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A poesia à tua porta Coletânea dos poemas selecionados pela equipa da BESMTG Anabela Raposo |Isabel Fernandes | M. Helena Soares | M. Luísa Vicente| M. Manuela C. Nova | Natércia Miranda 2014.2015

Compilação poemas semana leitura

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A poesia à tua porta | 2015

1. Filosofia. Psicologia

Filosofia

Psicologia

Ética

Metafísica Lógica. Epistemologia. Teoria do Conhecimento

2. Religião. Teologia

Religião

Teologia

3. Ciências Sociais

Sociologia

Estatística. Demografia

Educação, Ensino e Pedagogia

Etnografia

Ciência Económica

Política

Direito. Jurisprudência

Ciências Sociais

A poesia à tua porta

Coletânea dos poemas selecionados pela

equipa da BESMTG Anabela Raposo |Isabel Fernandes | M. Helena Soares | M. Luísa Vicente| M. Manuela C. Nova | Natércia Miranda

2014.2015

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A poesia à tua porta | 2015

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A poesia à tua porta | 2015

As palavras

São como cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

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A palavra impossível

Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim

A vida que não se troca por palavras.

Deram-mo para eu guardar dentro de mim

As vozes que só em mim são verdadeiras.

Deram-mo para eu guardar dentro de mim

A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,

Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,

Para eu guardar dentro de mim,

Para eu ignorar dentro de mim

A única palavra sem disfarce

A Palavra que nunca se profere.

Adolfo Casais Monteiro

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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

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Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das cousas que passaram,

que as magoadas iras me ensinaram

a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;

dei causa [a] que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse que fartasse

este meu duro génio de vinganças!

Luís de Camões

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Aqueles claros olhos que chorando

Aqueles claros olhos que chorando

Ficavam, quando deles me partia,

Agora que farão? Quem mo diria?

Se porventura estão de mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando

Deles me vim tão longe de alegria?

Ou se estarão aquele alegre dia;

Que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?

Se acharão num momento muitos anos?

Se falarão com as aves e cos ventos?

Oh! Bem-venturados fingimentos,

Que nesta ausência tão doces enganos

Sabeis fazer aos tristes pensamentos!

Luís de Camões

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Lágrima de preta Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

António Gedeão

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Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob as montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa

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Ai flores, ai flores do verde pino Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mh’ á jurado! Ai Deus, e u é? -Vós me preguntades polo voss'amigo, e eu ben vos digo que é san' e vivo: Ai Deus, e u é? -Vós me preguntades polo voss'amado, e eu ben vos digo que é viv' e sano: Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é san' e vivo e seerá vosc' ant' o prazo sa'ido: Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é viv' e sano e seerá vosc' ant' o prazo passado: Ai Deus, e u é?

D. Dinis

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Ai, Madre, Morro de Amor

Nom chegou, madr’, o meu amigo

e oj’est o prazo saído.

Ai, madre, moiro d’amor!

Nom chegou, madr’, o meu amado

e oj’est o prazo passado.

Ai, madre, moiro d’amor!

E oj’est o prazo saído!

Por que mentiu o desmentido?

Ai, madre, moiro d’amor!

E oj’est o prazo passado!

Por que mentiu o perjurado?

Ai, madre, moiro d’amor!

Porque mentiu o desmentido,

pesa-mi, pois per si é falido.

Ai, madre, moiro d’amor!

D. Dinis

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Ai, Senhor Fremosa, por Deus Ai, senhor fremosa, por Deus

e por quan boa vos el fez,

doede-vos algua vez

de min e destes olhos meus,

que vos viron por mal de si,

quando vos viron, e por mí.

E, porque vos fez Deus melhor

de quantas fez e máis valer,

querede-vos de min doer

e destes meus olhos, senhor,

que vos viron por mal de si,

quando vos viron, e por mí.

E, porque o al non é ren,

senón o ben que vos Deus deu,

querede-vos doer do meu

mal e dos meus olhos, meu ben,

que vos viron por mal de si,

quando vos viron, e por mí.

D. Dinis

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Chove. É dia de Natal.

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal,

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem a quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa

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Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor, Têm de ser Ridículas. Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas. Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso Cartas de amor Ridículas. A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor É que são Ridículas. (Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas.)

Álvaro de Campos

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Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

Fernando Pessoa

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Liberdade Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

Sol doira

Sem literatura

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

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Ó mar salgado, quanto do teu sal

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu

Fernando Pessoa

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A uma rapariga A Nice

Abre os olhos e encara a vida! A sina

Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!

Por sobre lamaçais alteia pontes

Com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada de vida que fascina

Caminha sempre em frente, além dos montes!

Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!

Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,

Escava com as mãos a própria cova

E depois, a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,

Da graça do teu corpo, esguia e nova,

Surgir à luz a haste de uma flor!...

Florbela Espanca

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Sem Palavras

Brancas, suaves mãos de irmã

Que são mais doces que as das rainhas,

Hão – de pousar em tuas mãos as minhas,

Numa carícia transcendente e vã.

E a tua boca a divinal manhã

Que diz as frases com que me acarinhas,

Há – de pousar nas dolorosas linhas

Da minha boca purpurina e sã.

Meus olhos hão – de olhar teus olhos tristes;

Só eles te dirão que tu existes

Dentro de mim num riso d’alvorada!

E nunca se amará ninguém melhor;

Tu calando de mim o teu amor,

Sem que eu nunca do meu te diga nada!

Florbela Espanca

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PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner

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Ressurgiremos

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos

E em Delphos centro do mundo

Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras

São o nome das coisas

E onde são claros e vivos contornos

Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo

São o reino do homem

Ressurgiremos para olhar para a terra de frente

Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exactidão da cruz

Na luz branca de Creta.

Sophia de Mello Breyner

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Este é o tempo

Este é o tempo

Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades

E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite

Deusa de chacais

Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.

Sophia de Mello Breyner

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As mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.

Com mãos tudo se faz e se desfaz.

Com mãos se faz o poema – e são de terra.

Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.

Não são de pedras estas casas mas

de mãos. E estão no fruto e na palavra

as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas

as mãos que vês nas coisas transformadas.

Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.

Ninguém pode vencer estas espadas:

nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

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Letra para um hino

É possível falar sem um nó na garganta.

É possível amar sem que venham proibir.

É possível correr sem que seja a fugir.

Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão.

É possível viver sem que seja de rastos.

Os teus olhos nasceram para olhar os astros.

Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

É possível viver de outro modo.

É possível transformar em arma a tua mão.

É possível viver o amor. É possível o pão.

É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.

É possível viver sem fingir que se vive.

É possível ser homem.

É possível ser livre, livre, livre.

Manuel Alegre

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Verás florir o tempo (1974)

E começava a gente de juntar-se

e tanta que era estranha de se ver.

Não cabiam nas ruas principais

cada um desejando ser primeiro

e todos feitos d´um só coração.

Não sei se a História tem um fio se

não tem. Mas já de Santarém partiu

o Capitão. De negro vem vestido

em cima da Chaimite. Ouves? É o trote

das lagartas. Cavalos e cavalos.

O exército da noite e seus blindados.

Ó com quanto cuidado e diligência

escrever verdade sem outra mistura.

Andava o Povo levantado andando

um Major aos seus homens perguntando:

Adere ou não adere? É só. Mais nada.

E o segundo-sargento perfilando-se:

Há vinte anos que espero este momento.

Verás florir o Tempo. E as armas

desabrochadas: às três da madrugada.

Manuel Alegre

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A poesia à tua porta | 2015

Retrato do herói

Herói é quem no muro branco inscreve

O fogo da palavra que o liberta:

Sangue do homem novo que diz povo

E morre devagar de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve

lhe ser o nome próprio traz aberta

a alma à fome fechado o corpo ao breve

instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado

Não é santo nem mártir nem soldado

Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado

dá o sangue ao futuro e fica ileso

pois lutando apagado morre aceso.

Manuel Alegre

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A poesia à tua porta | 2015

Regresso

E contudo perdendo-te encontraste.

E nem deuses nem monstros nem tiranos

te puderam deter. A mim os oceanos.

E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.

Tu mostraste que o mar era só mar.

Maior do que qualquer império

foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro

e já em Portugal estrangeiros somos.

Se em cada um de nós há ainda um marinheiro

vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calicute até Lisboa sobre o sal

e o Tempo. Porque é tempo de voltar

e de voltando achar em Portugal

esse país que se perdeu de mar em mar.

Manuel Alegre

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A poesia à tua porta | 2015

E alegre se fez triste

Aquela clara madrugada que

viu lágrimas correrem no teu rosto

e alegre se fez triste como se

chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos

meu nome no teu nome. E demorados

viu nossos olhos juntos nos segredos

que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.

Só ela viu teu rosto olhando a estrada

por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti.

E ouviu dizer-me adeus: essa palavra

que fez tão triste a clara madrugada.

Manuel Alegre

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Outono

Tarde pintada

Por não sei que pintor.

Nunca vi tanta cor

Tão colorida!

Se é de morte ou de vida,

Não é comigo.

Eu, simplesmente, digo

Que há fantasia

Neste dia,

Que o mundo me parece

Vestido por ciganas adivinhas,

E que gosto de o ver, e me apetece

Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga

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Vendaval

Meu coração quebrou.

Era um cedro perfeito;

Mas o vento da vida levantou,

E aquele prumo do céu caiu direito.

Nos bons tempos felizes

Em que ele batia, erguido,

Desde a rama às raízes

Era seiva e sentido.

Agora jaz no chão.

Palpita ainda, e tem

Vida de coração...

Mas não ama ninguém.

Miguel Torga

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Mãe Mãe:

Que desgraça na vida aconteceu,

Que ficaste insensível e gelada?

Que todo o teu perfil se endureceu

Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa

Cansada de palavras e ternura,

Assim tu me pareces no teu leito.

Presença cinzelada em pedra dura,

Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.

Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.

Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes

Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:

Abre os olhos ao menos, diz que sim!

Diz que me vês ainda, que me queres.

Que és a eterna mulher entre as mulheres.

Que nem a morte te afastou de mim! Miguel Torga

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Aparelhei o barco da ilusão

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar…

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura…

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar. Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

Recomeça….

Se puderes,

Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro,

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,

Vai colhendo

Ilusões sucessivas no pomar.

Sempre a sonhar

E vendo,

Acordado,

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

Urgentemente

É urgente o amor

É urgente um barco no mar

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

Eugénio de Andrade

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O Sorriso

Creio que foi o sorriso,

o sorriso foi quem abriu a porta.

Era um sorriso com muita luz

lá dentro, apetecia

entrar nele, tirar a roupa, ficar

nu dentro daquele sorriso.

Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

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A poesia à tua porta | 2015

Cântico negro "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros e que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca princípio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!

José Régio

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A poesia à tua porta | 2015

Balada de Sempre

Espero a tua vinda

a tua vinda,

em dia de lua cheia.

Debruço-me sobre a noite

a ver a lua a crescer, a crescer...

Espero o momento da chegada

com os cansaços e os ardores de todas as

chegadas...

Rasgarás nuvens de ruas densas,

Alagarás vielas de bêbados transformadores.

Saltarás ribeiros, mares, relevos...

- A tua alma não morre

aos medos e às sombras!-

Mas...,

Enquanto deixo a janela aberta

para entrares,

o mar,

aí além,

sempre duvidoso,

desenha interrogações na areia molhada... Fernando Namora

Page 38: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Cai a chuva abandonada

Cai a chuva abandonada

à minha melancolia,

a melancolia do nada

que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora

não a sei e está presente.

Em mim por si se demora

e nada em mim a consente

do que me fala à razão.

Mas a razão é limite

do que tem ocasião

de negar o que me fite

de onde é a minha mansão

que é mansão no sem-limite.

Ao longe e ao alto é que estou

e só daí é que sou.

Vergílio Ferreira

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A poesia à tua porta | 2015

Ode à Paz Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,

Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego

dos pastos,

Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,

Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

Pelos aromas maduros de suaves outonos,

Pela futura manhã dos grandes transparentes,

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História,

deixa passar a Vida!

Natália Correia

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A poesia à tua porta | 2015

Portugal ressuscitado Depois da fome, da guerra da prisão e da tortura vi abrir-se a minha terra como um cravo de ternura.

Vi nas ruas da cidade o coração do meu povo gaivota da liberdade voando num Tejo novo.

Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido

Vi nas bocas vi nos olhos nos braços nas mãos acesas cravos vermelhos aos molhos rosas livres portuguesas.

Vi as portas da prisão abertas de par em par vi passar a procissão do meu país a cantar.

Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido

Nunca mais nos curvaremos às armas da repressão somos a força que temos a pulsar no coração.

Enquanto nos mantivermos todos juntos lado a lado somos a glória de sermos Portugal ressuscitado.

Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido.

José Carlos Ary dos Santos

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A poesia à tua porta | 2015

Já Bocage não sou!

Já Bocage não sou!... À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...

Eu aos céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.

Musa!... Tivera algum merecimento,

Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria

Brade em alto pregão à mocidade,

Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade

Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade.

Bocage

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A poesia à tua porta | 2015

Homens constipados Pachos na testa, terço na mão, Uma botija, chá de limão, Zaragatoas, vinho com mel, Três aspirinas, creme na pele Grito de medo, chamo a mulher. Ai Lurdes que vou morrer. Mede-me a febre, olha-me a goela, Cala os miúdos, fecha a janela, Não quero canja, nem a salada, Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada. Se tu sonhasses como me sinto, Já vejo a morte nunca te minto, Já vejo o inferno, chamas, diabos, Anjos estranhos, cornos e rabos, Vejo demónios nas suas danças Tigres sem listras, bodes sem tranças Choros de coruja, risos de grilo Ai Lurdes, Lurdes fica comigo Não é o pingo de uma torneira, Põe-me a Santinha à cabeceira, Compõe-me a colcha, Fala ao prior, Pousa o Jesus no cobertor. Chama o Doutor, passa a chamada, Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada. Faz-me tisana e pão de ló, Não te levantes que fico só, Aqui sozinho a apodrecer, Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

António Lobo Antunes

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A poesia à tua porta | 2015

Para Sempre Por que Deus permite que as mães vão-se embora? Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não apaga quando sopra o vento e chuva desaba, veludo escondido na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento. Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, na sua graça, é eternidade. Por que Deus se lembra — mistério profundo — de tirá-la um dia? Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei: Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade

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A poesia à tua porta | 2015

Frustração

Foi bonito

O meu sonho de amor.

Floriram em redor

Todos os campos em pousio.

Um sol de Abril brilhou em pleno estio,

Lavado e promissor.

Só que não houve frutos Dessa primavera.

A vida disse que era Tarde demais.

E que as paixões tardias

São ironias Dos deuses desleais. Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

Viagem

É o vento que me leva.

O vento lusitano.

É este sopro humano Universal

Que enfuna a inquietação de Portugal.

É esta fúria de loucura mansa

Que tudo alcança Sem alcançar.

Que vai de céu em céu,

De mar em mar,

Até nunca chegar

E esta tentação de me encontrar

Mais rico de amargura

Nas pausas da ventura

De me procurar... Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim,

Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor

Durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria…

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz seria

Matar a sede com água salgada. Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente! Florbela Espanca, Charneca em Flor (1930)

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Não basta abrir a janela Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. Falas de civilização, e de não dever ser, Ou de não dever ser assim. Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos, Com as cousas humanas postas desta maneira. Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor. Escuto sem te ouvir. Para que te quereria eu ouvir? Ouvindo-te nada ficaria sabendo. Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida A querer inventar a máquina de fazer felicidade! Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo Passa um momento uma figura de homem. Os seus passos vão com «ele» na mesma realidade, Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas: O «homem» vai andando com as suas ideias, falso e estrangeiro, E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar, Olho-o de longe sem opinião nenhuma. Que perfeito que é nele o que ele é – o seu corpo, A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças, Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.

Alberto Caeiro

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A poesia à tua porta | 2015

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, surdo e miudinho, moinho a braços com um vento testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, se fosses só o sal, o sol, o sul, o ladino pardal, o manso boi coloquial, a rechinante sardinha, a desancada varina, o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos, a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, o ferrugento cão asmático das praias, o grilo engaiolado, a grila no lábio, o calendário na parede, o emblema na lapela, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato!

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço, galo que cante a cores na minha prateleira, alvura arrendada para o meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço. Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, golpe até ao osso, fome sem entretém, perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, rocim engraxado, feira cabisbaixa, meu remorso, meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill

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A poesia à tua porta | 2015

Não és tu Era assim, tinha esse olhar, A mesma graça, o mesmo ar, Corava da mesma cor, Aquela visão que eu vi Quando eu sonhava de amor, Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo, O semblante pensativo, E uma suave tristeza Que por toda ela descia Como um véu que lhe envolvia, Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar, Ingénuo e quase vulgar, Tinha o poder da razão Que penetra, não seduz; Não era fogo, era luz Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume, No seio o mesmo perfume, Um cheiro a rosas celestes, Rosas brancas, puras, finas, Viçosas como boninas, Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu...ai! não és: Toda a ilusão se desfez. Não és aquela que eu vi, Não és a mesma visão, Que essa tinha coração, Tinha, que eu bem lho senti.

Almeida Garrett

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A poesia à tua porta | 2015

Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?

Quando é que despertarei de estar acordado?

Não sei. O sol brilha alto,

Impossível de fitar.

As estrelas pestanejam frio,

Impossíveis de contar.

O coração pulsa alheio,

Impossível de escutar.

Quando é que passará este drama sem teatro,

Ou este teatro sem drama,

E recolherei a casa?

Onde? Como? Quando?

Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá

no fundo?

É Esse! É esse!

Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;

E então será dia.

Sorri, dormindo, minha alma!

Sorri, minha alma: será dia! Álvaro de Campos

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A poesia à tua porta | 2015

Regresso ao lar Ai, há quantos anos que eu parti chorando Deste meu saudoso, carinhoso lar!... Foi há vinte?... Há trinta? Nem eu sei já quando!... Minha velha ama, que me estás fitando, Canta-me cantigas para me lembrar! Dei a Volta ao mundo, dei a volta à Vida... Só achei enganos, decepções, pesar... Oh! A ingénua alma tão desiludida!... Minha velha ama, com a voz dorida, Canta-me cantigas de me adormentar!... Trago d'amargura o coração desfeito... Vê que fundas mágoas no embaciado olhar! Nunca eu saira do meu ninho estreito!... Minha velha ama que me deste o peito, Canta-me cantigas para me embalar! Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho Pedrarias d'astros, gemas de luar... Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!... Minha velha ama, sou um pobrezinho... Canta-me cantigas de fazer chorar! Como antigamente, no regaço amado, (Venho morto, morto!...) deixa-me deitar! Ai, o teu menino como está mudado! Minha velha ama, como está mudado! Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!... Canta-me cantigas, manso, muito manso... Tristes, muito tristes, como à noite o mar... Canta-me cantigas para ver se alcanço Que a minh'alma tenha paz, descanso, Quanto a Morte, em breve, me vier buscar!...

Guerra Junqueiro

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A poesia à tua porta | 2015

Meu corpo, que mais receias?

— Meu corpo, que mais receias?

— Receio quem não escolhi.

— Na treva que as mãos repelem

os corpos crescem trementes.

Ao toque leve e ligeiro

O corpo torna-se inteiro,

Todos os outros ausentes.

Os olhos no vago

Das luzes brandas e alheias;

Joelhos, dentes e dedos

Se cravam por sobre os medos...

Meu corpo, que mais receias?

— Receio quem não escolhi,

quem pela escolha afastei.

De longe, os corpos que vi

Me lembram quantos perdi

Por este outro que terei. Jorge de Sena

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A poesia à tua porta | 2015

Outra

Se fosses luz serias a mais bela

De quantas há no mundo: - a luz do dia!

- Bendito seja o teu sorriso

Que desata a inspiração

Da minha fantasia!

Se fosses flor serias o perfume

Concentrado e divino que perturba

O sentir de quem nasce para amar!

- Se desejo o teu corpo é porque tenho dentro de

mim

A sede e a vibração de te beijar!

Se fosses água - música da terra,

Serias água pura e sempre calma!

- Mas de tudo que possas ser na vida,

Só quero, meu amor, que sejas alma! António Botto

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«Quem muito viu...»

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,

mágoas, humilhações, tristes surpresas;

e foi traído, e foi roubado, e foi

privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu

os mundos e submundos; e viveu

dentro de si o amor de ter criado;

quem tudo leu e amou, quem tudo foi -

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe

em sorte como a todos os que vivem.

Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,

será sempre sem pátria. E a própria morte,

quando o buscar, há-de encontrá-lo morto. Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta (1969)

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A poesia à tua porta | 2015

Não choro...

A dor não me pertence.

Vive fora de mim, na natureza,

livre como a electricidade.

Carrega os céus de sombra,

entra nas plantas,

desfaz as flores...

Corre nas veias do ar,

atrai os abismos,

curva os pinheiros...

E em certos momentos de penumbra

iguala-me à paisagem,

Surge nos meus olhos

presa a um pássaro a morrer

no céu indiferente.

Mas não choro. Não vale a pena!

A dor não é humana. José Gomes Ferreira

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A poesia à tua porta | 2015

Este livro

este livro. passa um dedo pela página, sente o papel

como se sentisses a pele do meu corpo, o meu rosto.

este livro tem palavras. esquece as palavras por

momentos. o que temos para dizer não pode ser dito.

sente o peso deste livro. o peso da minha mão sobre

a tua. damos as mãos quando seguras este livro.

não me perguntes quem sou. não me perguntes

nada.

eu não sei responder a todas as perguntas do

mundo.

pousa os lábios sobre a página. pousa os lábios sobre

o papel. devagar, muito devagar. vamos beijar-nos. José Luís Peixoto

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A poesia à tua porta | 2015

Canção de primavera Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores, Pois que Maio chegou, Revesti-o de clâmides de cores! Que eu, dar, flor, já não dou. Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves, Acordai desse azul, calado há tanto, As infinitas naves! Que eu, cantar, já não canto. Eu, invernos e outonos recalcados Regelaram meu ser neste arrepio... Aquece tu, ó sol, jardins e prados! Que eu, é de mim o frio. Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio, Vem com tua paixão, Prostrar a terra em cálido desmaio! Que eu, ter Maio, já não. Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto; Ter sol, não tenho; e amar... Mas, se não amo, Como é que, Maio em flor, te chamo tanto, E não por mim assim te chamo?

José Régio, Filho do Homem

Page 59: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Pérola solta

Sem que eu a esperasse,

Rolou aquela lágrima

No frio e na aridez da minha face.

Rolou devagarinho...,

Até à minha boca abriu caminho.

Sede! o que eu tenho é sede!

Recolhi-a nos lábios e bebi-a.

Como numa parede

Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,

Na boca me cantou,

Breve como essa lágrima,

Esta breve elegia. José Régio, Filho do Homem

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A poesia à tua porta | 2015

Ao cair das folhas

À minha irmã Maria da Glória

Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,

Fechar-me os olhos e compor-me o leito,

Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,

Eu me for viajar para o Sol-posto.

De modo que me faça bom encosto,

O travesseiro comporá com jeito,

E eu tão feliz! por não estar afeito,

Hei-se sorrir, Senhor! quase com gosto.

Até com gosto, sim! Que faz quem vive

Órfão de mimos, viúvo de esperanças,

Solteiro de venturas, que não tive?

Assim, irei dormir com as crianças

Quase como elas, quase sem pecados...

E acabarão enfim os meus cuidados. Clavadel, Outubro, 1895

António Nobre

Page 61: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Impressão digital Os meus olhos são uns olhos. E é com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos onde outros, com outros olhos, não vêem escolhos nenhuns. Quem diz escolhos diz flores. De tudo o mesmo se diz. Onde uns vêem luto e dores, uns outros descobrem cores do mais formoso matiz. Nas ruas ou nas estradas onde passa tanta gente, uns vêem pedras pisadas, mas outros gnomos e fadas num halo resplandescente. Inútil seguir vizinhos, que ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos D. Quixote vê gigantes. Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes.

António Gedeão

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A poesia à tua porta | 2015

Para um amigo tenho sempre um relógio

Para um amigo tenho sempre um relógio

esquecido em qualquer fundo de algibeira.

Mas esse relógio não marca o tempo inútil.

São restos de tabaco e de ternura rápida.

É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.

É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, Viagem Através duma Nebulosa (1960)

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A poesia à tua porta | 2015

Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto

E cobertos de lama, caminhamos

Por cidades,

Por nuvens

E desertos.

Ao vento semeamos o que os homens não querem.

Ao vento arremessamos as verdades que doem

E as palavras que ferem.

Da noite que nos gera, e nós amamos,

Só os astros trazemos.

A treva ficou onde

Todos guardamos a certeza oculta

Do que nós não dizemos,

Mas que somos.

Ary dos Santos

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A poesia à tua porta | 2015

Página

outro é o tempo

outra a medida

tão grande a página

tão curta a escrita

entre o achigã e a perdiz

entre chaparro e choupo

tanto país

e tão pouco

Manuel Alegre, Alentejo e Ninguém

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A poesia à tua porta | 2015

Soneto

É preciso saber por que se é triste

é preciso dizer esta tristeza

que nós calamos tantas vezes mas existe

tão inútil em nós tão portuguesa.

É preciso dizê-la é preciso despi-la

é preciso matá-la perguntando

porquê esta tristeza como e quando

e porquê tão submissa tão tranquila.

Esta tristeza que nos prende em sua teia

esta tristeza aranha esta negra tristeza

que não nos mata nem nos incendeia

antes em nós semeia esta vileza

e envenena ao nascer qualquer ideia.

É preciso matar esta tristeza. Manuel Alegre, Praça da Canção, 1965

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A poesia à tua porta | 2015

Os olhos do poeta O poeta tem olhos de água para refletirem todas as cores do mundo, e as formas e as proporções exatas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem. Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas, e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria, com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento. Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos, e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos de fada à hora da infância e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade: - todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta. Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório, sai uma estrela voando nas trevas tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes. E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, Poemas completos

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A poesia à tua porta | 2015

Estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.

Aqui chegado até eu venho ver se me apareço

e o fato com que virei preocupa-me, pois chove

miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada

De outras, esperei-me eu e não apareci

embora bem procurado entre os mais que

passavam.

Se algum de nós vier hoje é já bastante

como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça. Mário Cesariny

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A poesia à tua porta | 2015

Aquele outro

O dúbio mascarado - o mentiroso

Afinal, que passou na vida incógnito.

O Rei-lua postiço, o falso atónito -

Bem no fundo, o covarde rigoroso.

Em vez de Pajem, bobo presunçoso.

Sua Ama de neve, asco de um vómito -

Seu ânimo, cantado como indómito,

Um lacaio invertido e pressuroso.

O sem nervos nem Ânsia – o papa–açorda,

(Seu coração talvez movido a corda...)

Apesar de seus berros ao Ideal.

O raimoso, o corrido, o desleal -

O balofo arrotando Império astral:

O mago sem condão - o Esfinge Gorda... Mário de Sá Carneiro

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A poesia à tua porta | 2015

Segredo

Sei um ninho

e o ninho tem um ovo;

e o ovo, redondinho,

tem lá dentro um passarinho novo.

Mas escusas de me tentar:

nem o tiro nem o ensino;

quero ser um bom menino,

e guardar

este segredo comigo,

e ter depois um amigo

que faça o pino

a voar. Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

O Poeta Trabalha agora na importação e exportação. Importa metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria, um desses que preenche cadernos de folha azul com números de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere, com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade; suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite, o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.

Nuno Júdice

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A poesia à tua porta | 2015

Solidão

Ó solidão! À noite, quando, estranho,

Vagueio sem destino, pelas ruas,

O mar todo é de pedra... E continuas.

Todo o vento é poeira... E continuas.

A Lua, fria, pesa... E continuas.

Uma hora passa e outra... E continuas.

Nas minhas mãos vazias continuas,

No meu sexo indomável continuas,

Na minha branca insónia continuas,

Paro como quem foge. E continuas.

Chamo por toda a gente. E continuas.

Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.

Invento um verso... E rasgo-o. E continuas.

Eterna, continuas...

Mas sei por fim que sou do teu tamanho! Pedro Homem de Mello

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A poesia à tua porta | 2015

Penélope

Mais do que um sonho: comoção!

Sinto-me tonto, enternecido,

quando, de noite, as minhas mãos

são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,

que eu, sem saber, tinha tecido,

todo o pudor que desfizeste

como uma teia sem sentido;

todo o pudor que desfizeste

a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,

e que depois voltas a pôr,

eu reconheço os melhores dias

do nosso amor. David Mourão-Ferreira

Page 73: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

E por vezes

E por vezes as noites duram meses

E por vezes os meses oceanos

E por vezes os braços que apertamos

nunca mais são os mesmos

E por vezes

encontramos de nós em poucos meses

o que a noite nos fez em muitos anos

E por vezes fingimos que lembramos

E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos

só o sarro das noites não dos meses

lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos

E por vezes por vezes ah por vezes

num segundo se evolam tantos anos. David Mourão-Ferreira

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A poesia à tua porta | 2015

Para ser grande, sê inteiro: nada

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis, Odes

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A poesia à tua porta | 2015

Urgentemente

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer. Eugénio de Andrade

Page 76: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Tu és a esperança, a madrugada

Tu és a esperança, a madrugada.

Nasceste nas tardes de setembro,

quando a luz é perfeita e mais dourada,

e há uma fonte crescendo no silêncio

da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,

inventei brumas, lagos densos,

e deixei no ar braços suspensos

ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho

meus versos que não podem ser mais nada.

Esperança minha, onde meus olhos bebem,

fundo, como quem bebe a madrugada. Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos

Page 77: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Quando o amor morrer

Ao Manuel Torre do Valle

Quando o amor morrer dentro de ti,

Caminha para o alto onde haja espaço,

E com o silêncio outrora pressentido

Molda em duas colunas os teus braços.

Relembra a confusão dos pensamentos,

E neles ateia o fogo adormecido

Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido

Espalhou generoso aos quatro ventos.

Aos que passarem dá-lhes o abrigo

E o nocturno calor que se debruça

Sobre as faces brilhantes de soluços.

E se ninguém vier, ergue o sudário

Que mil saudosas lágrimas velaram;

Desfralda na tua alma o inventário

Do templo onde a vida ora de bruços,

A Deus e aos sonhos que gelaram. Ruy Cinatti

Page 78: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não. Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo (1958)

Page 79: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Fernando Pessoa

Teu canto justo que desdenha as sombras

Limpo de vida viúvo de pessoa

Teu corajoso ousar não ser ninguém

Tua navegação com bússola e sem astros

No mar indefinido

Teu exacto conhecimento impossessivo.

Criaram teu poema arquitectura

E és semelhante a um deus de quatro rostos

E és semelhante a um deus de muitos nomes

Cariátide de ausência isento de destinos

Invocando a presença já perdida

E dizendo sobre a fuga dos caminhos

Que foste como as ervas não colhidas. Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto

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A poesia à tua porta | 2015

Cesário Verde Quis dizer o mais claro e o mais corrente

Em fala chã e em lúcida esquadria

Ser e dizer na justa luz do dia

Falar claro falar limpo falar rente

Porém nas roucas ruas da cidade

A nítida pupila se alucina

Cães se miram no vidro de retina

E ele vai naufragando como um barco

Amou vinhas e searas e campinas

Horizontes honestos e lavados

Mas bebeu a cidade a longos tragos

Deambulou por praças por esquinas

Fugiu da peste e da melancolia

Livre se quis e não servo dos fados

Diurno se quis - porém a luzidia

Noite assombrou os olhos dilatados

Reflectindo o tremor da luz nas margens

Entre ruelas vê-se ao fundo o rio

Ele o viu com seus olhos de navio

Atentos à surpresa das imagens Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 81: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo o que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê! Fernando Pessoa, Cancioneiro

Page 82: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Tenho dó das estrelas

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço

Das coisas,

De todas as coisas ,

Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão –

Qualquer coisa assim

Como um perdão? Fernando Pessoa

Page 83: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

A Tua Beleza para Mim Está em Existires

Última estrela a desaparecer antes do dia,

Pouso no teu trêmulo azular branco os meus olhos

calmos,

E vejo-te independentemente de mim;

Alegre pelo critério (?) que tenho em Poder ver-te

Sem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.

A tua beleza para mim está em existires

A tua grandeza está em existires inteiramente fora de

mim. Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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A poesia à tua porta | 2015

Alma Perdida

Toda esta noite o rouxinol chorou,

Gemeu, rezou, gritou perdidamente!

Alma de rouxinol, alma da gente,

Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,

Que se fundiu na Dor, suavemente ...

Talvez sejas a alma, a alma doente

Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste ... e eu chorei

Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei

Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,

Que eu pensei que tu eras a minh’alma

Que chorasse perdida em tua voz! ...

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

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A poesia à tua porta | 2015

Às Vezes Tenho Ideias Felizes

Às vezes tenho ideias felizes,

Ideias subitamente felizes, em ideias

E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...

Por que escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui

traçamos?...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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A poesia à tua porta | 2015

Árvores do Alentejo

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

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A poesia à tua porta | 2015

Balada de Neve

Batem leve, levemente, como quem chama por mim...

Será chuva? Será gente?

Gente não é certamente e a chuva não bate assim...

É talvez a ventania, mas há pouco há poucochinho,

Nem uma agulha bulia na quieta melancolia

Dos pinheiros do caminho...

Fui ver. A neve caia do azul cinzento do céu,

Branca e leve branca e fria...

Há quanto tempo a não via! E que saudades, Deus meu!

Olho através da vidraça. Pôs tudo da côr do linho.

Passa gente e quando passa,

Os passos imprime e traça na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais da pobre gente que avança,

E noto, por entre os mais, os traços miniaturais

Duns pezitos de criança...E descalcinhos, doridos...

A neve deixa ainda vê-los, primeiro bem definidos

Depois em sulcos compridos, porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim!

Mas as crianças, Senhor porque lhes dais tanta dor?!

Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza, uma funda turbação

Entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na natureza e cai no meu coração. Ah! Augusto Gil

Page 88: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Camões, Grande Camões, quão Semelhante

Camões, grande Camões, quão semelhante

Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!

Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,

Arrostar co'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,

Da penúria cruel no horror me vejo;

Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,

Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura

Meu fim demando ao Céu, pela certeza

De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...

Se te imito nos transes da Ventura,

Não te imito nos dons da Natureza. Bocage, in 'Rimas'

Page 89: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Chove. É Dia de Natal

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal,

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés. Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Page 90: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Como Te Amo

Como te amo? Não sei de quantos modos vários

Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;

Amo-te com o fervor dos meus sentidos gastos;

Amo-te com o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;

É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;

É grande como os mares altisonos e vastos;

É suave como o odor de lírios solitários.

Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;

Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;

Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

Amor de tal feição que se na vida escura

É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,

Muito maior será na paz da sepultura!

Fernando Pessoa, "Inéditos – Poemas de Lança-Pessoa –

Page 91: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Desejos Vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte

Que ri e canta, a vastidão imensa!

Eu queria ser a Pedra que não pensa,

A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz imensa,

O bem do que é humilde e não tem sorte!

Eu queria ser a árvore tosca e densa

Que ri do mundo vão e até a morte!

Mas o Mar também chora de tristeza ...

As árvores também, como quem reza,

Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,

Tem lágrimas de sangue na agonia!

E as Pedras ... essas ... pisa-as toda a gente! ...

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

Page 92: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Estou Cansado

Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar

cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto —

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente; eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho

visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer

coisa. Álvaro de Campos, in "Poemas"

Heterónimo de Fernando Pessoa

Page 93: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Foram Breves e Medonhas as Noites de Amor

foram breves e medonhas as noites de amor

e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo

habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu

sem água e sem luz que lhe mostrasse como era

ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo

na procura incessante doutra amizade

que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou

caminhou lentamente por cima da idade

tão longe quanto pôde

onde era possível inventar outra infância

que não lhe ferisse o coração

Al Berto, “O Medo”

Page 94: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Eu Sou do Tamanho do que Vejo

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no

Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra

terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para

longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os

nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é

ver.

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema VII"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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A poesia à tua porta | 2015

Já Sobre o Coche de Ébano Estrelado

Já sobre o coche de ébano estrelado,

Deu meio giro a Noite escura e feia,

Que profundo silêncio me rodeia

Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,

O Tejo adormeceu na lisa areia;

Nem o mavioso rouxinol gorjeia,

Nem pia o mocho, às trevas acostumado.

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte

Que o fio com que está mih'alma presa

À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,

Porque a meus olhos se afigura a Morte

No silêncio total da Natureza.

Bocage, in 'Rimas'

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A poesia à tua porta | 2015

Fraternidade

Não me dói nada meu particular.

Peno cilícios da comunidade.

Água dum rio doce, entrei no mar

E salguei-me no sal da imensidade.

Dei o sossego às ondas

Da multidão.

E agora tenho chagas

No coração

E uma angústia secreta.

Mas não podia, lírico poeta,

Ficar, de avena, a exercitar o ouvido,

Longe do mundo e longe do ruído.

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

Page 97: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Lágrimas

Ela chorava muito e muito, aos cantos,

Frenética, com gestos desabridos;

Nos cabelos, em ânsias desprendidos

Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,

Deitado no sofá, pés aquecidos,

Ao sentir-lhe os soluços consumidos,

Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos:

- "Tu pareces nascida da rajada,

"Tens despeitos raivosos, resolutos:

"Chora, chora, mulher arrenegada;

"Lagrimeja por esses aquedutos...

-"Quero um banho tomar de água salgada."

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

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A poesia à tua porta | 2015

Liberdade Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não fazer! Ler é maçada, Estudar é nada. Sol doira Sem literatura O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como o tempo não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D.Sebastião, Quer venha ou não! Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca. Mais que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Page 99: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Page 100: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Não Digas Nada!

Não digas nada!

Nem mesmo a verdade

Há tanta suavidade em nada se dizer

E tudo se entender —

Tudo metade

De sentir e de ver...

Não digas nada

Deixa esquecer

Talvez que amanhã

Em outra paisagem

Digas que foi vã

Toda essa viagem

Até onde quis

Ser quem me agrada...

Mas ali fui feliz

Não digas nada. Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Page 101: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Memória Consentida Neste lugar sem tempo nem memória, nesta luz absoluta ou absurda, ou só escuridão total, relances há em que creio, ou se me afigura, ter tido, alguma vez, passado com biografia, onde se misturam datas, nomes, caras, paisagens que, de tão rápidas, me deixam apenas a lembrança agoniada de não mais poder lembrá-las. Sobra, por vezes, um estilhaço ou fragmento, como o latido de um cão na tarde dolente e comprida de uma remota infância. Ou o indistinto murmúrio de vozes junto de um rio que, como as vozes, não existe já quando para ele volvo, surpreso, o olhar cansado. Insidiosas, rangem tábuas no soalho, ou é o sussurro brando do vento no zinco ondulado, na fronde umbrosa dos eucaliptos de perfil no horizonte, com o mar ao fundo. Que soalho, de que casa, que vento em que paragens, onde o mar ao longe que, entrevistos, os não vejo já ou, sequer, recordo na brevidade do instante cruel? De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem provêm tais sombras melancólicas, ferindo de indecifráveis avisos este lugar em que, não sendo consentido o coração, se não consentem tempo e memória? Pausa ou pena, a seu oculto propósito há-de sempre opor-se, lenta, a inexorável asfixia

Page 102: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

desta luz absurda, ou só escuridão total. Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"

Page 103: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Não me Importo com as Rimas

Não me importo com as rimas. Raras vezes

Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.

Penso e escrevo como as flores têm cor

Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-

me

Porque me falta a simplicidade divina

De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,

Comovo-me como a água corre quando o chão é

inclinado,

E a minha poesia é natural corno o levantar-se

vento...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XIV"

Heterónimo de Fernando Pessoa

Page 104: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Não Estou Pensando em Nada

Não estou pensando em nada

E essa coisa central, que é coisa nenhuma,

É-me agradável como o ar da noite,

Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada

É ter a alma própria e inteira.

Pensar em nada

É viver intimamente

O fluxo e o refluxo da vida...

Não estou pensando em nada.

E como se me tivesse encostado mal.

Uma dor nas costas, ou num lado das costas,

Há um amargo de boca na minha alma:

É que, no fim de contas,

Não estou pensando em nada,

Mas realmente em nada,

Em nada...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

Heterónimo de Fernando Pessoa

Page 105: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Não Tenho Pressa

Não tenho pressa. Pressa de quê?

Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.

Ter pressa é crer que a gente passa adiante das

pernas,

Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.

Não; não sei ter pressa.

Se estendo o braço, chego exactamente aonde o

meu braço chega -

Nem um centímetro mais longe.

Toco só onde toco, não aonde penso.

Só me posso sentar aonde estou.

E isto faz rir como todas as verdades absolutamente

verdadeiras,

Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre

noutra coisa,

E vivemos vadios da nossa realidade.

E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Heterónimo de Fernando Pessoa

Page 106: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

No Fim do Verão

No fim do verão as crianças voltam,

correm no molhe, correm no vento.

Tive medo que não voltassem.

Porque as crianças às vezes não

regressam. Não se sabe porquê

mas também elas

morrem.

Elas, frutos solares:

laranjas romãs

dióspiros. Sumarentas

no outono. A que vive dentro de mim

também voltou; continua a correr

nos meus dias. Sinto os seus olhos

rirem; seus olhos

pequenos brilhar como pregos

cromados. Sinto os seus dedos

cantar com a chuva.

A criança voltou. Corre no vento.

Eugénio de Andrade, in 'O Sal da Língua'

Page 107: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Noites Gélidas

Merina

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,

Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,

Mais alva que o luar de inverno que me esfria,

Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,

Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,

Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia

De uma ovelhinha branca, ingênua e delicada.

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

Page 108: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

O Poema

O poema não é o canto

que do grilo para a rosa cresce.

O poema é o grilo

é a rosa

e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui

uma determinação

na fonte donde ele flui

e naquilo que descreve.

O poema é o que no homem

para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras

e a poesia transcendê-las

na já longínqua noção

de descrevê-las.

E essa própria noção é só

uma saudade que se desvanece

na poesia. Pura intenção

de cantar o que não conhece. Natália Correia, in "Poemas (1955)"

Page 109: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Os Amigos

Os amigos amei

despido de ternura

fatigada;

uns iam, outros vinham,

a nenhum perguntava

porque partia,

porque ficava;

era pouco o que tinha,

pouco o que dava,

mas também só queria

partilhar

a sede de alegria —

por mais amarga.

Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

Page 110: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Paz

Irreprimível natureza

exacta medida do sem-fim

não atinjas outras distâncias

que existem dentro de mim.

Que os meus outros rostos não sejam

o instável pretexto da minha essência.

Possam meus rios confluir

para o mar duma só consciência.

Quero que suba à minha fronte

a serenidade desta condição:

harmonia exterior à estátua

que sabe que não tem coração.

Natália Correia, in "Poemas (1955)"

Page 111: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Poema “Lágrima de preta” Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

António Gedeão

Page 112: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Quem Somos

Quem somos, senão o que imperfeitamente

sabemos de um passado de vultos

mal recortados na neblina opaca,

imprecisos rostos mentidos nas páginas

antigas de tomos cujas palavras

não são, de certo, as proferidas,

ou reproduzem sequer actos e gestos

cometidos. Ergue-se a lâmina:

metal e terra conhecem o sangue

em fronteiras e destinos pouco

a pouco corrigidos na memória

indecifrável das areias.

A lápide, que nomeia, não descreve

e a história que o historia,

eco vário e distorcido, é já

diversa e a si própria se entretece

na mortalha de conjecturados perfis.

Amanhã seremos outros. Por ora

nada somos senão o imperfeito

limbo da legenda que seremos. Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"

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A poesia à tua porta | 2015

Poema Involuntário

Decididamente a palavra

quer entrar no poema e dispõe

com caligráfica raiva

do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste

informal em teus olhos talvez

mas perdido se em precisa palavra

significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem

se espalhando avencas no travesseiro

que se eu digo prodigiosos cabelos

as insólitas flores que se abrem

não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar

o pinheiro a nuvem valem a pena

e é assim que sem poetizar

se faz a si mesmo o poema.

Natália Correia, in "O Vinho e a Lira"

Page 114: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Quem me Dera que a Minha Vida Fosse um Carro de Bois

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois

Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,

E que para de onde veio volta depois

Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...

Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas

E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XVI"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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A poesia à tua porta | 2015

São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos, A navegar num doce mar de mosto, Capitão no seu posto De comando, S. Leonardo vai sulcando As ondas Da eternidade, Sem pressa de chegar ao seu destino. Ancorado e feliz no cais humano, É num antecipado desengano Que ruma em direcção ao cais divino. Lá não terá socalcos Nem vinhedos Na menina dos olhos deslumbrados; Doiros desaguados Serão charcos de luz Envelhecida; Rasos, todos os montes Deixarão prolongar os horizontes Até onde se extinga a cor da vida. Por isso, é devagar que se aproxima Da bem-aventurança. É lentamente que o rabelo avança Debaixo dos seus pés de marinheiro. E cada hora a mais que gasta no caminho É um sorvo a mais de cheiro A terra e a rosmaninho!

Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

Rumor dos Fogos hoje à noite avistei sobre a folha de papel o dragão em celulóide da infância escuro como o interior polposo das cerejas antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos... dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens podia beber a humidade aérea do musgo derramar sangue nos dedos magoados foi há muito tempo quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever o mundo reduzia-se a um berlinde e as mãos eram pequenas desvendavam os nocturnos segredos dos pinhais não quero mais perceber as palavras nem os corpos deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras prossigo caminho com estes ossos cor de malva som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono desta obra que fica por construir... o receio de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar ficou-me esta mão com sua sombra de terra sobre o papel branco... como é louca esta mão tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas

Al Berto, in 'O Medo'

Page 117: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Se é Doce

Se é doce no recente, ameno Estio

Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,

E, lambendo as areias e os verdores,

Mole e queixoso deslizar-se o rio;

Se é doce no inocente desafio

Ouvirem-se os voláteis amadores,

Seus versos modulando e seus ardores

Dentre os aromas de pomar sombrio;

Se é doce mares, céus ver anilados

Pela quadra gentil, de Amor querida,

Que esperta os corações, floreia os prados,

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,

Dar-me em teus brandos olhos desmaiados.

Morte, morte de amor, melhor que a vida.

Bocage, in 'Sonetos'

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A poesia à tua porta | 2015

Se um Dia a Juventude Voltasse se um dia a juventude voltasse na pele das serpentes atravessaria toda a memória com a língua em teus cabelos dormiria no sossego da noite transformada em pássaro de lume cortante como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras porque só aquele que nada possui e tudo partilhou pode devassar a noite doutros corpos inocentes sem se ferir no esplendor breve do amor depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos mas aconteça o que tem de acontecer não estou triste não tenho projectos nem ambições guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos espalho a saliva das visões pela demorada noite onde deambula a melancolia lunar do corpo mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim com suas raízes de escamas em forma de coração e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu humilde e cansado piloto que só de te sonhar me morro de aflição

Al Berto, in 'Rumor dos Fogos'

Page 119: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Tenho uma Grande Constipação

Tenho uma grande constipação,

E toda a gente sabe como as grandes constipações

Alteram todo o sistema do universo,

Zangam-nos contra a vida,

E fazem espirrar até à metafísica.

Tenho o dia perdido cheio de me assoar.

Dói-me a cabeça indistintamente.

Triste condição para um poeta menor!

Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.

O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!

As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.

Não estarei bem se não me deitar na cama.

Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!

Preciso de verdade e da aspirina. Álvaro de Campos, in "Poemas"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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A poesia à tua porta | 2015

Soneto

Não pode Amor por mais que as falas mude

exprimir quanto pesa ou quanto mede.

Se acaso a comoção falar concede

é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,

magoado parecer aos olhos pede,

pois quando a fala a tudo o mais excede

não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,

também sofro do mal sem saber onde

busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,

em verdade, em beleza, em doce enleio?

Olha bem os meus olhos, e responde.

António Gedeão, in “Poesias Completas”

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A poesia à tua porta | 2015

Villa Dei Misteri Tiro os óculos e recua o mundo: torno à mais árdua intimidade. Diónisos ou Penteus, antes do sangue pesa já a vinha sobre as colinas de Outubro. As bodas místicas do deus e da noviça, meu destino branco, minha face nocturna, não os preserva a ciência dos três livros, nem figurariam, por certo, na cinza dos restantes. Sei, entre névoas e azul, de uma biblioteca deserta, cujas estantes, por desnudas, não enjeitam a mais discreta sabedoria. Em sua transparência se inscrevem, como a luz à luz se sobrepõe. Trago na pele e nos olhos, sobre a língua e o palato, a memória escaldante de uma mulher. Devora-me um álcool lento e sedicioso. De todas as mortes sofridas, só esta temo e não desejo.

Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"

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A poesia à tua porta | 2015

Um Dia de Chuva

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.

Ambos existem; cada um como é.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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A poesia à tua porta | 2015

O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante

O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, rota a armadura...

E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...

Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental, in "Sonetos"

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A poesia à tua porta | 2015

Último Poema

É Natal, nunca estive tão só.

Nem sequer neva como nos versos

do Pessoa ou nos bosques

da Nova Inglaterra.

Deixo os olhos correr

entre o fulgor dos cravos

e os dióspiros ardendo na sombra.

Quem assim tem o verão

dentro de casa

não devia queixar-se de estar só,

não devia.

Eugénio de Andrade, in 'Rente ao Dizer'

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A poesia à tua porta | 2015

Portugal

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,

E torno mais real o rosto que te dou.

Mostro aos olhos que não te desfigura

Quem te desfigurou.

Criatura da tua criatura,

Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil

Desenhado no mar.

Ondulo e permaneço.

Cavo, remo, imagino,

E descubro na bruma o meu destino

Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,

Surdo às razões do tempo e da fortuna,

Achar sem nunca achar o que procuro,

Exilado

Na gávea do futuro,

Mais alta ainda do que no passado.

Miguel Torga, in 'Diário X'

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A poesia à tua porta | 2015

Às Vezes Tenho Ideias Felizes

Às vezes tenho ideias felizes,

Ideias subitamente felizes, em ideias

E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...

Por que escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui

traçamos?...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

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A poesia à tua porta | 2015

Fado Português O Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava. Ai, que lindeza tamanha, meu chão , meu monte, meu vale, de folhas, flores, frutas de oiro, vê se vês terras de Espanha, areias de Portugal, olhar ceguinho de choro. Na boca dum marinheiro do frágil barco veleiro, morrendo a canção magoada, diz o pungir dos desejos do lábio a queimar de beijos que beija o ar, e mais nada, que beija o ar, e mais nada. Mãe, adeus. Adeus, Maria. Guarda bem no teu sentido que aqui te faço uma jura: que ou te levo à sacristia, ou foi Deus que foi servido dar-me no mar sepultura. Ora eis que embora outro dia, quando o vento nem bulia e o céu o mar prolongava, à proa de outro veleiro velava outro marinheiro que, estando triste, cantava.

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'

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A poesia à tua porta | 2015

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A poesia à tua porta | 2015

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela

Amo-se assim, desconhecida e obscura

Tuba de algo clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela,

E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac, in "Poesias"

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A poesia à tua porta | 2015

Os Amigos

Os amigos amei

despido de ternura

fatigada;

uns iam, outros vinham,

a nenhum perguntava

porque partia,

porque ficava;

era pouco o que tinha,

pouco o que dava,

mas também só queria

partilhar

a sede de alegria —

por mais amarga Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

Page 131: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Pátria Por um país de pedra e vento duro Por um país de luz perfeita e clara Pelo negro da terra e pelo branco do muro Pelos rostos de silêncio e de paciência Que a miséria longamente desenhou Rente aos ossos com toda a exactidão Dum longo relatório irrecusável E pelos rostos iguais ao sol e ao vento E pela limpidez das tão amadas Palavras sempre ditas com paixão Pela cor e pelo peso das palavras Pelo concreto silêncio limpo das palavras Donde se erguem as coisas nomeadas Pela nudez das palavras deslumbradas - Pedra rio vento casa Pranto dia canto alento Espaço raiz e água Ó minha pátria e meu centro Me dói a lua me soluça o mar E o exílio se inscreve em pleno tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'

Page 132: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Anoitecer

A luz desmaia num fulgor d'aurora,

Diz-nos adeus religiosamente...

E eu, que não creio em nada, sou mais crente

Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora

Tenho bênçãos d'amor pra toda a gente!

Como eu sou pequenina e tão dolente

No amargo infinito desta hora!

Horas tristes que são o meu rosário...

Ó minha cruz de tão pesado lenho!

Meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:

Saudades de saudades que não tenho...

Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

Florbela Espanca

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A poesia à tua porta | 2015

Mãos feridas na porta dum silêncio

Vida que às costas me levas

porque não dás um corpo às tuas trevas?

Porque não dás um som àquela voz

que quer rasgar o teu silêncio em nós?

Porque não dás à pálpebra que pede

aquele olhar que em ti se perde?

Porque não dás vestidos à nudez

que só tu vês?

Natália Correia

Poesia Completa

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A poesia à tua porta | 2015

A Invisibilidade de Deus dizem que em sua boca se realiza a flor outros afirmam: a sua invisibilidade é aparente mas nunca toquei deus nesta escama de peixe onde podemos compreender todos os oceanos nunca tive a visão de sua bondosa mão o certo é que por vezes morremos magros até ao osso sem amparo e sem deus apenas um rosto muito belo surge etéreo na vasta insónia que nos isolou do mundo e sorri dizendo que nos amou algumas vezes mas não é o rosto de deus nem o teu nem aquele outro que durante anos permaneceu ausente e o tempo revelou não ser o meu

Al-Berto, O Medo

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A poesia à tua porta | 2015

Estátua

Cansei-me de tentar o teu segredo:

No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,

O meu olhar quebrei, a debatê-lo,

Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo

E minha obsessão! Para bebê-lo

Fui teu lábio oscular, num pesadelo,

Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,

Esfriou sobre mármore correto

Desse entreaberto lábio gelado:

Desse lábio de mármore, discreto,

Severo como um túmulo fechado,

Sereno como um pélago quieto.

Camilo Pessanha

Clepsidra

Page 136: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Ode à Paz Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,

Pela limpeza do vento, pelos atos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego

dos pastos,

Pela exatidão das rosas, pela Sabedoria,

Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

Pelos aromas maduros de suaves outonos,

Pela futura manhã dos grandes transparentes,

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

Natália Correia

Page 137: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Um poema exemplar Um poema exemplar: em linhas como: «Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta, Saber que existe o mar e existem praias nuas, Montanhas sem nome e planícies mais vastas Que o mais vasto desejo, E eu estou em ti fechada e apenas vejo Os muros e as paredes e não vejo Nem o crescer do mar nem o mudar das luas. Saber que tomas em ti a minha vida E que arrastas pela sombra das paredes A minha alma que fora prometida Às ondas brancas e às florestas verdes»

Sophia Andresen

«Cidade», Livro Sexto

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A poesia à tua porta | 2015

A verdadeira liberdade A liberdade, sim, a liberdade! A verdadeira liberdade! Pensar sem desejos nem convicções. Ser dono de si mesmo sem influência de romances! Existir sem Freud nem aeroplanos, Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço! A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida! Como o luar quando as nuvens abrem A grande liberdade cristã da minha infância que rezava Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim... A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente, A noção jurídica da alma dos outros como humana, A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo! Passos todos passinhos de criança... Sorriso da velha bondosa... Apertar da mão do amigo [sério?]... Que vida que tem sido a minha! Quanto tempo de espera no apeadeiro! Quanto viver pintado em impresso da vida! Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade, Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote Da casa do campo da minha velha infância... Eu bebia e ele chiava, Eu era fresco e ele era fresco, E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre. Que é do púcaro e da inocência? Que é de quem eu deveria ter sido? E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

Page 139: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Álvaro de Campos, in "Poemas (Inéditos)"

Heterónimo de Fernando Pessoa

Page 140: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Revolução

Como casa limpa

Como chão varrido

Como porta aberta

Como puro início

Como tempo novo

Sem mancha nem vício

Como a voz do mar

Interior de um povo

Como página em branco

Onde o poema emerge

Como arquitetura

Do homem que ergue

Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

Page 141: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Balada de Lisboa Caravelas te levaram Caravelas te perderam Esta é a cidade onde chegas Nas manhãs de tua ausência Tão perto de mim tão longe Tão fora de seres presente Esta e a cidade onde estás Como quem não volta mais Tão dentro de mim tão que Nunca ninguém por ninguém Em cada dia regressas Em cada dia te vais Em cada rua me foges Em cada rua te vejo Tão doente da viagem Teu rosto de sol e Tejo Esta é a cidade onde moras Como quem está de passagem Às vezes pergunto se Às vezes pergunto quem Esta é a cidade onde estás Com quem nunca mais vem Tão longe de mim tão perto Ninguém assim por ninguém

Manuel Alegre, in "Babilónia"

Page 142: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

SAGRES

Vinha de longe o mar...

Vinha de longe, dos confins do medo...

Mas vinha azul e brando, a murmurar

Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.

E a terra ouvia, de perfil agudo,

A confidencial revelação

Que iluminava tudo

Que fora bruma na imaginação.

Era o resto do mundo que faltava

(Porque faltava mundo!).

E o agudo perfil mais se aguçava,

E o mar jurava cada vez mais fundo.

Sagres sagrou então a descoberta

Por descobrir:

As duas margens de certeza incerta

Teriam de se unir!

Miguel Torga

Page 143: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Na orla do mar

Na orla do mar,

no rumor do vento,

onde esteve a linha

pura do teu rosto

ou só pensamento

- e mora, secreto,

intenso, solar,

todo o meu desejo -

aí vou colher

a rosa e a palma.

Onde a pedra é flor,

onde o corpo é alma.

Eugénio de Andrade

Page 144: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Tome-se um poeta não cansado,

Tome-se um poeta não cansado,

Uma nuvem de sonho e uma flor ,

Três gotas de tristeza , um tom dourado,

Uma veia sangrando , de pavor.

Quando a massa já ferve e se retorce

Deita-se a luz dum corpo de mulher.

De uma pitada de morte se reforce,

Que um amor de poeta ... assim requer !

José Saramago, Os Poemas Possíveis

Page 145: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

SALMO

A vida

é o bago de uva

macerado

nos lagares do mundo

e aqui se diz

para proveito dos que vivem

que a dor

é vã

e o vinho breve.

Carlos de Oliveira

Trabalho Poético

Page 146: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Um Rosto

Apenas uma coisa inteiramente transparente:

o céu, e por baixo dele a linha obscura do horizonte

nos teus olhos, que pude ver ainda

através de pálpebras semicerradas, pestanas

húmidas

da geada matinal, uma névoa de palavras

murmuradas

num silêncio de hesitações. Há quanto tempo,

tudo isto? Abro o armário onde o tempo antigo

se enche de bolor e fungos; limpo os papéis,

cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, foto-

grafias cuja cor desaparece, substituindo os corpos

por manchas vagas como aparições; e sinto, eu

próprio, que uma parte da minha vida se apaga

com esses restos.

Nuno Júdice

Page 147: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Gosto das mulheres que envelhecem,

Gosto das mulheres que envelhecem,

com a pressa das suas rugas, os cabelos

caídos pelos ombros negros do vestido,

o olhar que se perde na tristeza

dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se

nos cantos das salas, olham para fora,

para o átrio que não vejo, de onde estou,

embora adivinhe aí a presença de

outras mulheres, sentadas em bancos

de madeira, folheando revistas

baratas. As mulheres que envelhecem

sentem que as olho, que admiro os seus gestos

lentos, que amo o trabalho subterrâneo

do tempo nos seus seios. Por isso esperam

que o dia corra nesta sala sem luz,

evitam sair para a rua, e dizem baixo,

por vezes, essa elegia que só os seus lábios

podem cantar.

Nuno Júdice

Page 148: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

O paraíso terrestre é uma flor verde.

O paraíso terrestre é uma flor verde.

As árvores abrem-se ao meio.

O que é sucessivo perde-se.

Se o tempo modifica os seres e os objetos

eu sinto a diferença e gasto-me.

O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada

uma folha branca à transparência da lâmpada.

Soam então os barulhos. Soam

de dentro das janelas,

de dentro das caixas fechadas há mais tempo,

de dentro das chávenas meias de café.

É tarde e és tu,

acima de tudo,

entre a manhã e as árvores,

à luz dos olhos,

à luz só do límpido olhar. Nuno Júdice

Page 149: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Porque o Povo Diz Verdades Porque o povo diz verdades, Tremem de medo os tiranos, Pressentindo a derrocada Da grande prisão sem grades Onde há já milhares de anos A razão vive enjaulada. Vem perto o fim do capricho Dessa nobreza postiça, Irmã gémea da preguiça, Mais asquerosa que o lixo. Já o escravo se convence A lutar por sua prol Já sabe que lhe pertence No mundo um lugar ao sol. Do céu não se quer lembrar, Já não se deixa roubar, Por medo ao tal satanás, Já não adora bonecos Que, se os fazem em canecos, Nem dão estrume capaz. Mostra-lhe o saber moderno Que levou a vida inteira Preso àquela ratoeira Que há entre o céu e o inferno.

António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."

Page 150: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Há Palavras Que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca,

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto,

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas, inesperadas

Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído,

No papel abandonado) Alexandre O'Neill

Page 151: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Meus olhos que por alguém

Meus olhos que por alguém

Deram lágrimas sem fim

Já não choram por ninguém

- Basta que chorem por mim

Arrependidos e olhando

A vida como ela é,

Meus olhos vão conquistando

Mais fadiga e menos fé.

Mas se as coisas são assim,

Chorar alguém - que loucura!

- Basta que eu chore por mim. António Botto

Page 152: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Noite de Abril

Hoje, noite de Abril, sem lua,

A minha rua

É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura

E bailar o vento leste

A noite de hoje veste

As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.

Como se sempre nela houvesse este perfume

De vento leste e Primavera,

A sombra dos muros espera

Alguém que ela conhece.

E às vezes, o silêncio estremece

Como se fosse a hora de passar alguém

Que só hoje não vem. Sophia de Mello Breyner Andresen

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A poesia à tua porta | 2015

MOTE — Onde nasceu a ciência?... — Onde nasceu o juízo?... Calculo que ninguém tem Tudo quanto lhe é preciso! GLOSAS Onde nasceu o autor Com forças p'ra trabalhar E fazer a terra dar As plantas de toda a cor? Onde nasceu tal valor?... Seria uma força imensa E há muita gente que pensa Que o poder nos vem de Cristo; Mas antes de tudo isto, Onde nasceu a ciência?... De onde nasceu o saber?... Do homem, naturalmente. Mas quem gerou tal vivente Sem no mundo nada haver? Gostava de conhecer Quem é que formou o piso Que a todos nós é preciso Até o mundo ter fim... Não há quem me diga a mim Onde nasceu o juízo?... Sei que há homens educados Que tiveram muito estudo. Mas esses não sabem tudo, Também vivem enganados; Depois dos dias contados Morrem quando a morte vem. Há muito quem se entretém A ler um bom dicionário... Mas tudo o que é necessário Calculo que ninguém tem.• Ao primeiro homem sabido, Quem foi que lhe deu lições P'ra ter habilitações E ser assim instruído?... Quem não estiver convencido Concorde com este aviso: — Eu nunca desvalorizo Aquel' que saber não tem, Porque não nasceu ninguém

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A poesia à tua porta | 2015

Com tudo quanto é preciso! António Aleixo

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A poesia à tua porta | 2015

A Verdadeira Liberdade A liberdade, sim, a liberdade! A verdadeira liberdade! Pensar sem desejos nem convicções. Ser dono de si mesmo sem influência de romances! Existir sem Freud nem aeroplanos, Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!• A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida! Como o luar quando as nuvens abrem A grande liberdade cristã da minha infância que rezava Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim... A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente, A noção jurídica da alma dos outros como humana, A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!• Passos todos passinhos de criança... Sorriso da velha bondosa... Apertar da mão do amigo [sério?]... Que vida que tem sido a minha! Quanto tempo de espera no apeadeiro! Quanto viver pintado em impresso da vida!• Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade, Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote Da casa do campo da minha velha infância... Eu bebia e ele chiava, Eu era fresco e ele era fresco, E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre. Que é do púcaro e da inocência? Que é de quem eu deveria ter sido? E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?•

Álvaro de Campos, in "Poemas (Inéditos) "

Heterónimo de Fernando Pessoa

Page 156: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

O silêncio

Quando a ternura

parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,

inda demora,

quando azuis irrompem

os teus olhos

e procuram

nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras

desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Page 157: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

O sorriso

Creio que foi o sorriso,

o sorriso foi quem abriu a porta.

Era um sorriso com muita luz

lá dentro, apetecia

entrar nele, tirar a roupa, ficar

nu dentro daquele sorriso.

Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Page 158: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Estrela

Estrela que me nasceste

Quando a vista mal te alcança

Nessa abóbada celeste,

Onde a nossa alma descansa

A sua última esperança...

Estrela que me nasceste

Quando a vista mal te alcança!

Antes nascesses mais cedo,

Estrela da madrugada!

E não já noite cerrada...

Que até no céu mete medo

Ver essa estrela isolada...

Antes nascesses mais cedo.

Estrela da madrugada! João de Deus

Page 159: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Canção de primavera Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores, Pois que Maio chegou, Revesti-o de clâmides de cores! Que eu, dar, flor, já não dou. Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves, Acordai desse azul, calado há tanto, As infinitas naves! Que eu, cantar, já não canto. Eu, invernos e outonos recalcados Regelaram meu ser neste arrepio... Aquece tu, ó sol, jardins e prados! Que eu, é de mim o frio. Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio, Vem com tua paixão, Prostrar a terra em cálido desmaio! Que eu, ter Maio, já não. Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto; Ter sol, não tenho; e amar... Mas, se não amo, Como é que, Maio em flor, te chamo tanto, E não por mim assim te chamo?

José Régio, Filho do Homem

Page 160: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Lágrima de preta Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

António Gedeão

Page 161: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto

E cobertos de lama, caminhamos

Por cidades,

Por nuvens

E desertos.

Ao vento semeamos o que os homens não querem.

Ao vento arremessamos as verdades que doem

E as palavras que ferem.

Da noite que nos gera, e nós amamos,

Só os astros trazemos.

A treva ficou onde

Todos guardamos a certeza oculta

Do que nós não dizemos,

Mas que somos. Ary dos Santos

Page 162: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Floriram por engano as rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas

No inverno: veio o vento desfolhá-las...

Em que cismas, meu bem? Porque me calas

As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...

Onde vamos, alheio o pensamento,

De mãos dadas? Teus olhos, que num momento

Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,

Surda, em triunfo, pétalas, de leve

Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!

Quem as esparze - quanta flor! - do céu,

Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos? Camilo Pessanha

Page 163: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

O corvo e a raposa

É fama que estava o corvo Sobre uma árvore pousado E que no sôfrego bico Tinha um queijo atravessado. Pelo faro, àquele sítio Veio a raposa matreira, A qual, pouco mais ou menos, Lhe falou desta maneira: - Bons dias, meu lindo corvo; És glória desta espessura; És outra fénix, se acaso Tens a voz como a figura. A tais palavras, o corvo, Com louca, estranha afouteza, Por mostrar que é bom solista Abre o bico e solta a presa. Lança-lhe a mestra o gadanho E diz: - Meu amigo, aprende Como vive o lisonjeiro À custa de quem o atende. Esta lição vale um queijo; Tem destas para teu uso. Rosna então consigo o corvo Envergonhado e confuso: - Velhaca, deixou-me em branco; Fui tolo em fiar-me dela; Mas este logro me livra De cair noutra esparrela.

Bocage

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A poesia à tua porta | 2015

Estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.

Aqui chegado até eu venho ver se me apareço

e o fato com que virei preocupa-me, pois chove

miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada

De outras, esperei-me eu e não apareci

embora bem procurado entre os mais que

passavam.

Se algum de nós vier hoje é já bastante

como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça Mário Cesariny

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A poesia à tua porta | 2015

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

( Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura.

O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

Claridade Clareou.

Vieram pombas e sol,

e, de mistura com Sonho,

pousou tudo num telhado...

(Eu, destas grades, a ver,

desconfiado.)

Depois,

uma rapariga loira,

(era loira)

num mirante

estendeu roupa num cordel:

Roupa branca, remendada,

que se via

que era de gente lavada,

e só por isso aquecia...

E não foi preciso mais:

Logo a alma

clareou por sua vez.

Logo o coração parado

bateu a grande pancada

da vida com sol e pombas

e roupa branca, lavada. Miguel Torga

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A poesia à tua porta | 2015

A paz sem vencedor e sem vencidos Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Que o tempo que nos deste seja um novo Recomeço de esperança e de justiça. Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Erguei o nosso ser à transparência Para podermos ler melhor a vida Para entendermos vosso mandamento Para que venha a nós o vosso reino Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Fazei Senhor que a paz seja de todos Dai-nos a paz que nasce da verdade Dai-nos a paz que nasce da justiça Dai-nos a paz chamada liberdade Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen

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A poesia à tua porta | 2015

Mar

Mar, metade da minha alma é feita de maresia

Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,

Que há no vasto clamor da maré cheia,

Que nunca nenhum bem me satisfez.

E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia

Mais fortes se levantam outra vez,

Que após cada queda caminho para a vida,

Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal

É porque também tu revoltado e teatral

Fazes soar a tua dor pelas alturas.

E se antes de tudo odeio e fujo

O que é impuro, profano e sujo,

É só porque as tuas ondas são puras.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Canção duma sombra

Ah, se não fosse a névoa da manhã E a velhinha janela, onde me vou Debruçar, para ouvir a voz das cousas, Eu não era o que sou. Se não fosse esta fonte, que chorava, E como nós cantava e que secou... E este sol, que eu comungo, de joelhos, Eu não era o que sou. Ah, se não fosse este luar, que chama Os espectros à vida, e se infiltrou, Como fluido mágico, em meu ser, Eu não era o que sou. E se a estrela da tarde não brilhasse; E se não fosse o vento, que embalou Meu coração e as nuvens, nos seus braços, Eu não era o que sou. Ah, se não fosse a noite misteriosa Que meus olhos de sombras povoou, E de vozes sombrias meus ouvidos, Eu não era o que sou. Sem esta terra funda e fundo rio, Que ergue as asas e sobe, em claro voo; Sem estes ermos montes e arvoredos, Eu não era o que sou.

Teixeira de Pascoaes

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A poesia à tua porta | 2015

As palavras

São como cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras? Eugénio de Andrade

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A poesia à tua porta | 2015

Tu és a esperança, a madrugada

Tu és a esperança, a madrugada.

Nasceste nas tardes de setembro,

quando a luz é perfeita e mais dourada,

e há uma fonte crescendo no silêncio

da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,

inventei brumas, lagos densos,

e deixei no ar braços suspensos

ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho

meus versos que não podem ser mais nada.

Esperança minha, onde meus olhos bebem,

fundo, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade

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A poesia à tua porta | 2015

Arma secreta

Tenho uma arma secreta

ao serviço das nações.

Não tem carga nem espoleta

mas dispara em linha recta

mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,

nem Snark ou outros que tais.

É coisa muito melhor

que todo o vasto teor

dos Cabos Canaverais.

A potência destinada

às rotações da turbina

não vem da nafta queimada,

nem é de água oxigenada

nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,

em alerta permanente,

espera o sinal da partida.

Podia chamar-se VIDA.

Chama-se AMOR, simplesmente. António Gedeão

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A poesia à tua porta | 2015

Nirvana

Para além do Universo luminoso,

Cheio de formas, de rumor, de lida,

De forças, de desejos e de vida,

Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso

Vem ali expirar, esmaecida...

Numa imobilidade indefinida

termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,

emerge a custo desse mundo morto

E torna a olhar as coisas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,

Só vê com tédio, em tudo quanto fita,

A ilusão e o vazio universais. Antero de Quental

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A poesia à tua porta | 2015

Árvores do Alentejo

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a benção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água! Florbela Espanca

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A poesia à tua porta | 2015

Barca bela Pescador da barca bela,

Onde vais pescar com ela.

Que é tão bela,

Oh pescador?

Não vês que a última estrela

No céu nublado se vela?

Colhe a vela,

Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,

Que a sereia canta bela...

Mas cautela,

Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,

Que perdido é remo e vela

Só de vê-la,

Oh pescador.

Pescador da barca bela,

Inda é tempo, foge dela

Foge dela

Oh pescador! Almeida Garrett

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Sete anos de pastor Jacob servia

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

passava, contentando se com vê la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,

dizendo:-Mais servira, se não fora

para tão longo amor tão curta a vida.

Luís de Camões

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Aqueles claros olhos que chorando

Aqueles claros olhos que chorando;

Ficavam, quando deles me partia,

Agora que farão? Quem mo diria?

Se porventura estão de mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando

Deles me vim tão longe de alegria?

Ou se estarão aquele alegre dia;

Que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?

Se acharão num momento muitos anos?

Se falarão com as aves e cos ventos?

Oh! Bem-venturados fingimentos,

Que nesta ausência tão doces enganos

Sabeis fazer aos tristes pensamentos! Luís de Camões

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Horas breves de meu contentamento

Horas breves de meu contentamento

Nunca me pareceu quando vos tinha,

Que vos visse mudadas tão asinha

Em tão compridos anos de tormento.

As altas tôrres, que fundei no vento,

Levou, em fim, o vento que as sostinha;

Do mal que me ficou a culpa é minha,

Pois sôbre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com brandas mostras aparece:

Tudo possível faz, tudo assegura;

Mas logo no melhor desaparece.

Estranho mal! Estranha desventura!

Por um pequeno bem, que desfalece,

Um bem aventurar, que sempre dura!

Luís de Camões

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A poesia à tua porta | 2015

Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob as montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração António Ramos Rosa

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A poesia à tua porta | 2015

Rotina

Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos, como animais envelhecidos:

se alguém chama por nós não respondemos,

se alguém nos pede amor não estremecemos,

como frutos de sombra sem sabor,

vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

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A poesia à tua porta | 2015

O lugar da casa

Uma casa que fosse um areal

deserto; que nem casa fosse;

só um lugar

onde o lume foi aceso, e à sua roda

se sentou a alegria; e aqueceu

as mãos; e partiu porque tinha

um destino; coisa simples

e pouca, mas destino:

crescer como árvore, resistir

ao vento, ao rigor da invernia,

e certa manhã sentir os passos

de abril

ou, quem sabe?, a floração

dos ramos, que pareciam

secos, e de novo estremecem

com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade

Page 182: Compilação poemas semana leitura

A poesia à tua porta | 2015

Pastelaria Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio Afinal o que importa não é ser novo e galante - ele há tanta maneira de compor uma estante! Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita gente que come Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo! Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny