Composição Musical e Números

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  • 7/29/2019 Composio Musical e Nmeros

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    GUILHERME CAMPELO TAVARES

    NMEROS COMO FERRAMENTAS PARA A COMPOSIO MUSICAL

    Curitiba

    2008

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    GUILHERME CAMPELO TAVARES

    NMEROS COMO FERRAMENTAS PARA A COMPOSIO MUSICAL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Msica do Departamento de Artes

    da UFPR para a obteno do ttulo de Mestre em

    Msica; rea de concentrao: Teoria e Criao.

    Orientador: Prof. Dr. Mauricio Soares Dottori

    Curitiba

    2008

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN.SISTEMA DE BIBLIOTECAS. BIBLIOTECA CENTRAL.COORDENAO DE PROCESSOS TCNICOS.Ficha catalogrfica

    Tavares, Guilherme Campelo

    T231 Nmeros como ferramentas para a composio musical /Guilherme Campelo Tavares. 2008.143f. : il.; partituras

    ApndicesOrientador: Maurcio Soares DottoriDissertao(mestrado)- Universidade Federal do Paran,

    Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Programa dePs-Graduao em Msica.

    Defesa: Curitiba, julho de 2008.Inclui bibliografia e notasrea de Concentrao: Teoria e Criao

    1. Composio (Msica) Tcnicas. 2. Msicas.I.Dottori, Maurcio Soares. II. Universidade Federaldo Paran, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes,Programa de Ps-Graduao em Msica. III. Ttulo.

    CDD 22.ed. 781.3

    Samira Elias Simes CRB-9 / 755

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    NMEROS COMO FERRAMENTAS PARA A COMPOSIO MUSICAL

    Guilherme Campelo Tavares

    Orientador: Prof. Dr. Mauricio Soares Dottori

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Departamento de Artes daUFPR para a obteno do ttulo de Mestre em Msica; rea de concentrao: Teoria e Criao.

    Aprovada por:

    ___________________________________________

    Presidente, Prof. Dr. Mauricio Soares Dottori (UFPR)

    ______________________________________

    Prof. Dr. Antonio Carlos Borges Cunha (UFRGS)

    ______________________________________

    Prof. Dr. Rodolfo Coelho de Souza (USP)

    Curitiba

    2008

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    Dedico este trabalho aos meus pais, Maria

    Marli Campelo Tavares e Izabelino Dias

    Tavares (in memoriam), como forma de

    retribuir as incontveis demonstraes de

    dedicao, carinho, determinao e

    perseverana ao longo desta vida.

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    AGRADECIMENTOS

    Muito provavelmente seria impossvel, neste curto espao, agradecer a todos os quemerecem meu muito obrigado. Por este motivo, espero poder agradecer diretamente a alguns e

    indiretamente a outros tantos... E a ordem destes agradecimentos no poderia ser, de maneira

    nenhuma, um indicativo da importncia de cada um para a concretizao deste trabalho e por tudo o

    que levou realizao dele.

    A Deus, por tudo o que existe.

    A toda a minha famlia, pelos tantos momentos de convivncia e tudo o que de mais

    precioso surge a partir disso em nossas almas.

    minha querida Janine, pelo apoio constante, amor verdadeiro, conselhos inestimveis...

    Enfim, por ser a companheira de todas as horas!

    Ao meu grande amigo e baterista Eduardo Pinto de Almeida, pelos 20 anos compartilhando

    idias, experimentaes e prticas musicais sem as quais eu certamente no teria desenvolvido um

    interesse to grande pela influncia dos nmeros na msica.

    A todos os demais amigos, colegas e ex-alunos que fizeram e fazem a vida e o trabalho commsica valer a pena.

    Ao Conservatrio de Msica da Universidade Federal de Pelotas, local onde muito estudei,

    lecionei e toquei.

    Aos colegas, professores, alunos e funcionrios do Departamento de Artes da Universidade

    Federal do Paran, em especial queles com quem mais convivi e que facilitaram muito a minha

    adaptao a esta cidade e ao curso de ps-graduao.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Mauricio Soares Dottori, por indicar com preciso as

    referncias e estratgias mais adequadas minha pesquisa e pelos constantes desafios lanados.

    CAPES, pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual minha participao neste curso

    de mestrado e a pesquisa desenvolvida simplesmente no teriam sido possveis.

    A todos os meus ex-professores que acreditaram em meu potencial musical e que mostraram

    diversas vezes que a msica vai muito alm do que se pode expressar em palavras ou sinais grficos

    e de todo o limitado mundo material. Especialmente: Possidnio Henrique Tavares, Snia Cava deOliveira e Mnica Farid Hassan.

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    Como possvel haver um cdigo rgido para expressar

    idias flexveis? Fcil. Basta que o cdigo no seja

    formalizado nem interpretado por uma mquina. O

    cdigo transmitido e recebido por um ser sujeito a

    variaes emocionais, sujeito ao astral do dia, s

    variaes de temperatura e aos contratempos da vida

    diria. Ento, o cdigo deixa de ser rgido.

    J. E. Gramani

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    RESUMO

    Este trabalho apresenta um breve panorama dos principais procedimentos numricos e

    matemticos empregados em composies representativas de diferentes correntes estticas da

    msica erudita do sculo XX. Segue-se uma descrio das tcnicas composicionais a serem

    utilizadas pelo autor, com algumas de suas possveis aplicaes. Como ponto central desta pesquisa

    est a realizao prtica na partitura da composio Reflexes Sobre a Vida e a Morte, para

    conjunto de cmara. O captulo final consiste em um memorial que descreve, mediante uma anlise

    da pea, o processo de elaborao dos trs movimentos que a compem.

    Palavras-chave:

    1. Composio musical. 2. Nmeros 3. Analogias. 4. Tcnicas composicionais.

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    ABSTRACT

    This work presents a brief panorama of the main numeric and mathematical procedures

    employed in compositions belonging to different 20th-century erudite music aesthetic tendencies.

    Following there is a description of compositional techniques to be employed by the author, with

    some possible applications. Accordingly the main point of this research is the practical realization,

    expressed in the score of the compositionReflexes Sobre a Vida e a Morte (Reflections About Life

    and Death) for chamber group. The final chapter consists of a description, by means of an analysis

    of the piece, of the process of elaboration of its three movements.

    Key-words:

    1. Music composition. 2. Numbers 3. Analogies. 4. Composition techniques.

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    SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................................................9

    1 REVISO DA LITERATURA MUSICAL.................................................................................16

    2 FERRAMENTAS COMPOSICIONAIS.....................................................................................32

    2.1 TIPOS DE NMEROS UTILIZADOS....................................................................................36

    2.2 CONVENES ADOTADAS PARA A CONVERSO DE NMEROS EM RITMO EEM ALTURAS..................................................................................................................................40

    2.2.1 Converso de nmeros em ritmo...........................................................................................41

    2.2.2 Converso de nmeros em alturas.........................................................................................42

    2.3 TCNICAS DE COMPOSIO..............................................................................................452.3.1 Tcnicas de Gerao de Estruturas Musicais.......................................................................45

    2.3.2 Tcnicas de Transformao e Organizao das Estruturas Geradas .................................49

    3 PARTITURA DA COMPOSIO..............................................................................................59

    4 MEMORIAL DESCRITIVO.....................................................................................................103

    4.1 PRIMEIRO MOVIMENTO:Larghetto Allegro molto, energico Andante meditativo..109

    4.2 SEGUNDO MOVIMENTO:Allegro con fuoco.....................................................................116

    4.3 TERCEIRO MOVIMENTO:Andante sostenuto..................................................................121

    CONCLUSO................................................................................................................................130

    REFERNCIAS.............................................................................................................................133

    APNDICE A Diagrama Estrutural do Primeiro Movimento...............................................141

    APNDICE B Diagrama Estrutural do Terceiro Movimento................................................143

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    INTRODUO

    O tema escolhido surgiu da busca de fontes de conhecimento alternativas a partir das

    quais se pudessem gerar, transformar e organizar determinados elementos de uma composio

    musical, priorizando estruturas rtmicas irregulares e polirritmias. O objetivo permitir ao

    compositor uma avaliao de possibilidades de derivao de material musical cuja origem no

    esteja apenas nos princpios e pressupostos j conhecidos ou registrados, na rea da msica,

    nem somente naquilo que condicionado por sua prtica pessoal e por seu ouvido interno.

    Ser possvel ento empregar os nmeros como ferramentas complementares ao longo do

    processo de composio, de maneira a encontrar solues no habituais.

    Partindo da considerao de que o ensino da composio tem se baseadofundamentalmente na assimilao de princpios e procedimentos j estabelecidos 1 e que so

    normalmente tomados como ponto de partida por vrios compositores, buscaram-se ento

    outras fontes de conhecimento que pudessem vir a substituir essas fontes mais usuais, em

    algum nvel do processo de composio, e dialogar com elas durante o mesmo. Contra a

    postura didtica tradicional, a que chamou ps-figurativa, Koellreutter (apud BRITO, 2001,

    p. 36)props uma maneira alternativa, que denominou pr-figurativa. Segundo ele:

    Ensinar a teoria musical, a harmonia e o contraponto como princpios de ordemindispensveis e absolutos ps-figurativo. Indicar caminhos para a inveno e acriao de novos princpios de ordem pr-figurativo [...]. [grifo do autor]

    Mais adiante, acrescenta:

    Ensinar composio fazendo o aluno imitar as formas tradicionais e reproduzir oestilo dos mestres do passado, mas tambm o dos mestres do presente, ps-figurativo. Ensinar o aluno a criar novas formas e novos princpios de estruturao eforma pr-figurativo. (Id.) [grifo do autor]

    De maneira similar, Gramani (1996, p. 11) adverte: Arte significa, nos dias de hoje,

    principalmente em msica, faa o que algum j fez, to bem ou melhor. Os msicos esto

    se transformando a cada dia em meros repetidores das idias alheias.

    No entanto, a interao com procedimentos conhecidos mencionada no segundo

    pargrafo deve acontecer necessariamente, haja vista tratar-se de uma condio histrica

    irrefutvel, conforme assinala Gisle Brelet:

    1 Considera-se aqui os contedos abordados nas disciplinas Harmonia, Contraponto e Anlise, ou seja, princpiosgeralmente deduzidos da prpria prtica musical ou de fenmenos acsticos.

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    [...] independente do aspecto aparentemente revolucionrio de uma msica, ela seliga sempre finalmente a uma tradio. No h nunca revolues absolutas: umarevoluo eficaz, que queira agir sobre o curso histrico da arte musical, deve emprimeiro lugar aceit-lo.(1947, p. 15-16)

    necessrio que o criador prive-se ao mesmo tempo de imitar e de destruir [opassado]. preciso que ele no confunda o habitual com o autntico, que no penseque o modo normal do pensamento foi fixado irremediavelmente pelas obras dopassado. Mas necessrio que ele saiba tambm que uma inovao no necessariamente uma ruptura com o passado, e que negando totalmente este, corre-se o risco de destruir o que a prpria essncia e a lei fundamental da msica. (ibid.,p.21)

    Algumas das composies elaboradas pelo autor nos ltimos anos j contavam com

    princpios numricos e operaes matemticas simples2, utilizados para definir estruturas

    rtmicas. Apenas em uma delas foram usados procedimentos numricos para definir aspectos

    meldicos, mas sua prtica composicional, neste sentido, sempre enfatizou a estruturao das

    duraes.

    Muito do estmulo para pesquisar de que maneira os nmeros poderiam ser

    interpretados como alturas originou-se da experincia de lecionar Teoria e Percepo Musical

    utilizando o mtodo de solfejo por graus, de George Wedge (1949), durante cerca de 5 anos.

    Por todo o livro, Wedge utiliza alternadamente a notao em algarismos arbicos e em

    partitura, a fim de desenvolver a percepo de uma na outra, at que se cante (lendo qualquer

    uma das duas) dizendo nomes de notas e pensando em nmeros. Outro incentivo a este tpico

    da pesquisa foi o estudo dos fundamentos da Pitch-Class Set Theory, criada por Allen Forte

    (daqui para diante, referida apenas como Teoria dos Conjuntos).

    Embora neste trabalho haja um maior aprofundamento nas consideraes quanto ao

    campo das alturas do que nas obras previamente compostas, o aspecto rtmico sempre

    continuar de certa forma preponderando, uma vez que estudar o ritmo estudar tudo sobre a

    msica. O ritmo tanto organiza como organizado por todos os elementos que criam e do

    forma aos processos musicais. (COOPER & MEYER, 1971, p. 1). Assim e por ser amsica uma arte essencialmente temporal as ferramentas desenvolvidas com a inteno

    inicial de gerar ou organizar ritmos influenciaro a maneira de articular os demais elementos

    da composio, tais como harmonia, instrumentao, textura, etc., justamente porque estes

    tambm ajudam a definir o que percebemos como agrupamentos e acentuaes, por exemplo.

    Ademais, h muito ainda para ser desenvolvido no que concerne explorao de princpios de

    natureza fundamentalmente rtmica. Percebe-se facilmente que, na histria da msica

    2 Neste trabalho considera-se operaes matemticas simples as quatro operaes bsicas (incluindo algumasde suas propriedades fundamentais) e o mnimo mltiplo comum.

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    ocidental, a preocupao com as alturas sempre esteve em primeiro plano, tanto por parte de

    compositores como de tericos:

    Ora, embora a obra musical no possa atingir a sua perfeio fora da perfeio dasua forma temporal, sempre se negligenciou esta em proveito da forma sonora. Arazo para isto que esta forma temporal salta como que de si mesma, do prpriodesdobramento do ato criador, de maneira que parece intil determin-la antes desteato. E aceita-se muito facilmente neste domnio as limitaes tradicionais porqueimagina-se que a originalidade de uma msica reside sobretudo na sua forma sonora.Mas se verdade que a forma sonora, para ter valor, deve ser apoiada por umsistema harmnico, similarmente a forma temporal deve realizar uma concepo dotempo. [...] Enfim, parece interessante notar que a prpria matria sonora pode serrenovada pela originalidade da forma temporal.(ibid., p. 161-162)

    Por mais que este seja um tema relacionado diretamente a aspectos estruturais da

    msica e por mais que envolva certas operaes aritmticas, deve ser enfatizada a importncia

    fundamental do resultado sonoro e da expressividade musical para que este estruturalismo

    chegue realmente a contribuir para uma manifestao artstica. Por conta disso, o produto final

    das tcnicas aqui propostas depender sempre da influncia do direcionamento esttico e da

    percepo auditiva do compositor. Quanto a esse equilbrio, cabe citar a posio do terico

    Nicholas Cook: [...] muito pouca msica totalmente racional. [] o equilbrio entre o

    aspecto racional e o emprico varia de um estilo para outro, e mesmo de uma pea para outra.

    (1994, p. 335)A princpio, falar em novas fontes de conhecimento conforme dito logo no

    princpio desta introduo pode soar exagerado quando o assunto msica e matemtica3,

    visto que inmeros compositores, ao longo da histria, j buscaram nesta fonte o

    embasamento para suas teorias e composies, especialmente no sculo XX como mostra a

    reviso desenvolvida no primeiro captulo. Entretanto, nesta pesquisa seria mais apropriado

    pensar em msica e nmeros, j que o que est sendo proposto aqui, em termos de

    matemtica, usar somente conceitos e operaes elementares e explorar ao mximo aabstrao implcita no conceito de nmero4. Alm disso, a utilizao dos nmeros com base

    na aparncia que estes tomam quando dispostos graficamente de forma semelhante ao que

    Isaac Asimov (1994) identifica como a forma dos nmeros ser realizada em algumas das

    tcnicas apresentadas. As vrias possibilidades de como um determinado nmero poder vir a

    3 No difcil encontrar livros sobre Msica e Matemtica. No entanto, o que mais comum serem escritospor matemticos ao invs de msicos e referirem-se somente aos aspectos fsicos do som e ao temperamento, aoinvs de tratar de aspectos musicais propriamente ditos.

    4 Um nmero no significa simplesmente uma quantidade definida de exemplares de um mesmo elemento, masum enorme conjunto abstrato, que abrange todas as coisas imaginveis passveis de serem submetidas contagem indicada pelo nmero em questo.

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    ser observado, lido e tratado musicalmente so vistas aqui como uma maneira interessante de

    estimular a imaginao e a criatividade musical do compositor, possibilitando que, de um

    mesmo nmero, possam ser obtidas diferentes estruturas musicais. Desta maneira, um simples

    nmero poder funcionar como uma espcie de motivo virtual, com mltiplas

    possibilidades de materializar-se em som. Como tal, permite o uso de fragmentos seus;

    conforme sejam interpretados, estes podero significar subconjuntos de alturas ou fragmentos

    rtmicos.

    O captulo 2 apresenta uma descrio detalhada das tcnicas de composio propostas,

    incluindo uma exposio de diferentes procedimentos utilizados para a converso de nmeros

    em alturas e ritmos. Alm de gerar estruturas musicais (motivos, frases, acordes, compassos,

    ostinatos, sees, etc.) partindo de um nmero, algumas das tcnicas criadas permitemtransformar e organizar estas de maneiras especficas em alguns casos, insuspeitas. Apesar

    de muitas destas j terem sido utilizadas anteriormente, aqui apresentam-se reunidas sob um

    enfoque que no se restringe aritmtica, juntamente com novas ferramentas desenvolvidas

    ao longo da pesquisa. Apesar das vrias sugestes dadas a respeito de como proceder, fica em

    aberto a possibilidade de surgirem outros procedimentos similares, conforme a maneira pela

    qual os nmeros sejam lidos. Quanto capacidade de observao, Stravinsky (1996, p. 56-57)

    nos lembra justamente de que [...] o verdadeiro criador pode ser reconhecido por suacapacidade de sempre encontrar sua volta, nas coisas mais simples e humildes, detalhes

    dignos de nota. E Berger (1999, p. 11) afirma que nunca olhamos para uma coisa apenas;

    estamos sempre olhando para a relao entre as coisas e ns mesmos. Sendo assim, buscou-

    se enfatizar um equilbrio entre a ao do compositor e a ao dos nmeros no processo de

    composio de uma obra musical, num dilogo constante. Dessa maneira, podem ser obtidas

    obras que apresentem determinadas caractersticas pessoais do autor mescladas a outras

    alheias sua vontade. Como observa Brelet (1947, p. 61), uma matria construdaformalmente um novo objeto para a intuio, do qual preciso descobrir as propriedades, a

    fim de manej-las e

    o poder criador do esprito, fazendo surgir novas formas no som, continua, contudo,em contato com um certo sensvel que lhe permanece de uma certa maneira exteriore que ele no deixa de sentir, sob a sua ao, alternadamente rebelde e dcil. Assimo som, reagindo sob a ao da forma, manifesta a sua presena sensvel (ibid., p. 62).

    Considera-se que possa existir algo de musical implcito em praticamente qualquer

    conjunto ou seqncia de algarismos. Gramani, referindo-se necessidade de se fazer uma

    leitura mais musical das figuras rtmicas, afirma que preciso descobrir o que h de msica

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    embutida em uma idia em princpio puramente aritmtica: idia disfarada em matemtica,

    soma de dois mais dois. (1996, p. 12). Sob a tica do presente estudo, esta proposio pode

    ser lida como um apoio inteno de usarem-se os nmeros e alguns princpios matemticos

    para gerar sonoridades, com finalidades artsticas, musicais. O inverso, transportarem-se

    maiores complicaes matemticas para o campo da msica, no seria, de forma alguma, uma

    garantia de que se pudesse assim obter resultados musicalmente mais complexos ou

    artisticamente mais relevantes. O compositor Cndido Lima5 (2006, p 2-3) comenta:

    As matemticas, como outros instrumentos, podem desempenhar vrias funesnuma obra, mas nunca sero a justificao da alta qualidade ou da intensaemotividade ou criatividade que uma obra musical pode conter. Podero causarestragos, se o seu utilizador vir nas matemticas um fim e no um meio.

    E afirma tambm: A aplicao esteticamente eficaz das matemticas em msica

    depender sempre da criatividade do indivduo. (ibidem, p. 3). As ferramentas criadas no

    exigem mais do que conhecimentos muito elementares em matemtica, proporcionando

    diferentes maneiras de organizar o raciocnio composicional, funcionando como molas

    propulsoras para o exerccio da inventividade.

    No h neste trabalho a pretenso de desenvolver propriamente um sistema, mas sim a

    de apresentar um conjunto de ferramentas que, conforme dito antes, prev a utilizao

    conjunta de outros princpios de composio musical j existentes. Schoenberg (1984, p. 213)

    refere-se sua tcnica de compor com 12 notas de maneira anloga:

    [...] eu no chamo isto de sistema, mas de mtodo, e considero-o como umaferramenta para a composio, mas no como uma teoria. [...] Voc usa a srie ecompe como fazia previamente. Isto significa: Use o mesmo tipo de forma deexpresso, os mesmos temas, melodias, sons, ritmos, como voc usava antes.

    Quanto questo de como tratar harmonicamente as alturas obtidas a partir de

    nmeros, existem diversas alternativas. Os nmeros empregados podero funcionar como

    limitadores (das transposies possveis a partir do conjunto inicial, por exemplo), mas isso

    no reduz a necessidade de se chegar a uma maneira mais ou menos pessoal de resolver a

    questo harmnica, ainda que fundamentada em apontamentos de diferentes autores. Como

    referencial terico para lidar com as melodias e acordes gerados por nmeros, sero adotados

    neste trabalho principalmente aspectos da teoria de Paul Hindemith (1942) exposta no volume

    I de The Craft Of Musical Composition e da Teoria dos Conjuntos, de Allen Forte, tal como

    5 Cndido Lima foi um dos palestrantes no Encontro de Msica e Matemtica, realizado na Casa da Msica,cidade do Porto, Portugal, no dia 06 de outubro de 2006. O texto citado foi extrado de sua comunicao,intitulada Criatividade Musical versus Tcnicas Matemticas.

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    expressa por Straus (1990) e Oliveira (1998). Justifica-se a referncia na teoria de Hindemith

    pelo fato de que esta ignora o ritmo, concentrando-se em mostrar como classificar e encadear

    quaisquer aglomerados de notas da gama temperada, incluindo as implicaes meldicas da

    decorrentes6. Na Teoria dos Conjuntos, por lidar com grupos de notas e suas inter-relaes,

    alm de conter em seus fundamentos j a analogia entre nmeros inteiros e notas musicais. De

    forma complementar, sero utilizados princpios harmnicos expostos por Persichetti (1985) e

    Noronha (1998), entre outros.

    As ferramentas elaboradas no obedecem pretenso de criar materiais que

    componham algum tipo de organicidade, mas sim diversidade a partir de pouco material.

    Por mais que uma determinada srie ou conjunto de algarismos tenda a produzir estruturas

    musicais semelhantes, estas diferentes estruturas no tero entre si, inicialmente, nenhumarelao sonora prevista. Entretanto, a partir do momento em que estas forem articuladas

    musicalmente, passaro a interagir, obedecendo necessariamente a relaes impostas

    simultaneamente por sua prpria natureza e pela ao do compositor. Assim, de nada interessa

    a fundamentao natural de Hindemith e a preciso matemtica da decorrente para que se

    calculem as resolues de trtono, por exemplo. Embora algumas tcnicas criadas para esta

    pesquisa dependam de resultados de clculos matemticos, de um modo geral no o rigor do

    clculo aritmtico como acontece mais ainda na Teoria dos Conjuntos o que importa aqui,mas antes o senso de observao e o exerccio da inventividade. Muitos tericos e

    compositores tais como Schenker, Forte e Schoenberg preocuparam-se em mostrar de que

    maneira uma composio pode ter uma fundamentao que a torne orgnica. Porm,

    afirmar que os conjuntos relacionados por seus vetores intervalares ou por fazerem parte da

    mesma classe de conjunto garantem esta organicidade pode ser entendido como um

    exagero: os prprios conceitos de classe de intervalo ( interval class) e de equivalncia de

    oitavas (octave equivalence), que do base para estas afirmaes, j so em si uma abstrao.Embora Straus afirme que esta equivalncia no sinnimo de identidade e que esta e outras

    equivalncias da teoria por ele apresentada no tm por objetivo suavizar ou descartar a

    variedade da superfcie musical (1990, p. 2), defende claramente a idia de que o que

    importa descobrir as relaes que subjazem a superfcie e que do unidade e coerncia s

    obras musicais. (id.) Entretanto, preferiu-se aqui acreditar que esta unidade e coerncia so

    decorrentes no apenas das implicaes de cunho exclusivamente estruturalista, mas tambm

    do prprio ato composicional, com suas subjetividades inerentes intencionalidade do autor.

    6 O que fica claro no titulo original em alemo, Unterweisung im Tonsatz (algo como Instrues a Respeito dasAlturas), inadequadamente traduzido para o ingls como The Craft of Musical Composition (A Arte daComposio Musical).

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    Oliveira (1998) ressalta que as caractersticas comuns mais importantes entre os

    nmeros inteiros e os sons musicais do temperamento igual so o serem ordenados e

    discretos. Esta analogia funciona em abstrato, uma vez que no considera as relaes

    musicais entre os sons o que at certo ponto uma vantagem. Entretanto, a respeito desta

    comparao entre nmeros e alturas e da possvel equivalncia das oitavas, Ernst Toch (1931,

    p. 101-2) chama a ateno para os seguintes pontos:

    Faa-se o ensaio de reduzir o tema [de Mozart] mencionado aos limites estritos daescala de sete notas, transpondo as duas primeiras do segundo compasso oitavainferior, ou as duas ltimas oitava superior, para ver a caricatura a que se chegadesta maneira. O fato que o som r4 e sua oitava r5 so na realidade sonscompletamente distintos que unicamente com o objetivo de simplificar nossosistema levam um mesmo nome [...]

    a srie de sons de que consta a nossa escala infinita em ambas as direes, aindaquando que s nos seja possvel perceber um determinado fragmento da mesma,em um espectro compreendido entre as notas ultra e infra audveis. A escalaconstitui uma progresso contnua e periodicamente renovada que poderiacomparar-se com a progresso aritmtica, e da mesma maneira que 2 no igual a12 nem a 22, tampouco h igualdade entre r4-r5 ou r6.

    Note-se que o autor afirma ser possvel a comparao entre nmeros inteiros e alturas,

    mas atenta para o fato de que as diferentes oitavas influenciam demais no contorno meldico.

    Este item importantssimo, do ponto de vista perceptivo, totalmente ignorado pelos

    conceitos de transposio e inverso, tal como expostos na Teoria dos Conjuntos. Sendo

    assim, estes sero usados no presente trabalho com a conscincia desta ressalva. Quando

    houver a necessidade de preservar a identidade meldica, podero ser usadas a transposio e

    a inverso no sentido tradicional dos termos. Quanto s equivalncias entre intervalos,

    possvel perceber auditivamente as afinidades entre o semitom e a stima maior, por exemplo

    e justamente por isso acaba sendo um conceito til, na medida em que algum tipo de

    identidade sonora continua a ser preservada entre intervalos da mesma classe. Porm, h que

    se lembrar sempre de que so intervalos diferentes, e que inclusive mudam de caracterstica

    conforme o espaamento registral entre as notas que o formam (ver Persichetti, 1985, p. 15-

    16).

    A despeito de mostrarem ser um tanto quanto inadequados por nos distanciarem de

    uma percepo mais imediata dos sons, estes e outros conceitos da teoria de Forte so sem

    dvida muito teis do ponto de vista da composio. E justamente por permitirem este

    distanciamento que proporcionam novas maneiras de compreender e manipular os conjuntos

    de alturas. De maneira anloga Hindemith, ao criticar conceitos da harmonia tradicional tais

    como os de formao por teras sobrepostas e inverso de acordes, toma um

    15

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    distanciamento que abre a possibilidade de se descobrir a fundamental de um aglomerado de

    notas qualquer tal como se apresenta, sem reducionismos, incluindo-o em uma tabela que

    abrange todas as combinaes de notas possveis7. Com algumas categorizaes destes

    aglomerados, cada qual portadora de uma determinada capacidade acstica deduzida de seus

    harmnicos, acaba chegando ao princpio da flutuao harmnica, que permite a elaborao

    de curvas de tenso e relaxamento entre estes acordes sem que seja necessrio recorrer s

    funes tonais.

    A realizao musical a partir das tcnicas aqui propostas estar representada pela

    partitura da composio desenvolvida ao longo da pesquisa, constituindo assim o terceiro

    captulo desta dissertao. Afinal, A arte explica-se apenas por ela mesma (BRELET, 1947,

    p.7). O captulo final consistir em um memorial descritivo, no qual ser feita uma breveanlise da composio e discutir-se- se de que maneira as hipteses firmadas no texto

    realizam-se na obra musical.

    1 REVISO DA LITERATURA MUSICAL

    A utilizao de nmeros na composio musical no nenhuma novidade. Este tipo de

    procedimento foi amplamente empregado, sobretudo no sculo XX. No obstante, um pontoimportante a ser ressaltado a tendncia de muitos autores que utilizaram ou utilizam

    procedimentos numricos ou matemticos em seus processos de composio de deixar que os

    nmeros definam totalmente o resultado final das peas. Tambm fcil perceber a

    recorrncia do ato de submeter os sons a operaes cujos resultados so matematicamente

    impecveis, ainda que esteticamente duvidosos. Quanto a este tipo de incompatibilidade,

    Oliveira (1998, p. 2) alerta: Existem, seguramente, muitas propriedades inerentes ao

    funcionamento operativo dos nmeros que podero no ter correspondncia ou significado nasestruturas musicais, sucedendo o mesmo no sentido oposto. Entretanto, vale lembrar que o

    significado das estruturas musicais, nestes casos, ainda pode ser construdo pela ao do

    compositor, cuja intuio e criatividade no tm relao alguma com a matemtica.

    O fato dos nmeros assumirem o controle dos resultados entendido aqui como

    sendo uma vantagem apenas parcial, como um recurso a ser usado localizadamente: uma

    forma de obter um certo grau de descondicionamento da prtica composicional prvia.

    7 De maneira anloga, Allen Forte classifica todas as combinaes de notas possveis dentro do temperamentoigual. Contudo, sua categorizao baseada em um extremo reducionismo que desconsidera as sonoridades talcomo as percebemos, chegando ao ponto de tratar como iguais conjuntos muito diferentes um dos exemplosmais chocantes a reduo da trade menor e da trade maior a uma mesma forma primria: (037).

    16

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    Considera-se que a vantagem real da abordagem aqui proposta a possibilidade do

    compositor encontrar estruturas musicais e/ou formas de vari-las e relacion-las de maneira

    especfica que normalmente no lhe viriam mente ou que no seriam facilmente

    descobertas mediante o uso de outros procedimentos. Outra vantagem a de simplesmente

    revelar o que h de esteticamente interessante escondido em certos nmeros e relaes

    numricas ao coloc-los em um contexto musical. De acordo com Abdonour (2003, p. 143),

    analogias desempenham relevantes papis enquanto agentes reveladores de relaes ocultas

    na rede de significados, determinando em muitos casos, modificaes em nvel cognitivo,

    afetivo e volitivo.

    Vejamos a seguir de que maneira alguns compositores do sculo passado usaram

    princpios numricos e matemticos, fazendo um paralelo com o presente estudo:Bosseur (1990) afirma que Olivier Messiaen aplicou freqentemente operaes de

    natureza aritmtica no processo de composio de suas obras. Uma de suas tcnicas que

    envolve nmeros citada por Ferraz (1998, p. 196):

    Dada uma seqncia de duraes bsicas [...], associa-se uma seqncia numrica

    crescente. Uma nova seqncia surge aps os valores da seqncia irregular serem

    substitudos pelo nmero ao qual foram associados. Por exemplo:

    1 4 6 3 7 5 9 8 2(1 2 3 4 5 6 7 8 9) = 1 3 5 6 9 7 2 8 4

    (1 2 3 4 5 6 7 8 9) = 1 6 7 5 2 9 8 3, etc.

    Procedimentos similares so a tcnica de filtros8 usada pelo compositor Brian

    Ferneyhough e as permutaes de alturas em oitavas fixas feitas por Edgard Varse em sua

    Densit 21.5 (1936) (ibid, p. 227). Estas tcnicas de adio, subtrao, permutao e

    filtragem, ainda que no sejam exatamente iguais, aproximam-se bastante de algumas das que

    foram criadas para o presente trabalho.Outra soluo de Messiaen envolvendo operaes matemticas simples so as

    variaes de uma clula rtmica por adio e subtrao de figuras de durao. Logo no incio

    do terceiro movimento de Quatour Pour la Fins du Temps (1941), intitulado Abme des

    Oiseaux, encontra-se um exemplo muito claro deste recurso:

    8 Dada uma srie de vrias notas, algumas delas sero substitudas ao passar por um filtro de 3 notas, porexemplo. Seguindo a ordem dos dois grupos, cada nota da srie ser substituda por cada nota do filtro, excetoquando houver notas iguais (quando ento permanecer a original na srie).

    17

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    Figura 1 Duraes adicionadas em uma melodia de Messiaen.

    Os compassos 2 e 4 so variaes do compasso 1 nas quais subtrada a semnima e as

    duas figuras restantes aparecem com uma colcheia adicionada entre elas. O compasso 3

    mostra uma variao mais prxima do compasso 1, na qual a nota sib passa a ter o dobro do

    valor inicial ( durao original de semicolcheia foi adicionada outra semicolcheia).

    O minimalismo tambm apresenta tcnicas fundamentadas em adio e subtrao: na

    definio de Cervo (2002), o processo aditivo (ou subtrativo) linear (linear additive process),

    usado por Phillip Glass, adiciona ou subtrai elementos de maneira regular ou irregular, ao

    longo de uma repetio9. Uma tcnica semelhante o processo aditivo/subtrativo textural

    (textural additive process), usado para adicionar ou subtrair vozes em uma textura. J o

    processo aditivo por grupo (block additive process), empregado por Steve Reich pela primeira

    vez em Drumming (1972), consiste em introduzir um grupo (ou bloco) de notas, de maneira

    gradual e no linear (Cervo, 2002, p. 22-23), substituindo pausas por notas, como mostra o

    exemplo abaixo, extrado da peaElectric Counterpoint(1987):

    Figura 2 Processo aditivo/subtrativo por bloco emElectric Counterpoint, de Steve Reich.

    9 Esse processo pode ser regular com a adio de um nmero regular de unidades durante o processo de repetio(ex. 1, 1-2, 1-2-3), ou ainda irregular com a adio de um nmero irregular de unidades (ex. 1, 1-2-3, 1-2-3-4, 1-2-3-4-5-6) durante o processo de repetio (CERVO, 2002).

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    A utilizao do procedimento descrito no pargrafo anterior pode ser facilmente

    observada no incio do trecho mostrado na figura 2, na linha da guitarra solo (indicada na

    partitura como Live10). Tanto nesta linha como nas demais, nota-se tambm o uso da

    subtrao, isto , a substituio de notas por pausas. Apesar de todas as vozes tocarem a

    mesma melodia, o uso da adio e subtrao conciliado com a defasagem entre as partes e os

    efeitos de dinmica promovem uma grande variedade rtmica no todo.

    Como se percebe, o simples uso da adio e da subtrao de forma inteligente mostra-

    se suficiente para que se originem diferentes tcnicas capazes de produzir ou organizar

    materiais musicais de uma forma original e atendendo aos mais variados propsitos estticos.

    Outra operao matemtica simples utilizada para gerar polirritmias e divises

    formais, de maneira similar s que sero apresentadas no captulo 2 desta dissertao, foiadotada por John Cage. Em First Construction (In Metal), de 1939, ele utilizou o clculo da

    raiz quadrada para definir a estruturao rtmica, utilizando o mtodo composicional que

    denominou Square-Root System. Em carta a Pierre Boulez, Cage explica superficialmente

    alguns dos princpios numricos utilizados nesta composio, enfatizando sua fixao pelo

    nmero 16: o tamanho total de 16x16; so usados 16 motivos rtmicos; 16 so os

    instrumentos de percusso empregados (embora sejam somente 6 percussionistas 11) e por

    vezes tambm o nmero 16 influencia o tipo de ataque em cada instrumento. Outro princpiode proporo rtmica o uso de um padro recorrente cujos valores somam 16 (no caso, 4-3-

    2-3-4) e que est presente tanto na micro como na macroestrutura. Em algumas peas da srie

    Sonatas and Interludes for Prepared Piano (1946-48) tambm usado este princpio

    estrutural:

    Uma seo de 10 compassos, por exemplo, poderia consistir de quatro frases quedurariam 2, 2, 3, e 3, compassos. Esta proporo poderia ser tambm aplicada

    macroestrutura, dividindo a obra portanto em quatro grande sees que teriam adurao de 20, 20, 30, e 30 compassos. (BERNSTEIN, 2006)

    Na pgina seguinte esto reproduzidos os primeiros 16 compassos de Second

    Construction (1939), para quatro percussionistas (um deles tocando um piano preparado).

    Exatamente como em First Construction, a forma total da pea consiste em um total de 256

    compassos, divididos em 16 sees de 16 compassos. A principal diferena estrutural aqui a

    10 De acordo com as instrues para interpretao escritas por Reich a guitarra solo, obrigatoriamente tocada ao

    vivo, acompanhada por um grupo de 12 guitarras e 2 baixos eltricos os quais podero ser, estes sim, tantotocados tambm ao vivo quanto soar a partir de uma gravao.

    11 Segundo Cage, provavelmente isso se deva ao fato de haver, na poca, somente 6 percussionistas disponveis.

    19

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    mudana do padro recorrente para 4-3-4-5. Este se manifesta tambm tanto na estrutura

    fraseolgica (nmero de compassos, determinando a subdiviso de cada seo) quanto

    motvica (agrupamentos de colcheias na frase inicial), como mostra a seguinte ilustrao:

    Figura 3 Aspecto do padro 4-3-4-5 em dois nveis estruturais de Second Construction, de John Cage.

    Em contrapartida, exemplos do uso de uma matemtica muito mais complexa do que a

    que est sendo abordada nesta pesquisa podem ser encontrados na obra de Iannis Xenakis. Em

    Pithoprakta (1955-56), ele obteve ritmos quase randmicos com base em uma frmula

    derivada das leis da probabilidade contnua (XENAKIS, 1992). Ao empregar princpiossemelhantes emEonta (1963-64) identificados por ele mesmo como princpios de msica

    estocstica12 o compositor precisou recorrer ajuda de um computador para calcular

    algumas das partes instrumentais, em especial o solo de piano que abre a composio:

    12 Procedimentos estocsticos referem-se ao uso de critrios estatsticos. Xenakis observou que eventos naturaiscomo as formaes de nuvens e a queda de chuva em uma superfcie dura seguem leis estocsticas e aleatrias,que nada mais seriam do que leis da passagem de uma ordem completa para a desordem total, de uma maneiracontnua ou explosiva. (ibid., p. 9).

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    Figura 4 Primeiros compassos da introduo deEonta, de Xenakis, calculada com a ajuda de um computador

    IBM 7090.

    Ao escutar diferentes peas deste autor, nota-se o cuidado de no jogar em segundo

    plano a expressividade musical, exatamente como est sendo proposto aqui. Segundo Albet

    (1979, p. 128), o fato de Xenakis utilizar a matemtica como fator de coerncia no

    obstculo para que sua msica chegue ao ouvinte como portadora de uma grande fora

    dramtica, sem traos de cerebralismo. Entretanto, discutvel se a coerncia musical de

    suas peas seria fruto exclusivo da organizao matemtica, uma vez que os nmeros

    cumprem seu papel gerativo e estrutural, mas no final so percebidos como sons tanto pelosouvintes quanto pelo prprio compositor, durante o ato criativo. E este um dos motivos

    pelos quais considera-se aqui a necessidade de que certos princpios estritamente musicais

    de harmonia, textura e instrumentao, por exemplo devam ser cuidadosamente

    considerados durante o processo de composio com nmeros.

    Outro exemplo do uso de operaes mais elaboradas vem de Conlon Nancarrow, que

    dedicou-se a compor cnones com propores de aumentao e diminuio cada vez mais

    complexas. Ao invs da tradicional relao de 1:2, chegou a utilizar propores como 4:5,14:15:16 e at mesmo nmeros irracionais, como no cnone 1/:2/3. No Estudo n 37, a 12

    vozes, a proporo 150:1605/7:1683/4:180:1871/2:200:210:225:240:250:2621/2:2811/4 a

    mesma proporo que existe entre as notas de uma escala cromtica (SCRIVENER, 2001).

    Obviamente existem nestes cnones inmeros conflitos polirrtmicos, mas a grande maioria

    deles s pode mesmo ser executado por uma mquina no caso, uma pianola, instrumento

    mecnico para o qual foram escritos. A prxima ilustrao apresenta uma pgina do Estudo n

    37 (concludo entre 1965 e 1969), ficando clara a impossibilidade de uma execuo humana:

    21

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    Figura 5 Trecho do Estudo para pianola n 37, de Conlon Nancarrow, mostrando um cnone a 12 vozes no qual

    cada parte tem um andamento independente.

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    Embora haja transcries dos estudos para pianola de Nancarrow para a notao em

    partitura, como visto na pgina anterior, importante lembrar que seu trabalho era registrado

    na verdade por meio de furos em tiras de papel um meio muito mais adequado para se anotar

    espacialmente este grau de preciso rtmica.

    Os princpios numricos e matemticos usados na msica algortmica (por exemplo, na

    msica fractal de Frederico Richter13) e na msica eletrnica (funes exponenciais,

    logaritmos) tambm avanam em complexidade por serem destinados a uma execuo via fita

    magntica e/ou computador. As tcnicas de composio criadas para esta pesquisa prevem,

    pelo contrrio, a gerao de polirritmos que possam ser executados por intrpretes humanos,

    justamente por servir como um meio de despertar habilidades que normalmente no lhes so

    requisitadas. Nas palavras de Gramani, para que acontea uma execuo polirrtmica fluente,

    [...] necessrio que se acione no msico uma srie de funes bsicas que

    normalmente encontram-se adormecidas, fato resultante do estudo baseado no

    aprendizado pela repetio e automatizao. [...] necessrio que se ative a ateno

    ramificando-a em vrias vias quantas forem necessrias e graduando-as de acordo

    com a maior ou menor dificuldade da tarefa proposta. Isto possibilita ao msico

    vencer desafios aritmticos atravs da sensibilidade musical. (S/D, p. 11-12)

    Isto obviamente vale no s para o trabalho de interpretao como solista, mas

    tambm para msica de cmara como requer o primeiro movimento de Three Pieces for

    String Quartet(1914), de Stravinsky. Kramer (1942) esclarece por meio de uma representao

    grfica como feita a sobreposio de 3 ostinatos de diferentes tamanhos14, tocados pelos

    violinos 1 e 2. Abaixo, uma verso simplificada deste grfico mostra como os ciclos

    envolvidos encaixam-se dentro do tamanho total do movimento:

    Figura 6 Estrutura polirrtmica do 1 movimento de Three Pieces for String Quartet, de Stravinsky.

    13 Na pea Monumenta FracTallis-Thomas (para rgo e fita magntica), Frederico Richter homenageia ocompositor ingls do sculo XVI Thomas Tallis fragmentando um coral deste para rgo em sons eletrnicosmediante a utilizao de softwares geradores de estruturas fractais. Assim, combinam-se os sons do rgo com

    sons eletrnicos sintetizados pelo computador atravs de algoritmos matemticos de gerao estocstica.

    14 No constam no grfico as partes da viola e do violoncelo, que juntos tocam sempre frases de 7 pulsos ouseja, trata-se na verdade de um polirritmo a 4 partes.

    23

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    Enquanto o primeiro violino toca insistentemente uma melodia de 23 pulsos, o

    segundo violino toca sempre uma frase de 4 e outra de 8 colcheias, separadas por pausas

    cada uma destas com suas entradas reguladas de acordo com o esquema da figura 6. Na

    primeira pgina do quarteto (fig. 7) esto os ciclos de 7 notas feitos por viola e violoncelo

    (compasso 4 a 6, 7 a 9, etc.), a melodia recorrente do 1 violino (c. 4.1 a 10.2), as duas

    primeiras exposies da frase de 4 colcheias (c. 7.2 e 16.3) e a primeira entrada da frase de 8

    colcheias no 2 violino (c. 11.2):

    Figura 7 Pgina inicial do 1 movimento de Three Pieces for String Quartet.

    Kramer aponta, como conseqncia direta desta repetio literal de ciclos, que a

    harmonia esttica e no h desenvolvimento meldico. Mais adiante, chega seguinte

    concluso:

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    Talvez o experimental primeiro movimento tenha ensinado Stravinsky que duraes

    cuidadosamente controladas podem gerar uma forma. O uso de ciclos simultneos

    de diferentes tamanhos deve ter provado ser muito limitado, entretanto, e ele nunca

    mais utilizou tal procedimento. (ibid, p. 291)

    No prximo captulo deste trabalho sero mostrados procedimentos numricos capazes

    de gerar resultados bastante similares a este de Stravinsky. Porm no h absolutamente

    nenhuma obrigatoriedade de que os ciclos envolvidos devam ser assim to explcitos na

    superfcie musical. Nem de que sries de alturas devam sublinhar a repetitividade destes

    ciclos rtmicos a ponto de impedir o desenvolvimento harmnico e meldico obviamente

    uma opo esttica de Stravinsky no exemplo comentado15. Ademais, o uso simultneo deagrupamentos irregulares entre diferentes elementos da msica entre o tamanho das frases e

    o ritmo harmnico das mesmas, por exemplo aumenta sobremaneira as utilidades

    composicionais deste tipo de procedimento.

    No tocante s alturas, Schoenberg e seus seguidores empregaram as possibilidades

    oferecidas por uma srie formada pelas 12 notas do temperamento igual, incluindo as trs

    formas invariantes geradas a partir desta (retrogradao, inverso e inverso retrgrada) e

    todas as possveis transposies da derivadas. Vrias obras de Webern demonstram suapredileo especial por construes musicais fortemente aliceradas em relaes numricas e

    pelo uso de sries especulares, dadas as propriedades de simetria por estas apresentadas. Ele

    mesmo explica como a srie deve ser construda e quais suas caractersticas mais relevantes:

    Como nasce a srie? Ela no fruto do acaso nem do arbitrrio, mas organizada a

    partir de certas reflexes. Nos propomos determinadas questes formais. Por

    exemplo, tentamos obter o maior nmero possvel de intervalos distintos, ou certas

    correspondncias no interior da srie: simetria, analogia, agrupamentos (trs vezes

    quatro, ou quatro vezes trs sons, por exemplo. [...]

    Em primeiro plano, so enfatizadas as consideraes de simetria, de regularidade,

    que prevalecem agora sobre os intervalos at ento dominantes quinta, quarta,

    tera, etc. (WEBERN, 1984, p. 145-146)

    Oliveira (1998, p. 174-5), em meio a tantas outras anlises minuciosas das obras de

    Webern, mostra o eixo de simetria da srie usada na Sinfonia Op. 21 (1928), o qual faz com

    15 Como meio de potencializar ainda mais o efeito polirrtmico, este movimento utiliza quatro centros distintos,alguns definindo tonalidades: Sol maior (violino 1), Si maior (violino 2), R (viola) e D/Rb [?] (violoncelo).

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    que cada elemento do primeiro hexacorde esteja distanciado de seu correspondente espelhado

    no segundo hexacorde pela classe de intervalos 6 (trtono):

    Figura 8 Srie simetricamente construda para a Sinfonia Op. 21, de Webern.

    No segundo movimento, Variationen, Webern aproveitou a simetria da srie para fazer

    com que as duraes, articulaes e dinmicas tambm fossem simetricamente organizadas.

    No exemplo abaixo fica evidente o eixo de simetria no centro do compasso 6:

    Figura 9 Simetria de alturas, duraes, articulaes e dinmicas no Op. 21, de Webern.

    Entretanto, Schoenberg (1984, p. 214) deixa muito claro que a composio serial,

    embora fosse considerada por ele como apenas um meio de fortificar a lgica, deveria ser

    vista como algo mais do que apenas contar notas. Apesar desta ressalva e de LuigiDallapiccola ter iniciado a partir de 1942 um estilo serial prprio que comportava

    26

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    heptatonismos, enfatizando a expressividade e evitando a rigidez, o serialismo ainda era

    considerado, de maneira geral, 'matemtico' e at desumano (GRIFFITHS, 1978, p. 130).

    A evoluo do serialismo clssico culminou em uma verdadeira exacerbao da

    primazia da tcnica: o serialismo integral, que talvez seja um dos melhores exemplos do que

    se costuma imaginar em termos estticos quando o assunto a utilizao de nmeros na

    composio musical. Neste sistema, adotado por compositores como Milton Babbit, Pierre

    Boulez, Luigi Nono, Henri Posseur, Karel Goeyvaerts e Bruno Maderna, cada elemento da

    msica precisamente medido e calculado de acordo com sries preconcebidas, o que faz com

    que os nmeros determinem totalmente o resultado final. Por isso mesmo, tambm um dos

    melhores exemplos de tudo o que no est sendo almejado e que inclusive evitado no

    uso das tcnicas propostas nesta pesquisa, justamente por se aproximar mais de um jogomatemtico do que de uma ferramenta que estimule a imaginao e a expressividade humana.

    A serializao total aparece nitidamente na escrita da pea Mode de Valeurs et d'Intensit

    (1949), de Messiaen, para a qual foram criadas sries numricas que determinam cada

    elemento: 24 duraes, 36 alturas16, 7 intensidades e 11 tipos de ataque:

    Figura 10 Aspecto da serializao total emMode de Valeurs et d'Intensit, de Messiaen.

    Entre as principais intenes destes compositores esto o rompimento total com a

    retrica, com a tradio tonal e com a dramaticidade na msica, intenes divergentes das

    deste trabalho pelo radicalismo com que so apresentadas e pelo distanciamento que tomam

    em relao percepo, durante o ato de compor. Na poca em que este radicalismo vigorou

    enquanto esttica, havia um grande interesse em criar sons absolutamente diferentes dos que

    vinham sendo ouvidos at ento. Todavia h que se perceber que, embora os adeptos do

    serialismo integral tenham deixado sua inegvel contribuio para a msica posterior, a16 As 36 alturas so divididas em 3 grupos de 12, cada um associado a uma regio do piano: aguda, mdia e grave o que acaba determinando tambm a textura.

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    abdicao de decises composicionais mais subjetivas em prol de uma mecanizao e de um

    tecnicismo sem limites teve na recepo por parte dos intrpretes e do pblico um preo muito

    alto17.

    Ainda assim, digno de meno o Time-Point System, criado por Milton Babbitt. Esse

    sistema de organizao rtmica surgiu da idia de transpor as operaes da msica serial para

    o domnio do ritmo, a partir da analogia que estabelece inicialmente uma correspondncia

    direta entre os intervalos entre alturas e os intervalos entre pontos no tempo. Recursos como a

    inverso meldica e a retrogradao invertida cuja transposio para o ritmo mostra-se

    impossvel com base na percepo acabam tendo seu equivalente rtmico graas notao

    numrica e s operaes matemticas que correspondem a tais transformaes. Inicialmente

    Babbitt determinava as duraes de uma srie rtmica de acordo com a notao numrica dasrie de alturas. No primeiro movimento de Three Compositions for Piano (1947)18 o

    compositor utiliza a srie 5-1-4-2 e suas formas invariantes dentre as quais a retrogradao

    invertida 4-2-5-1. Na figura seguinte esto assinaladas estas duas formas, sendo que os

    agrupamentos so delimitados de diferentes maneiras: pela articulao (compassos 9 e 10),

    por um prolongamento da durao final de cada agrupamento e/ou por pausas colocadas entre

    eles (compassos 49 e 50):

    Figura 11 Serializao do ritmo em dois trechos de Three Compositions for Piano, de Babbitt.

    17 Cf. KOSTKA, 1999, p. 272.

    18 Ainda que no haja exatamente uma srie de dinmicas, esta pea apresenta uma sistematizao pr-composicional das intensidades, alturas, duraes e articulaes dois anos antes de Mode de Valeurs etd'Intensit, de Messiaen, sendo portanto considerada a primeira a empregar o serialismo integral.

    28

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    Mais tarde, trabalhando com o mdulo 12 (geralmente representado por compassos de

    3, 4, 6 ou 12 pulsaes), evoluiu para a tcnica de definir apenas os pontos de ataque das

    notas. Kostka (1999, p. 271-272) compara os resultados de uma srie numrica (originada de

    uma srie de alturas) escrita respectivamente como duraes e como pontos de ataque19:

    Figura 12 Srie 12-3-11-4-1-2-8-10-5-9-7-6 escrita como duraes e como pontos de ataque.

    Esta segunda abordagem sem dvida permitiu uma maior flexibilidade no tocante ao

    aspecto rtmico. No entanto, esta aparente maleabilidade acaba tendo seus limites impostos

    justamente pelo emprego rigoroso dos procedimentos seriais. Talvez a restrio mais sria

    neste sistema seja o mdulo 12, uma vez que faz sentido para organizar em oitavas a gama de

    alturas do temperamento igual mas totalmente alheio ao ritmo musical. Contudo, Wuorinen

    (1979, p. 132) ressalta a importncia do uso de outros mdulos quaisquer: O tempo musical

    no dividido de antemo para ns em nenhuma unidade em particular. Tal diviso [...] deveser imposta sobre o contnuo no dividido do tempo novamente para cada pea.

    Outras maneiras de realizar transferncias do domnio das alturas para o ritmo ou o

    contrrio podem ser enunciadas. Enquanto Henry Cowell (1996, p. 20) defendeu que [...]

    todas as relaes rtmicas podem ser derivadas dos harmnicos [...], Stockhausen, a fim de

    obter uma escala cromtica de duraes, multiplicou um andamento MM=60 pela raiz 12

    de dois, do mesmo jeito que algum multiplica uma freqncia fundamental para derivar uma

    escala cromtica de alturas com 12 notas igualmente temperadas (KOENIGSBERG, 1991, p.

    41)20. E em Klavierstcke XI (1956), construiu matrizes numricas para definir ritmos que,

    posteriormente, viriam a definir as alturas utilizadas na composio21.

    Estes dois procedimentos a traduo de ritmos em alturas e vice-versa encontram

    ressonncia na maneira de compor aqui proposta.

    19 O 12 inicial trocado por 0 (conforme a equivalncia de oitavas, mdulo 12) para a escrita de acordo com oTime-PointSystem, no qual o zero significa o primeiro ponto de ataque do compasso 12/8, que funciona comomdulo temporal.

    20 notvel a semelhana deste procedimento com aquele de Nancarrow anteriormente citado na p. 21.

    21 Cf. TRUELOVE, 1998.

    29

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    Por vezes Bla Bartk tambm definiu parcialmente, com base em princpios

    numricos, as alturas e determinados aspectos rtmicos e formais de algumas de suas obras.

    Ibaibarriaga (2003-2004) informa que todo o primeiro movimento de sua Msica para

    Instrumentos de Corda, Percusso e Celesta (1936) foi gerado e controlado pela seo

    urea22. Trata-se, acima de tudo, de uma potica de espelhamentos que concilia as assimetrias

    do sistema tonal com as simetrias do atonalismo. O princpio de espelhamento afeta inclusive

    a disposio dos instrumentos no palco e o decorrente efeito estereofnico 23. A anlise desta

    fuga permite constatar que o sujeito e demais melodias so criadas a partir de conjuntos

    simtricos24. Cada entrada do sujeito segue transposies que obedecem a um ciclo ascendente

    de quintas justas intercalado com outro descendente de quartas justas desde a nota inicial (L):

    Figura 13 Transposies de cada sujeito da fuga, no primeiro movimento de Msica para Instrumentos de

    Corda, Percusso e Celesta, de Bartk.

    22 Diviso de um todo em duas partes desiguais, de maneira que a parte menor guarde, em relao maior, amesma proporo que a maior em relao ao todo. O valor aproximado que melhor exprime esta relao 0,618. notria a relao existente entre a seo urea e a srie de Fibonacci, comentada no captulo seguinte, p. 39.

    23 Cf. LENDVAI, p. 56-65.

    24 Algumas anlises apontam o emprego de conjuntos no-ordenados cujo eixo de simetria situa-se entre os doiselementos do meio: X e Y (respectivamente: um tetracorde cromtico e outro em tons inteiros, nomeadospor George Perle) e a clula Z (4J-2m-4J, descrita por Leon Treitler). Isso explicaria a predominncia de

    segundas e de quartas justas (e suas inverses) nesta e em outras peas de Bartk. Ern Lendvai, responsvelpela anlise de vrias obras deste compositor, aponta como um princpio essencial da organizao das alturas osistema axial, considerado decorrente do dualismo e da funcionalidade da harmonia tonal tradicional. E quanto forma, aponta a seo urea e os nmeros de Fibonacci como reguladores da proporo das sees e subsees.

    30

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    Tanto a organizao destas transposies meldicas como a ampliao gradual do

    registro (representada pelo polgono na figura 14) so feitas em torno de um eixo principal (a

    nota L) e direcionados a um ponto culminante que est situado exatamente na seo urea do

    todocompasso 56,fff,marcado pelo nico ataque de Gran Cassa em todo o movimento. O

    clmax da forma acontece pouco depois dos dois ciclos de transposio se encontrarem em

    Mibclasse de intervalos 6 (trtono), a mais distante em relao ao centro L (ou o plo

    contrrio, como quer Lendvai)25. Da para o final, as exposies do sujeito so feitas de

    acordo com sua inverso meldica e as transposies seguem seu curso dentro de cada ciclo

    at atingir novamente a nota L. O grfico abaixo mostra uma sntese de todas estas

    caractersticas, incluindo o espelhamento geral das intensidades:

    Figura 14 Organizao das transposies meldicas em relao seo urea do todo, no primeiro movimento

    de Msica para Instrumentos de Corda, Percusso e Celesta, de Bartk.

    25 Apesar da existncia do eixo de simetria L-Mib, que divide a oitava em duas partes de 6 semitons, seralcanado por meio de ciclos tambm simtricos (as quartas e quintas dividem em 12 partes iguais,respectivamente, 5 e 7 oitavas), importante notar que a relao de inverso entre quartas e quintas justas assimtricae, mais do que isso, precisamente situada na seo urea de uma escala diatnica.

    31

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    A frase final, que reapresenta o segundo membro de frase do sujeito na voz superior,

    mostra tambm, no contraponto com a segunda voz, uma espcie de miniatura do

    espelhamento formal do movimento como um todo sobre o eixo L-Mib26:

    Figura 15 Frase final a duas vozes, sintetizando a expanso registral de todo o movimento

    em torno do eixo L-Mib.

    Entretanto, embora haja toda esta influncia dos nmeros e tambm o uso

    concomitante de procedimentos imitativos para construir o contraponto entre as vozes

    (cnones, stretto, etc.), o movimento musical como um todo submetido maneira pessoal do

    compositor orquestrar, criar texturas, conduzir a dramaticidade, desenvolver a rtmica 27, etc.

    Assim, Bartk obtm uma estrutura matematicamente coerente, mas que serve apenas como

    um suporte para que seja manifestada sua inteno expressiva e sua habilidade e criatividade

    enquanto compositor. Ou seja, as duas abordagens interagem naturalmente, tal qual imagina-

    se que deva ocorrer quando do uso das tcnicas propostas neste trabalho.

    De acordo com os exemplos mostrados, podemos notar que os dados numricos vm

    de diversas fontes e que tambm so vrias as maneiras de utilizar estes nmeros

    musicalmente. Tambm variam os graus de complexidade das operaes matemticas

    empregadas, assim como o grau de importncia que dado s tcnicas em si e ao seu

    resultado sonoro/esttico.

    2 FERRAMENTAS COMPOSICIONAIS

    muito comum que um compositor, ao criar uma estrutura musical, o faa de acordo

    com algum princpio j existente. Como j foi dito anteriormente, as tcnicas apresentadas

    neste captulo permitem gerar, a partir de um nmero qualquer, diferentes estruturas musicais,

    26 A escrita musical mostra a nota Mib mais uma vez dividindo o todo aproximadamente na seo urea, pormcom a poro menor vindo antes da maior. Se contarmos as colcheias do primeiro L a Mib e de Mib ao ltimo

    L, encontraremos 5 e 21, dois nmeros da srie de Fibonacci.

    27 O uso de mtricas irregulares, tpicas do folclore hngaro, impossibilita que se localize a seo urea por meioda contagem de compassos. Mais adequada, neste caso, a contagem de colcheias.

    32

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    suscetveis de serem expressas na forma de ritmos ou alturas, conforme a conveno utilizada

    para converter nmeros em sons. As estruturas geradas podero ser posteriormente

    transformadas e organizadas mediante procedimentos que envolvam os nmeros que as

    originaram e/ou artifcios aritmticos. Entretanto independentemente do emprego das

    tcnicas de transformao desenvolvidas j sero encontradas, dentre asdiferentes estruturas

    de mesma natureza inicialmente obtidas (acordes e melodias, por exemplo), aquelas que soem

    completamente diferentes entre si e outras que soem como variaes de uma mesma idia.

    Outro ponto importante a ser enfatizado que existem vrias maneiras de utilizar

    musicalmente cada uma destas estruturas iniciais, de forma anloga s diferentes

    interpretaes implcitas no nmero que as originou. Em outras palavras, cada vez que lermos

    um nmero como uma simples configurao de algarismos, este poder ser considerado tantocomo um conjunto (por conter determinados elementos e excluir os demais elementos

    possveis) quanto como uma srie (por conter uma ordem especfica destes elementos que nele

    esto contidos). Assim, criam-se conjuntos ordenados e no-ordenados tanto de alturas como

    de ritmos. No caso dos conjuntos ordenados, tanto poder cada algarismo corresponder a um

    s elemento da estrutura musical criada, como podero haver repeties antes de vir o

    prximo elemento da srie a exemplo das frmulas de compasso e cifras de acordes, que

    vigoram at que surja uma mudana28

    . Esta ltima leitura poderia sugerir sucesses entrefundamentais, entre reas harmnicas ou entre subdivises rtmicas.

    Entende-se que a concepo geral da obra seja guiada em parte pelas escolhas pessoais

    do compositor, em parte pelos nmeros, promovendo um certo grau de equilbrio entre estas

    duas foras atuantes. Est prevista sempre a interao das tcnicas aqui apresentadas com

    tcnicas j existentes; entretanto, estas ltimas podero ter seu uso limitado ou orientado de

    acordo com os algarismos contidos (e/ou sua disposio) em cada nmero adotado. Seria

    possvel imaginar ainda um processo que lidasse estritamente com os nmeros, embora esteseja um caminho fcil para que se reduza o processo de composio a um mero jogo, o que

    muito provavelmente conduziria anulao da intencionalidade do compositor no processo

    criativo. Como diz Brelet, a criao para o artista um modo de existncia no qual ele deve

    engajar sua prpria personalidade. (1949, p. 149).

    Adotar um ou mais nmeros como ponto de partida para uma composio musical

    vantajoso no s por garantir que o incio do processo se d por estruturas no imaginadas

    pelo compositor, descondicionando-o, mas tambm por possibilitar que se inicie uma nova

    28 Obviamente, algarismos repetidos no tero significado nestes casos, da mesma forma que no faz sentidorepetir uma cifragem de acorde ou frmula de compasso.

    33

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    composio a qualquer instante, mesmo quando no se tem inspirao. Schoenberg (1996)

    evidencia exatamente esta mesma inteno em seu livro Fundamentos da Composio

    Musical: Em meus trs anos de contato com estudantes universitrios [...], percebi que a

    grande dificuldade era a de compor algo sem inspirao. A resposta : isto possvel. (1996,

    p. 260). Contudo, se pensarmos que Schoenberg aponta motivos e frases como os blocos

    musicais mais elementares, a partir dos quais sero formadas unidades maiores de vrios

    tipos (id, p. 28), veremos que seu ponto de partida so intervalos e trades. A diferena aqui

    que a unidade inicial um nmero, abstrato por natureza. E, como tal, poder materializar-se

    sonoramente em estruturas que no determinem diretamente as alturas a serem utilizadas.

    Outra vantagem da utilizao dos nmeros no processo de criao de uma obra

    musical a pronta disponibilidade de alternativas para esquivar-se de ocasies em que sechegue a um impasse, travando a fluncia do processo dificuldade freqentemente

    encontrada, em determinado trecho, por diversos compositores. Alm destas utilidades de

    cunho prtico, aproveita-se tambm uma capacidade que todo o estudioso da msica acaba

    naturalmente desenvolvendo: associar diferentes nmeros aos mesmos elementos musicais. A

    nica diferena que, no caso do presente estudo, a situao inversa: cada nmero ser

    capaz de gerar muitos materiais diferentes, devido pluralidade de interpretaes a que

    suscetvel. Considerando um intervalo de segunda menor, percebe-se que diferentes nmerosso utilizados para represent-lo, sendo entendidos praticamente como sinnimos; alm do 2 e

    do 9 (intervalo composto, pela teoria tradicional) temos o 1 e o 13 (que equivalem,

    respectivamente, 2 m e 9m, pela Teoria dos Conjuntos). O compasso 9/8, quando um

    ternrio composto, traz consigo a associao entre 9 e 3 (numeradores da frmula do

    compasso composto e da de seu equivalente simples). E assim por diante.

    Um nico nmero relativamente pequeno dever ser suficiente para fornecer os

    materiais para que se escreva uma pea inteira, tendo em vista a quantidade de material quepoder ser obtido a partir deste. Pensando em alturas, percebe-se logo que um material

    limitado (ou seja, que no comporte todas as 12 notas da gama temperada) tende a criar uma

    certa identidade harmnica, ainda que expressa melodicamente efeito geralmente referido,

    em se tratando de modalismo, como sabor ou carter modal (vide PERSICHETTI, p. 29-

    30). Variaes mais radicais permitem gerar um ambiente contrastante no mbito das alturas e

    tambm uma maior diversidade rtmica. Desta forma, nota-se que o emprego dos

    procedimentos descritos neste captulo atuaro ao mesmo tempo como um fator de limitao e

    de multiplicao do material musical a ser utilizado. As poucas restries feitas na escolha dos

    nmeros que faro parte do processo de composio, descritas posteriormente conforme cada

    34

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    caso especfico e consideradas estritamente necessrias, tm sua razo de ser no s pelos

    motivos estticos que orientam este trabalho (a exemplo da predileo por configuraes que

    gerem estruturas rtmicas irregulares), mas tambm por respeito percepo dos sons e pela

    inteno de obter uma grande variedade de materiais a partir de poucos elementos.

    No campo das alturas, este certo nvel de aleatoriedade na escolha dos nmeros

    permite que possam ser geradas tanto sonoridades convencionais (tais como trades e ttrades)

    quanto outros aglomerados sonoros quaisquer. De maneira geral as formaes assimtricas

    sero privilegiadas, visto que so a maioria comparada com os conjuntos simtricos.

    Geralmente estes ltimos chamam ateno justamente por serem raros, mas a vantagem dos

    conjuntos assimtricos que apresentam maior variedade de sonoridade em suas diferentes

    disposies. Assim, a partir de um determinado acorde, por exemplo, so obtidos vriosoutros, com diferentes caractersticas que podero contribuir para efeitos de flutuao

    harmnica. As formaes simtricas, embora chamem a ateno de muitos artistas

    (especialmente por sua representao grfica), mostram sua faceta demasiadamente

    limitadora em um contexto harmnico. A msica da primeira metade do sculo XX explorou

    amplamente esse tipo de conjunto: escalas de tons inteiros, octatnicas, acordes diminutos e

    aumentados, etc. Por mais que existam inmeras obras de indiscutvel valor artstico que

    tenham sido construdas com materiais dessa natureza, h que se reparar em suas limitaescolorsticas. Por esse motivo, quando um nmero produzir algum arpejo de acorde ou

    formao escalar muito conhecida, simtrica ou no, aconselhvel transform-lo ou

    simplesmente procurar um outro nmero de caractersticas diferentes para ser usado como

    possibilidade de contraste ou complemento da sonoridade. A interao dos dois tipos de

    conjunto dever promover, por conseguinte, uma maior variedade de cores e graus de tenso

    harmnica possveis.

    No obstante, as simetrias sero exploradas na parte rtmica, visto que um ritmoespelhado parece ser mais facilmente perceptvel do que um grupo espelhado de alturas. At

    mesmo porque, em um contexto musical, as notas de um grupo simetricamente formado

    necessariamente aparecero em uma determinada ordem e espaamento registral e

    manifestadas sob alguma forma rtmica, as quais podero ou no privilegiar a percepo desta

    simetria. Alm disso, formas espelhadas tendem a inspirar uma certa direcionalidade nos

    processos de transformao dos diversos elementos musicais, como visto em Bartk ou

    mesmo nas tradicionais forma em arco (A-B-A, exposio-desenvolvimento-reexposio,

    etc.).

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    2.1 TIPOS DE NMEROS UTILIZADOS

    Neste trabalho sero usados exclusivamente nmeros inteiros28, por sua praticidade.

    No tocante s alturas, os nmeros decimais sero evitados, pois gerariam freqncias fora do

    temperamento igual, e no h aqui de forma alguma a pretenso de lidar com intervalos

    menores que o semitom29. Quanto s duraes, no est descartado o uso de compassos com

    numerador fracionrio (decimal)30, por exemplo. importante observar que ao lidar com

    nmeros inteiros em um determinado nvel estrutural do ritmo (de colcheias, por exemplo),

    naturalmente h a possibilidade de serem gerados o que Asimov chama de nmeros

    quebrados em um nvel maior (de semnimas, neste caso), como ocorre quando as

    acentuaes de uma frase de 7 colcheias sugerem o compasso 3.5/4. O autor ressalta autilidade de lidar com nmeros inteiros, ainda que em clculos que envolvam fraes: afinal

    de contas, se as partes dos nmeros podem ser manejadas como nmeros comuns, elas podem

    ser consideradas nmeros comuns para todos os fins, prticos ou tericos (ASIMOV, 1994,

    p. 48).

    Os nmeros utilizados sero distinguidos mediante a separao em dois grupos,

    segundo a sua natureza e de acordo com a maneira como so considerados ou obtidos:

    a)Nmeros comuns so todos aqueles que no apresentam necessariamente nenhum

    tipo de propriedade particular observvel. Podem ser obtidos aleatoriamente, das mais

    variadas fontes: nmeros de telefone, de residncia, de placas de carro, das horas de um

    relgio, nmeros que acompanham cdigos de barra, de CPF, RG, etc. ou de qualquer outra

    fonte na qual seja possvel notar uma seqncia de algarismos em uma ordem especfica. Por

    se tratar de nmeros que esto diariamente disposio, basta observ-los, buscando um

    exemplar interessante31

    para ser interpretado de um ponto de vista musical, aps ter sido feita28 Mais precisamente, o conjunto dos nmeros naturais (inteiros no-negativos).

    29 Pequenas oscilaes na afinao podero ocorrer naturalmente durante a interpretao, como comum emdeterminados instrumentos. Este apenas um detalhe que diz respeito a uma conveno de cunho prtico. Nasubseo seguinte (2.2), sero abordadas em maiores detalhes a converso de nmeros para alturas e paraduraes.

    30 Em composies anteriores do autor j foram utilizados os compassos 31/2/4 (3.5/4) e 71/4/4 (7.25/4), entreoutros. Gardner Read (1979) mostra algumas formas de notao destes compassos cujas unidades de tempo noso todas inteiras, os quais chama de compassos de numerador fracionrio.

    31 O que seria um exemplar interessante? Uma resposta definitiva ficar a cargo do compositor, que poderdescobrir como ele soa, seja como ritmo, melodia ou acorde. Em muitas outras abordagens composicionais oautor tambm escolhe os materiais musicais que ir usar de uma forma subjetiva, de acordo com seu interesse esua percepo.

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    a converso de nmeros para sons com base em alguma das convenes sugeridas. A escolha

    deste nmero obedecer a pouqussimas restries. A principal que cada nmero tenha

    variedade de algarismos, o que aumenta as possibilidades rtmicas, meldicas e harmnicas

    dele decorrentes.

    Embora seja possvel gerar algumas estruturas musicais com apenas dois algarismos,

    importante observar que um nmero contendo trs algarismos diferentes o mnimo para que

    se tenha uma maior versatilidade, uma vez que permite formar tanto acordes, quanto motivos

    meldicos e rtmicos, todos estes com diferentes possibilidades de variao, especialmente se

    tratados como um conjunto no-ordenado. A partir da possvel deduzir que, quanto menor o

    nmero, menos repeties de algarismos este dever conter, independentemente de estar

    sendo feita a converso para ritmo ou alturas. Este cuidado garante que nmeros assimescolhidos possam gerar ritmos com uma certa irregularidade, melodias ou motivos

    meldicos com maior variedade de contorno e acordes com maior possibilidade de mudana

    de sonoridade quando invertidos. Dependendo da fonte consultada, sero obtidos nmeros de

    tamanho variado, seccionados ou no32. O tamanho mximo do nmero limitado apenas

    pelo tamanho da pea. Obviamente, nmeros muito grandes clamam por uma partio em

    unidades menores (subconjuntos), o que torna possvel a construo de motivos ou frases

    inteligveis, dado o limite de nossa percepo auditiva. Nas palavras de Schoenberg (1996, p.27-28), [...] s se pode compreender aquilo que se pode reter na mente, e as limitaes da

    mente humana nos impedem de memorizar algo que seja muito extenso. Considerando estas

    limitaes, possvel concluir que formaes mais extensas, apesar de utilizveis,

    provavelmente funcionariam melhor em uma voz secundria, na complementao da textura.

    Todas estas observaes levam a crer, portanto, que qualquer configurao numrica que

    obedea s restries mnimas expressas neste trabalho dever ser perfeitamente aproveitvel

    no processo de composio de uma obra musical.

    b)Nmeros especiais so todos os nmeros que apresentam propriedades especficas

    ou que so considerados somente enquanto componentes indissociveis de um determinado

    conjunto ou srie. Embora talvez no seja adequado tratar sries e conjuntos sob o rtulo

    nmeros especiais uma vez que no so nmeros, mas justamente conjuntos e sries foi

    tomada a liberdade de empregar o termo neste contexto por tratar-se de uma maneira prtica e

    32Alguns nmeros encontrados no cotidiano sugerem uma partio em unidades menores, como o caso dos querepresentam horas, medidas, e datas separados respectivamente por dois pontos, vrgulas e barras. Estasdivises podero ser obedecidas ou no para o uso composicional, definindo subconjuntos ou agrupamentos,conforme o caso.

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    direta de se referir a estes casos, diferenciando-os dos anteriores. Muitos dos nmeros, sries

    e conjuntos apresentados a seguir no so facilmente encontrados em livros de matemtica,

    mas em livros de curiosidades sobre matemtica. O termo pseudomatemtica, embora possa

    sugerir um significado pejorativo, eventualmente empregado para se referir a este tipo de

    estudo que pode no trazer avano nenhum para a matemtica, mas que aponta propriedades

    de certos nmeros que geralmente tm um apelo esttico. Todos os conjuntos existentes

    podem ser expressos em forma de srie, se colocarmos seus nmeros em ordem crescente. A

    seguir, alguns tipos de nmeros especiais so destacados:

    Nmeros primos33 cada nmero primo divisvel somente por ele mesmo e por 1.

    Os menores que 100, obtidos pelo procedimento conhecido como Crivo deEratstenes, so: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37, 41, 43, 47, 53, 59, 61, 67,

    71, 73, 79, 83, 89 e 97.

    Sries geradas pela forma dos nmeros Asimov (1994) explica que os gemetras

    da Grcia antiga costumavam contar os pontos de determinadas formas geomtricas.

    Por um procedimento de adies sucessivas, mantendo a mesma forma, chegavam a

    sries numricas especficas. A figura abaixo ilustra com exatido este processo:

    Figura 16 Aspecto visual dos nmeros triangulares e quadrados.

    33 Gilberto Mendes, na pea Qualquer Msica (1980), organiza a srie meldica, as combinaes rtmicas e asdinmicas a partir da srie dos nmeros primos.

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    Todas estas sries comeam com um nico ponto, considerado como uma verso

    microscpica da forma manejada. Algumas das sries mais conhecidas obtidas por

    este mtodo so:

    - Nmeros triangulares: 1, 3, 6, 10, 15, 21, 28, 36, 45, 55, etc.

    - Nmeros quadrados: 1, 4, 9, 16, 25, 36, 49, 64, 81, 100, 121, 144, 169, 196, etc.

    - Nmeros pentagonais: 1, 5, 12, 22, 35, 51, 70, etc.

    - Nmeros cbicos: 1, 8, 27, 64, 215, etc.

    O autor esclarece ainda que os nmeros triangulares expressam a soma de nmeros

    inteiros positivos consecutivos acumulados em ordem crescente (1+2=3, 1+2+3=6,etc.) e os pentagonais, a soma daqueles que possuem intervalo de 3 entre si (1+4=5,

    1+4+7=12, etc.). Como os prprios nomes indicam, a srie dos nmeros cbicos e

    quadrados representam, respectivamente, a srie dos nmeros inteiros positivos cujos

    elementos tenham sido todos elevados 3 e 2 potncia. Devido ao fato de que

    podem ser decompostos em fatores iguais, estes quadrados so tambm conhecidos

    como quadrados perfeitos. Entre outras caractersticas particulares, nota-se que as

    unidades desta srie formam repetidamente o seguinte perodo simtrico (separadosempre por um zero): 1, 4, 9, 6, 5, 6, 9, 4, 1.

    Nmeros perfeitos de acordo com Souza (2003), um nmero inteiro denominado

    perfeito quando a soma de todos os seus divisores (menores que ele) igual a ele

    mesmo. No caso do nmero 28, seus divisores 1, 2, 4, 7 e 14 somam 28.

    Nmeros amigos diz-se que dois nmeros so amigos se cada um deles igual asoma dos divisores prprios do outro. Um exemplo de nmeros amigos dado pelo

    par 284 e 220. Os divisores prprios deste ltimo so 1, 2, 4, 5, 10, 11, 20, 22, 44, 55 e

    110. Somando-os obtm-se 284, cujos divisores, por sua vez (1, 2, 4, 71 e 142),

    somam 220 (SOUZA, 2003).

    Srie de Fibonacci srie de nmeros descoberta pelo matemtico italiano Leonardo

    Fibonacci, no sculo XII: 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, etc. Iniciando por 1,

    cada nmero subseqente a soma dos dois anteriores. Vrias outras propriedades

    especiais j foram apontadas, mostrando-se constante entre nmeros eqidistantes,

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    situados em qualquer ponto da srie. Dentre estas, destaca-se que a proporo entre

    cada nmero consecutivo progressivamente mais prxima da seo urea (0,618),

    medida em que se avana nela. Talvez justamente por conterem tantas caractersticas

    marcantes e tambm por suas abundantes manifestaes na natureza tanto a

    proporo urea como a srie de Fibonacci tenham sido os casos numricos especiais

    mais explorados nas artes visuais e na msica.

    Outros nmeros, como por exemplo 1089 (conhecido como nmero mgico devido

    s suas estranhas propriedades de adio)34, e qualquer outra srie (finita ou infinita) cairo

    tambm neste grupo35.

    Sem dvida haver tambm a possibilidade de um nmero comum ser enquadradoaqui, caso venha a apresentar alguma caracterstica similar s descritas ou ser considerado

    como parte de uma das sries ou conjuntos existentes. Como exemplos mais imediatos, basta

    lembrar o fato de que absolutamente todos os nmeros naturais (que em si j so um

    conjunto) fazem parte da srie ou dos pares ou dos mpares, e que todos tm, sem exceo,

    seu conjunto de divisores. Mais uma vez o que importa aqui essencialmente a maneira como

    os nmeros so observados e tratados.

    2.2CONVENES ADOTADAS PARA A CONVERSO DE NMEROS EM RITMO E

    EM ALTURAS

    Uma vez que considera-se a leitura dos nmeros comuns simplesmente como um

    conjunto finito de algarismos, dispostos em uma determinada ordem, a converso destes para

    som levar em considerao somente os algarismos de 0 a 9. A converso de nmeros

    formados por dois ou mais algarismos, necessria para que seja utilizada a grande maioria dosnmeros especiais acima mencionados, dever apenas obedecer ao sistema decimal.

    Diferentes maneiras de associar os nmeros a alturas ou elementos rtmicos garantem

    boa parte da variedade de materiais obtida por meio das tcnicas de gerao de estruturas

    musicais. Estas diferentes possibilidades de converso fazem-se necessrias, visto que o que

    prevalece neste trabalho a explorao dos diferentes significados que podem ser suscitados

    34 Sempre que se tome um nmero qualquer formado por trs algarismos distintos e sua verso escrita em ordemreversa, subtraia-se o menor do maior, e realize-se a soma entre o resultado obtido (um novo nmero de trs

    algarismos diferentes) e seu inverso, o resultado final ser 1089. Por exemplo: 985-589=396; 396+693=1089.

    35 Para utilizar uma srie infinita, ser preciso obviamente escolher apenas uma parte desta de preferncia umtrecho do incio, por ser mais fcil de lidar.

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    por um determinado conjunto de algarismos, de acordo com a observao do compositor e

    conforme a prpria abstrao que o conceito de nmero comporta.

    Ao invs de terem sido criadas novas convenes, foram aproveitadas formas j

    existentes de relacionar os nmeros ao ritmo e s alturas. Uma ou outra modificao foi

    realizada com o propsito de adapt-las aos objetivos desta pesquisa. So elas:

    2.2.1 Converso de nmeros em ritmo

    O aspecto rtmico36 entendido aqui como sendo o mais diretamente relacionado aos

    nmeros, por no depender tanto de algum tipo de conveno arbitrria. Em outras palavras:

    trs sons ou trs agrupamentos de sons, por exemplo, so manifestaes sonoras explcitas donmero 3, geralmente de fcil percepo. Para que se possa gerar estruturas rtmicas a partir

    de nmeros, basta escolher uma figura de durao que represente o nmero 1. Esta figura ser

    chamada neste trabalho simplesmente de unidade rtmica, constituindo a referncia para os

    demais nmeros, para que se resolva a converso de nmeros para duraes e sua

    representao grfica em partitura37. A partir desta unidade, podem ser formados grupos de 2

    ou mais sons, com acentuao na primeira nota. Cabe observar que existem diversas figuras,

    alm das que recebem um nome especfico (colcheias, mnimas, etc.), que podemperfeitamente ser tomadas como unidade, tais como as figuras pontuadas e as pertencentes a

    alguma diviso de quiltera. Alm da acentuao, fatores como articulao, timbre, textura e

    alturas podem atuar como elementos que ajudam a definir cada agrupamento.

    Outra maneira de lidar com a unidade rtmica adotada considerar que qualquer

    algarismo maior do que 1 represente um prolongamento em relao a esta, estabelecendo

    assim propores entre diferentes duraes. De resto, todos os elementos que costumam ser

    considerados de natureza primordialmente rtmica (acentos, ataques, etc.) podero sercontados, obedecendo portanto s quantidades expressas pelos nmeros em uso. O ponto

    inicial para cada contagem poder ser estabelecido conforme as sees, unidades

    fraseolgicas ou compassos j criados, dependendo do tamanho do nmero a ser contado.

    A nica conveno arbitrria considerada estritamente necessria para a converso de

    nmeros em estruturas rtmicas refere-se ao zero. A analogia mais imediata associ-lo

    pausa. Entretanto, surge da um problema: em matemtica, o zero representa nenhuma36 Entende-se aqui por aspecto rtmico tudo aquilo que se relaciona s duraes, tal como motivos, frases,

    perodos, sees e o ritmo harmnico.

    37 Esta conveno foi usada por diversos compositores do sculo XX. Exemplos podem ser observados em obrasde Babbitt, Nono, Boulez e Stockhausen.

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    quantidade. Na teoria musical bsica, geralmente as pausas so ensinadas como sendo

    valores negativos em contraposio aos valores positivos das duraes sonoras. Ou seja,

    no h espao para zero em msica, uma vez que impossvel conceber nenhuma

    quantidade de som ou de silncio dentro dos limites de uma composio. Sendo assim,

    prope-se aqui que o zero seja considerado simplesmente como uma unidade em silncio, j

    que assim ao menos preserva-se o total de algarismos do nmero utilizado quando de sua

    manifestao em ritmo ou em alturas. Em outras palavras, um nmero composto por 5

    algarismos poder gerar tanto estruturas rt