relacoes interpessoais.

    Mas, ao setornarem mais complexas, as sociedades criaminstituicoes que se especializam em responder por determi-nadas funcoes. Urn born exemplo e a escola, que vai entaoresponder sistematicamente pela tarefa da educacao. Assim,no interior da sociedade, temos a educacao formal.

    Dessa maneira, ao longo de nossa vida, aprendemos infor-malmente muitas coisas por imitacao, convivencia, interacoescom nossos companheiros; aprendemos a vida, como se cos-tuma dizer. Mas podemos avancar nessa aprendizagem, pormeio da educacao formal que nos e oferecida nas instituicoeseducacionais, nas escolas. Af 0 saber e trabalhado, sistema-tizado, organizado e transmitido aos sujeitos aprendizes, deforma que estes possam integrar-se na vida de sua sociedade,dispondo de urn melhor conhecimento de sua cultura. Aeducacao escolar prepara-nos com 0 intuito de inserir-nos nomundo do trabalho, no convivio social e na esfera da cultura.Pretende preparar-nos assim para 0 proprio exerdcio de nossaexistencia, que se constitui exatamente pelas praticas concretasdo trabalho, da politica e da cultura simbolica,

    A educacao e a aprendizagem, desenvolvidas pela me-diacao do ensino, constituem-se como praticas efetivas deleitura e de escrita do mundo por meio da abordagem dosdiferentes discursos que a cultura humana pronuncia sobreesse mundo. Por isso, a educacao e, substantivamente, co-municacao, e a escrita e a leitura, como sistema de signoslinguisticos, formas privilegiadas de comunicacao. Por isso,falar de escrita e de leitura e falar de cornunicacao e pressupora intersubjetividade, dimensao gracas a qual nossa existenciase faz mediante urn intenso e extenso processo de intercambiode mensagens.

    A cornunicacao seinstaura no seio da especie human a pormeio desse necessario C onipresente processo de intercambio de

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    CoWO Ie.. "'W texto de filosofiCl

    significacoes, primeiramente com a fala, com a oralidade. S6que a expressao oral seesvai no tempo, sobrecarregando nossamemoria, fragilizada que e pela precariedade de nosso corponatural, orgao biologico da fala. Dai 0 avanco representadopela escrita, simbolizacao concretizante das significacoes nalinguagem, tornando-se uma nova forma de memoria capazde veneer 0 tempo e a precariedade das condicoes de nossaexistencia hist6rica.

    A escrita torna-se, entao, uma das formas privilegiadasda construcao do acervo cultural da humanidade, da culturacomo acervo de significacoes produzidas e acumuladas pelaespecie, dos sistemas simb6licos que mais tern capacidade deguardar, sinteticamente, volumes maiores de saberes, de ex-periencias vividas, de significados que, sem ela, perderiam-seao longo da passagem corrosiva do tempo.A escrita filos6fica constitui parte fundamental, valiosissi-rna, desse grande acervo da cultura humana. E 6bvio que essaescrita existe em todas as culturas. Aqui estamos nos referindoa cultura ocidental, por meio da qual que participamos da cul-tura humana como urn todo. Dai a importancia que a leitura 'dos textos filos6ficos assume em nosso processo educacional,pois eles tratam fundamental mente do sentido da nossa propriaexistencia. Esse sentido se constr6i ao longo da historia daespecie, por meio de urn investimento que seda de forma cole-tiva, pela participacao de todas as pessoas, sob uma dimensaosocial, e de forma hist6rica, pois e uma construcao ao longoda temporalidade. 0 sentido da existencia humana, os homensbuscam construi-lo, sincronicamente, recorrendo a participa-~ao do todo social e, diacronicamente, recorrendo a partici-pacao das sociedades existentes em todas as eras hist6ricas.

    Desse modo, ler os textos filosoficos deve representar,para nos, hoje, a busca de urn dialogo com aqueles que nbsprecederam nessa tarefa de desvendar 0 sentido das coisas,ou daqucles que 0 fazem hoje, em diferentes lugares.

    Este livrinho prop6e-se a apresentar aos jovens estudantesalgumas orientacoes para que seiniciem na leitura sistematicados textos filosoficos. E preciso que incorporemos algumasorientacoes, pois a leitura de textos cientificos e filos6ficosnao e urn pro cedimen to espontaneo: ele exige uma interven-~ao mais sistematica para a decodificacao do texto do quequando se trata de textos Iiterarios, nos quais a apreensaoda mensagem apoia-se mais na nossa familiaridade com alinguagem coloquial e em nossa irnaginacao,

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    De acordo com aspremissasadiantadas na Apresentacao,to do texto e urn conjunto designos linguisticos que codifi-cam uma mensagem. E urn meiocodificado, utilizando signos lin-guisticos, pelo qual se viabiliza a cornunicacao entre as pes-soas, entre duas ou mais consciencias capazes de decodificaresses signos. Portanto, e urn meio de cornunicacao entresubjetividades.

    Quando alguern escreve urn texto, esta se colocandocomo urn emissor que pretende transmitir uma mensagempara urn receptor. A mensagem e pensada pelo autor, codi-ficada mediante signos e transmitida ao leitor. Portanto, aoredigir, 0 autor/emissor procede a codificacao da mensagema ser transmitida; 0 leitor/receptor, ao ler 0 texto, procede adecodificacao da mensagem do autor, para entao apropriar-se dela em seu pens amen to, assimilando-a, personalizando-ae compreendendo-a. Esse e 0 cicIo completo do processo dacomunicacao entre os sujeitos humanos.

    Na pratica da comunicacao, porern, os sujeitos humanossofrem, em todas as fases do processo, uma serie de interferen-cias subjetivas e culturais que poem em risco a "objetividade"da comunicacao, impedindo que tanto a codificacao comoa decodificacao da mensagem possam ser realizadas. Daf

    Texto: um conjunto de sig-nos lingOisticos que codifi-cam uma mensagem.

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    se fazerem necessarias algumas precaucoes, certos cuidadospara minimizar esses riscos e garantir que a mensagem sejaadequadamente codificada e decodificada.o processo da cornunicacao humana pode ser bern re-presentado pelo fluxograma abaixo:

    O qt--\e e I e . ..?A leitura de urn texto e a

    decodificacao da mensagem deque see portador. Trata-se, pois,de uma etapa do processo decornunicacao, uma mediacaoda comunicacao. Enquanto aescrita e 0 processo de codificacao da mensagem, pelo autor,a leitura e 0 processo inverso e simetrico de decodificacaoda mensagem, pelo lei tor. Mas,para realizar a leitura, 0 leitorprecisa preencher algumas con-dicoes.

    A primeira e, obviamente, 0dominic do c6digo usado paraa producao do texto. Aqui trataremos do c6digo linguistico,mas urn documento pode ser produzido tam bern medianteoutros tipos de signos, como imagens, gestos, sons etc. Assim,o leitor precisa conhecer a lingua em que 0 texto foi escritoe esse conhecimento dos signos implica dois niveis: primeiro,o conhecimento dos significantes e dos significados. E quequando falamos dos signos da linguagem, e preciso levar emconta duas dimensoes. Cada signa linguistico carrega em siurnsignificante, que e 0 lado material (0grafema, no signa escrito,ou 0 fonema, no signa oral, ou seja, as letras ou os sons), eo significado, que eo lado conceitual, ou seja, 0 sentido queaquele significante vai suscitar na mente do lei tor.

    Lidamos, entao, na leitura, com as palavras ou termos, ecom os conceitos ou ideias. As palavras ou termos sao 0 ladovisivel e material da linguagem, estruturando-se de acordocom as regras gramaticais de cad a lingua. ja os conceitosou ideias .sao os "conreiidos mentais" que correspondem acada palavra, por meio dos quais representamos urn objeto,

    Leiturad o t ex toElaborac;aodos t raba lhos

    lnterferenciaspessoa is e cu l tu ra is

    lnterferenciaspessoa is e cu lt u r a is

    Antonio JOClq",im Sevel"ino

    A esc rita e 0 processo decodifica~ao da mensagem,pelo autor.

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    pensamos uma coisa ou uma relacao entre palavras. E pelarnediacao dos conceitos que pensamos e concebemos as coisase, conseqiientemente, as mensagens que, sobre elas, os textosescritos ou falados querem nos passar, 0conceito representa esubstitui a coisa no ambito da consciencia subjetiva e e gracasa ele que podemos, entao, pensar,"

    Mas os conceitos, por sua vez, para serem comunicados,precisam tam bern ser simbolizados, mediados, 0 que ocorregracas aos termos, as palavras. Estas sao as mediadies lingii-fsticas dos conceitos. Assim, para nos, sujeitos humanos, ainteleccao de urn conceito passa necessariamente pela leiturada palavra. Conceitos e palavras formam uma unidade tantodo ponto de vista da logica como da grarnatica.'

    Mas, para pensar, para elaborar suas mensagens, a mentehumana nao usa apenas conceitos e termos isolados: os con-ceitos, tanto quanta os term os que os representam, se uneme formam seqiiencias chamadas jufzos ou proposicoes que,por sua vez, unidos, formam conjuntos maiores, chamadosraciocinios ou argumentacoes.

    Assim, urn texto e, na realidade, uma mensagem codi-ficada sob formalingiilstica de urn raciocfnio. A redacao e 'uma argumentacao correspondente a urn raciocfnio, cons-truido sobre a base do encadeamento logico de conceitos,

    1Neste livro, usamos 0 termo/conceito "representacao" para de-signar 0conteudo do conhecimento em nossa mente. Na verdade, niioe uma boa palavra para isso, pois acaba passando a ideia de que 0conhecimento e urn processo de representacao. Mas 0 conhecimentoe, isso sim, urn processo de consrrucao. 0 conceito, 0 conteiido damente , nao e uma foto das coisas, mas 0 resultado de urn complexoprocesso de construcao. Esta e uma discussao epistemologies que naocabe aqui. No entanto, desde ja , fica urn chama do de atencao.2 Igualmente, a questao da relacao entre linguagem e pensamen-to, entre conceito e palavra, e uma das mais espinhosas tanto para alinguistica como para a epistemologia. As coisas nao sao tao simplescomo aqui apresentadas. Estou expondo apenas algumas referencias

    elementares para 0 entendimento didatico desse tema, uma vez quenjio cabe aprofundar sua discussao aqui.

    ideias e juizos. A leitura e 0 processo de decodificacao damensagem, pela captacao e acompanhamento do raciocfniodo autor.

    O processo da leitL-\ra

    Leitura analftica e 0pro-cesso de decodificacao de urntexto escrito, com vistas a apre-ensao/recepcao da mensagemnele contida.

    Por essa modalidade de lei-tura, entende-se aquela aborda-gem de urn texto a partir dos seguintes objetivos: apreender amensagem global da unidade de leitura, de modo que 0 leitortenha uma visao da integralidade do raciocfnio desenvolvidopelo autor, levando-o tanto a cornpreensao dessa mensagemcomo a sua interpretacao. E a modalidade mais tradicionalde leitura, aquela que fazemos quando lemos urn romance:uma leitura do corneco ao fim.' Mas, como veremos, ostextos cientfficos e filosoficos demandam alguns recurs osproprios, diferentes daqueles que usamos na leitura dostextos literarios, jornalfsticos ou coloquiais. E que a cienciae a filosofia sao modalidades diferenciadas de conhecimento,usando termos e conceitos em nfveis diferentes dos que saousados na linguagem coloquial e na literatura.

    3 Pode-se falar de uma outra modalidade de leitura, a leitura dedocumenracao, que e praticada quando abordamos urn texto apenaspara extrair dele uma informacao parcial. 0 texto e tornado comouma fonte para fornecer-nos algum dado, alguma ideia, Esse tipo deatividade serve ate mesmo de subsfdio para a leitura analitica, comose vera nos exemplos que serao trazidos neste manual.

    Leitura analltlca e 0 pro-cesso de decodificacao deum texto escri to, com vistasa apreensao/recepcao damensagem nele contida.

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    Como IeI' ....m +e.x+ode filosofiaAs di ...et . ..zes pewCl CI leitt.-\...CI ClV\ClliticCl ficacao das passagens. Isso feito, 0 leitor deve abrir uma ficha

    bibliografica para 0 texto, conforme 0modelo da pagina 33.Em seguida, irnpoe-se uma inforrnacao preliminar: saber

    quem eo autor do texto. Conhecer 0 autor do texto ja ajudamuito em seu entendimento, ainda que isso nao seja assimtao evidente ao leitor iniciante. E fundamental dispor deinforrnacoes previas sobre a vida, a obra e 0 pensamento doautor, pois tais elementos sao muito iiteis para a elucidacaodas ideias expostas no texto. Isso feito, abrimos uma fichabiografica para 0 autor, conforme 0 modelo da pagina 37.

    A segunda iniciativa e levar em conta 0 perfil geral dotexto: identificar sua finalidade, a oportunidade de sua pro-ducao, sua natureza geral, como surgiu, porque foi escrito.Trata-se de fazer aqui uma contextuacao geral do texto: emque circunstancias foi escrito, para que, a que publico sedesti-na etc. Esses elementos sao levantados a partir de informacoesque costumam acompanhar 0 proprio texto. Obviamente, seelas nao estao ai, facilmente acessiveis, passa-se adiante. Essesdados devem ser transcritos na abertura da ficha bibliografica,logo apos os dados da obra.

    A atividade de leitura de urn texto, para fins de conhe-cimento e apreensao de seu conteiido, como ocorre quandodo estudo de urn texto, realiza-se por meio de uma sequenciade eta pas essenciais:

    ~ etapa de analise textual;~ etapa de analise ternatica;~ etapa de analise interpretativa;~ etapa de problematizacao;~ etapa de reelaboracao reflexiva.

    P....pa ....~Cio da leitt,v'a mediaV\te aV\6lise texh1alEsta e uma fase preparatoria a leitura propriamente dita,

    mas e imprescindivel, justamente para nos ajudar a superar asrmiltiplas interferencias que podem ocorrer na decodificacaoe na apropriacao da mensagem contida no texto. Seu objetivoe .identificar os elementos que permitem a adequada decodi-ficacao do texto, bern como 0 contexto de sua producao, In-clui-se aqui 0 levantamento de varies esclarecimentos previos .

    Assim, a primeira iniciativa, quando vamos ler urn texto,e delimitar uma unidade de leitura.

    Por exemplo, urn capitulo, uma secao, uma parte do textoque forme uma unidade. Quando se vai ler urn livro inteiro,tendo por fim seu estudo, a leitura precisa ser feita por partes,passando-se a seguinte so quando a anterior estiver concluida,o tamanho de cada unidade deve ser estabelecido em funcaoda maior ou menor facilidade do texto e da familiaridade doleitor com 0assunto. 0 tempo disponivel para a leitura tam-bern deve ser levado em conta, no sentido de que a leitura naodeve ser feita sob muita fragmentacao do tempo, evitando-seintervalos muito grandes entre uma etapa e outra. Definida aunidade de leitura, numeram-se, a lapis, todos os paragrafosque comp5em 0 texto. Isso facilitara a localizacao e a identi-

    Procede-se entao a uma primeira abordagem do texto,com a finalidade de se tomar contato com ele, na verdade,realizando-se uma preparacao para a leitura propriamentedita, para uma melhor compreensao do texto. Essa etapa com-preende uma serie de atividades que visam a dar ao leitor umavisao panorarnica do conteudo do texto, de seu perfil, metodoe contexto. Trata-se de urn trabalho previo de identificacaode pontos que eventualmente precisam ser esclarecidos paraque uma leitura efetivamente compreensiva possa acontecer.

    Com uma ficha-rascunho em maos, devemos fazer umaleitura corrida do texto da unidade escolhida, acompanhandoa exposicao do autor. Ao percorrer assim 0 texto, certamente

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    Como Ie .. lAm+ex+o de f il oso fiC lvamos nos deparar com algumas palauras, conceitos, referen-cias a autores, a fatos bistoricos e a teorias que, eventualmente,desconhecemos. Assinalemos esses pontos, transcrevendo-osna folha de rascunho.

    Para que possamos entender urn texto que estamos lendo,precisamos primeiramente saber a lfngua em que 0texto foraescrito, a sua natureza e 0 seu perfil: do texto escrito (umacarta, por exemplo, e muito diferente de urn artigo cientifico,pois exige a nocao de fatos historicos e de situacoes referidasno texto, alern de urn minimo' de familiaridade com as ca-tegorias conceituais utilizadas pelo autor. Se, ao ler 0 texto,nos ja sabemos de tudo isso, tanto melhor, uma vez que estaprimeira etapa fica dispensada. Mas se permanece algumadiivida, e preciso, ao terrnino dessa primeira leitura, resolve-la, esclarece-la, antes de continuar a busca de cornpreensaoda mensagem do autor. Para isso, ao longo da leitura, massem interrornpe-la, devemos transcrever esses pontos na ficha-rascunho, sempre indicando 0paragrafo em que se encontrampalavras desconhecidas, palavras conhecidas mas com senti dopouco claro, palavras que expressam conceitos especfficos, categorias teoricas, autores citados, desconhecidos ou pou-co conhecidos, fatos historicos aludidos, doutrinas a que sefazem referencia.

    Terminada a leitura corrida, registrados esses elementos,interrompemos a continuidade de leitura do texto, mesmo quenao tenhamos compreendido completamente sua mensagem,e pass amos para urn segundo momenta dessa preparacao. Ehora de buscar as informacoes e os esclarecimentos a respeitodessas diividas. Tomamos a folha de rascunho e vamos asfontes em busca das respostas.

    assinalados' na folha de rascunho. As inforrnacoes sobre ter-mos e palavras desconhecidos tern seus sinonirnos e explica-~6es nos dicionarios da lfngua portuguesa (Aurelio, Houaisse semelhantes).

    Mas, em se tratando de conceitos novos, mesmo quandoa palavra ja nos e conhecida, precis amos dirigir-nos a fontesespecializadas, tais como os dicionarios de filosofia, de so-ciologia etc. Consultadas essas fontes, 0 resultado deve sertranscrito em seu "Vocabulario pessoal", 0seu "Glossario",conforme 0 exemplo da pagina 38- ,

    Em seguida, vamos buscar as primeiras inforrnacoes sobreos autores citados no texto, desde que essa referencia seja im-portante na exposicao das ideias, Se0autor e citado de formagenerica, nao e necessario buscar suas informacoes, Os nomese biografias sao encontrados nas enciclopedias, nos dicionariosespecializados, nos livros de historia das ideias e em livrosespecializados e, agora, em sites igualmente especializados.Caso seja urn primeiro contato com esses pens adores apenasligeiramente referidos pelo autor em esrudo, e que nao saoimprescindiveis para a cornpreensao do pensamento constantedo texto, basta abrir a ficha bibliografica com as inforrnacoesmais gerais. Posteriormente, a medida que cruzarmos comnovas referencias sobre esses autores, acrescentaremos novosdados, ampliando as informacoes contidas na ficha.

    BVlscando os escla ..ecimentos nas Fontes

    e.sqVlematizando 0+e.x+oFeito esse levantamento, processadas as devidas anota-

    ~6es, volte ao texto para uma nova leitura panorarnica, agorapara terminar a fase de preparacao para a leitura ternatica.E hora de fazer uma esquernatizacao da unidade de leitura.Esse esquema deve ser transcrito na propria ficha de leitura.o esquema da conta do plano, da estrutura do texto, .emboranao seja 0-resumo, 0 esquema ajuda 0 leitor a ter uma visaogeral do texto: a visao panoramica da unidade.

    Comecamos na busca por resolver os problemas de lin-guagem encontrados nessa leitura panorarnica e que foram

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    Como le.. I-Im +ex+o de f i losofiCl

    Efetuada essa nova leitura panoramica e esquematizado 0texto, 0 leitor esta em condicoes de fazer urn pequeno resumo,uma ementa do texto, sintetizando-o.

    3. Qual a resposta que 0autor da ao problema, qual a tese quedefende ao tentar resolver0 problema ou explicar 0 tema?

    4. Como a autor demonstra sua hip6tese? Como ele a comprova?5. Que outras i deias secunda r ias 0autor, eventual mente, defendeno texto em analise?

    Terminada essa fase de pre-paracao do texto a ser lido/estu-dado, estamos em condicao deproceder a uma segunda aborda-gem do texto: e hora de uma se-gunda leitura da unidade de tex-to, visando agora a realizar umaanalise temdtica. Esta e a fase de

    Guiados por essas questoes, relemos 0texto, perguntandoao autor quais as respostas 0 texto da a elas. Essas respostassao registradas, de forma sintetica, na f icba b ib liogrd f ica refe-rente ao texto, correspondendo isso ao chamado f ichamentodo texto lido.

    Fica assim retomada, de forma sistematica, a mensagemcontida no texto lido. Essa etapa apresenta a posicao do autor,o conteiido que ele quer transmitir por meio de seu texto. Daparte do leitor, a analise ternatica representa 0esforco de bernouvir 0 autor, deixando-o falar, sem se intrometer em suasposicoes, Em principio, todos os leitores deveriam realizar aanalise ternatica de forma identica, pois se supoe que 0 autor,quando escreve urn texto, quer passar uma mesma mensagempara todos eles. Evidentemente, como visto anteriormente,muitas interferencias subjetivas e objetivas ocorrem duranteo processo de leitura, perturbando a decodificacao da mensa-gem. Dai a confusao que muitos fazem entre cornpreensao einterpretacao do texto.

    A al'1cdise tematica do +e.x+o

    busca de cornpreensao, a maisobjetiva possivel, da mensagem do autor. E hora de saber qualmensagem ele nos transmite por meio de seu texto, ou seja, 0que ele quer comunicar. Trata-se, portanto, de se saber qual 0conteudo do texto. Busca-se explicitar e apreender, com 0rna- ximo de objetividade, 0pensamento do autor exposto no texto.

    Em nossos ambientes escolares e academicos, muitasvezes, esta fase e confundida com a atividade de interpretadio(que sera objeto da proxima etapa). E que muita gente entendea leitura como se ela fosse apenas a "interpretacao" do texto.Mas ha uma etapa previa a ser levada em conta na leitura: afase de "compreensao", durante a qual precisamos "ouvir"o mais atentamente possivel 0 autor.E por isso que, ao fazer uma nova abordagem do textoda unidade em estudo, dirigimos ao autor 5 questoes berndiretas e precisas:

    1. Do que esta falando, qual 0 tema ou assunto do texto?2. Qual 0 problema que se coloca, ou seja, por que 0 tema estaem questao?

    Analise tematlca e a fasede busca por compreensao,a mais objetiva posslvel , darnensaqern, do autor. Ede saber qUa i " " ' 0 . , . ""or", ",Inos transrnlte porseu texto, ou seja, 0quer comunicar.

    A analise interpretativa, ultima etapa da leitura analitica,e a fase mais dificil. Mas, mesmo assim, e preciso iniciar-setam bern a ela, ate porque e por meio dela que se pratica a cri-tica. E ela que torn a a leitura urn processo crftico na lida como conhecimento. Enquanto na fase anterior a cornpreensaoda mensagem do autor se dava a partir exclusivamente doselementos presentes no texto escrito, nessa fase interpretativa,a cornpreensao se dara a partir de dados de fora do texto,interpelando 0 autor, discutindo-se com ele. E a fase da ana-

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    lise interpretativa. E chegada ahora de dialogar com 0 autor,de situar 0 seu pensamento, derefletir sobre os conreiidos de suamen.sagem a partir de referenciasexternas ao texto.Como essas orientacoes deleitura se dirigem aos estudantes,

    deve ficar bern claro que eles avancarao nessa fase interpre-tativa ate onde lhes for possivel, pois a interpretacao de urntexto pressup6e urn repertorio de conhecimentos acumuladosna area em que 0 texto se situa e que 0 jovem talvez possaainda nao ter. Mas algumas das atividades de interpretacaoja se encontram a seu alcance.

    Como visto no capitulo anterior, nessa etapa pode-seadotar 0 seguinte roteiro:1. Situacao do conteiido da unidade no contexto da

    obra de onde ela foi extraida, bern como no conjunto dopensamento do autor. Como as ideias do autor, expostasnessa unidade, relacionam-se com as posicoes gerais do seu .pensamento teorico, como elas se inserem no conjunto de seupensamento.

    No caso de textos filosoficos, 0 leitor ted, obviamente,alguma dificuldade para fazer esse trabalho de insercao teori-ca. Mas, minimamente, ao ter levantado informes biograficosdo autor, ja ted alguma referencia a respeito.

    2. Situacao do autor no ambito do pensamento teorico,na historia do pensamento de sua area de reflexao. Aqui estaem pauta situar 0 autor no contexto mais amplo da culturafilosofica, tarefa ainda mais dificil para 0 estudante. Por isso,ele fad 0 que the for possfvel, certamente contando com acolaboracao do professor.

    3. Explicitacao dos pressupostos implicados no texto.Pressupostos sao ideias nem sempre claramente expostas

    CoWO le.. "'W +ex+ode filosofia

    E chegada a hora de dlalo-gar com 0autor, de situar 0seu pensamento, de refletirsobre os conteudos de suamensagem a partir de refe-rencias externas ao texto.

    no texto, mas sao principios que justificarn, fundamentamas ideias defendidas pelo autor no texto, dando-l he coe-rencia.

    4. Levantamento de ideias associadas as que estao presen-tes no texto. Aqui estao em pauta aquelas ideias semelhantes,convergentes ou divergentes com as do autor, que nos saosugeridas quando discutimos com ele. E hora de comparar,de aproximar posicoes, de destacar diferencas,

    5. Forrnulacao de crfticas a construcao do texto, berncomo aos pontos de vista do autor: crfticas positivas enegativas. Nesse momento, 0 lei tor busca formular urnjuizo critico, tomar uma posicao, fazer uma avaliacao damensagem passada pelo autor. Essa critica pode ser interna,como a que foca a coerencia ou a incoerencia do autor, queavalia a contribuicao que ele traz ao debate do assunto, asua originalidade, a sua consistencia, atualidade, pertinen-cia etc. Pela crftica interna, busca-se saber se 0 autor con-seguiu alcancar seus objetivos, se seu raciocinio foi eficazna dernonstracao de sua(s) hipotesets), se suas conclus6esestao fundadas numa argumentacao solida. la pela crfticaexterna, pergunta-se ate que ponto 0 autor conseguiu umacolocacao original, ate que ponto nao esta por demais in-fluenciado por outros, ate ponto sua abordagem e pessoal,profunda, original. Finalmente, 0 leitor concluira, por suavez, se concorda ou nao com ele.

    Essa crftica pessoal as posicoes defendidas no texto lidoe uma fase extremamente delicada, pois exige maturidadeintelectual por parte do leitor, 0qual precisa dispor de muitosrecurs os teoricos, de muita fundamentacao. Por sinal, a forma-craofilosofica tern, entre seus objetivos, esse amadurecimentointelectual do estudante. Ao leitor, cabe investir nessa direcao,para que sua experiencia intelectual se consolide e ele possaapoiar-se na propria experiencia para comecar a pensar porconta propria.

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    Como le.. ",mte)

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    CoWlO Ie.. "'WI+ax+o de filosofia I\l'Itol'\io Joaq",iWl Seve ..il'\o

    (2) Aceitei teze-k: agora, da maneira, porem, menos formal pos-sivel. Aceitei vir aqui para falar um pouco da importancia do ate de ler.

    (3) Me parece indispensevet, ao procurar falar de tal imoonbrcie;dizer algo do momenta mesmo em que me preparava para aqui estar;dizer algo do processo em que me inseri enquanto ia escrevendo estetexto que agora leio, processo que envolvia uma compreenseo erfticado ate de let; que nao seesgota na decodifica(ao dalinguagem escrita,masque seantecipa e sealonga na inteligmcia do mundo. A leitura domundo precede a leitura da palavra, daf que a posterior leitura destanao possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem erealidade se prendem dinamicamente. A compreensso do texto a serekencsds por sua leitura critica implica a perceixeo das rela(oes entreo texto e 0contexto. Ao ensaiar escrever sobre a imoonsncie do atede ler, eu me senti levado - ate gostosamente - a "reler" momentosfundamentais da minha pretke, guardados na memoria, desde as ex-pcriencie: mais remotas de minha intencie, de minha edolescende, deminha mocidade, em que a compreensso critica da lmportenci do atede ler se veio em mim constituindo.

    (4)Ao ir escrevendo este texto, ia "tomando dlstsncie" dos diferen-tes momentos em que 0ate de ler seveio dando na minha experiencieexistencial. Ptimeiro, "Ieitura" do mundo, do pequeno mundo em que 'me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo deminha escolariza(ao, foi a leitura da "palavramundo".

    (5) A retomada da infanciadistante, buscando a compteensso demeu ato de "Ier" 0mundo particular em que me movia - e ate ondenao sou traido pela memoria -, me e absolutamente significativa. Nesteesiorco a que me vou entregando, re-erio, ere-vivo, no texto em queescrevo, a expetiencie vivida no momenta que ainda lia a palavra. Mevejo entso na casamediana em que nasci, no Recife,rodeada de ervores,algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nos - asua sombra brincava e em seus galhos mais doceis a minha altura, eume experimentava em riscos menores que me preparavam para riscose aventuras maiores.

    (6)A velha casa,seus quartos, seu corredor, seu sotso, seu tereco- 0sitio em que me achava, tudo isso foi 0meu primeiro mundo. Neleengatinhei, balbuciei, me pus de pe, andei, falei. Na verdade, aque/e

    mundo especial se dava a mim com 0mundo de minha atividade per-ceptiva, por issomesmo como 0mundo deminhas primeiras leituras. Os"textos", as "palavras", as "Ieituras" daquelecontexto em cuja percep(aome experimentava e, quanto mais0 fazia,mais aumentava a capacidadede perceber - seencarnavam numa sene de coisas, de objetos, de sinaiscuja compreensso eu iaapreendendo no meu trato com eles, nasminhasrela(oes com meus irmsos mais velhos e com meus pais.(7) Os "textos", as "palavras" , as "leitures", as "letres" daquelecontexto se encarnavam no canto dos pesseros - 0 do sanha(u, 0 doolha-pro-caminho-que-vem, 0 do bem-te-vi, 0 do sebi; na dan(adas copas das ervores sopradas por tortes ventanias que anunciavamtempestades, trovoes, relampagos; as aguas da chuva brincando degeografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os "textos", as "pala-vras", as "Ietras" daquele contexte se encarnavam tembem no assobiodo vento, nas nuvens do ceu, nas suas cores, nos seus movimentos;na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - dasrosas, dosjasmins -, no corpo das etvores, na casca dos frutos. Na to-nalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos:o verde da manga-espada verde, 0 verde da manga-espada inchada;o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintasnegras da manga mais etem de madura. A rela(ao entre estas cores, 0desenvolvimento do fruto, a sua resistencie a nossa manipula(ao e 0seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendafazer, aprendi a significa(ao da a(ao de amolegar.

    (8)Daquele contexto faziamparte igualmente osanimais - osgatosda familia, a suamaneira manhosa de enroscar-senaspernas da gente, 0seu miado, desuplica ou de raiva; Joli, 0velho cachorro negro de meuspais, 0seu mau humor, toda vez que um dos gatos incautamente seaproximava demasiado do lugar em que seachava no mundo e que eraseu - "estado de espirito", 0de Joli, em tais momento, completamentediferente do de quando quase desportivamente perseguia, acuava ematava um dos muitos timbus responseveis pelo sumko de gordasgalinhas de minha avo.

    (9) Daquele contexto - 0do meu mundo imediato - fazia parte,por outro ledo, 0 universe da linguagem dos mais velhos, expressandoassuas crences. os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo

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    ~;...;.2:.::::.6 Como Ie.....m +ex+ode filosofiai sso l ig ado a contextos m ais am plos que 0 do meu mundo imediato ed e c uja e o s t e n c i e e u n ao p odia s eq uer s us pe itar.

    (10) N o estorco de re-tom ar a i nf fmc ia d is tan te , a que ja me re-f er i, bu scando a com preensso do m eu ato de ler 0 mund o p a rt ic ul arem que m e m ovie, perm itam -m e repetir, re-aio, re-vive, no texto emq ue e sc re vo , a experiencie vivida no mem ento em que ainda nso liaa palavra. E algo que m e parece im portante, no contexto geral e quev en ho fa la nd o, e mer ge a go ra in sin ua nd o a s ua p re sem;a n o c or po d es ta sr et le xo es . Me r ef ir o a meu m ed o d as a lm as p en ad as c uja p res en cs en trenos era perm anente objeto das conversas dos m ais velhos, no tem pod e m in ha iniencie. A s alm as p en ad as p re cis av am da es cu tid so ou dasem i-esauideo p ara ap arecer, das form as m ais diversas - gem endo ador de suas culp as, gargalhando zom beteiram ente, p edindo orecoesou ind ic an do e sc on derijo s d e bo tija s. O ra , a te p os siv elm en te o s m eu ss ete e no s, 0bairro do R ecife, onde nasci, era ilum inado p or lam pioesq ue s e p erfila va m, c om c erta d ig nid ade , p ela s rua s. ts mp io es e le gan te sque, ao c air d a n oite , s e "d ev em " a v ar a mag ic a d e s eu s a ce nd ed ore s.Eu costum ava acom panhar, do p ortso de m inha casa, de longe, a Figuram ag ra d o "ac en de do r d e lam pio es " d e m in ha ru a, q ue v inh a v in do , an da rr it med o, v ar a i lum in ad or a ao omb ro , d e la m pia o a lam pia o, d an do lu z arua. U ma luz p recede, m ais p recaria do que a tinh am os d en tro d e c as a.U ma luz m uito m ais tom ada pelas som bra do que ilum inadora delas.

    (11) Nao havia m elhor clim a para peraltices das alm as do queaquele. M e lem bro das noites em que, envolvido no m eu prop rio m edo,e sp e ra va q ue 0 te mp o p as sa ss e, q ue a n oite s e fo ss e, q ue a madrugadasem i cl ar ea da v ie ss e che ga nd o, t ra ze nd o co m ela 0cant o dos passa rinhos"manhecedores".

    (12) Os m eus tem ores noturnos term inaram por m e aguc;ar, nasman ha s a be rta s, a p ercep cso de um sem-numero de ruidos que sep erd ia m n a c la rid ad e na a lg az arra do s dia s e q ue era m m is te rio sa men tes ublinh ad os n o s ilen cio fu ndo da s n oite s.

    (13) Na medida, porem , em que me fui tornando intim o de m eum undo, em que m elhor percebia e 0entendia na "le iture" que dele iafaz en do , os m eu s te mo re s ia m d im in uind o.

    (14 ) M as e im p or ta nte d iz er, a "le iture" do m eu m undo, que m efoi sempre fundamental, nao fez de m im um m enino antecip ado em

    hom em , um recioneliste de celces curtas. A curiosidade do m enino naoiria d es to rc er-s e p elo s im ple s fato de s er e xe rc id a, n o q ue fu i m ais a ju da-do do que desajudado por m eus pais. E f oi co m e le s, p re cis ame nte , e mc erto m om en ta d es sa ric a exoedencie de com preensso do m eu m undoime dia to , s em q ue ta l c om p re en ss o tiv es se s ig nific ad o malq ue re nc ;a s aoque ele tinha de encantadoram ente m isterioso, que eu com ecei a se rin tro du zid o na le itura da p alav ra . A d ec ifra c;ao d a p ala vra flufa na tu ral-m ente da "le iture" do m undo particular. N ao era algo que se estivessedando superpos tamente a ele. Fui alfabetizado no chao do quintal dem in ha c as a, a som bra das m angueiras, com palavtas do m eu m undo enao do m undo m aior dos m eus pais. 0< ;hao foi 0 m eu quadro negro;gra ve tos , m eu giz .

    (15 ) P or is so e que, ao chegar a e sc olin ha p artic ula r de E un ic eVasconcelos, cujo desaparecim ento recente m e feriu e m e doeu, e aquem p resto agora um a hom enagem sentida, ja estava alfabetizado.E un ic e c on tin uo u e a pr ofu nd ou 0 trab alh o d e m eus p ais .

    (16) C om ela, a leitu ra da p ala vra , d a fra se , d a s en te nc e, ja ma issignificou um a ruptura com a "tenure" do mundo. Com ela, a leiturad a p alav ra foi a le itu ra d a "p ala v ra m u nd o ".

    (17) H a p ouco tem po, co m p ro fu nd a em oc so v is ite i a cas a o nd enasci. Pisei no mesm o chao em que m e pus de pe, andei, corri, fa le i eaprendi a ler. 0mesmo mundo - primeiro mundo que se deu a minhacom preensso p ela "le iture" que dele fu i fazendo. La, re-encontre i a l-gum as das ervores da m inha intenae. Re co nh ec i- as s em d if ic ul da de .Q ua se a bra ce i o s g ro ss os tro nc os - os j ov en s tro nc os d e m in ha in te nc is :En tao, uma saudade que eu costumo cham ar de mansa ou de bemcom portada, saindo do chao, das ervores, da casa, m e envolveu cuida-d os amente . De ix ei a c as a c on te nte , c om a a le gr ia d e q uem r e-e nc on tr ag en te q ue ri da .

    (1 8) C on tin ua nd o n es te e sto rc o d e "re-let" mome nto s fu nd ame n-ta is d a e xp etie nc ie de m in ha in f an c ia , d e m in ha ed ote sc en cie , de m in ham ocidade, em que a com preensso critica da lm pottende do ato de lerse veio em m im constitu indo etreves de sua oretk, retom o 0 tempoem que, com o aluno do cham ado curso ginasia l, m e experim entei naperceixso aitke dos textos que lia em classe, com a c ote bo rs cs o, a teho je re cord ada , d o m eu e nts o p ro fe ss or d e lin gu a p ortu gu es a.

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    ;Antonio Joaq",im Seve ..ino

    (19)Nao eram, porem, aqueles momentos puros exercicios de queresultasse um simples dar-nos conta da exstenae de uma pagina escritadiante de nos que devesseser cadenciada, mecsnk e enfadonhamente"soletrada", em vez de realmente lida. Nao eram aqueles momentos "Ii-c;oesde leitura", no sentido tradicional desta expressso. Erammomentosem que os textos se ofereciam a nossa.inquieta procura, incluindo a doentso jovem professor Jose Pessoa.(20)Algum tempo depois, como professor tembem deportugues,nos meus vinte anos, vivi intensamente a importsncie do ato de ler ede escrever,no fundo indicotomizeveis, com alunos das primeiras seriesdo entso chamado curso ginasial. A regencia verbal, a sintaxe de con-corosncle, 0 problema da crase, 0 sinclitismo pronominal, nada dissoera reduzido por mim a tabletes de conhecimentos que devessem serengolidos pelos estudantes. Tudo isso, pelo contrerio, era proposto acuriosidade dos alunos demaneira dinsmk e viva, no corpo mesmo dotexto, ora deautores que estudevemos, ora delespr6prios, como objetosa ser desvelados e nao como algo parado, cujo perfil eu descrevesse.Osalunos nao tinham que memorizar mecanicamente a descric;aodo obje-to, mas aprender a sua significac;ao profunda. 56 aprendendo-a seriamcepszes de saber, por isso, de memcrize-le, de tlxe-I A memotizecsomecanica da descric;aodo objeto nao se constitui em conhecimentodo objeto. Por isso'e que a leitura de um texto, tomado como pura'descric;aode um objeto e feita no sentido de memotize-ie; nem e realleitura nem dela, portanto, resulta 0 conhecimento do objeto de queo texto fala.

    (27) Creio que muito de nossa lrsistencls, enquanto professorase professores, em que osestudantes "leiem", num semestre, um sem-ruimero de capitulos de livros, reside na compreensso erronee que asvezes temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo mundo, naoforam poucas as vezes em que jovens estudantes me falaram de sualuta as voltas com extensas bibliografias a ser muito mais "devoradas"do que realmente lidas ou estudadas. Verdadeiras "lic;oesde leitura" nosentido mais tradicional desta expresseo, a que seachavam submetidosem nome de sua formac;ao cientifica e de que deviam prestar contasatraves do famoso controle de leitura. Emalgumas vezescheguei mesmoa ler, em relac;oesbibliogrMicas, indicecoes em torno de que paginas

    deste ou daquele capitulo de tal ou quallivro deveriam ser l idas: "Oapagina 75 a 37".

    (22) A insistende na quantidade de leituras sem 0 devido aden-tramento nos textos a ser compreendidos, e nao mecanicamente me-morizados, revela uma viseo magica da palavra escrita. Visao que urgeser superada. A mesma, ainda que encarnada desde outro angulo, quese encontra, por exemplo, em quem escreve, quando identifica a pos-sivel qualidade de seu trabalho, ou nao, com a quantidade de paginasescritas. No entanto, um dos documentos hist6ricos mais importantesde que dispomos, As t es e s so br e F eue rb ach , de Marx, tem apenas duaspaginas e meia...

    (23) Parece importante, contudo, para evitar uma compreenssoerrone do que estou afirmando, sublinhar que a minha crit ica a ma-gicizac;ao da palavra nao significa, de maneira alguma, uma posic;aopouco responsevel da minha parte co m relac;ao a necessidade quetemos, educadores, e educandos de ler, sempre e seriamente, de leros clesskos neste ou naquele campo do saber, de nos adentrarmos notexto, de criar uma disciplina intelectual, sem a qual inviabilizamos anossa pretk enquanto professores e estudantes.

    (24)Oentro ainda do momenta bastante rico deminha experienciecomo professor de lingua portuguesa, me lembro, tao vivamente comoseela fosse de agora e nao de um ontem bem remoto, das vezesem queme demorava na analise de textos de Gilberto Freyre, de Linsdo Rego,de Graciliano Ramos, de Jorge Amado. Textos que eu levava de casae que ia tendo co m os estudantes, sublinhando aspectos de sua sinta-xe -ligados ao bom gosto de sua linguagem. Aquelas analisesjuntavacomenterios em torno de necessuie: diterences entre 0portuques dePortugal e 0portugues do Brasil.

    (25) Venho tentando deixar claro, neste trabalho em torno daimoortenci do ato de ler - e nao e demasiado repetir agora -, quemeu estorco fundamental vem sendo 0de explicitar como, em mim,aquela importencie vem sendo destacada. E como se eu estivessefazendo a "eroueotoql" de minha compreensso do complexo ato deler, ao longo de minha expetienci existencial. Oai que tenha faladode mementos de minha intencie, de minha adolescmcia, de minhamocidade e termine agora re-vendo, em trecos gerais, alguns dos

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    J~~13~O Como Ie.. "'m texto de filosofiaaspectos centrais da proposta que fiz no campo da alfabetizac;ao deadultos he alguns anos.

    (26) Inicialmente me parece interessante reafirmar que sempre viaalfabetizac;ao de adultos como um ate politico e um ate de conhecimen-to, por issomesmo, como um ate criador. Paramim seria impossivel en-gajar-me num trabalho de memorizac;~omecsnk dos be-be-bi-bo-bu,dos la-Ie-/i-Io-Iu. Dai que tembem neo pudesse reduzir a alfabetizac;aoao ensino puro da palavra, das silabas ou das letras. Ensino em cujoprocesso alfabetizador Fosse"enchendo" com suas palavras cebecessupostamente "vezies" dos alfabetizandos. Pelo contrerio, enquantoate de conhecimento e ate aiedor. 0processo da alfabetizac;ao tem,no alfabetizando, 0 seu sujeito. 0 fato de ele necessitar de ajuda doeducador, como ocorre em qualquer relac;aopedagogica, neo significadever a ajuda do educador anular a sua criatividade e a sua respon-sabilidade na construcso de sua linguagem escrita e na leitura destalinguagem. Na verdade, tanto 0alfabetizador quanto 0alfabetizando,.ao pegarem, por exemplo, um objeto, como ieco agora com 0 quetenho entre os dedos, sentem 0 objeto, percebem 0 objeto sentido es~o capazes de expressar verbalmente 0 objeto sentido e percebido.Como eu, 0analfabeto e capaz desentir a caneta, de perceber a canetae dizer caneta. Eu, porem, sou capaz de nao apenas sentir a caneta, deperceber a caneta, de dizer caneta, mas tembem de escrever caneta'e, conseqiientemente, de ler caneta. A alfabetizac;ao e a criac;ao ou amontagem da expressso escrita da expressao oral. Estamontagem naopode ser feita pelo educador para ou sobre 0alfabetizando. Ai tem eleum momenta de sua tarefa criadora.

    (27) Creio cesnecesserio me alongar mais, aqui e agora, sobre 0que tenho desenvolvido, em diferentes mementos, a proposito da com-plexidade desteprocesso.A um ponto, porem, referido variasvezesnestetexto, gostaria de voltar, pela significac;ao que tem para a compreenssocrit ica do ate de ler e, conseqiientemente, para a proposta de alfabeti-zac;aoa que me consagrei. Retire-me a que a leitura do mundo precedesempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade daleitura daquele. Naproposta a que me referi acima, estemovimento domundo a palavra e da palavra ao mundo este sempre presente. Movi-mento em que a palavra dita flui do mundo, mesmo atraves da leitura

    que dele fazemos. De alguma maneira, porem, podemos ir mais longee dizer que a leitura dapalavra nao e apenas precedida pela leitura domundo mas por uma certa forma de "esaeve-lo" ou de "reescreve-lo,quer dizet; de trenstortne-lo etreves de nossa priJtica consciente.

    (28) Este movimento dinamico e um dos aspectos centrais, paramim, do processo de alfabetizac;ao. Dai que sempre tenha insistidoem que as palavras com que organizar 0 programa da alfabetizac;aodeveriam vir do universo vocabular dos grupos populares, expressandoa sua real /inguagem, os seus anseios, as suas inquietac;oes, as suasreivindicac;oes, os seus sonhos. Deveriam vir carregadas da significa-c;aode sua experiencie existencial e nao da experiencia do educador.A pesquisa do que chamava de universe vocabular nos dava assim aspalavras do Povo, gravidas de mundo. Elasnos vinham etreves da leiturado mundo que os grupos populares faziam. Depois, voltavam a eles,inseridas no que chamava e chama de codificac;oes, que sao represen-tecoes da realidade .

    (29)A palavra tijolo, por exemplo, seinseriria numa representac;aooictotice, a de um grupo de pedreiros, por exemplo, construindo umacasa.Mas, antes da devolucso, em forma de escrita, da palavra oral dosgrupos populares, a eles,para 0processo de suaapreensao e nso desuamemotizeceo mecsnice, costumevemos desafiar os alfabetizandos comum conjunto de situac;oescodificadas de cuja decodificac;ao ou "leiture"resultava a petcepcso critica do que e a culture, pela comoreensso dapretk ou do trabalho humano, transformador do mundo. No fundo,esse conjunto de representecoes de situac;oes concretas possibilitavaaos grupos populares uma "leiture" da "leiture" anterior do mundo,antes da leitura da palavra.

    (30) Esta "leiture" mais critica da "ieiture" anterior menos criticado mundo possibi li tava aos grupos populares, as vezes em posic;aofatalista em face das injustices, uma compreensso diferente da suaindigencia.

    (31) E neste sentido que a leitura critica da realidade, dando-senum processo de alfabetizac;ao ou nao e associada sobretudo a certaspretkss claramente politicas de mobilizac;ao e de organizac;ao, podeconstituir-se num instrumento para 0 que Gramsci chamaria de ac;aocontte-heqemonice.

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    Como Ie.. lAmtexto de filosofiCl

    (32) Concluindo estas retlexces em tome da impottenci do ate deler, que implica sempre percepc;aocritics, interpretac;ao e "re-esaite" dolido, gostaria de dizer que, depois de hesitar um pouco, resolvi ado taro procedimento que useino tratamento do tema, em consonsncie coma minha forma de ser e com 0 que posso fazer.

    (33) Finalmente, quero felicitar os ideeteeoore: e os organizadoresdeste Congresso. Nunca, possivelmente, temos necessitado tanto deencontros como este, como agora.

    Comecarnos numerando, a lapis, todos os paragrafos quecomp6em 0 texto. Isso facilitara a localizacao e a identificacaodas passagens. Essa numeracao ja a fiz quando da transcricaodo texto, antecipando essa tarefa. Nossa unidade de leituraconta com 33 paragrafos. Os mirneros serao usados paraindicar as referencias que serao feitas ao lange da leitura.

    Feita essa escolha, abre-se uma ficha de leitura com areferencia bibliografica dessa unidade, conforme modele aseguir:12 de novembro de 1981.Paulo Freire

    6xel-'dcio de leitt-\I-'aaV\alrtica

    Resumoo a ut or s e p r op oe a fa la r s ob re a s ig nif ic a~ ao e ir np ort an cia d o a tod e le r, s ob re tu do n o amb ito d o p ro ce ss o d e a lfa be tiz ac ao . A id eiaf un damen ta l q u e d ef en de e a d e q ue a le it ur a d a lin gu ag em e sc ritad ev e s er p re ce did a e im pr eg na da p ela le itu ra /v iv en cia d o m un doe nq u an to c on te xt o d e e xi st en cia , d es cr ev en do s ua e xp er ie nc ia p es -s oa l, m os tr an do c om o em v arie s m om en to s d e s ua v id a fo i " le nd o"o m undo e aprendendo a ler ao m esm o tem po.

    FREIRE ,P au lo . A l rn po rt an ci a d o a te d e le r. l ri :A importsncie do ate de lerem tres artigos que se completam. Co le ca o Pol er ni ca s d o No ss o T emp o,v. 4. Sao Paul o: Co rt ez lAu to re s Assoc ia dos , 1982, p. 11-24.

    Como vimos anteriormente, uma atividade de leitura detexto, para fins de conhecimento e apreensao de seu conreiido,como ocorre quando 0estudamos, realiza-se por meio de umasequencia de eta pas essenciais:

    ~ etapa de analise textual;~ etapa de analise ternatica;~ etapa de analise interpretativa;~ etapa de problernatizacao;~ etapa de problernatizacao e reflexao.

    EsquemaIntrodur;ao

    Justi fi cat iva da presence d o a ut or n o c on gr es so e d o p ro ce dime nt oq ue s eq uir a, b em c om o a nu nc io d a id eia b as ic a d e s ua f ala .1. Sua vivencl pessoal e seu contexto hist6rico:1.1. na infancia:1.2. na ado lescenc ia:1 . 3. n a v id a p r of is s io nal .

    2. 0 sentido do ate de ler no ambito do processo de alfabeti-zar;ao.

    Antes de cornecar uma atividade de leitura, e precisodelimitar a unidade de leitura, ou seja, definir a extensao dotexto sobre 0 qual se vai trabalhar.

    No nosso exemplo, essa unidade sera a prime ira partedo livro de Paulo Freire - A importdncia do ate de ler em tresartigos que secompletam -, parte que tern por titulo" A impor-tancia do ate de ler" e que se encontra da pagina 11 a 24 dolivro. Pela nota de rodape, somos informados que 0 texto foiescrito como uma comunicacao que 0 autor apresentou numcongresso sobre leitura, realizado em Campinas, em 1981. Tra-ta-se, portanto, de urn texto destin ado a uma exposicao oral.

    ConclusaoNo va ju st if ic at iv a d o p ro ce dim e nt o e f el ic it ac ao a os o rg an iz ad or esdo e ven to .

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    Como Ie.. "'m+ex+ode filosofiareferencias a dois outros pens adores - Marx ( 22) e Gra-msci ( 31) - que Paulo Freire cita para reforcar algumasde suas passagens. Cita ainda alguns autores brasileiros,Gilberto Freyre, Lins do Rego, Graciliano Ramos, JorgeAmado.

    Suponho tam bern que possamos nao conhecer aindaa palavra "amolegar" ( 7); "indicotomizaveis" ( 20);outras palavras podem ter urn senti do nao muito claro,como "palavramundo" ( 4); outras ainda,.embora comuns,parecem usadas em sentido diferente do corriqueiro: apa-rentam ter irnportancia no texto, como 0 adjetivo "crftico",usado varias vezes, e tambern as palavras "racionalista"( 14), "arqueologia" ( 25), "acao contra-hegemonica"( 31); "fatalista" ( 30).

    A certa altura, Paulo Freire refere-se a sua proposta dealfabetizacdo de adultos ( 25): eis af urn fato historico quenao tern suas coordenadas concretas explicitadas nesse texto,suscitando, para quem ainda nao a conhece, uma curiosi-dade.

    Terminada a leitura corrida, registrados esses elementos,interrompemos a continuidade de estudo do texto, mesmo quenao se tenha compreendido completamente sua mensagem,e passamos para urn segundo momenta dessa preparacao. Ehora de buscar as inforrnacoes e esclarecimentos a respeitodessas diividas. Pego minha folha rascunho e you as fontes,em busca das respostas.

    Procede-se entao a uma primeira abordagem do texto,com a finalidade de se tomar contato com ele, na verdade,realizando-se uma preparacao para a leitura propriamentedita, para uma melhor compreensao de seu conteiido. Essaetapa compreende uma serie d~ atividades que possuem 0intuito de dar ao leitor uma visao panoramica do texto, deseu perfil, metodo e contexto. Trata-se de urn trabalho previode identificacao de pontos que eventualmente precisam seresclarecidos para que uma leitura efetivamente compreensivapossa acontecer.

    Com urn caderno ou com uma ficha de rascunho a nossafrente, devemos entao fazer uma leitura corrida da unidadeescolhida, acompanhando a exposicao do autor. Ao percorrerassim 0 texto, deparamo-nos com algumas palavras, concei-tos, referencias a autores, a fatos historicos e a teorias quedesconhecemos. Assinale esses pontos, transcrevendo-os naficha de rascunho. A prime ira indagacao que certamente 0intrigara e 0 proprio autor.

    Como dito na primeita parte deste trabalho, para enten-.der 0 texto que estamos lendo, precis amos saber quem e 0seu autor, a lfngua em que 0 texto esta escrito, sua naturezae seu perfil. Se, ao ler 0 texto, nos ja sabemos de tudo issotanto melhor: essa primeira etapa fica dispensada. Mas seper.mane.ce alguma duvida, e preciso, ao termino dessa pri-metra Ieitura, resolve-la, esclarece-la, antes de continuar abusca por compreensao da mensagem do autor. Para isso, aolongo da leitura, mas sem interrornpe-la, devemos transcreveresses pontos para a ficha de rascunho, sempre indicando 0paragrafo em que se encontram.

    Nossa primeira indagacao e a propria identidade doautor, no caso Paulo Freire. Vamos supor que voce nao 0conheca ainda; entao anote seu nome na ficha-rascunho.Voce constata entao que, ao longo do texto, aparecem

    Passando para esse momento de investigacao, comece-mos levantando a primeira inforrnacao de que precisamos:quem e 0autor, no caso, quem e Paulo Freire, supondo queainda nao 0 conhecamos, Conhecer 0 autor ja ajuda muitono entendimento do texto, ainda que isso nao seja assim taoevidente ao leitor iniciante.

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    Como Ie.. "'m+ex+ode filosofiaEm geral, os pr6prios livros ja trazem alguma informa-

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    C-omo le..

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    Como Ie.. lAm+e.x+o de filosofiClsegunda abordagem do texto: e hora da analise temdtica. Essae a fase de busca por cornpreensao, a mais objetiva possfvel,da mensagem do autor. E hora de saber qual 0 conteudo elenos transmite por meio de seu texto, 0que ele quer comunicar.Busca-se explicitar e apreender, com 0maximo de objetivida-de, 0 pensamento do autor.

    Guiados pelas questoes postas pelas diretrizes da analiseternatica (d. p. 18119), vamos relendo 0 texto, perguntandoao autor quais respostas 0 texto da a elas. Vejamos como 0texto de Paulo Freire nos revela sua mensagem:

    1. Temao t ex to t ra ta d a s iq n ific ac ao e d a im p or ta nc ia d a le it ur a, d o p ro ce ss o d ea pr en de r a le r, p ar tic ula rm e nt e n o p ro ce ss o d e altabetizacao,2. ProblemaProvocado p or u m a s it ua ca o c ult ur al e e du ca cin al d et er io ra da , n a q u ala a pren diz age m d a le itu ra , a a lfab etiz ac ao, ten de a s er vista apenasc om o le it ur a r ne ca nic a d as p ala vr as , a po ia nd o- se n a m e rn or iz ac ao , 0au tor se pe rgun ta com o se da 0 verdadeiro p ro ce ss o d e le itu ra e s euaprendizado.3. HlpoteseA l ei tu ra d a l in g ua g em e s cr it a e a te d e e x tr ema r el ev a nc ia p o r s e r em in e n-t em e nt e c ria do r; m a s e l a 56 s er a a te c ria do r n a m ed id a e m q ue a le itu rad a p a la v ra estiver e m c on tin uid ad e c om e im pr eg na da p ela le itu ra d om un do . A le itu ra d o m un do p re ce de a le itu ra d a lin gu ag em fo rm al.4. Demonstrac;aoC om e fe ito , 1 ) s ua c on viv en cia , d ura nte a in fa nc ia , c om 0 e sp ac o d o-m e st ic o, a c as a ( 6 ), c om a n atu re za fis ic a e vegetal, c om o s p as sa ro s( 7 ), c om o s a n im a is d o rn e st ic o s ( 8 ), c om a s p e ss oa sm a is ve l has ( 6) ,a s sua sv i ve n c ia s p s tq u i ca s ,a s sen sacoe se temo re s ( 12 ) , i am to rn ando 0a uto r ln tim o d o m un do , c uja le itu ra e le ia fa ze nd o a os p ou co s, d e m od oq u e , q u a nd o d e s u a a l fa b et iz a ca o . a l ei tu ra d a p a la v ra e s cr it a f oi a l ei tu rada "pal a vr amundo " ( 4 ). T am be rn a e xp er ie nc ia d a le itu ra d ura nte aado le scen c ia deu -se numa oe rceo cao c r lt ic a ( 18 ), n a a ti vi da d e d o ce n te

    Antonio JOClq lAim Seve ..no

    1l

    de p r of e sso r d e po rt u que s , q uando viveu i nt en s ame n te a i rn p or ta n ci a d oa to de ler e de escrever ( 20) ;2 ) D e ss a r e toma da d e s u a e x p e ri en c ia e x is te n ci al , 0a uto r r ea firm a q ue aa l fa be ti za cao de adu lt o s e u m a te p olitic o e um a to de c on hec im ento e,c on se q Oe nt em e nt e, u m a te c ria do r q u e envolve e du ca do r e e du ca nd on um a p ra tic a p olitic a c om um ( 2 6), tu do is so m os tra nd o q ue a le itu rad o m un do p re ce de s em pr e a le itu ra d a p ala vra e a le itu ra d es ta im plic aa c o nt in u id a de d a q ue la ( 2 7) . D ar a in sis te nc ia e m q u e a s p ala vr as u sa -d a s p a ra a a lf ab e ti za c ao e s te jam sempr e c a rr eg a da s d e s iq n if ic a cc e s d ae xper ie n c ia e x is t en c ia l d o a l fa be ti zando ( 28-29) .5. tdelas complementaresPo demo s i de n ti fi ca r d u as i de ia s a b or da d as p e lo a u to r, q u e v e rn c ompl e-m en ta r a s ua m en sa ge m. A p rim eira : e ss a le itu ra c rltic a d a re alid ad e,a ss oc ia da a p ra tic as p olitic as d e rn ob iliz ac ao e d e o rq an iz ac ao , p od ec on stit uir -s e e m in st ru m en to d e a r; ao c on tr a- he q er no nic a ( 31) . As eg un da : c on st at a- se , e m n os so s m e io s, u m a m a q ic iz ac ao d a p ala vr a,p ri vi le g ia n do -s e a l ei tu ra d a l in g ua g em , a q u a nt id a de s o br e a q u a li da d e.M a s e s sa c r ft ic a n a o a lm e ja d e sc a rt ar a n e ce s si da d e d a l ei tu ra r ig o ro s a, ase r f e it a med ia n te d is c ip li n a i n te l ec t ua l ( 23) .

    2. RetoW\cmdo 0+e.x+opara a iV\terpretat;:ao&WIA analise interpretativa, ultima etapa da leitura analftica,

    e a fase mais dificil. Mas, mesmo assim, e preciso iniciar-setam bern a ela, ate porque e por meio dela que se pratica a crf-tica, e ela que torn a a leitura urn processo crftico na lida como conhecimento. Enquanto na fase anterior, a compreensaoda mensagem do autor se dava a partir exclusivamente doselementos presentes no texto escrito, nesta fase interpretativa,a compreensao se dara a partir de dados exteriores ao texto,interpelando 0autor, discutindo-se com ele. E a fase da analiseinterpretativa. E chegada a hora de dialogar com 0 autor, desituar 0 s~u pens amen to, de refletir sobre os conteiidos desua mensagem.

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    Como IeI' ",m+ex+o de f i losof iClComo visto no capitulo anterior, esta etapa pode adotar

    o seguinte roteiro:1 . S ituacao do conteudo da un idade no contexto da obra deonde e la fo i extra fda , bem com o no con jun to do pensam entod o a uto r.

    2. S itu aca o do a uto r n o a mb ito d o p en sa men to te 6rico , n a h ist6riado pensam ento de sua area de reflexao.3 . E xp lic ita

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    concepcao de homem e uma concepcao de educacao em funcaodas quais desenvolveu seu metodo de alfabetizacao, voltadoparticularmente para a aprendizagem de adultos. Mas, alerndisso, foi idealizador, implantador e coordenador de urn amplomovimento de educacao popular, tanto no Brasil, como emoutros paises do mundo.

    Sem diivida, 0 pensamento de Paulo Freire tern umamarca muito grande de originalidade, ou seja, ele nasceu desua propria experiencia existencial na realidade historica esocial em que esteve sempre inserido. A condicao de opressaona qual encontrou tantos seres human os 0 marcou definiti-vamente, desafiando e provocando seu espirto na busca desolucoes para esta situacao, Mas, evidentemente, 0 autorsofreu influencias de outros pensamentos filosoficos, que vaodesde 0 cristianismo e do neotomismo ao existencialismo, aopersonalismo e ao marxismo.A marca do cristianismo, alern de sua vivencia de cris-tao, faz-se presente por meio do pensamento de Tristao deAtaide, que 0 iniciou igualmente nos pontos fundamentais doneotomismo de Maritain. Por outro lado, 0 humanismo deMaritain cornpletava-se com a contribuicao do personalismode Mounier, em sua exigencia fundamental de afirrnacao in- .transigente da dignidade da pessoa humana. A antropologiaexistencialista contribuiu igualmente para a reflexao de PauloFreire sobre a condicao humana, ressaltando-se a influenciade Kierkegaard, Gabriel Marcel, Jaspers e Heidegger; masigualmente marcante e a presenca do pensamento dialeticomarxista. Alern de Erich Fromm, Paulo Freire estudou 0pen-samento de Marx. Encontrando nele elementos substantivospara a construcao de sua sintese antropologico-filosofico-educacional.

    A tencao l l l O bv ia men te , p ara s itua r 0 pensamen to do au to r na rede do

    pensam en to un ive rsa l de seu cam po , e p rec iso q ue se estude a

    p artir da s fo ntes p rim aria s e s ec un dar ia s. P or is so m es mo, e ss ee um traba lho m ais ex tenso e intenso. Mas e le pode com ec:;a rc om e sta s p rim e ira s in ve stig ac :;6 es s ob re a v id a e a o br a d o a uto r.N es sa fic ha in ic ia l de le itu ra, s ao re gistra dos e ss es e le me nto se nc on tra do s na s fo ntes a bo rd ad as de sd e a p rep arac ao da u ni-d ad e d e le itu ra .

    PI"essL-\postosJeios pressupostos que fundamentam as posicoes defen-

    didas pelo autor na unidade lida, muitas vezes, podem seridentificados a partir do proprio texto. Como sepode perceber,por exemplo, fica claro nesse texto que Paulo Freire pressupoeque 0 homem e um ser que embora se encontre muitas uezesoprimido, em situacdo de dorninadio, e um ser livre, capazde libertar-se e de ser sujeito da historia e do seu destino.Pressupoe tam bern que a prdtica pedagogica e eminentementepolitica, ou seja, capaz de levar 0 homem a modificar suascondiciies de vida e as relacoes de poder entre os homens. Pres-supoe ainda que, para 0homem, a sensibilidade a experienciaexistencial e uma forma intuitiva de conhecimento, taluezmais importante do que as formas racionais de conhecer. Saoposicoes que, embora nao explicitamente trabalhadas peloautor no texto, ficam implicitas nele, ate porque sao elas quefornecem as bases para as ideias claramente defendidas.

    Jdeias associadaso texto e rico em sugest6es para a associacao de ideias,

    Por exemplo, vern logo a mente toda a proposta do Mobral,outro movimento dealfabetizacao de adultos desenvolvidono Brasil com pressupostos diferentes. Nesse caso, cabe-ria uma cornparacao. Igualmente, e possfvel aproximar econfrontar as concepcoes de metodologias de leitura apre-sentadas por outros teoricos da educacao, como EzequielTeodoro da Silva (0 ato de ler: fundamentos psicologicos

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    Como IeI' lAm +ex+ode filosofiapara uma nova pedagogia da leitura); 0texto de Paulo Freireleva-nos a pensar se a vivencia de cada urn dos leitores podeser identica ou analoga a experiencia dele, tal como descritana unidade lida.

    CoV\sidel"ac;::oes cl"lticasFazendo uma avaliacao critica desta unidade, e possivel

    manifestarmos varies pontos de vista:1.0 texto lido e, sem diivida, internamente coerente, uma

    vez que a sequencia do raciocinio nao e truncada; trata-se deurn texto expositivo em dois ritmos: pelo primeiro, 0 autorexp6e sua tese, baseando-se no acompanhamento descritivode sua experiencias pessoais, vivid as nas varias fases de suavida; pelo segundo, ele apresenta de forma mais teorica asmesmas posicoes. Pode-se concluir que, aceitando-se seuspressupostos, 0 raciocfnio desenvolvido esta correto, semlacunas, bern articulado.

    2. Sem diivida, 0autor assume posicao bastante original,com marcas profundamente pessoais. Nesse sentido, suascolocacoes sao muito relevantes para 0 trabalho educacionalde alfabetizacao, contribuindo ate mesmo para a reavaliacaodos metodos tradicionais de ensino da leitura e da escrita,mesmo nas escolas regulares.

    3. As ideias sugeridas pelo texto vao alern das quest6esespedficas da metodologia da alfabetizacao. A medida queretoma todas as posicoes filosofico-educacionais do autor,esse texto recoloca graves quest6es sobre 0 papel da educa-~ao numa sociedade desigual como a brasileira, exigindo doseducadores uma reflexao atenta e critica sobre sua atuacaopratica. Nessa linha, 0 pensamento apresentado contribuigrandemente para a reavaliacao constante do papel da edu-cacao, da escola e do trabalho dos educadores.

    4. Com relacao a forrnulacao de criticas pessoais de ava-liacao das posicoes defendidas por urn autor, trata-se mesmode avancar eventuais posicionamentos divergentes. Mas estee aquele momenta em que 0 leitor finalmente vai colocar 0que concord a e 0 que discorda do autor quanta as posicoesapresentadas por ele. Portanto, e uma crfrica eminentementepes~oal que p~de ser formulada, seja a partir de outro pa-radigrna conceitual, ao qual 0 lei tor se vincula, seja a partirda pr6pria experiencia intelectual, pr6pria de cada urn. Porisso, estamos num momento no qual e muito forte a marcasubjetiva da analise. E tam bern a parte mais dificil na avalia-~ao do trabalho alheio, pois nossas criticas pessoais tam bernprecisam ser bern fundamentadas.

    A pl"obleW\atizac;::clOTerminada a etapa de interpretacao, e intimamente ligada

    a ela, vern a de problematizacao, que e 0momento de se le-vantarem problemas para a reflexao pessoal e para a discussaocoletiva (se for 0 caso, realizar urn serninario ou urn debate).

    A partir das colocacoes que Paulo Freire faz nesse textovaries sao os problemas que podem ser destacados para umadiscussao ampliada:

    1.1a no primeiro paragrafo, Paulo Freire faz uma rapidaafirrnacao de que a pratica pedag6gica, por ser pedagogica, euma pratica politica. Essa afirrnacao expressa, como vimos,urn de seus pressupostos no texto. Mas por que afirma isso?o conjunto do texto justifica essa afirmacao? Ampliando 0questionamento, essa afirrnacao se justifica mesmo? A edu-cacao e urn processo politico? Por que?

    . 2~C~mo Paulo Freire ve e trabalha as vivencias psfquicasda infancia e da adolescencia? Tern elas algum papel no de-senvolvimento da aprendizagem? 0 autor nao acaba caindonuma postura psicologizante?

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    Como Ie . . ",m+ex+ode f il os o fi C l3. Pode-se caracterizar a teoria da aprendizagem da

    leitura, tal como apresentada por Paulo Freire, como umateoria racionalista?

    4. 0 que se pretende dizer corn "rnagicizacao da palavra"?5. 0 que 0 autor quis dizer quando afirmou que esta

    fazendo "arqueologia da cornp reen sao do complexo atode ler"?6.0 que vern a ser a posicao fatalista dos grupos popula-

    res ern face das injusticas? Comoa leitura crftica possibilitaria,a esses grupos, uma nova cornpreensao de sua indigencia?

    7. Qual a ideia de homem que esse texto deixa entrever?8. Qual metodologia de alfabetizacao e sugerida pelo

    texto, ou seja, quais os elementos que 0 texto fornece paraessa metodologia?

    A l"eBexao pessoalTodo esse processo de leitura analftica se enriquece se

    for conclufdo com a elaboracao de uma sfntese pessoal que,como 0 nome indica, e uma reflexao conclusiva a respeito dastematicas abordadas no texto e analisadas ao longo da leitura.E urn esforco do leitor ern refletir sobre 0 assunto, por contapropria, inspirado e provocado pelo autor.Apenas a guisa de exemplo: nessa palestra, mais uma vezPaulo Freire consegue nos traduzir a riqueza de seu pensamen-to, profundamente enraizado ern sua experiencia existenciale ern sua pratica profissional. Neste sentido, seu testemunhocala fundo porque e extremamente autentico. Trata-se de urnpensamento engajado e comprometido corn a causa dos ho-mens oprimidos. Nao esta preocupado ern sistematizar teorias,mas ern ajudar os homens a entender sua propria condicao,para que se libertem daqueles elementos escravizadores quenela se encontram. Lembra-nos Socrates, porque seu rnetodo

    igualmente tern por objetivo principallevar 0 homem ao au-toconhecimento para, ern seguida, promover a autolibertacao.E esta se fara por meio de uma pratica polftica, na qual oshomens se articularao solidariamente, de maos dadas, paraconstruir urn destino comum.

    Todos esses elementos elaborados ao longo da leituraternatica e da leitura interpretativa devem serregistrados naficha bibliografica. Como ern todos os casos da pratica defichamento, toda vez que voltarmos ao livro, podemos con-tinuar ampliando nosso bloco de fichas. Cada"bloco de fichassobre urn iinico texto deve ser arquivado no fichario, seguindouma ordem alfabetica dos nomes dos autores.

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    e

    A pesqlAisa1'\0 p...ocesso de leitlA...a

    Vimos que para realizar uma compreensao e interpretacaode urn texto, precisamos interromper nossa leitura corrida ebuscar, em fontes apropriadas, subsidies, esclarecimentos,inforrnacoes que nos daraoconta da mensagem que 0 autorquer nos passar por meio de seutexto.

    Esta atividade de recorreras fontes e a atividade de pes-quisa. 0 registro das informa-~6es colhidas nas fontes e adocumentacao. Vamos apresen-tar, brevemente, nesta parte do livreto, algumas orientacoespara lidarmos com nossas fontes, subsidiando assim nossasatividades de estudo e de leitura, tais como propostas nestemanual.

    A documentacao e urn processo mais amplo de registrodos resultados de pesquisa. Aqui ela esta sendo tomada noseu senti do de tecnica de identificacao, levantamento, explo-racao das fontes do tema pesquisado, bern como de registrodas inforrnacoes obtidas,

    No caso da realizacao da leitura e do estudo, de modogeral, visando a boa aprendizagem, a pratica da-documentacao

    Atividade de pesquisa: bus-car em fontes apropriadassubsldlos, esclaredmentos,iiiforma~oes que nos daraoconta da mensagem que 0autor quer nos passar pormeio de seu texto.

    CoWO le.. UWl +ex+ode filosofia

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    e uma ajuda preciosa. No processo de leitura, de estudo e deaprendizagem, existe 0 levantamento e 0 registro de informa-coes, como ficou claro quando falamos das varias etapas daleitura analftica.Alern disso, a pratica da documentacao tern outras duasfuncoes complementares: a primeira, de amp liar e garantirnossa memoria, que e urn instrumento fragil e limitado, naoconseguindo reter tudo 0 que tentamos registrar nela; a se-gunda e a eficacia das operacoes praticas no efetivo aprendi-zado, confirmando 0 principio de que aprendemos ao fazer.Quando registramos, seja urn informe levantado, seja umaintuicao pessoal, tal ate contribui significativamente para seuentendimento e sua retencao, pois guardamos melhor 0 quemelhor apreendemos.Nas orientacoes ja dadas nas partes anteriores, quan-do estamos realizando uma leitura sistematica, precis amoslevan tar e registrar dados sobre 0 autor do texto, sobre alinguagem que utiliza, sobre as categorias teoricas que adota,sobre outros autores, sobre teorias referentes as areas em quese situam as colocacoes do texto, sobre eventos historicos esociais que contribuem para a contextuacao do pensamentodo autor, sobre suas ideias, sobre ideias correlatas etc.

    Para nossos fins, neste manual, documentar e levantar eregistrar de maneira sistematica os dados e inforrnacoes queprecisamos para realizar a leitura analitica. Mas, uma vezregistrados esses dados, e usados para a com preen sao e inter-pretacao da mensagem lida, eles ficam guardados, de modoque ficam a nossa disposicao para uso futuro.

    Portanto, estamos nos referindo, primeiramente, aosfamosos apontamentos ... Todos os apontamentos devemser feitos em equipamentos proprios, adequados. 0 pri-meiro, muito conhecido, e 0 famoso caderno escolar. Emque pesem as mais variadas destinacoes que 0 caderno deapontamentos tern tido em nos so meio, ele nao e urn equi-

    pamento adequado para a documentacao, tal como a suge-rimos aqui. 0 caderno escolar deve ser usado apenas pararascunho, para anotacoes provisorias, para tomarmos notasdurante as aulas, palestras, debates e noutras situacoes emque isso deve ser feito com certa rapidez. Os apontamentosdefinitivos devem ser feitos em fichas apropriadas a seremguardadas de forma organizada, num fichario. Estamosfalando aqui, por exemplo, das fichas do tipo monobloco,mesmo as folhas avulsas de cadernos universitarios, desdeque soltas, de modo a poderem ser manuseaclas livremente,como folhas de papel sulfite.

    . claro que quando falamos de fichas, apontamentos,ficharios, no atual contexto, imediatamente nos reportamosa arquivos, pastas e diret6rios ... Tudo que estamos falandoaqui, referindo-nos ao universo do papel escrito, pode sertransposto para 0 universo do registro digital. 0 fichario euma pasta, urn diretorio; as fichas sao os arquivos.Portanto, quem dispuser dos instrumentos da informatica, pode desen-volver identico processo de docurnentacao mediante procedimentosdigitais.

    Vamos tratar da documentacao impressa, que pode, emseguida, ser transposta para os procedimentos informacionaisequivalentes.

    Destinam-se a registrar informacoes, analises e sintesesa respeito de urn texto que se esteja lendo, seja urn livro, urncapitulo de livro, urn artigo cientffico, uma tese, urn excerto.Qualquer unidade de leitura.

    Como Ie.. ",m +ex+ode filosofia

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    Destina-se ao registro de informes biograficos dos auto res,cuja vida e obra sejam relevantes para 0melhor conhecimentode uma area, de urn determinado. texto, de uma teoria. Saoelaboradas para 0 registro de resultados de pesquisa, seja nocontexto de urn curso ou de uma disciplina, seja no processode leitura analitica de urn texto, como vimos no exemplo daparte anterior deste livro.

    Ficha tematica

    Esta categoria de ficha destina-se a registrar esclarecimen-tos, conteiidos, estudos, reflex6es e inforrnacoes sobre temas.Desde esclarecimentos de conceitos e de categorias teoricasate intuicoes pessoais. Quando se tern uma ideia, surgidanum insight, ela deve ser registrada em ficha, devidamenteencabecada, para que possa ser classificada e organizada numfichario. Quando 0 aluno estiver pesqui sando para fazer urntrabalho, por exemplo, todos os apontamentos de subsidiosque levantar de suas fontes devem ser transcritos nas fichas,e nao em cadernos espirais ou brochuras, que tern as paginaspresas.

    ofichario pessoalEsta forma de tomar apontamentos e registrar dados em

    fichas possibilita ao estudante formar sua propria colecao deinformacoes, agrupando os materiais que precisa assimilar,seja com vistas ao aprendizado, seja para fazer urn traba-lho escolar. 0 fato de elaborar pessoalmente esse registro

    sistematico, sem a preocupacao de apenas ler para decorar.possibilita uma apropriacao mais personalizada e significativ~dos conhecimentos.

    Materialmente falando, este fichario pode ser constituidodaqueles classificadores escolares que tern urn equipamentocom presilhas de 2 eixos, nas quais se encaixam as fichas como numero de furos correspondentes. Com pastas de maiorlargura, podem-se criar setores separaveis, para as fichas decada disciplina.

    Itlil ;As fOJl\tesde pesqL1isaem filosofiaLer textos de filosofia, no ambito das atividades curri-

    culares da disciplina Filosofia, vai nos fazer sentir a necessida-de de urn convfvio mais amplo com a tradicao cultural dessamateria. Seja porque precisamos continuamente consultar asfontes, seja porque precisamos dialogar com os filosofos classi-cos e conternporaneos. Por sinal, acontece urn relacionamentodialetico entre a leitura de textos espedficos e 0 intercambiocom a tradicao filosofica, uma vez que, ao ler urn texto de urnfilosofo, precis amos "mergulhar" nessa tradicao, ao mesmotempo que, a partir del a, estamos desenvolvendo uma ex-periencia de reflexao filosofica que enriquece essa tradicao.. I?esse modo, a principal fonte da filosofia, enquanto

    Ob!etlvac;ao cultural, sao os textos escritos pelos propriosfilosofos, aqueles que construiram, ao longo da historia dacultura humana, essa tradicao de pensamento. Sao assimfontes p~imarias a que devemos nos dirigir para esse dialogo:cornpartilhando ideias, analises e reflex6es., . Mas, pela propria natureza da filosofia, nem sempre ef~ctl penetrar ne.ssepensamento em suas forrnulacoes origina-nas, Essa aI?roxlmac;ao e entao feita por muitos outros pensa-dores que com eles vao dialogar, interpelando-os, analisando,

    C.oWlO le.. lAWI +ex+o de filosofiCi

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    interpretando e comentando seus pensamentos. Sao fil6sofosque estudam outros fil6sofos, dos mais diferentes pontos devista, e variados enfoques.

    Produzem, entao, uma serie de outras fontes, secundarias,mas que sao mediacoes preciosas, instrumentos muito titeispara que estabelecarnos mediacoes com os pensamentos origi-nais. Trata-se de urn grande processo coletivo, de urn trabalhoconjunto. 0 saber se constr6i de forma social, envolvendo aparticipacao de muitas pessoas.

    Esse rico processo de leitura, analise e debate que vernse conduzindo ao longo da hist6ria, produz urn diversificadoacervo de novas fontes, que van dos estudos monograficosespecializados a introducoes didaticas, passando por amplosestudos hist6ricos, gerais, especificos, por periodos, por regi-6es, por temas; revistas especializadas, que abrigam artigosde alta especializacao, obras de referencia geral, como asenciclopedias, os dicionarios, os repert6rios bibliograficos,os tratados, os textos didaticos.

    Assim, no que concerne as fontes disponiveis em nossocontexto brasileiro, escritos em portugues, portanto acessiveisao estudante, podemos indicar alguns exemplos de cada ca-tegoria de fontes, sem a pretensao de esgotar as inforrnacoes,

    Tex+os c1assicos

    Nas ultimas tres decadas, foram traduzidos e publicadosem portugues uma significativa literatura filos6fica inter-nacional. Assim, contamos hoje, traduzidos com bastantequalidade, praticamente todos os textos classicos da filosofiaocidental, sem falar de obras das culturas orientais. Nao hacomo listar tudo que esta acessivel em nosso universo editorial,mas esse tipo de inforrnacao pode ser obtido por meio doscatalogos das editoras, dos catalogos das bibliotecas, ffsicas

    e virtuais. De qualquer modo, cabe destacar a colecao OsPensadores, lancada, ha algumas decadas, pela Abril Cultural,pela abrangencia dos textos traduzidos, pela qualidade datraducao e pela apresentacao das obras.

    iii.Diciol'"lat'iosABBAGNANO, N. Diciondrio de filosofia. Sao Paulo: Mestre Jou,1970.AUDI, Robert (org.) Diciondriode Filosofia. Sao Paulo: Paulus,2006.FERRATER MORA, J. Diciondrio de filosofia. Lisboa: PublicacoesDom Quixote, 1977.HUISMAN, D. Diciondrio dos fil6sofos. Sao Paulo: Martins Fontes,2001.---' Diciondrio de obras filos6ficas. Sao Paulo: Martins Fontes,2000.JAPIASSU, H. F. e MARCONDES, D. Diciondrio bdsico de filo~ofia.Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

    ~81+lis+cwiasABBAGNANO, N. Hist6ria da Filosofia. 14 volumes. Lisboa: Pr~-senca, 1970.- __ . Nomes e temas da filosofia contemporiinea, Lisboa: DomQuixote, 1990.BOCHENSKI, I.M. A filosofia contemporiinea ocidental. Sao Paulo:EPUIEDUSP, 1975.BREHIER, E.Hist6ria da filosofia. 7 volumes. Sao Paulo: Mestre Jou,1977/78.CHATELET, F. Hist6ria da filosofia - ideias, doutrinas. 8 volumes. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983.CHAUf, M. lntrodudio a hist6ria da filosofia. Sao Paulo: Brasiliense,1994.LACOSTE, J. A filosofia no seculo XX. Campinas: Papirus, 1992.LARA, T. A..Caminhos da razdo no Ocidente: a filosofia ocidental doRenascimento aos nossos dias. Petropolis: Vozes, 1986.

  • 5/10/2018 Como Ler Um Texto de Filosofia - Antonio Joaquim Severino

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    Como le.."m tex+o de filosofiaMARCONDES, D. lniciacdo it h is t6 ri a d a f il os of ia . D o s p re -s oc rd ti co s

    a Wit tgenstein . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.NUNES, B. A filoso fia c on tem po riinea : tra jeto s in ic ia is. Sao Paulo:Atica, 1991.SCIACCA, M. F. H is t6 ri a d a f il os of ia . 3 volumes. Sao Paulo: MartinsFontes, 1966.STEGMULLER, W. A f il oso fi a cont empori inea. 2 volumes. Sao Paulo:EPUIEDUSP, 1977.

    J\tl"od l--\

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    absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menorduvida, a f im de ver se, apos isso, nao restaria algo em meu credito,que Fosseinteiramente indubitavel. Assim, porque os nossos sentidosnos enganam as vezes, quis supor que nao havia coisa alguma queFossetal como eles nos fazem imaginar. E,porque ha homens que seequivocam ao raciocinar, mesmo no tocante as mais simples materiasde Geometria e.cometem ai paralogismos, rejeitei como falsas,julgandoque estava sujeito a falhar como qualquer outre, todas asrezoes queeu tomara ate entso por demonstra(oes. E enfim, considerando quetodos osmesmos pensamentos que temos quando despertos nospodemtembem ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso,que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas ascoisas que ateentao haviam entrado no meu espirito nso eram mais verdadeiras queasllusces de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquantoeu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamenteque eu, que pensava, Fossealguma coisa. E,notanda que esta=:de: eu penso, logo existo, era tao firme e tao certa que todas asmetsextravagantes suoosicoes dos ceticos nao seriam capazes de a abalar,julguei que podia eceite-te, sem escrupulo, como 0 primeiro principioda Filosofia que procurava.

    (2) Depois, exal7)inando com aten(ao 0que eu era, e vendo quepodia supor que nao tinha corpo algum e que nao havia qualquermundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por issopodia supor que nao existia; e que, ao contra rio, pelo fato mesmo de eupensar em duvidar da verdade das outras coisasseguia-se mui evidentee mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvessecessado de pensar, embora tudo 0mais que alguma vez imaginara Fosseverdadeiro, ja nao teria qualquer razao de crer que eu tivesse existido;compreendi por ai que era uma substfmcia cuja essencie ou naturezaconsiste apenas no pensar, e que, para set; nao necessita de nenhumlugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esseeu,isto e. a alma, pela qual sou 0que sou, e inteiramente distinta do corpoe, mesmo, que e mais facil de conhecer do que ele, e ainda que estenada tosse, ela nao deixaria de ser tudo 0que e . .

    (3) Depois disso, considerei em geral 0 que e necessstio a umaproposiceo para ser verdadeira e certa; pois, como acabava de encon-

    trar uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia sabertembem em que consiste essacerteza. E, tendo notado que nada h f1no "eu penso, logo existo", que me assegure de que digo a verdade,exceto que vejo muito claramente que, para pensar, e preciso existir,julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemosmui clara e mui distintamente sao todas verdadeiras, havendo apenasalguma dificuldade em notar bem quais sao as que concebemos dis-tintamente.

    (4) Em seguida, tendo reflet ido sobre aquilo que eu duvidava,e que, por consequencie, meu ser nao era totalmente perfeito, poisvia claramente que 0 conhecer e perfei(ao maior do que 0 duvidar,deliberei procurar de onde aprend