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Complexo de Portnoy - Philip Roth

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Esta é a famosa confissão de Alexander Portnoy, impelido ao longo da vida por uma sexualidade insaciável, mas ao mesmo tempo refreado pela mão de ferro de uma infância inesquecível.

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O MEU TIPO INESQUECÍVEL Durante o meu primeiro ano de escola, minha mãe estava tão profundamente encravada em minha consciência que eu julgava que cada uma das minhas professoras era ela disfarçada. Logo que a última sineta soava, eu corria para casa, pensando se conseguiria chegar lá antes que minha mãe acabasse de se transformar. Mas ao chegar, porém, ela já se encontrava, invariavelmente, na cozinha, preparando o meu leite com bolinhos. Entretanto, tal proeza, ao invés de me fazer desistir de minhas ilusões, aumentava cada vez mais o meu respeito pelos seus poderes. Embora sentisse uma espécie de alívio por não surpreender minha mãe entre uma personificação e outra, nunca desistia de tentá-lo. Sabia que meu pai e minha irmã desconheciam esta faculdade de minha mãe, e a pecha de traição que imaginava fosse cair sobre mim, se acaso a surpreendesse, era mais do que convinha suportar à idade de cinco anos. Creio mesmo que temia que fossem me matar, se a pegasse voando da escola até a janela do quarto de dormir, ou emergindo da invisibilidade, membro por membro, dentro do avental. Quando me pedia para contar-lhe tudo acerca do meu dia no jardim da infância, eu o fazia minuciosamente. Não pretendia compreender todas as inferências da sua ubiqüidade, mas que este dom tinha a ver com a descoberta da espécie de garotinho que eu era quando pensava que minha mãe não estava por perto — isso era indiscutível. Como conseqüência desta fantasia, que persistiu (sob esta forma especial) até o primeiro ano primário, e vendo que não me restava outra alternativa, passei a ser sincero. Sincero e inteligente. Quanto à minha irmã mais velha, pálida e gorda, a seu respeito minha mãe dizia (na presença de Hannah, é claro: a sinceridade também era a sua política): "Esta criança não é nenhum gênio, porém, não nos cabe querer o impossível. Graças a Deus, ela dá duro, esforça-se ao máximo, merecendo, portanto, tudo o que obtém." De mim, o herdeiro do seu comprido nariz egípcio e da sua sagaz tagarelice, minha mãe dizia, com discrição característica: "Este capeta? Nem precisa abrir o livro — nota máxima em tudo. Albert Einstein Segundo!" Como meu pai recebia tudo isto? Bebia — não uísque, é claro, como um goy (Gentio. Tratamento dado pelos judeus aos não-judeus - N. do T.) mas óleo de rícino e leite de magnésia, além de viver tomando ExLax, consumindo AllBran dia e noite e, ainda, enchendo-se de frutas secas aos sacos. Sofria — e como! — de prisão de ventre. A ubiqüidade dela e a prisão de ventre dele, minha mãe voando pela janela do quarto de dormir, meu pai lendo um vespertino com um supositório enfiado no traseiro. . . estas, doutor, são as impressões mais remotas que tenho de meus pais, de suas qualidades e segredos. Ele costumava preparar uma infusão de folhas de sena numa caçarola, e nisto, juntamente com o supositório derretendo-se invisivelmente em seu reto, consistia a sua feitiçaria: ferver aquelas venosas folhas verdes, mexer com uma colher o líquido malcheiroso, em seguida despejá-lo cuidadosamente num coador e passá-lo depois para o seu corpo obstruído, com aquela expressão fatigada e aflita no rosto. E então, curvado silenciosamente por sobre o recipiente vazio, como que à escuta de um trovão distante, aguardava o milagre. . . Quando garotinho, às vezes ficava na cozinha esperando junto com ele. Mas o milagre jamais veio, pelo menos como imaginávamos, e rezávamos

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para que viesse, como uma suspensão da sentença, uma libertação total do tormento. Lembro-me de que, quando anunciaram pelo rádio a explosão da primeira bomba atômica, ele disse em voz alta: "Talvez isso resolvesse o caso." Todas as purgações, porém, eram inúteis para aquele homem: os seus kishkas (Intestinos - N. do T) estavam presos pela mão férrea do ultraje e da frustração. E, entre os seus outros infortúnios, estava o favoritismo de sua mulher por mim. Para tornar sua vida ainda mais difícil, ele me amava. Também ele via em mim a possibilidade de a família ser 'tão boa como as outras", a nossa probabilidade de adquirir honra e respeito — embora, enquanto eu fosse pequeno, nutrisse com relação a mim ambições que se traduziam principalmente em termos de dinheiro. "Não seja bobo como seu pai", dizia, brincando com o garotinho no colo, "não case com a beleza, não case com o amor, case com o dinheiro." Não, ele não gostava nem um pouco de ser olhado de cima. Trabalhava como um cão, para um futuro que não estava destinado a ter. Ninguém lhe deu realmente satisfação, ou retribuição correspondente ao que gastou conosco — nem minha mãe, nem eu, nem mesmo minha afetuosa irmã, cujo marido ele ainda considera um comunista (embora seja hoje sócio de uma lucrativa empresa de refrigerantes e tenha casa própria em West Orange). E, certamente, tampouco aquela organização protestante de um bilhão de dólares (ou "instituição", como eles preferem se considerar) que o explorou até à última. "A Mais Caridosa Instituição da América", ouvi meu pai anunciar, quando me levou pela primeira vez para conhecer o seu pequeno reduto quadrado de mesa e cadeira nos vastos escritórios da Boston & Northeas-tern Life. Sim, diante do filho, falou com orgulho da "Companhia". Não fazia sentido rebaixar-se falando mal deles em público. Afinal de contas, pagaram-lhe um salário durante a Depressão e deram- lhe papel com o seu nome impresso por baixo de um desenho do Mayflower, que era a insígnia da Companhia e, por extensão, a sua, hã. . . hã.. . E, todas as primaveras, no auge da benevolência, convidavam meu pai e minha mãe para passar um excelente fim de semana gratuito em Atlantic City — nada menos do que num caro hotel goyische, onde (juntamente com todos os outros agentes de seguros dos Estados, do Atlântico Médio que tinham superado a E.A.V.: expectativa anual de vendas) se intimidavam com o recepcionista, o garçom, o camareiro, sem falar nos atarantados hóspedes pagantes. Sucedia também que acreditava apaixonadamente no que vendia, o que constituía outra fonte de angústia e esgotamento de energias. Não estava apenas salvando a alma quando vestia o casaco e o chapéu, após o jantar, e saía de novo para continuar o seu trabalho. Não; ia também salvar algum pobre desgraçado, prestes a deixar caducar a apólice de seguro, fazendo perigar dessa forma a segurança da família "em caso de dias de tempestade". "Um homem precisa de um guarda-chuva", costumava dizer-me, "para os dias de tempestade. Você não pode deixar uma esposa e um filho na chuva, sem proteção!" E embora para mim, aos cinco ou seis anos de idade, este discurso de meu pai fizesse um sentido perfeito e até mesmo comovedor, aparentemente não parecia que os outros sentissem como eu, notadamente os poloneses xucros, os irlandeses esquentados e os negros analfabetos moradores nos bairros pobres, a ele entregues para angariação de clientes pela "Mais Benevolente Instituição Financeira da América". Caçoavam dele nos cortiços. Não lhe davam atenção. Ao ouvi-lo bater, arremessavam contra a porta suas vasilhas, berrando: "Vá embora, não tem ninguém em casa!" Mandavam os cachorros enterrar os dentes no seu obstinado traseiro judaico. E ainda assim, através dos anos, conseguira acumular tantas placas, certificados e medalhas da Companhia, homenageando sua habilidade em vender, que chegavam para cobrir uma parede inteira do comprido corredor sem janelas, onde os nossos pratos de Páscoa estavam guardados em caixas de papelão e os nossos tapetes "orientais" jaziam mumificados em seus grossos invólucros de papel alcatroado, durante o verão. Se ele tirava sangue da pedra, por que não haveria a Companhia de recompensá-lo com outro milagre de sua própria autoria? Não poderia o "presidente” lá na “agência central”, tomar conhecimento da sua proeza e transformá-lo, do dia para a noite, de um agente com cinco mil dólares por ano num gerente de distrito com quinze? Mas onde o tinham, ali o mantinham. Quem mais poderia trabalhar uma zona tão árida com resultados tão incríveis? Além do mais, nunca houvera um gerente judeu em toda a história da Boston & Northeastern. ("Não é bem da nossa classe, meu caro", costumam dizer no Mayflower.) E meu pai, com educação primária, não era exatamente indicado para ser o Jackie

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Robinson do negócio de seguros. Tínhamos pendurado em nosso corredor o retrato de N. Eyerett Lindabury, o presidente da Boston & Northeastern. A fotografia emoldurada fora presenteada a meu pai, após ter vendido o primeiro milhão de dólares em seguros; ou talvez fosse após a marca dos dez milhões. "O Sr. Lindabury", "A agência central". . . meu pai fazia aquilo soar como se fosse Roosevelt na Casa Branca, em Washington. . . e ao mesmo tempo o quanto os odiava, especialmente a Lindabury, com o seu sedoso cabelo cor de milho e o forte sotaque da Nova Inglaterra, os filhos na Universidade de Harvard e as filhas terminando o ginásio. Oh, todo o bando deles lá em Massachusetts, na caça à raposa, jogando pólo (foi o que o ouvi berrar, certa noite, de dentro do quarto) — e dessa forma impedindo-o, veja só, de tornar-se um herói aos olhos da mulher e dos filhos. Que cólera! Que fúria! E não havia ninguém para desencadeá-la — a não ser ele próprio. "Por que não se movimentam os meus intestinos? Estou entupido até embaixo de ameixas! Por que tenho essas dores de cabeça? Onde estão os meus óculos? Quem apanhou meu chapéu?" Da maneira feroz e auto-aniquiladora como tantos judeus de sua geração serviam às suas famílias, meu pai serviu minha mãe, minha irmã Hannah, mas especialmente a mim. Naquilo em que fora mais estorvado, eu haveria de ser livre: esse era o seu sonho. O meu era um corolário deste: na minha libertação estaria a sua — da ignorância, da exploração, do anonimato. Até hoje nossos destinos permanecem misturados em minha imaginação, e ainda há muitas vezes em que, ao ler em algum livro uma passagem que me impressione pela sua lógica ou visão, instantaneamente, involuntariamente, penso: "Se ao menos ele pudesse ler isto. Sim! Ler e compreender!" Ainda com esperanças, veja só, ainda com "ao menos", na idade de trinta e três. . . No meu primeiro ano de faculdade, quando ainda era muito mais o filho que luta para fazer o pai compreender — na época em que parecia tratar-se do seu entender ou da sua vida —, lembro-me que destaquei o cupom de assinatura de um daqueles jornais intelectuais que começava a descobrir na biblioteca da universidade, preenchi com o nome dele e o nosso endereço, e enviei como um presente anônimo. Quando, porém, vim para casa, mal-humorado, pelo Natal, para visitar e criticar, não se via em parte alguma o Partisan Review. Havia o Collier's Hygeia, o Look, mas onde estava o Partisan Review dele? Jogou fora sem abrir — pensei na minha arrogância e profundo desgosto —, pôs de lado sem ler, achou que era refugo do correio, esse pilantra, esse imbecil, esse ignorante do meu pai! Lembro-me — olhando ainda mais para trás nessa história de desencanto —, lembro-me de uma manhã de domingo em que arremesso uma bola de beisebol para o meu pai, e em seguida espero, em vão, vê-la passar voando, bem acima da minha cabeça. Tenho oito anos, e ganhei de aniversário a minha primeira luva, a minha primeira bola dura, e um bastão regulamentar que ainda não tenho força para manejar. Meu pai saíra de manhã cedo, de chapéu, casaco, gravata borboleta e sapatos pretos, levando debaixo do braço o volumoso livro preto de cobranças que diz quem deve quanto ao Sr. Lindabury. Ele desce ao bairro negro todas as manhãs de domingo porque, conforme me conta, essa é a melhor ocasião para apanhar aqueles que relutam em soltar os miseráveis dez ou quinze cêntimos necessários para saldar seus pagamentos semanais de prêmios. Ronda os lugares onde os maridos sentam-se ao sol, tentando arrancar alguns magros tostões deles, antes que se embriaguem até a inconsciência com garrafas de vinho Morgan Davis. Emerge dos becos como uma bala, para apanhar no caminho de casa para a igreja as piedosas senhoras faxineiras, que estão nas casas dos outros durante a semana, de dia, e à noite escondem-se dele. "Ih, oh," grita alguém, "o homem do seguro está aí!" E até as crianças correm para se esconder — as crianças, diz ele revoltado interrogando-se, "Que esperança há para esses negros de jamais melhorarem a sua sorte? Como conseguirão se aprumar, se nem ao menos são capazes de compreender a importância do seguro de vida? Será que nada lhes merecem os entes queridos que deixam no mundo? Por favor, que espécie de gente é esta, capaz de deixar uma criança na chuva sem, ao menos, um guarda-chuva como proteção!" Estamos no grande campo de provas nos fundos da minha escola. Ele larga no chão o seu livro de cobranças e sobe no quadrilátero, de paletó e chapéu marrom. Usa óculos quadrados de armação de aço, e o seu cabelo (feito o meu agora) é um tufo revolto da cor e da textura da palha de aço; e

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aqueles dentes, que passam a noite toda dentro de um copo no banheiro, sorrindo para o vaso sanitário, sorriem agora para mim, o seu querido, sua carne e seu sangue, o meninozinho sobre cuja cabeça jamais chuva alguma cairá. "Muito bem, seu batuta", diz ele, e segura o meu novo bastão regulamentar lá pelo meio — e, para espanto meu, pondo a mão esquerda onde deveria estar a direita. Invade-me de repente uma enorme tristeza: quero avisar-lhe: Ei, suas mãos estão erradas, mas não posso, com medo de começar a chorar — ou então de que o mesmo aconteça com ele! "Vamos lá, batuta, arremesse a bola", ordena, e assim faço — descobrindo, é claro, além de todas as outras coisas que começo a suspeitar acerca do meu pai, que ele não tem nada de "King Kong" Charlie Keller. Grande guarda-chuva esse. Minha mãe era capaz de fazer tudo, e eu pensava que ela própria seria obrigada a admitir que talvez fosse eficiente demais. E poderia uma criança com a minha inteligência, os meus poderes de observação, duvidar que assim fosse? Por exemplo, era capaz de fazer gelatina com pedaços de pêssego parados no meio, simplesmente suspensos ali, em desafio às leis da gravidade. Era capaz de fazer uma torta com o gosto da própria banana. Em lágrimas, sofrendo, mesmo assim preferia ralar a sua raiz-forte a comprá-la já pronta nas mercearias. Vigiava o açougueiro, conforme dizia, "feito um falcão", certificando-se de que não se esquecera de passar as suas postas de carne pelo moedor kosher (Preparação de alimentos de acordo com as prescrições da lei judaica - N. do T.). Telefonava para todas as mulheres com roupas secando na corda — num dia de especial magnanimidade chegou a avisar a goy divorciada do último andar — para que corressem depressa a recolhê-las, pois acabara de cair uma gota de chuva na nossa janela. Que radar tinha aquela mulher! E isso antes do radar! Que energia! Que meticulosidade! Verificava minhas somas, atrás dos erros; minhas meias, atrás dos buracos; minhas unhas, meu pescoço, cada junta, cada dobra do meu corpo, atrás de sujeira. Chegava a dragar os recônditos recessos dos meus ouvidos com água oxigenada. Aquilo zunia e borbulhava, trazendo à superfície, em pedacinhos e bocados, os depósitos escondidos de cera amarela que podem prejudicar a audição de uma pessoa. Um processo médico como esse (por mais amalucado que seja) requer tempo, é claro; requer esforço, certamente — mas onde estejam envolvidos saúde, limpeza, germes e secreções corporais, jamais se poupará a si mesma com prejuízo dos outros. Acende velas para os mortos — os outros invariavelmente esquecem, ela religiosamente se lembra, sem mesmo se valer do calendário. A devoção está em seu sangue. Parece ser a única que, segundo diz, quando vai ao cemitério, tem "o bom senso", "a decência habitual e corriqueira", de extirpar as ervas daninhas das sepulturas de nossos parentes. Mal chega a primavera, e ela já protegeu contra as traças tudo o que é de lã na casa, enrolou e amarrou os tapetes, arrastando-os para o quarto dos troféus de meu pai. Jamais se envergonha de sua casa: um estranho pode entrar e abrir qualquer armário, qualquer gaveta, e ela de nada teria que se envergonhar. Seria possível até comer no chão do seu banheiro, se isso alguma vez se tornasse necessário. Quando perde no mah-jong, encara a coisa esportivamente, não-faz-como-as-outras-cujos-nomes poderia mencionar mas não o faz nem mesmo o de Tilly-Hochman é por demais mesquinho até mesmo falar sobre isso esqueçamos de que chegou a abordar o assunto. Ela cose, tricota, cerze — passa a ferro até mesmo melhor do que a shvartze (Negra - N. do T.), para quem é a única boa, de todas as amigas que retalharam cada uma um pedaço da pele dessa velha senhora preta, sorridente e infantil. "Sou a única que é boa para ela. Sou a única que lhe dá uma lata inteira de atum no almoço, sem querer contar vantagem. Estou falando com pureza d'alma, Alex. Me perdoe, mas não posso ser sovina. Desculpe-me, mas não posso viver assim, ainda que só tenha pouco para dar a muitos. Esther Wasserberg larga vinte e cinco cêntimos em moedas pela casa quando Dorothy chega, e depois conta para ver se não falta. “Talvez eu seja boa demais", murmura ela, enquanto escalda o prato no qual a faxineira acabou de comer o almoço, sozinha como uma leprosa, "mas não poderia fazer uma coisa dessas." Certa vez, aconteceu Dorothy entrar na cozinha na hora em que minha mãe ainda estava usando a torneira de água quente, abrindo-a em torrentes sobre a faca e o garfo que passaram entre os lábios grossos e róseos da shvartze. "Ah, Dorothy, você sabe como é difícil hoje em dia limpar bem a maionese dos talheres", diz a minha mãe de tão ágil língua — e dessa forma, diz-me ela depois, graças à sua rapidez de idéias, livrou-se de magoar os sentimentos da negra. Quando não me comporto direito, sou posto para fora de casa. Aí, fico martelando e martelando na

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porta, até jurar me emendar. Mas o que foi que fiz? Engraxo meus sapatos todas as tardes sobre uma folha do vespertino do dia anterior, cuidadosamente estendida sobre o oleado; depois, nunca deixo de fechar bem a lata de graxa e de pôr todo o material no lugar. Enrolo a pasta de dentes desde baixo, escovo os dentes girando, e nunca para cima e para baixo, digo "Obrigado", "Seja bem-vindo", 'Desculpe-me" e "Permita-me". Quando Hannah adoece ou sai antes do jantar com a sua caneca azul, a fim de fazer coleta para o Fundo Nacional Judaico, ponho a mesa voluntariamente e fora da minha vez, lembrando sempre de colocar a faca e a colher na direita, o garfo na esquerda o guardanapo à esquerda do garfo e dobrado em triângulo. No entanto, chegam épocas tia minha vida em que não se passa um mês sem que faça alguma coisa de imperdoável, a ponto de me mandarem embora. Mas o que poderia ser? Mãe, sou eu, o garotinho que passa noites inteiras, antes de começarem as aulas, traçando em belos caracteres góticos os nomes das matérias nas folhas divisórias, que pacientemente prega reforços nos três furos do sortimento de papel para um período inteiro, com pauta e sem pauta. Trago pente e lenço limpos; nunca deixo minhas meias compridas caírem sobre os sapatos; meu trabalho de casa fica pronto semanas antes do prazo — reconheça, mamãe, sou o garotinho mais inteligente e caprichoso da história da minha escola! As professoras (você bem que sabe porque elas lhe contaram) vão para casa felizes ao encontro dos seus maridos por minha causa. Portanto, o que foi que fiz? Alguém que possa responder a esta pergunta, por favor, levante-se! Sou tão ruim que ela não me quer ter em casa um minuto a mais. Quando uma vez chamei minha irmã de atrevidona, imediatamente me lavaram a boca com sabão de roupa; isso eu compreendo. Mas ser mandado embora? O que será que fiz? Sendo boa, ela há de me preparar um lanche para levar, mas, uma vez na rua, no meu casaco e nas minhas galochas, o que acontece não é da conta dela. Muito bem, digo eu, a coisa é assim? (Também tenho gostinho pelo drama — não é à toa que pertenço a esta família.) Pois então não preciso de sacola de lanche! Não preciso de nada! Não gosto mais de você, um garotinho que se comporta desse jeito. Ficarei sozinha com papai e Hannah, diz minha mãe (ela é realmente mestra em dizer as coisas para matar a gente). Hannah saberá arrumar as pedras de mah-jong para as senhoras nas terças-feiras. Não precisaremos mais de você. Que me importa! E saio porta fora, pelo comprido corredor escuro. Que me importa! Venderei jornais nas ruas, descalço. Irei para onde quiser nos trens de carga e dormirei nos campos, penso eu — mas, então, basta que veja as garrafas de leite vazias sobre o nosso tapete da entrada para que me venha à cabeça toda a imensidão da minha perda. "Odeio você!", grito, chutando a porta com a galocha; "Me dá nojo!" Ante este vexame, ante esta heresia ecoando pelos corredores do edifício, onde ela disputa juntamente com outras vinte mulheres judias o lugar de santa padroeira da abnegação, minha mãe não tem outra alternativa senão passar o ferrolho duplo na porta. É nessa altura que começo a martelar para que me deixem entrar. Caio de joelhos no tapete, pedindo perdão pelo meu pecado (que indago novamente qual seja) e prometo perfeição para o resto de nossas vidas, que naquela época me pareciam intermináveis. Vinham então as noites em que cismava de não comer. Minha irmã, mais velha do que eu quatro anos, assegura-me que aquilo de que me lembro é um fato: recusava- me a comer, e minha mãe não se conformava em aceitar essa teimosia — e idiotice. E isso para o meu próprio bem. Só está pedindo que faça alguma coisa para o meu próprio bem — e ainda assim digo não? Não é verdade que ela seria capaz de deixar de comer para me dar? Mas não quero o alimento de sua boca. Nem mesmo quero o alimento do meu prato — aí é que está. Uma criança com o meu potencial! com os meus feitos! com o meu futuro! — com todos os dotes de beleza, de inteligência, que Deus foi tão pródigo em conceder-me, como poderia ter a coragem de morrer de fome sem nenhuma razão deste mundo? Vou querer que as pessoas me desprezem toda a vida como um garotinho raquítico, ou que tenham pela frente um homem? Vou querer que abusem e zombem de mim, vou querer ser pele e osso, para ser derrubado com um

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espirro, ou vou querer inspirar respeito? O que hei de querer ser quando crescer, fraco ou forte, um sucesso ou um fracasso, um homem ou um rato? Não quero comer — limito-me a responder. Nesta hora, minha mãe senta-se numa cadeira ao meu lado, segurando uma comprida faca de pão de aço inoxidável e dentes serrados. O que prefiro ser: forte ou fraco, um homem ou um rato? Doutor, por que, por que, oh, me diga, por que uma mãe há de puxar uma faca para o próprio filho? Tenho seis a sete anos de idade; como vou saber se ela não irá usá- la? O que deverei fazer, tentar enganá-la, aos sete? Não possuo nenhuma complicada .noção de estratégia, pelo amor de Deus — talvez nem pese ainda trinta quilos! Alguém brande uma faca na minha direção. Acredito que haja, escondida algures, uma intenção de me fazer sangrar! Mas por quê? O que deverá estar pensando ela, na sua cabeça? Como pode ser louca desse jeito? Por que uma jaca, por que a ameaça de assassinato, por que será necessária uma vitória assim tão total e aniquiladora — quando logo no dia anterior pousara o ferro de passar no descanso e aplaudira quando passei feito um pé-de-vento pela cozinha, ensaiando meu papel de Cristóvão Colombo, no espetáculo do terceiro ano primário de Terra à Vista! Sou o ator principal da minha classe, e sei que eles não podem fazer uma peça sem mim. Ah, uma vez tentaram, quando tive bronquite, mas a professora depois confidenciou à minha mãe que fora ruim. Oh, como pode ela passar tantas tardes maravilhosas naquela cozinha, polindo a prataria, cortando fígado, passando elástico novo na cintura das minhas cuequinhas, ao mesmo tempo que me .dá as deixas do texto mimeografado, fazendo de Rainha Isabel para o meu Colombo, de Betsy Rosso para o meu Washington, de Sra. Pasteur para o meu Luís — como pode ela subir junto comigo ao cume de minha genialidade, à tardinha, depois da aula, para depois à noite, só porque não como feijão e batata cozida, apontar uma faca de pão no meu peito? E por que meu pai não a detém?

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DESCASCANDO UMAS E OUTRAS Veio então a adolescência e eu passava a maior parte do dia trancado no banheiro, disparando meus esguichos no vaso sanitário ou dentro da cesta de roupa suja, ou num plaft contra o espelho do armário de remédios, diante do qual me punha de cuecas arriadas, para ver como era a coisa saindo. Ou ainda, curvado sobre o meu punho acelerado, olhos bem fechados, mas a boca bem aberta, para receber aquele molho viscoso, feito soro de leite e Clorox, na língua e nos dentes, embora não raro, em meio à cegueira e ao êxtase, o apanhasse todo no topete, como um jato de fixador. Em pleno mundo de lenços estendidos, papel higiênico amassado e pijamas manchados, movimentava meu pênis desembainhado e intumescido, no receio constante de que a minha porcaria fosse descoberta por alguém que me surpreendesse quando estivesse em estertores, soltando minha carga. Não obstante, não conseguia ter as mãos longe do meu pau quando ele começava a me subir barriga acima. No meio da aula, levantava a mão pedindo licença, corria pelo corredor até o banheiro, e com dez ou quinze sacudidelas me soltava, em pé no mictório. Nas matinês de domingo, largava meus amigos e corria para comprar dropes — terminando num assento isolado do balcão do cinema e esguichando o meu sêmen dentro do invólucro vazio das pastilhas. Numa excursão do nosso grupo familiar, certa vez descarocei uma maçã, para espanto meu (e com auxílio da minha obsessão) verifiquei com o que ela se parecia, e corri para o mato para cair em cima do orifício da fruta, imaginando que o frio e farinhento buraco ficava entre as pernas daquele ser fictício que sempre me chamava de Garotão quando implorava por aquilo que nenhuma garota em toda a história conhecida jamais tivera. "Oh, empurre isso dentro de mim, Garotão", gritava a maçã descaroçada que eu castigava como um bobo naquele piquenique. "Garotão, Garotão, me dá tudo o que você tem", suplicava a garrafa de leite vazia que eu guardava escondida no nosso depósito do porão, a fim de nela penetrar, desvairado, com a minha envaselinada verga. "Goza, goza, Garotão, goza", berrava o furioso pedaço de fígado que, na minha loucura, comprei uma tarde num açougueiro e, acreditem ou não, violei, atrás de um suporte de cartazes a caminho de uma lição de bar mitzvah (Cerimônia de iniciação, por ocasião do décimo terceiro aniversário do menino judeu, em que este atinge a idade da responsabilidade e do dever religioso - N. do T.). Foi no final do meu primeiro ano de ginásio — e primeiro ano de masturbação — que descobri na parte de baixo do meu pênis, na junção do freio com a glande, um pontinho descorado, que posteriormente foi diagnosticado como sendo uma sarda. Câncer. Eu me infligira um câncer. Todos aqueles safanões e puxões na minha carne, toda aquela fricção, provocaram-me uma doença incurável. E ainda não tinha catorze anos! Na cama, à noite, as lágrimas rolavam-me dos olhos. "Não!", soluçava. "Não quero morrer! por favor... não!" Mas em seguida, já que dentro em breve de qualquer maneira seria um cadáver, fui em frente como de costume e descarreguei na meia. Pegara o costume de levar meias sujas comigo para a cama, à noite, de modo a poder utilizar uma delas como receptáculo, antes de dormir, e a outra, ao acordar. Se ao menos conseguisse baixar para uma punheta por dia, ou ficar nas duas, ou mesmo nas três! Mas, com a perspectiva do fim próximo diante de mim, na verdade comecei a estabelecer novos recordes. Antes das refeições. Depois das refeições. Durante as refeições. Pulando da mesa, na hora

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do jantar, agarro tragicamente a barriga — diarréia! grito eu, estou com diarréia! — e uma vez atrás da porta trancada do banheiro, enfio pela cabeça um par de calcinhas que roubara do armário de minha irmã e trouxera enrolado num lenço dentro do bolso. Tão galvânico é o efeito de calcinhas de algodão na minha boca — tão galvânica é a palavra "calcinhas" — que a trajetória da minha ejaculação alcança novas alturas: saindo da minha vara como um foguete, ela vai direto lá em cima na lâmpada, onde, para meu espanto e horror, se choca e fica dependurada. Alucinadamente, no primeiro instante, cubro a cabeça, esperando uma explosão do vidro, uma irrupção de chamas — o desastre, sabe, jamais se distancia da minha mente. Em seguida, o mais silenciosamente possível, subo no aquecedor e retiro a tórrida gosma com um chumaço de papel higiênico. Inicio um escrupuloso exame da cortina do chuveiro, da banheira, do chão ladrilhado, das quatro escovas de dente — Deus me livre! — e quando estou para abrir a porta, imaginando que cumpri a minha tarefa, meu coração dá um salto, à vista do que pende, como muco, da ponta do meu sapato. Sou o Raskolnikov da ejaculação — a pegajosa prova disso está por toda a parte! Não estará nas minhas abotoaduras também? no meu cabelo? na minha orelha? Fico imaginando tudo isso, mesmo enquanto volto para a mesa da cozinha, de cara amarrada e irritadiço, para responder com orgulhosa convicção ao meu pai, quando ele abre a boca cheia de gelatina vermelha e diz: "Não entendo por que você tem de trancar a porta. Isso escapa à minha compreensão. Onde é que nós estamos, em casa ou na estação Grand Central? ". . . direito ao isolamento. . . um ser humano. . . jamais terá nesta casa", retruco, e em seguida empurro para o lado minha sobremesa, gritando: "Não me sinto bem. . . querem me deixar sozinho?" Após a sobremesa — que eu só como por se tratar de gelatina —, após a sobremesa, volto de novo para o banheiro. Remexo por entre a roupa suja da semana até encontrar um dos porta-seios servidos de minha irmã. Prendo uma alça na maçaneta da porta do banheiro e a outra na maçaneta do armário de parede: um espantalho para atrair mais sonhos. "Oh, bata, Garotão, bata, até isto ficar em brasa..." Assim me estimulam as duas pequenas concavidades do porta-seios de Hannah, quando ressoa na porta uma pancada desferida por jornal dobrado. "...Vamos, dá licença de alguém mais ter vez nessa privada?", exclama meu pai. "Há uma semana que a minha barriga não funciona." Recupero o equilíbrio, tal o meu talento, com uma explosão de sensibilidade ferida. "Estou com uma bruta diarréia, será que ninguém nesta casa se importa com isso?" — enquanto falo, recomeço a manipulação, acelerando até mais o ritmo, pois o meu canceroso órgão miraculosamente volta a palpitar de dentro para fora. É então que o porta-seios de Hannah começa a se mover. A balançar para a frente e para trás! Cubro os olhos e vejam só! — Lenore Lapidus! — a mais peituda da classe, correndo para pegar o ônibus da escola, com a sua volumosa e intocável carga oscilando pesadamente dentro da blusa. Oh, eu os quero ali, vamos, os PEITOS REAIS DE LENORE LAPIDUS, e verifico no mesmo instante que minha mãe está sacudindo violentamente a maçaneta da porta. Da porta que finalmente esqueci de trancar! Sabia que iria acontecer um dia! Apanhado! Em flagrante! — Abra, Alex! Quero que abra imediatamente! Está trancada, não fui apanhado! E, a julgar pelo que se movimenta em minha mão, não estou morto ainda. Continue batendo, então! Continue batendo! "Lamba-me, Garotão... dê-me uma boa lambida escaldante! Sou o volumoso porta-seios em brasa de Lenore Lapidus!" — Alex, quero que me responda. Comeu batatas fritas depois da escola? É por isso que ficou desarranjado assim? — Nããão, nããão. . . — Alex, está com eólicas? Quer que chame o médico? Está com eólicas ou não? Quero saber exatamente onde dói. Responda-me. — Sssim, sssim. . . — Alex, não quero que puxe a água — ordena minha mãe severamente. — Quero ver o que você fez! Isto não está me soando nada bem. — E eu.— diz meu pai, atingido como sempre pelos meus feitos, tanto admiração quanto inveja — há uma semana que não faço nada — no momento em que dou uma guinada no meu poleiro sobre a tábua da privada, e, numa lamúria de animal castigado, solto três gotas de alguma coisa quase viscosa

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no diminuto pedaço de pano onde a minha despeitada irmã de dezoito anos guarda seu mamilos, pois apenas isso é que eles são. É o meu quarto orgasmo do dia. Quando começarei a gozar sangue? — Escute aqui, me faça o favor, você aí — diz minha mãe. — Por que puxou a água quando lhe disse para não fazer isso? — Me esqueci. — O que tinha aí para você querer puxar tão depressa? — Diarréia. — Era mais pra líquido ou mais pra molezinho? — Não olhei! Não olhei! Pare de falar assim comigo, já estou no ginásio! — Olhe, não grite comigo, Alex. Não fui culpada da sua diarréia, lhe garanto. Se só comesse o que lhe dão em casa, não estaria correndo para o banheiro cinqüenta vezes por dia. Hannah me conta o que você anda fazendo, não pense que não estou sabendo. Ela deu por falta das calcinhas! Fui apanhado! Oh, quero morrer! Logo, logo! —É? Entãooqueéqueeufaço...? — Você vai ao Harolds Hot Dog e em qualquer espelunca, depois da escola, comer batatas fritas com Melvin Weiner. Não vai? Não minta para mim. Você vai ou não vai se entupir de batatas fritas e ketchup na Avenida Hawthorne, depois da escola? Jack, venha cá, quero que ouça isto — grita ela para o meu pai, que neste momento está ocupando o banheiro. — Olhe, estou tentando ver se faço — retruca ele. — Já não tenho bastante com o que me apoquentar, sem que as pessoas me venham berrar quando estou tentando fazer alguma coisa? — Você sabe o que o seu filho faz depois da escola, o estudante-modelo, a quem a mãe não pode mais falar do cocozinho, porque já está tão crescido! O que acha que o seu filho crescido faz quando não tem ninguém tomando conta dele? — Querem me deixar em paz, por favor? — grita meu pai — Não poderei ter um pouquinho de paz, para que consiga fazer alguma coisa aqui dentro? — Espere só até seu pai ouvir o que você faz, contrariando todos os hábitos de saúde que possam existir. Alex, responda-me uma coisa. Você que é tão esperto, que agora sabe todas as respostas, responda-me esta: como acha que Melvin Weiner apanhou colite? Por que aquela criança passa metade da vida em hospitais? — Porque come porcaria. — Não se atreva a ser engraçado comigo! — Está bem! — berro eu. — Então, como foi que ele pegou colite? — Porque come porcaria! Não é brincadeira! Porque para ele uma refeição é um tubo de pastilhas de chocolate com uma garrafa de Pepsicola. Porque o desjejum dele consiste sabe de quê? A refeição mais importante do dia, não segundo sua mãe, Alex, mas segundo os melhores nutricionistas, e você sabe o que aquela criança come? — Um sonho. — Um sonho, sim, senhor espertalhão, senhor marmanjo. E café. Café, e com isso uma porcariazinha de treze anos começa o seu dia com apenas metade do estômago. Mas você, graças a Deus, foi criado de maneira diferente. Você não tem uma mãe que saracoteia pela cidade o dia inteiro como algumas que posso citar. Alex, diga-me, se não é um mistério, ou se não passo de uma estúpida, diga-me só, o que está tentando fazer, o que está tentando provar, para se entupir desse jeito, com uma porcaria dessas, quando pode vir comer em casa bolinho de milho com um bom copo de leite? Quero a verdade de você. Não vou dizer a seu pai — garante ela, baixando significativamente a voz —, mas preciso ouvir a verdade de você. — Pausa. Também significativa. — São apenas batatas fritas, querido, ou alguma coisa mais?. . . Conte-me, por favor, que outra espécie de lixo está metendo na boca, para que possamos acabar com essa diarréia! Quero uma resposta franca de você, Alex. Anda comendo hambúrgueres? Responda-me, por favor, foi por isso que puxou a água, havia hambúrguer lá? — Já lhe disse. Não olho no vaso quando puxo a água! Não estou interessado, como você, no cocozinho dos outros! — Aaah, treze anos e já respondão! Para alguém que está lhe perguntando sobre a sua saúde, o seu bem-estar! — A incompreensibilidade total da situação torna-lhe os olhos pesados de lágrimas. — Alex, por que está ficando assim, diga-me alguma coisa! Conte-me, por favor, que horríveis coisas lhe fizemos durante todas as nossas vidas para que esta fosse a nossa recompensa? — Acredito que a

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pergunta lhe pareça original Acredito mesmo que considere a pergunta irrespondível. E o pior é que eu também considero. O que fizeram por mim durante todas as suas vidas a não ser sacrifício? Que a horrível verdade, todavia, seja precisamente esta, ultrapassa a minha compreensão, e ainda continua sendo assim, doutor! Até o dia de hoje! Preparo-me agora para uma sessão de cochicho. Posso perceber a vinda do cochicho a mais de um quilômetro de distância. Vamos começar a falar das dores de cabeça de papai. — Alex, ele não teve hoje uma dor de cabeça que mal podia enxergar? — Ela verifica, será que ele não estará ouvindo? Deus nos livre que pudesse ouvir o quanto é crítica a sua situação, acharia que era exagero. — Na semana que vem, ele não vai fazer um teste de tumor? — Vai? — Traga ele — disse o médico —, vou lhe fazer um teste de tumor. Sucesso. Estou chorando. Não há uma boa razão para eu estar chorando, mas é que nesta casa todos procuram dar uma boa chorada pelo menos uma vez por dia. O senhor deve compreender bem estas coisas. Uma boa parte da comunidade humana se compõe de chantagistas e imagino que a sua clientela também não foge à regra. Pois o meu pai tem andado nessa do tumor desde que me conheço. E a razão por que lhe dói a cabeça todo o tempo se deve, é claro, ao fato de ele estar sempre com prisão de ventre — e a razão por que tem prisão de ventre se deve ao fato de que o seu trato intestinal está nas mãos da firma Ansiedade, Medo & Frustração. É verdade que um médico disse certa vez a minha mãe que ia fazer com o seu marido um teste de tumor — já que isso a tranqüilizaria (acredito que foi assim que ele se expressou). Surgiu, entretanto, o médico, que seria mais barato e provavelmente mais eficaz se meu pai recorresse a um clister. Contudo, mesmo sabendo que as coisas se passam da forma que estou contando, não é menos doloroso imaginar o crânio do meu pai estourando num tumor maligno. Esqueço inteiramente o meu câncer em meio à tristeza que me assola — agora como então — quando penso quão grande parte da vida de meu pai sempre esteve para além da sua compreensão e do seu alcance. Falta de dinheiro, de instrução, de linguagem, de cultura; curiosidade sem cultura, energia sem oportunidade, experiência sem sabedoria. . . Suas deficiências levam-me às lágrimas — e à fúria! Uma pessoa que meu pai sempre me estimulou a imitar na vida foi o produtor teatral Billy Rose. Walter Winchell disse que o fato de Billy Rose conhecer taquigrafia levara Bernard Baruch a contratá-lo como secretário — conseqüentemente meu pai atenazou-me durante o ginásio para que me inscrevesse num curso de taquigrafia. "Alex, onde estaria Billy Rose, hoje, sem a taquigrafia? Vendo navios! Então por que você se opõe ao que digo?" Antes brigávamos por causa do piano. Para um homem em cuja casa não havia fonógrafo ou disco, era obcecado quanto à questão de instrumento musical. "Não entendo por que você não aprende um instrumento musical, isso ultrapassa minha compreensão. A sua priminha Toby senta-se ao piano e toca qualquer canção que a gente peça. Basta ela sentar ao piano e tocar Tea for Two, para que todos na sala fiquem seus amigos. Ela nunca terá falta de companhia, Alex, nunca terá falta de popularidade. Diga só que quer começar com o piano, e amanhã de manhã farei que tenha um aqui. Alex, está me ouvindo? Estou lhe oferecendo uma coisa que poderá mudar o resto da sua vida!" Mas o que ele tinha a oferecer, eu não queria — e o que eu queria ele não podia oferecer. Entretanto, o que há de extraordinário nisso? Por que ainda me faz sofrer tanto? Ainda a esta altura! Doutor, diga-me de que será melhor livrar-me: do ódio. . . ou do amor? Pois se ainda nem comecei a falar daquilo que relembro com prazer — com uma arrebatada, pungente sensação de perda! Todas aquelas recordações que de alguma forma parecem estar ligadas com o estado do tempo e a hora do dia, e que me surgem na mente com tal agudeza que, momentaneamente, deixo de estar no subway, no escritório, ou num jantar com uma garota bonita, para regressar à infância, junto deles. Recordações de praticamente nada, mas que, no entanto, parecem momentos de história tão cruciais para o meu ser como o instante da minha concepção; poderia até relembrar o esperma de meu pai penetrando no óvulo de minha mãe, tão penetrante é a minha gratidão — sim, a minha gratidão! — tão impetuoso e sem reservas é o meu amor. Sim, um amor impetuoso e sem reservas! Estou em pé na cozinha (em pé talvez pela primeira vez em minha vida), minha mãe sugere: "Olha lá fora, nenê", e eu olho; ela diz: "Está vendo que cor?

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Um verdadeiro céu de outono." A primeira linha de poesia que ouço! E me lembro dela! Um verdadeiro céu de outono. .. Num dia de janeiro, de duro inverno, ao anoitecer — oh, ainda vão dar cabo de mim essas recordações de anoitecer, de gordura de galinha no pão de centeio para agüentar até o jantar, e de lua lá no alto, vista através da janela da cozinha — acabo de chegar, as faces muito coradas, e na posse de um dólar que ganhei removendo neve: "Sabe o que vai ter para jantar", afrulha minha mãe, afetuosamente, "por ter sido um menino tão trabalhador? O seu prato favorito de inverno. Cozido de carneiro." É noite: após um domingo em Nova Iorque, na Radio City e no bairro chinês, estamos voltando para casa pela ponte George Washington — o túnel Holland é o caminho direto entre a Rua Pell e Jersey City, mas prefiro a ponte, e, devido a minha mãe ter dito que era "educativo", meu pai desvia-se uns quinze quilômetros do seu itinerário para nos levar para casa. No banco da frente, minha irmã conta em voz alta o número de suportes sobre os quais se apóiam os cabos maravilhosamente educativos, enquanto no banco traseiro adormeço, de rosto apoiado ao casaco preto, de pele de foca, de minha mãe. Em Lakewood, onde fomos passar um fim de semana de inverno com o clube dominical de Gin Rummy dos meus pais, durmo numa das camas com meu pai, e minha mãe e Hannah acomodam-se juntas na outra. Pela madrugada, meu pai me desperta e, como prisioneiros escapando, vestimo-nos sem ruído e deslizamos para fora do quarto. "Venha", sussurra ele, fazendo-me pôr o protetor de ouvidos e o casaco, "quero mostrar-lhe uma coisa. Sabia que fui garçom em Lakewood, quando tinha dezesseis anos de idade?" Fora do hotel, ele aponta para os belos bosques silenciosos. "Que tal isso?", pergunta ele. Caminhamos juntos — "em ritmo enérgico" — em torno de um lago prateado. "Tome umas boas respirações profundas. Aspire bem o ar dos pinheiros. Este é o melhor ar do mundo, o bom ar de inverno dos pinheiros." O bom ar de inverno dos pinheiros — outro dos meus pais que é poeta! Ainda que fosse filho de Wordsworth, dificilmente me emocionaria mais!. . . No verão, ele permanece na cidade, enquanto nós três saímos para passar um mês num quarto mobiliado na beira da praia. Ele virá reunir-se a nós durante as duas últimas semanas, quando tira suas férias. . . há ocasiões, porém, em que Jersey City torna-se tão densa de umidade, tão fervilhante de mosquitos, a se precipitarem em mergulhos dos brejos, como bombardeiros, que no fim do seu dia de trabalho ele percorre cento e poucos quilômetros, tomando a velha estrada de Cheesequake — a Cheesequake! Meu Deus! que coisa! — percorre cento e poucos quilômetros para passar a noite conosco, no nosso quarto arejado em Bradley Beach. Chega depois de já termos comido, mas o jantar está à espera, enquanto se livra das roupas ensopadas, com as quais fez as suas cobranças o dia inteiro, e veste um calção de banho. Levo a toalha para ele, e seus passos vão ressoando como cascos rua abaixo, os sapatos desamarrados. Visto calças curtas limpas e camisa de pólo imaculada, corpo desalgado pelo banho de chuveiro, e o meu cabelo — ainda o meu cabelo de garotinho, anterior ao de palha de aço, macio e penteável — está lindamente repartido e alisado. Há um corrimão de ferro, desgastado pelas intempéries, por toda a extensão do passeio de tábuas, e sobre ele me sento; abaixo de mim, de sapato, meu pai atravessa a praia vazia. Observo-o estender metodicamente a toalha perto da água. Coloca o relógio num sapato, os óculos no outro e, em seguida, está pronto para a sua entrada no mar. Até o dia de hoje entro na água como ele aconselhava: mergulhar primeiro os pulsos, depois salpicar as axilas, depois um borrifo nas têmporas e na parte traseira do pescoço. . . ah, mas devagar, sempre devagar. Deste modo, a gente se refresca, evitando um choque para o organismo. Refrescado, sem choque, ele se volta para mim, acena comicamente para onde imagina que eu esteja e cai de costas para boiar com os braços estendidos. Oh, ele bóia tão parado — se esforça, se esforça: para quem senão para mim? — e finalmente, após virar de barriga e dar algumas sôfregas braçadas que não o levam a parte alguma, volta vadeando para a praia, o tronco compacto e gotejante, rebrilhando das últimas pontas claras de luz projetando-se, por sobre meu ombro, desde a sufocante Nova Jersey, interiorana, de que me livrei. Há mais recordações como esta, doutor. Muitas mais. É sobre minha mãe e meu pai que estou falando. Mas. . . mas. . . mas. . . deixe-me lembrar. . . há também esta visão dele saindo do banheiro, massageando violentamente a parte traseira do pescoço e reprimindo azedamente um arroto.

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— Muito bem, o que havia de tão urgente, que você não foi capaz de esperar eu sair para me dizer? — Não é nada — responde minha mãe. — Já está resolvido. Ele me olha, tão desapontado. Sou a razão de sua existência, e bem sei disso. — O que foi que ele fez? — O que ele fez está feito e terminado, se Deus quiser. — indaga ela. — Claro que não. — Jack, o que vai ser de você com esses intestinos? — Vão virar cimento, isso é o que vai acontecer. — É porque você come depressa demais. — Não como depressa demais. — Vai me dizer que come devagar? E você, conseguiu fazer? — Como de maneira regular. — Você come como um porco, alguém precisava lhe dizer isso. — Ah, você tem, às vezes, uma maneira maravilhosa de se expressar, sabe? — Estou só falando a verdade — diz ela. — Fico em pé o dia inteiro nesta cozinha, e você come como se fosse apagar um incêndio, enquanto este aqui resolve que a comida que eu faço não é bastante boa para ele. Quer é ficar doente, para me enlouquecer de vez. — O que foi que ele fez? — Não lhe quero dar aborrecimento — responde ela. — Vamos tratar de esquecer este negócio. Não o consegue, porém, e começa a chorar. Olhe, não digo que ela seja a pessoa mais feliz do mundo. Antigamente, era o tipo da garota alta e magricela que os meninos chamavam de "Ruiva" no ginásio. Quando eu tinha nove anos, era louco pelo seu anuário de ginásio. Durante algum tempo, guardei-o na gaveta, junto com outro exemplo de exotismo: a minha coleção de selos. "Sophie Ginsky, que os rapazes tratam de 'Ruiva'. Vai longe com estes grandes olhos castanhos e esta inteligência." Esta era minha mãe! Foi, igualmente, secretária do treinador de futebol, um cargo sem muito prestígio nos dias de hoje, mas que, durante a Primeira Guerra Mundial, era, visivelmente, o posto para uma moça ter em Jersey City. Foi o que me pareceu, pelo menos, ao folhear o seu anuário, mostrando-me ela o seu namorado de cabelos pretos, que fora capitão da equipe e hoje é, segundo Sophie, "o maior fabricante de mostarda de Nova Iorque". "E eu poderia ter casado com ele, ao invés de com seu pai", confidenciou- me ela, mais de uma vez. Sempre que meu pai nos levava para jantar na salsicharia da esquina, eu costumava imaginar como seria para mamãe e para mim, se assim fosse. Olhava em torno e pensava: "Teríamos fabricado toda essa mostarda." Acredito que ela também tivesse pensamentos desse tipo. — Ele come batatas fritas — denuncia ela e desaba na cadeira da cozinha para pôr a boca no mundo uma vez por todas. — Sai, depois da escola, com Mervin Weiner e empanturra-se de batatas fritas. Jack, fale com ele, eu sou apenas sua mãe. Diga- lhe como vai ser no fim. Alex — diz ela arrebatadamente, espreitando-me, enquanto procuro escapulir-me do aposento —, queridinho, a coisa começa com diarréia, mas sabe como termina? Com um intestino sensível como o seu, sabe como termina, finalmente? Tendo que usar uma sacola plástica para fazer dentro! Quem, em toda a história do mundo, menos pôde resistir às lágrimas de uma mulher? Meu pai. E eu, em segundo lugar. — Você ouviu sua mãe — diz-me ele. — Não coma batatas fritas com Melvin Weiner depois da escola. — Nem em nenhuma outra ocasião — repete ela. — Nem em nenhuma outra ocasião — repete meu pai. — Nem hambúrgueres — suplica ela. — Nem hambúrgueres — confirma meu pai. — Nos hambúrgueres — profere ela amargamente, como se dissesse Hitler — eles põem as porcarias que querem, e ele come! Jack, faça-o prometer, antes que provoque uma terrível doença em si mesmo e seja tarde demais. — Prometo! — berro eu. — Prometo! — e disparo da cozinha. Para onde? Para onde haveria de ser? Arranco as calças e liberto furiosamente o maltratado aríete, o meu juvenil cacete, enquanto minha mãe começa a gritar do outro lado da porta do banheiro. — Agora desta vez não puxe a água. Está me ouvindo, Alex? Tenho de ver o que há nessa privada!

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Está compreendendo, doutor, o que eu tinha pela frente? Meu pau era a única coisa que podia realmente considerar minha. O senhor precisava vê-la em ação durante a época da poliomielite! Mereceria ganhar medalhas da Marcha dos Tostões! Abra a boca. Por que está com a garganta vermelha? Está escondendo de mim alguma dor de cabeça? Você não me vai a nenhum jogo de beisebol, Alex, enquanto eu não vir esse pescoço se mover. Está de pescoço duro? Então por que o move dessa maneira, como se estivesse enjoado? Você está enjoado? Bem, o fato é que come como se estivesse. Não quero você bebendo naquele bebedouro do recreio. Se tem sede, espere até chegar em casa. Está com a garganta pegando, não está? Sei como está engolindo. Creio que o que o senhor vai fazer, Sr. Joe Di Maggio, é pôr de lado essa luva e deitar-se. Não vou deixar que saia e fique correndo por aí, não com essa garganta pegando, não senhor. Quero tomar a sua temperatura. Não estou gostando nada dessa coisa de garganta. Para falar a verdade, estou por conta por você ter passado o dia inteiro de garganta pegando sem dizer à sua mãe. Por que fez segredo disso? Alex, a poliomielite não está querendo saber de jogos de beisebol. Quer saber é de pulmões de aço e invalidez permanente! Não quero você correndo por aí, e isso é definitivo. Ou comendo hambúrgueres. Ou maionese. Um bife de fígado. Ou atum. Nem todo mundo tem o cuidado que sua mãe tem com as sobras de comida. Você está acostumado com uma casa imaculadamente limpa, não imagina o que vai pelos restaurantes. Quando vamos ao Chink's, sabe por que sua mãe jamais se senta de frente para a cozinha? Porque não quer ver o que está acontecendo por lá. Alex, você tem de lavar tudo, está entendendo? Tudo! Só Deus sabe quem pegou nas coisas antes de você. Olhe, estarei exagerando em pensar que seja praticamente um milagre que eu ainda ande por aí? O grau de histeria e de superstição! Os "olhe-aí" e os "tome-cuidado"! Você não deve fazer isto, não pode fazer aquilo, pare com isto! Não faça isto! Está infringindo uma lei importante! Que lei? De quem? Por essa amostra de sensatez humana, bem poderiam eles andar de placas de madeira nos lábios, anéis nas orelhas e se pintarem de azul! Oh, e além disso os milchik e flaischks (Comidas que levam leite e carne, respectivamente. - N. do T e toda essa meshuggeneh (Loucura - N. do T.) de regras e regulamentos vindos de quebra junto com a sua maluquice particular! Corre na família a história de que quando eu era muito pequeno voltei-me dá janela de onde assistia a uma tempestade de neve e indaguei esperançosamente: "Mamãe, nós acreditamos no inverno?" Entende o que estou dizendo? Fui educado por hotentotes e zulus! Não podia sequer pensar em beber um copo de leite junto com o meu sanduíche de salame sem ofender seriamente o Deus Todo-Poderoso. Imagine o que me custou na consciência todas aquelas ejaculações! A culpa, os temores — o terror incutido em meus ossos! No mundo deles, o que estaria carregado de perigo, gotejante de germes, repleto de riscos? Oh, onde estava o prazer, onde estavam a audácia e a coragem? Quem saturou esses meus pais de uma visão tão temerosa da existência? Meu pai, atualmente aposentado, só tem realmente um assunto no qual pode meter o bedelho: a Barreira de Nova Jersey. "Não passo naquela coisa ainda que me paguem. Só estando maluco — é a própria Assassinato & Cia. Ltda., maneira legal de as pessoas irem ao encontro da morte..." Olhe, sabe o que ele me diz três vezes por semana no telefone? — veja que estou só contando as vezes que atendo, e não o número total de chamadas entre seis e dez, todas as noites. "Venda esse' carro, sim? Quer me fazer o favor de vender esse carro, para que eu possa dormir tranqüilo uma noite? Não me entra na cabeça por que você há de ter um carro nessa cidade. Não chego a perceber por que há de pagar seguro, garagem e manutenção. Nem, tampouco, por que há de querer viver aí nessa selva. Quanto paga a esses ladrões pelo cubículo onde mora? Um penny que seja além de cinqüenta dólares será uma loucura. Por que não volta para Nova Jersey? É um mistério para mim — por que há de preferir o barulho, o crime, a fumaça. . .?" E minha mãe, só aos cochichos. Sophie continua cochichando! Vou jantar lá uma vez por mês, uma luta que requer toda a minha manha, astúcia e força; o fato é que tenho conseguido, durante todos estes anos, contra probabilidades imponderáveis, reduzir a uma vez por mês: toco a campainha, ela abre a porta, o cochicho começa imediatamente! "Não me pergunte que dia tive com ele ontem." Trato de não fazê-lo. "Alex", ainda sotto você, "quando ele passa um dia assim, não imagina que diferença faria um telefonema seu." Aceno, concordando. "E Alex", prossigo aprovando, não me custa nada, pode ser até que assim me livre daquilo, "na semana que vem é o aniversário dele. O Dia das Mães chegou e passou sem um cartão; teve também o meu aniversário; mas não faço caso dessas

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coisas. Mas ele vai fazer sessenta e seis, Alex. Não é nenhum bebê — atingiu um marco da existência. Por isso, mande um cartão. Não vai morrer por causa disso." Doutor, essa gente é incrível! Essa gente é inacreditável! Esses dois são os maiores produtores e acondicionadores de culpa de nosso tempo. Extraem-na de mim como gordura da galinha! "Telefone, Alex. Visite, Alex. Alex, mande notícias. Não saia sem nos avisar, por favor, não faça isso de novo. Na última vez que partiu, não nos avisou e seu pai já estava pronto para telefonar para a polícia. Sabe quantas vezes ele telefonou num dia sem que respondessem? Faça um cálculo, quantas?" "Mãe", informo-a entre dentes, "se eu morrer, sentirão o cheiro do meu corpo dentro de setenta e duas horas, garanto!" "Não fale assim! Deus castiga!", grita ela. Oh, e agora faz a expressão especial, para conseguir na certa o que quer. Aliás, o que posso mais esperar? Exigir o impossível da minha própria mãe? "Alex, o que custa pegar naquele telefone... seja como for, quanto tempo ainda nos terá por perto, amolando-o?" Doutor Spielvogel, esta é a minha vida, minha única vida, e é como se vivesse uma piada judaica! Sou o filho da piada judaica — só que não é piada. Por favor, quem nos aleijou deste modo? Quem nos tornou tão mórbidos, histéricos e fracos? Por que, por que hão de gritar ainda: "Cuidado! Não faça isto! Alex... não!" e por que, sozinho em minha cama em Nova. Iorque, ainda hei de castigar desesperadamente a minha bronha? Doutor, como chama esta doença que tenho? Será devido ao sofrimento judaico de que tanto ouço falar? Foi isso o que me adveio dos pogroms e da perseguição? Dos escárnios e das injúrias dos gentios durante esses dois mil anos adoráveis? Oh, os meus segredos, vergonha, palpitações, rubores, suores! A maneira como reajo às simples vicissitudes da vida humana! Doutor, não aguento mais viver assustado assim por nada! Dê-me masculinidade! Torne-me corajoso! Faça-me forte! Cure-me! Chega de ser um bom menino judeu, agradando publicamente a meus pais e sacudindo sozinho o meu troço! Chega!

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AS FOSSAS JUDAICAS Por volta do meu nono aniversário, um de meus testículos, ao que parece, decidiu que já vivera bastante lá embaixo no escroto e começou a tomar o rumo do norte. No início, senti-o bamboleando, inseguro, à borda da pélvis — e em seguida, como se o seu momento de indecisão houvesse passado, entrou na cavidade do meu corpo, como um sobrevivente retirado do mar para um bote salva-vidas. E ali ficou alojado, finalmente seguro atrás da fortaleza dos meus ossos, deixando o seu temerário companheiro a perigar sozinho naquele mundo de travas de chuteiras, paus de cerca, varas, pedras e canivetes, todas aquelas ameaças que transtornavam de pressentimento minha mãe, e acerca das quais me avisava, avisava, avisava. E avisava de novo. E tornava a avisar. E tornava a avisar. Desse modo, o meu testículo esquerdo estabeleceu residência nas proximidades do canal inguinal. Apertando com o dedo a prega entre a virilha e a coxa, podia ainda, nas primeiras semanas do seu desaparecimento, sentir o seu contorno gelatinoso, mas logo vieram as noites de terror, quando tateava minhas entranhas em vão, subindo, até as costelas — ai de mim, o viajante partira para regiões inexploradas e desconhecidas. Para onde teria ido? A que altura e a que distância a jornada chegaria a um fim? Será que algum dia, ao abrir a boca em aula, haveria de descobrir o meu ovo esquerdo na ponta da língua? Na escola, cantávamos junto com a professora Sou o dono do meu destino, o senhor da minha alma, e enquanto isso, dentro do meu corpo, fora deflagrada uma insurreição anárquica por um de meus subordinados, a qual me era impossível sufocar! Durante uns seis meses, até que a sua ausência fosse observada pelo médico da família, durante o meu exame físico anual, ponderei sobre o meu mistério, imaginando mais de uma vez — pois não houve possibilidade que deixasse de passar pela minha cabeça, nenhuma — se o testículo não teria recuado num mergulho para dentro dos intestinos, transformando-se num daqueles ovos que minha mãe arrancava, num úmido cacho amarelo, do escuro interior de uma galinha, cujas entranhas esvaziava no lixo. E se começassem a crescer seios em mim? E se o meu pênis se tornasse seco e quebradiço e um dia, enquanto estivesse urinando, quebrasse na minha mão? Estaria me transformando numa garota? Ou pior, num daqueles garotos (segundo os boatos no recreio) a quem Robert Ripley do Acredite se Quiser pagaria "uma recompensa" de cem mil dólares? Acredite se quiser, há um garoto de nove anos em Nova Jersey que é normal em todos os sentidos, só que pode ter filhos. Quem ganha a recompensa? Eu, ou a pessoa que me descobrir? O Dr. Izzie rolou entre os dedos o saco escrotal, como se fosse a fazenda de um terno que estivesse querendo comprar; em seguida, disse a meu pai que eu deveria tomar uma série de injeções de hormônios masculinos. Um de meus testículos nunca descera inteiramente — coisa incomum, mas não sem precedentes... "E se as injeções não derem resultado?'', indaga meu pai, alarmado. E aí. . .? Aí me mandam para a sala de espera ler uma revista. As injeções dão resultado. Escapo do bisturi. (Mais uma vez!)

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Oh, este pai! Tão bondoso, tão ansioso, tão falho de compreensão, tão cheio de prisão de ventre! Fadado a ser obstruído por este Sacro Império Protestante! A confiança em si e a habilidade, a altivez e os contatos, tudo o que permitira aos louros de olhos azuis de sua geração liderar, inspirar, comandar e, se necessário fosse, oprimir — de nada disso pudera recorrer sequer a um centésimo! Como poderia oprimir, se era o oprimido? Como poderia exercer algum poder, se era o incapaz? Como poderia apreciar o triunfo, se desprezava tanto os triunfadores e provavelmente a própria idéia de triunfo? "Eles adoram um judeu, sabe, Alex? Toda essa grande religião deles baseia-se na adoração de alguém que na época era reconhecidamente judeu. Agora, que me diz dessa estupidez? Que me diz dessa maneira de jogar areia nos olhos do público? Jesus Cristo, que eles vivem por aí dizendo a todos que era Deus, era na verdade um judeu! E a este fato, que absolutamente me estarrece quando penso nele, ninguém dá a menor atenção. Que ele era um judeu, como você e eu, que pegaram um judeu e transformaram-no numa espécie de Deus depois de morto, depois — e é isso que põe a gente inteiramente doido —, depois os sórdidos miseráveis se voltam; e quem são os primeiros a serem perseguidos na sua lista? A quem, durante dois mil anos, jamais deixaram de assassinar e odiar? Aos judeus! Que, para início de conversa lhes tinham dado o seu amado Jesus! Garanto-lhe Alex, que na sua vida inteira você nunca reconhecerá uma mistura de porcarias e de tolices asquerosas comparável à religião cristã. E é nisso que acreditam esses assim chamados figurões!" Infelizmente, na frente doméstica, o desprezo pelo inimigo poderoso não se tornou tão facilmente praticável como estratégia defensiva — pois, à medida que o tempo se passava, o inimigo ia sendo cada vez mais o seu próprio filho amado. De fato, no decurso desse extenso período de fúria que recebe o nome de minha adolescência, o que mais me aterrorizava em meu pai não era a violência que momentaneamente pudesse desencadear sobre mim, mas aquela que todas as noites, na mesa de jantar, eu desejava cometer sobre a sua carcaça ignorante e bárbara. Como desejei despachá-lo, uivando, do reino dos vivos, nos momentos em que se servia da travessa utilizando o próprio garfo, chupava a sopa da colher, ao invés de esperar polidamente que esfriasse, ou tentava, Deus do céu, expressar uma opinião sobre qualquer assunto. . . O mais especialmente terrificante com relação ao desejo assassino era o seguinte: se eu tentasse, na maior das probabilidades conseguiria! Na maior das probabilidades ele próprio me facilitaria! Bastaria só alcançar com os meus dedos, por cima dos pratos do jantar, direto à sua traquéia, para que ele instantaneamente afundasse para debaixo da mesa, de língua para fora. Berrar, ele poderia berrar, debater-se, ele poderia debater-se, e oh, estrebuchar, ele haveria de .estrebuchar! Mas defender-se? Contra mim? "Alex, deixe de ser respondão", avisa minha mãe, enquanto abandono a barulhenta cozinha feito Átila, o huno, deixando de lado, aos gritos, mais outro jantar inacabado, "continue com essa falta de respeito, que você ainda faz este homem ter um enfarte!" "Ótimo!", grito eu, batendo- lhe na cara a porta do meu quarto. "Esplêndido!", berro eu, tirando do armário o blusão de náilon que só uso de gola levantada (um estilo que ela detesta tanto quanto o próprio traje asqueroso). "Maravilhoso!", exclamo, e, de olhos lacrimosos, corro para a esquina a descarregar minha fúria na máquina de bolinha-e-buraco. Cristo, em face da minha rebeldia — se ao menos meu pai fosse a minha mãe! E minha mãe, o meu pai! Mas que barafunda dos sexos em nossa casa! Quem de direito deveria estar avançando sobre mim, recuava — e quem deveria estar recuando, avançava! Quem deveria estar ralhando, caía desamparado, vencido totalmente por um coração frágil! E quem deveria estar caindo, ao invés, ralhava, corrigia, reprovava, criticava, censurando sem parar! Preenchendo o vácuo patriarcal! Oh, graças a Deus! Graças a Deus! Pelo menos, ele tinha o cacete e os colhões! Vulnerável (para usar uma expressão moderada) como era a sua masculinidade neste mundo de gentios de cabelos louros e línguas afiadas, pelo menos entre as pernas tinha a constituição de um homem de importância, um par de volumosos e saudáveis colhões, que um rei se orgulharia em exibir, e uma vara de imponente dimensão e grossura. E eram dele: sim, disto estou absolutamente certo, dele se dependuravam, a ele pertenciam, dele não poderiam ser tirados! Está claro que pela casa eu via menos o instrumento sexual dele do que as zonas erógenas dela. E certa vez vi o seu sangue menstrual. . . vi-o brilhando, escuro, ao meu olhar, no oleado gasto, em frente à pia da cozinha. Apenas duas gotas vermelhas, há mais de um quarto de século, mas que ainda

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fulguram na imagem dela, dependurada, perpetua-mente iluminada, no meu Museu Moderno de Aflições e Ressentimentos (juntamente com uma caixa de Kotex (Marca de toalhas higiênicas - N. do T.) e as meias de náilon, de que logo falarei). Nessa imagem há também um interminável gotejar de sangue, passando por uma tábua de drenagem, para dentro da panela. É o sangue que ela está drenando da carne, a fim de torná-la kosher e própria para o consumo. Provavelmente estou confundindo as coisas pareço um filho da Casa de Atreus, com toda essa conversa sobre sangue —, mas vejo-a em pé junto à pia, salgando a carne de modo a retirar-lhe o sangue, quando o ataque de "incômodo feminino" fê-la precipitar-se para o quarto, com o mais alarmante dos gemidos. Eu não tinha mais de quatro ou cinco anos, e no entanto aquelas duas gotas de sangue que vi no chão da cozinha ainda me são visíveis. . . como a caixa de Kotex. . . como as meias deslizando pelas pernas dela acima. . . como — preciso mesmo dizê-lo? — a faca de pão com a qual o meu próprio sangue seria ameaçado, caso me recusasse a comer o meu jantar. Aquela faca! Aquela faca! O que me espicaça é que ela nem chegava a considerar o seu uso algo de que se devesse envergonhar, ou a cujo respeito precisasse guardar especial reserva. De minha cama, ouço-a tagarelar com as mulheres sobre os seus problemas, à volta da mesa de mah-jong: o meu Alex deu para ser tão enjoado para comer, que tenho de ficar em cima dele com uma faca. E nenhuma delas parece sequer achar abusiva esta sua tática. Tenho de ficar em cima dele com uma faca! E nenhuma dessas mulheres se levanta da mesa de mah-jong e se retira da casa! E isso porque, no mundo delas, essa é a maneira de lidar com os enjoados para comer — ficar em cima deles com uma faca! Foi anos mais tarde que ela gritou do banheiro: "Corra à farmácia! Traga uma caixa de Kotex! Imediatamente!" Que pânico em sua voz! Como corri! E depois, de novo em casa, esbaforido, entreguei a caixa aos dedos brancos que se estendiam para mim através de uma estreita frincha da porta do banheiro. . . Embora as suas complicações menstruais tivessem finalmente de ser resolvidas por meio de cirurgia, é difícil perdoá-la por ter me enviado naquela missão de misericórdia. Melhor seria ter sangrado no frio chão do nosso banheiro, melhor isso, do que enviar um menino de onze anos numa busca desatinada de toalhas higiênicas! Onde estava minha irmã, Deus do céu? E seu estoque de emergência? Por que essa mulher havia de se mostrar tão grosseiramente insensível à vulnerabilidade de seu garotinho — por um lado tão insensível à minha vergonha, e pelo outro afinando tanto com os meus mais profundos desejos? ... Sou tão pequeno que mal sei a que sexo pertenço, ou, pelo menos, assim acharia o senhor. Começo de uma tarde de primavera do ano Quatro. Flores alteiam-se em hastes roxas no caminho de terra, do lado de fora do nosso prédio. Com as janelas escancaradas, o ar no apartamento é aromático, suave da estação — e no entanto elétrico da vitalidade de minha mãe: ela terminou a lavagem de roupa da semana e pendurou-a na corda; fez um bolo para a nossa sobremesa de hoje à noite, lindamente sangrando — lá está esse sangue de novo! Lá está a faca de novo! — seja como for, habilmente sangrando de chocolate e baunilha, um feito que me parece tão milagroso como aqueles pêssegos suspensos em meio à massa tremulante da gelatina. Lavou a roupa e fez o bolo; esfregou os assoalhos da cozinha e do banheiro e cobriu-os de jornais; está claro que tirou a poeira; desnecessário dizer que passou o aspirador; limpou e lavou nossos pratos do almoço e (com a minha hábil ajudazinha) devolveu-os ao lugar no armário de milchiks da copa — e assobiando como um canário, a manhã toda, uma melodia desafinada de saúde e alegria, de despreocupação e auto-suficiência. Enquanto faço um desenho a crayon para ela, toma um banho de chuveiro — e agora, no sol que faz em seu quarto, está se vestindo para me levar à cidade. Senta-se à beira da cama, de porta-seios com enchimento e cinta, enrolando as meias e tagarelando. Quem é o garotinho bonzinho da mamãe? Quem é o melhor filhinho que uma mamãe já teve? De quem é que mamãe gosta mais do que tudo neste mundo? Estou inteiramente grogue de puro deleite, e enquanto isso sigo a jornada tensa, vagarosa, torturantemente deliciosa de suas meias transparentes que lhe conferem à carne um matiz de excitantes dimensões. Esgueiro-me até bem próximo, o suficiente para aspirar o perfume dos sais de banho em seu pescoço também para apreciar melhor as complexidades elásticas das presilhas balançantes onde serão oportunamente enganchadas as meias (sem dúvida com um toque de clarins). Aspiro o cheiro de óleo com que lustrou os quatro pés reluzentes da armação de mogno da cama, onde ela dorme com um homem que mora conosco à noite e nas tardes de domingo. Dizem que ele

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é o meu pai. Nas pontas de meus dedos, embora ela tenha lavado cada uma destas coisinhas com um pano quente molhado, sinto o cheiro do meu almoço, salada de atum. Ah, deve ser cheiro de cona o que estou sentindo. Talvez seja mesmo! Oh, chego a rosnar de prazer. Quatro anos de idade, mas ainda assim sinto em meu sangue — hum-m-m, lá vem outra vez o sangue — quão carregado de paixão é o momento, quão denso de possibilidades. Essa criatura gorda de cabelos compridos que chamam de minha irmã saiu para a escola. Esse homem, meu pai, está em algum canto fazendo dinheiro, da melhor maneira que pode. Eles dois saíram, quem sabe, talvez eu tenha sorte, talvez nunca mais voltem. . . Enquanto isso, é de tarde, é primavera e para mim, só para mim, uma mulher está estirando suas meias e cantando uma canção de amor. Quem vai ficar para sempre com mamãe, para todo o sempre? Eu. Quem é que vai junto com mamãe para qualquer parte no mundo onde mamãe se dirija? Ora, eu, está claro. Que pergunta tola — mas não me entenda mal, estou topando a brincadeira! Quem teve um bom almoço com mamãe, quem vai à cidade, como um bom menino, no ônibus, com mamãe, quem vai na loja grande com mamãe. . . e mais e mais e mais. . . ? tanto que há apenas uma semana mais ou menos, por ocasião do meu retorno ileso da Europa, mamãe saiu-se com esta. . . —Apalpe. —O quê? — e enquanto ela toma minha mão nas suas e a traz em direção ao seu corpo. — Mãe. . . — Não cheguei a aumentar dois quilos e meio - diz ela — desde que você nasceu. — Apalpe — ordena ela, e passa meus dedos tensos pela ondulação de seus quadris, que não são maus. . . E as meias. Mais de vinte e cinco anos se passaram (supõe-se que a brincadeira acabou!), mas mamãe ainda puxa as meias na frente do seu filhinho. Agora, entretanto, ele trata de olhar para o outro lado quando a bandeira sobe, flutuando, mastro acima — e não apenas porque zela pela sua saúde mental. Essa é que é a verdade, olho para o outro lado não por minha causa, mas em atenção a esse pobre homem, meu pai! Contudo, que alternativa, na verdade, resta a meu pai? Se ali, na sala de estar, o seu filhinho já crescido rolasse no tapete de repente com a mamãe, o que faria papai? Despejaria furioso, enlouquecido, um balde de água fervendo no casal? Sacaria da faca, ou iria para a outra sala ver televisão, até que tivessem terminado? "Por que está olhando para o lado?", indaga minha mãe, divertida, enquanto estica a costura da meia. "Está me tomando por uma garota de vinte e um anos; nem parece que limpei seu traseiro e beijei sua coisinha antigamente. Olhe só para ele" — isso dirigindo-se a meu pai. — "Olhe só, agindo como se a mãe fosse alguma beldade de sessenta anos." Uma vez por mês, meu pai me levava ao banho turco, na tentativa de dissolver — com o vapor, uma esfregadela e um sono prolongado e profundo — a pirâmide de excrecências que acumulara durante as semanas de trabalho anteriores. Guardamos nossas roupas no dormitório do último andar. Em filas de leitos de ferro, perpendiculares aos armários, jazem sob lençóis, como vítimas de uma catástrofe violenta, os homens que passaram pelas câmaras de vapor. Não fosse o repentino trovejar de um peido, ou os roncos pipocando esporadicamente ao meu redor como fogo de metralhadora, julgaria que estivéssemos num necrotério, e, por algum estranho motivo, nos despindo em frente dos mortos. Não olho para os corpos, mas pulo na ponta dos pés como um camundongo, tentando libertar-me das cuecas, antes que alguém possa olhar dentro delas, onde, para minha mortificação e frustração, sempre descubro, na parte mais recôndita da costura, uma pálida e fina pincelada do meu excremento. Oh, doutor, limpo, limpo, limpo, passo tanto tempo limpando quanto cagando, talvez até mais. Gasto papel higiênico como se crescesse em árvore — diz meu pai, invejando —, limpo até o meu pequeno orifício ficar vermelho como uma framboesa; mas ainda assim, por mais que almejasse agradar minha mãe, jogando na cesta de roupa suja, no final de cada dia, cuecas dignas de cobrir o buraco traseiro de um anjo, forneço, ao invés (será de propósito, herr doctor, ou inevitável?) as cuequinhas fedorentas de um garoto. Mas aqui no banho turco, por que hei de estar aos pulos? Não há mulheres aqui. Nem mulheres, nem gentios. Será possível? Nada com que se preocupar! Seguindo atrás das dobras na base de suas nádegas brancas, saio do dormitório e desço as escadas de metal até o purgatório, onde as angústias provenientes do fato de ser agente de seguros, chefe de família e judeu serão evaporadas e fustigadas do corpo de meu pai. No pavimento térreo, rodeamos uma pilha de lençóis brancos e um monte de toalhas encharcadas, meu pai empurra com o ombro

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uma pesada porta sem postigos, e penetramos numa zona escura e silenciosa, recendendo a gaultéria. Os sons são de uma platéia minúscula, pouco entusiasta, aplaudindo a cena de morte de alguma tragédia: são os dois massagistas golpeando e surrando a carne de suas vítimas, homens meio envoltos em lençóis e estendidos sobre lajes de mármore. Dão-lhes palmadas, amassam-nos e empurram-nos, torcendo-lhes vagarosamente os membros, como se fossem removê-los de uma vez das juntas — sinto-me hipnotizado, mas continuo a acompanhar meu pai, ao passarmos ao lado de uma piscina, um pequeno cubo verde de água gelada de parar o coração, chegando finalmente à sala de vapor. No momento em que ele abre a porta, o local evoca-me as eras pré-históricas, anteriores mesmo ao homem das cavernas e habitantes de lagos que estudei na escola, uma época em que, acima do transudante pântano que era a Terra, brancos gases torvelinhantes obstruíam a luz do Sol, transcorrendo eternidades antes que o planeta fosse drenado para o Homem. Instantaneamente, perco contato com aquele garotinho cu-de-ferro, que corre para casa depois da escola cheio de notas máximas, o ultra-aplicado inocente, incessantemente à procura da chave daquele mistério indevassável, a aprovação de sua mãe, e regresso a um período lamacento e chuvoso, anterior à existência de famílias tais como as conhecemos, um período de criaturas anfíbias, submersos seres pesadões e desprovidos de cérebros, de úmidos flancos carnudos e fumegantes torsos. É como se todos aqueles judeus, a se curvarem sob o jato frio do chuveiro no canto da sala de vapor, arrastando-se depois em busca de mais vapores densos e sufocantes; é como se houvessem viajado na máquina do tempo até uma época em que existissem como um rebanho de animais judeus, cuja única fala fosse oy, oy. . ., pois este é o som que produzem ao se arrastarem do chuveiro para o espesso jorro de vapor. Meu pai e os seus sofredores companheiros, até que enfim, parecem ter retornado ao habitai natural. Um lugar sem gentios e sem mulheres. Fico em posição de sentido entre as suas pernas, enquanto ele me cobre dos pés à cabeça com uma grossa espuma de sabão — e olho com admiração a frouxa substancialidade daquilo que pende sobre o banco de mármore sob o qual está sentado. O seu escroto é como o comprido rosto enrugado de um velho, com um ovo enfiado em cada uma das bochechas caídas — enquanto o meu poderia pender do pulso da boneca de uma meninazinha, como uma pequena bolsa cor-de-rosa. E quanto ao seu shlong, comparando com aquele dedinho de piroca que minha mãe gosta de designar em público (uma vez só, é certo, mas bastou para perdurar a vida inteira) como minha "coisinha", o seu shlong me faz lembrar as mangueiras de incêndio enroladas nos corredores da escola. Shlong: a palavra capta exatamente a brutalidade, a carnalidade que tanto admiro, o simples balancear irracional, pesado e desinibido daquele pedaço vivo de mangueira, através do qual passam jorros de urina grossos e fortes como uma corda — enquanto eu produzo delgados fios, amarelos que a minha eufemística mãe chama de "xixi". Xixi, acho eu, é o que a minha irmã faz, filetes amarelos com que a gente pode até coser. . . "Quer fazer um bom xixi?", pergunta-me ela — quando quero é fazer uma torrente, provocar uma inundação: quero fazer como ele, alterar as marés da latrina! "Jack", grita minha mãe para ele, "quer fazer o favor de fechar essa porta? Beleza de exemplo está dando, bem sabe para quem." Mas, se ao menos a coisa fosse assim, mãe! Se ao menos bem-sabe-para-quem pudesse ter-se inspirado na grosseria de seja-qual-for-o-seu-nome! Se ao menos eu pudesse ter- me nutrido com as profundezas de sua vulgaridade, ao invés de também ter-me tornado uma fonte de vergonha. Vergonha e vergonha e vergonha e vergonha — para onde quer que me volte, dou com alguma coisa de que me deva envergonhar. Estamos na loja de roupas do tio Nate, na Avenida Springfield, em Newark. Quero um calção de banho com um suporte atlético pregado. Tenho onze anos e o meu segredo é este: quero um protetor. Nada sei dizer, sei apenas ficar de boca calada, mas como se obtêm as coisas senão pedindo-as? O tio Nate, um homem elegante, de bigode, tira da vitrina um calção de banho para menino, do estilo exato que sempre usei. Diz que é o melhor tipo para mim, seca depressa e não provoca assaduras. "Qual é a sua cor favorita?", pergunta tio Nate, "talvez queira da cor da sua escola, hem?" Enrubesço, embora esta não seja a minha resposta. "Não quero mais este tipo de calção." Oh, posso sentir no ar o cheiro da humilhação, ouvi-la retumbando ao longe; a qualquer

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minuto desabará sobre a minha cabeça impúbere. "Por que não?", indaga meu pai. "Não ouviu seu tio dizer que este é o melhor?" "Quero um com protetor!" Sim, senhor, é isso que mexe com a minha mãe. "Para a sua coisinha?", pergunta ela, cora um sorriso divertido. Sim, mãe, imagine: para a minha coisinha. O homem poderoso na família — bem sucedido nos negócios, tirânico em casa — era o irmão mais velho de meu pai, Hymie, o único de meus tios e tias a ter nascido do lado de lá e a falar com sotaque. 0 tio Hymie estava no negócio de refrigerantes. Engarrafava e distribuía uma bebida doce carbonatada, chamada Squeeze, que sempre costumávamos ter às refeições. Com a neurastênica esposa Clara, o filho Harold e a filha Mareia, meu tio residia numa zona de Newark de densa população judaica, no segundo andar de uma casa para duas famílias, cujo pavimento térreo passamos a habitar em 1941, quando meu pai foi transferido para a agência de Essex County da Boston & Northeastern. Saímos de Jersey City por causa do anti-semitismo. Pouco antes da guerra, quando a Bund (Organização teuto-americana pró-nazista da década de 30 -N. do T.)se arrogava de importante, os nazistas costumavam fazer" piqueniques numa cervejaria ao ar livre, a alguns quarteirões da nossa casa. Quando passávamos de carro aos domingos, meu pai cobria-os de imprecações, com voz suficientemente alta para só eu ouvir. . .Certa noite, pintaram uma suástica na fachada de nosso prédio. Encontraram, depois, uma suástica, riscada na carteira de uma das crianças judias da classe de Hannah. E uma tarde a própria Hannah foi perseguida da escola até em casa por um bando de meninos, que se presumiu fossem anti-semitas em rebuliço. Meus pais ficaram fora de si. Quando, porém, o tio Hymie soube da história, riu-se: "Estão espantados com isso? Vivendo cercados de gentios, espantam-se com isto? ”O único lugar para um judeu viver é entre judeus, especialmente, disse ele, com uma ênfase cujo significado não me escapou inteiramente, especialmente quando as crianças estão sendo criadas com outras de sexo diferente. O tio Hymie gostava de mandar no meu pai, e tinha certo prazer em acentuar que em Jersey City somente o edifício em que morávamos era exclusivamente judeu, ao passo que em Newark, onde ele morava, todo o bairro de Weequahic o era. Na classe da minha prima Mareia, ginásio de Weequahic, entre duzentos e cinqüenta alunos havia apenas onze gentios e um negro. Onde esperar melhor que isso?, apregoou o tio Hymie. . . Sendo assim, meu pai, depois de muitas deliberações, pediu transferência para a sua cidade natal, e, embora o seu chefe relutasse em perder um funcionário tão dedicado (arquivando, naturalmente, o pedido), minha mãe acabou fazendo por sua conta uma chamada interurbana, para a agência central de Boston; após uma embrulhada que nem sequer comecei a entender, o pedido foi concedido: em 1941, mudamo-nos para Newark. Harold, meu primo, era baixo, de compleição taurina — como todos os homens de nossa família exceto eu — e muito parecido com o ator John Garfield. Minha mãe adorava-o e costumava sempre fazê-lo enrubescer (um talento que esta senhora possui), dizendo em sua presença: "Se fosse uma moça que tivesse esses cílios negros do Heshele, acreditem-me, já estaria em Hollywood, com um contrato de um milhão de dólares." Num canto do porão, em frente aos caixotes de Squeeze do tio Hymie, empilhados até o teto, Heshie guardava um conjunto de pesos York, com os quais se exercitava todas as tardes, antes da abertura da temporada de atletismo. Era uma das estrelas da equipe, detinha o recorde da cidade no arremesso de dardo e praticava lançamento de disco e peso. Numa competição no estádio da escola, porém, o técnico escalou-o para a corrida com barreiras, em substituição a um colega de equipe doente, e, numa queda no último obstáculo, ele fraturou o pulso. Minha tia Clara, nessa ocasião (ou seria assim o tempo todo?), estava sofrendo um de seus "ataques nervosos" — em comparação com tia Clara, minha agitada mãe era um Gary Cooper — e quando Heshie voltou para casa no fim do dia, com o braço na tipóia, ela caiu desmaiada na cozinha. A tipóia de Heshie mais tarde foi considerada como "a gota que fez transbordar o copo", seja qual for o sentido que isso tenha. Para mim, Heshie era tudo — isto é, durante o curto período em que o conheci. Costumava sonhar com o dia em que também me tornasse membro da equipe de atletismo e fosse usar curtos calções brancos, com uma abertura dos lados, onde coubessem os músculos tesos e salientes de minhas

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coxas. Logo antes de ser convocado para o Exército, em 1943, Heshie decidiu ficar noivo de uma moça chamada Alice Dembosky, a baliza da banda do ginásio. O talento de Alice consistia em girar não apenas um, mas sim dois bastões prateados simultaneamente — passá-los por cima dos ombros, fazê-los escorregar, serpenteantes, entre as pernas, e em seguida arremessá-los a cinco ou seis metros de altura, apanhando um e depois o outro, pelas costas. Só raramente deixava cair um bastão na relva, quando tinha o hábito de sacudir, impaciente, a cabeça e exclamar: "Oh, Alice!" numa vozinha que só podia fazer Heshie ficar ainda mais doido por ela, pois, pelo menos, era o efeito que produzia em mim. Ah, Alice, com aqueles compridos cabelos louros dançando-lhe nas costas e sobre o rosto, cabriolando com tanta exuberância pela metade do campo de provas! Oh, Alice, no seu saiote e calções brancos, com botas brancas chegando até a metade dos músculos de suas pernas esbeltas e fortes! Oh, Jesus, "Pernas Dembosky", em toda a sua beleza, tola, loura e gentia! Mais outra imagem! O fato de Alice ser tão clamorosamente uma shikse (Garota gentia, sentido um tanto depreciativo - N. do T.) constituía fonte interminável de desgostos na casa de Heshie, e até mesmo na minha. Quanto à comunidade de modo geral, acredito que chegasse a existir uma espécie de orgulho cívico pelo fato de uma gentia ter alcançado uma posição de tanto destaque nosso ginásio, cujos corpos docente e discente ram cerca de noventa e cinco por cento judeus. Por outro lado, quando Alice executava o que o alto-falante descrevia como a sua pièce de resistance — girar um bastão envolvido nas duas extremidades por panos embebidos em gasolina e depois incendiados —, a despeito de todo o solene aplauso concedido pelos admiradores locais, como tributo ao destemor e concentração da garota, a despeito do grave bum-bum-bum do nosso bumbo e dos arquejos e gritos estridentes que se elevavam, quando parecia que estava prestes a pôr fogo aos seios adoráveis — a despeito desta demonstração, genuína de admiração e interesse, acredito que houvesse ainda uma certa indiferença irônica por parte do nosso lado do campo, baseada na crença de que aquele era precisamente o tipo de talento que somente uma goy pensaria em cultivar. Também era essa a atitude predominante com relação ao atletismo de modo geral e ao futebol, em particular, entre os pais da vizinhança: era coisa para os goyim. Deixem-nos quebrar as cabeças pela "glória", pela vitória numa partida! Como dizia minha tia Clara, na sua voz tensa, de violino: "Heshie! Faça-me o favor! Não sinto necessidade de goyische nache (Prazeres gentios - N. do T.)!" Não preciso, não quero saber desses prazeres e satisfações que agradam tanto aos gentios. . . Em futebol, o nosso ginásio judaico não tinha qualquer possibilidade (embora a banda, devo dizer, ganhasse sempre prêmios e louvores); nossos patéticos resultados constituíam, é claro, um desapontamento para os jovens, a despeito do que os pais pudessem achar; ainda assim, mesmo como crianças, éramos capazes de compreender que perder no futebol não vinha a ser exatamente a catástrofe definitiva. Eis aqui, a propósito, um coro de torcida que o meu primo e os seus amigos costumavam entoar das arquibancadas, no final de um jogo em que mais uma vez Weequahic fosse derrotada. Eu costumava cantar junto com eles. Ikey, Mikey, Jake e Sam, Comedores de presunto não são, Não crêem na derrota, não vêem adversário, E têm os seus matzohs guardados no armário! Uai, uai, uai, Weequahic Hight! Que importava sermos derrotados? Tínhamos outras coisas de que nos orgulhar. Não comíamos presunto. Guardávamos matzohs nos nossos armários. Não na realidade, é claro, mas se quiséssemos poderíamos jazê-lo, e não nos envergonhávamos de dizer que realmente o faríamos! Éramos judeus — e não tínhamos vergonha em declará-lo! Éramos judeus — e não apenas não éramos inferiores aos gentios que nos derrotavam no futebol, como também havia a probabilidade de que, pelo fato de não nos empregarmos de coração pela vitória num jogo tão bárbaro, fôssemos superiores! Éramos judeus — éramos superiores! Pão branco, pão de centeio, Pumpernikel (Pão preto especial - N. do T.), challah (Pão adocicado especial - N. do T.), Todos que torcem por Weequahic, Se levantem num hurrah! Outro coro de torcida que aprendi com o primo Heshie, mais quatro linhas de poesia para aprofundar minha compreensão das injustiças que sofremos. .. A abominação, a repulsa que os gentios inspiravam aos meus pais estava começando a fazer algum sentido: os goyim pretendiam ser

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alguma coisa de especial, ao passo que nós éramos realmente os seus superiores morais. È o que nos tornava superiores era precisamente o ódio e o desrespeito que nos prodigalizavam com tanta decisão! Mas, e o ódio que lhes prodigalizávamos? Quanto a Heshie e Alice, que significado tinha aquilo? Quando tudo o mais falhou, convidaram o Rabino Warshaw a juntar-se à família, a fim de instar com o nosso Heshie para que não entregasse a sua jovem vida ao seu pior inimigo. Espiei, por detrás de uma cortina na sala de estar, o rabino caminhando a passos largos pela varanda, no seu casacão preto. Fora ele quem dera as lições de bar mitzvah a Heshie, e eu tremia ao pensar que um dia as daria a mim também. Por mais de uma hora, permaneceu em conferência com o rapaz rebelde e a família aflita. "Mais de uma hora do seu tempo", disseram eles depois, como se apenas aquilo bastasse para convencer Heshie. Mal o rabino saiu, porém, voltou o teto a estremecer sobre nossas cabeças. Abriu-se de repelão uma porta e eu corri para a parte dos fundos da casa, indo agachar-me atrás da cortina no quarto de meus pais. Lá estava Heshie no quintal, puxando os cabelos negros. Logo depois, surgiu o tio Hymie, calvo, brandindo o punho erguido, igualzinho a Lênin! E, em seguida, o tropel de tias, tios e primos mais velhos, apinhando-se entre os dois, para impedir que se pulverizassem num montículo de poeira judaica. Num sábado do início de maio, após passar o dia inteiro competindo numa prova de atletismo de âmbito estadual, em New Brunswick, Heshie regressou ao ginásio por volta do anoitecer e dirigiu-se imediatamente ao ponto de reunião local que ficava em frente, a fim de telefonar para Alice e comunicar-lhe que tirara o terceiro lugar no Estado, em arremesso de dardo. Ela respondeu que nunca mais poderia vê-lo de novo e desligou. Em casa, o tio Hymie estava pronto, à espera: o que fizera, declarou, Heshie forçara-o a fazer, atraindo tudo aquilo sobre sua cabeça teimosa e estúpida. Foi como se uma bomba arrasa-quarteirão houvesse caído sobre Newark, tão terrível foi o barulho que ressoou na escada: Heshie arremeteu do apartamento de seus pais, escada abaixo, passando pela nossa porta e precipitando-se para o porão, num longo buuum ecoando atrás dele. Verificamos, depois, que arrancara a porta do porão, literalmente, com a força de um ombro que, mediante aquela comprovação, certamente parecia ser, pelo menos, o terceiro ombro mais poderoso do Estado. Abaixo de nós, a quebra de vidros iniciou-se imediatamente, com Heshie arremessando garrafa após garrafa de Squeeze, de uma escura extremidade para outra do porão caiado de branco. Quando meu tio apareceu no topo dos degraus do porão, Heshie levantou uma garrafa acima da cabeça e ameaçou jogá-la no pai, se ele descesse. Tio Hymie desprezou a advertência e investiu sobre o filho. Heshie começou então a correr por entre as fornalhas, circundando as máquinas de lavar roupa, brandindo ainda a garrafa de Squeeze. Meu tio, porém, encurralou-o num canto, atracando-se com Heshie, derrubando-o no chão, e segurando-o até berrar o último palavrão — segurando-o (segundo a lenda dos Portnoys) durante quinze minutos, até despontarem, afinal, as lágrimas de rendição nos longos cílios hollywoodianos de Heshie. Nossa família não aceita facilmente a derrota. Naquela manhã, tio Hymie telefonara para Alice Dembosky (no apartamento de porão de um edifício da Avenida Goldschmith, onde seu pai era porteiro) e dissera- lhe que desejava encontrá-la junto ao lago, em Weequahic Park, ao meio-dia; era um assunto muito urgente, referente à saúde de Harold — não podia estender-se mais no telefone, pois mesmo a Sra. Portnoy não estava a par de todos os fatos. No parque, ele pôs a loura magricela de lenço na cabeça no assento da frente do carro, subiu as vidraças, e contou-lhe que o seu filho tinha uma doença incurável no sangue, a respeito da qual nada sabia. Era essa a história dele, sangue ruim, entenda como quiser. . . O médico dera ordens para que nunca se casasse. Ninguém sabia realmente quanto tempo Harold tinha de vida, mas, de sua parte, o Sr. Portnoy não desejava que o sofrimento que estava para vir fosse recair sobre uma inocente jovem como ela. Para amenizar o golpe, iria oferecer-lhe um presente, coisa pequena, que poderia utilizar como bem entendesse, talvez ate para ajudá-la a encontrar alguém mais. Retirou do bolso um envelope contendo cinco notas de vinte dólares. E a tola e assustada Alice Dembosky aceitou, comprovando assim o que todos, exceto Heshie (e eu), haviam suspeitado acerca da polaca desde o

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início: planejava agarrar Heshie por causa do dinheiro do pai e, em seguida, arruinar-lhe a vida. Quando Heshie morreu na guerra, a única coisa que as pessoas conhecidas acharam para dizer à tia Clara e tio Hymié, a fim de mitigar um pouco a sua dor foi: "Pelo menos, ele não lhes deixou uma esposa shikse. Pelo menos, não lhes deixou filhos goyische." Fim de Heshie e de sua história. Ainda que me achasse importante demais para pôr os pés numa sinagoga durante quinze minutos — que é tudo o que, ele está pedindo —, pelo menos deveria ter respeito suficiente para vestir roupas decentes para a ocasião, e não fazer escárnio de mim, da minha família e da minha religião. — Lamento muito — resmungo, dando-lhe as costas — mas, só porque se trata da sua religião, não quer dizer que seja a minha. —O que está dizendo? Vire de frente, exijo uma resposta cortês do senhor. —Não tenho religião — digo, e, condescendente, volto-me cerca de uma fração de grau. —Não tem, hem? —Não posso. —E por que não? O senhor é alguém especial? Olhe- para mim! O senhor é alguém muito especial? —Não acredito em Deus. —Vá tirar esse macacão, Alex, e vista umas roupas decentes. —Isto não é macacão, são calças Levi's. —Hoje é Rosh Hashanah (Dia do Ano Novo Judaico - N. do T.), Alex, e para mim isso é um macacão! Vá lá dentro pôr gravata, paletó, calças, camisa limpa, e volte parecendo um ser humano decente. E sapatos, meu senhor, sapatos de sair. —Minha camisa está limpa.. . —Ah, o senhor está indo por um péssimo caminho, senhor marmanjo. Com catorze anos e, creia-me, ainda não sabe nada do que deve saber. Vá tirar esses mocassins! Que diabo imagina que é algum pele-vermelha? —Olhe, não acredito em Deus e não acredito , na religião judaica, nem em qualquer religião. É tudo mentira. —Ah, é? —Não vou achar que essas festas querem dizer alguma coisa, quando elas não significam nada! E é tudo o que tenho a dizer. —Talvez elas não signifiquem nada porque nada sabe acerca delas, senhor figurão. O que sabe sobre a história do Rosh Hashanah? Alguma coisa? Alguma coisa de apreciável? O que sabe acerca da história do povo judeu, a ponto de referir-se à sua religião, que foi bastante boa para pessoas muito mais sabidas e mais velhas do que o senhor, durante dois mil anos, a ponto de chamar de mentira a todo esse sofrimento e aflição? —Não existe esse negócio de Deus e jamais existiu. Lamento muito. No meu dicionário isso se chama mentira. —Entãoquemfoiquecriouomundo,Alex?—pergunta ele desdenhosamente. — Foi obra do acaso segundo você. Alex — diz minha irmã —, papai só está querendo dizer que, mesmo no caso de não querer ir com ele, bem que podia ir mudar de roupa. . . Mas por causa de quê? — grito eu. — Por causa de uma coisa que nunca existiu? Por que você não me diz para ir mudar minha roupa por causa de um gato ou de uma árvore, porque ao menos essas coisas existem? Ainda não me respondeu, senhor sabichão — insiste meu pai. — Deixe de querer mudar de assunto. Quem foi que criou o mundo e a gente que nele mora? Ninguém? —Isso mesmo! Ninguém! —Ah, como não? — retruca meu pai. — Essa foi brilhante! Ainda bem que não cheguei até o ginásio, já que passando por ele você ficou assim. —Alex — insiste minha irmã suavemente, como sempre, pois também ela está um pouquinho velha se ao menos pusesse um par de sapatos. . . Você é ruim feito ele, Hannah! Se Deus não existe, por que tem de meter os sapatos nisso? Uma vez por ano, a gente pede para ele fazer alguma coisa e este senhor se considera importante demais para nos atender. E assim é o seu irmão, Hannah, o respeito e o amor que ele nos tem.. Ele é um bom menino, papai, respeita-o e gosta de você...

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— E quanto ao povo judeu? — agora ele co meça a gritar e a mexer com os braços para não chorar. Em nossa casa, basta que se murmure a palavra amor e os olhos ficam logo rasos d'água. — Acaso ele respeita? Tanto quanto a mim, quase tanto. . . — Súbito, ele se acende. Volta-se para mim com um novo pensamento brilhante. — Diga-me uma coisa, meu filho sabido, conhece o Talmude? Conhece história? Bastou ser bar mitzvah e pronto, acabou a educação religiosa. Sabe que a gente estuda a vida inteira a religião judaica e quando morre ainda não terminou? Já que se considera pronto aos catorze anos, diga-me, sabe alguma coisa acerca da história maravilhosa e da herança do destino do seu povo? As lágrimas já lhe chegaram às bochechas e há mais saindo dos olhos. — Tira nota máxima na escola — lamenta ele —, mas cá fora, na vida, é tão ignorante como no dia em que nasceu. Bem, parece que chegou afinal a ocasião de desabafar, acabo de senti-lo. Ignorante é você! Alex! — grita minha irmã, segurando minha mão, como se temesse que eu a erguesse contra ele. Ignorante é ele! Me enchendo com essa bosta! Cala a boca! Chega! — exclama Hannah. — Vá para o seu quarto. . . Enquanto isso, meu pai se arrasta até a mesa da cozinha, de cabeça caída e corpo curvado, como se tivesse levado uma granada no estômago. E levou bem sei. — Vista trapos se quiser, Alexander, ande feito um mendigo, me envergonhe, me insulte, me desafie, me bata, me odeie. . . A moda é minha mãe chorar na cozinha, meu pai na sala de estar — escondendo os olhos atrás do Newark News —, Hannah chora no banheiro, e eu choro no caminho entre minha casa e a máquina caça-níqueis na esquina. Mas justamente neste Rosh Hashanah tudo está trocado, e a razão por que meu pai está chorando na cozinha, ao invés de minha mãe — chora sem a proteção do jornal e com tão lamentável fúria —, é porque minha mãe está numa cama de hospital, convalescendo de uma operação: isso explica a torturante solidão dele neste Rosh Hashanah, e a necessidade especial da minha afeição e obediência. Mas neste momento da história da nossa família, se é disso que ele precisa, podem apostar na certa que não irá obtê-las de mim. Porque, de minha parte, a necessidade é justamente de não lhas dar! Ah, sim, vamos soltar mesmo os cachorros em cima dele, hem, Alex, o piquinha! Pois é, Alex, o piquinha, descobre que a vulnerabilidade cotidiana do pai está bastante agravada pelo fato de que a esposa desse homem (pelo menos é o que me contam) quase morreu, e daí Alex, o piquinha, aproveita para enterrar um bocadinho mais o gládio do rancor num coração que já sangra. Alexandre, o Grande! Não! Aqui não se trata de algo mais do que rancor de adolescente ou alguma fúria de Édipo — aqui se trata da minha integridade! Não farei o que Heshie fez! Passei a infância convencido de que era só questão de querer, e o meu forçudo primo Heshie, o melhor arremessador de dardo de toda a Nova Jersey (uma distinção, diria eu, rica em simbolismo para este menino em pleno crescimento, com visões de suspensórios atléticos dançando-lhe na cabeça), com a maior facilidade teria içado meu tio de cinqüenta e dois anos às costas para, de um golpe só, pregá-lo na porta do porão. Por isso, acho que ele perdeu de propósito. Mas por quê? Ele bem sabia mesmo sendo criança eu o percebera — que o pai fizera algo de desprezível. Será que tinha medo de vencer? Mas, por que, já que o pai agira com tanta vileza para com ele? Teria sido covardia? Medo? Ou talvez, sabedoria? Sempre que contam a história do que o meu tio foi forçado a fazer, a fim de que o meu falecido primo visse as coisas direito, ou quando tenho ocasião de refletir sobre o acontecimento, percebo em seu âmago um enigma, uma profunda verdade moral que, se ao menos eu pudesse compreender, poderia livrar-me, a mim e a meu pai, de alguma confrontação definitiva e inconcebível. Por que Heshie capitulou? Deveria eu fazer outro tanto? E de que maneira, sem deixar de permanecer "fiel a mim mesmo"? Oh, mas por que não procuro simplesmente tentar? Tente um bocadinho, seu piquinha! Deixe de ser tão fiel a si mesmo, ao menos por meia hora! Sim, preciso ceder, preciso, especialmente sabendo de tudo por que passou meu pai. Cada minuto de angústia, das dezenas de milhares de que precisaram os médicos para descobrir, primeiro, que havia algo crescendo no útero de minha mãe e, segundo, se aquilo que fora localizado seria maligno. . . se aquilo que tinha seria. . . Oh, essa palavra que não nos atrevemos sequer a pronunciar na presença

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um do outro! A palavra que não temos a coragem de soletrar inteira! A palavra a que aludimos apenas por uma abreviação eufemística que ela mesmo nos forneceu, antes de entrar no hospital para os testes: C-A. E basta! Esse n, esse c, esse e, esse, que só de ouvir quase nos mata de pavor! Que coragem a dela, concordam nossos parentes, só em dizer essas duas letras! E não bastam as palavras inteiras que cochichamos atrás das portas? Se bastam! Se bastam! Palavrinhas feias e frias, com cheiro de éter e de álcool de corredores de hospital, palavras que evocam os instrumentos cirúrgicos esterilizados, palavras como nódulo e biopsia. . . E aquelas outras que furtivamente, sozinho em casa, eu costumava olhar no dicionário, só para vê-las impressas, a crua evidência da mais remota das realidades, palavras como vulva e vagina, cujas definições jamais me servirão de novo como fonte de prazer ilícito. . . E, então, aquela palavra que esperamos ouvir com tanta ânsia, cujo som restituirá à nossa família o que agora parece ter sido a mais maravilhosa e satisfatória das existências, que é hebreu para os meus ouvidos, como b'nai ou boruch — benigno! Benigno! Boruch atoh Adonai, que seja benigno! Louvado sede vós, ó Senhor, Nosso Deus, que seja benigno! Ouvi, ó Israel, resplandecei vosso semblante, o Senhor é Um Só, honrai vosso pai, vossa mãe, prometo, juro que honrarei — mas que seja benigno! E o era. Um exemplar de A Semente do Dragão, de Pearl S. Buck, está aberto sobre a mesa ao' lado da cama, onde há também um copo cheio até a metade de jinjibirra. Faz calor, tenho sede e minha mãe, a leitora de minha mente, diz-me para beber o que resta no seu copo, pois estou precisando mais do que ela. Seco como estou, porém, não quero beber do copo em que ela tenha encostado os lábios — pela primeira vez em minha vida, essa idéia me dá repulsa. "Beba." "Não estou com sede." "Mas você está suando." "Não estou com sede." "Deixe de bancar o educado de repente." "Mas eu não gosto de jinjibirra." "Você? Não gosta de jinjibirra?" "Não." "Desde quando?" Oh, Deus! Ela está viva e lá vamos nós de novo — ela está viva e recomeça a nossa tourada! Conta-me como o Rabino Warshaw veio visitá-la e conversou meia hora com ela, antes que entrasse — diz ela pitorescamente — na faca. Não foi gentil? Não foi cortês? (Vinte e quatro horas depois de acordar da anestesia, ela já estava sabendo, veja só, eu me recusara a trocar a minha calça blue-jeans para a festa!) A mulher que está partilhando o quarto com ela, de cujo olhar amoroso e devorador estou tentando escapar e cuja opinião, segundo me lembro, ninguém pedira, resolve anunciar que o Rabino Warshaw é um dos homens mais reverenciados em toda a Newark. Reverenciado. Seis sílabas, conforme pronunciaria o rabino no seu vigoroso estilo anglo-oracular. Começo a bater levemente no bolso em que está minha luva de beisebol, sinal de que estou pronto para ir embora; é só me deixarem. "Ele adora beisebol, seria capaz de passar o ano inteiro jogando", diz minha mãe para a Sra. Reverenciado. Num murmúrio, participo que tenho um "jogo da liga". "São as finais. Para o campeonato." "Está bem", diz minha mãe, e acrescenta ternamente: "Você veio, cumpriu o seu dever, agora pode ir correndo para o seu jogo da liga." Reconheço pela voz como se sente feliz e aliviada por estar viva nesta linda tarde de setembro... E não é também um alívio para mim? Não foi para isso que rezei, a um Deus em que nem mesmo acredito? Não seria a coisa mais inconcebível a vida sem ela cozinhando para nós, fazendo limpeza para nós. . . fazendo tudo para nós? Foi para isso que rezei e chorei: para que passasse por aquela operação e continuasse viva. E depois voltasse para casa, a fim de ser de novo a nossa mãe inestimável. "Corra, meu nenezinho", cantarola docemente para mim — oh, como sabe se mostrar tão doce e boa, tão maternal. É capaz de passar horas inteiras jogando canastra comigo, quando fico de cama, como ela está agora: imagine, a jinjibirra que a enfermeira lhe trouxe por causa da séria operação que teve, ela oferece a mim, porque me sinto encalorado! Sim, não há dúvida de que me dará o alimento de sua boca, isso é fato comprovado! E, no entanto, não fico nem cinco minutos ao lado de sua cama. "Corra", diz minha mãe, enquanto a Sra. Re-ve- ren-ci-a-do, que num instante já deu jeito de se fazer minha inimiga para o resto da vida, diz: "Não demora nada e mamãe voltará para casa, e tudo entrará direitinho nos eixos. . . Vá, corra, corra, hoie em dia eles vivem correndo", diz a boa e compreensiva senhora — ah, como são todas boas e compreensivas, tenho vontade de estrangulá-las! — "andar devagar é coisa que não sabem, Deus que os proteja." Então eu corro. E como! Após dois sôfregos minutos junto dela — dois minutos do meu precioso tempo, logo no dia seguinte àquele em que os médicos lhe enfiaram debaixo da roupa (foi o que

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imaginei, antes que minha mãe falasse em "faca", a nossa faca) uma espécie de pá horrível, a fim de puxar para fora o que tinha de pobre dentro do seu corpo, exatamente como ela fazia com as galinhas mortas. E jogaram na lata de lixo. Onde fui concebido e guardado, agora não existe nada, só um vazio! Pobre mãe! Como posso sair correndo e deixá-la assim, depois de tudo por que passou? Afinal de contas ela me deu. . . a própria vida! Como posso ser tão cruel? "Vai me deixar, meu nenezinho, tem coragem de deixar mamãe?" Nunca, respondia eu, nunca, nunca, nunca. . . E, no entanto, agora que foi esvaziada, não tenho nem coragem de encará-la! Desde então, venho evitando fazê-lo! Oh, os seus cabelos de um ruivo pálido, espalhados pelo travesseiro, em compridas mechas de elásticos aneizinhos que quase não tornei a ver! Os tênues crescentes de sardas que, segundo ela diz, cobriam-lhe o rosto todo, quando era muito criança e que certamente jamais veria de novo! E aqueles olhos castanho-avermelhados, da cor da crosta do bolo de mel, ainda abertos, ainda me dando amor! E a sua jinjibirra — sedento como estava, não consegui forçar-me a bebê-la! Então saio correndo mesmo, deixo o hospital, chego ao pátio de recreio e vou direto para o centro de campo, posição que ocupo numa equipe de softball (Tipo de beisebol jogado por crianças, com bola mole. - N. do T.) que usa blusões de seda azul-dourada, com o nome do clube rabiscado em grandes letras de feltro branco de um ombro ao outro, SEABEES A. C. Graças a Deus pelos Seabees A. C! Graças a Deus pelo centro do campo! Doutor, o senhor não faz idéia como é bonito lá, a gente sozinho naquele espaço todo... Entende alguma coisa de beisebol? O centro do campo é como um posto de observação, uma espécie de torre de controle, de onde se pode ver tudo e todos, saber o que está acontecendo no instante em que acontece, não apenas pelo som da rebatida como também pela centelha de movimento que percorre os bases no instante em que a bola vem voando sobre eles; e depois que passa, "É minha", a gente grita, "é minha!". E lá se vai atrás dela. Pois no centro do campo, se a gente alcança a bola, ela é da gente. Que diferença de minha casa; aqui ninguém apanha o que digo que é meu! Infelizmente, fui um rebatedor nervoso demais para poder fazer parte da equipe do ginásio — falhei tantas vezes nas rebatidas de péssimos arremessos, durante as eliminatórias para a formação do quadro de calouros, que, finalmente, o irônico treinador chamou-me à parte e disse: "Meu filho, você tem certeza de que não precisa de óculos?" E me mandou embora. Mas eu tinha forma! Tinha estilo! Na minha liga de sojtball do pátio de recreio, onde a bola vinha um pouquinho mais devagar e maior, sou a estrela que sonhava ser na equipe da escola. É claro que naquele esforço de dar o máximo também erro freqüentemente, mas, quando acerto, a bola vai a longas distâncias, doutor, passa por cima das cercas e tem o nome de circuito. Oh, não há mesmo nada que se compare na vida com aquele prazer de circundar numa corridinha vagarosa a segunda base, simplesmente por que não há mais pressa, pois a bola que a gente rebateu sumiu pelo espaço. . . E eu sabia também interceptar; quanto mais tivesse que correr, melhor: "Peguei! Peguei! Peguei!", gritava, precipitando-me para a segunda base, apanhando no reforço da luva, rente ao solo, uma bola violenta vindo baixo pelo meio, um tiro baixo, achava alguém. . . ou então eu ia para trás, "Peguei, peguei!" — para trás com a maior facilidade e elegância, na direção da cerca de arame, movendo-me praticamente em câmara lenta, naquela deliciosa sensação de ser um Di Maggio agarrando a bola por cima do ombro, como se fosse algo celestial... Ou correndo! virando! pulando como o pequeno Al Gionfriddo — um jogador de beisebol, doutor, que certa vez fez uma grande proeza. . . Ou ainda, atento e calmo — sem tremor algum, sereno —, parado ali ao sol (como se fosse no meio de um campo vazio, ou como se estivesse matando o tempo na esquina), sem nenhuma preocupação deste mundo, como o meu rei dos reis, o Senhor meu Deus, o Duque em pessoa (Snider, doutor, este' nome talvez surja de novo), inteiramente à vontade à espera de uma bola alta (uma tremenda bola alta, ouço Red Barber berrar, detrás do seu microfone — rebatida na direção de Portnoy; Alex vai nela, Alex vai nela!), que cai na minha luva — ploque! — pronto, a terceira saída do turno (Alex recolhe para a terceira saída, senhores, transmitindo o velho Connie, sob o patrocínio da P. Lorillard and Company). Em seguida, num movimento só, enquanto o velho Connie transmite uma mensagem comercial, dirijo-me para o banco, agora segurando; a bola com os cinco dedos da minha mão esquerda nua, e atingindo o quadrado — após arriar o pé no saco da segunda base — jogo-a delicadamente, num movimento do pulso, para o defensor de área da

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equipe adversária que vem entrando no campo. Ainda sem me deter, sigo na corrida, movendo os ombros, de cabeça pendida, um pouco de pés para dentro, os joelhos subindo e descendo vagarosamente, numa brilhante imitação do Duque. Oh, a tranqüila displicência desse jogo! Não há um único movimento que eu não sinta ainda no âmago dos músculos e das juntas. Como me curvar para apanhar a luva e como jogá-la de lado, como experimentar o peso do bastão, como segurá- lo, levá-lo e brandi-lo em círculo, erguê-lo acima da cabeça, flexionando e soltando os ombros e o pescoço, antes de entrar e plantar os pés exatamente no lugar certo do batedor — e como, ao fazer ponto contra apregoado (o que constitui tendência minha, pois gosto de visagens contra os maus arremessos), dar um passo fora e expressar, quando muito com umas breves batidas do tostão no solo, a dose certa de exasperação contra os poderes superiores. . . Sim, cada detalhezinho tão bem estudado e aprendido, que se torna simplesmente possível a eventualidade de uma situação na qual eu não saiba como me mover, ou para onde me mover, o que dizer, ou o que não dizer. . . É verdade não? — Incrível, mas ao que parece é verdade para pessoas que sentem na vida a facilidade, a segurança, a ligação simples e essencial com o que se está passando, que eu costumava experimentar como centro de campo dos Seabees. Não é dizer, veja bem, que a gente fosse o centro de campo ideal, mas apenas que se sabia exatamente, nos mínimos detalhes, como um centro de campo deveria agir. E existem pessoas assim nas ruas dos Estados Unidos da América? Pergunto ao senhor, por que não serei eu uma delas? Por que não posso existir agora como existia para os Seabees, lá no centro do campo? Oh, ser um centro de campo, um centro de campo — e nada mais! Mas sou algo mais do que isso, ou pelo menos é o que me dizem. Sou um judeu. Não! Não! Sou um ateu, grito eu. Nada sou no que diz respeito a religião, e não fingirei ser algo que não sou! Estou pouco ligando se meu pai se sente solitário e necessitado, minha verdade é minha verdade, lamento muito, mas ele terá de engolir a minha apostasia inteirinha! E tampouco me importa quão perto estivemos de velar minha mãe — na verdade, fico imaginando se toda a histerectomia não terá sido dramatizada como c-A para me apavorar! Só com a finalidade de que eu viesse a ser de novo um garotinho obediente e indefeso! Não consigo encontrar argumento para a existência de Deus, ou para a benevolência e virtude dos judeus, no simples fato de o homem mais re-ve-ren-ci-a-do de Newark ter vindo sentar "uma meia hora inteira" junto à cama de minha mãe. Se houvesse esvaziado a sua comadre, ou servido suas refeições, isso teria significado alguma coisa, mas só por ficar meia hora junto de uma cama? O que mais ele poderia fazer, mãe? Para um homem como ele, dizer bonitas banalidades para criaturas loucas de pavor é a mesma coisa que jogar beisebol para mim! Ele adora fazer isso! E quem não adoraria? Mãe, o Rabino Warshaw é um impostor gordão, pomposo e irritável, com um complexo de superioridade absolutamente grotesco, uma verdadeira personagem de Dickens, o tipo do camarada que se a gente vê sentado ao nosso lado num ônibus, sem saber que é tão reverenciado, é capaz de pensar: "Como este homem fede a cigarro!" Só isso, e mais nada. É um homem que lá pelas tantas se convenceu de que a unidade básica de sentido na língua inglesa é a sílaba; daí, não há palavra que pronuncie que não tenha pelo menos três delas, nem mesmo o vocábulo Deus. Precisava ver a cantoria que faz de Israel. Para ele é comprida como um trem. Lembra-se dele no meu bar mitzvah, que dia de gala teve com Alexander Portnoy? Por que, mãe, terá cismado de me chamar pelo nome todo? Só se foi para impressionar a vocês, os idiotas da assistência, com todas aquelas sílabas! E deu resultado! Se deu! Trate de entender, a sinagoga é o ganha-pão dele, nada mais do que isso. Ir aos hospitais dizer coisas brilhantes sobre a vida (sílaba por sílaba) para pessoas tremendo sobre a morte em seus pijamas, é o seu ofício, como o de meu pai é vender seguros de vida! É o que eles fazem para garantir a subsistência, e, se quer se sentir piedosa com relação a alguém, sinta-se piedosa com relação a meu pai, com os diabos, e curve-se diante dele como se curva diante do sacana deste gordão, porque meu pai trabalha de jato e não se considera, de quebra, nenhum assistente especial de Deus. Nem vem com aquelas malditas sílabas! "Be-en-vi-indo se-ja à-a si-i-na-a-go- ga." Ó Deus, ó De-ee-eus, se estais lá em cima refulgindo vosso semblante, livrai- nos daqui por diante da enunciação dos rabinos! E por que não dos próprios rabinos? Sim, e por que não da própria religião, quanto mais não seja, em nome da nossa dignidade humana?! Justos céus, mãe, o mundo inteiro sabe disso, por que não você? A religião é o ópio do povo!

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E se acreditar nisso faz de mim um comunista de catorze anos, então é exatamente o que sou, com muito orgulho! Prefiriria ser um comunista na Rússia a ser um judeu na sinagoga — diga isso bem na cara do meu pai. Foi outra granada na barriga dele (conforme eu pressentia); lamento muito, mas acontece que acredito nos direitos do homem, direitos que na União Soviética são extensivos a todas as pessoas, independente de raça, religião ou cor. Devido ao meu comunismo é que insisto agora em comer com a faxineira, quando volto para almoçar nas segundas-feiras e dou com ela — como junto com ela, mãe, na mesma mesa, e da mesma comida. Está bem claro? Se para mim tem resto da carne assada requentada, então ela ganha resto da carne assada requentada, e não queijo ou atum, servidos em prato de vidro especial, para não absorver os germes dela! Mas nada disso, ao que parece, mamãe chega a compreender; é esquisito demais para ela. Comer junto com a shvartze? Que história é essa, a minha? "Espere", cochicha ela para mim no corredor, no instante em que volto da escola, "a moça vai acabar dentro de poucos minutos..." Mas eu é que não tratarei nenhum ser humano (fora da minha família) como inferior! Será que você não consegue compreender um pouco do princípio da igualdade? Com os diabos! E digo-lhe mais, se ele usar outra vez a palavra negro na minha presença, enfio-lhe um punhal de verdade no seu maldito coração de fanático! Ficou bem claro para todo mundo? Estou pouco ligando que suas roupas fiquem tão fedorentas, quando ele volta para casa após cobrar o débito dos negros, que têm de ser dependuradas no porão para secar. Estou pouco ligando que eles quase o ponham maluco deixando o seguro atrasar. Essa é apenas mais outra razão para ser compassivo, ora bolas, ser cordial e compreensivo e deixar de tratar a faxineira como se ela fosse alguma besta de carga, sem a mesma paixão por dignidade que outras pessoas têm! E isso também se aplica aos goyim! Nem todos têm a sorte de nascer judeus, sabe, por isso sejamos um pouco mais tolerantes com os menos afortunados, está bem? Pois já estou farto de tanto goyische pra cá e tanto goyische pra lá! Se é ruim, são os goyim, se é bom, são os judeus! Não estão vendo, meus queridos pais, de cujos lombos de algum modo saí, que esta maneira de pensar é um tanto bárbara? Que não expressa outra coisa senão o seu medo? A primeira diferença que aprendi de vocês, estou certo, não foi noite e dia, ou frio e quente, mas sim goyische e judaico! Mas agora acontece, meus queridos pais, parentes e amigos, aqui reunidos para a celebração do meu bar mitzvah, acontece, seus idiotas, seus idiotas tacanhos! — oh, como os odeio por sua tacanhice judaica! Inclusive o senhor, Seu Rabino Sílaba, fique sabendo que esta foi a última vez que me mandou dar um pulo na esquina para comprar mais outro maço de cigarros Pall Mall, a que o senhor tanto fede, caso ninguém ainda lhe disse — acontece que a vida tem um significado um bocadinho maior para que possa ser contido nessas categorias repelentes e inúteis. E ao invés de chorar por aquele que se decide aos catorze anos a jamais pôr os pés de novo numa sinagoga, ao invés de lamuriar-se por aquele que deu as costas à saga do seu povo, tratem é de chorar por vocês mesmos, que não param de chupar e chupar a uva azeda dessa religião! Judeu judeu judeu judeu judeu judeu! Já está espirrando pelos meus ouvidos, esta saga de judeus sofredores! Façam-me um favor, meu povo, enfiem a herança sofredora no seu eu sofredor, pois acontece que também sou um ser humano! Mas você é um judeu, diz minha irmã. É um garoto judeu, mais do que pensa, e não está fazendo outra coisa senão se tornar infeliz, berrando ao vento. . . Através das lágrimas, vejo-a explicar pacientemente a minha situação, aos pés da minha cama. Tenho catorze anos e ela, dezoito, cursando o primeiro ano do Colégio de Professoras do Estado de Newark, uma moça grande, pálida, destilando melancolia por todos os poros. Às vezes vai a um baile popular da ACM de Newark, em companhia de uma outra moça grande, feia, chamada Edna Tepper (que, no entanto, tem a seu favor um par de peitos do tamanho da minha cabeça). Este verão ela vai ser consultora de artesanato do acampamento do Centro da Comunidade Judaica. Tenho-a visto ler um livro capa mole esverdeada, chamado O Retrato do Artista quando Jovem. Ao que parece, tudo o que sei a respeito dela são estes poucos fatos, além, é claro, do tamanho e cheiro do seu porta-seios e calcinhas. Que anos de confusão! Quando terminarão eles? Pode me dar uma data aproximada, por favor? Quando estarei curado do que apanhei! Sabe, pergunta-me ela, onde estaria agora se houvesse nascido na Europa, ao invés de na América? A questão não é essa, Hannah. Morto, diz ela. A questão não é essa!

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Morto. Na câmara de gás, ou fuzilado, ou incinerado, ou chacinado, ou enterrado vivo. Sabe disso? E podia gritar à vontade que não era judeu e sim um ser humano, que nada tinha a ver com a sua estúpida herança sofredora, ainda assim seria levado para o seu destino. Estaria morto, eu estaria morta e... Mas não é sobre isto que estou falando! Sua mãe e seu pai estariam mortos. Por que há de estar do lado deles! Não estou do lado de ninguém, diz ela. Estou só lhe dizendo que ele não é uma pessoa tão ignorante quanto você pensa. Vai me dizer que minha mãe também não É Vai me dizer que os nazistas fazem que tudo o que ela diz e faz seja inteligente e brilhante? Vai me dizer que os nazistas são uma desculpa para tudo o que acontece nesta casa? Oh, não sei, diz minha irmã, talvez; talvez sejam. E agora ela começa a chorar também, fazendo-me sentir um monstro, pois deita lágrimas por seis milhões, pelo menos é o que me parece, ao passo que eu verto a minha só por mim mesmo. Ou pelo menos é o que me parece.

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MALUCO POR POMBA Terei já contado que, quando tinha quinze anos, tirei meu troço para fora das calças e descasquei uma punheta no ônibus 107 que vinha de Nova Iorque? Passara um magnífico dia, que me fora proporcionado por minha irmã e Morty Feibish, o seu noivo: uma partida dupla de beisebol em Ebbets Field, seguida de uma peixada em Sheepshead Bay. Um dia encantador. Hannah e Morty iam pernoitar em Flatbush com a família dele e por isso me puseram no metrô para Manhattan, por volta das dez horas. De lá tomei o ônibus para Nova Jersey, no qual, chego a pensar, tive nas mãos não só o meu cacete, como também a minha própria vida. Antes mesmo de sairmos do túnel Lincoln, a maioria dos passageiros estava cochilando — inclusive a garota sentada ao meu lado, cujas dobras da saia escocesa eu começara a roçar com a perna da minha calça de veludo pique — e, ao atingirmos o viaduto Pulaski, já o empunhava. Talvez o senhor julgue que, após as fartas satisfações do dia, eu já houvesse esgotado a minha dose de excitação e a minha vara fosse a última coisa a me passar pela cabeça naquela noite, a caminho de casa. Bruce Edwards, um novo pegador, saído das ligas menores — o homem de que nós precisávamos (nós sendo Morty, eu e Burt Shotton, o técnico dos Dodgers) —, viera logo de seis para oito nos dois primeiros jogos nas ligas principais. Ou teria sido Furillo? Seja como for, que coisa louca sacudir a minha piroca daquela maneira! Imagine o que teria sido, se fosse apanhado com a boca na botija! Imagine se tivesse continuado e acabasse gozando em cima do braço louro daquela shikse adormecida! No jantar, Morty pedira para mim uma lagosta, a primeira da minha vida. Agora, talvez tenha sido a lagosta a causadora daquilo. Uma vez rompido com tanta facilidade o tabu, o lado escorregadio, dionisíaco e suicida da minha natureza deve ter-se firmado. Aprendera a lição de que, para infringir a lei, tudo o que se tem a fazer é tocar para a frente! Tudo o que se tem a fazer é deixar de tremer e de achar a coisa inimaginável e além das nossas possibilidades: tudo o que se tem a fazer é jazê-lo! Que mais são, pergunto-lhe eu, todas essas regras e regulamentos dietéticos, senão um modo de nos iniciar, a nós, criancinhas judias, na prática de sofrer repressão? Pratique, queridinho, pratique, pratique, pratique. A inibição, como o senhor sabe, não cresce em árvore — é necessário paciência, é necessário concentração, são necessários um genitor dedicado e abnegado e uma criancinha esforçada e atenta, para que se crie dentro de poucos anos um ser humano realmente reprimido e de eu fechado. Por que então os pratos separados? Por que então o sabão e o sal kosher? Por que então, pergunto-lhe, senão para nos lembrar três vezes por dia que a vida é feita de limitações e restrições e nada mais, centenas de milhares de regrinhas estabelecidas ninguém sabe por quem, regras que a gente obedece sem discutir, por mais idiotas que possam parecer (mantendo-se assim, pela obediência, nas Suas boas graças), ou então transgride", geralmente em nome do bom senso ultrajado. Transgride porque até mesmo uma criança não gosta de viver sentindo-se como um perfeito idiota. Transgride com grande probabilidade (garante meu pai) de que no próximo Yon Kippur (Feriado judaico que se observa com jejum no décimo dia do Tishri (primeiro do mês do ano civil ou o sétimo mês do ano eclesiástico no calendário judaico), de acordo com os rituais descritos

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no Levítico 16. Dia do Perdão. - N. do T.) o nosso nome não figurará no grande livro onde Ele escreve os nomes daqueles que irão viver até o setembro seguinte (uma cena que ficou gravada na minha imaginação). Agora, quem é o idiota, hem? O fato é que tampouco faz diferença (assim, segundo me pareceu desde o início, é que raciocina este Deus, que dirige as coisas) se é grande ou pequena a regra que se infringe: o fato de infringir em si é que O chateia — o simples fato da desobediência e somente isso é que Ele não pode suportar e esquecer quando se senta raivosamente (provavelmente furibundo, e na certa com uma alucinante dor de cabeça, como meu pai no auge da prisão de ventre) e começa a deixar de escrever certos nomes naquele livro. Quando o dever, a disciplina e a obediência fraquejam — ah, eis, eis a mensagem que ouço todas as Páscoas junto com o matioh brei de minha mãe —, as conseqüências são imprevisíveis. A renúncia é tudo, exclama o bife kosher e exangue que eu e minha família nos sentamos para comer na hora do jantar. Autodomínio, sobriedade, sanções — eis a chave de uma vida humana, dizem todas essas leis dietéticas. O goyim que enterre seus dentes em qualquer das baixas criaturas que rastejam ou grunhem sobre a face da terra suja; nós é que não iremos contaminar dessa forma a nossa humanidade. Que eles (se o senhor sabe a quem me refiro) se empanturrem com tudo aquilo que se mexe, por mais odioso e repelente que seja o animal, por mais grotesca, tola ou estúpida que seja a criatura em questão. Que comam enguias, rãs, porcos, caranguejos e lagostas; que comam carne de abutre, de macaco e de gambá, se gostarem — uma dieta de tão abomináveis criaturas convirá bem a uma raça tão desesperada-mente néscia e vã, capaz de se embriagar, divorciar-se e lutar com os punhos. Esses imbecis comedores daquilo que é execrável não sabem senão ferir, insultar, escarnecer e, mais cedo ou mais tarde, agredir. Do mesmo modo como vão para as florestas munidos de arma, os tais gênios, a fim de matar os gamos inocentes que pastam tranqüilamente relvas e bolotas, para depois seguir seu caminho sem fazer mal a ninguém. Seus estúpidos goyim! Fedendo a cerveja e vazios de munição, lá vão vocês de volta para casa, com um animal morto (anteriormente vivo) amarrado em cada pára-lama, para que todos os motoristas pelo caminho possam ver quão fortes e viris vocês são. E depois, em suas casas, pegam nesses gamos — que não fizeram o menor mal, nem a vocês nem a toda a natureza —, cortam em pedaços e cozinham numa panela. Não há bastante o que comer no mundo, têm também que comer os gamos e tudo que estiver ao alcance de suas manoplas gentias! E a conclusão terrificante disso é que também são capazes de tudo. Os gamos comem comida de gamo, os judeus comem comida de judeu, mas esses goyim, não. Tanto os animais que se arrastam e chafurdam, como os que são graciosos e angélicos — não fazem diferença — pegam o que quiserem, e ao diabo com os sentimentos da criatura (para não falar de bondade e compaixão). É, está tudo escrito na história, tudo o que eles fizeram, os nossos ilustres vizinhos que são donos do mundo e nada sabem a respeito das fronteiras e dos limites humanos. . . .Assim rezam as leis kosher, pelo menos para a criança que eu era, crescendo sob a tutela de Sophie e Jack P., numa escola distrital de Newark, onde há apenas, em minha classe, duas crianças cristãs, em cujas casas, nos limites do nosso bairro, eu não entro... conforme rezam as leis kosher. E quem sou eu para considerá-las erradas? Pois olhem só o próprio Alex, o assunto de todas as nossas sílabas — quinze anos de idade, certa noite chupa uma perna de lagosta e uma hora depois está de pau para fora, apontado para uma shikse, numa viatura pública. E o seu extraordinário cérebro judaico é capaz até de ser feito de matzoh breil. Jamais cozinharam viva uma criatura dessas em nossa casa — estou me referindo à lagosta. Quanto a uma shikse, em nossa casa nunca veio nenhuma, ponto final. Portanto é questão de conjetura em que condições emergiria ela da cozinha de minha mãe. A faxineira é uma shikse, sem dúvida, mas não conta porque é preta. Ha.. . ha.. . Na minha casa nunca veio nenhuma shikse que eu tenha trazido, é o que quero dizer. Lembro-me de uma que meu pai trouxe para jantar certa noite, quando eu ainda era menino: uma caixa do seu escritório, magra, nervosa, acanhada, atenciosa, afável, de meia-idade, chamada Anne McCaffery. Doutor, será que ele estava passando ela na cara? Não posso acreditar! É que de repente isso está me ocorrendo. Será que meu pai andou passando esta senhora na cara? Ainda me lembro como ela sentou-se ao meu lado no sofá, e no seu nervosismo fez um bicho-de-sete-cabeças de soletração do

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seu primeiro nome, frisando-me que terminava em e, o que não era sempre o caso com alguém chamada Anne. etcétera, etcétera. . . e enquanto isso, embora seus braços fossem compridos, brancos, magros e cheios de sardas (braços irlandeses, pensei), dentro da blusa lisa e branca, pude ver que tinha seios bonitos e firmes, além de arriscar umas espiadelas em suas pernas também. Eu tinha somente oito ou nove anos, mas na realidade suas pernas me pareceram tão magníficas que não podia afastar os olhos delas, o tipo de pernas que de vez em quando a gente descobre, tendo por cima uma solteirona pálida, de cara aflita. . . Com aquelas pernas. . . ora, está claro, que ele estava marretando ela. . . Ora se não! A razão por que a trouxe, segundo ele, foi para que conhecesse "a verdadeira comida judaica". Há semanas que vinha tagarelando acerca da nova caixa goyische ("criatura muito feia, sem graça e mal vestida", dizia ele) que o vinha amolando — esta era a história que não parava de nos contar —, querendo conhecer a verdadeira comida judaica desde o dia em que viera trabalhar nos escritórios da Boston & Northeastern! Finalmente minha mãe não agüentou mais. "Está bem, traga-a, então — já que está querendo tanto isso, vou lhe dar uma boa demonstração." Terá ele sido apanhado um tanto de surpresa? Sabe-se lá. De qualquer modo, ela conheceu de fato a comida judaica. Creio que nunca ouvi antes a palavra "judaico" tantas vezes repetida numa noite. E olhe que sou uma pessoa acostumada a ouvi-la. "Aqui tem o verdadeiro fígado picado judaico, Anne. Já provou alguma vez o verdadeiro fígado picado judaico? Bem, minha esposa faz o prato legítimo, quanto a isso não tenha a menor dúvida. Olhe, come-se com um pedaço de pão. Este é o verdadeiro pão de centeio judaico, com sementes. Isso mesmo, Anne, você está indo muito bem. Ela não! está se saindo bem, Sophie, na primeira vez? Isso mesmo, pegue um bom pedaço do verdadeiro pão de centeio judaico, agora pegue um grande garfo cheio do verdadeiro fígado picado judaico..." — e etcétera, etcétera, até chegar na gelatina. "Isso mesmo, Anne, a gelatina é kosher também. É claro que tem que ser — oh, não, não, nada de creme no café, depois da carne não. Ha! ha! Está vendo o que Anne, queria fazer, Alex?" Mas tagarele quanto quiser, querido papai, o fato é que acaba de me ocorrer uma pergunta, vinte e cinco anos mais tarde (não que eu tenha o menor fiapo de prova, não que até este momento jamais tenha imaginado meu pai capaz da menor infração da lei doméstica. . . o fato é que, desde então, toda infração tem tido para mim uma certa fascinação), uma pergunta surgiu no auditório: por que trouxe você logo uma shikse para a nossa casa? Terá sido porque não pôde agüentar que uma mulher gentia passasse pela vida sem a experiência de comer um prato de gelatina judaica? Ou foi porque não pôde mais continuar vivendo sem fazer a confissão judaica? Sem confrontar sua mulher com o seu crime, a fim de que ela pudesse acusar, exprobrar, humilhar, punir e, dessa forma, sangrá-lo para sempre de suas paixões proibidas? Sem dúvida, meu pai está me saindo um verdadeiro penitente judaico. Reconheço perfeitamente a síndrome. Venha alguém, qualquer um, descobrir-me e condenar-me — fiz a pior coisa que se possa imaginar: tive o que não deveria ter! Escolhi o meu prazer, em prejuízo dos meus entes queridos! Por favor, peguem-me, encarcerem-me, antes que, Deus me livre, consiga escapar inteiramente e vá fazer de novo algo de que realmente gosto! E minha mãe acedeu? Será que Sophie somou dois peitos com duas pernas e obteve quatro? Quanto a mim, precisei de duas décadas e meia para resolver tão difícil cálculo. Oh, devo estar mesmo imaginando coisas, com efeito. Meu pai. . . e uma shikse? Não pode ser. Estava além do seu alcance. Meu próprio pai — trepando com mulheres shikses? Admitirei, constrangido, que ele trepava com minha mãe.. . mas com shikses? Mais facilmente o imagino marretando uma bomba de gasolina. Mas, então, por que ela está gritando tanto com ele, que cena é esta de acusação e negação, de exprobração, ameaça e lágrimas intermináveis. . . que significa tudo isso, a não ser que ele tenha feito algo de muito ruim, talvez imperdoável? A cena em si é como uma peça de mobiliário pesado que se planta em minha mente e não se mexe — o que me leva a acreditar que, sim, realmente aconteceu. Minha irmã, estou vendo, esconde-se atrás de minha mãe: Hannah está agarrando-a por volta da cintura, choramingando, ao passo que as lágrimas de minha mãe são caudalosas e escorrem-lhe do rosto até o chão coberto de linóleo. Ao mesmo tempo que chora, berra tão alto com ele que suas

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veias ressaltam, e comigo, porque, remoendo mais a coisa, me lembro que enquanto Hannah estava se escondendo atrás de mamãe, eu me refugiava atrás do próprio culpado. Ah, isto deve ser pura fantasia, história de fichário, não é? Não, não, qual nada, isto não pode ser coisa de nenhum outro pai, só do meu. Ele dá um soco na mesa da cozinha e grita para ela de volta: "Não fiz tal coisa! Trata-se de um erro, de uma mentira!" Mas espere um minuto. . . não, eu é que estou gritando: "Não fui eu!" O culpado sou eu! E a razão por que minha mãe chora, é que papai está se recusando a esquentar o meu traseiro, que ela prometeu seria esquentado "pra valer", quando ele descobrisse a coisa horrível que eu tinha feito. Quando faço coisinhas pequenas, ela mesma se encarrega de mim: bastava pôr-me, como o senhor se lembra (sei que eu lembro!), de casaco e galochas — oh, mãe, grande detalhe esse, as galochas! — para fora de casa (para fora de casa!) e anunciar através da porta que nunca mais ia me deixar entrar de novo, que fosse tratar da vida. Bastava tomar aquela simples e rápida providência e obtinha instantaneamente uma confissão, uma autoflagelação e, se o exigisse, uma promessa assinada de que seria cem por cento puro e bonzinho para o resto da vida — tudo isso só para que me deixassem entrar de novo por aquela porta, onde tinham lá dentro minha cama, minhas roupas e a geladeira. Mas, quando faço mesmo das piores, só lhe resta levantar os braços para Deus Todo-Poderoso, indagando-Lhe o que terá feito para merecer um filho daqueles; nessas ocasiões, meu pai é convocado para fazer justiça. Mamãe é por demais sensível, boazinha demais, ao que se sabe, para aplicar castigo corporal. "Fere mais a mim", ouço-a explicar à minha tia Clara, "do que a ele. Sou feita assim deste jeito. Não posso, pronto, está acabado." Oh, pobre mamãe. Mas espere, afinal de contas o que está acontecendo aqui? Não há dúvida, doutor, de que conseguiremos desvendar este negócio, dupla de espertos rapazes judeus que somos. . . Uma terrível ação foi cometida, por meu pai ou por mim. O culpado, em outras palavras, é um dos dois membros da família que possuem pênis. Até agora muito bem. Mas: terá ele enfiado entre as suculentas coxas da caixa gentia do escritório ou terei eu comido o pudim de chocolate de minha irmã? Veja só, ela não o quis na hora do jantar, mas, ao que parece, queria guardá-lo para antes de dormir. Ora, meu bom Cristo, como ia eu saber uma coisas dessas, Hannah? Quem pensa em ninharias quando está com fome? Tenho oito anos de idade, e pudim de chocolate me põe maluco; é só eu ver aquela escura superfície achocolatada reluzindo para mim na geladeira e minha vida não mais me pertence. Além do mais, pensei que tinha sobrado! Verdade! Caramba, essa gritaria, essa esculhambação toda é por causa disso, porque comi a droga desse pudim de chocolate? Mesmo que o tenha feito, não foi de propósito! Pensei que fosse outra coisa! Juro, juro, que não fiz de propósito!.. . Mas sou eu. . . ou é o meu pai que está berrando sua defesa diante do júri? Claro que é ele — foi ele, está bem, está bem Sofia, me deixa em paz, fui eu, mas não foi de propósito! Merda, daqui a pouco ele vai dizer que deve ser perdoado porque tampouco gostou da coisa. Como é que é? Então não fez de propósito, seu boboca? Você enfiou a coisa lá, não foi? Então defenda-se agora, como um homem! Diga-lhe, diga-lhe: "Está certo, Sofia, eu passei a shikse na cara, e o que você acha ou deixa de achar sobre o assunto não me significa um caracol. Porque a verdade, caso ainda não saiba, é que sou o homem da casa, e sou o dono da jogada!" E dê-lhe uma sova se for preciso! Desanque-a, Jake! É isso o que um goy com certeza faria, não é? Acha que um desses bacanões caçadores de veados com espingarda e tudo ia cair numa cadeira e começar a chorar quando fosse apanhado, pedindo à mulher pra ser perdoado? — perdoado de quê? Em que consiste afinal a coisa? A gente enfia o troço num buraco qualquer, mexe pra frente e pra trás e o negócio espirra na ponta. Então, Jake, por que esse escarcéu? Será que durava tanto assim a coisa, a ponto de a gente precisar ouvir aqueles impropérios, condenações, recriminações, sentir tanta culpa? Papai, por que haverá a gente de ter essa culpada deferência para com as mulheres, quando não se fez nada? Está errado! Somos nós que controlamos a jogada, papai! "Papai fez uma coisa terrível", grita minha mãe — ou será que é imaginação minha? Não estará ela dizendo, antes: "Oh, o pequeno Alex fez outra vez uma coisa terrível, papai..." Seja como for, ela levanta Hannah (logo Hannah!), a quem até aquele momento eu jamais considerara capaz de ser o objeto do amor de alguém, pega-a nos braços e começa a cobrir de beijos o seu rosto triste e desprezado, dizendo que a sua filhinha é o único ser no

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mundo inteiro em quem ela pode realmente confiar. . . Mas acontece que, se estou com oito anos, Hannah estará com doze, e ninguém a tomará nos braços, garanto, porque o problema da pobre criança é justamente o excesso de peso. E "que problema", diz minha mãe. Ela nem pode comer pudim de chocolate. Sim, foi por isso que dei cabo dele! Que merda, Hannah, mas foi o médico que mandou, não eu. Não tenho culpa de você ser gorda e "burrinha" e eu ser magro e inteligente. Não tenho culpa de ser tão bonito a ponto de pararem mamãe na rua, quando ela sai -empurrando meu carrinho, para darem uma boa olhada na minha encantadora punim (Carinha. - N. do T.). Ouvindo-a contar esta história, dir-se-ia ser algo com que eu nada tivesse que ver, ter nascido bonito, e você, ainda que não seja feia, não tenha sido capaz de atrair especialmente os olhares das pessoas. Terei acaso culpa disso, também? Como era você quando nasceu, quatro anos antes de eu sequer ter vindo ao mundo? Ao que parece, esta é a vontade de Deus, Hannah! Está escrito no grande livro! A questão, porém, de fato, é que ela não me parece considerar responsável por coisa alguma: continua sendo boa para o seu irmãozinho pequeno, e jamais me bate ou me diz um nome feio. Enquanto faço "limpeza" no seu pudim de chocolate, ela faz limpeza no meu cocô, jamais dizendo uma palavra de protesto. Beija-me antes de eu ir para a cama, atravessa-me cuidadosamente no caminho da escola e depois deixa-se ficar em segundo plano, enquanto recito diante de meus pais deslumbrados, ou quando me escolta até os parentes, de um extremo a outro de Nova Jersey, como prêmio pelo meu perfeito boletim de notas. Pois quando não me castigam, doutor, vivem me levando em procissão por aquela casa, feito o papa pelas ruas de Roma. . . Como vê, não consigo ter mais de uma dúzia de recordações referentes à minha irmã nesses primeiros anos de infância. Mais ou menos isso, até à época em que ela surge em minha adolescência como a única pessoa lúcida com quem posso falar naquele asilo de loucos, como se fosse alguém que víssemos uma ou duas vezes por ano — pois é por uma noite ou duas que vem nos visitar, comendo em nossa mesa, dormindo em uma de nossas camas, para em seguida, pobre da gorducha, desaparecer, sempre emanando a mesma bem-aventurança. Mesmo no restaurante chinês, onde o Senhor suspendeu a proibição da carne de porco para os obedientes filhos de Israel, a consumação de lagosta cantonesa é considerada por Deus (cujo porta-voz na terra, em assuntos referentes a alimentação, é mamãe) como inteiramente fora de cogitação. A razão por que podemos comer porco na Rua Pell e não em casa é que. . . para ser franco, ainda não fiz bem idéia da coisa, mas na época acredito que tenha a ver especialmente com o fato de que o dono da casa, um senhor de meia-idade, a quem chamamos, entre nós, de "cavalgadura", não seja uma pessoa cuja opinião a nosso respeito mereça muita preocupação. Sim, pois, segundo me parece, o único povo no mundo a quem os judeus não temem são os chineses. Isso porque, primeiro, a maneira como falam inglês faz meu pai parecer um lorde inglês; segundo, dentro da cabeça não têm senão arroz frito; e terceiro, para eles não somos judeus e sim brancos, talvez mesmo anglo-saxões. Imagine! Não é de admirar que os garçons não nos intimidem. Para eles não passamos de uma variedade WASP (Tipo padrão norte- americano: branco, anglo-saxão e protestante. - N. do T.) de nariz grande! Puxa, como comemos! De repente, até mesmo o porco não assusta, embora, para falar a verdade, nos chegue tão cortado e retalhado, flutuando em tais oceanos de molho de soja, a ponto de não mais se assemelhar em nada com uma costeleta, com um presunto ou, mais repelente que tudo, com uma salsicha (uh!). . . Mas por que, então, não podemos comer também lagosta, disfarçada em outra coisa? Deixe que minha mãe forneça uma explicação lógica. O silogismo, doutor, na verdade de Sophie Portnoy. Pronto para ouvir? Por que não podemos comer lagosta? "Porque pode nos matar! Porque comi uma vez e quase morri!" Sim, ela também cometeu suas transgressões e foi devidamente castigada. Na sua mocidade impetuosa (em que tudo aconteceu antes que eu a conhecesse), ela foi levada (isto é, simultaneamente engambelada e confundida) a comer lagosta Newburg por um malicioso e sedutor agente de seguros que trabalhava com meu pai na Boston & Northeastern, um bêbado chamado (poderia ser melhor?) Doyle. Foi durante uma convenção da companhia em Atlantic City, num barulhento banquete de despedida, que Doyle convenceu minha mãe de que, embora não fosse o que parecia ser pelo cheiro, no prato que o garçom empurrara à frente do seu corpete só havia frango à Ia king. Na verdade, ela pressentia,

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mesmo então, que algo se prenunciava, enquanto o belo e bêbado Doyle tentava servi-la do próprio garfo, que a tragédia, tal como a considerava, espreitava dos bastidores. Estimulada, porém, por duas doses de uísque, torceu o comprido nariz judaico ante uma genuína suspeita de jogo sujo e — ah, que fogosa cadela! devassa rapariga! imprevidente aventureira! — entregou-se toda ao espírito de descuidada espontaneidade que se apoderara visivelmente daquele salão repleto de agentes de seguros e suas esposas. Só quando chegou o ponche é que Doyle — segundo minha mãe, "um segundo Errol Flynn, não só na aparência" — revelou-lhe o que realmente ela ingerira. Passou o resto da noite no reservado, vomitando. "Fiquei de estômago revirado com a coisa! Grande pregador de peças! É por isso que lhe digo, Alex, nunca pregue peças — pois as conseqüências podem ser trágicas! Fiquei tão enjoada, Alex", ela adorava recordar para si mesma, para mim e para meu pai também, cinco, dez, quinze anos depois do cataclismo, "que o seu pai, o Sr. Corajoso em pessoa, teve de ir acordar o médico do hotel, que dormia a sono solto, a fim de que viesse ao nosso quarto. Está vendo como tenho os dedos? Eu vomitava com tanta força que eles ficaram rígidos deste jeito, como se estivesse paralisada, pergunte só a seu pai — Jack, diga a ele, diga a ele o que você pensou quando viu o que aconteceu com os meus dedos por causa da lagosta Newburg." "Que lagosta Newburg?" "Que o seu amigo Doyle forçou pela minha garganta abaixo." "Doyle? Que Doyle?" "Doyle, o Shicker Goy (Rapaz solteiro. - N. do T.) Que Eles Tiveram De Transferir Para Os Ermos De South Jersey De Tão Levado Que Era. Doyle! Que parecia com Errol Flynn! Diga a Alex o que aconteceu com os meus dedos, o que você pensou que tinha acontecido. . ." "Escute, nem sei do que você está falando", o que provavelmente deve ser verdade: não são todos que reconhecem que a vida de minha mãe tenha sido o grande drama que ela acha. Sempre existe, também, a possibilidade de que esta história tenha mais a ver com a imaginação do que com a realidade (mais a ver, é desnecessário dizer, com o perigoso Doyle do que com a lagosta proibida). Isso porque meu pai é um homem que tem cada dia uma certa cota de preocupações a atingir e, por vezes, se vê obrigado a deixar de ouvir as conversas em torno de si, a fim de satisfazer a sua necessidade de angústia. É bem possível que não tenha ouvido uma só palavra do que ela disse. Mas o monólogo de minha mãe continua. Assim como outras crianças ouvem a história de Scrooge todos os anos, ou, cada noite, a leitura de um livro favorito, ela me impinge constantemente os capítulos cheios de suspense de sua vida aventurosa. É esta, de fato, a literatura de minha infância, estas histórias de minha mãe — afora os da escola, os únicos livros impressos na casa são os que meus pais ganharam quando um ou outro esteve convalescendo no hospital. Um terço da nossa biblioteca consiste de A Semente do Dragão (a histerectomia dela) (moral: nada jamais deixa de ser irônico, há sempre um riso escondido em alguma parte) e os outros dois terços são O Diário Argentino, de William L. Shirer, e (mesma moral) As Memórias de Casanova (apendicectomia dele). Afora isso, nossos livros são escritos por Sophie Portnoy, cada um deles um acréscimo à sua famosa série intitulada Você sabe como sou: experimento de tudo uma vez. A idéia que parece originar e animar as suas obras é a de que ela seja uma espécie de temerária, que se atira exuberantemente pela vida fora, à procura do novo e do emocionante, sendo, em troca, combatida devido ao seu espírito pioneiro. Considera-se, na verdade, uma mulher nos últimos limites da experiência, uma deslumbrante e predestinada combinação de Marie Curie, Ana Karênina e Amélia Earhart. Pelo menos, é este o tipo de imagem romântica que este garotinho leva para a cama, depois que ela lhe vestiu o pijama e o enfiou entre os lençóis, juntamente com a história de como aprendeu a guiar um carro quando estava grávida de minha irmã, e no primeiro dia em que obteve a sua carteira — "na primeira hora, Alex" — "um maluco qualquer" foi de encontro ao seu pára-choque traseiro e, conseqüentemente, daí por diante jamais dirigiu um carro. Ou então a história de como estava procurando um peixe dourado num tanque em Saratoga Springs, Nova Iorque, onde fora levada aos dez anos para visitar uma tia velha e doente e, acidentalmente, caiu lá dentro, sendo que nunca tinha entrado na água, até então, nem mesmo ido à praia com a maré baixa e salva-vidas na cintura. Sem contar aquela da lagosta, que mesmo na sua bebedeira sabia que não era frango à Ia king. Só para "tapar a boca do tal de Doyle" forçara-se a engoli-la, depois quase se dera uma tragédia; dali por diante, é claro, jamais comera algo que se assemelhasse a uma lagosta, tampouco permite que eu coma. Jamais, se é que eu chegue a. aprender o que me sirva para comer. "Há muitas coisas boas para

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comer no mundo, Alex, sem ser uma lagosta, com o risco de ter as mãos paralisadas para o resto da vida." Ufa! Ora se não tenho queixas! Ora se não abrigo ódios que nem sabia existirem! Doutor, isto é o processo, ou o que chamamos de "o material"? Tudo o que faço é reclamar, a repugnância parece insondável e começo a imaginar se talvez não será melhor dar um basta nisto. Percebo que estou me entregando ao tipo do ritual da dor de barriga, que dá tanta má fama aos pacientes da psicanálise junto ao público em geral. Terei outrora realmente detestado minha infância e me ressentido contra meus pais com a mesma intensidade quanto me parece agora, examinando o que fui, a partir do ponto de observação do que sou e do que não sou? Será verdade o que está saindo, ou estou só me espremendo? Ou será que, para as pessoas como eu, o espremer-se é uma forma de verdade? Seja como for, minha consciência deseja deixar bem claro que, na ocasião, minha infância não era esta coisa que agora tanto me afeta e me causa tanta estranheza. Por maior que fosse a minha confusão, por mais profunda que possa parecer retrospectivamente a minha agitação" íntima, não me lembro de ter sido um desses garotos que vivesse desejando estar em outra casa, com outras pessoas, por mais que buscassem tal direção os meus anseios inconscientes. Afinal de contas, onde mais iria achar uma platéia igual a esses dois para as minhas imitações?. Exibia-me para eles na hora das refeições — certa vez minha mãe chegou a molhar-se, doutor, e teve de correr para o banheiro, rindo histericamente de uma imitação minha do Jack Benny Show. E o que mais? Passeios e mais passeios com meu pai no Weequahic Park, aos domingos, de que não me esqueci ainda. Sabe, não há vez que eu vá ao campo e encontre no chão uma bolota que não me lembre dele e daqueles passeios. E isto não foi ontem, não; faz quase trinta anos. E terei acaso mencionado, frente a frente com minha mãe, a fluente conversa que trocávamos, quando eu ainda nem tinha idade suficiente para ir sozinho à escola? Durante esses cinco anos, quando ficávamos os dois sozinhos o dia inteiro, creio que chegávamos a abordar todos os assuntos possíveis. "Conversando com Alex", costumava ela dizer a meu pai, quando ele voltava exausto à noite, "passo roupa a tarde inteira e nem sinto o tempo correr." E, veja bem, eu só tinha quatro anos. E quanto à gritaria, às fugas e à choradeira, ainda isso era favorecido pela animação e emoção. Além do mais, que nada jamais fosse simplesmente nada, mas sempre ALGUMA COISA; que a mais comum das ocorrências pudesse explodir sem aviso numa TERRÍVEL CRISE, eis para mim, o modo como a vida era. Um novelista, sei lá o nome dele, ah, era Markfield, escreveu, no meio de uma história, que até os catorze anos pensava que "exasperação" fosse uma palavra judaica. Bem, o mesmo julgava eu quanto a "tumulto" e "manicômio", duas palavras favoritas de minha mãe. E também "espátula". Quando eu já era o queridinho do primeiro ano primário, cotado para vencer facilmente qualquer competição escolar, o professor me pediu, certo dia, para identificar o desenho de uma coisa que, conforme eu sabia perfeitamente, minha mãe chamava de "espátula". Mas, por mais que me esforçasse, não me ocorria como poderia ser a palavra em inglês. Gaguejando, ruborizado, afundei, derrotado, no meu lugar, não tão aturdido quanto o meu professor, mas ainda assim bastante perturbado. . . Veja, pois, quão recuada vai a minha sina, quão cedo no jogo da vida era "normal" para mim encontrar-me num estado semelhante ao tormento — neste especial exemplo, com relação a uma coisa tão monumental quanto um utensílio de cozinha. Oh, todo aquele conflito por causa de uma espátula, mamãe. Imagine como me sinto quanto a você! Nesta prazenteira conjunturazinha, quando morávamos em Jersey City, e eu ainda não passava de um mimalho de minha mãe, de um farejador dos perfumes de seu corpo e escravo total de seus quitutes. recordo-me que houve um suicídio em nosso edifício. Um garoto de quinze anos chamado Ronald Nimkin, que fora coroado pelas mulheres do prédio como "José Iturbi Segundo", enforcou-se no chuveiro. "Com aquelas mãos de ouro!", lamentavam-se as mulheres, referindo-se, é claro, às suas qualidades de pianista. "Com aquele talento!", seguido de: "Era impossível encontrar um garoto que mais amasse a sua mãe do que Ronald!" Juro-lhe, isto não é conversa fiada minha não, nem coisa de filme; eram estas as palavras exatas que as mulheres usavam. Os grandes temas sombrios operáticos da paixão e sofrimento humanos rolavam daquelas bocas como os preços de dentifrícios e conservas! Minha mãe mesmo, permita que

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lhe lembre, quando regressei da minha aventura na Europa neste último verão, saudou-me pelo telefone da seguinte maneira: "Então, como vai este meu amado?" Ela me chama de seu amado, enquanto o marido está ouvindo na extensão! Será que nunca lhe ocorre que se sou o seu amado, então o que é ele, o palerma com quem ela vive? Não, não há muito o que devassar quanto a essas pessoas — elas usam o velho inconsciente nas mangas! A Sra. Nimkin, chorando na cozinha: "Por quê? Por quê? Porque ele fez isso conosco?" Está ouvindo? Não se trata do que nós lhe fizemos, oh, não, isso nunca, e sim — por que ele fez isso conosco? Conosco, que lhe teríamos dado em troca nossos braços e pernas para fazê-lo feliz e torná-lo um pianista famoso! Com efeito, como podem ser cegos ..assim? Como podem as pessoas ser tão abismalmente estúpidas e continuar vivendo? Acredita que isto possa ser assim? Como é que podem ser, na realidade, equipados com toda essa maquinaria, um cérebro, uma medula espinhal, e os quatro orifícios para os ouvidos e olhos — um equipamento tão admirável, Sra. Nimkin, quanto o da televisão em cores — e ainda irem pela vida fora sem a menor noção a respeito dos sentimentos e anseios de qualquer outro afora eles mesmos? Sra. Nimkin, sua titica, me lembro da senhora, eu tinha só seis anos, mas me lembro da senhora e o que matou o seu Ronald, o futuro pianista, é óbvio: foi o SEU MALDITO EGOÍSMO E ESTUPIDEZ! "Todas as lições que lhe demos", lamentava- se a Sra. Nimkin... Oh, veja, veja, por que continuo desta maneira? Talvez ela tenha boa intenção, certamente que deve ter — numa hora de tristeza, o que posso esperar dessa gente simples? Só que, na sua dor, ela não tem outra coisa que dizer e por isso fala nessa história de todas as lições que eles deram a alguém que agora é um cadáver. O que são, afinal de contas, essas mulheres judias que nos criaram? Na Calábria, a gente vê as suas sofredoras réplicas, sentadas feito pedras nas igrejas, engolindo aquela hedionda lengalenga católica; em Calcutá, elas esmolam nas ruas, ou, se têm sorte, estão algures, em algum campo poeirento, atreladas a um arado. . . Só na América, Rabino Golden, é que essas camponesas, nossas mães, tingem os cabelos aos sessenta e andam para cima e para baixo na Avenida Collins, na Flórida, de calça três-quartos e estolas de vison, dando opinião sobre tudo que é assunto. Não é culpa delas terem recebido o dom da fala — olhe, se as vacas falassem como elas, diriam coisas idiotas. Sim, sim, talvez a solução seja esta: considerá-las como vacas que receberam o duplo dom da fala e do mah-jong. Por que não haveremos de ser condescendentes na nossa maneira de pensar, hem, doutor? Meu detalhe favorito do suicídio de Ronald Nimkin: ainda pendurado do chuveiro, há um bilhete pregado na camisa de mangas curtas do jovem pianista. É disto que mais me lembro acerca de Ronald: um adolescente macilento, catatônico, nadando naquelas camisas grandes demais para ele, com as lapelas tão furiosamente engomadas e passadas que até parecem blindadas... E o próprio Ronald, com cada membro tão entesado à espinha dorsal que se a gente tocasse nele, provavelmente sairia um som. . . e os dedos, sem dúvida, aquelas coisas brancas e esquisitas, com sete nós, no mínimo, até chegar às unhas todas roídas, aquelas mãos de Bela Lugosi que a minha mãe me dizia — me dizia — e me dizia — pois nada jamais é dito apenas uma vez — nada! — serem "as mãos de um pianista nato". Pianista! Oh, esta é uma das palavras que elas simplesmente adoram, quase tanto quanto doutor, doutor. E residência. E, acima de tudo, seu escritório. Ele abriu o seu escritório em Livingston. "Lembra-se de Seymour Gracinha, Alex?", pergunta-me ela, ou Aaron Piroca ou Howard Cacete ou qualquer outro bestinha que devo ter conhecido na escola primária há vinte e cinco anos e de quem não me lembro bulufas. "Bem, encontrei a mãe dele hoje na rua e ela me contou que Seymour é agora o maior cirurgião de cérebro do hemisfério ocidental, É dono de seis casas de campo em estilos diferentes em Livingston, todas novas em folha e projetadas por Marc Kugel, pertence às congregações de onze sinagogas e no ano passado levou a mulher e as duas filhinhas — tão bonitas que já foram contratadas pela Metro e tão inteligentes que já poderiam estar na universidade — para uma excursão de oitenta milhões de dólares pela Europa, e sete mil países, em alguns dos quais nem se ouviu falar, pois foram até criados em homenagem a Seymour. Além disso, ele é tão importante, que, em todas as cidade que visitou, o prefeito em pessoa lhe solicitou que se detivesse, a fim de fazer uma operação impossível num cérebro, em hospitais construídos na hora especialmente para ele e — ouça mais isto — na sala de operações fizeram tocar a canção temática do Exodus, para que todos

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soubessem qual era a sua religião — veja só a que grau de importância chegou o seu amigo Seymour! E que prazer dá a seus pais!" E quanto a você, a indireta é: quando é que você vai se casar? Em Newark e nos subúrbios circunvizinhos, eis visivelmente a pergunta nos lábios de todos: QUANDO É QUE ALEXANDER PORTNOY VAI DEIXAR DE SER EGOÍSTA E DAR NETOS A SEUS PAIS, QUE SÃO UMA GENTE TÃO MARAVILHOSA? "Como é", diz meu pai, com os olhos cheios de lágrimas, "como é", indaga ele, cada vez que encontra comigo, "ainda não apareceu uma garota direita no cenário, seu figurão? Desculpe estar perguntando, sou apenas o seu pai, mas já que não vou viver para sempre, caso tenha esquecido que leva o nome da família, fico pensando se não vai me contar o segredo." Sim, que vergonha, que vergonha para Alex P., o único membro de sua classe de diplomandos que ainda não transformou em avós sua mamãe e seu papai. Enquanto os demais se casaram com distintas moças judias, tiveram filhos, compraram casas, e (frase de meu pai) lançaram raízes, enquanto todos os outros filhos perpetuaram o nome da família, ele só tem feito. . . andar atrás de pomba. E pombas gentias, ainda por cima! Perseguindo-as, cheirando-as, lambendo-as, penetrando-as, mas, acima de tudo, pensando nelas. Dia e noite, no trabalho e na rua — trinta e três anos de idade e ainda vagando pelas ruas, de olhos esbugalhados. É de espantar que não tenha sido reduzido a mingau por algum carro, pelo jeito com que atravessa as artérias principais de Manhattan na hora do lanche. Trinta e três anos, e ainda comendo com os olhos e devaneando sobre cada garota que cruza a perna no subway diante dele! Ainda se amaldiçoando por não ter dirigido a palavra ao suculento par de tetas que viajou com ele vinte e cinco andares num elevador! Em seguida, amaldiçoando-se também pelo motivo oposto! Pois, conforme se sabe, teve a ocasião de se dirigir na rua a moças de aparência inteiramente respeitável e, a despeito do fato de que, desde a sua aparição na televisão nas manhãs de domingo, o seu rosto não é totalmente desconhecido para uma parte esclarecida do público — a despeito do fato de que poderá estar a caminho do apartamento da sua atual amante, para jantar —, consta que em uma ou duas vezes terá murmurado: "Olhe, gostaria de vir até a minha casa?" E claro que ela vai responder: "Não." É claro que ela vai berrar: "Dá o fora daqui, seu." Ou, então, dirá concisamente: "Tenho minha própria casa, obrigada, com um marido dentro." O que está fazendo a si mesmo este tolo! este idiota! este dissimulado garoto! Este maníaco do sexo! Ele simplesmente não pode — nem quer — controlar os ardores do seu cacete, as agitações de seu cérebro, o desejo queimando continuamente dentro dele pela novidade, pelo desregramento, pelo imprevisto e, se é possível imaginar uma coisas dessas, pelo inimaginável. No que se refere a pombas, vive num estado que nem abrandou nem melhorou de maneira significativa desde quando tinha quinze anos e não podia levantar-se do lugar na classe sem esconder seu tesão atrás do caderno de espiral. Cada garota que ele vê revela-se (segurem os chapéus) portadora entre as pernas de — uma pomba. Assombroso! Surpreendente! Ainda não se deu conta da fantástica idéia de que quando se olha uma garota, olha-se alguém que com toda a certeza possui — uma pomba! Todas elas têm pombas! Logo embaixo dos vestidos! Pombas — para serem marretadas! E, doutor, vossa excelência, ou qualquer tratamento que lhe dê — parece não fazer diferença o quanto na verdade o pobre-coitado obtenha, pois fica sonhando com a pomba de amanhã enquanto marreta a de hoje! Estarei exagerando? Revelando-me por puro exibicionismo? Ou, talvez, me vangloriando? Será que considero esta inquietação, este desvario, como uma doença — ou como um talento? Como ambos? Pode ser. Ou será que é apenas um meio de fuga? Olhe, pelo menos não me encontro casado, aos trinta e poucos, com uma criatura decente, cujo corpo deixou de ter para mim qualquer interesse genuíno — pelo menos não tenho de ir para a cama todas as noites com alguém que vez por outra marreto por obrigação, ao invés de desejo. Quero referir-me à horrenda depressão que algumas pessoas experimentam na hora de ir para a cama. . . Por outro lado, mesmo eu devo admitir que talvez exista, de uma certa perspectiva, algo tanto deprimente quanto à minha situação, também. É claro que não posso ter tudo; é o que me parece. A questão, porém, que desejo enfrentar é: tenho eu alguma coisa? Por quanto tempo mais continuarei levando a cabo essas experiências com mulheres? Por quanto tempo mais continuarei

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enfiando esta coisa nos buracos disponíveis — primeiro neste, em seguida, quando canso deste, naquele ali. . . e assim por diante. Quando terminará? Pelo menos por que deverá terminar? Para agradar a um pai e a uma mãe? Para sujeitar-me à norma? Afinal de contas, por que deverei ser tão suscetível por ser o que há tempos atrás docemente se chamava: um homem solteiro? Afinal não é outra coisa senão isto — o estado civil de solteiro. Portanto, qual é o crime? Liberdade sexual? Na época de hoje? Por que devo curvar-me à burguesia? Acaso lhes peço que se curvem a mim? Talvez tenha alguma nódoa de boêmia — será isto tão horrível? A quem estou prejudicando com os meus desejos? Não violento as senhoras, não lhes torço o braço para obrigá-las a vir para a cama comigo. Sou, se posso dizê-lo, um homem honesto e compassivo; deixe que lhe diga: sou como a maioria dos homens. . . Por que devo explicar-me! Desculpar-me! Por que tenho que justificar com Honestidade e Compaixão os meus desejos? Então tenho desejos — só que são inesgotáveis. Inesgotáveis! E isto, isto talvez não seja nenhuma bênção, adotando no momento um ponto de vista psicanalítico. . . Mas, então, como nos diz Freud, de qualquer modo, tudo o que o inconsciente pode fazer é querer. E querer! E QUERER! Oh, Freud, então não sei! Esta aqui tem um bom traseiro, mas fala demais.- Por outro lado, esta outra nada fala, pelo menos nada diz que faça algum sentido — mas, menino, como chupa! Que conhecimento de vara! Enquanto aquela outra é uma doçura de garota, com os bicos de peito mais macios, mais róseos, mais comovedores que jamais tive entre os lábios, só que não quer saber de me chupar. Não é esquisito? E, no entanto — entendam-se as pessoas! —, enquanto está sendo marretada, seu prazer é que lhe enfie um de meus indicadores no ânus. Que negócio mais misterioso! O fascínio interminável desses orifícios e aberturas! Como vê, não posso parar! Ou me prender a qualquer uma. Tenho casos que duram um ano, um ano e meio, meses e meses de amor, a um tempo terno e voluptuoso, mas no fim — é inevitável como a morte — o tempo marcha e o desejo se acaba. No fim, simplesmente não consigo dar aquele passo para o casamento. Mas por que deveria dá-lo? Por quê? Existe alguma lei que diga que Alex Portnoy tem de ser o marido e o pai de alguém? Doutor, elas podem trepar no parapeito da janela e ameaçar se espatifar lá embaixo no solo, podem empilhar Seconal até o teto — talvez tenha de viver semanas a fio no terror de essas moças decididas ao casamento se jogarem debaixo do trem; o fato é que, simplesmente não posso, simplesmente não quero fazer um contrato de dormir com uma só mulher pelo resto dos meus dias. Imagine só: suponha que eu me decidisse e me casasse com A, com as suas bonitas tetas e assim por diante, o que sucederá quando aparecer B, que as tem ainda mais bonitas, ou pelo menos mais novas? Ou c, que sabe mexer o traseiro de alguma maneira especial que eu jamais houvesse visto, ou D, ou E, ou F? Estou tentando ser franco com o senhor, doutor, pois no que se refere a sexo, a imaginação dispara até z e ainda vai além! Tetas, pombas, pernas, lábios, bocas, línguas e orifícios traseiros! Como posso renunciar ao que nem mesmo cheguei a ter, por causa de uma garota que, por mais deliciosa e provocante que tenha sido algum dia, se tornará tão familiar para mim como uma fatia de pão? Por amor? Que amor? É isso que liga as pessoas que conhecemos — as que têm trabalho de se deixar ligar? Não se trata antes de uma fraqueza? Não será antes conveniência, apatia e idéia de culpa? Não será antes medo, exaustão, inércia, falta de fibra pura e simples, muito mais isso do que aquele "amor" com que os conselheiros matrimoniais, autores de canções e psicoterapeutas estão sempre sonhando? Por favor, vamos deixar de nos encher um ao outro com esta história de "amor" e a sua duração. Por isso é que pergunto: como posso casar com alguém que "amo", sabendo muito bem que daqui a cinco, seis, sete anos estarei nas ruas caçando uma gatinha nova — enquanto a minha devotada esposa, que criou para mim um lar tão adorável, etcétera, suporta corajosamente a sua solidão e rejeição? Como poderei enfrentar as suas terríveis lágrimas? Nunca poderei. Como poderei enfrentar meus filhos amorosos? E em seguida o divórcio, certo? O sustento dos filhos. A pensão alimentar. Os direitos de visita. Maravilhosa perspectiva, simplesmente maravilhosa. E quanto a qualquer uma que se' mata porque prefiro não ser cego quanto ao futuro, bem, ela é que é culpada — claro que é! Não existe certamente necessidade ou justificativa alguma para alguém ameaçar suicidar-se só porque sou bastante sensato para prever as frustrações e recriminações futuras. . . Querida, por favor, não berre assim, alguém vai pensar que

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você está sendo estrangulada. Oh, querida (ouço minhas súplicas do ano passado, deste ano, de todos os anos de minha vida!), você vai ficar bem, realmente, verdade que vai; vai ficar ótima, em muito melhor situação, portanto, faça o favor, sua vaca, volte para dentro do quarto e deixe-me ir embora! "Você! Você e a sua vara nojenta!", grita a mais recente futura noiva desiludida (e autopromovida), a minha estranha, magricela e muito doida amiga, que posando uma hora para anúncios de roupas de baixo ganhava tanto quanto o seu pai analfabeto durante uma semana nas minas de carvão do West Virgínia: "Pensei que você fosse uma pessoa distinta, seu pilantra, sacana, filho da puta!" Esta linda garota, que não me compreendeu, é conhecida como a "Macaca", apelido derivado de uma pequena perversão a que ela se entregou pouco antes de me conhecer e partir para jogadas mais ambiciosas. Doutor, jamais conheci alguém como ela em minha vida. Representava para mim a realização dos meus mais lascivos sonhos de adolescente — mas casar! Não estará ela brincando? Olhe, com todos os seus alam-biques e perfumes, ela se tem em muito baixa conta e, ao mesmo tempo, entretém — e aqui está a^ origem da maior parte de nossa confusão — uma opinião ridiculamente elevada a meu respeito. E, simultaneamente, uma opinião muito baixa a meu respeito! Ela é uma "Macaca" confusa e, segundo receio, não muito inteligente. "Um intelectual", berra ela. "Umas pessoas educadas, espirituais! Seu ordinário, tesudo miserável, você gosta é das negras do Harlem que nem chega a conhecer, e nunca de mim, que venho te chupando um ano inteiro!" Confusa, abatida e também desatinada. Pois tudo isto me sucede vindo da janela do nosso quarto de hotel em Atenas, comigo parado na porta, de malas na mão, implorando-lhe que, por favor, voltasse para dentro, a fim de que eu pudesse pegar um avião e dar o fora daquele lugar. É então que o pequeno gerente furioso, pele azeitonada, de bigode e respeitabilidade ultrajada, vem escada acima agitando os braços no ar, e eu, tomando uma profunda respiração, exclamo: "Olhe, se quer pular, pule!" E vou embora — sendo que as últimas palavras que ouço têm a ver com o fato de que fora somente por amor ("Amor!", berra ela) a mim que ela se permitira as coisas degradantes que eu a "forçara", entre aspas, a fazer. Que não vêm ao caso, doutor! Que não vêm ao caso de modo algum! Que são uma tentativa por parte desta manhosa vaca para me abater no pelourinho da culpa — e dessa forma arranjar um marido. Pois aos vinte e nove não é outra coisa o que. ela deseja, está na cara — o que não quer dizer, é claro, que eu tenha de ceder. "Em setembro, seu filho da puta, terei trinta anos!" Certo, "Macaca", certo! Precisamente por isso é que é você e não eu a responsável por suas esperanças e sonhos! Está bem claro? Você! "Vou dizer ao mundo quem você é, seu pilantra desalmado. Todos saberão que não passa de um pervertido nojento, que me obrigou a fazer coisas imundas!" A vaca! Tive realmente muita sorte de sair deste caso vivo! Se é que saí! Mas voltando aos meus pais, e de como, ao que parece, permanecendo solteiro, não faço senão lhes trazer tristezas. Acontece, porém, minha querida mamãe e meu querido papai, simplesmente acontece que fui nomeado recentemente vice- presidente da Comissão de Oportunidade Humana pelo prefeito da cidade de Nova Iorque, o que aparentemente não parece valer um caracol para vocês, em termos de realização e de valor — muito embora não seja este exatamente o caso, sei muito bem, pois, para dizer a verdade, sempre que o meu nome aparece numa notícia no Times, eles bombardeiam com recortes todos os parentes vivos. Metade da aposentadoria do meu pai é consumida em selos do correio, e minha mãe passa dias inteiros ao telefone, tendo que ser alimentada a soro, pois a boca só é utilizada para falar do seu Alex. Na verdade, é sempre a mesma coisa: eles não podem negar que eu seja um sucesso e um gênio, com nome no jornal, agora um auxiliar do glamuroso novo prefeito, defensor da Verdade e Justiça, inimigo dos exploradores de cortiços, dos fanáticos e dos ratos ("promover a igualdade de tratamento, impedir a discriminação, criar o entendimento e o respeito mútuos" — eis o humano propósito da minha comissão, conforme decretado por ato do Conselho da Cidade) . . .mas ainda assim, se entende o que quero dizer, de algum modo, ainda não sou inteiramente perfeito. Agora, o que acha disto? Tudo o que sacrificaram e fizeram por mim, gabando-se como se gabam de mim, sendo a melhor das agências de relações públicas (dizem- me eles) que um filho poderia ter, acontece que ainda assim não sou perfeito. Já ouviu uma coisa dessas na sua vida? Simplesmente me recuso a ser perfeito. Que garoto teimoso!

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Chegam para me visitar: Onde arranjou este tapete? — indaga meu pai, fazendo uma careta. — Numa loja de ferro-velho ou ganhou de alguém? Gosto deste tapete. Não me venha com esta — diz meu pai —, é um tapete usado. Conservo minha serenidade. — É usado mas não é velho. Certo? Terminou? O! Alex, por favor — diz minha mãe —, este é um tapete usado demais. Você vai tropeçar neste troço — profetiza meu pai —, deslocar o joelho e aí mesmo é que estará encrencado. E tratando-se do seu joelho — alega minha mãe significativamente —, isso não será nenhuma coisa à-toa. Continuando assim, dentro de um minuto os dois vão enrolar este troço e jogar pela janela abaixo. E depois me levam para casa! O tapete está bem. Meu joelho está bom. Não estava tão bom assim — lembra-me prontamente minha mãe — quando você esteve engessado até a cintura, queridinho. O jeito como ele arrastava aquela coisa! Como vivia aflito! Tinha só catorze anos naquele tempo, mamãe. Sim, mas quando retirou o negócio — declarou meu pai — não conseguia dobrar a perna, pensei que fosse ficar aleijado para o resto da vida. Eu lhe dizia: "Dobra isto! Dobra isto!" Vivia lhe implorando o dia inteiro. "Quer ficar aleijado para sempre? Dobra essa perna!" Você amargurou nossos dias com esse joelho. Mas isso foi em 1947. E estamos em 1966. O gesso já foi retirado há quase vinte anos! Quer ouvir a convincente resposta de minha mãe? — Você vai ver, algum dia há de ser pai e saberá o que é. Aí então talvez não vá mais zombar de sua família. A legenda gravada no anverso da medalha judaica — no corpo de cada criança judia! — não é CONFIAMOS EM DEUS, e sim ALGUM DIA HÁ DE SER PAI E SABERÁ O QUE É. — Você acha — indaga o meu irônico pai — que vai ser enquanto estivermos vivos, Alex? Acha que vai ser antes que eu desça à sepultura? Qual nada, ele prefere arriscar-se com um tapete velho! Que ironia, que lógica! E rachar o crânio! Deixe-me perguntar uma coisa mais, meu auto-suficiente filho, quem haveria de saber se você estivesse aí no chão, sangrando até a morte? Metade das vezes que não atende o telefone, vejo você caído aí, ferido não sei de que maneira. E quem irá cuidar de você? Quem lhe trará ao menos um prato de sopa se, Deus me livre, acontecer alguma coisa terrível? Sei cuidar de mim! Não vivo por aí como muita gente — puxa, Al, ainda dando duro em cima do velho, hem? —, como muita gente que conheço, que vive sempre antecipando catástrofes! Você verá — diz ele, inclinando aflitamente a cabeça — há de ficar doente — e de repente um guincho de raiva, um ganido de ódio! — há de ficar velho, e então vai deixar de ser esse figurão auto-suficiente! Alex, Alex — principia minha mãe, enquanto meu pai vai até a janela, a fim de refazer-se, fazendo, no caminho, um comentário sobre "a vizinhança em que ele mora". Eu trabalhando por Nova Iorque e ele ainda querendo que eu viva na bela Newark! Mamãe, estou com trinta e três anos! Sou o vice-presidente de Oportunidade Humana da Cidade de Nova Iorque! Fui o primeiro dos diplomandos da minha turma de Direito! Lembra-se? Classifiquei-me em primeiro lugar em todas as classes em que estive! Aos vinte e cinco já era consultor especial de uma subcomissão de Habitação — do Congresso dos Estados Unidos, mamãe! Estados Unidos da América! Se quisesse ir para Wall Street, mamãe, eu estaria na Wall Street! Sou um homem altamente conceituado na minha profissão, é preciso que se diga! Agora mesmo, mamãe, estou dirigindo uma investigação de práticas discriminatórias ilegais no comércio de imóveis em Nova Iorque — discriminação racial. Estou tentando apanhar o Sindicato dos Metalúrgicos, mamãe, para que me contem os seus pequenos segredos! Foi o que fiz justamente hoje! Olhe, ajudei a esclarecer o

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escândalo dos programas de perguntas da televisão, não se lembra? — Oh, por que continuar? Por que continuar com a minha aguda voz de adolescente? Bom Cristo, um judeu com pais vivos é um garoto de quinze anos, e há de permanecer um garoto de quinze anos até que eles morram! Seja como for, Sophie a esta altura segurou minha mão e, de olhos baixos, espera até que eu solte atabalhoadamente a derradeira realização que me ocorra, o último virtuoso feito que pratiquei. Em seguida, fala: — Mas para nós, você é ainda um bebê, queridinho. — E depois vem o cochicho, o famoso cochicho de Sophie, que todos na sala podem ouvir sem sequer se esforçarem, de tão respeitadora que ela é: — Peça desculpas a ele. Dê-lhe um beijo. Um beijo seu resolveria tudo. Um beijo meu resolveria tudo! Doutor! Doutor! Eu disse quinze? Desculpe, queria dizer dez! Cinco! Zero! Um judeu com os pais vivos é a maior parte do tempo um indefeso bebê! Escute, venha me socorrer, sim, e depressa! Livre-me do desempenho deste papel do filho afogado da anedota judaica! Porque já está começando a perder um pouco a graça, aos trinta e três! E a coisa dói também, sabe; há dor nesta história, um pouco de sofrimento humano, se me cabe a mim dizer — só que este papel, Sam Levenson não há de querer fazer! Não há dúvida, eles se sentam lá no cassino do Concord, as mulheres nas suas peles de vison e os homens nos seus ternos fosforescentes, e puxa, como riem, riem, riem e riem — "Socorro, socorro, o meu filho médico está se afogando!" — ha ha ha, ha ha ha, só que não se fala na dor! E o sujeito que está realmente se afogando? Realmente afundando num oceano de efusão paternal! E quanto a ele, que acontece que sou eu, doutor, por favor, não posso mais viver num mundo que tem o seu significado e medida atribuídos por um vulgar palhaço de boate. Por um. . . adepto do humor negro, que não passa de um palhaço! — claro! — enquanto isso, os Henny Youngmans e os Milton Berles fazendo a turma arrebentar de rir lá em Fountainebleau, e com o quê? Com histórias de assassinato e mutilação! "Socorro", grita a mulher correndo pela areia em Miami Beach, "socorro, meu filho médico está se afogando!" Ha ha ha — só que é meu filho o paciente, senhora! E está se afogando mesmo! Doutor, tira essa gente de cima de mim, me faz o favor? O macabro é muito engraçado no palco — mas não para ser vivido, muito obrigado! Diga-me só como fazer, que o farei! Diga-me só o que dizer, que o direi bem na cara deles! Fora, Sophie! Vá encher outro, Jack! Tratem de me deixar em paz! A propósito, tenho uma piada para lhe contar. Três judeus estão indo pela rua, minha mãe, meu pai e eu. Foi neste verão passado, logo antes da saída para as minhas férias. Terminamos nosso jantar ("O senhor tem uma posta de peixe?", indaga meu pai ao garçom no magnífico restaurante francês onde os levei, para mostrar que já sou crescido — "Oui, monsieur, temos. . ." "Muito bem, traga-me uma posta de peixe", diz meu pai, "e trate de ver que esteja quente"), terminamos nosso jantar e depois, mastigando o meu Titralac (para aliviar a hiperacidez gástrica), ando um quarteirão com eles antes de metê-los num táxi para a Estação Terminal de Ônibus Port Authority. Imediatamente meu pai começa a reclamar que há cinco semanas não vou visitá-los (assunto que eu já imaginava esgotado no restaurante, enquanto minha mãe sussurrava ao garçom para que a posta do seu "garotão" — sou eu, pessoal — fosse bem passada), e agora, que vou ficar fora um mês, afinal de contas quando é que iriam ver o filho? Eles vêem a filha e os filhos da filha, com bastante freqüência. Mesmo assim, o resultado não é melhor. "Com um genro desses", diz meu pai, "se a gente não disser a coisa psicológica certa para as crianças, se eu não falar direito psicologia com as minhas netas, ele quer pôr-me na cadeia! Pouco me importa o que ele diga que é, para mim ainda pensa como um comunista. Minhas netas e tudo o que eu disser têm de passar por ele, o Sr. Censor!" A sua filha é agora a Sra. Feibish, cujas filhinhas são Feibishes também. Onde. estão os Portnoys que ele sonhou? Nos meus colhões. "Olhe", exclamo com a minha voz estrangulada, "você está me vendo agora! Está comigo bem neste instante!" Mas ele já disparou a falar, e agora que não há espinha de peixe que o faça ter medo de se engasgar, é impossível sofreá-lo — O Sr. e a Sra. Gracinha recebem a visita de Seymour, sua linda esposa e os seus sete mil filhos inteligentes e bonitos toda sexta-feira à noite — "Escute, mas acontece que eu sou uma pessoa muito ocupada! Tenho a pasta cheia de coisas importantes para resolver!" "Ora vamos", retruca ele, "comer, você tem de comer, portanto, pode vir jantar uma vez por semana. Então, venha logo às seis horas — por que não faz isso?" Depois do que, quem há de entrar em cena senão Sophie, informando-o de que,

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quando era uma garotinha, sua família estava sempre lhe dizendo para fazer isto e aquilo, o que lhe causava desagrado e ressentimento, não devendo, portanto, o meu pai insistir comigo, pois, conclui ela: "Alexander já é um rapaz crescido, Jack, tem o direito de ter suas próprias decisões. Esta foi uma coisa que sempre ensinei a ele." Você sempre o quê? Que foi que ela disse? Oh, por que prosseguir? Por que me atormentar tanto? Por que esmiuçar tanto? Por que não ter espírito esportivo feito Sam Levenson e rir disso tudo, hem? Deixe-me só acabar. Então eles entram no táxi. — Dê-lhe um beijo — cochicha minha mãe. — Afinal de contas, você vai viajar à Europa. É claro que meu pai escuta — é por isso que ela abaixa a voz, para que todos ouçam — e o pânico se apossa dele. Todo ano, de setembro em diante, ele fica me perguntando quais são meus planos para o próximo agosto — agora verifica que lhe passaram a perna: já não basta que eu esteja de partida num avião de meia-noite para um outro continente, o pior é que não tem idéia do meu itinerário. Consegui! Vitória! . — Mas onde vai na Europa? A Europa é a metade do mundo. . . — grita ele, quando começo a fechar a porta do táxi do lado de fora. Já lhe disse, não sei. Como assim? Tem de saber! Como vai chegar lá, se "não sabe". . . Desculpe, desculpe. .. Seu corpo agora dá uma guinada desesperada por cima do de minha mãe — logo que fecho a porta — oba, não nos seus dedos, por favor! Jesus, este pai! Que foi meu desde sempre! A quem eu costumava encontrar pela manhã dormindo a sono solto na latrina, a calça do pijama em volta dos joelhos e o queixo caído sobre o peito. De pé a um quarto para as seis da manhã, a fim de ter para si uma hora inteira na privada, na esperança fervorosa de que, sendo assim tão bom e atencioso para com os seus intestinos, eles iriam compadecer-se, iriam ceder, iriam dizer finalmente: "Está certo, Jack, você venceu", dando de presente ao pobre-diabo cinco ou seis miseráveis pedaços de cocô. "Jesus Cristo!", geme ele, quando o acordo na hora em que vou me lavar para a escola. Verifica que são quase sete e meia e, dentro do vaso, sobre o qual dorme há uma hora, descobre, se está com sorte, uma indignada bolinha, digna talvez do reto de um coelho — e não do buraco traseiro de um homem que agora tem de sair todo entupido para uma enfiada de doze horas de trabalho. "Sete e meia? Por que não me avisou?" Zum, num instante está vestido, de chapéu e casaco, com o seu grande livro preto de cobranças numa das mãos; engole apressadamente, em pé, quase sem mastigar, as suas ameixas cozidas e os seus flocos de farelo, enchendo os bolsos com um punhado de frutas secas, que provocariam num ser humano comum algo semelhante a disenteria. "Eu devia enfiar uma granada de mão pelo traseiro adentro, se quer que lhe diga", sussurra-me ele reservadamente, enquanto minha mãe ocupa o banheiro e a minha irmã veste-se para a escola no seu "quarto", o solário. "Engoli flocos suficientes para lançar ao mar um cruzador. Estou entupido até a garganta." E, já que me surpreendeu rindo abafado, ele próprio se diverte à sua maneira mordaz, abrindo a boca e apontando para dentro de si com o polegar. "Dê uma olhada. Está vendo, começa a ficar mais escuro? Isso não é só escuro — são estas ameixas todas acumuladas onde antigamente tinha minhas amídalas. Ainda bem que as arranquei, do contrário não haveria lugar." Muito boa conversa — diz minha mãe de dentro do banheiro. — Muito boa conversa para se ter com uma criança. Conversa? — exclama ele. — É a pura verdade — e no instante seguinte sai pela casa batendo com os pés no chão, furiosamente, berrando: — Meu chapéu, estou atrasado, onde está meu chapéu? Quem viu meu chapéu? — E minha mãe entra na cozinha e me lança o seu olhar paciente, sempiterno, onisciente, esfingético. . . esperando. . . e logo ele está de volta no corredor, apoplético e gemendo, praticamente desesperado, "Onde está o meu chapéu? Onde está esse chapéu!", até que suavemente, das profundezas da sua alma que tudo sabe, ela lhe responde: "Está na sua cabeça, seu palerma." Momentaneamente seu olhos parecem esvaziar- se de todos os indícios de experiência e compreensão humanas; e ali fica ele, um zero, uma coisa, um corpo entupido de excremento e nada mais. Em seguida, a consciência retorna — sim, afinal de contas ele terá de sair mundo fora, pois o chapéu foi encontrado na sua cabeça, entre todos os lugares. "Ah, sim", diz ele, certificando-se assombrado — e lá sai ele de casa para dentro do Kaiser, ficando nós privados da presença do Super-

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Homem até o escurecer. Ah, o Kaiser, está na hora da minha história sobre o Kaiser: de como ele me levou orgulhosamente em sua companhia, quando foi trocar, depois da guerra, o Dodge 39 por um automóvel novo, fabricação nova, modelo novo, tudo novo — que maneira perfeita de um pai americano impressionar o seu filho americano! O vendedor de fala veloz nem parecia acreditar nos seus ouvidos, mostrava-se simplesmente incrédulo, cada vez que o meu pai dizia "Não" a um após outro dos mil pequenos acessórios que o pilantra nos queria vender para pendurar no carro. "Bem, vou lhe dar a minha opinião, valha o que valer", diz o maldito sacana, "ele melhoraria cem por cento de aspecto com os pneus de banda branca — não acha, jovem? Não gostaria que o seu papai pusesse pelo menos os pneus de banda branca?" Pelo menos. Ah, seu pilantra nojento! Valendo-se de mim para passar a cantada no velho — seu ladrão miserável, filho de uma puta! Quem você pensa que é para arrotar grandeza em cima da gente — um maldito vendedor da Kaiser-Fraser! Onde vive enfiado agora, seu coisa ordinária? "Não, vai sem os pneus de banda branca", murmura o meu humilhado pai, e eu simplesmente encolho os ombros, embaraçado com a sua inaptidão para proporcionar a mim e à minha família as belas coisas da vida. Seja lá como for, seja lá como for — lá vai ele no Kaiser sem rádio e sem pneus de banda branca, para ser recebido no escritório pela faxineira. Agora eu lhe pergunto, por que tem de ser ele quem abre as persianas do escritório pela manhã? Por que há de ser ele a ter o mais longo dia de trabalho de um agente de seguros na história? E isto por quem? Por mim? Oh, se é assim, se é assim, então se é por isso, a coisa é mesmo trágica demais. A incoerência é grande demais! Por mim? Faça-me o favor, por mim, não! Deixe de ficar procurando pôr a culpa em Alex! Pois eu não sou o patrimônio supremo da existência de ninguém! Recuso-me a ficar pendurado no seu saco para o resto da minha vida! Está me ouvindo? Recuso-me! Deixe de ficar achando incompreensível que eu voe para a Europa, a milhares e milhares de quilômetros de distância, quando você acabou de dobrar os sessenta e seis e está pronto a esticar as canelas a qualquer momento, como a gente lê no Times todas as manhãs. Homens da idade dele, e mais jovens, é claro, morrem — num minuto estão vivos, no minuto seguinte estão mortos; s, pelo jeito, o que ele pensa é para querer que eu só atravesse o Hudson, ao invés do Atlântico. . . Escute, o que é que ele está pensando? Que comigo por perto a coisa não vai acontecer? Que correrei para o seu lado, segurarei a sua mão e o farei voltar à vida? Será que acha realmente que, de algum modo, eu tenho o poder de acabar com a morte? Que sou a ressurreição e a vida? Meu pai, um verdadeiro crente cristão! E nem sabe disso! A sua morte. A sua morte e os seus intestinos: a verdade é que estou bem mais preocupado com os dois do que ele próprio. Nunca recebo um telegrama, um telefonema depois da meia-noite, que não sinta meu estômago apertar e não exclame em voz alta — em voz alta! — "Ele morreu". Pois, ao que parece, acredito também nisso: que posso de algum modo salvá-lo do extermínio — posso e devo! Onde adquirimos nós essa idéia ridícula e absurda de que somos. . . tão poderosos, tão preciosos, tão necessários à sobrevivência dos demais?! O que é que há com esses pais judeus — pois não estou sozinho neste barco, oh, não, meu barco é dos maiores e transporta uma legião de soldados... é só olhar pelas vigias e nos verão a todos lá, amontoados até o teto em nossos beliches, gemendo e suspirando com tanta pena de nós mesmos, filhos de pais judeus, tristes e de olhos lacrimosos, nauseados até a alma de tanto rolarem por esses agitados mares de culpa — é assim que nos imagino, a mim e aos meus lamurientos companheiros, otários e sabidões, ainda vogando, como os nossos ancestrais — e nauseados como cães, gritando, a espaços, uns e outros, "Papai, como pôde?", "Mamãe, por que isto?", e as histórias que contamos, enquanto o navio arfa e volteia, a concorrência que estabelecemos — quem teve a mãe mais castradora, o pai mais ignorante, rivalizo com você, seu desgraçado, humilhação por humilhação, vergonha por vergonha. . . os vômitos no banheiro após as refeições, o riso histérico e moribundo vindo dos beliches, e as lágrimas — aqui uma poça de choro de arrependimento, ali outra, de indignação — num piscar de olhos, o corpo de um homem (com o cérebro de menino) ergue-se numa fúria impotente, esmurrando o colchão de cima, para recair logo em seguida, cobrindo-se de censuras. Oh, meus amigos judeus! Meus irmãos desbocados e atormentados pela culpa! Meus queridos! Meus camaradas!

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Quando este maldito navio deixará de arfar? Quando? Quando, para que possamos sair dele, queixando-nos de nossos enjôos, ir para o ar livre e viver! Dr. Spielvogel, atribuir culpa de nada alivia — culpar continua sendo doentio, é claro, é claro. Não obstante, o que havia com esses pais judeus, o que, a ponto de fazer com que nós, garotinhos judeus, acreditássemos, por um lado, ser príncipes, singulares como unicórnios, geniais e inteligentes como ninguém jamais fora antes na história da infância — por um lado, uns salvadores, umas puras perfeições, e, por outro, uns titiquinhas balbuciantes, incompetentes, levianos, frágeis, egoístas e ingratos.' Mas na Europa, onde? — grita-me ele, enquanto o táxi parte. Não sei! — respondo-lhe, acenando, exultante. Tenho trinta e três anos e finalmente estou livre de minha mãe e meu pai! Por um mês. Mas como saberemos o seu endereço? Não saberão! — Alegria! Pura alegria! Mas e se nesse ínterim. . .? E se o quê? — rio eu. — Qual é a preocupação agora? E se. . . — Meu Deus, terá ele realmente, verdadeiramente, gritado isso da janela do táxi? Serão tão grandes o seu medo, a sua ânsia, d sua necessidade e crença em mim, a ponto de ter gritado essas palavras nas ruas de Nova Iorque: "E se eu morrer?" Pois é isto o que ouço, doutor. As últimas palavras que ouço antes de voar para a Europa — com a "Macaca", a respeito de quem guardei total segredo junto a eles. "E se eu morrer?", e em seguida parto para as minhas orgíacas férias no estrangeiro. . . .Agora, se as palavras que ouço são as palavras que foram ditas, isto já é outra coisa. E se i que ouço é devido à compaixão, à minha angústia quanto à inevitabilidade desta horrífica ocorrência, à sua morte, ou então proveniente da minha ávida expectativa de tal acontecimento, é também outra coisa. Ias está claro que o senhor compreende bem isto, az parte do seu dia-a-dia. Eu estava dizendo que o detalhe do suicídio de Ronald Nimkin que mais me atrai a atenção é o bilhete para a sua mãe, que encontraram pregado naquela folgada camisa-de-força, o seu bem engomado ilusão. Sabe o que dizia? Adivinhe. A última mensagem de Ronald para a sua mamãe? Adivinhe. A Sra. Blumenthal telefonou. É favor trazer as suas regras de mah-jong para o jogo de hoje à noite. Ronald. Então, que tal isso como exemplo de garoto bom até a última gota? Que tal isso da parte de um aluno bom, atencioso, generoso, cortês e bem comportado, um menino judeu distinto, que jamais causará vergonha a ninguém? Diga obrigado, queridinho. Diga de nada, queridinho. Peça desculpas, Alex. Peça desculpas! Desculpe-se! Sim, mas de quê? O que foi que fiz agora? Olhe, estou escondido debaixo Ia minha cama, encostado na parede, recusando-me i pedir desculpas, recusando-me, também, a sair e agüentar as conseqüências. Recusando-me! E ela está atrás de mim com uma vassoura, tentando desandar a minha frágil carcaça. "É melhor me pedir desculpas, você aí, senão! E não tem talvez, não!" Estou com cinco, talvez seis anos, e ela está me ameaçando de "senão" e de "não-tem-talvez" como se o pelotão de fuzilamento estivesse pronto lá fora e o chão forrado de jornais para a minha execução. E agora chega o pai, após um agradável dia, tentando vender seguro de vida para negros que nem sequer têm certeza de estarem vivos, ao encontro de uma esposa histérica e um filho metamorfoseado — pois o que foi que fiz eu, a essência da bondade? É incrível, espantoso, mas o fato é que ou lhe dei um pontapé nas canelas ou então uma mordida. Não quero parecer que esteja me gabando, mas acho que fiz os dois. — Por quê? — quer ela saber, ajoelhando no chão para me ofuscar os olhos com uma lanterna. — Por que faz uma coisa dessas? — Oh, é muito simples, por que Ronald Nimkin rendeu a alma e o piano? PORQUE NÃO AGÜENTAMOS MAIS! PORQUE AS CHATAS DAS MÃES JUDIAS ENCHEM DEMAIS! Li O ensaio de Freud sobre Leonardo, doutor, me desculpe a pretensão, mas as minhas fantasias são as mesmas: este pássaro enorme e asfixiante, batendo as asas frenéticas pelo meu rosto e pela minha boca de um jeito que não posso nem respirar. O que queremos nós, eu, Ronald e Leonardo? Sermos deixados em paz! Pelo menos por meia hora de cada vez! Deixem de nos forçar a ser bons! De nos forçar a ser amáveis! Com os diabos, tratem é de nos deixar em paz,

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mexendo nos nossos penduricalhos, com os nossos pensamentozinhos egoístas — chega de querer tornar respeitáveis nossas mãos, nossas coisinhas e nossas bocas! Que se danem as vitaminas e o óleo de fígado de bacalhau! Dê-nos a carne nossa de cada dia! E perdoem as nossas dívidas — que, para início de conversa, nem são dívidas! Quer virar um meninozinho que dá pontapés na própria mãe? — Meu pai é que está falando. . . olhe só os braços dele. Nunca havia notado realmente antes o tamanho dos antebraços do homem. Ele pode não ter pneus de banda branca ou educação ginasial, mas os seus braços não são de brincadeira. E, Jesus, como está furioso. Mas por quê? Em parte, seu palerma, dei pontapé nela por você! Mordida de um ser humano é pior do que a de um cachorro, sabe disto? Saia de baixo dessa cama, está me ouvindo? O que você fez com sua mãe foi pior do que um cachorro! — E tão forte é o seu berro, tão convincente, que a minha irmã, normalmente plácida, corre para a cozinha, entrecortando grunhidos de medo, indo agachar-se entre a geladeira e a parede, em posição fetal, segundo se denomina agora. Ou pelo menos é assim que pareço me lembrar disso — embora coubesse indagar, acho, como posso saber o que está se passando na cozinha, quando ainda me encontro embaixo da cama? — A mordida eu agüento, os pontapés também — a sua vassoura continua tentando implacavelmente me escorraçar do esconderijo —, mas o que vou fazer com uma criança que nem ao menos pede desculpas? Que não pede desculpas à sua mãe, dizendo que nunca mais fará uma coisa dessas, nunca! O que faremos, papai, com um garotinho destes em nossa casa? Será que ela está brincando? Será que está falando sério? Por que não manda chamar a polícia e me manda para a prisão das crianças, se sou tão in-corrigível assim? "Alexander Portnoy, com cinco anos de idade, por meio desta condenado a ser enforcado por se ter recusado a pedir desculpas à sua mãe." Dir-se-ia que a criança que lambia o leite deles e tomava banho com o pato e os barcos na banheira deles era o criminoso mais procurado da América. Quando na verdade o que fazemos nesta casa é representar o Rei Lear sob a forma de farsa, eu fazendo o papel de Cordélia! Ao telefone, ela vive dizendo para quem quer que esteja ouvindo do outro lado, que o seu maior defeito é ser boa demais. Pois é certo que eles não hão de estar escutando — é certo que não hão de ficar sentados lá, inclinando a cabeça, rabiscando o bloco de notas e ouvindo aquela evidente lengalenga, autoconveniente e insensata, incapaz de enganar até mesmo a uma criança em idade pré-escolar. "Sabe qual é o meu maior defeito, Rosa? Odeio dizer isto a respeito de mim mesma, mas o fato é que sou boa demais." Estas são as palavras verdadeiras, doutor, que ficaram gravadas todos estes anos em meu cérebro. E que ainda me matam! Estas são as autênticas mensagens que as Rosas, as Sofias, as Goldies e as Pearls transmitem umas para as outras, diariamente! "Dedico-me inteiramente aos outros", admite ela, suspirando, "e em troca levo um pontapé nos dentes — o pior é que, por mais que leve bofetadas, não consigo deixar de ser boa." Besteira, Sofia, é só questão de tentar, não acha? Por que não havemos todos nós de tentar? Pois a verdadeira luta, mãe, é para ser mau e se sentir feliz assim mesmo. Só assim os meninos se transformam em homens. O que fez a minha chamada consciência, por minha sexualidade, minha espontaneidade, minha coragem? É inútil que eu tente levar a melhor em algumas coisas — porque a verdade é que não consigo. Como um mapa de estradas, sou marcado dos pés à cabeça pelos meus recalques. É possível viajar ao longo do comprimento e da largura do meu corpo, percorrendo rodovias de vergonha, inibição e medo. Veja, também sou bom demais, mãe, também estou cheio de moralidade até estourar — exatamente como você! Já me viu tentar fumar um cigarro? Pareço até Bette Davis. Hoje em dia, meninos e meninas em idade anterior ao bar mitzvah estão chupando maconha feito bala de hortelã, enquanto meus polegares se atrapalham com um Lucky Strike. Sim, eis quanto sou bom, mãe. Não posso fumar, mal bebo, não tomo drogas, não peço dinheiro emprestado, nem jogo cartas, não sou capaz de contar uma mentira sem que comece a suar como se estivesse atravessando o equador. É claro que falo palavrão um bocado, mas garanto-lhe que, quanto às transgressões, o meu sucesso não vai além disso. Veja o que fiz com a "Macaca" — desisti dela, fugindo amedrontado, a garota que tem a pomba que venho sonhando lamber a vida inteira. Por que está tão fora do meu alcance um pouco de insubordinação? Por que o menor desvio das respeitáveis

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convenções há de me causar este inferno inteiro? Quando irei odiar essas malditas convenções? Quando irei superar os tabus? Doutor, meu doutor, o que me diz? Liberte a libido deste garoto judeu, faça-me o favor! Aumente o. preço se quiser, que eu pagarei! Chega de retrair-se aos prazeres intensos e ocultos! Mãe, mãe, afinal de contas, você queria me transformar em quê? Num morto-vivo feito Ronald Nimkin? Onde foi buscar a idéia de que a coisa mais maravilhosa para mim na vida seria a obediência? Um pequeno cavalheiro? Que aspiração para uma criatura toda ânsia e desejos! "Alex", diz você, ao deixarmos o Weequahic Diner — e não tenha dúvidas que engoli a coisa: elogio é elogio e recebo como vem — "Alex", diz você; eu, todo na minha gravata de laço pronto e no meu blusão de duas cores, "a maneira como você cortou a sua carne! A maneira como você comeu aquelas batatas cozidas sem respingar! Merece um beijo, nunca vi um cavalheirozinho como este, todo de guardanapinho no colo!" Bicha, mãe. Uma bichinha, foi o que você viu — o produto exato de todo o programa de treinamento. Claro! Claro! O que é de espantar não é o fato de não estar morto feito Ronald Nimkin, mas o de não ser como todos esses distintos rapazes que vejo passeando de mãos dadas no Bloomingdale's, nas manhãs de sábado. Mãe, a praia de Fire Island está coberta dos corpos de distintos rapazes judeus, de biquínis e untados de óleo bronzeador, também cavalheirozinhos de restaurantes, tenho certeza, e que também ajudaram suas mamães a arrumar as pedras do mah-jong, quando as senhoras vinham jogar nas noites de segunda-feira. Cristo Todo-Poderoso! Como consegui ter acesso ao mundo das pombas, após todos aqueles anos arrumando aquelas pedras; isso é que é um mistério! Fecho os olhos e, sem muita dificuldade, vejo-me partilhando de uma casa em Ocean Beach com alguém de pintura nos olhos chamado Sheldon. "Oh, dane-se, Shelly, eles são seus amigos, você que faça o pão de alho." Mãe, os seus cavalheirozinhos já estão todos crescidos, e ali se estendem, sobre toalhas de praia cor de alfazema, com todo o seu furioso narcisismo. E, oba, estão chamando. . . por mim. "Alex? Alexander, o rei?" "Sabe o que li no Cosmopolitan?", diz minha mãe ao meu pai. "Que há mulheres que são homossexuais." "Espere aí", grunhe Papai Urso, "que imundície é essa, que porcaria é essa. . .?" "Por favor, Jack, não estou inventando. Li isto no Cosmopolitan! Vou lhe mostrar só o artigo!" "Conversa, eles põem isto para aumentar a vendagem. . ." Mamãe! Papai! Ainda há pior! Há gente que marreta frangos! Há homens que passam cadáveres na cara! Você não imagina a quantidade de pessoas que cumprem penas enormes por causa da idéia de "bom" que alguns idiotas fazem! Portanto, se lhe dei pontapés nas canelas, mamãezoca, se lhe enterrei os dentes no pulso até o osso, dê-se por muito feliz! Pois se tivesse guardado tudo dentro de mim, acredite-me também você poderia ter voltado para casa e encontrado o cadáver de um adolescente cheio de espinhas, enforcado por cima da banheira com o cinto do pai. Pior ainda, neste último verão, ao invés de ficar sucumbida por ter o filho de voar para a Europa distante, poderia ter jantado no meu "pátio" de Fire Island — vocês dois, eu e Sheldon. E, se está lembrada do que aquela lagosta goyische fez com os seus intestinos, imagine o que não seria experimentar o sauce béarnaise de Shelly. Portanto, a coisa é esta mesma. Que pantomima tive de executar para despir meu blusão de zylon e pô-lo no colo, a fim de cobrir minha coisa, na noite em que a expus aos elementos. Tudo para proveito do motorista, cuja polaca decisão poderia levá-lo a acender as luzes e destruir deste modo, num só instante, quinze anos de impecáveis cadernos de pontos, boas notas, limpeza de dentes duas vezes por dia e permanente abstenção de ingerir frutas sem tê-las lavado completamente. . . Que calor está fazendo aqui! Puxa, que calor! Será melhor tirar fora este blusão e pô-lo no colo, num montinho bem arrumado. . . Mas o que estou eu jazendo? Para um polonês, contou-me meu pai, o dia só fica completo quando consegue meter seus enormes pés estúpidos nos ossos de um judeu. Por que estou me arriscando deste jeito na frente do meu pior inimigo? O que será de mim se for apanhado! Levo a metade do túnel abrindo silenciosamente o zíper da minha braguilha — e aí está ele de novo, pulando para fora outra vez, como sempre endurecido, explodindo de exigências, como um macrocefalo idiota, transformando num inferno a vida dos pais, com as suas insaciáveis necessidades de imbecil. "Bata-me uma", pede-me o insinuante monstro. "Aqui? Agora?" "Claro, aqui e agora. Quando haverá

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de surgir outra oportunidade como esta? Adivinhe o que é esta garota adormecida ao seu lado. Olhe só este nariz." "Que nariz?" "É isso — a gente quase nem o vê. Olhe este cabelo, parece saído de uma máquina de fiar. Lembra-se do 'linho' que você estudou na escola? Isto é linho humano! Esta é uma autêntica, seu palerma! Uma shikse! E, além do mais, adormecida! Ou talvez, com grande probabilidade, esteja fingindo. Fingindo, mas sussurrando, num sopro: "Vamos, garotão, faça comigo todas aquelas coisas sujas que sempre desejou." "Será possível isto? "Querido", cantarola meu cacete, "deixe-me só começar a enumerar as variadas coisas sujas que ela gostaria que você fizesse: para início de conversa, que lhe segurasse nas tetas durinhas de shikse." "É mesmo." "Que bombeie o dedo na sua pomba de shikse, até ela desmaiar." "Oh, Deus! Até ela desmaiar!" "Esta é uma oportunidade que pode nunca mais aparecer. Por toda a sua vida." "Ah, mas aí é que está, quanto tempo representa toda a minha vida? O nome do motorista é todo de Xs e de Ys — segundo meu pai esses poloneses são descendentes diretos de uma vaca!" Mas quem pode discutir com uma verga? Ven der putz shteht, ligt der sechel in drerd. Conhece aquele famoso provérbio? Quando o pau levanta, o cérebro pára de funcionar! E pronto! Ele pula em pé, como um cão através de um arco, encaixando- se direitinho na pulseira formada pelos dedos médio, indicador e polegar, preparados para a ocasião. Uma operação manual efetuada com auxílio de três dedos, em sacudidelas staccato de pouco mais de dez milímetros a partir da base — este é o melhor processo para ônibus, o que menos fará mexer meu blusão de zylon. Na verdade, uma técnica como essa implica deixar sobrando a ponta sensível, porém grande parte da vida consiste em sacrifício e autodomínio, o que nem mesmo um maníaco sexual poderá esquecer. Concebi a operação manual de três dedos para as gozadelas em lugares públicos — já a utilizei no teatro de revista Empire, no centro de Newark. Numa manhã de domingo, saio de casa a caminho do pátio da escola, assobiando e levando uma luva de beisebol. Quando ninguém está olhando (o que nunca chego a acreditar), pulo num ônibus 14 vazio e fico encolhido no meu assento, durante todo o trajeto. O senhor pode imaginar a multidão que se amontoa do lado de fora do teatro de revista numa manhã de domingo. O centro de Newark está deserto como o Saara, exceto quanto à turma em volta do Empire, igualzinha a uma tripulação de um navio atacada de escorbuto. Não sou louco de ir lá? Só Deus sabe que doença posso apanhar naqueles assentos! "Vá mesmo assim, dane-se a doença", diz o maníaco que fala pelo microfone da minha cueca, "não sabe o que vai ver lá dentro? Uma cona de mulher." "Uma cona?" "Isso mesmo, ela todinha, quente e gotejante, pronta para entrar em ação." "Mas vou apanhar sífilis só de pegar no bilhete de entrada. Vou trazer o micróbio na sola dos meus tênis para dentro de casa. Algum maluco vai me matar com uma facada para me roubar a camisa-de-vênus dentro da minha carteira. E se a polícia aparecer? Brandindo as pistolas. . . alguém corre. . . e eles matam a mim por engano! Sou menor de idade. E se for morto — ou, até mesmo pior, preso! E os meus pais!" "Escute, você quer ver uma cona ou não quer?" "Quero! Quero!" "Eles têm lá uma vagabunda, garoto, que se esfrega toda nua na cortina." "Está bem. . . arrisco a pegar sífilis! Arrisco ficar de cérebro mole e passar o resto dos meus dias num asilo de loucos jogando pelota com o meu cocô — mas se aparecer o meu retrato no Newark Evening News!" Quando a polícia acender as luzes e gritar: "Muito bem, seus tarados, isto é uma batida!" — imagine-se os flashes funcionando e pegando a mim, que já sou presidente do Clube de Relações Internacionais do meu segundo ano de ginásio! Eu, que pulei dois anos no curso primário! Que em 1946 liderei minha classe do oitavo grau na recusa de participar do concurso anual de ensaio patriótico, patrocinado pela DAR, porque não deixaram Marian Anderson cantar no Convention Hall. Eu era e sou ainda o garoto de doze anos que, como recompensa pela corajosa posição adotada contra o fanatismo e o ódio, foi convidado a comparecer à Essex House em Newark, a fim de tomar parte na convenção da Junta de Ação Política da cio — e subir no palanque para apertar a mão do Dr. Frank Kingdon, o famoso colunista que eu lia todos os dias. Como posso ter a coragem de entrar num teatro de revista com todos aqueles degenerados, para ver uma senhora de sessenta anos fazer amor com uma cortina, após ter merecido o cumprimento do Dr. Frank Kingdon, no palco do salão de baile da Essex House, enquanto a PAC inteira se levantava para aplaudir minha oposição ao DAR e ele próprio me dizia: "Jovem, você verá a democracia em ação, aqui, esta manhã." Depois de ter, com o meu futuro cunhado Morty Feibish,

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comparecido a reuniões da Junta de Veteranos Americanos, de que ele é membro, ajudando-o a arrumar as cadeiras para a assembléia. Li o Cidadão Tom Paine de. Howard Fast, Visão Retrospectiva, de Bel- lamy, e Finnley Wren, de Philip Wylie. Em companhia de minha irmã e de Morty, ouvi gravações de marchas militares do imponente coro do Exército Vermelho. Rankin, Bilbo, Martin Dies, Gerald L. K. Smith e o Padre Coughlin, todos esses fascistas filhos da puta são meus inimigos mortais. Portanto, que estou fazendo aqui, na platéia de um teatro de revista, gozando dentro da minha luva de beisebol? Que importa que haja batidas! Que importa os germes? E se mais tarde, depois do espetáculo, aquela ali, de peitos enormes, se ela... Em sessenta segundos, eu havia imaginado a vida maravilhosa, cheia da mais completa depravação, que levaríamos os dois, sobre uma colcha de flocos de algodão, no quarto de um hotel barato, eu (o inimigo da Primeira América) e Thereal McCoy, o nome que dei à vigarista de aspecto mais devasso da fileira de vedetes, sob a lâmpada descoberta no teto e o letreiro HOTEL acendendo e apagando fora da nossa janela. Ela esborracha os Bolinhos Atrevidos Drake (chocolate com recheio de creme) no meu cacete e em seguida o vai empolgando nos lábios, comendo os bolinhos camada por camada. Derrama calda de maple nos meus tenros testículos e depois lambe-os até ficarem limpinhos como os de um bebê. Sua frase favorita na língua é: "Meta na minha pomba, gostosão, até eu desmaiar!" Quando peido dentro da banheira, ela ajoelha-se, nua, no chão de ladrilhos, inclina-se toda sobre a água e beija as borbulhas. Senta-se sobre a minha vara, quando estou na privada, enfiando na minha boca um mamilo do tamanho de um suspiro, sussurrando perversamente no meu ouvido as palavras mais obscenas que conhece. Põe cubos de gelo na boca, até enregelar a língua e os lábios, em seguida me chupa — fazendo o mesmo depois com chá quente! Tudo, tudo o que pensei, ela também pensou, e fará. A maior puta (em Newark rima com luta) que já existiu. E é minha! "Oh, Thereal, vou gozar, vou gozar, sua desgraçada", e desta forma fico sendo a única pessoa a ter ejaculado numa luva de beisebol no Teatro Empire de Newark. Talvez. A grande dica no Empire são os chapéus. Do outro lado da passagem, na minha direção, um colega de vício, cinqüenta anos mais velho do que eu, está despejando a sua carga no chapéu. No chapéu, doutor! Uh, sinto-me enjoado, com vontade de chorar. No chapéu não, seu porco, que você vai pôr na cabeça e, quando sair andando pelo centro de Newark, a coisa escorrerá pela sua testa! Como é que vai comer, depois, seu almoço dentro dele! A angústia apodera-se de mim quando a última gota pinga na minha luva. A depressão é esmagadora; até mesmo minha vara está envergonhada e não conversa mais comigo, quando saio do teatro, atormentando a mim mesmo, gemendo em voz alta: "Oh, não, não", como um homem que acabasse de sentir a sola escorregar num monte de excremento de cachorro — sola do sapato, vá lá o trocadilho, (Sole, sola; soul, alma. - N. do T.), estou pouco ligando. . . Ach! É nojento! No chapéu, como é que pode. Ven der putz shteht! Ven der putz shteht! No chapéu que ele usa na cabeça! Lembro-me de repente como minha mãe ensinou-me a urinar em pé! Escute, este bem pode ser o fragmento de informação que esperávamos, a chave, da definição do meu caráter, que me obriga a viver nesta situação, dilacerado por desejos que me repugnam a consciência e uma consciência que repugna aos meus desejos. Eis como aprendi a mijar na privada como gente grande. Ouça só isto! Estou parado, por sobre o círculo de água, minha coisinha de bebê projetando-se, bonitinha, enquanto minha mãe senta-se ao lado do vaso, na beira da banheira, controlando com uma das mãos a torneira (de onde escorre um fio de água que deverei imitar) e com a outra fazendo cócegas na parte de baixo da minha piroquinha. Repito: jazendo cócegas na minha piroquinha! Imagino que ela acha que esta é a maneira de fazer sair o negócio pela coisinha fora, o que me parece certo da parte dela, deixe-me que lhe diga. ,"Faz xixi direitinho, faz um xixi bonitinho para a mamãe", entoa minha mãe, enquanto na verdade o que estou fazendo ali, com a mão dela na minha coisa, pode vir a constituir, provavelmente, o meu futuro! Imagine! O ridículo! O caráter de um homem está sendo forjado, um destino está tomando forma. . . oh, talvez não. . . De qualquer modo, seja qual for a validade da informação, o fato é que não consigo verter minha água na presença de outro homem. Até hoje. Minha bexiga pode estar dilatada como uma melancia, mas fica obstruída por outra presença que surja antes de o jorro ter começado. (Quer ouvir tudo, está bem, vou dizer.) Terá

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sido por isso que em Roma, doutor, a "Macaca" e eu pegamos uma prostituta na rua e a levamos para a cama conosco. Bem, agora a coisa saiu. Parece que me custou bastante. O ônibus, o ônibus, o que interferiu no ônibus que me impedisse de gozar sobre o braço da shikse adormecida — não sei. O bom senso, acha o senhor? Pura e simples decência? A minha retidão de idéias, conforme se diz, vindo à tona? Ora, onde estava esta retidão de idéias naquela tarde quando voltei para casa, da escola, minha mãe saíra, e encontrei na geladeira uma enorme posta de fígado cru? Creio que já contei desta. posta de fígado que comprei num açougueiro e marretei atrás de um porta-cartazes, a caminho de uma lição de bar mitzyah. Bem, quero desabafar isto de uma vez, Vossa Santidade. Esta não foi a minha primeira posta. Minha primeira, tive-a na intimidade de minha casa, enrolada no meu cacete, no banheiro, às três e trinta — e posteriormente, outra vez, na ponta de um garfo, às cinco e meia, na companhia dos outros membros da minha pobre e inocente família. Pronto. Agora o senhor sabe a pior coisa que já fiz. Fodi o jantar da minha família. A menos que o senhor compartilhe da alegação da "Macaca" de que o crime mais hediondo da minha carreira foi abandoná-la na Grécia. O segundo mais hediondo: induzi-la. àquele triunvirato em Roma. Na sua opinião — grande opinião essa! — sou o único responsável pela consumação daquele ménage, por ser o dono da natureza mais firme e virtuosa. "O Grande Humanitarista!", exclama ela. "Cujo trabalho consiste em proteger dos proprietários os pobres miseráveis! Você, que me deu aquele U.S.A. para ler! Você, por causa de quem obtive aquela proposta para a Universidade de Hunter! Você, por quem estou me matando, a fim de me tornar algo mais do que a burra e estúpida comida de alguém! E agora quer me tratar como se eu não passasse de uma montaria para ser usada — usada para todas as coisas enroladas e estrambóticas que quer fazer — enquanto você passa por ser o intelectual superior! Metido na maldita televisão educativa!" . Está vendo, segundo a opinião desta "Macaca", minha missão consistia em retirá-la dos abismos da frivolidade, dissipação, perversão, desvario e luxúria, nos quais, de minha parte, venho tentando inutilmente mergulhar — salvá-la das próprias tentações, às quais venho lutando todos estes anos por ceder! E o fato de que na cama ela vive sonhando com esta brincadeira, não menos febrilmente do que eu, nada lhe significa absolutamente. Doutor, eu lhe pergunto, quem foi que fez a sugestão em primeiro lugar? Desde a primeira noite em que nos encontramos, quem vem tentando quem com a perspectiva de outra mulher em nossa cama? Acredite- me, não estou procurando sair da minha lama, e sim entrar. É preciso, porém, que fique absolutamente claro, para mim, para o senhor e, quanto mais não seja, para ela, que esta mulher perdidamente- neurótica, esta cona roceira pateticamente louca, nada tem de minha vítima. Simplesmente não me submeterei a essa frescura de vítima! Agora, que ela tem trinta anos, quer se casar e ser mãe, levar vida respeitável, morar numa casa com um marido (principalmente porque os anos mais compensadores,da sua fascinante carreira estão quase terminando), mas isto não significa que só por se imaginar sacrificada, despojada e explorada (o que até mesmo pode ter-se dado, se encararmos a sua vida dentro de uma ampla perspectiva), a culpa toda venha a recair sobre mim. Não fui eu quem a botou com trinta anos e solteira. Não fui eu quem a tirou dos campos de carvão de West Virgínia para tomá-la a meu cargo — tampouco a pus na cama com aquela mulher da rua! O fato é que a própria "Macaca", . no seu italiano de alto bordo, foi que se debruçou da janela do nosso carro alugado e explicou à prostituta o que nós desejávamos e quanto estávamos dispostos a pagar. Eu só fiquei ali sentado ao volante, com um pé no acelerador, como motorista fujão que sou. . . E, acredite-me, quando aquela prostituta entrou no banco de trás, meu pensamento disse não; e no hotel, onde demos um jeito de fazê-la subir sozinha para o nosso quarto, pelo lado do bar, meu pensamento disse não outra vez: Não! Não! Não! Não era feia, a mulher. Um tanto rotunda e atarracada, mas de vinte e poucos anos, com um rosto agradável, franco e uns peitos formidáveis. Por causa deles é que nós a escolhemos, após percorrer de cima a baixo a Via Veneto, examinando a mercadoria em desfile. A prostituta, cujo nome era Lina, tirou o vestido em pé no meio do quarto. Usava por baixo um espartilho tipo "viúva-alegre", com os peitos borbulhando numa extremidade e as coxas mais do que fartas ondulando na outra. Fiquei assombrado com aquela peça de roupa e o seu efeito teatral, mas o fato é que estava assombrado com tudo, especialmente por termos ido avante e realizado afinal a coisa, após todos

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aqueles meses de conversa. A "Macaca" saiu do banheiro na sua camisola curta (geralmente uma visão que me punha escaldante, aquela camisola de seda creme, com uma bonita "Macaca" dentro); enquanto isso, eu tinha tirado toda a roupa e estava sentado, nu, aos pés da cama. O fato de Lina não falar uma só palavra de inglês somente intensificou o sentimento que começara a esmorecer e fluir entre mim e a "Macaca", uma espécie de sadismo contido: podíamos falar um com o outro, trocar segredos e planos sem que a prostituta entendesse — como também ela e a "Macaca" poderiam cochichar em italiano, sem que eu soubesse o que diziam ou tramavam. . . Lina falou primeiro e a "Macaca" passou a traduzir. "Ela está dizendo que você tem uma coisa grande." "Aposto que diz isso a todos os homens." Em seguida, elas ficaram ali paradas, nas suas roupas íntimas, olhando para mim — esperando. Mas acontece que também eu estava esperando. E como batia o meu coração! Finalmente ali estávamos, duas mulheres e eu. . . E agora? Digo ainda para mim mesmo: Não! Ela quer saber — diz a "Macaca", após Lina ter falado pela segunda vez — por onde o signore quer que ela comece. O signore — respondo — quer que ela comece pelo começo. . . Oh, muito espirituosa esta resposta, na verdade bastante despreocupada, só que continuamos ali sentados, imóveis, eu e o meu cacete, todos despidos e sem saber para onde ir. Finalmente, é a "Macaca" quem põe em ação a nossa luxúria. Ela se aproxima de Lina, acima de quem se eleva (oh, Deus, será que ela não basta? não será realmente suficiente para as minhas necessidades? quantas picas tenho eu?), e põe a mão entre as pernas da prostituta. Havíamos imaginado aquilo de antemão, em todas as suas possibilidades, sonhado tudo em voz alta durante meses e meses, e ainda assim me sinto estupidificado ao ver o dedo médio da "Macaca" desaparecendo na pomba de Lina. O estado em que entrei subseqüentemente, melhor poderia descrevê-lo como o de uma incessante ocupação. Puxa, como fiquei ocupado! É que havia tanta coisa a fazer. Você vem para aqui e eu vou para ali — muito bem, agora você vem para aqui e eu vou para ali — está certo, agora ela fica deste jeito, enquanto viro para cá, e você vira um pouco assim. . . e assim aquilo continuou, doutor, até que dei a minha terceira e última. A esta altura, a "Macaca" era a que estava de barriga para cima na cama e eu de traseiro voltado para o lustre (e para as câmaras, pensei fugazmente) — e no meio, abastecendo a boca da minha "Macaca" com as tetas, estava a nossa prostituta. Em que buraco, em que tipo de buraco depositei minha carga final é assunto para conjectura. Pode ser que no fim tenha acabado marretando uma combinação úmida e odorífera de pentelhos italianos encharcados, nádegas americanas escorregadias e lençóis absolutamente fétidos. Em seguida, levantei- me, fui para o banheiro e, ficará feliz em sabê-lo, vomitei o meu jantar. Esvaziei minhas entranhas, mamãe, bem dentro do vaso sanitário. Não sou um bom menino? Quando saí do banheiro, a "Macaca" e Lina estavam adormecidas nos braços uma da outra. Logo depois que Lina se vestiu e foi embora, começaram o choro patético da "Macaca", as recriminações e as acusações. Eu a levara à prática do mal. "Eu? Você foi quem enfiou o dedo na coisa dela e deu início à brincadeira! Você beijou a porcaria daquela boca!. . .", "Porque eu", berrou ela, "se tenho de fazer uma coisa, faço mesmo! Não significa que esteja querendo fazer!" E então, doutor, ela começou a vociferar comigo a respeito dos peitos de Lina, que eu não tinha brincado com eles bastante. "Você só pensa e fala em peitos! Peitos das outras! Os meus são tão pequenos e todos os outros que você vê no mundo são tão grandes — e finalmente arranja uns que são enormes. O que faz então? Nada!" "Nada é exagero, 'Macaca', a questão é que não pude competir com você..." "Não sou lésbica! Não ouse me chamar de lésbica! Porque se eu for, foi você quem me fez ficar!" "Oh Jesus, não',..." "Fiz aquilo por você, sim, e agora está me odiando por isso!..." "Então não faremos mais outra vez, por mim, está bem? Já que dá esta droga de resultado!" Na noite seguinte, porém, nos esquentamos demais na hora do jantar — como nos primeiros tempos do nosso caso. A certa altura, a "Macaca" dirigiu-se ao banheiro das senhoras no Ranieri's e voltou para a mesa com um dedo recendendo a pomba, que mantive sob o meu nariz, cheirando e beijando, até a chegada do primeiro prato. Depois de uns dois conhaques no Doney's, fomos outra vez abordar Lina no seu posto e levamo-la conosco para o hotel, para o segundo assalto. Só que desta vez despojei Lina de suas roupas íntimas e a cavalguei, antes que a "Macaca" voltasse do banheiro para o

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quarto. Se tenho de fazer uma coisa, pensei, faço mesmo! Até o fim! Sem faltar nada! Sem vomitar, tampouco! Você não está mais no ginásio de Weequahic, e sim bem longe de Nova Jersey! Quando a "Macaca" saiu do banheiro e viu que a batalha já começara, não se mostrou inteiramente satisfeita. Sentou-se na beira da cama, as feições miúdas ainda menores do que jamais vira antes e, recusando um convite para participar, ficou assistindo até que eu obtivesse o meu orgasmo e Lina acabasse de fingir o seu. Obsequiosamente, então — docemente, de fato —, Lina tentou instalar-se entre as longas pernas da minha amante, mas a "Macaca" repeliu-a, indo sentar-se, emburrada, junto à janela. Sendo assim, Lina — pessoa que não se revela demasiado sensível aos arrufos alheios — recostou-se no travesseiro ao meu lado e começou a nos contar tudo acerca de si própria. A desgraça da existência eram os abortos. Era mãe de um garoto, que morava com ela em Monte Mario ("num belo edifício novo", traduziu a "Macaca"). Infelizmente, não lhe era possível, na sua situação, ter mais de um — "embora adorasse crianças" — e por isso vivia entrando e saindo do consultório do aborteiro. Seu único recurso preventivo parecia ser uma ducha espermicida não muito segura. Não pude acreditar que ela jamais tivesse ouvido falar em pessário ou em pílula anticoncepcional. Pedi à "Macaca" que lhe explicasse os modernos meios de prevenção da gravidez a que ela pudesse ter seguro acesso, bastando apenas um pouco de engenhosidade. Recebi da minha amante um olhar muito enviesado. A prostituta ouviu, mas mostrou-se incrédula. Afligiu-me bastante que ela ignorasse tanto um assunto referente ao seu bem-estar (ali na cama, os dedos brincando com os meus úmidos cabelos púbicos): droga dessa Igreja Católica, pensei. . . Portanto, quando ela nos deixou, naquela noite, levava não apenas quinze mil das minhas liras na bolsa, como também uma provisão de um mês do Enovid da "Macaca", dados por mim. Oh, bom salvador que você é! — exclamou a "Macaca", após a saída de Lina. O que você quer que ela faça? Viva pegando filho? Que sentido tem isso? Que me importa o que acontece com ela! — berrou a "Macaca", a voz tornando-se dura, sobre -vindo o sotaque caipira. — Não passa de uma prostituta e você só queria saber de marretá-la! Nem esperou eu sair da privada para começar! E ainda por cima deu-lhe as minhas pílulas! E o que significa isso, hem? O que está tentando dizer exatamente? Sabe, "Macaca", o bom senso não costuma ser muito o seu forte. A franqueza, sim, mas o bom senso, não! Então me deixe! Já teve o que quis! Deixe-me! Talvez faça isso! Para você não passo de uma outra ela! Com todas essas palavras bonitas, esses ideais sagrados de merda, você só vê em mim uma vagina, uma lésbica e uma prostituta! Deixemos a briga de lado. É cacete. No domingo, mal saímos do elevador, e quem, senão a nossa Lina, desponta na porta da frente do hotel, acompanhada de uma criança de uns sete ou oito anos, um garoto gordinho, alabastrino, todo em folhos, veludo e verniz! Ela está de cabelo puxado para baixo e os olhos escuros, vindos da igreja, têm uma expressão pesarosa, familiarmente italiana. Realmente uma pessoa de boa aparência. Uma doce criatura (não posso deixar de achar!). E veio mostrar o seu bambino! Ou pelo menos parece. Apontando para o garotinho, ela sussurra para a "Macaca": "Molto elegante, no?" Acompanha-nos em seguida até o nosso carro e, enquanto a criança mostra-se preocupada com o uniforme do porteiro, sugere que talvez gostássemos de ir ao seu apartamento em Monte Mario naquela tarde, para todos nós fazermos com um outro homem. Diz ela que tem um amigo — veja que estou sabendo disso tudo através da minha intérprete — que gostaria, sem dúvida, de marretar a signorina. Percebo as lágrimas escorrendo sob os óculos escuros da "Macaca", no momento em que me diz: "Então, o que digo a ela, sim ou não?" "Não, é claro. Certamente que não." A "Macaca" Quando a "Macaca" saiu do banheiro e viu que a batalha já começara, não se mostrou inteiramente satisfeita. Sentou-se na beira da cama, as feições miúdas ainda menores do que jamais vira antes e, recusando um convite para participar, ficou assistindo até que eu obtivesse o meu orgasmo e Lina acabasse de fingir o seu. Obsequiosamente, então — docemente, de fato —, Lina tentou instalar-se entre as longas pernas da minha amante, mas a "Macaca" repeliu-a, indo sentar-se, emburrada, junto à janela. Sendo assim, Lina — pessoa que não se revela demasiado sensível aos arrufos alheios — recostou-se no

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travesseiro ao meu lado e começou a nos contar tudo acerca de si própria. A desgraça da existência eram os abortos. Era mãe de um garoto, que morava com ela em Monte Mario ("num belo edifício novo", traduziu a "Macaca"). Infelizmente, não lhe era possível, na sua situação, ter mais de um — "embora adorasse crianças" — e por isso vivia entrando e saindo do consultório do aborteiro. Seu único recurso preventivo parecia ser uma ducha espermicida não muito segura. — Não! Não! Durante todo o caminho até a Villa Adriana, ela se lamenta: "Quero também um filho! Um lar! Um marido! Não sou lésbica! Nem uma prostituta!" Lembra a noite da primavera anterior, quando a levei ao Bronx comigo, para assistirmos ao que nós da O. H. chamamos de "Noite da Oportunidade Igual". "Todos aqueles pobres porto- riquenhos sendo explorados nos supermercados! E você falou em espanhol, oh, como fiquei impressionada! Fale-me agora das suas más condições sanitárias, dos seus ratos e vermes, da sua proteção policial! Que a discriminação é contra a lei! Um ano de prisão ou multa de quinhentos dólares! E aquele pobre porto-riquenho que se levantou e gritou 'Qs dois!' Oh, que impostor você é, Alex! Hipócrita e falso! Um grande figurão para um bando de idiotas, mas eu é que sei da verdade! Você faz mulheres decentes dormirem com prostitutas!" Não obrigo ninguém a fazer o que não quer. Oportunidades humanas! Humanas! Como você adora essa palavra! Mas sabe lá o que ela significa, seu alcoviteiro filho da puta! Eu lhe ensino! Pare aí este carro, Alex! Desculpe, mas não paro. Pare! Pare, sim, porque vou saltar! Vou achar um telefone e fazer uma chamada interurbana para John Lindsay e contar a ele o que você me obrigou a fazer. Vai uma pinóia. Hei de desmascará-lo, Alex! Vou falar com Jimmy Breslin! E depois, em Atenas, ela ameaça se jogar da janela, a menos que eu case com ela. É então que vou-me embora. Shikses! No inverno, quando os germes da poliomielite estão hibernando e posso contar com a sobrevivência fora de um pulmão de ferro até o fim do ano escolar, vou patinar no lago de Irvington Park. Ao cair da tarde dos dias de semana, depois o dia inteiro nos sábados e domingos vivificantes e luminosos, patino circulando atrás das shikses que moram em Irvington, a cidade fronteira ao limite urbano das ruas e casas do meu seguro e acolhedor bairro judaico. Sei onde moram as shikses pelo tipo de cortinas que as suas mães penduram nas janelas. E também porque os goyim hasteiam um pequeno pano branco com uma estrela na janela da frente, em honra deles mesmos e dos filhos que estão na guerra — azul, se estiver vivo, dourada, se estiver morto. "Uma Mãe Estrela Dourada", diz Ralph Edwards, apresentando solenemente uma concorrente ao programa A Verdade ou as Conseqüências, a qual, dentro de dois minutos, vai receber entre as pernas o esguicho de sifão de água mineral, seguido de uma geladeira nova em folha para a sua cozinha. . . Minha tia Clara, do andar de cima, também é uma Mãe Estrela Dourada, só que aqui há uma diferença — não há Estrela Dourada em sua janela, pois um filho morto não a faz sentir-se orgulhosa, nobre, ou qualquer outra coisa assim. Ao contrário, parece tê-la transformado, segundo as palavras de meu pai, num "caso de nervos" para o resto da vida. Desde que Heshie foi morto na invasão da Normandia, não há um dia que tia Clara não passe quase todo na cama e soluçando tanto que o Dr. Izzie tem que vir às vezes dar-lhe uma injeção para acalmar a sua histeria. . . Mas as cortinas. . . as cortinas são bordadas de rendas ou alguma outra "moda", derrisoriamente descrita por minha mãe como "gosto goyische". Na época do Natal, quando não tenho escola e posso sair para patinar à noite, sob as luzes, vejo as árvores acendendo e apagando atrás das cortinas gentias. Não em nosso quarteirão — Deus me perdoe! — nem na Rua Leslie, ou na Rua Schley, ou até mesmo na Praça Fabian, mas, ao aproximar-me dos limites de Irvington, olhem aí um goy, ali um outro, e ali mais um outro. Quando entro em Irvington, então é simplesmente horroroso: não apenas se vê uma árvore em pleno fulgor em cada sala de visitas, como também as próprias casas estão emolduradas de lâmpadas coloridas apregoando o cristianismo, os fonógrafos lançando aos ares Noite Feliz, como se fosse — será que já não é? — o hino nacional, e nos pátios cobertos de neve vêem-se pequenos presépios — realmente, chega até a dar náuseas na gente. Como é que eles podem acreditar nesta porcaria? Não apenas as crianças, como os adultos

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também, ficam ali em volta, sorrindo para uns pedacinhos de madeira de uns quinze centímetros de altura chamados Maria, José e o Menino Jesus — até as vacas e os cavalos do presépio também estão sorrindo! Deus! A idiotice dos judeus o ano inteiro e agora a dos goyim, nessas festas! Que país! Não é de admirar que todos nós sejamos meio malucos! Mas as shikses, ah, as shikses são outra coisa. Em meio ao cheiro de serragem úmida e lã molhada, na garagem de barcos superaquecida, e à visão dos juvenis cabelos louros derramando-se dos lenços e das toucas, permaneço estático. Tendo em volta essas garotas coradas e risonhas, amarro meus patins com dedos fracos e trêmulos e depois saio para o frio lá fora, atrás delas, seguindo na ponta dos pés pela prancha de madeira até atingir o gelo, deslizando no rastro de um alvoroçado grupo — um buquê de shikses, uma grinalda de garotas gentias. Minha admiração é tão grande que me coloca num estado de desejo que transcende a tesão. Minha circuncidada piroquinha está simplesmente murcha de veneração. Talvez seja reverência. Como conseguem elas ser tão magníficas, tão saudáveis, tão louras? Meu desprezo por aquilo em que acreditam é mais do que neutralizado por minha adoração pela sua aparência, pela maneira como se movem, riem e falam. E as vidas que devem levar por trás daquelas cortinas goyische? Talvez um ídolo das shikses venha a ser mais autêntico — ou deverei dizer dos shkotzim, (Rapazes solteiros gentios. - N. do T)? Pois os irmãos mais velhos dessas garotas são os simpáticos, afáveis, confiantes, puros, velozes e robustos zagueiros médios das equipes universitárias de futebol denominadas Northwestern, Texas Christian e UCLA. Seus pais são homens de cabelos brancos e vozes graves, que jamais usam frases com negativas duplas, e suas mães as senhoras de bondosos sorrisos e excelentes maneiras, que dizem coisas como: "Tenho a forte impressão, Mary, de que vendemos trinta e cinco bolos na quermesse". "Não volte muito tarde, querida", entoam elas docemente, para as suas florezinhas que saem aos pulos nos seus vestidos bufantes de tafetá para o Baile dos Estudantes Secundários, com rapazes de nomes iguais aos encontrados no manual de leitura da escola, nada de Arron, Arnold ou Marvin, e sim Johnny, Billy, Jimmy ou Tod. Nada de Portnoy ou Pincus, e sim Smith, Jones ou Brown! Esses são os americanos, doutor — gente como Henry Aldrich e Homer, como o Grande Gildersleeve e o seu sobrinho LeRoy, como Corliss e Verônica, como Oogie Pringle, que canta embaixo da janela de Jane Powell, em Um Encontro com Judy. Para eles é que Nat "King" Cole canta todo o Natal: "Castanhas assando no fogo da lareira, Dona Geada beliscando nosso nariz. . ." Lareira acesa em minha casa? Não, nada disso, os narizes a que ele se refere são os deles. Não o seu, preto e achatado, nem o meu, comprido e nodoso, mas aquelas minúsculas maravilhas sem cavalete, com narinas apontando automaticamente para o norte desde o nascimento. E que permanecem assim para o resto da vida! Crianças que são as reproduções vivas dos livros coloridos, às quais se referem os letreiros que se nos deparam em Union, Nova Jersey, avisando CRIANÇAS BRINCANDO, e GUIE COM CUIDADO, PENSE NAS NOSSAS CRIANÇAS — meninos e meninas que moram "na casa ao lado", que vivem perguntando pelo "calhambeque" e se metendo em "encrencas", saindo delas ainda a tempo para o anúncio final, cujos vizinhos não são os Silversteins e os Landaus, e sim Fibber McGee e Molly, Ozzie e Harriet, Ethel e Albert, Lorenzo Jones e a sua esposa Belle, e Jack Armstrong! Jack Armstrong, o goy tipicamente americano! — sendo que o seu Jack^vem de John, e não de Jake, como no caso do meu pai. . . Olhe, realizávamos nossas refeições com o rádio berrando até a sobremesa, o brilho da faixa amarela das estações é a última luz que vejo toda noite antes de dormir — por isso, não venha me dizer que somos a mesma coisa, americanos como eles. Não, não, esses cristãos de cabelos louros são os verdadeiros moradores e donos deste lugar, podem despejar nas ruas as músicas que bem entenderem, que ninguém irá impedi-los. Ó América! América! para os meus avós deverá ter sido o ouro, para meu pai e minha mãe, uma galinha em cada panela, mas para mim, uma criança cujas primeiras recordações cinematográficas são Ann Rutherford e Alice Faye, a América é uma shikse aninhada em nossos braços, sussurrando amor, amor, amor, amor, amor! Portanto, o anoitecer no lago gelado de um parque da cidade, patinando atrás dos vermelhos e enfunados protetores de ouvidos, e dos tremulantes aneizinhos louros do cabelo de uma shikse desconhecida, ensina-me o significado da palavra ânsia. Chega quase a ser mais do que pode suportar um furioso filhinho-da-mamãe judeu de treze anos. Perdoe a exuberância, mas provavelmente são

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estas as horas mais pungentes da minha vida, quando aprendo o significado da palavra ânsia e da palavra tormento. Lá vão as queridas criaturas correndo aterro acima, tagarelando ao longo do passeio escavado entre as sempre-verdes — e aqui vou eu (se tiver coragem!). O sol quase que já se pôs e tudo se torna purpúreo (inclusive a minha prosa), enquanto vou seguindo a uma distância segura até elas atravessarem a rua nos seus patins e entrarem às risadinhas na pequena confeitaria à margem do parque. Quando consigo criar coragem para cruzar a porta — todos os olhares cairão certamente em mim! —, elas já desapertaram seus protetores de ouvido, abriram os fechos de seus blusões, já erguem xícaras de chocolate quente entre os seus rostos ardentes, macios, e cada um de seus narizes (mistério dos mistérios!) desaparece inteiramente numa xícara cheia de chocolate e marshmallows, emergindo do outro lado sem ser tocado pelo líquido! Jesus, olhem como comem inocentemente entre as refeições! Que garotas! Com toda a doidice e ímpeto, peço uma xícara de chocolate e começo a arrumar meu apetite para o jantar, diligentemente servido pela minha expedita mãe às cinco e meia, quando meu pai chega a casa "faminto". Em seguida, acompanho-as de volta ao lago, depois em torno do lago e finalmente o meu êxtase termina — elas voltam para casa, ao encontro dos seus pais corretos de gramática, de suas mães serenas e de seus irmãos seguros de si, todos eles vivendo em felicidade e harmonia por trás de suas cortinas goyische. Ao passo que eu regresso a Newark, para a trepidante vida com a minha família, agora transcorrida atrás de persianas de alumínio, fruto das sobras do dinheiro das compras, que minha mãe vem economizando há anos. Como subimos de classe social com essas cortinas! Segundo parece achar minha mãe, fomos projetados na alta sociedade. Uma boa parte de sua vida é agora empregada tirando poeira e polindo as lâminas das cortinas. Durante o dia, fica atrás delas passando o pano e, ao anoitecer, olha entre as suas frestas limpas para a neve caindo à luz da rua, pondo em funcionamento a máquina de preocupações. Dentro de poucos minutos, já atingiu um estado apropriadamente frenético. "Que terá havido com ele?", geme ela, cada vez que surge um par de faróis varrendo a rua e não são os dele. Que terá havido, oh, que terá havido com o nosso Ulisses! No andar de cima, tio Hymie já chegou, do outro lado da rua, Landau já chegou, na casa ao lado, Silverstein já chegou — todos já chegaram por volta das cinco e quarenta e cinco exceto meu pai, e o rádio diz que uma tempestade de neve já está desabando sobre Newark, vinda do pólo Norte. Bem, não há mais dúvidas sobre isso, já se pode telefonar para Tuckerman & Farber, acerca dos preparativos para o enterro, e começar a chamar os convidados. È, basta que as estradas comecem a reluzir de gelo para que se suponha que o meu pai, quinze minutos atrasado para o jantar, foi esmagado contra um poste telegráfico algures, e jaz morto numa poça de sangue. Minha mãe entra na cozinha e nesta altura seu rosto dir-se-ia saído de um quadro de El Greco. "Meus dois armênios famintos", diz ela com a voz alquebrada, "vamos, comam, queridinhos. . . comecem, não adianta esperar. . ." E quem não se sentiria pesaroso? Pensem só no futuro — suas duas crianças sem pai, ela sem marido e arrimo, tudo porque de repente, quando o pobre homem se dirigia para casa, começara a nevar. Enquanto isso, fico imaginando se, com a morte de meu pai, terei de arranjar um emprego depois da escola e aos sábados e, conseqüentemente, deixar de patinar em Irvington Park — deixar de patinar com as minhas shikses antes mesmo de ter falado uma palavra sequer com elas. Tenho medo de abrir a boca, com receio de não sair nada, ou então saírem as palavras erradas. "Portnoy, sim, é um velho nome francês, corruptela de porte noir, que significa porta ou portão preto. Segundo consta, na Idade Média, na França, a porta da nossa herdade foi pintada. . .", etcétera, etcétera. Não, não, é inútil, elas ouvirão o oy do final, e o jogo será descoberto. Será Al Port, então, Al Parsons! "Como vai, Sra. McCoy, permita que eu patine ao seu lado, meu nome é Al Parson. . .", mas não será Alan tão judaico e estrangeiro quanto Alexander? Sei que há o Alan Ladd, mas há também o meu amigo Alan Rubin, o interceptador do nosso time de softball. E esperem só ela ouvir que sou de Weequahic. Ora, mas que diferença faz, posso mentir quanto ao meu nome; minha escola, como, porém, posso mentir quanto a este maldito nariz? "O senhor parece uma pessoa muito distinta, Sr. Porte-Noir, mas por que vive tapando a metade do rosto desse jeito?" Isso foi porque de repente o meio da minha cara deu de disparar! Desapareceu aquele botão dos tempos da minha infância, aquela coisinha bonitinha que as pessoas costumavam olhar quando eu passava no meu carrinho e, olhem só, o meio da minha cara começou a procurar o firmamento! Porte -Noir e Parson uma ova, garoto,

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você tem é J-U-D-E-U escrito no meio dessa cara — olhem o nariz dele, pelo amor de Deus! Isso não é nariz, é uma bicanca! Dê o fora, judeuzinho! Abandone o gelo e deixe essas garotas em paz! E é verdade. Encosto a cabeça na mesa da cozinha e numa folha de papel do escritório do meu pai traço meu perfil com um lápis. Ê horrível! Como foi acontecer isto comigo, eu que era tão magnífico naquele carrinho, mamãe! O meu nariz começou por crescer para cima e, mais tarde, onde termina a cartilagem, a meio caminho da descida, começou a descair na direção da boca. Mais uns dois anos e não poderei nem mais comer, esta coisa vai se intrometer direto no caminho da comida! Não! Não! Não pode ser! Vou ao banheiro e ponho-me diante do espelho, empurrando para cima as narinas com dois dedos. De lado, não é tão ruim assim, mas na frente, onde costumava estar meu lábio superior, só há agora dentes e gengiva. Exatinho um goy. Fico parecendo o Coelho Pernalonga! Corto pedaços de papelão que vêm da lavanderia com as camisas e prendo-os com fita adesiva em cada lado do nariz reconstituindo desta forma, de perfil, a bela curva ascendente que ostentei durante toda a minha infância. . . que agora desapareceu! Na verdade parece que todo esse progredir do meu nariz adunco remonta exatamente à época em que descobri as shikses que patinavam no Irvington Park — como se a ponta do meu nariz tivesse resolvido desempenhar a função de agente dos meus pais! Patinar com as shikses? Experimente só, espertinho. Lembra-se de Pinóquio? Bem, aquilo não foi nada, em comparação com o que vai acontecer com você. Elas vão rir muito, gritar, vaiar, e, pior, ainda por cima vão chamá-lo de Goldberg, despachando-o fumegante de fúria e ressentimento. De quem pensa você que elas vivem rindo tanto? De você! Do judeu magricela, com sua bicanca, que vive rondando atrás delas no gelo todas as tardes — e que não diz nada! "Quer fazer o favor de parar de brincar com o seu nariz?" diz minha mãe. "Não estou interessada no que está crescendo dentro dele, Alex, ainda mais na hora do jantar." "Mas ele é grande demais." "O quê? O que é que é grande demais?", indaga meu pai. "Meu nariz!", grito. "Ora, faça-me o favor, ele lhe dá personalidade", diz minha mãe, "portanto, trate de deixá-lo em paz!" Mas quem quer saber de personalidade? Quero é Thereal McCoy! De blusão azul, protetor vermelho de ouvidos e grandes luvas brancas, é a própria Miss América de patins! Com a sua mistletoe (Espécie de erva-de-passarinho norte-americana. - N. do T.), o seu pudim de ameixas (seja lá o que for isso), sua casa para uma família só, com escada de corrimão, seus pais tranqüilos, pacientes e dignos, e também um irmão Billy que sabe desmontar motores, diz "não seja por isso" e não tem medo de nada neste mundo. Oh, a maneira como ela se aninhará junto de mim no sofá, no seu suéter de angorá, as pernas dobradas embaixo da saia de xadrez, e o modo como irá se voltar à porta, para me dizer: "E realmente muito obrigada por uma tarde maravilhosa", e depois, criatura adorável que ela é — a quem jamais ninguém disse "Shah! (Interjeição de imposição de silêncio: Caluda! Psiu! (demorado). - N. do T.) ou "Tomara que seu filhos lhe façam o mesmo algum dia!" —, esta completa, completa desconhecida, macia, lustrosa e fresca como creme, irá beijar-me — definindo os bens torneados gêmeos ao elevar-se na ponta dos pés — e meu nariz e meu nome se tornarão o mesmo que nada. Olhe, eu não estou pedindo o mundo — não vejo é por que haveria de obter menos da vida do que um palerma como Oogie Pringle ou Henry Aldrich. Quero Jane Powell também, com os diabos! E Corliss e Verônica. Quero ser o namorado de Debbie, existe uma Debbie ansiando por um Eddie mim, eis tudo, a ânsia de todos nós, trigueiros rapazes judeus, por essas coisas exóticas, leves e louras chamadas shikses. . . Só o que não sei nesses anos febris é que, para cada Eddie ansiando por uma Debbie, existe uma Debbie ansiando por um Eddie — uma Marilyn Monroe ansiando por seu Arthur Miller — até mesmo uma Alice Faye ansiando por Phil Harris. A própria Jayne Mansfield estava para se casar com um, lembra-se, quando morreu num desastre de automóvel. Quem haveria de dizer, veja só, quem haveria de dizer, quando assistíamos a National Velvet, que aquela estupenda garota de olhos violáceos, que tinha o maior dos dons goyische, a coragem e a proficiência de montar e guiar um cavalo (ao invés de ter um puxando a carroça da gente, como 'é vendedor de trapos de quem recebi o nome) — quem haveria de acreditar que aquela garota a cavalo, de culotes, com uma pronúncia perfeita, estava ardendo pela nossa gente, não menos do que nós pela gente dela? Pois o senhor sabe o que era Mike Todd — uma cópia barata do meu tio Hymie do andar de cima! E quem

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de cabeça no lugar acreditaria jamais que Elizabeth Taylor tivesse suas ardências pelo tio Hymie? Quem iria saber que o segredo para se atingir o coração (e o cofre) de uma shikse não consistia em pretender ser algum tipo de goy com nariz de gancho, tão enfadonho e inexpressivo como o irmão dela, mas sim em ser o que era o nosso tio, ou então nós mesmos, ao invés de tentar alguma patética imitaçãozinha judaica de um daqueles idiotas meio mortos e frígidos, Jimmy ou Tod, que se assemelham, pensam, sentem e falam como pilotos de bombardeiros! Veja a "Macaca", minha velha companheira e cúmplice no crime. Doutor, só de dizer o nome dela, trazê-la à mente, fico logo com tesão! Sei, porém, que não deveria telefonar-lhe ou vê-la de novo, pois aquela puta é doida! Maluca por sexo! É confusão na certa! Mas o que haveria de ser eu senão o seu salvador judeu? O Cavaleiro do Branco Corcel, o sujeito dentro da Armadura Resplandecente que as garotinhas sonhavam que haveria de salvá-las dos castelos em que sempre se imaginavam prisioneiras, bem, pelo menos no que se refere a determinada escola de shikses (de que a "Macaca" é um exemplo magnífico), este cavaleiro acaba se revelando não ser outra coisa senão um judeu cerebrino, calvo e narigudo, com uma forte consciência social e cabelo preto nos colhões, que não bebe, não joga e não anda de garotas a tiracolo. Um homem que na certa lhe dará filhos para educar e Kafka para ler — um verdadeiro messias doméstico! Verdade é que, numa espécie de tributo à sua» adolescência rebelde, poderá dizer palavrões pela casa — até mesmo na frente das crianças —, mas o fato incontestável e prazeroso é que está sempre rodando pela casa. Nada de bares, bordéis, hipódromos, gamão a noite inteira no Racquet Club (que ela conhece através de seu passado elegante) ou cerveja até as tantas, na Legião Americana (de que ela se lembra através de sua infância obscura e miserável). Não, não, senhores e senhoras, o que temos na verdade diante de nós, emanando diretamente de um iongo e insuperável envolvimento com a própria família, é um rapaz judeu que, em cada uma de suas células, simplesmente está morrendo por ser Bom, Responsável e Zeloso para com uma família que venha a constituir. A mesma gente que lhes forneceu Por Dois Centavos Apenas, de Harry Golden, apresenta-lhes agora — O Espetáculo de Alexander Portnoy! Se gostaram de Arthur Miller como salvador de shikses, hão de adorar Alex! Veja só, minha formação, em todos os pontos cruciais para a "Macaca", foi o oposto do que ela teve de suportar a quase trinta quilômetros ao sul de Wheeling, numa cidade carborífera chamada Moundsville — enquanto eu estava mais acima, em Nova Jersey, afogando-me em sentimentalismo (refestelado na "quentura" judaica, como diria a "Macaca"), ela se encontrava mais abaixo, em West Virgínia, praticamente morrendo de frio, sendo nada mais do que uma escrava para o pai, que, segundo a sua descrição, não passava de um verdadeiro parente próximo da mula, e um fardozinho choraminguento para a mãe, tão bem-intencionada quanto possível para uma matuta saída há uma geração dos Alegânis, sem saber ler, nem escrever, nem contar e, ainda por cima, sem um dente na boca. Eis uma história da "Macaca" que me causou forte impressão (praticamente todas as suas histórias, com seus temas de crueldade, ignorância e exploração, absorviam a atenção deste neurótico que lhe fala): certa vez, aos onze anos de idade, tendo ido às escondidas, num sábado, a uma aula de bale dada pelo artista local (chamado Maurice), o velho veio atrás dela de cinto, espancando-a nos tornozelos durante todo o caminho de casa, para depois trancá-la num cubículo, o resto do dia, de pé amarrados, como medida de segurança. "Se pego você de novo com aquele veado, não vou só amarrar seus pés, não, faço pior que isso, pode contar!" Quando chegou pela primeira vez a Nova Iorque, tinha dezoito anos e nenhum dente de trás com que pudesse contar. Tinham sido todos arrancados (por uma razão que ainda não conseguiu compreender) pelo dentista local de Moundsville, segundo ela se recorda, tão hábil na sua profissão quanto o Sr. Maurice o fora como dançarino. Quando nos conhecemos, há quase um ano, a "Macaca" já passara por casamento e divórcio. Seu marido fora um industrial francês de cinqüenta anos, que a cortejara pelo espaço de uma semana e casara-se com ela em Florença, onde trabalhava como modelo no Pitti Palace. Depois do casamento, a vida sexual dele consistiu em ir para a cama com a noiva jovem e bonita e ejacular num exemplar de uma revista chamada Cinta-Liga, que mandava vir da Rua 42. A "Macaca" dispõe de um sotaque rural tolo e vulgar, que gosta de usar às vezes, sendo que invariavelmente caía nele quando descrevia os excessos a que tinha de assistir, como

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esposa do magnata. Chegava a ser bastante engraçada ao referir-se aos catorze meses que passara com o marido, a despeito do fato de que provavelmente se tratara de uma experiência penosa, senão aterradora. Enviara-a, porém, a Londres, após o casamento, para um tratamento dentário de cinco mil dólares, e, em seguida, de volta a Paris, lhe pendurara ao pescoço várias centenas de milhares de dólares a mais em jóias, o que durante o maior tempo possível, diz a "Macaca", a fizera sentir- se leal a ele. Conforme ela contou (antes de eu a ter proibido de dizer troço, meu camarada, baita, pra burro e chatice): "Foi esse troço de ética." O que a fez finalmente tratar de dar o fora foram as pequeninas orgias que ele começou a organizar, depois que a ejaculação na Cinta-Liga (ou não será que se chamava Salto Agulha?) tornou-se aborrecida para os dois. Uma mulher, de preferência negra, era contratada por uma soma muito elevada para agachar-se nua em cima de uma mesinha de vidro e defecar, enquanto o magnata, deitado de costas embaixo do móvel, masturbava-se. E quando as fezes se esparramavam sobre o vidro, a um centímetro e meio acima do nariz do seu amado, a "Macaca", a nossa pobre "Macaca", tinha de ficar sentada no sofá de damasco vermelho, toda vestida, sorvendo conhaque e assistindo. Dois anos após o seu regresso a Nova Iorque — creio que devia ter uns vinte e quatro ou vinte e cinco a esta altura — a "Macaca" tentou ligeiramente matar-se por meio de um golpe de navalha num dos pulsos, tudo por causa da maneira como foi tratada no Le Club, ou El Morocco, ou talvez UInterdit, pelo seu namorado do momento, um dos cem homens mais bem vestidos do mundo. Foi dessa forma que ela chegou até o Dr. Morris Frankel, que daqui por diante, nestas confissões, será conhecido como Harpo. De quando em quando, durante os últimos cinco anos, a "Macaca" tem se debatido no diva de Harpo, à espera de que lhe diga o que deve fazer para casar-se e ser mãe. Por que, grita a "Macaca" para Harpo, terá sempre de envolver-se com esses cagões abomináveis e insensíveis e nunca com homens? Por quê? Fale, Harpo! Diga-me alguma coisa! Qualquer coisa! "Oh, eu sei que ele está vivo", dizia a "Macaca", o rostinho contorcido de angústia, "tenho certeza. Onde já se viu um defunto atendendo clientes?" Portanto, lá vai a "Macaca" entrando e saindo da terapia (se for isso mesmo) — entrando, sempre que um novo cagão acaba de lhe partir o coração, e saindo, quando surge o próximo provável cavalheiro. Eu fui uma "brecha". Está claro que Harpo não lhe disse que sim, mas tampouco disse não, quando ela sugeriu que eu poderia ser um desses cavalheiros. Entretanto, chegou de fato a tossir, o que a "Macaca" considera como afirmação. Às vezes, ele tosse, outras vezes grunhe, arrota, vez por outra peida, voluntariamente ou não, quem há de saber, embora eu ache que um peido deva ser interpretado como uma reação de transferência negativa da parte dele. "Marretinha, você é tão inteligente!" "Marretinha" é como me trata quando ela está sendo a minha gatinha sensual, mas, quando está lutando pela vida, é: "Seu judeu filho da puta! Quero me casar, ser humana!" Portanto, eu haveria de ser a sua brecha. . . acaso não haveria ela de ser a minha? Quando jamais tive alguém como a "Macaca" — ou hei de ter? Não que eu não tivesse rezado, é claro. O negócio é que a gente reza, reza, ergue preces fervorosas a Deus no altar do vaso sanitário, através da adolescência oferece-Lhe o sacrifício vivo de galões de espermatozóides — e chega então uma ocasião, por volta de meia-noite, na esquina da Lexington com a 52, quando já se chegou ao ponto de perder a fé na existência de uma criatura que viemos imaginando até mesmo no nosso trigésimo segundo ano, e ali está ela, usando umas calças compridas cor de mostarda, tentando chamar um táxi, esguia, cabelos escuros, abundantes, feições miúdas, que lhe conferem ao rosto uma expressão petulante, e um extraordinário traseiro. Por que não? O que se pode perder? O que se pode ganhar, contudo? Vá em frente, seu filho da puta agrilhoado e reprimido, fale com ela. Com esse traseiro — a protuberância e a fenda do mais perfeito pêssego do mundo! Fale! Oi — digo suavemente, demonstrando alguma surpresa, como se a houvesse encontrado em algum lugar antes. . . O que você quer? Convidá-la para um drinque — respondo. — Seu danado fingido — sorri ela, com escárnio. Escárnio! Dois segundos e dois insultos! Ao vice-presidente da Comissão de Oportunidade Humana desta cidade!

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Quero devorar essa pombinha, querida, que tal agora? — Deus do céu! Ela vai chamar um guarda! Que me levará preso até o prefeito! Assim está melhor — respondeu ela. E então parou um táxi e fomos para o seu apartamento, onde ela tirou a roupa, dizendo: — Vá em frente. A minha incredulidade! Uma coisa dessas acontecendo comigo! Será que é porque estou sem comer? Foi como se de repente minha vida passasse a transcorrer em meio a um sonho molhado. Ali estava eu, afinal, com a estrela de todos aqueles filmes pornográficos que vinha produzindo na minha cabeça desde que primeiro pus a mão na minha coisa. . . 'Agora faço eu com você", dizia ela, "uma boa pedida leva a uma outra." Então, doutor, esta estranha começou a me chupar com uma boca que deveria ter passado por uma escola especial, para saber fazer todas aquelas coisas maravilhosas. Que achado, penso eu, ela está chegando até a raiz! Em que boca fui cair! Que sorte! E ao mesmo tempo: Vá embora! Vá! Sabe lá quem possa ser esta pessoa! Mais tarde, tivemos uma conversa longa, séria e bastante excitante, acerca de perversões. Ela começou perguntando se eu já tinha feito alguma vez com algum homem. Respondi que não. Indaguei (imaginando que ela assim o desejasse) se já tinha feito com alguma mulher. Não. E você gostaria? Você gostaria que eu fizesse? Por que não? Claro que sim. Gostaria de assistir? Creio que sim. Então talvez isso possa se arrumar. É? E. Bem, talvez eu gostasse. Ah — disse ela, num belo laivo de sarcasmo —, já esperava por isso. Contou-me então que um mês antes, quando estivera doente, atacada de um vírus, um casal conhecido seu viera fazer o jantar para ela. Após a refeição, manifestaram- lhe desejo de que assistisse a uma trepada deles. E assim foi. Sentou-se na cama, numa febre de trinta e oito graus. Tiraram a roupa e entraram em ação sobre o tapete do quarto. E sabe o que eles queriam que eu fizesse, enquanto estavam na coisa? Não. Tinha algumas bananas na mesa da cozinha e eles quiseram que eu comesse uma. Enquanto olhava. — Devido ao secreto simbolismo, sem dúvida. Como é que é? Por que eles quiseram que você comesse a banana? Não sei, não, meu camarada. Acho que eles queriam saber que eu estava realmente ali. Aquele troço de me ouvir mastigando. Escute, você só chupa ou fode também? A McCoy em pessoa! A minha vigarista do Teatro Empire, sem os peitões, mas tão bonita! Eu fodo também. Bem, e eu também. Que coincidência — disse eu —, a gente deparando assim um com o outro. Ela riu pela primeira vez, e, ao invés de isso me pôr finalmente à vontade, de repente tive a certeza: algum brutamontes ia saltar do armário c me atacar com uma faca, ou então ela seria tomada de um frenesi, o riso se transformaria em histeria — e Deus sabe que catástrofe não resultaria. Seria ela alguma prostituta de luxo? Alguma doida varrida? Estaria mancomunada com algum assaltante porto-riquenho, prestes a entrar na minha vida? Entrar para terminá-la, em troca de quarenta dólares da minha carteira e de um relógio da Korvette? Escute — principiei, com o meu tato habitual —, acaso você costuma fazer isto, sempre? Que espécie de pergunta é esta? Está querendo me ofender, é? Será que não passa de mais um outro miserável insensível? Pensa que não tenho sentimentos também? Desculpe. Lamento muito. De repente, porém, onde antes havia fúria ultrajada, restaram apenas lágrimas. Precisaria de mais alguma prova de que esta garota era um tanto desgarrada psicologicamente? Qualquer outro com a cabeça no lugar, certamente se levantaria, poria a roupa e daria o fora de uma vez. E ainda se daria por muito feliz. Mas, o senhor sabe como é, ter a cabeça no lugar para mim é dar vazão aos meus temores! É mergulhar na herança de terror que trago do meu passado ridículo! Este tirano, o meu superego, devia ser enforcado, o miserável beleguim, ficar pendurado até morrer! Na rua, quem tivera medo, eu ou a garota? Eu! Quem tivera a audácia, o arrojo, a coragem, eu ou a garota? A garota! A maldita garota! Olhe — disse ela, limpando as lágrimas com a fronha do travesseiro —, olhe, eu estava mentindo

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antes, para você, caso esteja interessado, caso esteja tomando notas disto tudo, ou coisa parecida. Ah, é? E acerca de que mentiu? — Aí vem ele, pensei, o tal sujeito moreno do armário, com os olhos, os dentes e a lâmina da navalha rebrilhando! Aí vem o cabeçalho: VICE-PRESIDENTE DA COMISSÃO DE OPORTUNDADE HUMANA ENCONTRADO SEM CABEÇA NO APARTAMENTO DA MUNDANA! Quer saber sobre esse troço de ter mentido a você? Não sei, do que está falando, por isso não lhe posso dizer nada. Quero dizer que eles não quiseram que eu comesse a banana. Meus amigos não queriam que eu comesse banana nenhuma. Eu é que quis. É assim a "Macaca". E quanto à razão por que me mentiu? Creio que foi a sua maneira de se informar de pronto — de forma meio consciente, suponho — de que topara com uma pessoa de categoria mais elevada. A despeito da abordagem na rua, da fervorosa sugação na cama, seguida da perturbadora deglutição e da discussão de perversões que se seguira. . . ainda assim, ela não quisera que eu a considerasse inteiramente entregue a excessos sexuais e aventuras. . . Pois, ao que parecia, bastara um simples olhar sobre mim para que antecipasse imaginariamente a vida que poderia ser sua. . . Não mais playboys narcisistas nos seus ternos Cardin, não mais diretores de publicidade casados, indóceis, de pernoite, vindos de Connecticut, nem tampouco velhos devassos da indústria de cosméticos dizendo baboseiras durante os seus jantares de cem dólares no Le Pavillon. . . Não, até que enfim surgira a figura que habitara todos esses anos o âmago de seus sonhos (conforme assim parecia), um homem que iria ser bom para a mulher e os filhos. . . um judeu. E que judeu! Primeiro, passa-a na cara, e logo em seguida vai se ajeitando e desanda a falar e explicar coisas, fazendo julgamentos a torto e a direito aconselhando-a sobre os livros que devia ler e de como devia votar, dizendo-lhe como se deveria ou como não se deveria viver a vida. "Como é que você tem certeza disto? — indagava ela, desconfiada. — Acho que se trata apenas de sua opinião." "Opinião, como? — opinião nada, garota, é a verdade." "Quero dizer, é um troço que todo mundo sabe. . . ou só você?" Um judeu que se preocupava com a situação dos pobres da cidade de Nova Iorque estava comendo a sua pomba! Alguém que aparecera na televisão educativa estava gozando na sua boca! Num átimo, doutor, ela deve ter percebido tudo — será que não? Será que as mulheres são tão interesseiras assim? Serei na verdade um ingênuo no que diz respeito a pombas? Percebeu e planejou tudo, não foi, ali na Avenida Lexington?... A suave lareira ardendo na sala de estar forrada de livros da nossa casa de campo, a babá irlandesa dando banho nas crianças antes de mamãe pô-las na cama, e a esbelta ex-modelo, ex-grã-fina e ex-transviada sexual, filha das minas e fábricas de West Virgínia, pretensa vítima de uma dúzia de verdadeiros miseráveis, ali instalada no seu pijama Saint-Laurent e botinhas sanfona, meditativamente mergulhada numa novela de Samuel Beckett. . . ali instalada sobre um tapete de peles com o marido, a respeito de quem Tanto Se Fala, o Virtuoso Membro de Comissão da Cidade de Nova Iorque. . . ali instalado, de cachimbo, com os seus ralos cabelos retorcidos, em todo o seu messiânico fervor e encanto judaico. . . O que aconteceu finalmente em Irvington Park: no fim de uma tarde de sábado, encontrei-me praticamente sozinho no lago gelado, com uma shikseleh (Garota gentia (não-judia), diminutivo. - N. do T.) de catorze anos, a quem desde a hora do almoço vinha observando traçar figuras de patinação, uma garota que parecia possuir os encantos da classe média de uma Margaret 0'Brien — aquela vivacidade e graça em torno dos olhos cintilantes — e mais a simplicidade e franqueza, a eficácia da classe inferior, os lisos cabelos louros de Peggy Ann Garner. Veja só, o que para os demais parecia estrelas de cinema, para mim constituía apenas espécies diferentes de shikses. Muitas vezes eu saía do cinema tentando imaginar que ginásio freqüentariam em Newark, se tivessem a minha idade, Jeanne Crain (e as de seu tipo) ou Kathryn Grayson (e as de seu tipo). E onde haveria de encontrar uma shikse como Gene Tierney, que me parecia até mesmo judia, se não fosse na realidade parcialmente chinesa. Enquanto isso, Peggy Ann 0'Brien completou a sua última figura e desliza lentamente em direção à garagem de barcos. O fato é que não fiz nenhum progresso em relação a ela ou a qualquer outra, durante todo o inverno, e agora março está quase chegando — a bandeira vermelha para a patinação será hasteada em todo o parque e mais uma vez atingiremos a estação da poliomielite. Sou

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capaz até de nem sobreviver até o próximo inverno, portanto, o que estou esperando? "É agora, ou nunca!" Então, quando já a perdi seguramente de vista, começo a patinar loucamente atrás dela. "Desculpe-me", direi, "mas será que me permite acompanhá-la até em casa?" Acompanhá-la ou que eu a acompanhasse? — como seria mais correto? Pois a minha linguagem tem de ser absolutamente perfeita, sem nenhuma mistura de judeu. "Aceitaria talvez um chocolate quente? Pode me dar o seu número, para que eu lhe telefone uma noite dessas? O meu nome? Chamo-me Alton Peterson" — um nome que eu pegara para mim do distrito de Montclair, do catálogo de telefones de Essex County — inteiramente goy, tinha certeza, e ainda de quebra soando como Hans Christian Andersen. Que golpe! Treinara para escrever "Alton Peterson" durante todo o inverno, em folhas de papel que posteriormente arrancava do meu caderno de pontos, depois da escola, e queimava, para não ter de dar explicações a ninguém em casa. Sou Alton Peterson, sou Alton Peterson — Alton Christian Peterson? Ou será que é ir um pouco longe demais? Alton C. Peterson? E fico tão preocupado em não esquecer quem gostaria de ser agora, tão ansioso em chegar à garagem de barcos, enquanto ela ainda estivesse tirando os patins — imaginando também o que direi quando ela indagar sobre o que aconteceu com o meio da minha cara (antigo ferimento de hóquei? queda do cavalo, enquanto jogava pólo numa manhã de domingo? — salsichas demais no desjejum, ha ha ha!) —, que atinjo a margem do lago com a ponta de um patim um pouco antes do que pretendera e precipito-me sobre o solo queimado pelo frio, lascando um dente da frente e despedaçando a protuberância óssea da parte superior da tíbia. Minha perna direita fica engessada, desde o tornozelo até o quadril, por seis semanas. Tenho o que o médico chama de doença de Osgood Shlatterer. Depois que tiro o gesso, passo a arrastar a perna, como se fosse um ferimento de guerra, enquanto meu pai grita: "Dobre a perna! Quer ficar a vida inteira assim? Dobre a perna! Ande natural! Deixe de mancar com a perna que tem este negócio de Oscar Laterado, senão vai ficar aleijado para o resto da vida!" Por patinar atrás das shikses, com um nome suposto, ficaria aleijado para o resto da vida. Com uma vida igual à minha, doutor, quem precisa de sonhos? Bubbles Girardi, uma garota de dezoito anos, expulsa do ginásio de Hillside, que foi encontrada nadando na piscina do Olympic Park pelo meu lascivo colega de classe, Smolka, filho do alfaiate. . . Quanto a mim, não chegaria perto daquela piscina ainda que me pagassem — é um terreno propício à poliomielite e meningite espinhal, para não falar em doenças de pele, do couro cabeludo e do ânus — dizem até que um garoto de Weequahic, certa vez, caminhou pelo lava-pés entre o vestiário e a piscina e quando saiu do outro lado tinha perdido as unhas dos dedos dos pés. E no entanto é lá que se encontram as garotas que trepam. Não sabe? É lá que se encontra o tipo de shikses que fazem tudo! Basta que a gente arrisque a pegar poliomielite da piscina, gangrena do lava- pés, ptomaína dos cachorros-quentes e elefantíase do sabonete e das toalhas, para que saia de lá arrumado. Estamos na cozinha, onde Bubbles passava a ferro — de combinação! Eu e Mandei folheamos números atrasados da revista Ring, enquanto, na sala de estar, Smolka tenta convencer Bubbles a marretar com os seus dois amigos, como um favor especial prestado a ele. Smolka nos garante que não temos que nos preocupar com o irmão de Bubbles, antigo pára-quedista, porque ele está fora, em Hoboken, disputando um torneio de boxe, sob o nome de Johnny "Geronimo" Girardi. O pai dela é motorista de praça durante o dia e à noite trabalha de guia para a Quadrilha — ele saiu não se sabe para onde, para transportar uns gangsters e só volta para casa de madrugada. Quanto à mãe, nada temos que recear, pois já morreu. Perfeito, Smolka, perfeito, eu não poderia me sentir mais seguro. Agora nada tenho com que me preocupar, exceto quanto à camisa-de-vênus que trago há tanto tempo na minha carteira que já deve estar quase toda mofada, dentro do seu envoltório de papel prateado. Uma esguichada e o troço todo vai voar em pedaços dentro da pomba de Bubbles Girardi — e aí o que é que faço? Para ter a certeza de que essas camisas-de-vênus resistem sob pressão, passei a semana inteira no meu porão, enchendo-as de água, litro após litro. Por mais caro que fique, ainda assim venho esguichando dentro delas, para ver se agüentam sob condições de foda simulada. Até agora está tudo bem. Agora, e quanto àquela especialíssima, que a esta altura já deixou uma marca indelével do seu formato na minha carteira, a que eu tinha reservado para a minha marretada, a de ponta lubrificada? Como posso

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esperar que ela não se tenha estragado após sentar em cima dela na escola — esmagando-a dentro daquela carteira —, durante quase seis meses? E quem diz que Geronimo vai passar a noite inteira em Hoboken? E se a pessoa que os gangsters têm de matar já tiver morrido de susto na hora em que eles chegarem, e o Sr. Girardi for mandado mais cedo para casa, para uma boa noite de sono? E se a garota tiver sífilis? Mas aí então Smolka deve ter apanhado também! — Smolka, que está sempre filando goles das garrafas de refrigerantes de todos, e que gosta de brincar de segurar no troço da gente! É só disso que preciso, segundo minha mãe! Nem quero ouvir o final! "Alex, o que é isto que está escondendo com o pé?" "Não é nada." "Alex, por favor, ouvi um tilintar bem definido. O que foi isto que caiu das suas calças e está cobrindo com o pé? Das suas calças novas!" "Não é nada! É do sapato! Deixe-me em paz!" "Escute, o que... oh, meu Deus! Jack! Venha depressa! Olhe.. . olhe só no chão, junto ao sapato dele!" Com as calças em torno dos joelhos, e agarrando o Newark News aberto na pagina do obituário, ele irrompe na cozinha, vindo do banheiro. "Que é que há agora?" Ela grita (é esta a sua resposta) e aponta para debaixo da minha cadeira. "O que é isto, meu senhor. . . alguma gracinha lá do seu ginásio?", indaga meu pai, furioso, "o que significa esta coisa preta de plástico no chão da cozinha?" "Não é de plástico", digo eu, rompendo em soluços. "É o meu mesmo. Peguei sífilis de uma garota italiana de dezoito anos, no Hillside, e agora, agora, não tenho mais p-p-p-pênis!" "A sua coisinha", berra minha mãe, "em que eu costumava fazer cócegas para ele fazer xixi. . ." e "NÃO TOQUE NELE E QUE NINGUÉM SE MOVA", grita meu pai, pois minha mãe parece prestes a pular no chão, como uma mulher na sepultura do marido — "chame. . . a Sociedade Humanitária. . ." "Como se fosse para um cão danado?", soluça ela. "O que mais você poderá fazer, Sophie? Guardá-lo em alguma gaveta? Para mostrar aos filhos dele? Ele não irá ter filhos!" Ela começa a uivar pateticamente, um verdadeiro animal aflito, enquanto meu pai. . . mas a cena se desvanece rapidamente, pois numa questão de segundos fico cego e dentro de uma hora meu cérebro adquiriu a consistência de farinha quente. Pregado por cima da pia dos Girardis, há um quadro com Jesus Cristo subindo ao céu numa túnica cor-de-rosa. Quão asquerosos chegam a ser os seres humanos! Desprezo os judeus pela sua estreiteza de idéias, sua ostentação de virtude, o sentido incrivelmente bizarro que estes homens das cavernas que são os meus pais e parentes têm às vezes da sua superioridade — mas quando se trata de espalhafato e vulgaridade, de crenças que envergonhariam até mesmo um gorila, é realmente impossível superar os goyim. Que espécie de palermas desprezíveis e desmiolados é essa gente para adorar alguém que, primeiro, nunca existiu, e segundo, se o tivesse, com a aparência que tem no quadro, seria, sem dúvida, o Maricás da Palestina. Num corte de cabelo de pajem, uma cútis Palmolive e usando uma túnica que hoje verifico deve ter vindo do Fredericks de Hollywood! Basta de Deus e do resto desse lixo! Abaixo a religião e a vileza humana! — Viva o socialismo e a dignidade do homem! Na verdade, a razão de eu estar visitando o lar dos Girardis não é tanto para marretar a filha deles — praza aos céus! — mas para evangelizar em nome de Henry Wallace e Glen Taylor. Está claro! Pois quem são os Girardis senão o povo, em cujo favor, por cujos direitos, liberdades e dignidades, eu e o meu futuro cunhado acabamos discutindo todas as tardes de domingo com os nossos parentes mais velhos (que votam com os democratas e pensam como homens de Neanderthal), perdidamente ignorantes, meu pai e meu tio. Se não gostamos daqui, dizem-nos, por que não vamos para a Rússia, onde tudo está a contento? "Você vai fazer deste garoto um comunista", meu pai previne Morty, enquanto eu grito: "Vocês não entendem! Todos os homens são irmãos!" Cristo seria capaz de estrangulá-lo ali mesmo por ser tão cego à fraternidade humana! Agora que vai casar com minha irmã, Morty guia o caminhão e trabalha no armazém para o meu tio, como também eu, de certo modo: agora, há três sábados seguidos, venho levantando antes do amanhecer, a fim de ir entregar, junto com ele, caixas de Squeeze nos entrepostos da zona rural, nos limites de Nova Jersey com as Poconos. Escrevi uma peça radiofônica, inspirada pelo meu mestre, Norman Corwin, e a sua celebração do Dia da Vitória, Numa Nota de Triunfo (cujo exemplar Morty comprou-me como presente de aniversário). Então o inimigo está morto, num beco por trás da Wilhemstrasse; agradeça os aplausos, pracinha, agradeça os aplausos, homem do povo. . , Só o ritmo já me provoca arrepios, como a marcação da marcha do Exército Vermelho vitorioso, e a canção que aprendemos na escola elementar, durante a guerra, que

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os nossos professores denominavam "O Hino Nacional Chinês". "Levantemo-nos, nós que nos recusamos a ser escravos, com a nossa carne e sangue" — oh, que cadência desafiadora! Lembro-me de todas as palavras heróicas! — "Construiremos uma nova grande muralha!" E em seguida o meu verso favorito, começando como começa com a minha palavra favorita: "A in-dig-na-ção enche os corações de todos os nossos compatriotas! Levantai-vos! Levantai-vos! LEVANTAI-VOS!" Abro a primeira página de minha peça e começo a ler em voz alta para Morty, enquanto partimos no caminhão, passando por Irvington, Oranges, na direção do Oeste — Illinois! Indiana! Iowa! Õ minha América, das planícies, montanhas, vales, rios e gargantas ... É com tais palavras patrióticas de encantamento que tenho o costume de me embalar no sono à noite, após ejacular na meia. Minha peça radiofônica chama-se Soe a Liberdade! É uma moralidade (conforme sei agora), cujas duas personagens principais denominam-se Preconceito e Tolerância, e é escrita no que chamo de prosa-poesia. Paramos numa lanchonete em Dover, Nova Jersey, na hora em que a Tolerância começa a defender os negros por causa do cheiro que têm. O som da minha retórica humana, compassiva, latinizada, aliterativa, expandida além de qualquer possibilidade de reconhecimento pelo Roget's Thesaurus (presente de aniversário de minha irmã) — e mais o fato de ser madrugada e eu estar saindo por ela adentro — e mais o tatuado homem do balcão, a quem Morty trata de "Chefe" — e mais o fato de estar comendo pela primeira vez na vida batatas fritas no desjejum — e mais voltar à cabina do caminhão nas minhas calças Levi's, blusão de couro e mocassins (que na estrada não mais parecem a fantasia que na realidade são nos corredores do ginásio) — e mais o sol começando a brilhar por sobre as terras montanhosas de Nova Jersey, o meu Estado! — nasci de novo! Livre, segundo me descubro, de segredos vergonhosos! Sentindo-me tão limpo, tão forte, tão virtuoso, tão americano! Morty retoma a estrada, e ali naquela hora e naquele lugar faço o meu voto, juro que dedicarei a minha vida à correção das coisas erradas, à elevação dos oprimidos e desprivilegiados, à libertação dos injustamente aprisionados. Tendo Morty como testemunha — o meu másculo recém-descoberto irmão mais velho esquerdista, a prova viva de que é possível amar ao mesmo tempo a humanidade e o beisebol (e que ama minha irmã mais velha, a quem estou pronto a amar agora, também, pela válvula de escape que nos proporcionou a ambos), que é, por intermédio da AVC -", o meu elo com Bill Mauldin, tão herói para mim quanto Corwin ou Howard Fast — a Morty, com lágrimas de amor (por ele, por mim) nos olhos, prometo usar '"o poder da pena" para libertar da injustiça, exploração, humilhação, pobreza, e ignorância, o povo que neste momento considero (todo arrepiado) O Povo. Estou gelado de medo. Daquela garota e da sua sífilis, do pai e dos seus amigos, do irmão e dos seus punhos (embora Smolka tentasse fazer-me acreditar o que me parece inteiramente incrível, mesmo em se tratando de goyim: que tanto o irmão quanto o pai sabem, e nenhum dos dois se importa que Bubbles seja uma piranha). E medo também porque, debaixo da janela da cozinha, que pretendo pular assim que ouça o ruído de um passo na escada, há uma grade de espigões de ferro na qual me enfiarei. É claro que a grade na qual estou pensando circunda o orfanato católico na Avenida Lyons, mas nesta altura estou a meio caminho da alucinação, do estado de letargia, e também um pouco tonto, como se tivesse passado muito tempo sem comer. Vejo no Newark News a fotografia da grade e da escura poça de meu sangue na calçada, com a legenda de que a minha família jamais se recobrará: FILHO DE AGENTE DE SEGUROS SALTA PARA A MORTE. Enquanto permaneço enregelado no meu iglu, Mandei derrete-se em suor, de que sinto o cheiro. O odor' corporal dos negros enche-me de compaixão. de prosa- poesia — quanto a Mandei, sinto-me menos indulgente: "ele me embrulha o estômago" (diz dele minha mãe), o que não quer dizer que me sinta menos hipnotizado por ele do que por Smolka. Tem dezesseis anos e é judeu como eu, mas qualquer semelhança termina aí: ele usa o cabelo feito um traseiro de pato, com suíças até a altura do maxilar, ostentando ternos cintados de um botão só, sapatos de bico fino e colarinhos tipo Billy Eckstine, maiores do que os de Billy Eckstine! Mas é judeu. Incrível! Um professor moralista divulgou-nos que Arnold Mandei tem um Q.I. de gênio e, no entanto, prefiro dar voltas em carros roubados, fumar cigarros e se encher de cerveja até passar mal. Acredita nisso? Um garoto judeu? Participa também de campeonatos de punheta, realizados na sala de visitas de Smolka, com as

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persianas descidas, depois da escola, enquanto os dois Smolkas mais velhos estão dando duro na alfaiataria. Ouvi contar, mas ainda assim (a despeito do meu onanismo, exibicionismo e voyeurismo — sem contar o fetichismo) não posso e não quero acreditar: quatro ou cinco caras, sentados em círculo no chão, quando Smolka dá o sinal, começam a tocar bronha e o primeiro que goza ganha a parada, a um dólar por cabeça. Uns verdadeiros porcos! A única explicação que tenho para a conduta de Mandei é que seu pai morreu quando ele tinha dez anos. E é isto que me fascina mais que tudo: um garoto sem pai. Como consigo explicar a audácia de Smolka? É que a mãe dele trabalha fora. A minha, lembre-se, patrulha as seis dependências do nosso apartamento da maneira que um exército de guerrilheiros percorre o seu próprio território — com um sentido fotográfico do conteúdo de meus armários e gavetas. A mãe de Smolka, por outro lado, fica o dia inteiro sentada numa cadeirinha, perto de uma luzinha, num canto da loja do pai dele, costurando sem parar, e quando chega à casa, à noite, não lhe restam forças para sair de contador Geiger na mão, à cata da arrepiante coleção de excitadores vaginais franceses do filho. Os Smolkas, é preciso que o senhor entenda, não são tão ricos como nós — eis a diferença decisiva. Uma mãe que trabalha fora e nada de persianas de alumínio. . . Sim, de fato, isso explica tudo para mim — o fato de que sai para nadar no Olympic Park, como também as suas brincadeiras de mexer na coisa dos outros. Vive à custa de comer bolinhos e dos seus expedientes. Eu tenho almoço quente e todas as inibições daí decorrentes. Mas não me entenda mal (como se isto fosse possível): durante uma tempestade de neve no inverno, enquanto a gente bate a neve dos sapatos na entrada dos fundos, o que pode ser mais excitante do que ouvir a Tia Jenny no rádio da cozinha e sentir o cheiro de uma cremosa sopa de tomates esquentando no fogão? Pode haver coisa melhor do que ter em todas as estações do ano pijamas limpos e passados, e o quarto de dormir recendendo a polidor de móveis? Haveria eu de querer ter minha roupa de baixo suja e remexida na gaveta, tal como a de Smolka se encontra sempre? Claro que não. Haveria eu de querer meias furadas e não ter ninguém para me trazer limonada quente e mel quando a minha garganta estivesse doendo? Por outro lado, que tal se Bubbles Girardi viesse a minha casa, à tarde, e me chupasse, como ela fez com Smolka, na cama dele? Interessante, no gênero. Na primavera passada, quem haveria eu de topar na Rua Worth, senão o antigo disputante de campeonatos de bronhas em pessoa, o Sr. Mandei, carregando uma mala de amostras cheia de fundas, cintas e suspensórios atléticos E sabe de uma coisa? O que mais me espantou foi que ainda estivesse vivo e respirando. Não pude acreditar e até agora não consigo. E ainda por cima casado e domesticado, com mulher e dois filhos e uma casa estilo rancho em Maplewood, Nova Jersey. Mandei está vivo e possui, segundo me conta, uma mangueira de regar jardim e uma churrasqueira com blocos de carvão! O mesmo Mandei que, admirador de Pupi Campo e Tito Valdez, no dia seguinte em que largou o ginásio, dirigiu-se à Prefeitura e trocou oficialmente o seu primeiro nome de Arnold para Ba-ba-lu. Mandei, que bebia seis garrafas de cerveja! Milagre. Não pode ser! Como é que o castigo passou ao largo por ele? Lá ficava, entrava ano, saía ano, na vadiagem e na ignorância, fazendo ponto na esquina do Chancellor com Leslie, tocando os seus bongôs feito um mulato, a cabeleira igual a um traseiro de pato nu ao vento — e nada, ninguém o castigou! Agora, está com trinta e três, como eu, trabalha de vendedor para o sogro, que tem uma loja de apetrechos cirúrgicos em Market Street, em Newark. E quanto a mim, pergunta ele, o que faço? Como, será que não sabe? Não faz parte da lista de correspondentes dos meus pais? Será então que todos não sabem que sou agora o homem de maior moral em toda Nova Iorque, repleto de puros intuitos e de ideais humanos e piedosos? Será que ele não sabe que a minha profissão é ser bom? "Serviço do Estado", respondo, apontando do outro lado da rua para o número trinta da Rua Worth. O próprio Sr. Modéstia. Você ainda se encontra com algum dos caras? — indagou Ba-ba-lu. — Casou-se? Não, não. Por trás da nova cara, volta o antigo jeito de mulato latino-americano dissimulado. Hum, então como é que você se arranja para marretar? Tenho os meus casos, Am, mas também descasco minhas bronhas.

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Errei, reconheço instantaneamente. Errei! E se ele abrir o bico para o Daily News? VICE-PRESIDENTE DA COMISSÃO DE OPORTUNIDADE HUMANA TOCA BRONHA, e vive também na depravação, revela um antigo companheiro de escola. Os cabeçalhos. Sempre os cabeçalhos denunciando os meus imundos segredos ao mundo escandalizado e desaprovador. Ei — disse Ba-ba-lu —, lembra-se da Rita Girardi? A Bubbles, que chupava a nós todos. ... Que foi que houve com ela? — Baixe a voz, Ba-ba-lu! — Que foi que houve com ela? Não leu no News? Que News? O Newark News? Não leio mais os jornais de Newark. O que aconteceu a ela? Foi assassinada. Num bar da Avenida Hawthorne, junto do The Annex. Estava com um cafetão, aí chegou outro cafetão e meteu um tiro na cabeça dos dois. Que me diz disso? Fazendo a vida. Puxa! — exclamei eu, impressionado. Em seguida, de repente: — Escute, Ba-ba-lu, que fim levou Smolka? Não sei — responde Ba-ba-lu. — Ele não é professor? Acho que ouvi dizer que ele é professor. Professor? Smolka? Acho que é professor de uma universidade. Ah, não pode ser — retruco, com o meu sorriso superior de escárnio. É. Foi o que alguém me disse. Lá em Princeton. Princeton? Mas não pode ser! Sem sopa de tomate quente para almoço nos dias frios? Dormindo naqueles pijamas pútridos? O dono daqueles dedais de borracha, cheios de pontinhas agressivas que, segundo ele nos dizia, faziam as garotas subirem pelas paredes em Paris? Smolka, que nadava na piscina do Olympic Park, conseguiu também sobreviver? E professor em Princeton, ainda por cima? Em que departamento, letras clássicas ou astrofísica? Ba-ba-lu, você até parece minha mãe. Com certeza quis dizer bombeiro, ou eletricista. Pois não vou acreditar nisso! Quero dizer, nas minhas entranhas, no âmago das minhas emoções e das minhas antigas crenças, bem dentro do eu que sabe muito bem que Smolka e Mandei desfrutam do prazer de possuir casas estilo rancho e das oportunidades profissionais que se oferecem aos homens deste planeta, o que simplesmente eu não posso acreditar é na sobrevivência, quanto mais no sucesso burguês desses dois garotos maus. Ora essa, eles deviam era estar na cadeia — ou na sarjeta. Não faziam seus deveres de casa, com os diabos! Smolka colava de mim em espanhol e Mandei nem se dava ao trabalho de fazer isto; e quanto a lavar as mãos antes de comer. . . Esses dois garotos, o senhor está me entendendo, deviam era estar mortos! Como Bubbles. Neste caso, pelo menos, temos uma carreira que faz sentido. Trata-se de uma questão de causa e efeito que confirma minhas idéias acerca da lógica humana! Foi má, bastante ordinária e teve a cabeça de chupadora estourada por um cafetão. É assim que as coisas devem ocorrer no mundo! Smolka volta para a cozinha e diz-nos que ela não quer fazer o negócio. Mas você garantiu que a gente estava arrumado! — grita Mandei. — Garantiu que ela ia nos chupar! Lavar, enxugar e passar, foi o que você disse? Dane-se — disse eu —, se ela não quer fazer o negócio, ninguém faz questão, vamos embora. . . Mas há uma semana que venho esperando isso! Não saio daqui! Que droga é esta, Smolka? Será que nem ao menos ela vai me tocar uma? E eu, com o meu estribilho: — Ora, escute, se ela não quer fazer o negócio, vamos embora. . . Mandei: — Que diabo de droga é esta de ela não dar ao camarada nem um serviço de mão? Um miserável serviço de mão. Será que isto é pedir alguma coisa do outro mundo? Não saio daqui enquanto ela não chupar ou bater uma! Ela é quem vai decidir, a maldita vaca! Volta então Smolka para uma segunda conferência, regressando quase meia hora depois com a notícia de que a garota mudou de idéia: vai tocar uma num cara, de roupa e tudo, e mais nada. Tiramos cara e coroa e ganho o direito de pegar sífilis! Mandei alega que a moeda bateu no teto e fica furioso comigo — ainda está gritando que não valeu, quando entro na sala de estar para receber o meu prêmio. Ela está sentada de combinação no sofá, no outro extremo do chão de linóleo, pesa setenta e oito quilos e tem um buço em progresso. Anthony Peruta é o nome que vou lhe dar, quando ela perguntar, coisa que não chega a fazer.

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Escute — diz Bubbles —, vamos trocar logo a coisa em miúdos: você é o único em quem vou fazer o negócio. Você só, e pronto. Depende inteiramente de você — respondo cortesmente. Muito bem, ponha agora para fora, mas não tire as calças, está ouvindo, pois eu disse para ele que não ia fazer coisa nenhuma com os colchões de ninguém. Está certo, está certo, seja como você quiser. E não quero que se encoste em mim. Olhe, se você quiser, eu vou embora. Vá botando pra fora. Pois não, se é isto que você quer, pronto. . . está aqui — digo um tanto prematuramente. — Estou precisando é encontrar. . . — Onde está este negócio? Na sala de aula, às vezes, procuro pensar em MORTE, HOSPITAIS e HORRÍVEIS ACIDENTES DE AUTOMÓVEL, na esperança de que tais pensamentos sombrios farão o meu "pilão" encolher antes da sineta tocar e eu ter de levantar. Não há uma vez que eu vá ao quadro-negro ou tente descer do ônibus, sem que ele dê um pulo, dizendo: "Ei! Olhem para mim!" para todos em volta, e agora não consigo encontrá- lo. Está aqui! — grito finalmente. É isto? Bem — respondo, enrubescendo —, ele fica maior quando endurece mais. .. Bem, não vou ficar aqui a noite inteira sabe? Gentilmente: Oh, não acredito que vá demorar tanto. . . Deite-se! Bubbles, não muito satisfeita, senta numa cadeira, enquanto me estendo ao lado dela no sofá — e de repente, apoderando-se da coisa, é como se a minha pobre vara fosse apanhada em alguma espécie de máquina. Vigorosamente, para usar um termo fraco, o transe principia. Mas é como se fosse tocar bronha numa água-viva. O que é que há? — diz ela finalmente. — Não pode gozar? Geralmente sim, posso. Então deixe de ficar prendendo. Nada disso, Bubbles, estou tentando. . . Vou contar até cinqüenta, se até lá não sair nada, não me responsabilizo. Cinqüenta? Terei muita sorte se nesta altura o meu negócio ainda estiver preso ao corpo. Vá com calma, sinto vontade de berrar. Não maltrate as beiradas, por favor! — ... onze', doze, treze... — Graças a Deus, penso, que isto vai acabar logo. . . agüente, são só mais quarenta segundos. Junto com a idéia de alívio, porém, vem, é claro, o desapontamento, que é pungente: acontece que isto não é senão a coisa com que venho sonhando noite e dia, desde os treze anos. Até que enfim não é mais uma maçã de miolo escavado, nem uma garrafa de leite vazia lubrificada de vaselina, e sim uma garota de combinação, com tetas, pomba e mais um buço. Quem sou eu, porém, para me meter a luxento? Se- é isto o que venho imaginando. Ocorre-me então o que resta a fazer. Tratarei de esquecer que é Bubbles quem está me batendo a primeira — fingirei que sou eu mesmo! Portanto, olho fixamente o teto escuro e ao invés de imaginar que estou marretando, como geralmente faço enquanto estou batendo a minha, imagino mesmo que estou tocando bronha. E a coisa começa a produzir efeito instantâneo. Infelizmente, porém, chego no ponto em que queria chegar no momento em que o dia de trabalho de Bubbles termina. Muito bem, chegou — diz ela —, cinqüenta, pronto! Não! grito. — Mais! Olhe, antes de vocês chegarem, há duas horas que venho passando roupa. só MAIS UMA! EU LHE IMPLORO! SÓ MAIS DUAS! POR FAVOR! N-Ã-O! Depois do que, incapaz (como sempre!) de suportar a frustração, a privação e o desapontamento, desço a mão, pego no troço e POU! Direto no meu olho. Com um único golpe, feito chicotada, da mão do dono, a espuma esguicha. Pergunto-lhe, quem me toca punheta melhor do que eu próprio? Só que, estando deitado, o jato sai da minha vara na horizontal, percorre a extensão do tronco e atinge, num grosso salpico molhado e ardente, o olho. Gringo filho da puta! — berra Bubbles. — Sujou todo o diva, as paredes, e a lâmpada! Pegou foi no meu olho! E não me chame de gringo! Você é um gringo! Gringo! Sujou tudo, seu filho da puta desgraçado! Olhe só este forro! Exato como meus pais me avisaram — logo no primeiro desentendimento, por menor que seja, a única coisa que uma shikse sabe chamar a gente é de judeu sujo. Que horrenda descoberta — meus pais que estão sempre errados. . . acertaram! E o meu olho é como se tivesse caído no fogo. . . e

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agora me lembro por quê. Segundo nos contou Smolka, os guardas na ilha do Diabo costumavam divertir-se à custa dos prisioneiros, esfregando-lhes esperma nos olhos e cegando-os. Vou ficar cego! Uma shikse segurou direto com a mão na minha coisa e agora vou ficar cego para sempre! Doutor, minha psique é tão difícil de entender como um compêndio de escola elementar! De que servem os sonhos, pergunto-lhe? De que serve Freud? — Gringo! — continua ela gritando. — Pra gozar tem de ser você mesmo a botar a mão no cacete, seu judeu veado! Ei, basta disto, afinal de contas onde está a solidariedade dela? Meu olho! — precipito-me para a cozinha, onde Smolka e Mandei estão subindo pelas paredes de êxtase. Bem no. . . — exulta Mandei, e dobra-se no chão, martelando o linóleo com os punhos —, bem no maldito. . . Água, seus merdas, vou ficar cego! Está ardendo! — e, voando por cima do corpo de Mandei, enfio o rosto debaixo da bica. Por cima da pia, Jesus ainda está subindo ao céu na sua túnica cor-de-rosa. Este inútil filho da puta! Acho que devia ter tornado os cristãos compassivos e bondosos. Creio que o que lhes ensinou foi a sentir pena do sofrimento dos outros. Que conversa fiada! Se ficar cego, a culpa é dele! Sim, de algum modo ele me parece ser a causa fundamental de toda esta dor e confusão. Ó Deus, penso, enquanto a água me corre pelo rosto, como vou explicar minha cegueira aos meus pais! Minha mãe já passa praticamente a metade do dia me atenazando, examinando a consistência do meu cocô. . . como vou poder esconder-lhe o fato de que não enxergo mais? "Tape, tape, tape, sou eu, mamãe. .., este canzarrão bondoso me trouxe até em casa, com a minha bengala." "Um cão? Na minha casa? Tire-o já daqui antes que ponha tudo imundo! Jack, entrou um cão aqui em casa e acabo de lavar o chão da cozinha!" "Mas, mamãe, ele veio para ficar. . . é o meu cão-guia. Estou cego." "Ó meu Deus! Jack!", grita ela para dentro do banheiro. "Jack, Alex chegou em casa com um cão. . . ele ficou cego!" "Ele, cego?", retruca meu pai. "Como pode ter ficado cego, se nem ao menos sabe o que significa apagar uma luz!" "Como foi?", berra minha mãe. "Como foi? Diga-nos como é unia coisa destas. . ." Como foi, mãe? Como poderá ter sido? Tendo relações com garotas cristãs. No dia seguinte, Mandei conta-me que, meia hora depois da minha desvairada partida, Bubbles arriara nos seus joelhos de carcamana para lhe chupar o pau. Saltou o tampo da minha cabeça. Foi? Arriada bem nos seus joelhos de carcamana — diz Mandei. — Seu palerma, por que foi para casa? Ela me chamou de gringo! — respondo, compenetrado. Pensei que tinha ficado cego. Olhe, ela é anti-semita, Ba-ba-lu. É? Estou cagando para isso! — exclama Mandei. Na verdade, não creio que ele saiba o que significa anti-semita. Só sei é que dei duas marretadas. Foi? E de camisa-de-vênus? Que se dane, não usei nada. Mas ela vai pegar filho! — grito angustiado, como se fossem me apontar como responsável. Que importa? — retruca Mandei. Por que me preocupo, então? Por que só eu hei de passar horas experimentando camisas-de-vênus no porão? Por que só eu hei de viver apavorado com a sífilis? Por que hei de voltar para casa com o meu olho um pouco injetado, imaginando-me cego para sempre, quando, meia hora mais tarde, Bubbles haveria de estar, de joelhos, devorando uma vara! De volta para casa — para a minha mamãe! Para o meu bolo de milho e o meu copo de leite, para a minha boa cama limpa! Oh, a civilização e as suas insatisfações! Ba-ba-lu, fale comigo, converse comigo, diga-me como foi que ela fez! Tenho de saber, e com detalhes — detalhes exatos! E os peitos? E os biquinhos? E as coxas? O que ela faz com as coxas, Ba-ba-lu, passa- as em volta do seu traseiro, como nos livros de sacanagem, ou as aperta em volta do seu cacete, até você querer gritar, como nos meus sonhos? E os seus pêlos lá embaixo? Conte-me tudo que houver para contar a respeito dos pentelhos e do cheiro que têm, não me importo de já ter ouvido tudo antes. E ela ficou mesmo de joelhos, você não está me enganando? Ela arriou mesmo nos joelhos? E os dentes, onde é que eles vão? Ela chupa, ensaboa, ou será que faz as duas coisas? Puxa, Ba-ba-lu, e você esguichou na sua boca? Oh, meu Deus! E ela

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engoliu tudo, cuspiu fora, ou ficou furiosa? Diga-me! o que foi que ela fez com a sua esguichada quente! Você avisou que ia disparar, ou só gozou e não se importou com o resto? E quem enfiou, foi ela ou você, ou será que o negócio é puxado para dentro sozinho? E onde ficaram as suas roupas? sobre o diva? no chão? onde, exatamente? quero detalhes! Detalhes! Detalhes verdadeiros! Quem tirou o porta-seios dela — as calcinhas — foi você? ou foi ela? Quando ela estava ali arriada, ensaboando, Ba-ba-lu, tinha alguma coisa em cima da pele? E o travesseiro debaixo do traseiro, você enfiou um travesseiro debaixo dela, como diz no manual de casamento dos meus pais? O que aconteceu quando você gozou dentro dela? Ela também gozou? Mandei, esclareça- me uma coisa que preciso saber: elas gozam mesmo? Sai alguma coisa? Ou ficam só gemendo um bocado? Ou que será então que acontece? Como 6 que ela goza? Que jeito tem? Antes que eu perca a cabeça, tenho de saber como é que é!

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A FORMA MAIS COMUM DE DEGRADAÇÃO NA VIDA ERÓTICA Acho que não falei no efeito perturbador que tinha a letra da "Macaca" sobre o meu equilíbrio psíquico. Que caligrafia desgraçada! Parecia de uma criança de oito anos, quase me punha maluco! Sem maiúsculas, sem pontuação, tudo naquelas letras enormes, irregulares, descendo na página, para depois descair de vez. E em letras de forma, como os desenhos que a gente fazia para casa na escola primária! E que ortografia! Na noite em que fomos convidados para jantar no Gracie Mansion, não pude deixar de perguntar a mim mesmo: como posso ter um caso com uma mulher de quase trinta anos de idade que escreve "querido" com "u" no fim! Já se passaram dois meses desde a abordagem na Avenida Lexington, e ainda sou impelido, veja só, pelas mesmas correntes de sentimentos: desejo, por um lado, desejo delirante (jamais conheci em minha vida uma mulher que se abandonasse tanto!), e, por outro, quase desprezo: Não, minto. Poucos dias antes, tinha havido a nossa viagem a Vermont, aquele fim de semana em que a minha reserva em relação a ela — a apreensão suscitada pelas bossas de modelo, as origens rudes e acima de tudo o desatino sexual — parecera ter sido substituída por uma onda crescente e impetuosa de ternura e afeição. Ora, no momento, estou sob a influência de um ensaio intitulado "A Forma Mais Comum de Degradação da Vida Erótica". Como deverá ter imaginado, comprei uma coleção dos Textos Reunidos e, desde a minha volta da Europa, adormeço cada noite, na reclusão solitária do meu leito vazio de mulher, com um livro de Freud na mão. Às vezes, Freud na mão, outras vezes a vara de Alex na mão, amiúde os dois. Sim, ali, de pijama desabotoado, sozinho, fico eu, brincando com o troço, como um garotinho imerso num transe apático, puxando, torcendo, esfregando e massageando, lendo, enquanto isso, fascinado, as Contribuições à Psicologia do Amor, à cata da frase, da expressão, da palavra que irá me libertar daquilo que reconheço serem as minhas fantasias e fixações. No ensaio sobre a "Degradação", há aquela frase "correntes de sentimento". Para "uma atitude inteiramente normal no amor" (este "inteiramente normal" está merecendo uma investigação semântica, mas vamos adiante), para uma atitude inteiramente normal no amor, diz ele, é necessário que se reúnam duas correntes de sentimento: os sentimentos ternos, afetuosos e os sensuais. Em muitos casos, isto simplesmente não acontece, é triste dizer. "Quando tais homens amam, não experimentam desejo e, quando experimentam desejo, não conseguem amar." Pergunta: devo me considerar pertencente à multidão fragmentada? Em linguagem clara e simples, estarão os sentimentos sensuais de Alexander Portnoy fixados nas suas fantasias incestuosas? O que acha, doutor? Terá sido lançada sobre o objeto da minha escolha uma restrição tão patética? Será verdade que somente quando o objeto sexual preenche para mim a condição de ser degradado é que aquele sentimento sensual pode ter livre curso? Escute, será que isto explica a preocupação com as shikses? Sim, mas se é assim, se é assim, como explicar então aquele fim de semana em Vermont? Porque aí caíram as barreiras do incesto, ou pelo menos assim pareceu. E pronto, houve sentimento sensual, de

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mistura com as mais puras e profundas correntes de ternura que jamais experimentei! Estou lhe dizendo, a confluência das duas correntes foi terrificante! E quanto a ela também! Chegou até a confessá-lo! Ou terão sido apenas as folhas coloridas, a lareira acesa na sala de jantar do hotel em Woodstock, que nos enterneceram? O que acha o senhor? Foi ternura que experimentamos um pelo outro, ou tão-somente o outono desempenhando a sua missão, inchando a abóbora (John Keats) e transmudando o tráfico em êxtases de nostalgia pela vida boa e simples? Seríamos apenas mais dois erotomaníacos sem raízes, habitantes da selva, desnatando-se nos seus blue-jeans pré-desbotados através da histórica Nova Inglaterra, em devaneios campestres no seu conversível alugado — ou teria mesmo surgido a possibilidade de uma atitude inteiramente normal no amor, durante esses poucos dias de sol que passei com a "Macaca" em Vermont? O que terá transpirado exatamente? Bem, o que fizemos mais foi andar de carro. E contemplar: os vales, as montanhas, a luz nos campos, e as folhas, é claro, tudo com muitos ohs e ahs. Certa vez, paramos para observar alguém a distância, trepado numa escada, martelando numa parede de um galpão — e isto também foi divertido. Ah, e o carro que alugamos. Fomos até Rutland e alugamos um conversível. Um conversível, imagine! Um rapaz americano na sua terceira década, e aquele era o primeiro conversível que eu guiava. Sabe por quê? Porque o filho de um agente de seguros sabe melhor do que os outros o risco que corre andando numa máquina dessas. Os medonhos detalhes atuariais! No que se refere a conversíveis, basta um solavanco na estrada e pronto: a gente sai voando do assento (e evitando uma descrição demasiado vivida), vai parar na estrada de ponta-cabeça e, se tiver sorte, é cadeira de rodas para o resto da vida. E quando se capota num carro desses, aí então só resta dizer adeus à vida. Isto tudo são estatísticas (informa-me papai) e não histórias inventadas para divertir. As companhias de seguros não operam para perder dinheiro — quando elas disserem alguma coisa, Alex, é verdade! E agora, seguindo nos calcanhares de meu prudente pai e de minha prudente mãe, ouço: "Por favor, para que eu possa dormir à noite durante quatro anos, prometa-me uma coisa, atenda só este desejo de sua mãe, que ela jamais voltará a lhe pedir mais nada: quando chegar a Ohio, prometa que não andará num conversível com a capota arriada. Para que eu possa fechar os olhos na cama à noite, Alex, prometa que não irá arriscar sua vida doidamente." Meu pai, novamente: "Pois você é como uma ameixa, Alex!", diz ele, contrariado e choroso, ante a minha iminente partida de casa. "E nós não queremos que esta ameixa caia da árvore antes de estar madura!" Prometa, Ameixa, que jamais andará num conversível. Uma coisa tão pequena, será que lhe custa tanto prometer? Procure Howard Sugarman, o sobrinho de Sylvia. É um rapaz adorável — e presidente da Hillel. Ele lhe mostrará tudo o que for preciso. Por favor, procure-o. Ameixa, Querido, Luz do Mundo, você se recorda do seu primo Heshie, da tortura que foi para ele próprio e para a família o caso daquela garota. Tudo aquilo por que o tio Hymie teve de passar para salvar aquele rapaz da loucura que pretendia praticar. Lembra-se? Escute, precisamos dizer mais alguma coisa? Não estou falando claramente, Alex? Não se deprecie. Não jogue fora um futuro brilhante a troco de nada. Acho que não precisamos dizer nada mais. Precisamos? Você é um bebê ainda, com dezesseis anos, terminando o ginásio. Não passa de um bebê, Alex. Não sabe da maldade que há no mundo. Portanto, acho que não precisamos dizer mais nada, principalmente em se tratando de um rapaz inteligente como você. só QUE PRECISA TER CUIDADO COM A SUA VIDA! NÃO VÁ MERGULHAR NUM INFERNO! PRECISA OUVIR O QUE ESTAMOS DIZENDO SEM CARA FEIA, FAÇA O FAVOR, E SEM BANCAR O RESPONDÃO SABIDO! NÓS SABEMOS COMO SÃO AS COISAS! TEMOS UMA VIDA ATRÁS DE NÓS! VIMOS MUITA COISA! NÃO ADIANTA, MEU FILHO! ELES SÃO UMA RAÇA INTEIRAMENTE DIFERENTE! VOCÊ SERÁ DESPEDAÇADO! PROCURE HOWARD, ELE IRÁ APRESENTÁ-LO NA HILLELÍ NÃO VÁ LOGO CORRENDO ATRÁS DE UMA LOURA, POR FAVOR! ELA SÓ FARÁ TIRAR TUDO O QUE VOCÊ TEM, PARA DEPOIS DEIXÁ-LO, SANGRANDO, NA SARJETA! UM RAPAZINHO INTELIGENTE E INOCENTE COMO VOCÊ, ELA HÁ DE DEVORÁ-LO vivo!

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Ela há de me devorar vivo? Ah, mas nós temos nossa desforra, nós os rapazinhos inteligentes, nós as ameixas. O senhor conhece, com certeza, a piada: Milty, o pracinha, telefona do Japão. "Mamãe", diz ele, "é Milton quem fala, tenho boas notícias! Encontrei uma garota japonesa maravilhosa e nos casamos hoje. Logo que dê baixa,' quero levá-la para casa, mamãe, para que vocês se conheçam." "É claro", responde a mãe, "pode trazê-la." "Oh, é maravilhoso, mamãe", continua Milty, "maravilhoso. . . só que estava pensando onde é que eu e Ming Toy poderemos dormir no seu apartamento tão pequeno?" "Onde?", torna a mãe. "Ora. na cama. Onde mais iria você dormir com a sua mulher?" "Mas, então, onde é que você irá dormir, se nós ficarmos na cama? Tem certeza de que há lugar, mamãe?" "Milty, querido, por favor", retruca a mãe, "tudo está bem, não se preocupe, não vai faltar lugar: logo que eu desligue este telefone, me suicido." Como é inocente, o nosso Milty! Como deve ter ficado estarrecido ao ouvir a mãe sair-se com esta! Milton, tão doce, tão passivo, você é mesmo incapaz de matar uma mosca, não é verdade, seu luxento? Detesta derramamento de sangue, nem sonhando é capaz de bater em outra pessoa, quanto mais assassinar. Por isso deixa que a garota gueixa o faça por você! Brilhante, Milty, brilhante! Duvido que ela se recupere dessa gueixa! Dará cabo dela, Milty! Ha ha! Você conseguiu, Miltinho, e sem mover um dedo! Claro! Deixe a shikse fazer o serviço! Você não passará de um mero espectador inocente! Apanhado em meio ao tiroteio! Uma vítima, não é mesmo, Milty? Adorável, este negócio da cama! Quando chegamos ao hotel em Dorset, lembro-lhe para que enfie no dedo apropriado um dos seis anéis que ela possui. "Precisamos ser discretos em público", digo-lhe, acrescentando que mandei reservar um quarto em nome do Sr. e da Sra. Arnold Mandei. "Um herói do passado, lá de Newark", explico. Enquanto faço o registro, a "Macaca" (parecendo erótica ao extremo na Nova Inglaterra) vagueia pelo saguão, examinando os pequenos objetos para presente de Vermont, que estão à venda. "Arnold", chama ela. Volto-me: "Sim, querida." "Temos de levar sem falta para Mamãe Mandei um vidro de calda de maple. Ela adora." E lança ao recepcionista desconfiado o seu sorriso misteriosamente sedutor de anúncio de roupa de baixo. Que noite! Não quero dizer que tenha havido mais do que a agitação corporal, as puxadas de cabelo costumeiras e os apaixonados vocalises por parte da "Macaca" — não, o drama conservava todo o tom wagneriano a que eu já me acostumava: o fluxo de sentimento é que era novo e terrífico. "Oh, não consigo ter o suficiente de você!", exclamava ela. "Serei uma ninfomaníaca, ou será efeito da aliança de casamento?" "Estava pensando que talvez fosse a clandestinidade de um hotel." "Oh, é alguma coisa! Sinto-me tão maluca. . . e ao mesmo tempo com uma ternura tão violenta por você! Oh, querido, fico pensando que vou chorar, e me sinto tão feliz!" No sábado, fomos até Lake Champlain, parando pelo meio do caminho para a "Macaca" tirar fotografias com a sua Minox. No fim do dia demos a volta e descemos até Woodstock, boquiabertos, cheios de exclamações, de suspiros, a "Macaca" toda se aconchegando. Uma vez pela manhã (num campo coberto de vegetação, próximo à margem do lago), tivemos relações e depois, naquela tarde, numa estrada de terra, em algum ponto das montanhas da região central de Vermont, ela disse: "Oh, Alex, pára o carro agora... quero que você goze na minha boca", e em seguida ela me chupou, de capota arriada! O que estarei tentando comunicar? Apenas que tínhamos começado a sentir alguma coisa. A sentir um sentimento! E sem qualquer diminuição de apetite sexual! — Conheço um poema — disse eu, falando como se estivesse embriagado, num tom de quem topa qualquer briga — e vou recitá-lo. Ela estava aninhada no meu colo, de olhos ainda fechados, o meu membro amolecendo de encontro ao seu rosto, como um pintinho. Ah, não — gemeu ela —, agora não, eu não entendo poemas. Vai entender este. É sobre foda. Um cisne fode uma garota bonita. Ela ergueu o olhar, piscando os cílios postiços. Oh, que bacana! Mas é um poema sério. Bem — disse ela, lambendo a minha vara —, o negócio é sério. Oh, as espirituosas beldades sulinas, tão irresistíveis . . . especialmente quando são compridas do jeito

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que você é. Não enche, Portnoy. Recite o poema indecente. —Portnoir — corrigi, e comecei: Um golpe repentino: as grandes asas batendo ainda Por sobre a trêmula jovem, as coxas acariciadas Pelas patas escuras, a nuca apanhada no bico, Ele aperta o indefeso peito contra o seu. Onde — perguntou ela —, você aprendeu esse negócio? Psiu. Tem mais: Como poderão aqueles amedrontados dedos vagos retirar A emplumada glória dentre as coxas frouxas? E como pode o corpo, colhido em meio [àquele branco ímpeto, Senão sentir o coração estranho batendo onde se encontra? Um tremor nos lombos engendra ali O muro desabado, o telhado e a torre ardendo E Agamenon morto. Estando tão colhida, Tão dominada pelo cruel sangue do ar, Teve ela noção do seu saber e poderio Antes que o bico indiferente a largasse? — É só isto — disse eu. Pausa. Quem foi que escreveu — pergunta ela, com sorrateiro desdém. — Você? Foi William Butler Yeats — revelei, verificando o quanto fora inábil, com que insensibilidade chamara atenção para o abismo: eu sou inteligente e você é burra, eis o que significava ter recitado para esta mulher um dos três poemas que aprendi de cor nos meus trinta e três anos. — Um poeta irlandês — acrescentei, trôpego. Ah, é — disse ela. — E onde que você aprendeu, no colo dele? Não sabia que era irlandês. Foi no colégio, querida. — Com uma garota que conheci no colégio. Ela me ensinou também "A Força que Impele a Flor Através do Fuso Verde". Mas basta — por que compará-la com uma outra? Por que não deixá-la ser o que é? Que idéia! Amá-la tal como é! Em toda a sua imperfeição — que talvez seja, afinal de contas, tão-somente humana! Bem — disse a "Macaca", inda no estilo Chofer de Caminhão —, quanto a mim nunca estive em colégio. — Passando, em seguida, para o estilo Apático Sulino: — E lá em Moundsville, na minha terra, querido, o único poema que tínhamos era "Vejo Londres, vejo a França, vejo as calcinhas de Mary Jane". Só que eu não usava calcinhas. . . Sabe o que fiz quando tinha quinze anos? Enviei um punhado de cabelos da minha coisa num envelope para Marlon Brando. O miserável nem teve a cortesia de acusar o recebimento. Silêncio. Enquanto tentamos imaginar ainda o que duas pessoas tão diferentes estão fazendo juntas.. . em Vermont. Diz ela, então: — Muito bem, e o que é Agamenon? Explico, portanto, o melhor que posso. Zeus, Agamenon, Clitemnestra, Helena, Paris, Tróia. . . Oh, sinto-me uma verdadeira droga, um impostor. Metade porque sei que estou em caminho errado. Mas ela se revela maravilhosa. — Muito bem. . . agora recite ele todo de novo. — Está falando sério? — Claro! De novo! Mas, pelo amor de Deus, devagar. Recito, então, de novo, e todo este tempo minhas calças estão caídas no chão do carro, está escurecendo no caminho onde estacionei, fora das vistas da estrada, embaixo da dramática folhagem. As folhas caem, de fato, sobre o carro. A "Macaca" parece uma criança tentando compreender um problema de multiplicação, mas não uma criança burra — nada disso, antes uma meninazinha viva e inteligente! Nem um pouco estúpida! Esta garota é realmente muito especial. Ainda que a tenha apanhado na rua! Quando termino, sabe o que ela faz? Segura minha mão e guia meus dedos até entre as suas pernas, onde Mary Jane ainda não usa calcinhas. Sinta só. Fez minha pomba ficar toda molhada. Querida! Entendeu o poema! Acho que sim! — exclama Scarlett 0'Hara. Em seguida: — Ei, consegui! poema! E com a pomba, nada mais, nada menos. Entendi o Meu "Marreta" querido! Está transformando esta pomba num gênio! Oh, "Marretinha", querido, devore-me! — grita, enfiando os dedos na minha boca e puxando-me sobre ela pelo meu maxilar inferior. — Oh, devore a minha pomba

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educada! Idílico, não? Assim, sob as folhas vermelhas e amarelas? Em Woodstock, no quarto, enquanto faço a barba antes do jantar, ela fica de molho em água quente e sais de banho. Que energia ela tem armazenada naquela delgada estrutura — as gloriosas acrobacias que é capaz de executar na ponta da minha vara! Dir-se-ia que vai quebrar uma vértebra, pendurada, metade do tronco para fora da cama — em êxtase! Puxa! Graças aos céus pela aula de ginástica que ela freqüenta! Que trepada boa estou tendo! Que maravilha! E, no entanto, acontece que ela também é um ser humano — sim, ela de fato me leva a crer que talvez seja mesmo! Um ser humano! Que pode ser amado! Mas por mim? Por que não? Realmente? Por que não? Sabe de uma coisa? — diz-me ela, lá da banheira. — Meu buraquinho está tão dolorido que mal pode respirar. Pobre buraco. Ei, que tal a gente comer um grande jantar, com um bocado de vinho, mousse de chocolate e depois voltar pra cá, deitar na nossa cama de duzentos anos de idade. . . e não trepar? Que tal estão as coisas, Arn? — indagou ela mais tarde, quando as luzes estavam apagadas. — É engraçado, não? É como se a gente tivesse oitenta anos. Ou oito — disse eu. — Tenho aqui uma coisa que quero lhe mostrar. Não. Arnold, não. Acordei durante a noite e puxei-a para mim. Por favor — gemeu ela —, estou me guardando para o meu marido. Essa não pega com um cisne, senhora. Oh, por favor, por favor, nada disso. . . Sinta a minha pluma. — Ahhh — arquejou ela, quando o empurrei na sua mão. — Um cisne judeu! Ei! — gritou, e segurou o meu nariz com a outra mão. — O bico indiferente! Entendi mais ainda o poema!. . . Não foi? Cristo, como você é maravilhosa! Isto fê-la ficar sem fôlego. Oh, sou mesmo? Sim! Sou mesmo? — Sim! Sim! Sim! E agora, vamos trepar? — Oh, querido, querido — exclamou a "Macaca" —, escolha um buraco, qualquer buraco, sou toda sua! Depois do desjejum, passeamos por Woodstock, com o rosto pintado da "Macaca" grudado à manga do meu casaco. — Sabe de uma coisa — disse ela —, acho que não odeio mais você. Voltamos para casa pelo fim da tarde, percorrendo o caminho todo até Nova Iorque, a fim de que o fim de semana se prolongasse mais. Com uma hora de viagem, ela descobriu uma estação de rádio próxima e começou a se mexer no assento, ao som da música de rock. Subitamente, disse então: — Ah, dane-se este barulho — e desligou o rádio. Não seria ótimo, disse ela, não ter de regressar? Não seria ótimo viver algum dia no campo com alguém de quem a gente realmente gostasse? Não seria ótimo a gente simplesmente se levantar, cheio de energia, ao amanhecer, e ir dormir, extenuado, ao anoitecer? Não seria ótimo ter uma porção de responsabilidades e simplesmente passar o dia inteiro dando conta delas, sem perceber sequer que eram responsabilidades? Não seria ótimo simplesmente não pensar na gente dias inteiros, semanas inteiras, meses inteiros em seguida? Usar roupas velhas, sem pintura, não ter que se aborrecer a toda hora? O tempo passava. Ela assobiou. Isto não seria bom? O quê? Ser gente crescida. Sabe como é? É espantoso. O quê? Há quase três dias que não ouço as caipiradas, as besteiradas, os estribilhos. . . Eu estava fazendo um elogio, e ela ofendeu-se. Não tem nada de caipiradas, nem de estribilhos, meu camarada, isto tudo sou eu! E, se a minha

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maneira de agir não serve para você, então dane-se, seu vice- presidente. Não comece a querer desfazer de mim só porque estamos chegando na maldita cidade em que você é tão importante. Estava só dizendo que você é mais inteligente do que demonstra quando começa a se portar como uma caipira, eis tudo. Conversa fiada. É que, simplesmente, é humanamente impossível alguém ser tão estúpido como você pensa que eu sou! — E aí ela se inclinou, ligando o rádio para ouvir um conjunto de rock. Foi como se todo aquele fim de semana não houvesse existido. Ela conhecia a letra de todas as canções e, certamente, queria me demonstrar isso. "Yeah yeah yeah, yeah yeah yeah." Uma atuação notável, verdadeiro tributo prestado ao cerebelo. Ao anoitecer, parei no Howard Johnson's. Agora vamos pr'uma baita comida — disse eu. — Pr'uma baita bóia, minha camarada. Olhe — disse ela —, talvez eu não saiba o que sou, mas você não sabe tampouco o que quer que eu seja! Não se esqueça disso! Que chatura, minha camarada. Droga! Não está vendo o que é minha vida? Pensa que gosto de ser uma nulidade? Pensa que adoro a minha vida vazia? Odeio ela! Odeio Nova Iorque! Não quero saber de voltar pr'aquela fossa! Quero viver em Vermont, senhor vice-presidente! Quero viver em Vermont com você e ser adulta, seja lá o que isto venha a querer dizer! Quero ser a Senhora Alguém-Que-Posso-Encarar. E Admirar! E Ouvir! — Ela chorava. — Alguém que não irá tentar me encher a cabeça! Oh, acho que amo você, Alex. Acho que amo mesmo. Mas grande coisa que isso vai me adiantar! Em outras palavras: será que eu pensava que a amava? Resposta: não. O que eu pensava (isto irá diverti-lo), o que eu pensava não era: Será que a amo? ou mesmo: Poderia eu amá-la? e sim: Deveria amá-la? Uma vez dentro do restaurante, o melhor que pude fazer foi convidá-la a ir comigo ao banquete oferecido pelo prefeito. Arnold, vamos ter um caso, está bem? Em que sentido? Ah, deixe de ser prudente. Em que sentido pode ser? Um caso. Você só me marreta e eu só marreto com você. Só isto? Bem, principalmente isto. E também vou telefonar um bocado durante o dia. Uma gamação — não posso também dizer '"gamação"? Está bem — uma compulsão. Serve assim? Só sei que é um baita= negócio que não posso evitar, vou viver telefonando para o seu escritório. Porque gosto que todo mundo saiba que pertenço a alguém. Foi isto que aprendi dos cinqüenta mil dólares que dei para aquele espreme-cuca. Só sei que toda a vez que arranjar um emprego, lhe dou um baita telefonema — só para dizer que amo você. Será que isto é coerente? Sem dúvida. Porque justamente o que quero é ser assim coerente. Oh, "Marretinha", adoro você. Agora escute, ei — sussurrou ela —, quer cheirar uma coisa. . . uma coisa de estontear? — Olhou para verse a garçonete não estava nas proximidades e, em seguida, inclinou-se para diante, como se fosse para endireitar uma meia por debaixo da mesa. Um momento depois, estendia para mim as pontas dos dedos. Apertei-as de encontro aos lábios. — Perfume Meu Pecado — murmurou a "Macaca" —, direto da fábrica. . . para você! Só para você! Portanto, vá em frente, ame-a! Seja corajoso! Aí tem a fantasia pedindo-lhe para você concretizá-la! Tão erótica! Tão dissoluta! Tão magnífica! Talvez espalhafatosa, mas ainda assim uma beleza! Por onde andamos, as pessoas olham, os homens cobiçam e as mulheres cochicham. Certa noite, num restaurante da cidade, ouço alguém dizer: "Não é fulana? Que apareceu em La Dolce Vital" E quando me volto para olhar — quem seria, Anouk Aimée? — percebo que estão olhando para nós: para ela, que está comigo! Vaidade? Por que não? Pare de enrubescer, enterre a vergonha, você não é mais o garotinho levado da sua mãe! No que se refere aos seus apetites, um homem de seus trinta e tantos só é responsável perante si mesmo! É por isso que é tão bom crescer! Quer agarrar? Agarre! Um pouco de depravação, por Cristo! DEIXE DE NEGAR A SI PRÓPRIO! DEIXE DE

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NEGAR A VERDADE! Ah, mas existe (curvemos nossas cabeças) a "minha dignidade" a considerar, a minha reputação. O que os outros hão de pensar. O que eu hei de pensar, doutor, imagine, esta garota, certa vez, fez isto por dinheiro. Dinheiro! Sim! Acho que chamam a isto "prostituição"! Certa noite, a fim de agradá-la (pelo menos imagino que o meu motivo foi este), disse eu: "Você devia colocar isto na praça, é coisa demais para um homem só", só para ser gentil, veja bem. . . ou intuitivo? Seja como for, ela me responde: "Já coloquei." Não a deixei sossegada até que me explicasse o que queria dizer com aquilo. A princípio, alegou que estava brincando, mas, em face do meu interrogatório, surgiu com esta história, que me pareceu verdade, pelo menos em parte. Logo após Paris e o seu divórcio, voara até Hollywood (diz ela), a fim de fazer um teste para um papel num filme. (Nada conseguiu. Insisti para que me dissesse o nome do filme. Declarou, porém, tê-lo esquecido e que não chegara a ser feito.) Regressando da Califórnia para Nova Iorque, ela e a moça com quem estava ("Quem é esta moça?" "É uma moça. Uma amiga." "Por que estava viajando com outra moca?" "Porque estava!") pararam para passear por Las Vegas. Lá ela foi para a cama com um sujeito que encontrou, de maneira perfeitamente inocente, segundo garante. Contudo, para sua completa surpresa, pela manhã, ele perguntou: "Quanto é?" Diz ela que a coisa lhe saiu espontânea da boca: "Dê o que quiser, rapaz." Ele entregou-lhe então três notas de cem dólares. "E você aceitou?", indaguei. "Eu tinha vinte anos. Claro que aceitei. Só para ver como a gente se sentia." "E como foi que você se sentiu, Mary Jane?" "Não me lembro. Não senti nada. Foi como se não fosse nada." Bem, o que o senhor acha? Ela afirma que isto só aconteceu uma vez, há dez anos, e mesmo assim fora devido a um mal-entendido. Mas o senhor engole esta? e eu devo engolir? Será tão impossível de acreditar que esta garota tenha vivido algum tempo como meretriz de luxo? Ai, Jesus! Aceite-a, penso comigo mesmo, descobrindo que estou no mesmo ponto da escala evolutiva que os gangsters e milionários que escolhem suas mulheres nas fileiras dos teatros de revista. É o tipo de garota que a gente costuma ver de braço com um elemento da Máfia ou com um artista de cinema e nunca com o orador da turma de 1950 do ginásio de Weequahic! O editor da Columbia Law Reviewf O eminente batalhador dos direitos civis! Vamos e venhamos, prostituta ou não, está na cara que é uma vassourinha, não é mesmo? Quem me vê com ela sabe logo dos meus gostos. Trata-se exatamente do que o meu pai costumava chamar de "uma sirigaita". Claro! E posso trazer para casa uma sirigaita, doutor? "Mamãe, papai, apresento aqui minha mulher, uma sirigaita. Não tem uma boa bunda?" Basta que a pegue para mim e a vizinhança inteira saberá a verdade acerca da minha mentezinha suja. O gênio falado se revelará com todas suas porcas tendências e imundos desejos, A porta do banheiro se abrirá (não está trancada!) e olhem, ali está o salvador da humanidade, a baba escorrendo pelo queixo, expressão completamente gagá no olhar, a piroca disparando uma salva de esguichos para a lâmpada no teto! Um palhação, até que enfim está se vendo! Um mau elemento! Uma vergonha definitiva para a família! Sim, sim, já vi tudo: devido às minhas culpas abomináveis, uma bela manhã, ao despertar, encontro-me acorrentado a uma latrina no Inferno; eu e os outros sirigaiteiros do mundo. "Meus bambas", dirá o Demônio, enquanto nos fornecem camisas imaculadas de seda, gravatas da melhor qualidade e nos enfiam em elegantes ternos de tussor, "batutas, figurões com as suas mulheres esculturais. Sejam bem-vindos. Vocês realizaram, de fato, um bocado de coisas na vida. Na verdade, sobressaíram. Você, especialmente", diz ele, soerguendo a sardônica sobrancelha na minha direção, "que entrou no ginásio com a idade de doze anos, que foi embaixador da comunidade judaica de Newark no mundo. . ." Ra-raá, eu sabia. Não é o Demônio propriamente, trata-se do Warshaw Gordão, o rabino. O meu líder espiritual corpulento e pomposo! O tal da pronúncia afetada e do bafo de Pall Mall! O Rabino Re-ve-ren-ci-a-do! Estamos no meu bar mitzvah e me encontro timidamente a seu lado, ensopando-me naquilo tudo, como se fosse num molho, babando-me de santidade, não lhe conto nada. É Alexander Portnoy pra cá, Alexander Portnoy pra lá; para lhe falar mesmo a verdade, com o homem só nas sílabas, transformando palavras pequenas em grandes e as grandes em autênticas frases; para lhe ser franco, aquilo tudo não parece mexer tanto comigo quanto de costume. Ah, aquela ensoladara manhã de sábado vai se escoando vagarosamente enquanto ele desfila as minhas virtudes e talentos para os parentes e amigos, sílaba por sílaba.

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Despeje em cima deles, Warshaw, faça minha propaganda, não se apresse por minha causa, por favor. Sou jovem, agüento ficar aqui o dia inteiro, se tiver que ser assim. "... filho dedicado, irmão extremoso, estudante de extraordinários graus honoríficos, ávido leitor de jornal (em dia com todos os acontecimentos atuais, sabe o nome completo de todos os juizes do Supremo Tribunal e dos membros do Gabinete, como também o dos líderes da maioria e da minoria de ambas as casas do Congresso, além dos presidentes das comissões mais importantes), este menino entrou no ginásio de Weequahic com a idade de doze anos, dono de um Q.I. de 158, cento e cinqüenta e oito, e agora...", ele se dirige à multidão reverente e radiante, cuja adoração sinto subir, palpitante, envolvendo-me ali no altar — ora, garanto que não me surpreenderia se, quando ele terminasse, me erguessem nos braços e me carregassem em torno da sinagoga como o próprio Torah, agüentando-me enquanto sobem e descem pela nave, enquanto os congregantes lutam para tocar com os lábios alguma parte do meu magnífico terno azul novo, enquanto os velhos avançam, acotovelando-se, a fim de tocarem com os seus xales os meus cintilantes sapatos ingleses. "Deixem-me passar! Deixem-me tocar!" E, quando eu for famoso no mundo inteiro, eles dirão para os netos: "Sim, eu estava lá, assisti ao bar mitzvah do juiz Portnoy do Supremo Tribunal.'* "Um embaixador", diz o Rabino Warshaw, "atualmente o nosso embaixador extraordinário. .." Só que a música mudou! E como! "Agora", diz-me ele, "com a mentalidade de um cafetão! Com a escala de valores humanos de um jóquei de hipódromo! O que constitui para ele o ápice da experiência humana? Entrar num restaurante de braço com uma marafona de pernas compridas! Uma conquista fácil, num vestido de malha!" "Oh, faça o favor, Re-ve-ren-ci-a-do, agora sou um menino crescido, vamos pôr de lado esse puritanismo de rabino. A esta altura do jogo, fica um pouco ridículo. Acontece que dou preferência às belas e ardentes, ao invés de às feias e indiferentes; que mal há nisso? Por que me pintar como vigarista de Las Vegas? Por que me acorrentar a uma privada por toda a eternidade? Por ter amado uma garota espevitada?" "Amar? Você? Fiau para você! Autocomplacente, mimalho, para mim não passa disto! E com letras maiúsculas! O seu coração é uma geladeira vazia! O seu sangue corre em cubos de gelo! Admiro-me que não ande tilintando por aí! A garota espevitada, segundo dizem — e aposto que é mesmo! —, não passou de mais uma marca no seu cacete, e é somente isto o que ela significa, Alexander Portnoy! O que foi jeito da sua promessa? É asqueroso! Amor? Diga antes lascívia! Egoísmo!" "Mas eu me senti emocionado, no Howard Johnson's. . ." "No cacete, com certeza!" "Não foi!" "Foi! Esta é a única parte onde você se emociona! Seu chorão! Seu monte de ressentimentos! Viveu fixado em si mesmo desde o primeiro ano primário, Deus do céu!" "Não vivi!" "Viveu! Viveu! Esta é a verdade, meu amigo! A humanidade sofredora não vale um caracol para você! Esta é uma aposta que se pode fazer no escuro, meu caro. Não se iluda! Olhe, você pode gritar para os seus irmãos: vejam em quem estou enfiando a minha vara: numa modelo de classe! Tenho de graça o que outros pagam mais de trezentos dólares! Puxa, rapaz, então isto não é um triunfo, hem? Não vá dizer que trezentos dólares nada lhe significam, porque a coisa não é assim! Então não acha que é o caso de ver bem quem estou amando, Portnoy!" "Escute, não lê o New York Times? Passei a minha vida inteira de adulto protegendo os direitos dos indefesos! Passei cinco anos lutando pela boa causa, a troco de praticamente nada. Agora fui nomeado — não lê os jornais? —, sou agora vice-presidente da Comissão de Oportunidade Humana! Estou preparando um relatório sobre a discriminação nos negócios de construção. . ." "Conversa! Vice- Presidente da Cona, é o que você é! Vice-Presidente dos Oportunistas Humanos! Seu perito ejaculador! Exemplo de desenvolvimento retardado! Tudo é vaidade, é certo, Portnoy. Mas você leva a palma! Cento e cinqüenta e oito pontos de Q.I. e tudo pelo esgoto abaixo! Grande vantagem ter pulado dois anos na escola primária, seu cretino!" "O quê?" "E gastando o dinheiro do pai, no Antioch College, que o homem dificilmente podia custear! Todos os erros provêm dos pais, não é assim, Alex? O que houve de errado, foram eles; o que houve de bom, você realizou sozinho! Seu ignorante! Coração de geladeira! Por que está acorrentado a uma privada? Vou lhe dizer por quê: justiça poética! Para que fique sacudindo a piroca até o final dos tempos! Esguichando o seu precioso brinquinho até o final dos tempos! Vá em frente, vice-presidente, bata a sua! É só a isso que seu coração está preso — à sua vara fedorenta!"

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Chego no meu smoking, enquanto ela ainda está no chuveiro. A porta está destrancada, evidentemente para que eu entre sem precisar incomodá-la. Ela mora no último andar de um grande edifício moderno na East Eighties, e fico irritado ao pensar que qualquer um que passasse pelo corredor poderia ter entrado como eu. Previno-a disto através da cortina do chuveiro. Ela encosta o rostinho molhado na minha face. "Por que alguém haveria de querer fazer isto? — diz ela. — Todo o meu dinheiro está no banco!" — Esta não é uma resposta satisfatória — respondo, e bato em retirada para a sala de estar, a fim de não me aborrecer. Reparo num bilhetinho sobre a mesa de café. Será que alguma criança andou por aqui, pergunto a mim mesmo. Não, não, é que me encontro frente a frente com a primeira amostra da escrita da "Macaca". Um recado para a faxineira. Embora à primeira vista tivesse pensado que fosse um bilhete da faxineira. E por que pensei? Só porque ela é um caso "meu"? Quirida wila pur favor limpi o chão du banhero i não si isquessa dus ladus de dentro da janela Mary Jane. Leio três vezes a frase inteira e, como acontece com certos textos, cada leitura revela novas sutilezas de significado e inferência, cada leitura pressagia novas adversidades prestes a recair sobre o meu lombo. Por que deixar este "caso" progredir mais? O que estava pensando eu em Vermont! Ah, aquele u, de "pur favor", revela uma mente com a profundidade de uma fachada de cinema! E "isquessa"! É exatamente como uma prostituta erraria esta palavra! Mas o que me parece definitivamente patético é algo que paira em torno da estropiação de "quirida", estas três sílabas de afeição caindo, chinfrins, num excesso de "is". Quão antinatural pode ser uma relação! Esta mulher é ineducável a um ponto que ultrapassa qualquer regeneração. Comparada com a sua, minha infância transcorreu na elite de Boston. O que poderá sair entre nós? Macacadas e mais nada! Os telefonemas, por exemplo. Não posso tolerar esses telefonemas! Ela foi encantadoramente feminina quando me avisou que ia telefonar todo o tempo — mas, para minha surpresa, era o que ela pretendia mesmo fazer! No meu gabinete, os pais indigentes de uma criança psicótica contam-me que o seu rebento está sendo sistematicamente morto a fome num hospital da cidade. Vieram nos procurar com sua queixa, ao invés de se dirigirem ao Departamento de Hospitais, porque um brilhante advogado do Bronx lhes dissera que o seu filho era, sem dúvida, uma vítima da discriminação. Consegui apurar, mediante um telefonema ao psiquiatra-chefe do hospital, que a criança se recusava a ingerir qualquer alimento, conservando a comida na boca durante horas, sem engolir. Sou obrigado a dizer-lhes que nem eles nem a criança estavam sendo prejudicados da maneira ou pela razão que julgavam. Minha resposta lhes parece impregnada de má fé; a mim também. Penso comigo mesmo: "Se ele tivesse a minha mãe", engoliria a comida. Enquanto isso, expresso minha solidariedade ante o transe por que passavam. Eles, porém, recusam-se a deixar o meu gabinete até que se avistem com "o prefeito", como antes se tinham recusado a deixar o gabinete do assistente social, até que se avistassem com "o presidente da Comissão". O pai diz que fará que me despeçam, juntamente com todos os outros responsáveis pela morte por inanição de uma criancinha indefesa, só porque se trata de um porto-riquenho! "Es contrario a Ia ley discriminar contra cualquier persona...", declaram-me, lendo no manual bilíngüe da COP — escrito por mim! Neste ponto o telefone toca. O porto- riquenho está gritando comigo em espanhol, minha mãe está brandindo uma faca para mim na minha infância e a minha secretária anuncia que a Srta. Reed deseja falar comigo no telefone. Pela terceira vez naquele dia. Sinto falta de você, Arnold — murmura a "Macaca". Lamento, mas estou muito ocupado no momento. Amo você de fato. Sim, esplêndido, posso falar mais tarde com você a respeito disto? Como estou querendo esta piroca longa e macia dentro de mim. . . Até depois! Quais serão os outros defeitos dela, já que estamos falando no assunto? Mexe com os lábios enquanto lê. É vulgar? Acha? Já se sentou alguma vez à mesa de jantar, em frente a uma mulher com quem está tendo um caso — uma criatura de vinte e nove anos — e viu os seus lábios se moverem, enquanto ela procura na página de cinema um filme para vocês dois verem? Já sei o que está levando antes que ela me diga — lendo os seus lábios! Os livros que lhe trago, ela carrega de um lugar para

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outro na sua sacola para ler? Não! Para impressionar algum fotógrafo bicha, para impressionar os transeuntes na rua, os estranhos, com o seu caráter de múltiplas facetas! Vejam aquela garota com aquele traseiro arrebatador — levando um livro! Com palavras de verdade dentro! No dia seguinte à nossa volta de Vermont, comprei um exemplar de Exaltemos os Grandes Homens, escrevi num cartão "À garota estonteante" e mandei fazer um embrulho para presente, a ser entregue naquela noite. "Diga-me uns livros pra mim ler, tá?" Eis o tocante apelo que ela fez, na noite em que voltamos para a cidade, acrescentando: "Por que hei de ser ignorante, já que, conforme você diz, sou tão inteligente?" Portanto, aqui tínhamos Agee, para começar, com as fotografias de Walker Evans para ajudá-la: um livro que lhe falasse de sua vida antiga, que lhe ampliasse as perspectivas sobre as suas origens (bem mais fascinantes, é claro, para o distinto rapaz judeu esquerdista do que para a própria garota proletária). Com que zelo compilei aquela lista de livros! Puxa, como eu iria beneficiar-lhe a mente! Depois de Agee, Dynamite, de Adamic! O meu próprio exemplar amarelecido da universidade. Imaginei-a beneficiando-se das passagens por mim sublinhadas, quando ainda estudante, vindo a compreender a distinção entre o pertinente e o trivial, uma generalização e uma ilustração, e assim por diante. Além disso, era um livro escrito com tanta simplicidade, que havia esperança de que, mesmo sem obrigá-la, ela poderia animar-se a ler não apenas os capítulos que eu sugerira, os que se referiam diretamente ao seu passado (como eu o imaginava) — violência nas minas de carvão, a começar com os Molly Maguires, o capítulo sobre os Wobblies — como também toda a história de brutalidade e terror infligidos sobre a classe operária americana, da qual ela descendia. Será que nunca lera um livro chamado U.S. A.? Comprei-lhe, pois, o Dos Passos da Modern Library, uma edição encadernada. Coisas simples, pensei, limite-se às coisas simples, mas que sejam educativas, elevadas. Ah, tenho certeza de que percebe onde quero chegar. E os temas? As Almas da Gente Negra, de W.E.B. Du Bois; As Vinhas da Ira; Uma Tragédia Americana; um livro de Sherwood Anderson que aprecio, chamado O Branco Pobre (o título, pensei, poderá despertar-lhe interesse); Impressões de um Filho Nativo, de Baldwin. O nome deste curso? Ah, não sei. . . talvez "As minorias humilhadas; Uma introdução", "A história e a função do ódio na América", do Professor Portnoy. O objetivo? Salvar a shikse estúpida, livrá-la da ignorância de sua raça, fazer da filha do opressor impiedoso uma estudante do sofrimento e da opressão, ensiná-la a ser compassiva, sangrar um pouco pelas tristezas do mundo. Percebeu agora? O casal perfeito: ela põe os pingos nos ii, eu ponho os oys nos goys. Onde me encontro? Dentro de um smoking. Civilizado dos pés à cabeça nos meus trajes de noite e com a "quirida willa" ainda me chiando nas mãos, quando surge a "Macaca" usando o vestido que comprou especialmente para a ocasião. Que ocasião? Onde ela pensa que vamos? Fazer um filme pornográfico? Doutor, a saia mal lhe alcança o traseiro! Crocheteada numa espécie de fio metálico dourado, recobrindo apenas uma malha cor da pele! E, encimando este traje recatado, por cima de sua cabeleira natural, traz uma peruca inspirada na Orfãzinha Annie: uma enorme auréola de cachos negros, em forma de saca-rolhas, de cujo centro sobressai o tolo rosto pintado. Como fica vulgar a sua boquinha! E realmente de West Virgínia! A filha do mineiro na cidade de néon! "E é assim", penso, "que ela vai comigo ao encontro prefeito? Parecendo uma dançarina de striptease? Que escreve "quirida"! Que não leu sequer duas páginas do livro de Agee durante a semana toda! Terá ao menos olhado as fotos? Duvido! Oh, que mancada!" Guardo o seu bilhete no bolso como recordação — mando laminar no dia seguinte, por um quarto de dólar. "Que mancada! Foi apanhada na rua! Chupou-me antes de saber sequer o meu nome! Certa vez, empenhou o traseiro em Las Vegas — e talvez em outros lugares! Olhe só para ela — é uma bandida! A bandida do vice-presidente da Comissão de Oportunidade Humana! Que espécie de sonho é este que estou tendo? Andar com uma criatura dessas é, para mim, o que há de errado! Não faz sentido! Uma perda de energia, dignidade e tempo!" Muito bem — diz a "Macaca" no táxi. — O que há com você, Max? Nada. Está detestando a minha aparência. Besteira. Chofer, Peck and Peck! Cale-se. Gracie Mansion, chofer. Estou morrendo envenenada, Alex, com estas emanações que estão vindo de você. Não estou emanando merda nenhuma! Não falei nada. Estes seus olhos pretos de judeu, meu camarada, falam

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por você. Tutti! Fique calma, "Macaca". Você é que deve ficar calmo! Estou calmo! — Mas a minha máscula determinação não dura um minuto mais. — Só lhe peço por tudo o que existe — digo-lhe — para não falar em pomba na frente de Mary Lindsay! O quê? Você ouviu bem. Quando chegarmos lá, não comece a falar sobre a sua pombinha molhada para o primeiro que abrir a porta! Nem dê uma segurada no cacete do John (John Lindsay, o prefeito de Nova Iorque. - N. do T.) logo de saída; espere pelo menos uma meia hora, combinado? Neste momento, um ruído sibilante, como o de freios funcionando, escapa-se dos lábios do motorista e a "Macaca" atira-se, numa rabanada furiosa, contra a porta do seu lado. — Eu digo e uso aquilo que quiser! Este é um país livre, seu judeu pele de pica! O senhor devia ter visto o olhar que nos lançou o motorista, Sr. Manny Schapiro, quando desembarcamos. — Sua puta nazista! — berrou ele, queimando os pneus na arrancada que deu com o carro, Do banco onde sentamos, em CarI Schurz Park, podemos ver as luzes na Gracie Mansion. Assisto à chegada dos outros membros da nova administração, enquanto acaricio o braço dela, beijo-lhe a testa, dizendo que não há razão para chorar, a culpa é minha, sim, sim, sou um judeu pele de pica, e fico desmanchando-me todo em desculpas. —. . .fica me fuçando o tempo todo, só da maneira que você olha, já está me fuçando, Alex! Abro a porta agora de noite, morrendo por ver você, só pensando em você o dia inteiro, e já vêm estas malditas butucas fuçando tudo o que esteja errado comigo! Como se eu já não fosse bastante insegura, como se a insegurança não fosse a minha diferença, você faz logo essa cara, no instante em que abro a boca. Não posso nem dizer que horas são e você já vem com este olhar, querendo dizer: que merda, lá vem mais uma besteira dessa lambisgóia desmiolada. Digo: São cinco para as sete. E você pensa: como é que ela pode ser tão burra assim! Olhe, não sou desmiolada, nem lambisgóia, só porque não estive na pinóia de Harvard! E não me venha mais com esta merda de se comportar na frente dos Lindsays. Que diabo são esses Lindsays? Um maldito prefeito e sua mulher! Um merda de prefeito! Caso você tenha esquecido, fui casada com um dos homens mais ricos da França, quando tinha apenas dezoito anos — jantei na casa do Ali Khan quando você ainda estava em Newark, Nova Jersey, tocando siririca nas suas namoradas judias! Era esta a idéia que eu fazia de um caso amoroso, indagava ela, soluçando, desconsolada. Tratar uma mulher como uma leprosa? Eu desejava dizer: "É que talvez, então, não seja um caso amoroso. Talvez seja o que se chama um erro. Talvez devêssemos seguir nossos caminhos, sem ressentimentos." Mas não disse nada disso, com receio de que ela cometesse suicídio! Não tentara, cinco minutos antes, atirar-se pela porta do carro? Portanto, suponhamos que eu houvesse dito: "Olhe, 'Macaca', a coisa é essa mesmo." O que iria impedi-la de atravessar correndo o parque e atirar-se no East River? Doutor, o senhor tem de me acreditar, havia esta possibilidade. Foi por isso que não falei nada. Mas seus braços já rodeavam o meu pescoço e oh, como ela se derramou! "Amo você, Alex! Adoro, venero você! Por isso, por favor, não me diminua! Eu não agüento! Você é a melhor pessoa que conheci, seja homem, mulher ou criança! De todo o reino animal! Oh, meu 'Marretinha', você tem uma grande inteligência, uma grande piroca e eu adoro você!" E então, num banco, a uns cem metros da mansão dos Lindsays, ela colocou a peruca no meu colo e começou a me chupar. "Não, 'Macaca' ", implorei, "não", enquanto ela abria apaixonadamente o zíper das minhas calças pretas, "isto aqui cheio de agentes secretos!" — referindo-me ao policiamento do Gracie Mansion e arredores. "Eles vão nos agarrar, vai ser um escândalo, Macaca, a polícia..." Ela, porém, afastando os lábios da minha braguilha aberta, sussurrou: "É tudo imaginação sua" (observação bastante sutil se encarada sutilmente) e mergulhou em seguida, peludo animalzinho à procura da toca, subjugando-me com a boca. Durante o jantar, ouvi-a contar ao prefeito que trabalhava com modelo de dia e estudava à noite. Nenhuma palavra sobre a sua pomba, que eu saiba. No dia seguinte, dirigiu-se ao Hunter e naquela

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noite, como surpresa, mostrou-me a proposta de inscrição que apanhara na secretaria. Pelo que elogiei-a. E que ela jamais preencheu, está claro, a não ser quanto à idade: 29. Eis uma fantasia da "Macaca", dos seus dias de ginásio, em Moundsville. O devaneio a que se entregava, enquanto outros aprendiam a ler e escrever: Em torno de uma grande mesa de conferências, sentam-se empertigados todos os rapazes de West Virgínia, em busca de admissão na West Point. Debaixo da mesa, engatinhando, nua, está a nossa aparvalhada adolescente analfabeta, Mary Jane Reed. Um coronel de West Point, com uma bengala militar de passeio atrás de si, batendo de leve no chão, inspeciona as fisionomias dos rapazes, enquanto, escondida, Mary Jane vai desabotoando-lhes as calças e chupando os candidatos um por um. O rapaz aprovado na admissão à academia militar será aquele que melhor for capaz de manter uma atitude marcial, rígida e séria, enquanto estiver disparando na boquinha furiosa e hábil de Mary Jane. Dez meses. É incrível, pois durante este tempo não se passou um dia, nem sequer uma hora em que eu não perguntasse a mim mesmo: "Por que continuar com esta criatura? Esta mulher embrutecida, grosseira, atormentada, autodepreciadora, confusa, perdida, despersonalizada. . ." e assim por diante. A lista era inesgotável; eu a revia continuamente. E lembrar a facilidade com que a apanhei na rua (o triunfo sexual da minha vida!). Provocava-me gemidos de desgosto. Como posso continuar com alguém, cuja razão, julgamento e conduta eu decididamente não podia respeitar? Que me provoca no íntimo explosões diárias de desaprovação, trovejantes irrupções de censura! E os sermões! Ah, que mestre-escola eu me tornei! Quando ela me comprou aquelas pantufas italianas para presente de aniversário, por exemplo, que conferência pronunciei em troca! — Olhe — disse eu, logo que saímos da loja —, um pequeno conselho para quando fizer compras: quando você sair para efetuar algo tão simples como a troca de dinheiro por mercadorias, não quer dizer que vá exibir sua pomba para todo mundo que aparecer no horizonte, compreendido? Exibir o quê? Quem exibiu alguma coisa? Você, Mary Jane! As suas partes supostamente íntimas! Não fiz isto! Ora, cada vez que você se levantou, toda hora que se sentou, só faltou se pendurar pela cona no nariz do vendedor! Puxa, mas então eu não haveria de me sentar e levantar? Mas não como se estivesse subindo e descendo de um cavalo! Bem, eu não sei que mania é esta sua. . . Seja como for, o camarada era bicha. Minha "mania" é porque o espaço entre as suas pernas está sendo visto por mais gente do que toda a audiência de Huntley e Brinkley (Comentaristas populares de notícias da televisão americana. - N. do T.)! Então por que não sai da arena enquanto ainda é campeã, hem? — No entanto, mesmo enquanto ainda estou fazendo a minha acusação, fico dizendo para mim mesmo: "Oh, desista, filhinho-da- mamãe, se você quer uma senhora, ao invés de uma pomba, então trate de arranjar uma. Quem é que o está impedindo?" Pois esta cidade, como sabemos, está repleta de garotas inteiramente diversas da Srta. Mary Jane Reed, jovens promissoras, indômitas, incontaminadas; na verdade saudáveis como empregadas de fábricas. Sei disso porque as tive antes dela. Só que também não satisfazem. Estavam erradas, também. Acredite-me, Dr. Spielvogel, estive lá, tentei: comi de suas panelas, barbeei-me em seus banheiros, ganhei duplicatas de suas chaves, tive prateleiras reservadas para mim em seus armários de remédios, cheguei até a cuidar de seus gatos — com os nomes de Spinoza, Clitemnestra, Candide, Miau. . . Sim, sim; garotas inteligentes, eruditas, recém-saídas de aventuras bem sucedidas de sexo e cultura em universidades da Ivy League (Grupo de universidades do Leste dos Estados Unidos, de grande prestígio social e cultural. - N. do T.), vivas, com amor-próprio, seguras de si, bem comportadas — assistentes sociais, auxiliares de pesquisa, professoras e revisoras, garotas em cuja companhia eu não me sentia abjeto ou envergonhado, garotas com quem eu não precisava servir de pai nem de mãe, educar ou redimir. E também não deu certo com elas! Kay Campbell, minha namorada em Antioch — podia haver uma pessoa mais exemplar? Simples, amável, sem qualquer traço de morbidez ou egoísmo um ser humano

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perfeitamente elogiável e digno. Onde andará ela a esta altura, aquele verdadeiro achado?! Alô, "Abóbora"! Sendo a esposa maravilhosa de algum gentio sortudo, aí pela classe média americana? Como poderá ter sido de outra maneira? Ela editava a revista literária, tirou as melhores notas em literatura inglesa, fez piquete comigo e os meus revoltados amigos do lado de fora da barbearia em Yellow Springs, onde não cortavam cabelo de negro uma garota robusta, jovial, de coração grande, traseiro grande, com um suave rosto de bebê, cabelos louros, pouco peito, infelizmente. (O meu destino tem sido essencialmente mulheres de pouco peito. Agora, a propósito, por que isso? Existirá porventura algum ensaio que eu possa ler a respeito? Será que tem importância? E a blusa, sempre saindo para fora da saia, atrás. Como me comovia aquele alegre toque! E também o fato de que, de salto alto, ela parecia um gato preso no alto de uma árvore, em apuros, fora do seu elemento, toda deslocada. Sempre a primeira das donzelas de Antioch a ir descalça para as aulas da primavera. A "Abóbora", era como eu a chamava, em homenagem à sua pigmentação e ao tamanho de seu traseiro. E também à sua solidez: rija como uma abóbora em questões de princípio moral, magnificamente teimosa, de uma maneira que eu não podia deixar de invejar e adorar. Ela jamais levantava a voz numa discussão. Pode imaginar a impressão que isto me causava, aos dezessete anos, egresso de meus compromissos com a Sociedade de Debates de Jack e Sophie Portnoy? Quando se ouvira falar de uma tal maneira de abordar uma controvérsia? Nunca ridicularizava um antagonista! Nem parecia odiá- lo por suas idéias! Ah-ah, então é isto o que significa ser uma filha de gentios, oradora da turma de um ginásio em Iowa, ao invés de Nova Jersey; sim, é disto que dispõem os goyim quando têm algo para dispor! Autoridade sem mau gênio. Virtude sem autocongratulação. Confiança sem arrogância ou condescendência. Vamos, sejamos justos e demos aos goyim o que lhes é devido, doutor: quando devem ser admiráveis, são admiráveis para valer. Tão sólida! Sim, era o que hipnotizava — o vigor, a firmeza, numa palavra, a aboborice. Minha shikse robusta, bunduda, sem pintura, descalça, onde está você agora, Kay-Kay? Já é mãe de quantos? Acabou mesmo engordando? Ah, e daí! Suponhamos que esteja uma pipa — é preciso espaço para conter um caráter como o seu! O que há de melhor no Meio-Oeste e, neste caso, por que a deixei escapar? Ah, chegarei lá, não se preocupe, sabemos agora que a autolaceração nunca se encontra a mais de uma memória de distância. Enquanto isso, deixe-me sentir um pouco a falta de sua substancialidade. Aquela pele amanteigada! Aquele cabelo caindo descuidada-mente em ondas! E isto no início de cinqüenta, antes de ficar em moda! Trata-se de espontaneidade, pura e simples. Kay, roliça e opulenta, colorida pelo sol! Aposto como uma meia dúzia de garotinhos devem estar aferrados ao volumoso traseiro da moça (tão diferente do duro punhadinho de carne que é o traseiro de modelo da "Macaca"!). Aposto como fabrica o próprio pão, hem? (Da maneira como fez naquela noite quente de Yellow Springs, de anáguas e porta-seios, orelhas lambuzadas de farinha de trigo e o suor porejando na raiz dos cabelos — lembra-se? Mostrando-me, a despeito do calor que fazia, como era o gosto do verdadeiro pão? Podia ter usado o meu coração feito massa, de tão mole que ele estava!) Aposto como vive num lugar onde o ar ainda não está contaminado e ninguém tranca a porta, nem liga a mínima para dinheiro ou posses. Eu também não me conspurquei, "Abóbora", nesses e outros assuntos correlatos da classe média! Oh, garota magnificamente mal proporcionada, nada tenho a ver com manequins de um quilômetro e meio de comprimento! Tem pouco peito — e daí? Delgada como uma borboleta quanto à caixa torácica e o pescoço, mas embaixo, plantada como um urso! Enraizada, é o que estou querendo dizer! Ligada ao solo americano por aquelas pernas de jogador de futebol! O senhor devia ter ouvido Kay Campbell quando saímos por Greene County fora, fazendo campanha em favor de Stevenson, de casa em casa. Enfrentando a mais pavorosa estreiteza mental republicana, uma mesquinhez e algidez de espírito verdadeiramente sufocantes, ela mantinha uma perfeita distinção de conduta. Eu era um autêntico bárbaro. Por mais moderado que fosse o meu começo (ou condescendente, para falar a verdade), invariavelmente eu terminava numa fúria sudorífera, escarnecendo, insultando, condenando, frente a frente com aquela gente terrivelmente sovina, considerando o seu bem-amado Ike um iletrado, um imbecil político e moral — provavelmente sou um dos responsáveis por Adiai ter perdido tão feio no Ohio. A "Abóbora", entretanto, concedia uma atenção tão cordial e perfeita ao ponto de vista da oposição, que havia

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momentos em que eu esperava que ela se voltasse para mim e dissesse: "Ora, Alex, acho que o Sr. Yokel tem razão — talvez ele seja mesmo mole com os comunistas." Mas nada disso, após ter sido proferida a última idiotice a respeito das idéias "socialistas" e/ou "cor-de-rosa" do nosso candidato, a condenação final do seu senso de humor, a "Abóbora" começava cerimoniosamente e (tremenda proeza!) sem um laivo sequer de sarcasmo — ela poderia ter sido juiz de um concurso de tortas, com a sua tão perfeita mistura de sobriedade e bom humor — a corrigir os erros de fato e de lógica do Sr. Yokel, chegando mesmo a ressaltar a sua mesquinha moralidade. Sem se deixar estorvar pela truncada sintaxe do Apocalipse ou o grosseiro vocabulário do desespero, sem nenhuma exibição de lábio superior suarento, de garganta contraída e arquejante, ela bem poderá ter influenciado uma meia dúzia de pessoas no .condado. Esta era, na verdade, uma das grandes shikses. Eu poderia ter aprendido alguma coisa, se passasse o resto da minha vida com tal pessoa. Sim, eu poderia se me fosse possível aprender alguma coisa! Se eu pudesse, de alguma forma, ser arrancado desta obsessão por felação e fornicação, desta obsessão pelo romance, fantasia e vingança — desta obsessão pela conquista de vitórias! Dessa perseguição aos sonhos! "Libertado desta fidelidade desesperada e insensata ao passado longínquo! Em 1950, com dezessete anos e tendo deixado Newark há dois meses e meio (bem, não propriamente "deixado": pelas manhãs eu despertava no dormitório, frustrado por ter na mão um cobertor desconhecido e pelo desaparecimento de uma de "minhas" janelas, permanecendo aflito e perturbado durante alguns minutos com aquela transformação inesperada que minha mãe dera ao meu quarto de dormir), executo o ato mais declaradamente rebelde de minha vida: ao invés de ir para casa nas primeiras férias do colégio, vou de trem até lowa e passo o Dia de Ação de Graças com a "Abóbora" e os seus pais. Até setembro, o mais que eu me distanciara na direção do Oeste tinha sido Lake Hopatcong, em Nova Jersey — agora cheguei até o lowa. E com uma loura! Da religião cristã! Quem está mais aturdido com esta deserção, minha família ou eu? Que Ousadia! Ou não terei sido mais ousado que um sonâmbulo? A casa branca de madeira onde a "Abóbora" fora criada provocou em mim emoções equivalentes à de um Taj Mahal. Balboa talvez saiba o que senti quando avistei o balanço preso ao teto, na varanda da frente. Ela foi criada nesta casa. A garota que me deixou que lhe abrisse o porta-seios e lhe chupasse os peitos na porta do dormitório, foi criada nesta casa, atrás destas cortinas gentias! Vejam, tem persianas! — Papai, mamãe — diz a "Abóbora", quando desembarcamos na estação ferroviária de Davenport —, este é o nosso convidado de fim de semana, o meu colega da escola de que. lhes falei na carta. . . Então sou um "convidado de fim de semana"? Um "colega da escola"? Que língua ela está falando? Eu sou é o "gringo", o "filho do agente de seguros", o embaixador do Rabino Warshaw! "Como vai, Alex?" E eu, está claro, respondo: "Vou bem, obrigado." A tudo o que me dizem durante as primeiras vinte e quatro horas em Iowa, respondo: "Obrigado." Até aos objetos inanimados. Ao dirigir-me para uma cadeira, digo prontamente: "Desculpe-me, obrigado." Se deixo cair o guardanapo no chão, curvo-me, enrubescendo, para apanhá-lo, e me surpreendo dizendo para ele: "Obrigado" — ou terá sido com o chão que eu falei? Como minha mãe haveria de sentir orgulho do seu cavalheirozinho! Cortês até com o mobiliário! Dizem que há uma expressão, "bom dia", de que nunca fiz uso muito especial. Por que haveria de fazer? Em casa, à hora do desjejum, na realidade, os outros comensais me tratam de "Sr. Ranzinza", ou "O Rabugento". Mas de repente, aqui em Iowa, numa imitação dos habitantes locais, transformo-me num verdadeiro gêiser de bons dias. É tudo o que sabem dizer os do lugar. Eles sentem o sol no rosto e parece que isto desencadeia alguma espécie de reação química: Bom dia! Bom dia! Bom dia! Entoado de uma dúzia de maneiras diferentes! Em seguida, todos se indagam se "dormiram bem". E perguntam isto a mim! Dormiu bem? Não sei, realmente, tenho de pensar — a pergunta vem meio de surpresa: "Dormiu bem?" "Ah, sim! Acho que sim! E o senhor?" "Como uma pedra", responde o Sr. Campbell. E, pela primeira vez na minha vida, aprendo toda a força de uma comparação. Esse homem, que é um vendedor de terrenos e vereador no Conselho Municipal de Davenport, diz que

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dormiu feito uma pedra e realmente vejo uma pedra. Estou percebendo! Imóvel, pesado, como uma pedra! "Bom dia", diz ele, e agora me ocorre que a palavra "dia", da maneira como ele usa, refere-se especificamente às horas que vão desde as oito da manhã até o meio-dia. Nunca tinha refletido antes sobre isto. Ele quer que as horas entre oito e doze sejam boas, isto é, deliciosas, agradáveis, benéficas! Estamos todos desejando uns para os outros quatro horas de prazer e realização. Puxa, isto é formidável! Que bacana! Bom dia! E a mesma coisa quanto a "boa tarde"! E "boa noite"! Meu Deus! A língua é uma forma de comunicação! A conversa não é apenas um fogo cruzado, em que a gente dá tiro e recebe tiro! Onde a gente tem de se desviar para não morrer e fazer pontaria para matar! As palavras não são apenas bombas e balas, não; são presentinhos, contendo significados! Espere, não acabei — como se a experiência de estar do lado de dentro e não do lado de fora destas cortinas gentias não fosse bastante esmagadora, como se a incrível experiência de desejar hora após hora de prazer a uma casa cheia de goyim não constituísse uma fonte satisfatória de perplexidade, ainda há, para completar o êxtase da desorientação, o nome da rua onde a minha namorada foi criada! Pulou corda, patinou! jogou amarelinha! andou de trenó! Tudo isso enquanto eu arquitetava sonhos em torno da existência dela, a dois mil e tantos quilômetros de distância, num lugar que, segundo dizem, fica no mesmo país. O nome da rua? Nada de Xanadu; não, muito melhor que isto, muito mais despropositado: Olmo. Olmo! É como se eu atravessasse, veja só, a faixa alaranjada de celulóide das estações do nosso velho rádio Zenith, e entrasse direto dentro do programa Vida de Família. Olmo. Onde crescem árvores — que na certa são olmos! Para dizer a verdade, devo admitir que não sou capaz de chegar a uma conclusão dessas logo ao descer do carro dos Campbells, na noite de quarta-feira: afinal de contas, levei dezessete anos para reconhecer um carvalho e ainda assim fico sem saber, se não vejo as bolotas. A primeira coisa que vejo numa paisagem não é a flora, acredite-me — é a fauna, a oposição humana de quem marreta e de quem está sendo marretado. Deixo a verdura para os pássaros e as abelhas; eles têm as suas preocupações, eu tenho as minhas. Lá em casa, quem sabe o nome do que nasce na calçada em frente? É uma árvore — apenas isto. De que espécie não tem importância. Quem se incomoda com a espécie contanto que não desabe na cabeça da gente. No outono (ou será na primavera? O senhor sabe distinguir esta história? Tenho certeza de que não é no inverno), caem dos galhos umas vagens compridas, em forma de meia-lua, contendo umas bolinhas duras. Muito bem. Eis aqui um fato científico a respeito da nossa árvore, obtido por intermédio de minha mãe, Sophie Linnaeus (Blague do autor, em torno de Carolus Linnaeus, botânico sueco (1707- 1778). - N. do T.): Se você soprar estas bolinhas através de um canudo de palha, poderá arrancar fora o olho de alguém e cegá-lo para o resto da vida. (PORTANTO, JAMAIS FAÇA ISTO! NEM MESMO DE BRINCADEIRA! SE ALGUÉM FIZER COM VOCÊ, VENHA ME DIZER IMEDIATAMENTE!) É este, pois, mais ou menos, o tipo de conhecimento de botânica de que disponho, até aquela tarde de domingo quando estamos saindo da casa dos Campbells em direção à estação ferroviária, e ocorre- me a minha experiência arquimediana: Rua dos Olmos. . . Depois, a conclusão: os olmos são árvores! Como é simples! Isto é, não se precisa de 158 pontos de Q.I., não se tem de ser um gênio para que este mundo faça sentido para a gente. É tudo realmente tão simples! Foi um fim de semana memorável em minha vida, equivalente, em termos de história humana, à passagem da humanidade por toda a Idade da Pedra. Toda vez que o Sr. Campbell chamava a sua mulher de "Mary", minha temperatura subia vertiginosamente. Ali estava eu, comendo de pratos que tinham sido tocados pelas mãos de uma mulher chamada Mary. (Será que existe aqui alguma chave quanto ao fato de eu resistir tanto a chamar a "Macaca" pelo nome, somente para puni-la? Hem?) Por favor, ansiava eu no trem que rumava em direção ao Oeste, tomara que não haja retratos de Jesus Cristo na casa dos Campbells. Que eu possa passar este fim de semana sem ter de avistar a sua patética carinha ou lidar com alguém que use uma cruz! Quando as tias e os tios vierem para o jantar de Ação de Graças, por favor, que não haja nenhum anti-semita entre eles! Porque se alguém começar com "estes judeus intrometidos", falar em "gringo" ou "judiou dele" — bem, eu vou é judiar deles de verdade! Não, nada de fazer violências (como se eu jamais houvesse tido alguma dentro de mim); deixe isso para eles, que é a sua maneira de ser. Não, eu vou é me levantar da cadeira — e (depois?) fazer um discurso! Hei de

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confundi-los e humilhá-los em seus corações intolerantes! Hei de citar a Declaração da Independência, enquanto comem suas batatas-doces! Que diabo se julgam eles, pergunto eu, para pensar que são donos do Dia de Ação de Graças? Então, na estação ferroviária, o pai dela diz: "Como vai, rapaz?", e eu, está claro, respondo: "Vou bem, obrigado." Por que ele está se fazendo de tão amável? Porque foi avisado de antemão (o que não sei se deva considerar um insulto ou um louvor), ou porque não sabe ainda? Deverei então avisá-lo, antes mesmo de entrar no carro? Sim, devo! Não posso continuar sustentando uma mentira! "Estou muito satisfeito de ter vindo a Davenport, Sr. e Sra. Campbell, mesmo sendo judeu e tudo o mais." Talvez ainda não seja bastante retumbante. "Como amigo de Kay, Sr. e Sra. Campbell, e sendo judeu, quero agradecer-lhes por me terem convidado..." Deixe de tanto excesso de precaução! Como farei então? Vou logo falando em iídiche? De que jeito? Conheço umas vinte e cinco palavras, metade é palavrão e o resto pronuncio errado! Droga, o melhor é ficar calado e entrar no carro. "Obrigado, obrigado", digo, apanhando a minha mala. E saímos todos em direção à camioneta. Eu e Kay sentamos atrás, com o cachorro. O cachorro de Kay! Com o qual ela fala como se fosse um ser humano! Ah, ela é realmente uma goy. Que coisa mais idiota falar com um cachorro — só que Kay não é idiota! Acho mesmo, pelo contrário, que é mais inteligente do que eu. E no entanto fala com um cachorro? "Quanto aos cães, Sr. e Sra. Campbell, nós, os judeus, de modo geral..." Oh, deixemos isto de lado. Mas espere aí. Você está se esquecendo (ou pelo menos tentando desesperadamente fazê-lo) deste seu revelador apêndice chamado nariz. Sem falar nesta cabeleira afro-judaica. É claro que eles sabem. Lamento muito, mas não há como escapar ao destino, garoto. A sorte de um homem está ligada ao apêndice nasal. Mas não estou querendo escapar! Bem, isto também está certo — já que não pode fazê-lo. Mas eu posso escapar —- se quiser! Todavia, você disse que não queria. Mas, e se quisesse! Logo ao entrar na casa começo (furtivamente, um pouco para surpresa minha) a farejar: de que será este cheiro? De purê de batatas? De vestido de velha? De cimento fresco? Farejo, farejo, tentando reconhecê-lo. Pronto! Será disto, será da cristandade este cheiro, ou apenas do cachorro? Tudo que vejo, cheiro, toco, penso logo: "Goyisch!" Logo na primeira manhã, desperdiço alguns centímetros de dentifrício, para não encostar minha escova no mesmo lugar onde a mãe ou o pai de Kay possam ter tocado com as cerdas que utilizam para limpar seus molares goyische. Olhe só! O sabonete da pia está borbulhando de espuma saída das mãos de alguém. De quem? De Mary? Devo pegá-lo e começar a me lavar, ou talvez fosse melhor deixar antes correr um pouco de água sobre ele, só como medida de segurança? Mas segurança contra quê? Seu palerma, vai ver que está querendo outro sabonete para lavar com ele o primeiro sabonete! Vou na ponta dos pés até a latrina e espio dentro do vaso: "Bem, aí está, rapaz, uma verdadeira privada goyische. O artigo genuíno. Onde o pai da sua namorada dá as cagadas gentias. O que acha, hem? Impressionante." Obcecado? Fascinado! Em seguida, tenho que decidir se forro ou não o assento. Não é uma questão de higiene, tenho certeza de que o local é limpo, imaculado, à sua anti-séptica maneira goy de sempre: o fato é — e se estiver ainda quente do traseiro de um dos Campbells, da mãe dela! Mary! Também a mãe de Jesus Cristo! Quanto mais não seja por amor à minha família, talvez fosse melhor pôr um bocadinho de papel em cima da tábua; não custa nada e quem jamais há de saber? Nada disso! Nada disso! Trato, pois, de me sentar — e sinto aquele calor! Oh, dezessete anos de idade e roçando traseiros com o inimigo! Como progredi de setembro para cá! Pelas águas da Babilônia, sim, ali nos sentamos e choramos, lembrando-nos do Sião! É isso mesmo! Na privada, sinto-me invadido pela incerteza e pela saudade; de todo o coração, suspiro pelos meus. . . Quando o meu pai sair para comprar o "verdadeiro vinho de maçãs" no mercado dos fazendeiros, à beira da estrada, em Union, não lhe estarei fazendo companhia! E como poderão Hannah e Morty ir ao jogo Weequahic-Hillside, na manhã do Dia de Ação de Graças, sem que eu esteja junto para fazê-los rir? Jesus, espero que ganhemos (o que significa perder por menos de 21 pontos). Derrotem Hillside, seus miseráveis! Duplo u, Duplo E, Q u A, H i c! Bernie, Sidney, Leon, "Ushie", vamos, retaguarda, LUTE! Oiqui-oi-ai-ós! Ninguém gosta de nós! Somos os rapazes de Weequahic High Ai-ai-qui-uc-us, Kish

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mir in tuchis, Somos os rapazes de Weequahic High! Vamos, firmem esta linha, façam pontos, chutem a barriga deles, vamos, equipe, vamos! Veja, estou perdendo a oportunidade de dar uma exibição de inteligência e vivacidade nas arquibancadas! Dar uma amostra da minha língua sarcástica e zombeteira! E, depois do jogo, perder ainda a histórica refeição do Dia de Ação de Graças preparada por minha mãe, esta sardenta e ruiva descendente de judeus poloneses! Oh, como o sangue há de lhes fugir das faces, que silêncio mortal há de pairar quando ela erguer no ar a enorme coxa de galinha cozida e gritar: "Esta aqui, adivinhem para quem é?" O adivinhem-para-quem-é se encontra AWOL! (Absent Without Leave — Ausente Sem Licença. - N. do T.) Por que vim ficar longe da minha família! Talvez ao redor da mesa não parecêssemos uma pintura de Norman Rockwell Famoso ilustrador americano, que, durante muitos anos, nas capas do Saturday Evening Post, especializou-se em fixar cenas familiares e tipos tradicionais do seu país. - N. do T.)-, mas nos divertíamos a valer, garanto! Não remontamos a Plymouth Rock, nenhum índio trouxe milho para qualquer membro da nossa família, que eu saiba; mas cheire só o recheio! E veja, rolos de uva do monte, nas duas extremidades da mesa! E o peru, chamado "Tom"! Por que então não hei de achar que estou fazendo a minha refeição na América, pois a América é onde estou, ao invés de ser algum outro lugar para onde viajarei algum dia, como a ocasião em novembro, quando eu e meu pai temos de procurar, todos os anos, aquele casal de caipiras em Union, Nova Jersey (os dois vestidos de macacão), atrás de verdadeiro vinho de maçãs. "Vou para Iowa", digo-lhes da cabina telefônica no meu andar. "Para onde?" "Para Davenport, Iowa." "Nas suas primeiras férias do colégio?!" "Sei disto, mas é uma grande oportunidade, não posso desprezar. . ." "Oportunidade? Para fazer o quê?" "Para passar o Dia de Ação de Graças com a família de um rapaz chamado Bill Campbell..." "Quem?" "Campbell. Igual ao nome da sopa. É o meu companheiro de dorm..." Mas eles estão à minha espera. Morty tem as entradas para o jogo. E que negócio é este de oportunidade? "E quem é este rapaz Campbell, que surgiu assim de repente?" "É um amigo meu! Bill!" "Mas", diz meu pai, "e a sidra?" Oh, meu Deus, acontece o que eu jurei que não iria me permitir! — Desato a chorar, tudo por causa desta palavrinha, "sidra". Este homem tem um dom natural, podia ia ao Groucho Marx e ganhar uma fortuna adivinhando a palavra secreta. Adivinha a minha, todas as vezes! E ganha o meu jogo do arrependimento! "Não posso voltar atrás, desculpe, já aceitei — nós já vamos!" "Já vão? Como, Alex? Não estou entendendo esse plano", interrompe minha mãe, "como você vai, se me permite, e para onde? Aposto que vai num conversível também!" "NÃO!" "E se houver gelo na estrada, Alex..." "Nós já vamos, mãe, num tanque Sherman! Está bem assim? Está bem?" "Alex", diz ela severamente, "percebo na sua voz que você não está me dizendo toda a verdade, com certeza vai de carona por aí num conversível, ou em alguma outra coisa maluca qualquer — dois meses longe de casa, e com dezessete anos de idade, vai sair como um maluco!" Há dezesseis anos, dei este telefonema. Com um pouco mais da metade da idade que tenho agora. Novembro de 1950 — aqui está tatuado no meu pulso, a data da minha Proclamação de Independência. Crianças que ainda não tinham nascido quando telefonei pela primeira vez para dizer a meus pais que não ia do colégio para casa, agora estão entrando em universidades, suponho — e eu ainda telefonando para meus pais, a fim de dizer que não vou para casa! Ainda em luta com a minha família! De que adiantou pular aqueles dois anos na escola primária e animar a todos, para acabar me atrasando tanto. Meu início foi legendário: estrelando todas aquelas peças na escola secundária! Fazendo sucesso, na idade de doze anos, perante a DAR (Daughters of the American Revolution — Filhas da Revolução Americana. - N. do T.) inteira! Por que então vivo sozinho, sem filhos? Esta indagação não é irrelevante! Profissionalmente estou encaminhado, está certo, mas na vida particular, o que tenho para mostrar? Crianças parecidas comigo deveriam estar brincando neste chão? E por que não estão? Por que qualquer idiota há de ter filhos e eu não? Não faz sentido! Pense só nisto, a corrida já vai a meio, e eu ainda me encontro aqui na linha de partida — eu, o primeiro a sair dos seus cueiros e a vestir a roupa de competição! Cento e cinqüenta e oito de Q.I. e ainda discutindo com as autoridades acerca das regras e dos regulamentos! Contestando o percurso a ser disputado! Pondo em discussão a legitimidade da comissão de corridas! Sim, "rabugento" é a expressão correta, mãe! "Ranzinza" é perfeito, acerta precisamente no nariz do Nariz! "O Sr. Rompante" — c'est moil

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Esta é outra daquelas palavras que passei a infância inteira pensando que fosse "judaica". Rompante. "Vamos, pode ter o seu rompante", aconselhava minha mãe. "Veja se vai modificar alguma coisa, meu brilhante filho!" E como eu tentava! Como me arremessava contra as paredes da sua cozinha! Senhor Esquentadinho! Senhor Sobe-pelas-Paredes! Senhor Desembestado! Os nomes que ganhei! Não é de admirar que o olhassem atravessado, Alex, temendo pela própria vida! Senhor Sempre-Acerta-e-Nunca-Erra! O Zangado dos Sete Anões Veio Nos Visitar, Papai. Ah, Hannah, O Seu Irmão Sem Dúvida Nos Honrou Com A Sua Presença Esta Noite, É Um Prazer Tê-lo Conosco, Sem Dúvida. "Ai-ô, Silver", suspira ela, quando corro para o meu quarto para desmanchar a cama arrumada, "A Volta do Garoto Mal Comportado." Quase no fim do nosso primeiro ano na universidade, as regras de Kay não vieram e começamos então, com um certo prazer ansioso — sem pânico algum, o que não deixa de ser interessante — a fazer planos para nos casarmos. Iríamos oferecer-nos como "guarda-bebês residentes" a um jovem casal da faculdade que gostava de nós e, em trova, eles nos cederiam o seu espaçoso sótão e uma prateleira da geladeira. Usaríamos roupas velhas e comeríamos espaguete. Kay faria poesias sobre a maternidade e, segundo declarou, datilografaria apostilas para garantir um dinheiro suplementar. Tínhamos as nossas bolsas de estudo; de que precisávamos mais? (Além de um colchão, tijolos e tábuas para estantes, o disco de Dylan Thomas, de Kay, e, no devido tempo, um berço). Considerávamo-nos aventureiros. — E você vai se converter, não vai? — indaguei. Pretendia que a pergunta fosse recebida com ironia, ou pelo menos achava que era esta a minha predisposição. Mas Kay levou a coisa a sério. Sem solenidade, veja bem, mas com seriedade. Retrucou Kay Campbell, de Davenport, lowa: — Por que haveria eu de querer uma coisa destas? Grande garota! Maravilhosa, ingênua, cândida! E disposta, veja bem, como ela estava! Aquilo que desejamos loucamente encontrar numa mulher — agora sei o que é. Por que haveria eu de querer uma coisa destas? Nada de brusco, defensivo, malicioso ou superior no seu tom. Apenas bom senso, simplesmente expresso. Só que isto enfureceu o nosso Portnoy, provocou o Garoto Mal-Educado. O que quer dizer com este "por que haveria de querer uma coisa destas?" Por que você há de pensar, sua tola gentia! Vá falar com o seu cão, pergunte a ele. Pergunte a Spot o que ele acha, o gênio de quatro patas. "Quer que a Kay-Kay seja uma judia, Spottie, hem, seu grandalhão, hem?" Que diabo a faz tão satisfeita consigo mesma? Só porque conversa com cachorros? Só porque sabe conhecer um olmo? Só porque o seu pai tem uma camioneta feita de madeira? Qual o seu atrativo, querida, este nariz de Doris Day? Felizmente fiquei tão surpreso com a minha indignação que não consegui externá-la. Como poderia sentir-me ferido num ponto em que nem sequer era vulnerável? O que poderia significar menos para mim e Kay senão, primeiro, dinheiro, e, segundo, religião? Nosso filósofo favorito era Bertrand Russel. Nossa religião era a de Dylan Thomas, Verdade e Alegria! Nossos filhos seriam ateus. Eu estava brincando! Não obstante, ao que parece, jamais a perdoei: nas semanas que se seguiram ao nosso alarma falso, comecei a achá-la tediosamente previsível nas conversas, e tão desejável quanto um saco de banha na cama. E fiquei surpreso de ver o quanto se mostrou atingida quando finalmente tive de lhe dizer que não gostava mais dela. Fui bastante franco, veja bem, como Bertrand Russell achava que eu deveria ser. "Simplesmente não quero mais viver com você, Kay. Não posso esconder meus sentimentos, lamento muito." Seu pranto foi contristador: exibiu por toda a universidade seus olhos azuis injetados e medonhamente empapuçados, não apareceu na hora das refeições, perdeu aulas... E eu fiquei assombrado, pois sempre achei que era eu quem a amava e não ela a mim. Que surpresa: descobrir que tinha ocorrido justamente o contrário! Ah, ter vinte anos e desprezar a amante — o primeiro puro frêmito de sadismo em relação a uma mulher! E o sonho com as futuras mulheres. Voltei para Nova Jersey em junho, radiante da minha "força", perguntando a mim mesmo como jamais pudera sentir-me tão cativado por alguém tão medíocre e gorda. Um outro coração gentio que se partiu por mim foi o da "Peregrina", Sarah Abbott Maulsby, New

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Canaan, Foxcroft, da Universidade de Vassar (onde tinha como companhia, numa estrebaria de Pough-keepsie, aquela outra beleza loura, o seu cavalo palomino). Alta, meiga, correta, de vinte e dois anos de idade, saída da universidade e trabalhando como recepcionista no gabinete do senador por Connecticut na ocasião em que nos conhecemos e nos juntamos, no outono de 1959. Eu fazia parte da equipe da subcomissão da Câmara dos Representantes que investigava os escândalos dos programas de televisão. Sob medida para um socialista de gabinete como eu: fraude comercial em escala nacional, exploração do público inocente, consumada chicana corporativa — em suma, a velha ganância capitalista. Além do mais, é claro, aquele prêmio extra, o Charlatão Van Doren. Que caráter, que cabeça e que educação, com uma franqueza e um encanto de menino de escola — o WASP primordial, não é verdade? E quando acaba, não passa de um impostor. Então, que me diz disto, América Gentia? O Supergoy! Rouba, cobiça, quer dinheiro, fará tudo por ele. Céus, quase tão ruins quanto os judeus, os seus WASPS santarrões! Sim, lá estava eu, um judeuzinho feliz solto em Washington, estraçalhando, atarefado, a honra e a integridade de Charlie e, ao mesmo tempo, tornando-se amante daquela aristocrática beldade ianque, cujos antepassados chegaram a estas praias no século XVII. Fenômeno conhecido como Odiar e Papar o Gentio. Por que não me casei com aquela garota bela e adorável? Lembro-me dela nas galerias, pálida e encantadora num costume azul-marinho com botões dourados, cheia de orgulho e amor, vendo-me enfrentar, numa tarde, no meu primeiro interrogatório público de testemunhas, um relações-públicas de uma cadeia de emissoras matreiro como o diabo. . . Saí-me bem, naquela minha primeira vez: calmo, lúcido, persistente, quase sem alterar as batidas do coração — com apenas vinte e seis anos de idade. Ah, sim, quando estou de posse de todos os trunfos morais, tomem cuidado, seus vigaristas! Não sou de brincadeiras quando sei que estou com quatrocentos por cento de razão. Por que não me casei com a garota? Bem, para começar, havia aquela frescura da gíria do internato. Não podia agüentar. Vomitar era "fazer buaf", irritada era "ficar mexida", uma coisa engraçada era "um riso", maluco era "bolacha", pequenino era "pequinhonhinho". Ah, e também "divino", aquilo que Mary Jane Reed chamava de "bacano" (estou sempre ensinando a essas garotas como devem falar, eu com o meu vocabulário de Nova Jersey, com quinhentas palavras). Depois, havia os apelidos das suas amigas e os delas próprias! Poody, Pip e Pebble, Shrimp, Brute e Tug, Squeek, Bumpo, Baba — parecia, conforme eu dizia, que ela fora para Vassar em companhia dos sobrinhos do Pato Donald... A minha gíria, porém, também a incomodava. Na primeira vez em que disse foda na sua presença (e na de sua amiga Pebble, que usava colarinho de Peter Pan e colete de malha aberta de lã, bronzeada como uma índia, de tanto tênis no Chevy Chase Club), a "Peregrina" teve um olhar de agonia — dir-se-ia que as quatro letras tinham sido marcadas a ferro em brasa na sua carne. Por que, perguntou, lastimosa, logo que ficamos sozinhos, por que tinha eu de ser tão "antipático"? Que prazer poderia ter em ser tão "mal- educado"? O que "provara" com isto? "Por que fora tão pusento assim? Tão importuno?" Pusento significa desagradável, na linguagem das debutantes. E na cama? Nada de especial, nada de acrobacias ou proezas de audácia ou destreza. Assim como trepamos da primeira vez, continuamos trepando — eu investindo e ela capitulando, provocando uma alta de temperatura naquele leito de quatro colunas de mogno (herança da família Mauisby). O nosso único deleite periférico era o espelho de corpo inteiro atrás da porta do banheiro. Ali, nós dois em pé, coxa contra coxa, eu sussurrava: "Olhe, Sarah, olhe." No início, ela se mostrava acanhada, deixando que eu me encarregasse de olhar, recatada, submetendo-se só porque eu assim desejava, mas com o tempo também foi adquirindo uma espécie de paixão pelo espelho e acompanhava o reflexo da nossa acoplagem com uma certa assustada intensidade no olhar. Será que ela via o mesmo que eu? De negros cabelos púbicos, senhoras e senhores, pesando setenta e sete quilos, dos quais pelo menos a metade consiste em "halvah" e "pastrami" quente não digeridos, de Newark, NJ, o Bicanca, Alexander Portnoy! E a sua oponente, de loura penugem, com os seus elegantes membros acetinados e o suave e pudico rosto botticelliano, a sempre popular promotora de diversões sociais aqui no Garden ''', cinqüenta e dois quilos de refinamento republicano e o mais atrevido par de peitinhos de

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toda a Nova Inglaterra, de New Canaan, Connecticut, Sarah Abbott Maulsby! Parece-me, doutor, que, à medida que vou passando na vara essas garotas, também vou fuçando as suas origens — é como se trepando acabasse descobrindo a América. Conquistando a América — talvez fique melhor assim. Colombo, Capitão Smith, Governador Winthrop, General Washington — e agora Portnoy. É como se o meu óbvio destino fosse seduzir uma garota de cada um dos quarenta e oito Estados. Quanto às mulheres do Alasca e do Havaí, não tenho preferências, nenhuma dívida a pagar, nenhum cupom para receber, nenhum sonho para apaziguar — o que representam elas para mim, um punhado de esquimós e de orientais? Nada disto: eu sou um filho da década de 40, do rádio, da Segunda Guerra Mundial, das oito equipes de uma liga, dos quarenta e oito Estados de um país. Sei toda a letra do Hino dos Fuzileiros Navais, de As Carretas Vão Rolando e da Canção do Corpo Aéreo do Exército. Sei a canção do Corpo Aéreo da Marinha: "Icem as âncoras para o céu/Somos os marinheiros do ar/Navegamos por toda a parte. . ." Sou capaz até de cantar para o senhor a canção do batalhão de construção naval. Vamos, Dr. Spielvogel, cite um setor qualquer de serviço, que eu lhe cantarei a canção correspondente a ele! Por favor, permita-me; afinal de contas, o dinheiro é meu. Vestindo os nossos casacos, lembro-me bem, sentávamo-nos no chão de cimento, as costas contra as sólidas paredes dos corredores do porão da minha escola, cantando em coro para manter elevado o nosso moral, até que soasse o sinal de tudo limpo: as canções Johnny Zero, Louve a Deus e Passe a Munição, é só dizer o nome de uma delas, que, se for em louvor da nossa bandeira, eu sei, palavra por palavra! Sim, sou um filho da época dos exercícios de defesa antiaérea, doutor; lembro-me de Corregidor, da Cavalgada da América e daquela bandeira, tremulante no seu mastro, sendo erguida naquele ângulo angustiante, sobre a sangrenta Iwo Jima. Colin Kelly foi abatido em chamas quando eu tinha oito anos; Hiroxima e Nagasáqui foram-se numa lufada, uma semana depois de eu ter completado doze. Assim, transcorreu o âmago da minha infância, quatro anos odiando Tojo, Hitler e Mussolini e amando esta república corajosa e decidida! Desarraigando o meu coraçãozinho judaico pela nossa democracia americana! Então, nós ganhamos, o inimigo está morto, num beco de Wilhelms-trasse, morto porque eu rezei para isso — e agora sei o que está acontecendo comigo. E a minha carta de pracinha — carne americana da legítima! A pomba dos país-que-é-o-teu! Meu voto de fidelidade à cona dos Estados Unidos da América e à república sobre a qual se ergue: Davenport, Iowa! Dayton, Ohio! Schenectady, Nova Iorque, e a vizinha Troy! Fort Myers, Flórida! New Canaan, Connecticut! Chicago, Illinois! Albert Lea, Minnesota! Portland, Maine! Moundsville, West Virgínia! Doce terra de rabo shikse, é a ti que eu canto! Das montanhas, As pradarias, Aos oceanos, braneos-da-minha-espuuuuma! Deus salve a A-mé-ri-caaa! Meu lar, DOCE LAAAR! Imagine o que significou para mim saber que gerações de Maulsbys tinham sido enterradas num cemitério de Newburyport, Massachusetts, e gerações de Abbotts em Salem. Terra onde morreram meus antepassados, terra que é o orgulho dos Peregrinos. .. Exatamente. Ah, e tem mais. Tratava-se de uma moça cuja mãe ficava arrepiada ao ouvir as palavras "Eleanor Roosevelt", que saltara, ela própria, nos joelhos de Wendell Wilkie, em Oboé Sound, Flórida, em 1942 (enquanto meu pai rezava por Franklin Delano Roosevelt nas Grande Datas (Uma das duas grandes datas judaicas: Rosli Hashanah ou Yom Kippur. - N. do T.) e minha mãe abençoava-o diante das velas da noite de sexta-feira). O senador de Connecticut tinha sido companheiro de quarto do seu pai em Harvard, e o irmão, "Gordo", formado em Yale, era da Bolsa de Nova Iorque e jogava pólo (isto mesmo, aquele que é disputado de cima do cavalo!) nas tardes de sábado, algures em Westchester County, como sempre fizera desde os tempos de universidade. Ela poderia ter sido uma Lindabury, sabe? Filha do patrão do meu pai! Aí estava uma garota que sabia velejar, comer a sobremesa utilizando dois talheres de prata (o senhor devia tê-la visto manipular um pedaço de bolo) com a faca e a colher — parecia uma chinesa manejando pauzinhos! Que habilidades aprendera no distante Connecticut! Atividades que beiravam o exótico e até mesmo a proibição. Ela infringia com a maior naturalidade e eu ficava tão abalado (haveria mais o que contar a respeito) quanto Desdêmona, ao ouvir falar dos antropófagos. Deparei com um recorte de jornal no seu álbum, de uma coluna intitulada "Uma debutante por dia", que dizia: "SARAH ABBOTT MAULSBY — Os patos, as codornizes e os

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faisões que tratem de fugir de New Canaan este outono, pois Sally, a filha do Sr. e Sra. Edward H. Maulsby, de Greenley Road, está treinando para a estação de caça ligeira. A caça. . .", ela sabe manejar uma espingarda, doutor, "... a caça é um dos passatempos ao ar livre de Sally. Gosta também de montar e, neste verão, pretende experimentar suas habilidades de pesca. .." — ouça isto que é de interessar qualquer um — "pretende experimentar suas habilidades de pesca nos espécimes que nadam em Windview, a residência de verão da sua família." O que Sally não podia fazer era me chupar. Atirar nuns patinhos, está muito bem, chupar meu cacete está além de suas forças. Lamentava muito, disse ela, já que se tratava de algo que me atingia tanto, mas não tencionava experimentar tal coisa. Eu não deveria considerar aquilo como uma afronta pessoal, explicou, pois nada tinha a ver comigo, individualmente. . . Ah, não tinha? Uma ova, filhota! O que mais me enfurecia era exatamente minha crença de que estava sendo alvo de discriminação. Meu pai não subia na Boston & Northeastern precisamente pela mesma razão por que Sally Maulsby não se dignava em cair de boca sobre mim! Onde andava a justiça neste mundo? Onde andava a Liga Antidifamação B'nai B'rith! "Então faço com você", declarei. A "Peregrina" encolheu os ombros, dizendo-me amavelmente: "Não precisa fazê-lo. . . Você sabe disto. Se não tem vontade. . ." "Ah, mas eu tenho vontade, não é questão de 'ter de'. Eu quero fazer." "Bom", respondeu ela, "pois eu não quero." "Mas por que não?" "Porque não quero." "Ora bolas, isto é resposta de criança, Sarah — 'porque não quero'! Dê-me um motivo!" "Eu. . . simplesmente não quero, eis tudo." "Mas isto nos traz de volta ao por quê. Por quê?" "Alex, eu não posso. Simplesmente não posso." "Dê-me apenas um bom motivo!" "Por favor", retrucou ela, sabedora dos seus direitos, "não creio que seja obrigada a isto." Não, ela não era obrigada, pois de qualquer modo a razão era bem clara para mim: Porque você não sabe singrar na direção do vento, nem tampouco bandear uma vela, porque jamais possuiu trajes a rigor ou compareceu a um cotilhão. . . Sim, senhor, se eu fosse algum goy grandalhão e louro, num traje de montaria cor-de- rosa e botas de caça de cem dólares, não se preocupe, ela teria caído de boca no meu pau, tenho certeza! Enganei-me. Passei três meses fazendo pressão no fundo do seu crânio (deparando com uma resistência surpreendente, uma exibição de teimosia impressionante e até mesmo tocante, por parte de uma pessoa tão mansa e pouco contestadora); durante três meses, ataquei-a com argumentos e assediei-a todas as noites. Certa ocasião, então, ela me convidou a ir ouvir o Quarteto de Cordas de Budapeste tocando Mozart, na Biblioteca do Congresso. Durante o último movimento do Quinteto para Clarineta, ela segurou a minha mão, suas faces começaram a brilhar e quando regressamos ao seu apartamento e fomos para a cama, Sally disse: "Alex. . . eu o farei." "Fará o quê?" Ela, porém, desapareceu debaixo das cobertas: chupando-me! Isto é, ela tomou minha vara na boca, reteve-a durante seis segundos, manteve a minha surpresa coisinha lá, doutor, um termômetro. Afastei o cobertor: aquilo eu tinha de ver! Sentir, não havia muito o que sentir, mas ver! Só que Sally já tinha terminado, movendo o meu membro para junto do seu rosto, como se fosse a alavanca de câmbio do seu Hilman-Minx. E havia lágrimas no seu rosto. Fiz a coisa — anunciou ela. Sally, oh, Sarah, não chore. Mas eu fiz mesmo, Alex. . . .Quer dizer — murmurei — que é só isto? Como — arquejou ela —, você quer mais? Bem, para ser franco, um pouco mais. Quer dizer, para ser sincero com você, não seria de desprezar. . . Mas está ficando grande. Vou ficar sufocada. JUDEU ASFIXIA DEBUTANTE COM A PIROCA. Diplomada de Vassar vítima de estrangulamento em Georgetown; falso advogado detido. Se você respirar, não sufoca. Sufoco, sim, vou engasgar. . . Sarah, a melhor defesa contra a asfixia é respirar. É só respirar e pronto, nem mais, nem menos. Bem que ela tentou, a abençoada criatura. Mas terminou engasgando. Eu o avisei — gemeu ela. Mas você não estava respirando. Não posso, com isto na minha boca.

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Respire pelo nariz. Como se estivesse nadando. Mas não estou. FAÇA COMO SE ESTIVESSE! — sugeri, e, embora fizesse outra valente tentativa, subiu à superfície segundos mais tarde, num paroxismo de tosse e lágrimas. Tomei- a então nos braços (esta garota adorável e dócil! Oh, doce como Natacha em Guerra e Paz! Uma jovem e meiga condessa!). Embalei-a, provoquei-a, provoquei- lhe o riso, disse-lhe pela primeira vez: "Amo você também, minha querida", mas é claro que se tornara mais que evidente para mim que, a despeito de todas as suas múltiplas qualidades e encantos — devoção, beleza, graça de gazela, posição na história americana —, jamais poderia ter algum "amor" pela "Peregrina". Era intolerante com os seus defeitos, ciumento de suas habilidades, ressentido quanto à sua família; não, não havia aí muita possibilidade de amor. Não, Sally Maulsby era apenas algo de bom que um filho fizera para o seu pai. Uma pequena vingança contra o Sr. Lindabury, por todas aquelas noites e domingos que Jack Portnoy passara fazendo cobranças no bairro negro. Uma pequena gratificação arrancada da BOSTON & NORTHEASTERN, por todos aqueles anos de serviço e de exploração.

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NO EXÍLIO Nas manhãs de domingo, quando o tempo está bastante quente, vinte homens da vizinhança (isto nos dias de poucos centros de campo) disputam um torneio de softball em sete turnos, começando às nove da manhã e terminando cerca de uma da tarde, com apostas de um dólar por cabeça para cada partida. O juiz é o nosso dentista, o velho Dr. Wolfenberg, detentor de diploma de faculdade das redondezas — de um curso noturno de High Street, mas que, para nós, equivalia a Oxford. Entre os jogadores está o nosso açougueiro, o seu irmão gêmeo, que é o nosso bombeiro, o vendeiro, o dono do posto onde meu pai compra gasolina — todos eles de idades oscilando entre os trinta e cinqüenta, embora eu pense neles não em termos de anos, mas sim como "os homens". Enquanto esperam, até mesmo no quadrilátero, revolvem nas mandíbulas tocos úmidos de charutos. Não são garotos, veja bem, e sim homens. Barriga! Músculo! Antebraços pretos de cabelos! Cúpulas calvas! E, depois, as vozes que têm — verdadeiros canhões, de se ouvir da nossa varanda da frente, a um quarteirão de distância. Imagino que as cordas vocais dentro deles sejam da grossura de varais de roupa! Pulmões do tamanho de zepelins! Ninguém precisa dizer-lhes para cessarem de resmungar e falarem claramente; nunca! E as coisas atrozes que eles dizem! A conversa em campo não é «inversa, é peruagem, e (para este garotinho, que começa a aprender a arte do ridículo) muito hilariante; especialmente os insultos que emanam do homem que meu pai rotulou de "Russo Louco", Biderman, dono da confeitaria da esquina (e agência de apostas em cavalos de corrida), que tem um arremesso de cintura com uma "paradinha" antes; não apenas muito engraçado, como também muito eficaz. "Abracadabra", diz ele, e faz o seu lançamento arrasador. E está sempre mexendo com o Dr. Wolfenberg: "Um juiz cego destes, como é que pode ser dentista?" Uma tal idéia leva-o a dar murros na testa com a luva. "Toque o jogo pra frente, palhaço", grita o Dr. Wolfenberg, muito Connie Mack, no seu sapato furado de duas cores e chapéu panamá, "jogue logo, Biderman, senão vai ser expulso por insultar o juiz!" "Como é que eles ensinam na sua escola de dentistas, doutor? Pelo método Braille?" Enquanto isto, lá de fora do campo, ressoam os gracejos de alguém com mais aparência de mistura-dor de cimento do que de homem de cultura, o príncipe do mercado de produtos, Allie Sokolow. Pelo espaço de meio turno, as invectivas fluem na direção da base final, da sua posição bem de meio de campo; em seguida, quando chega a vez da sua equipe bater, ele se instala nas proximidades da primeira base e a torrente jorra ininterrupta na direção oposta, sem que nada do que sai tenha a ver com os contratempos reais da partida. Muito pelo contrário. Meu pai, quando não está trabalhando nas manhãs de domingo, vem assistir a alguns turnos comigo. Ele conhece Allie Sokolow (como também muitos dos jogadores) desde os tempos de garoto no Distrito Central, antes de conhecer minha mãe e mudar-se para Jersey City. Diz ele que Allie sempre foi assim, "um verdadeiro exibicionista". Quando Allie investe na direção da segunda base, berrando o seu palavreado de duplo sentido para a base final (onde ainda não se encontra nenhum batedor e o Dr. Wolfenberg lá está, apenas varrendo a base com uma vassourinha que ele faz para o jogo), a assistência delira: ri, bate palmas e grita: "Dá a bronca, Allie! Manda brasa, Sokolow!" E, invariavelmente, o Dr. Wolfenberg,

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que se leva mais a sério do que os amadores habituais na sua posição, sendo, além do mais, judeu alemão, ergue a mão, interrompendo uma partida já paralisada por Sokolow, e diz a Biderman: "Quer fazer o favor de pôr para fora de campo este maluco?" Como estou lhe dizendo, são uma turma cativante! Sento-me nas arquibancadas de madeira, junto' à primeira base, aspirando aquele áspero odor primaveril da minha luva de lateral — suor, couro e vaselina — e estourando de rir. Não consigo imaginar-me vivendo em outro lugar fora daqui. Por que partir, por que ir embora, quando aqui tenho tudo o que sempre hei de desejar? As zombarias, as brincadeiras, as diabruras, as simulações — tudo de brincadeira! Adoro isto! E, no entanto, por baixo de tudo, eles estão no negócio pra valer, com inteira convicção. Precisava vê-los no final dos sete turnos, na hora em que o dólar tem de mudar de mãos. Não venha dizer a mim que não é pra valer! Perder e ganhar não é brincadeira. . . E, no entanto, é! É isto o que mais me encanta. Por mais feroz que seja a competição, não conseguem dispensar as palhaçadas e peruagens. Fazer macaquices! Como Vou adorar crescer e me tornar um judeu! Viver para sempre no distrito de Weequahic, jogando softball na Avenida Chancellor, das nove às treze dos domingos, numa perfeita combinação de palhaço e competidor, sabichão peruador e perigoso rebatedor de bolas longas. Estou me lembrando de tudo isto onde? Quando? Enquanto o Capitão Meyerson está completando a sua última volta lenta sobre o aeroporto de Telavive. Tenho o rosto de encontro à janela. Sim, eu poderia desaparecer, penso eu, mudar meu nome, e nunca mais saberem de mim. Então, Meyerson inclina o avião do meu lado, e olho pela primeira vez o continente asiático, a seiscentos metros de altura sobre a terra de Israel, onde o povo judeu surgiu no mundo e onde me sinto atravessado peia recordação dos jogos domingueiros de sofíball em Newark. O casal idoso ao meu lado (os Solomons, Edna e Felix), que durante uma hora de vôo contaram-me tudo acerca dos seus filhos e netos em Cincinnati (acompanhado, é claro, de uma maleta cheia de amostras visuais), tocam-se mutuamente com o cotovelo para chamar a atenção um do outro, numa satisfação silenciosa. Chegam mesmo a cutucar alguns amigos do outro lado da passagem, um casal de Mount Vernon a quem acabaram de conhecer (os Perls, Sylvia e Bernie) e estes também tocam os cotovelos para espiar um jovem advogado judeu, alto, bonito (e solteiro! bom pretendente para a filha de alguém!), que começa de repente a chorar ao se aproximar do solo judaico. Entretanto, o que ocasionou estas lágrimas não é, como pensam os Solomons e Perls, um primeiro vislumbre do território nacional, a recompensa de um exilado, mas sim o som da minha voz de menino de nove anos em meus ouvidos — a minha voz, quero dizer, aos nove. Eu com nove anos! Rabugento, sem dúvida, careteiro, um pequeno respondão e birrento, a vozinha estridente, sempre com um furioso e exigente laivo Iamuriento de perpétuo descontentamento ressentido ("como se o mundo", diz minha mãe, "lhe devesse uma subsistência — aos nove anos de idade"), mas, também, risonho e brincalhão, não se esqueça: um entusiasta! um romântico! um mímico! um amante da vida aos nove anos! Fogoso, com aqueles sonhos simples, de convívio! "Vou até o campo", grito para a cozinha, com fibras de róseo salmão alojadas, como seda dental azeda, nos intervalos entre meus dentes, "vou até o campo, mãe", anuncio, martelando minha luva com o punhozinho cheirando a peixe, "voltarei lá pela uma hora. . ." "Espere um minuto. Que horas? Onde vai?" "Vou ao campo", berro — tenho muito o hábito de berrar para ser ouvido, é como estar furioso, sem sofrer as conseqüências — "... vou ver os homens!" E é esta a frase que me arrasa quando descemos em Eretz Yisroel (A Palestina. - N. do T.) ver os homens. Porque a verdade é que eu adoro esses homens! Quero crescer para me tornar um deles! Voltar para casa, para o almoço de domingo à uma da tarde, as meias suadas com o odor acre de vinte e um turnos de softball, roupas de baixo com cheiro de atleta e, no músculo do meu braço lançador, um leve latejar dos arremessos baixos e lindos que desfechei a manhã inteira, a fim de manter o adversário nos caminhos da base. Sim, e mais o cabelo desgrenhado, os dentes ásperos de areia, os pés exaustos, a barriga doendo de tanto rir; em outras palavras: sentindo-me esplendidamente um robusto judeu gloriosamente esfalfado — sim, para casa eu vou, para que me ressuscitem... Ao encontro de quem? De minha mulher e de meus filhos, de minha família, ali mesmo no distrito de Weequahic! Barbeio-me e tomo um banho de chuveiro — riachos de água escorrem-me, pardos e

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imundos, do couro cabeludo. Ah, como é bom! Sim, é um verdadeiro prazer ficar ali parado, quase morrendo escaldado na água quente. Parece-me tão másculo converter a dor em prazer. Em seguida, enfio-me num par de elegantes slacks e numa camisa "gaúcha" recém-chegada da lavanderia — perfeito! Assobio uma canção popular, admiro meus bíceps, passo uma flanela nos sapatos, para que fiquem brilhando. Enquanto isto, meus filhos folheiam os jornais de domingo (lendo com olhos da cor exata dos meus), rolando, às risadas, no tapete da sala de estar, e minha mulher, a Sra. Alexander Portnoy, está pondo a mesa na sala de jantar — teremos meu pai e minha mãe como convidados. Vão chegar a qualquer momento, como fazem todos os domingos. Um futuro, sabe? Um futuro simples e satisfatório! Várias partidas de softball exaustivas e estimulantes para gastar a força do meu corpo — isto pela manhã. Depois, à tarde, o transbordante, caloroso repasto da vida familiar e, à noite, três horas a fio do melhor desfile de diversão radiofônica do mundo: sim, da mesma forma como eu me deliciava com as viagens de Jack Benny até a sua adega na companhia do meu pai, as conversas de Fred Allen com a Sra. Nussbaum e as de Phil Harris com Frankie Remley, também os meus filhos se deliciarão com elas juntamente comigo — e, assim, até a centésima geração. E então, terminado o Kenny Baker, passo duas voltas na chave das portas da frente e dos fundos, apago todas as luzes (verifico e torno a verificar, como faz meu pai, o fechamento do registro de gás do fogão, a fim de que as nossas vidas não nos sejam roubadas durante a noite). Dou um beijo de boa noite na minha linda filha sonolenta e no meu inteligente filho sonolento e, nos braços da Sra. A. Portnoy, esta mulher bondosa e meiga (que na minha modesta e açucarada fantasia é inidentificável), apago os incêndios do meu abundante prazer. Pela manhã, dirijo-me ao centro de Newpark, ao Tribunal de Justiça de Essex County, onde passo minhas jornadas de trabalho à cata de justiça para os pobres e oprimidos. Nossa classe de oitavo grau visita o Tribunal de Justiça, a fim de examinar a arquitetura. Naquela noite, em casa, escrevo no meu álbum de autógrafos de formatura, novinho em folha, embaixo do SEU LEMA FAVORITO: "Não pise no oprimido." MINHA PROFISSÃO FAVORITA? "Advogado." MEU HERÓI FAVORITO? "Tom Paine e Abraão Lincoln." Lincoln está sentado do lado de fora do tribunal (na estátua de bronze de Gutzon Borblum), com um ar trágico e paternal: vê- se bem como está preocupado. A estátua de Washington, de pé, ereto e autoritário, à frente do seu cavalo, domina Broad Street: é um trabalho de J. Massey Rhind (anotamos nos nossos cadernos» este segundo nome, tão incomum para um escultor); nosso professor de arte diz que as duas estátuas são o "orgulho da cidade". Dirigimo-nos, aos pares, para ver as pinturas no Museu de Newark. Washington, devo confessar, deixa-me indiferente. Talvez seja por causa do cavalo, porque está encostado num cavalo. De qualquer modo, é tão obviamente um goy. Mas Lincoln! Seria capaz de chorar. Olhem para ele, ali sentado, tão oysgemit-chet, (Fatigado. - N. do T.). Como ele trabalhou pelos oprimidos! — como também o farei! Um bom garotinho judeu? Façam-me o favor, sou o melhor garotinho judeu de todos os tempos! Basta ver as minhas fantasias, como são doces e redentoras! Gratidão aos meus pais, lealdade à minha tribo, devoção à causa da justiça! Então? O que há de errado? Trabalho duro numa profissão idealista; jogos disputados sem fanatismo ou violência, jogos disputados com gente da mesma mentalidade e com risos, complacência familiar e amor. O que havia de errado em acreditar em tudo isto? O que foi feito do bom senso que eu tinha aos nove, dez, onze anos de idade? Como vim a ser inimigo e tão severo crítico de mim mesmo? Tão sozinho! Oh, tão sozinho! Nada senão o eu! Trancado em mim! Sim, tenho de perguntar a mim mesmo (enquanto o avião me leva — acredito eu — para longe do meu algoz), o que foi feito dos meus propósitos, daqueles objetivos decentes e proveitosos? Lar? Não tenho nenhum. Família? Não! Coisas que eu poderia ter mediante um estalar de dedos. . . por que não estalá-los, então, e prosseguir com a minha vida? Não, ao invés de pôr meus filhos para dormir e ir deitar ao lado de uma esposa fiel (a quem eu também seria fiel), levei para a cama comigo em duas noites diferentes — coinstantaneamente, conforme dizem nos bordéis — uma gorda prostitutazinha italiana e uma manequim americana, analfabeta e desequilibrada. E isto nem chega a corresponder à minha idéia de uma boa diversão, com os diabos! E qual é ela? Já lhe disse, em caráter definitivo: é ficar em

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casa ouvindo Jack Benny com os meus filhos! Criando filhos inteligentes, adoráveis e robustos! Protegendo alguma bondosa mulher! Dignidade! Saúde! Amor! Trabalho! Inteligência! Confiança! Decência! Jovialidade! Compaixão! Que diabo me importam os sensacionalismos sexuais Como posso me atrapalhar todo, assim, com uma coisa tão simples, tão tola, tão nojenta! Que absurdo acabar apanhando doença venérea! Na minha idade! Mas disto tenho certeza: alguma coisa apanhei daquela Lina! É só uma questão de esperar, que o cancro aparece. Mas não esperarei, não posso: Em Telavive, antes de mais nada, um médico, antes que o cancro ou a cegueira se instalem! E, agora, quanto à garota morta lá no hotel? Pois ela já deve ter realizado o gesto, estou certo. Deve ter-se atirado da janela, de calcinhas; ou entrou mar adentro, afogando-se, usando o menor biquíni do mundo. Não, nada disso. Vai ver que acabou tomando cicuta nas sombras enluaradas da Acrópole com o seu vestido de noite Balenciaga! Aquela miserável doidivanas, exibicionista, suicida! Não se incomode; quando ela fizer isso, será algo fotografável, sairá parecido com um anúncio de roupa branca de senhoras! Lá estará ela, como de costume, na seção domingueira das lojas — só que morta! Devo voltar atrás, antes que venha a ter para sempre na consciência este ridículo suicídio! Devia ter telefonado para Harpo! Nem pensei nisto — tratei de sair correndo. Devia tê-la posto ao telefone para falar com o seu médico. Mas teria ele falado? Duvido! Aquele maldito mudo tem que falar, antes que ela exerça sua vingança irreversível! MODELO CORTA A GARGANTA NO ANFITEATRO. Medéia interrompida por suicídio. . . e publicarão o bilhete que encontrarão, na certa, numa garrafa enfiada na sua pomba. 'Alexander Portnoy é o responsável. Forçou-me a dormir com uma prostituta e depois recusou-se a fazer de mim uma mulher honesta. Mary Jane Reed." Ainda bem que a burra não sabe soletrar! A coisa será grego para aqueles gregos! Esperemos. Fugindo! Em fuga, escapando novamente — de quê? De alguém que me faria um santo! O que não sou, não quero, nem pretendo ser! Não, qualquer sentimento de culpa de minha parte é simplesmente cômico! Não quero ouvir falar nisto! Se ela se matar. . . mas não é o que pretende fazer. Não, há de ser mais medonho ainda: irá telefonar ao prefeito! É por isso que estou fugindo! Mas ela não o fará. É capaz, porém. Há de fazê-lo! É mais do que provável que já o tenha feito. Lembra-se? Vou desmascará-lo, Alex. Farei um chamado de longa distância para John. Telefonarei para Jimmy Breslin. E é bastante maluca para fazê-lo! Breslin, aquele tira! O gênio das investigações! Oh, Jesus, que ela esteja morta, então! Pule, sua puta ignorante e destruidora — é melhor que seja você do que eu! Não há dúvida: é só ela começar a telefonar para as agências de notícias. Estou vendo meu pai sair, depois do jantar, para ir até a esquina comprar o Newark News — e dar com a palavra ESCÂNDALO, impressa em letras garrafais por cima do retrato do seu querido filho! Ou então, se ligar para o noticiário das sete horas, assistir ao correspondente da CBS em Atenas entrevistar a "Macaca" na sua cama de hospital. "Portnoy, isto mesmo. P maiúsculo. Depois o. Em seguida, acho que tem R. Oh, não consigo me lembrar do resto, mas juro sobre a minha pomba molhada, Sr. Rudd, como ele me obrigou a dormir com uma prostituta!" Não, não estou exagerando: reflita um momento sobre o caráter dela, ou sobre a ausência do mesmo. Lembra-se de Las Vegas? Lembra-se do seu desespero? Poderá ver, então, que não era apenas a minha consciência me punindo: não, qualquer que fosse a vingança que eu imaginasse, ela poderia imaginá-lo também. E há de fazê-lo ainda! Acredite-me, ainda não terminamos de ouvir falar em Mary Jane Reed. Eu devia salvar a sua vida — e não o fiz. Ao invés disso, obriguei-a a dormir com prostitutas! Portanto, não pense que deixaremos de ouvir falar dela! E, levando-me a me castigar de novo com pontapés no traseiro, ali está, todo azul, abaixo de mim, o mar Egeu. O Egeu da "Abóbora"! A minha poética garota americana! Sófocles! Há tanto tempo! Oh, "Abóbora", querida, diga aquilo de novo! Por que haveria eu de querer uma coisa destas? Alguém que se conhecia muito bem! Tão intacta psicologicamente, a ponto de não precisar de salvação ou redenção de minha parte! Nem de conversão à minha fé gloriosa! A poesia que ela costumava ler para mim em Antioch, a educação que ela me dava em literatura, uma perspectiva inteiramente nova, uma compreensão da arte e do processo artístico. . . oh, por que a deixei escapar! Não posso acreditá-lo — só porque não quis converter- se ao judaísmo? "A eterna nota de tristeza. . ." "O turvo fluxo e refluxo da miséria humana..." Só que, será isso: miséria humana? Pensei que iria ser mais sublime! Sofrimento nobilitante!

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Sofrimento significativo — algo talvez na linha de Abraão Lincoln. Tragédia, e não farsa! O que eu tinha em mente era algo mais sofocliano. O Grande Libertador etcétera e tal. Jamais me passou pela cabeça, certamente, que iria acabar tentando libertar da escravidão tão-somente a minha vara. DEIXEM MEU TROÇO LIVRE! Eis o lema de Portnoy. Eis a história de minha vida, resumida em quatro heróicas palavras imundas. Que caricatura! Minha política descendo toda para o cacete! ARTISTAS ESPORRADORES DO MUNDO, UNI-VOS! NADA TENDES A PERDER, AFORA O VOSSO CÉREBRO! Que monstro eu sou! Não gosto de ninguém nem de nada! Prestes a tornar-se o Profumo de John Lindsay! Assim parecia, uma hora após a saída de Atenas. Telavive, Jaffa, Jerusalém, Ber-Sheva, mar Morto, Sedom, Ein Gedi, e depois em direção ao norte, para Cesaréia, Haifa, Akko, Tiberíades, Safed, a alta Galiléia. . . e sempre tudo mais vago do que real. Não que eu andasse atrás de sensações, tampouco. Fartara-me do inacreditável junto à minha companheira, na Grécia e em Roma. Não, para compreender de alguma forma o impulso que de início me levara a realizar o vôo da El Al, qual seja: o de, principiando como um desnorteado fugitivo, transformar-me novamente num homem — com controle da minha vontade, consciente das minhas intenções, agindo como desejava e não como devia — comecei a viajar pelo país, como se a excursão fosse empreendida deliberadamente, com premeditação, desejo e por motivos louváveis, ainda que convencionais. Sim, eu teria (agora que me encontrava inexplicavelmente ali) o que se chama uma experiência educacional. Iria aperfeiçoar- me; o que constitui o meu caminho, afinal de contas. Ou pelo menos assim era, não? Não é por isso que ainda vivo lendo com um lápis na mão? Para aprender? Tornar-me melhor? (Em relação a quem?) Por isso, estudei mapas na cama, comprei textos históricos e arqueológicos e li-os até durante as refeições, contratei guias, aluguei carros — naquele calor sufocante, obstinadamente, pesquisei e vi tudo o que pude: túmulos, sinagogas, fortalezas, mesquitas, túmulos de santos, abrigos, ruínas, novas e antigas. Visitei as grutas do Carmelo, os vitrais de Chagall (eu e cem senhoras do Ha-dassah de Detroit), a Universidade Hebraica, as escavações de Bet She'an — percorri os verdes kib-butzim, as crestadas terras áridas, os rudes povoados de fronteira nas montanhas. Cheguei mesmo a subir o Masada por trilhas estreitas, sob o intenso fogo da artilharia solar. Tudo o que vi, achei que podia assimilar e compreender. Era história, natureza, arte. Até mesmo o Neguev, aquela alucinação, para mim pareceu real e pertencente a este mundo. Um deserto. Não, o incrível e estranho para mim, mais novo do que o mar Morto, ou mesmo que a dramática solidão do Tsin, onde,"durante uma soturna hora, vaguei à luz do sol calcinante por entre as rochas brancas que serviram de cenário (segundo leio no meu guia) por tanto tempo às perambulações das tribos de Israel (e onde apanhei como recordação — tenho-a, de fato, aqui no meu bolso — a pedra que Zipporah usou para circuncidar o filho de Moisés, segundo me informou o meu guia), o que conferiu à minha estada um ar absurdo foi um fato simples, mas (para mim) inteiramente implausível: estou num país judeu. Neste país todos são judeus. O meu sonho começa logo que desembarco. Encontro-me num aeroporto onde nunca estive antes e todas as pessoas que vejo — passageiros, aeromoças, vendedores de passagens, carregadores, pilotos, motoristas — são judeus. Será tão diferente assim dos sonhos que os seus sonhadores pacientes relatam? Será tão diferente do gênero de experiência que se tem dormindo? Mas, acordado, quem jamais ouviu falar em tal coisa? As inscrições nas paredes são judaicas — caracteres judaicos! A bandeira é judaica. Os rostos dos meus vizinhos, tios, professores, pais dos meus amigos de infância. Rostos como o meu! Só que se movem diante de um fundo de paredes brancas, sol resplandecente e espinhenta folhagem tropical. E não é Miami Beach, tampouco. Não, são rostos da Europa oriental, mas à distância de uma pedrada da África! Nas suas bermudas, os homens me fazem lembrar os conselheiros-chefes dos acampamentos de verão judaicos, onde trabalhei durante as férias universitárias — só que isto não é acampamento de verão, tampouco. É a pátria! Estes não são professores de ginásio que saem pelas montanhas de Hopatcong, em Nova Jersey, munidos de blocos de notas e um apito. Esses são (não há outra palavra a empregar!) os nativos! De volta! Aqui foi onde tudo começou! Estiveram longe, du.ante um longo período de férias, eis tudo! Ei, aqui nós

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somos os WASPS! O meu táxi passa por uma grande praça cercada de cafés de beira de calçada, como os de Paris ou Roma. Só que estão apinhados de judeus. O táxi ultrapassa um ônibus. Olho para dentro dele. Mais judeus. Inclusive o motorista. Inclusive os guardas, adiante, dirigindo o tráfego! No hotel, peço um quarto ao recepcionista. E ele tem um fino bigode e fala inglês como se fosse Ronald Colman. No entanto, também é judeu. E agora o drama aumenta. Passa da meia-noite. No começo da noite, a calçada junto ao mar era um alegre e animado acotovelamento de judeus — judeus tomando sorvetes, judeus bebendo refrigerantes, judeus conversando, rindo, caminhando juntos de braços dados. Mas agora, quando inicio meu regresso para o hotel, acho-me praticamente sozinho. No final da calçada que devo ultrapassar a fim de alcançar o meu hotel, vejo quatro jovens fumando cigarros e conversando. Jovens judeus, está claro. Ao me aproximar deles, percebo que aguardavam a minha chegada. Um deles se adianta e dirige-me a palavra em inglês. "Que horas são?" Olho para o meu relógio e verifico que não me vão permitir a passagem. Vão me assaltar! Mas como pode ser isto? Se são judeus e eu sou judeu, que motivo poderá existir para me quererem fazer algum mal? Preciso dizer-lhes que estão cometendo um erro. Certamente não hão de querer realmente me tratar como um bando de anti-semitas. "Com licença", digo, e esgueiro-me por entre eles, com uma expressão severa no meu rosto pálido. Um deles grita: "Ei, senhor, que horas. . . ?", e eu, então, apresso meu passo e continuo a caminhar rapidamente para o hotel, incapaz de compreender por que teriam querido me assustar tanto, já que somos todos judeus. Difícil de interpretar, não acha? No meu quarto, tiro rapidamente as calças e as cuecas e, à luz de um abajur, examino meu pênis. Verifico que o órgão se encontra sem mancha alguma e sem sinais aparentes de doença, mas, mesmo assim, não me sinto aliviado. Pode ser que em certos casos (talvez os mais graves) jamais se apresente uma manifestação exterior da infecção. Ou, mais exatamente, os efeitos debilitantes têm lugar internamente, ocultos e incontidos, até que por fim o progresso da doença se torna irreversível, e o paciente está perdido. Pela manhã, desperto com o ruído embaixo da minha janela. São apenas sete horas, no entanto, quando olho para fora, vejo que a praia já está apinhada de gente. Ê uma visão surpreendente, numa hora tão matinal, especialmente porque é um dia de sábado e eu esperava que uma atmosfera de sabbath, repleta de devoção e solenidade, tomasse conta da cidade. Mas a multidão de judeus — mais uma vez! — é alegre. Examino o meu membro à luz forte da manhã e me sinto — outra vez — tomado de apreensão, ao descobrir que ele parece estar em perfeitas condições de saúde. Deixo o meu quarto e vou dar meus mergulhos no mar, em companhia dos felizes judeus. Banho-me no ponto em que a multidão é mais densa. Estou me divertindo num mar repleto de judeus joviais e travessos! Olhem só os seus membros judeus movendo-se através das águas judaicas! Vejam as crianças judias rindo, agindo como se fossem donas do lugar. . . O que era verdade! E o salva-vidas, outro judeu! De um extremo ao outro da praia, tão longe quanto a minha vista alcança, judeus — e mais outros vêm chegando, durante a bela manhã, como se brotassem de uma cornucópia. Estiro-me na areia, fecho os olhos. Lá em cima, ouço o ruído de um motor: nada há a temer, é um avião judeu. Embaixo de mim, a areia é quente: areia judaica. Compro um sorvete judaico de um vendedor judeu. "Não é uma grande coisa?", digo comigo mesmo. "Um país judeu!" Mas a idéia é mais facilmente expressa do que entendida; realmente não consigo captá-la. Alex no País das Maravilhas. À tarde, faço amizade com uma moça de olhos verdes e pele morena, que é tenente do Exército judaico. A tenente leva-me, à noite, para um bar na zona portuária. Os fregueses, diz ela, são na maioria estivadores. Estivadores judeus? Sim. Rio e ela me pergunta qual foi a graça. Sinto-me excitado com o seu corpo pequeno e voluptuoso, apertado no meio pelo largo cinturão caqui. Mas que coisinha mais decidida, sem senso de humor e senhora de si! Não sei se me deixaria fazer o pedido para ela, mesmo que eu falasse a língua local. "De que é que você gosta mais?", pergunta-me ela, após termos dado cabo cada um de nós de uma garrafa de cerveja judaica, "de tratores, escavadeiras ou tanques?" Rio novamente.

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Convido-a a ir ao meu hotel. Uma vez no quarto, lutamos, beijamo-nos, começamos a nos despir e prontamente perco minha ereção. "Está vendo", diz a tenente, como se confirmasse agora a sua suspeita, "você não gosta mesmo de mim." "Gosto sim", respondo, "gostei de você desde que a vi no mar, lisa como uma foquinha. . .", mas, em seguida, envergonhado, frustrado e desarmado pela minha detumescência, estouro: "Ê que sou capaz de estar com uma doença, sabe? Não seria justo." "Também acha isto engraçado, não é?", sibila ela, raivosa, e, vestindo de volta o uniforme, retira-se. Sonhos? Se ao menos fossem sonhos! Mas eu não preciso de sonhos, doutor, eis por que quase nunca os tenho — ao invés deles, tenho a vida. Comigo tudo acontece em plena luz do dia! O desigual e o melodramático constituem o meu pão diário! As coincidências de sonhos, os símbolos, as situações terrivelmente cômicas, as banalidades esquisitamente ameaçadoras, os acidentes e as humilhações, os golpes de sorte ou de infelicidade bizarramente peculiares que os outros experimentam de olhos fechados, comigo é de olhos abertos! Quem mais o senhor conheceu, cuja mãe o houvesse ameaçado com a temível faca? Quem mais teve a sorte de ser tão diretamente confrontado com a ameaça de castração por intermédio de sua mãe? Quem mais, além de ter tido essa mãe, teve um testículo que não queria descer? Um maluco que precisou ser adulado, mimado, persuadido, dopado, tudo para que descesse e viesse viver no escroto, como um homem! Quem mais o senhor conhece que tenha quebrado uma perna correndo atrás de shikses? Ou que, na primeira vez com uma mulher, tenha esguichado no próprio olho? Ou que tenha encontrado uma macaca verdadeira nas ruas de Nova Iorque, uma garota louca por banana? Doutor, talvez . os outros pacientes sonhem — comigo, tudo acontece. Tenho uma vida sem conteúdo latente. A coisa do sonho acontece.' Doutor: não consegui que ele ficasse duro no Estado de Israel! Que tal este simbolismo, hem? Duvido alguém arranjar coisa melhor do que isto, ainda que de brincadeira! Incapaz de ter uma ereção na Terra Prometida! Pelo menos na hora em que precisava, na hora em que queria, na hora em que tinha pela frente algo mais desejável do que a minha mão para segurá-lo. Mas, como logo se vê, é impossível enfiar pudim de - tapioca em alguma coisa. Pudim de tapioca, é o que estou oferecendo a esta garota. Bolo de gelatina! Um trocinho derretido, do tamanho de um dedal. Enquanto isso, aquela tenentezinha segura de si, hasteando tão orgulhosamente as tetas israelenses, pronta a ser cavalgada por algum comandante de tanque! Depois a coisa aconteceu de novo, só que pior. Minha derrocada e humilhação final — Naomi, "Abóbora" judia, a heroína, aquele pedaço de garota robusta, ruiva, sardenta, ideológica! Apanheia-a tomando carona até Haifa, vindo de um kibbutz próximo à fronteira libanesa, onde fora visitar os pais. Tinha vinte e um anos, quase um metro e oitenta, dando a impressão de que ainda estava crescendo. Seus pais eram sionistas de Filadélfia, que tinham vindo para a- Palestina logo antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial. Após completar seu serviço militar, Naomi decidira não voltar para o kibbutz onde nascera e fora criada, preferindo juntar-se a uma comunidade de jovens israelenses nativos, entregues à tarefa de retirar blocos de rocha vulcânica de um árido povoado nas montanhas que dominavam a fronteira com a Síria. O trabalho era duro, as condições de vida, primitivas, e havia sempre o perigo de guerrilheiros sírios se infiltrarem à noite no acampamento, com granadas de mão e minas terrestres. Ela adorava aquilo. Uma garota admirável e valente! Sim, uma "Abóbora" judia, sem dúvida. Estou tendo uma segunda oportunidade. É interessante. Associo-a instantaneamente com a minha "Abóbora" perdida, quando pelo tipo físico ela é igualzinha à minha mãe. Cor, tamanho, até mesmo o temperamento, conforme se patenteou — uma verdadeira descobridora de erros, uma crítica profissional da minha pessoa. Os seus homens têm de ser perfeitos. Mas fico cego a tudo isto: a semelhança entre esta garota e o retrato de minha mãe no anuário do ginásio é algo que nem chego a perceber. Veja quão transtornado e histérico eu estava em Israel. Alguns minutos depois de tê- la apanhado na estrada, estava me indagando seriamente: "Por que não me caso com ela e fico por aqui? Por que não vou para as montanhas e começo uma vida nova?" Imediatamente, iniciamos uma conversa séria sobre a humanidade, pontilhada, por parte dela, de uma série de lemas não muito diversos dos da minha adolescência. Uma sociedade justa. A luta geral. A liberdade individual. Uma vida socialmente produtiva. Com que naturalidade ela revelava seu

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idealismo, pensei. Sim, era este, na verdade, o meu tipo de garota — inocente, bondosa, suculenta, simples e inviolada. Claro! Não quero saber de estrelas de cinema, manequins, prostitutas, ou qualquer combinação delas todas. Não almejo uma vida de extravagâncias sexuais, ou a continuação deste masoquismo em que tenho vivido mergulhado. Não, quero é simplicidade, saúde, quero é ela. Ela falava inglês com perfeição, se bem que com algo de livresco — um laivo de sotaque europeu generalizado. Procurei nela sinais da garota americana que teria sido, se os pais não houvessem deixado Filadélfia. Poderia ter sido como minha irmã, uma outra garotona de ideais elevados. Posso até mesmo imaginar Hannah emigrando para Israel, se não tivesse encontrado Morty para salvá-la. Mas quem haveria de me salvar? Minhas shikses? Não, não, essas eu é quem salvo. Não, está claro que a minha salvação é esta Naomi! Usa o cabelo como uma criança, em duas trancas compridas — um estratagema, sem dúvida, uma técnica onírica, se é que já houve alguma, destinada a impedir-me de evocar imediatamente aquele retrato de ginásio de Sophie Ginsky, a quem os meninos chamavam de "Ruiva", que haveria de ir longe com os seus grandes olhos castanhos e a sua inteligência. Ã tarde, após passar o dia (a pedido meu) mostrando-me a antiga cidadã árabe de Akko, Naomi suspendeu as trancas, enrolando-as em torno da cabeça numa rosca dupla, como uma avó. E lembro-me de ter pensado: "Quão diferente da minha amiga modelo, com todas aquelas perucas e as horas passadas no cabeleireiro. Como a minha vida iria mudar! Um homem novo — com esta mulher!" Os seus planos consistiam em acampar à noite numa cama-saco. Saíra do povoado para uma semana de férias, viajando com auxílio das poucas libras que a sua família lhe pudera dar como presente de aniversário. Os mais fanáticos entre os seus companheiros jamais teriam aceitado um presente desses e, provavelmente, reprovariam que ela o tivesse feito. Reproduziu-me uma discussão havida no kibbutz dos seus pais, quando ainda era menina, sobre a questão de algumas pessoas usarem relógio e outras não. Após várias reuniões arrebatadas dos membros do kibbutz, ficou decidido que os relógios seriam usados em rodízios de três meses cada um. Durante o dia, ao jantar, e em seguida, enquanto percorríamos a romântica amurada do porto de Akko, naquela noite, contei-lhe a minha vida. Convidei-a a regressar comigo e ir tomar um drinque no hotel, em Haifa. Ela disse que iria, pois tinha muito o que dizer acerca da minha história. Quis beijá-la então, mas pensei: "E se eu tiver mesmo algum tipo de doença venérea?" Ainda não fora ver um médico, em parte devido à relutância de confessar a um estranho ter tido contato com uma prostituta, mas, principalmente, porque não observara sintoma algum. É claro que eu não tinha nada, nem precisava de médico. Mesmo assim, quando me voltei para convidá-la para ir ao hotel, resisti a um impulso de colar meus lábios à sua pura boca socialista. A sociedade americana — disse ela, largando no chão a mochila e a cama-saco, e continuando o sermão que iniciara enquanto circundávamos a baía até chegar a Haifa — não apenas aprova relações vergonhosas e desonestas entre os homens, como também as estimula. Pode-se negar isto? Não. Rivalidade, competição, inveja, ciúme, tudo o que é malévolo no caráter humano é alimentado pelo sistema. Posses, dinheiro e propriedade, tais são os corruptos padrões através dos quais vocês medem a felicidade e o sucesso. Enquanto isto — disse ela, encarapitando-se, de pernas cruzadas sobre a cama — grande parte da população vive despojada dos preliminares requisitos para uma vida decente. Também isto é verdade, não? Tudo porque o seu sistema é basicamente explorador, intrinsecamente degradante e injusto. Conseqüentemente, Alex — ela usava o meu nome como o faria uma professora severa, com um toque de advertência —, jamais poderá haver algo que se assemelhe à igualdade genuína num tal meio. E isto é incontestável; você não pode deixar de concordar, se é que possui algum laivo de honestidade. "Por exemplo, o que conseguiu com os seus inquéritos sobre os programas de perguntas? Alguma coisa? Nada, segundo me parece. Você revelou a corrupção de alguns indivíduos fracos. Mas, quanto ao sistema que os treinou para a corrupção, sobre ele você não teve efeito algum. O sistema permaneceu inabalável, inalterado. E por quê? Porque, Alex — oh, aí vem ela de novo —, você mesmo é tão corrompido pelo sistema quanto o Sr. Charles Van Horn. [Ora bolas, sempre imperfeito! Droga!] Você não é o inimigo do sistema. Nem mesmo constitui uma ameaça ao sistema, como parece acreditar. É apenas um de seus agentes policiais, um empregado pago, um cúmplice.

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Perdoe-me, mas devo falar a verdade: você julga servir à justiça, mas é apenas um lacaio da burguesia. Vocês têm um sistema intrinsecamente explorador e injusto, intrinsecamente cruel e desumano, indiferente aos valores humanos; e a sua tarefa consiste em fazer tal sistema parecer legítimo e moral, agindo como se a justiça, como se os direitos humanos e a dignidade humana pudessem realmente existir em tal sociedade, quando é óbvio que tal coisa não é possível. "Você sabe, Alex — o que mais, agora —, você sabe por que não me preocupo acerca de quem usa relógio, ou quanto a aceitar cinco libras de presente dos meus 'prósperos' pais? Sabe por que tais argumentos são tolos e não tenho paciência com eles? Porque sei que intrinsecamente, entende bem, intrinsecamente! — claro que entendo! por mais estranho que pareça, esta é a minha língua nativa! —, intrinsecamente o sistema de que participo, voluntariamente, isto é de crucial importância também — voluntariamente!, é humano e justo. Uma vez que a comunidade é dona dos meios de produção, uma vez que todas as necessidades são supridas pela comunidade, uma vez que ninguém tem a oportunidade de acumular riqueza ou viver à custa do valor excedente do trabalho de outro homem, então, o caráter essencial do kibbutz está sendo mantido. Ninguém está desprovido de dignidade. No sentido mais amplo, existe igualdade. importa. — Naomi, eu amo você. Ela estreitou aqueles grandes olhos castanhos idealistas. Como é que você pode me "amar"? O que está dizendo? Quero casar com você. E é isto o que mais Bum, ela pulou em pé. Pobre do terrorista sírio que tentar apanhá-la de surpresa! O que há com você? Está pretendendo fazer alguma graça? Seja minha esposa. Mãe dos meus filhos. Todo cretino com uma porta e uma janela tem filhos. Por que não hei de tê-los? Sou o portador do nome da família! Você bebeu cerveja demais no jantar. Sim, acho que devo ir andando. Não vá! — E de novo disse àquela garota, que eu mal conhecia e de quem mesmo não chegava a gostar, o quanto estava apaixonado por ela. "Amor" — oh, chego a estremecer! — "amoooor", como se fosse invocar o sentimento mediante a palavra. Quando ela tentou se retirar, pus-me diante da porta. Implorei-lhe que não fosse embora deitar-se em alguma praia úmida, quando havia ali aquela enorme e confortável cama Hilton para nós dois partilharmos. Não estou querendo transformá-la numa burguesa, Naomi. Se a cama for por demais luxuosa, podemos fazê-lo no chão. Relações sexuais? — retrucou ela. — Com você? Sim! Comigo! Recém-chegado do meu sistema intrinsecamente injusto! Eu, o cúmplice! Sim! O imperfeito Portnoy! Sr. Portnoy, desculpe-me, mas entre os seus tolos gracejos, se é mesmo esta a palavra para designá-los . .. Aí teve lugar uma pequena luta, quando a ataquei pelo lado da cama. Ao tentar alcançar-lhe um dos seios, ela atingiu-me o queixo com uma cabeçada. Onde diabo você aprendeu isto? — gritei. — No Exército? Sim. Caí sentado na cadeira. - Belo treino para ser dado a uma garota. Sabe — disse ela, sem um vestígio sequer de compaixão —, existe algo de muito errado com você. Para início de conversa, minha língua está sangrando! Você é a pessoa mais infeliz que conheci. É como um bebê. Não! Nada disto! — ela, porém, desdenhou qualquer explicação que eu fosse oferecer e iniciou um sermão sobre os meus defeitos, observados por ela naquele dia. A maneira como você desaprova a sua vida! Por que faz isto? De nada vale para um homem desaprovar a sua vida, como você faz. Parece ter um prazer especial, um orgulho, em fazer-se alvo do seu próprio senso de humor. Não acredito que realmente queira melhorar a sua vida. Tudo o que diz é sempre desvirtuado, de uma forma ou de outra, a fim de que saia "engraçado". O dia inteiro a

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mesma coisa. Sempre, de algum modo, tudo é irônico ou autodepreciativo. Autodepreciativo? Auto-reprovador, auto-escarnecedor. Exatamente! E você é um homem altamente inteligente. Isto torna tudo ainda mais desagradável. A contribuição que você poderia prestar! Esta estúpida auto- reprovação! Como é desagradável! Oh, sei lá — disse eu —, a autodepreciação é, afinal de contas, uma forma clássica do humor judaico. Humor judaico, não! Jamais! Humor de gueto! Não havia muito amor nesta observação, deixe-me que lhe diga. Em plena madrugada, estavam me dando a entender que eu era o epítome do que havia de mais vergonhoso na "cultura da Diáspora". Aqueles séculos e séculos de desabrigo haviam tão-somente produzido homens desagradáveis como eu — amendrontados, defensivos, autodepreciativos, acovardados e corrompidos pela vida no mundo dos gentios. Judeus da Diáspora, como eu, é que tinham ido aos milhões para as câmaras de gás, sem jamais erguerem a mão contra os perseguidores, que não tinham aprendido o bastante, a ponto de serem capazes de defender suas vidas à custa do próprio sangue. A Diáspora! A simples menção da palavra tornava-se furiosa. Quando ela terminou, eu disse: Maravilhoso. Agora vamos foder! Você é nojento! Certo! Está começando a entender, valente sabra (Nativo de Israel. - N. do T). Vá você ser virtuosa nas suas montanhas, está bem? Vá você ser um modelo para a humanidade! Sua santa hebraica fodida! Sr. Portnoy — disse ela, apanhando a mochila no chão —, o senhor não passa de um judeu que se odeia a si próprio! Ah, mas Naomi, talvez seja este o melhor tipo. Covarde! Machona! Veado! E correu para a porta. Só que aí eu pulei atrás e, num vôo, agarrei pelas pernas aquele magnífico material vivo e didático, derrubando-a no chão junto comigo. Vou lhe mostrar quem é veado! Mas, puxa! E se estivesse com doença venérea? Ótimo! Esplêndido! Tanto melhor! Que ela a leve secretamente, na sua corrente sangüínea, para as montanhas! Que se propague a partir dela para todos esses valentes e virtuosos rapazes e moças judeus! Uma boa dose de gonorréia vai-lhes fazer muito bem! É assim que a coisa é na Diáspora, seus santinhos, é assim que é no exílio! Tentação e desonra! Corrupção e auto-escárnio! Autodeprecação e auto-defecção também! Lamúria, histeria, acomodação, confusão, doença! Sim, Naomi, estou poluído, oh, sim, estou impuro — e também fodidamente farto de nunca ser digno do Povo Escolhido! Mas que batalha me ofereceu, aquele possante material rústico! aquela ex-pracinha! aquele substituto de mãe! Olhe, será que pode ser isto? Oh, por favor, não pode ser tão simplista assim! Não eu! Ou, então, é que num caso como o meu nunca se chega a ser simplista o bastante! Será que, pelo fato de ela ter cabelos ruivos e sardas, isto a transforma, segundo o meu acanhado inconsciente, na minha mãe? Só porque ela e a senhora do meu passado são produtos da mesma tênue linhagem polonesa de judeus? É isto, então, a culminância do drama edípico, doutor? Conversa, meu amigo! Lamento, mas esta não engulo! Oedipus Rex é uma tragédia famosa, seu tolo, não é nenhuma piada! Quer me parecer que a brincadeira está indo um pouco longe demais, Dr. Spielvogel, Dr. Freud, Dr. Kronkite! Que tal uma homenagenzinha, seus miseráveis, à Dignidade do Homem! Oedipus Rex é a peça mais terrível e séria da história da literatura — não é uma piada! Agradeço a Deus, de qualquer modo, pelos pesos de Heshie. Eles passaram a ser meus depois que ele morreu. Eu os levava para o quintal dos fundos e ficava ao sol, levantando, levantando, levantando, quando tinha entre catorze e quinze anos. "Você ainda vai se encrencar com esses negócios", avisava-me minha mãe, da janela do banheiro. "Vai apanhar um resfriado aí fora nesse calção de banho." Mandei pedir folhetos de Charles Atlas e Joe Bonomo. Vivia acompanhando a inchação do meu tórax no espelho do meu quarto. Flexionava os músculos por baixo da roupa na escola. Examinava meus ante-braços na esquina, para ver se eram protuberantes. Contemplava com admiração as minhas veias, no ônibus. Alguém, algum dia, ainda haveria de investir contra mim e os meus deltóides, para depois arrepender-se amargamente! Mas ninguém investiu, graças a Deus. Até que chegou Naomi! Foi para ela, então, que eu tanto bufara e tremera, sob o olhar desaprovador de minha mãe. Não quer dizer que ela não tenha levado vantagem sobre mim quanto às barrigas das pernas e às coxas — quanto aos ombros e peito, porém, obtive vantagem, e forcei-lhe o corpo

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embaixo do meu, enfiando a língua em seus ouvidos, provando ali a areia do nosso dia inteiro de jornada, todo aquele solo sagrado. — Oh, vou foder você, garota judia — sussurrei perversamente. Você está maluco! — e ela soergueu-se contra mim, empregando toda a sua força considerável. Não, oh, não — disse-lhe eu, num rosnar da minha garganta. — Oh, não, você precisa aprender uma lição, Naomi — e empurrei, empurrei com força, a fim de ensinar a minha lição. — Ó sua virtuosa judia, os papéis estão trocados! Quem está na defensiva agora é você, Naomi, tentando explicar a sua descarga vaginal para o kibutz inteiro! Você acha que eles ficaram fulos com o negócio dos relógios! Espere só eles saberem desta! O que não daria eu para estar na reunião em que você for denunciada por ter contaminado o orgulho e o futuro do Sião! Talvez então venha a ter a devida reverência por nós, psiconeuróticos judeus decaídos! O socialismo existe, mas os espiroquetas também, meu amor! Portanto, aqui tem a sua iniciação no lado pantanoso das coisas. Abaixo, estes patrióticos calções caqui, escancare estas coxas, sangue do meu sangue, destranque essa fortaleza carnuda, arreganhe este messiânico buraco judeu! Prepare-se, Naomi, estou prestes a envenenar os seus órgãos de reprodução! Estou prestes a mudar o futuro da raça! Mas está claro que nada consegui. Lambi-lhe os ouvidos, dei-lhe chupões no pescoço sujo, enterrei os dentes nas trancas enroladas. . . e depois, apesar de que a resistência pudesse estar diminuindo ante a minha investida, rolei de cima dela, derrotado, e fui parar contra a parede, deitado de costas. — Não adianta — disse eu —, não consigo ter tesão neste lugar. Ela se levantou. Pôs-se de pé, acima de mim. Recuperou o fôlego. Olhou para baixo. Julguei que fosse plantar a sola da sandália sobre meu peito, ou então que começasse "a me encher de pontapés. Lembrei-me de mim garoto de escola, anotando no meu caderno todos aqueles propósitos. Como pudera vir acabar assim? Impotente em Israel, da da daaá — cantarolei com a música de uma cantiga de ninar. Outro gracejo? — indagou ela. — Sim, e mais outro, mais outro. Por que repudiar a minha vida? Em seguida, ela disse uma coisa generosa. Podia fazê-lo, de pé, lá em cima. Você precisa voltar para casa. Sem dúvida, é disto que estou precisando, voltar para o exilo. E, bem lá em cima, ela sorriu. Aquela sabra sadia e monumental! De pernas modeladas pelo trabalho, calções funcionais, blusa sem botão com marcas de batalhas -— e sorriso caritativo, vitorioso! Aos seus calejados pés, calçados de sandálias, este. . . este o quê? Este filho! Este bebê! Alexander Portnuzinho! Port- noi-oi-oi-oi! Olhe só você — disse eu —, bem lá em cima. Como são grandes, imensas, as mulheres! Olhe só você, quão patriótico! Gosta realmente da vitória, não é assim, querida? Sabe como obtê-la! Grr, tão desprovida de culpa! Verdadeiramente formidável, foi uma honra conhecê-la. Olhe, leve-me com você, heroína! Lá para as montanhas. Ajudo a retirar as pedras até cair duro, se é disto que preciso para me tornar bom. Pois, por que não me tornar bom, bom, bom e bom — certo? Viver de acordo com os princípios! Sem acomodação! Deixemos que o próximo seja o vilão, certo? Deixemos os goyim fazerem carnificinas, que a culpa caia somente sobre eles. Se nasci para ser austero comigo mesmo, seja! Uma vida ética bem punitiva e satisfatória, repleta de abnegação, com toda a volúpia da repressão! Ah, isto soa bem. Ah, chego até a sentir o gosto destas rochas! Que tal, leve-me com você, para esta pura existência portnoyana! Você precisa voltar para casa. Ao contrário! Devo ficar. Sim, ficar! Comprar um par desses calções caqui, tornar-me um homem! Faça como quiser — disse ela —, vou deixá-lo. — Não, heroína, não — gritei, pois estava realmente começando a gostar dela um pouquinho. — Oh, que desperdício. Ela gostou disto. Olhou-me, plena de vitória, como se eu houvesse finalmente confessado a verdade de minha parte. Marretá-la. — Quero dizer, lamento não ser capaz de dar uma boa foda numa garota grandona e sadia como você. Ela estremeceu de repugnância. Diga-me, por favor, por que tem de dizer toda hora esta palavra? Os rapazes lá nas montanhas não dizem "foder"? Não — respondeu, condescendente —, não da

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maneira como você faz. Bem — respondi —, imagino que não sejam tão ricos de fúria quanto eu, de ignomínia. — E dei um bote na perna dela. Porque nunca o bastante é o bastante, NUNCA! Tenho de TER. Mas ter o quê? Não! — gritou ela lá de cima para mim. Sim! Não! — Então — implorei, quando ela já começava a me arrastar com a sua possante perna pelo quarto, em direção à porta —, pelo menos me deixe dar uma chupadinha na sua pomba. Isso eu sei que posso fazer. — Porco! E desferiu um pontapé. E acertou! Com toda a força daquela perna de pioneira, bem abaixo do coração. Era o golpe que eu estava ardilosamente almejando? Quem sabe lá o que eu estava pretendendo? Talvez não estivesse querendo nada. Talvez apenas pretendendo ser autêntico. Talvez, afinal de contas, eu seja mesmo isto, um lambedor de conas, a boca escrava do buraco da mulher. Chupar! Seja assim, então! Talvez a melhor solução para mim seja viver de quatro! Rastejar pela vida fora, banqueteando-me com pombas e deixar a correção das coisas erradas e a geração das famílias para as criaturas íntegras! Quem precisa de monumentos erigidos em seu nome, quando temos este festim ambulante? Rastejar pela vida fora, então — se me restar alguma vida! Minha cabeça rodou, os mais nojentos sucos orgânicos subiram-me pela garganta. Ai, meu coração! E em Israel! Onde outros judeus encontram refúgio, asilo e paz, Portnoy agora sucumbe! Onde outros judeus florescem, eu expiro agora! E tudo o que queria era dar um pouco de prazer — e sentir também um pouco. Por que, por que não posso ter algum prazer sem que venha em seguida, de reboque, a punição, como um trem de carga? Porco? Quem, eu? E, logo de imediato, tudo acontece novamente, sou de novo transfixado pelo passado, o que já foi, o que jamais será! A porta bate, ela foi embora — minha salvação! minha parenta! — e fico no chão lamuriando-me com as MINHAS RECORDAÇÕES! Minha eterna infância! Que não largo e que não me larga! Que é tudo! Lembro-me dos rabanetes que eu cultivava com tanto amor no meu jardim da vitória! Naquele trecho de quintal ao lado da porta do nosso porão. O meu kibbutz. Rabanetes, salsa, cenouras — sim, também sou um patriota, sabe, só que em outro lugar! (Onde também não me sinto em casa!) E o papel prateado que eu recolhia, que me diz disto? Os jornais que eu levava para a escola! Meu folheto de selos da defesa, todos colados direitinho para esmagar o Eixo! Meus aeromodelos — meu Piper Cub, meu Hawkd Hurricane, meu Spitfire! Como pode estar acontecendo isto com aquele bom garoto que eu era, com o meu amor pela RAF e as Quatro Liberdades! Minha esperança por Ialta e Dumbarton Oaks! Minhas preces pela ONU! Morrer? Por quê? Castigo? Pelo quê? Impotente? Por que motivo razoável? A vingança da "Macaca". Claro. "ALEXANDER PORTNOY, POR AVILTAR A NATUREZA HUMANA DE MARY JANE REED EM DUAS NOITES EM ROMA E POR OUTROS CRIMES, POR DEMAIS NUMEROSOS PARA SEREM MENCIONADOS, ENVOLVENDO A EXPLORAÇÃO DA SUA CONA, ESTÁ CONDENADO A UM TERRÍVEL CASO DE IMPOTÊNCIA. DIVIRTA-SE." "Mas, Meritíssimo, ela é maior de idade, trata-se de um adulto aquiescente. . ." "NÃO ME ENCHA COM LEGALISMOS PORTNOY. VOCÊ SABE DISTINGUIR O CERTO DO ERRADO. SABIA QUE ESTAVA AVILTANDO OUTRO SER HUMANO. E POR ISTO, PELO QUE FEZ, E PELO MODO COMO FEZ, ESTÁ JUST AMENTE CONDENADO A FICAR DE CACETE MOLE. VÁ DESCOBRIR OUTRA MANEIRA DE PREJUDICAR UMA PESSOA." "Mas se me permite, Meritíssimo, ela já se achava de algum modo aviltada antes que eu a conhecesse. Preciso dizer algo mais além de 'Las Vegas'?" "OH, MARAVILHOSA DEFESA, SIMPLESMENTE MARAVILHOSA! GARANTIA DE ABRANDAR A SENTENÇA DO TRIBUNAL, É ASSIM QUE SE TRATA OS DESGRAÇADOS, HEM, SENHOR VICE-PRESIDENTE? Ê ASSIM QUE SE DÁ A UMA PESSOA A OPORTUNIDADE DE SER DIGNIFICADA, DE ACORDO COM A SUA DEFINIÇÃO? SEU FILHO DA PUTA!" "Por favor, Meritíssimo, se me permite aproximar-me da bancada. . . afinal de contas, o que estava eu fazendo senão tentando ter. . . bem, o quê?. . . Um bocadinho de diversão, eis

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tudo." "OH, SEU FILHO DA PUTA!" Bem, ora, com os diabos, será que não posso me divertir um pouco? Por que será que a menor coisa que faço por prazer se torna imediatamente ilícita, enquanto o resto do mundo chafurda risonhamente na lama? Porco? Ele devia ver as acusações e as queixas que chegam ao meu gabinete apenas numa manhã o que as pessoas fazem umas com as outras por ganância e ódio! Por dinheiro! Para obter poder! Por rancor! Por nada! Quantas coisas por que fazem um shvartze passar para hipotecar uma casa! Um homem almeja o que o meu pai costumava chamar de um guarda-chuva para os dias de tempestade — o senhor devia ver aqueles porcos caindo em cima dele! Refiro-me aos verdadeiros porcos, os profissionais! Quem imagina o senhor que fez os bancos começarem a contratar negros e porto-riquenhos para empregos nesta cidade? Quem enviou gente do departamento de pessoal para entrevistar candidatos no Harlem? Fazer esta coisa tão simples? Este porco aqui, minha senhora — Portnoy! Quer falar em porcos, venha ao meu gabinete, dê uma olhada na minha cesta de entradas em qualquer manhã da semana, que eu lhe mostrarei os porcos! As coisas que os outros homens fazem impunemente! E sem pensarem duas vezes! Com um sorriso, ferem pessoas indefesas, por Deus do céu, e acreditam que ganharam o seu dia! As mentiras, as intrigas, os subornos, as roubalheiras — furtos que eles realizam, doutor, sem sequer pestanejar. A indiferença! A mais completa indiferença moral! Cometem os maiores crimes sem a menor perturbação da digestão! Ao passo que eu, só porque tive uma fossazinha e resolvi tirar umas férias, agora estou sem poder me reerguer! Imagine, Deus me livre, se eu fosse arrancar a etiqueta do meu colchão, onde está escrito: "Não retire sob risco de penalidade legal" — o que pegaria por causa disto? A cadeira elétrica, sem dúvida. A ridícula desproporção da culpa me dá vontade de berrar Posso fazê- lo? Será que vai assustar o pessoal lá na sala de espera? Porque talvez seja isto aquilo de que estou precisando mais que tudo, berrar/ Um puro berro, sem mais palavras entre mim e ele! "Aqui fala a polícia. Você está cercado, Portnoy. É melhor que saia e pague a sua dívida para com a sociedade." "A sociedade que vá tomar no eu, seu tira!" "Vamos contar até três, para que saia de mãos para cima, seu louco furioso, do contrário vamos entrar para apanhá-lo, disparando nossas armas. Um." "Dispare, seu tira miserável, estou cagando pra isso! Vou arrancar a etiqueta do meu colchão. . ." "Dois!" "... pois, pelo menos enquanto eu vivi, foi pra valer!" Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhh!!!!!

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MORAL DA HISTÓRIA Muito bem [disse o doutor]. Agora, talvez a gente possa começar. Sim? Fim. Título do original norte-americano: Portnoy's Complaint. Copyright (c) 1967, 1968. 1969 by Philip Roth. Reservados todos os direitos de publicação e venda em língua portuguesa à Exped - Expansão Editorial S.A., Rio de Janeiro. Primeira edição em língua portuguesa: outubro de 1970. Edição em livro de bolso autorizada pela Exped - Expansão Editorial S.A., Rio de Janeiro. Copyright (c) 1976 para edição de bolso, EDITORA EDIBOLSO Rua Atílio Piffer, 119 - São Paulo. Direitos reservados. Composto na Linotipia Milesi. Impr. e Acab.: Círculo do Livro S.A.