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Comunicação Social Os Brasileiros de Lado a Lado: estudo de caso da telenovela como construção de memória no Rio da Belle Epóque tropical Aluna: Caroline Bonfim da Fonseca Orientador: Tatiana Oliveira Siciliano Introdução: A pesquisa se propõe a refletir sobre a narrativa da telenovela de época Lado a Lado e de como a trama constrói um imaginário coletivo sobre o passado, ressaltando o papel pedagógico exercido pelo folhetim eletrônico. As novelas são uma interpretação da nação e não só propagam os ideais estruturados na sociedade, como também ajudam a consolidar outros. Por ser uma representação social, é criada a partir de códigos compartilhados, bem como disseminar outros. É uma via de mão-dupla: A TV constrói o povo e é construída por ele (IMMACOLATA, 2009). Por isso, também acabam por reforçar certos estereótipos sobre o tipo nacional, como a trabalhadora sofredora, o malandro, o desonesto, o honesto demais, etc (BACCEGA, 1998). Nesse sentido, olharemos para os signos que são colocados na abertura da novela e durante as cenas. A abertura é uma chave importante de estudo já que ela conduz como o telespectador vai assistir a trama. Além disso, uma análise detalhada das cenas mais importantes também é parte fundamental da pesquisa. A novela exerce um papel fundamental na construção do ideário do público sobre o momento histórico que se dispõe a tratar. Mesmo com uma licença poética e sendo, antes de mais nada, uma narrativa ficcional, a teledramaturgia (principalmente quando é de época) contém uma rica pesquisa de fatos históricos e faz seu enredo contando com esses fatos. Logo, a maioria dos telespectadores, por mais que saibam que a novela não é verídica, reconhecem na verossimilhança muito bem embasada a ilustração desses momentos marcantes da história. Essa verossimilhança se dá não somente pela narrativa, mas também por toda caracterização presente nas cenas:

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Comunicação Social Os Brasileiros de Lado a Lado: estudo de caso da telenovela como construção de

memória no Rio da Belle Epóque tropical

Aluna: Caroline Bonfim da Fonseca Orientador: Tatiana Oliveira Siciliano

Introdução:

A pesquisa se propõe a refletir sobre a narrativa da telenovela de época Lado a

Lado e de como a trama constrói um imaginário coletivo sobre o passado, ressaltando

o papel pedagógico exercido pelo folhetim eletrônico. As novelas são uma

interpretação da nação e não só propagam os ideais estruturados na sociedade, como

também ajudam a consolidar outros. Por ser uma representação social, é criada a partir

de códigos compartilhados, bem como disseminar outros. É uma via de mão-dupla: A

TV constrói o povo e é construída por ele (IMMACOLATA, 2009). Por isso, também

acabam por reforçar certos estereótipos sobre o tipo nacional, como a trabalhadora

sofredora, o malandro, o desonesto, o honesto demais, etc (BACCEGA, 1998).

Nesse sentido, olharemos para os signos que são colocados na abertura da

novela e durante as cenas. A abertura é uma chave importante de estudo já que ela

conduz como o telespectador vai assistir a trama. Além disso, uma análise detalhada

das cenas mais importantes também é parte fundamental da pesquisa.

A novela exerce um papel fundamental na construção do ideário do público

sobre o momento histórico que se dispõe a tratar. Mesmo com uma licença poética e

sendo, antes de mais nada, uma narrativa ficcional, a teledramaturgia (principalmente

quando é de época) contém uma rica pesquisa de fatos históricos e faz seu enredo

contando com esses fatos. Logo, a maioria dos telespectadores, por mais que saibam

que a novela não é verídica, reconhecem na verossimilhança muito bem embasada a

ilustração desses momentos marcantes da história. Essa verossimilhança se dá não

somente pela narrativa, mas também por toda caracterização presente nas cenas:

figurino, cenário, músicas, coloração, forma de falar e agir dos personagens, etc.

Esse jogo entre TV e telespectadores se dá porque com as transformações

tecnológicas e a mudança dos padrões de consumo (principalmente consumo

audiovisual), a televisão aberta ainda é o veículo que recebe o maior aporte

publicitário1, a TV Globo continua liderando2 e a telenovela segue sendo o formato

ficcional mais assistido3. É uma questão cultural; não só porque uma boa parte da

sociedade não tem acesso a essas novas formas de TV, mas também por ser um

hábito muito forte na vida dos brasileiros. Ela continua sendo o mais poderoso veículo

de comunicação, influenciando comportamentos, pautando outros programas e fazendo

parte do dia a dia da comunidade. Essa relação estabelecida é muito perigosa já que

as novelas de hoje que retratam o passado, o retratam com o olhar contemporâneo e

as ressalvas para assisti-las nesse ângulo raramente são feitas.

O objetivo deste trabalho é compreender como o brasileiro é abordado na novela

e como isso é recebido pelo telespectador através do estudo da novela e de textos

específicos sobre o tema. Também fazem parte do estudo, a análise do contexto

histórico que é retratado na telenovela e os estereótipos atribuídos àquele momento.

Como metodologia foi realizada a coleta, o registro e a sistematização dos

capítulos da novela Lado a Lado filtrando pelo viés de análise da pesquisa:

personagens, caracterização e construção dos mesmos, a que núcleo pertencem e

qual brasileiro eles tentam retratar.

1 Cf. dados do Ibope Kantar, a televisão aberta recebeu 55.1% dos recursos publicitários em 2016,

seguida muito de longe pela televisão por assinatura (12.6%) e pelo jornal (11.7%). Disponível para download em http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/investimento-publicitario-cai-16-em-2016-e-soma-r-130-bilhoes.ghtml. Acesso em 15/07/2017. 2 A TV Globo possui 37,9% da liderança domiciliar, maior do que a soma de todos os canais veiculados

nas televisões por assinatura (21.9%) e da segunda e terceira colocadas na televisão aberta, a Record (15,3%) e a SBT (14,4%). Cf. Dados do relatório do OBITEL, Observatório Ibero Americano de Televisão. http://obitel.net/wp-content/uploads/2016/09/obitel-portugues-2016-1.pdf, Acesso em 20/07/2017. 3 Cf. Dados do relatório do OBITEL, Observatório Ibero Americano de Televisão. http://obitel.net/wp-content/uploads/2016/09/obitel-portugues-2016-1.pdf, Acesso em 20/07/2017.

Liberdade, Liberdade: a Abertura de Lado a Lado

Um dos elementos mais importantes em uma ficção seriada audiovisual é a sua

abertura. Em Lado a Lado a abertura é constituída de uma série de pequenas cenas

que eram comuns para a época (início do século XX). Os capoeiristas lutando;

populares tocando samba com as mãos suadas; a dama da alta sociedade que se

perfuma com um lança perfume; o futebol com uniformes bem antigos; essas são

cenas que, além de estarem presentes na abertura, aparecem durante toda a novela,

ambientando assim o telespectador ao contexto que está prestes a ser inserido.

É interessante perceber que durante as cenas da abertura, os takes são em slow

motion e elas se dão a partir dos detalhes. As mãos suadas; as costas do negro visto

de cima que luta capoeira; as meias dos jogadores de futebol; a sutileza do fogo

acendendo o lampião na rua; as vestes da mulher de alta classe. Todos esses

pequenos detalhes que fazem as distinções de classes sociais e desigualdades

(presentes na novela e no momento histórico retratado), dos novos e velhos costumes

que a constituem e os símbolos culturais que ela quer reforçar em seus capítulos.

Outro aspecto importante da abertura que deve-se atentar é a música.

“Liberdade! Liberdade! Abra as Asas Sobre Nós” foi samba enredo da escola Imperatriz

Leopoldinense quando ela foi campeã do carnaval em 1989. A união da música com os

takes reforça que, mesmo após a abolição da escravidão, a busca pela liberdade ainda

persistia, juntamente com as diferenças evidentes de costumes e classes dentro de

uma mesma sociedade. Como podemos conferir em algumas de suas estrofes:

(...)Pra Isabel, a heroína

Que assinou a lei divina

Negro, dançou, comemorou o fim da sina

Na noite quinze reluzente

Com a bravura, finalmente

O marechal que proclamou

Foi presidente

Liberdade, liberdade!

Abra as asas sobre nós

E que a voz da igualdade

Seja sempre a nossa voz

Por que assistir o passado? Existem dois contextos que devem ser considerados na análise de Lado a Lado:

o contexto retratado na novela, do Brasil no início do século XX, e também o contexto

em que a novela foi exibida, que se passou entre os dias 10 de setembro de 2012 e 8

de março de 2013. O primeiro dos contextos é de um recém-nascido Brasil republicano.

Atualmente, fica claro para muitos historiadores que a Proclamação da República foi

uma estratégia política que não mudou efetivamente as estruturas sociais e

econômicas do país.

A onda republicana chega ao Brasil nos anos 1870, com os jovens idealistas

como Silva Jardim, jornalistas, intelectuais da época que se identificavam com as ideias

positivistas e até militares inspirados por Benjamin Constant. Sabe-se que o Império

estava perdendo força no Brasil e, com as mudanças drásticas na estrutura do país

(como a abolição da escravidão, em 1888), o Império ruiu de vez. No início, essa nova

República era desorganizada e até inconsistente com o Governo Provisório de Deodoro

da Fonseca, e uma série de conflitos entre o poder executivo e o legislativo. Somente

com as articulações para a candidatura de Campos Sales, em 1898, vê-se uma

estabilização maior na política brasileira. É o início da muito conhecida “política dos

governadores”. (BELLO, 1959)

Na “política dos governadores”, o processo eleitoral era caracterizado por

diversas esferas, baseado na troca de favores. Consideremos quatro esferas de poder:

primeiramente vinha o poder dos coronéis; em segundo, o poder municipal; em

terceiro, o poder estadual e, por fim, o poder do presidente da república. Após a

eleição, a instância municipal contava com a Comissão Verificadora de Poderes (CVP),

que escrevia uma ata com as informações dos eleitos. As atas de cada município eram

unidas pela Comissão Estadual, que por sua vez entregava a totalização dessas atas

para a Comissão Verificadora de Poderes do nível federativo. A princípio, o presidente

da CVP era escolhido pelo critério de idade; posteriormente o critério é modificado e o

presidente passa a ser o parlamentar que possuísse mais apoio político. Isso fez com

que houvesse um congelamento dos conflitos e a “eternização das situações de poder”.

As relações entre as esferas eram baseadas na troca de apoio das bancadas em troca

de dinheiro e influência social. É a estruturalização do personalismo (BUARQUE,1936),

no qual os interesses pessoais prevalecem perante os interesses públicos. É o

momento de concretização do ditado popular “Para os amigos, tudo. Para os inimigos,

a lei”. Essa política de favores, (que, diga-se de passagem, existe até hoje) também é

retratada na novela. Desde o princípio da trama, fica claro para o telespectador que

Constância e Assunção estão em decadência por causa dos dotes do casamento de

Laura com Edgar e pelo fim do Império eles perderam status social. Diante dessa

situação financeira diferente da que tinham na época do Império, eles cercam o

senador Bonifácio e sua esposa Margarida de todas as formas para conseguir o apoio

político de Bonifácio e colocar Assunção em uma boa posição dentro do governo

republicano. Constância chega a manter um caso amoroso com Bonifácio para

conseguir articular a ascensão política do marido. No sétimo capítulo de Lado a Lado,

Constância começa a articular seu poder de convencimento para conseguir essa tão

sonhada “retomada de poder”.

Constância: Temo que um escândalo manche a sua reputação, Senador.

Bonifácio: Tenho a consciência tranquila.

Constância: Mas disso eu não tenho dúvidas. E por isso mesmo me envergonho de ser uma

ameaça a tamanha calmaria.

Bonifácio: A senhora ameaça a minha reputação? Mais que sugestivo.

Constância: Se a avó materna de seus futuros netos estiver vivendo na miséria, as pessoas vão

comentar. Eu achei melhor alertá-lo enquanto é tempo.

Bonifácio: A senhora não é mulher de contar trocados.

Constância: A nossa família não é a mesma há um bom tempo. Os escravos se foram, as terras

secaram.

Bonifácio: Mas não perderam a dignidade. E nem o charme secou. Há algum tempo eu comprei

alguns terrenos do seu marido. Achei que isso teria resolvido.

Constância: Mas eu não vim em busca de empréstimos e nem de ajudas temporárias. Eu gostaria

que meu marido servisse a república como serviu mim. Ele é um médico por formação. Um

entusiasta nos genes. E tem as ideias muito afinadas com as de seus amigos republicanos. Se

lembra que ele lhe sugeriu uma lei contra os homens que andam sem camisa nas ruas do Rio?

Bonifácio: Já encaminhei e vai ser aprovada, eu aposto.

Constância: Ah, mas então o prefeito ha de se lembrar do nome Alberto Assunção quando o

senhor pedir uma colocação para ele.

Bonifácio: Enfim, chegamos ao ponto!

Constância: Nós não temos grandes pretensões. Apenas um cargo público, que nos dê

estabilidade.

Além de toda essa questão política que pairava por esse novo Brasil, devemos

considerar a questão racial como crucial para o estudo da novela. Após a abolição da

escravidão (1888), o que fazer com a população negra? Embora a formação étnica dos

brasileiros já estivessem em pauta desde o início do Segundo Reinado, após 1870,

várias teorias racialistas propuseram uma argumentação cientificista sobre a

superioridade branca. O primeiro a trazer a composição étnica do Brasil, como um dos

elementos centrais à identidade nacional foi alemão Karl Von Martius, com a

monografia premiada pelo IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro) Como se

deve escrever a história do Brasil (1845). Para ele, o Brasil, recém independente de

Portugal, era fruto da miscigenação entre negros, índios e europeus, mas só se tornou

uma nação, devido à superioridade europeia. Em sua tese, o elemento português seria

o condutor do país, lideraria os “ingênuos” autóctones e, os negros, que chegaram da

África. Estes últimos, quase não são descritos no texto, pelo Brasil ainda ser um país

escravocrata. Essa concepção de que um povo é inferior a outro permaneceu no

imaginário mesmo após a Abolição, forjando o pensamento e o discurso das elites. Não

é por acaso que leis repressivas, como a Lei da Vadiagem, sempre foram vistas como

naturais e civilizadoras, não como uma das formas de criminalizar expressões culturais

de origem africana como a capoeira, Umbanda e até mesmo as rodas de samba. A Lei

da Vadiagem é retratada na novela Lado a Lado no dia do casamento de Zé Maria e

Isabel, quando Zé Maria é preso por lutar capoeira contra a polícia que foi demolir o

cortiço em que ele e Isabel moravam, mesmo sendo um dos poucos a ter um emprego

fixo de barbeiro. No sexto capítulo da novela, já com Zé Maria preso, ele e o delegado

Praxedes (que valoriza o cumprimento das leis acima de tudo) conversam sobre a lei e

fica claro todo o preconceito intrínseco ao comprimento da mesma:

Delegado Praxedes: Da próxima vez que cantar de galo e ameaçar um policial...

Zé Maria: Eu não ameacei. Só que não é justo eu ficar preso aqui há dias sem saber o por quê.

Delegado Praxedes: Todo bandido sabe por que está preso. Só precisa ser lembrado. Vadiagem!

Artigo 399. Vocês estão enquadrados. 30 dias em cana. Satisfeito?

Zé Maria: Mas e o julgamento?

Delegado Praxedes: Já aconteceu.

Zé Maria: Sem nós? A gente nem viu o juíz.

Delegado Praxedes: Isso é um detalhe. O juiz leu os meus altos, não tem necessidade de olhar a

tua cara.

Zé Maria: Mas eu não posso ficar preso aqui por 30 dias. Tem gente me esperando lá fora.

Delegado Praxedes: Zé Navalha é um nome conhecido. E reincidência em vadiagem é prisão por

3 anos na colônia de Dois Rios, na Ilha Grande.

Zé Maria: 3 anos?

Delegado Praxedes: Quem manda se meter em capoeira. Aprende a trabalhar, vagabundo.

Zé Maria: Mas eu sou trabalhador. Eu sou barbeiro de profissão. O apelido vem daí!

Delegado Praxedes: Ah é? Prova.

É possível ver o enraizamento do preconceito proporcionado por essas leis na

sociedade contemporânea. Um exemplo bem básico é a diferenciação do uso de

elevadores de serviço e elevadores sociais. Durante toda a novela, existem inúmeras

cenas em que Isabel é humilhada por Constância por ser negra. Há um exemplo no

capítulo 2, quanto Isabel espera por Zé Maria, acaba atrasando o casamento de Laura

e Constância vai tirar satisfação:

Constância: Ah, você que é a criadinha?

Isabel: No momento não. Eu não sei se a senhora reparou, mas eu não to de uniforme, eu não to de

serviço. Mas se eu puder ajudar em alguma coisa...

Constância fala para Laura: O padre cedeu a Igreja para uma criada. A pedido da patroa. Uma

estrangeira que aparentemente é muito considerada. Mas eu não podia imaginar que além de tudo é uma

escurinha!

Laura: Mãe, isso não é jeito de falar.

Isabel: Alguns dizem que eu sou até clarinha demais. Mas eu sou uma mulher negra. E eu continuo sem

entender o que a senhora deseja.

Constância: Existem Igrejas que atendem a pessoas como você. E eu até entendo que o padre Olegário,

por caridade, tenha aberto as portas da Igreja que eu frequento. Mas a gente dá amão e já querem logo o

braço, por que esse atraso, minha filha, é um abuso.

Isabel: Se a senhora conseguir dizer o que deseja, talvez eu possa lhe ajudar.

Constância: Eu quero que você retire essas pessoas daqui imediatamente! Por que daqui a pouco vão

chegar os meus convidados e os do senador. E o florista não pôde preparar o altar para o casamento da

minha filha.

Laura: Mãe, por favor! Eu posso esperar.

Isabel: Eu lamento se o atraso vai lhe trazer algum inconveniente. Mas eu não posso fazer nada além de

dizer que a senhora pode ir preparando o altar se quiser. A minha cerimônia não vai atrapalhar a sua

decoração.

Constância; Mas que petulância! Eu exijo que você...

Isabel: A senhora está perdendo o seu tempo. Nenhum convidado meu vai embora antes do fim do meu

casamento. E a cada grito que a senhora dá é menos uma rosa que já poderia estar no altar. Se o

casamento da sua filha atrasar será por sua culpa e não minha.

Constância: Eu vou apressar a decoração. Mas ai de você se uma pétala for ao chão antes da Laura entrar

na Igreja. E pro seu próprio bem, espero que seja a última vez que você atravessa o meu caminho.

Lura: Desculpa a minha mãe. Ela está nervosa por causa do casamento.

Justamente pela manutenção dos estratos sociais imperiais que não foram feitos

ações de integração social por parte do governo ou dos civis. Projetos de redistribuição

de renda, qualificação profissional, educação, saúde, lazer, moradia, não foram

implementados e deixou os escravos recém-libertos à margem da sociedade. Muitos

voltaram a trabalhar para seus antigos senhores, recebendo muito menos do que

deveriam e outros foram tentar a vida nas cidades, mas sem serem absorvidos de fato

pelo comércio e indústrias da época. No quinto capítulo da novela, uma cena reflete

sobre a falta de subsídios para a população majoritariamente negra da época e como a

simples existência dessas pessoas no mesmo meio social, como pessoas livres,

incomodava a elite branca:

Margarida (mãe de Edgar): Uma lei que proíba andar descalço e sem camisa? Mas que ideia brilhante!

Constância: O meu marido é um homem voltado para os novos tempos.

Bonifácio: Prefeito vai adorar essa sugestão!

Assunção: É, as pessoas deveriam usar as ruas apenas decentemente trajadas. E não essa bandalheira que

é hoje.

Laura: Desculpem, mas muita gente que anda descalça e sem camisa não está assim por que quer. Mas

por que não tem dinheiro pra comprar comida. Muito menos roupas.

Edgar: A Laura tem razão. Foram jogados das senzalas para as ruas. O governo não deixou outra

alternativa para essas pessoas que não a miséria.

Bonifácio: São analfabetos, Edgar. Não possuem qualificação pra nenhum emprego digno, compreende? O

que o governo poderia fazer?

Laura e Edgar: Qualificá-los!

Constância: Não basta a Igreja. Agora querem que o governo também dê esmolas? Mas esses jovens…

Um aspecto de contexto que não se pode deixar de abordar na análise é o modo

como o folhetim eletrônico constrói a memória sobre acontecimentos históricos do país.

O primeiro momento exibido é a reforma urbana de pereira passos, a demolição dos

cortiços e o desenvolvimento do Morro da Providência. No terceiro capítulo da trama,

tem uma cena que ilustra bem a opinião da elite branca da época sobre as

demolições: é uma conversa entre o senador Bonifácio e o jornalista Guerra:

Guerra: Senador! Parabéns pelo casamento! Bonifácio... eu já o vi cumprimentar inimigos maiores e mais

perigosos que um mero jornalista.

Bonifácio: Eu só costumo cumprimentar quem eu admiro. Ainda por cima tratando-se do senhor.

Guerra: Eu lamento que nossas diferenças cheguem a esse ponto. Não imaginava que as minhas matérias

sobre as obras da prefeitura pudessem incomodar homens que se dizem a favor do povo e da cidade.

Bonifácio: Ah, Guerra, você não sabe o que diz... e se mete a dar opiniões.

Guerra: Opiniões? Dia isso para as pessoas que moravam nos cortiços e perderam suas casas. Diga a eles

que a fome e o frio são apenas uma opinião.

Bonifácio: Você continua o mesmo né?! Não entende que o progresso tem seu preço.

Guerra: Bonifácio, isso eu entendo muito bem. O que eu não entendo é porque é sempre o povo que tem

que pagar esse preço. E nunca pessoas como você.

Bonifácio: Economize o discurso pro seu jornal, Guerra. Agora aproveite o vinho que é importado. E que

só pessoas como eu podem oferecer para pessoas como você. Agora aproveite porque essa é a última taça

que você toma nessa casa. Dois amigos vão te acompanhar até a saída.

Guerra: É muita gentileza da sua parte, senador. Eu agradeço, mas o vinho azedou. Pode deixar seus

amigos aproveitarem a festa. Eu conheço a saída.

A expulsão das camadas populares pelo Bota Abaixo e a proliferação das

favelas aparece no capítulo 4 de Lado a Lado, ilustrados por 2 cenas:

Cena 1:

Percival: O pessoal aqui do morro, seu Afonso, deu abrigo pra todo mundo que era do cortiço. Ninguém

vai ficar por ai sem eira nem beira não.

Seu Afonso: Quem veio em busca de ajuda encontrou uma porta aberta. Esse é um favor que a gente vai

ficar devendo o resto da vida.

Percival: Imagina... depois o senhor faz a minha barba que a Etelvina vive reclamando que espeta.

Seu Afonso: Barba, cabelo e bigode!

Percival: Olha, amanhã já vamos começar a levantar os barracos. Todo mundo aqui vai ajudar, o senhor

vai ver. Logo logo o senhor vai ter sua casa de novo.

Seu Afonso: Agradecido. Agradecido. Muito agradecido.

Percival: A gente quando chegou aqui também carecia de ajuda. Eu lutei na Guerra de Canudos. Dei até o

que não tinha pra lutar no sertão. Ganhei o que em troca? O governo prometeu dar casa pra gente aqui no

Rio. Tô pra mais de 7 anos aqui e nada das casas.

Seu Afonso: É o que dá a gente ficar esperando coisa de governo.

Cena 2:

Berenice: Aqui no Rio tão chamando o morro de Morro da Favela. Que é por conta do Morro que os

soldados ocuparam lá na Bahia. Você sabia, Isabel?

Um momento muito interessante que a novela não deixou de abordar foi a

chegada do futebol no Brasil. O esporte veio da Inglaterra e naquela época era um

privilégio somente da elite branca que tinha dinheiro suficiente para importar os

aparelhos necessários para jogar. A novela também retratou a fase “pó de arroz” do

futebol, quando os negros usavam pó de arroz no rosto para conseguir jogar o esporte.

O personagem Chico, interpretado pelo ator César Mello, utiliza o pó de arroz para se

camuflar. O curioso é que justamente esse esporte elitista mais tarde, na década de

1930 é consolidado como símbolo da identidade nacional, juntamente com o samba.

No capítulo 6 de Lado a Lado existem 4 cenas que retratam o assunto:

Cena 5:

Umberto: Chegou!! Chegou!! Fui lá na alfândega pegar.

Fernando: Nossa, só de saber a fortuna que foi trazer isso tudo da Inglaterra.

Teodoro: Nosso time! Nosso próprio time!

Albertinho: E o que mais importa! A nossa bola de futebol!!

Cena 6:

Neto: O Futebol vai estragar a juventude do Brasil!Se for para importar maneirices da Inglaterra,

aceitamos o críquete, que é um jogo civilizado. Mas o futebol é violento. Uma correria pra lá e pra cá. Faz

o sangue subir a cabeça. Isso impede o desenvolvimento da inteligência. Tá lá provado que esporte faz mal

a saúde.

Guerra: Eu acho um certo exagero, Neto.

Neto: Guerra, nós precisamos dizer não a esse esporte dos bárbaros bretões. Vou escrever um arquivo

definitivo sobre os males do futebol.

Edgar: Não diga isso, Neto. Eu mesmo se tivesse tempo gostaria muito de jogar. O meu irmão e uns

amigos vão começar um time no Copacabana Sport Club.

Neto: Meu deus. Um digníssimo clube de críquete vai se por a perder.

Jonas: O Edgar, tem vaga no time? Eu queria me candidatar.

Neto: São rapazes de outra classe social, Jonas. Vai cuidar do tifos (??).

Edgar: Não se preocupe, Jonas. Vou falar com o Fernando.

Neto: Cuidado, Edgar. O futebol vai embotar o raciocínio so seu irmão. Essa mania inglesa vai destruir a

elite carioca.

Guerra: O Neto, eu vou pensar no seu artigo. Enquanto isso se atenha às críticas de teatro.

Cena 7:

Fernando: ‘The futebol match- a partida- é jogada por duas equipes.’ Pô, isso até eu sei. ‘Lasen é o juíz’.

Albertinho: O Fernando, futebol não é pra estudar. É pra sair no campo, pra aprender. O time inglês está

vindo pra cá jogar contra o Fluminense. Ai sim, isso que é escola.

Fernando: E como a gente vai entrar em campo sem saber todas as regras? Aqui: ‘oponer é o desvio da

bola pela linha de fundo.’ O que é driblen?

Albertinho: Não sei...

Fernando: É quando você engana o oponente. Você finge que vai pro lado e vai pro outro.

Cena 8:

Albertinho: Os uniformes vestiram muito bem. Também, alfaiateria britânica.

Assunção: Era só o que me faltava. Albertinho, futebol?! Você só pensa em diversão, rapaz. Você não se

interessa pelos negócios da família. Se você tivesse me ajudado....

Constância: Querido, ele está na idade. O interesse por esportes é natural para um jovem barão. O

próprio Bragança de Queirós, que você tanto adimira, criticava os seus patrícios por não se exercitarem.

Ele adimirava o penhor dos ingleses por exercícios ao ar livre. Por minha parte eu só não estou segura de

que o futebol é de bom tom por que eu acho muito agitado. Eu me sentia mais segura no críquete.

Albertinho: Mas mãe, no futebol eu vou conhecer boas companhias, como a senhora tanto diz. Sim, os

jogadores são todos da elite carioca. São engenheiros, industriais, advogados...

Constância: Está vendo, Alberto. Já já ele conhece uma boa moça, se casa e volta pro trabalho. Tudo a seu

tempo.

Outro fato crucial na história do Brasil e que serviu de pano de fundo para a

trama foi a Revolta da Vacina. A revolta aconteceu em 1904 por causa da vacinação

obrigatória contra varíola sem informação para a população. Não houve campanha de

conscientização por parte do governo. Alguns capítulos da novela são destinados a

esse momento, mostrando as manifestações nas ruas, a luta capoeira contra a

repressão pesada da polícia.

Edição do Centenário da República Jornal do Brasil. 1989.

Lado a Lado retrata, de fato, muitos acontecimentos do país, como a Revolta da

Chibata, por exemplo. Para citar cada um deles seria necessário mais elaborações e

páginas. Por conta disso, preferimos abordar somente esses exemplos que

caracterizam por si só as “brasilidades” presentes na construção dos personagens

baseada em estereótipos da cultura brasileira. Vale ressaltar que o preconceito

camuflado em leis no início do século XX continuam refletidos na sociedade brasileira

contemporânea e faz parte do olhar que embasou a elaboração da novela.

Somos levados então a abordar o segundo contexto que a trama se insere: o

contexto dos anos de 2012 e 2013. Em 2012, as mortes de Hebe Camargo e Oscar

Niemeyer impactaram o país. Mas para a pesquisa, nos vale que neste mesmo ano

foram julgados os acusados de participar do Mensalão, o maior escândalo de

corrupção do governo de Luíz Inácio Lula da Silva. O ex-Ministro José Dirceu, ex-

presidente do PT José Genoino, o ex-tesoureiro do PT Danúbio Soares e o empresário

Marcos Valério foram presos em decorrência dos julgamentos. Além disso, era o ano

das eleições municipais para prefeito, vice-prefeitos e vereadores, o que nos trás à

memória tudo que foi feito e o que não foi feito pelos políticos nos últimos anos (ou,

pelo menos, deveria).

Em 2013, o Papa considerado um dos “mais carismáticos da história” veio ao

Brasil para a Jornada Mundial da Juventude no que foi, provavelmente, o momento

mais tranquilo do ano no Brasil. A situação do país estava tensa. Foi o ano do famoso

slogan “o gigante acordou” e das manifestações em quase todo o país contra o

aumento da passagem de ônibus, sucateamento dos transportes públicos, aparatos de

saúde e de educação. Foi o ano que se registrou a mais baixa popularidade de Dilma

Rousseff, então presidente. Não podemos deixar de mencionar que a Comissão

Nacional da Verdade, criada em novembro de 2011, estava em pleno vapor. Naquele

ano, tinham investigado as mortes de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Pode-se

considerar que existia no país uma onda de reivindicações por direitos básicos dos

cidadãos, incluindo o direito à memória, à liberdade e à justiça. O que nos permite

fazer analogias com os ideais retratados na novela e o momento em que o país estava

vivendo nos últimos anos anterior ao lançamento da obra. Um sentimento de explosão

democrática, que se expressava no roteiro, nos enquadramentos de câmera, na

construção da cena, na forma de representar a mulher, o negro, as minorias, as lutas,

contestar a desigualdade, etc.

O lado a lado dos personagens Cada personagem da trama possui uma função específica em passar as

emoções, o enredo e cravar a empatia para com o público. Eles representam as

personalidades idealizadas que tem-se do povo brasileiro como “a lutadora que sofre

até o último capítulo”; o cafajeste; a mulher que dá os conselhos certos na hora certa

para a mocinha; a vilã; o herói e por aí vai. Em Lado a Lado, por ser novela, a

responsabilidade maior desses personagens é fazer com que o público torça (seja

contra ou a favor) diariamente para eles; que o telespectador crie o hábito de saber da

vida daquelas “pessoas” e se identifique mesmo com realidades e personalidades

totalmente diferentes das retratadas, como pode-se verificar no quadro abaixo os tipos

de brasilidade destacados na telenovela:

IMAGEM/NOME

ELEMENTO DA

BRASILIDADE

DESCRIÇÃO DO

PERSONAGEM

Isabel

Camila Pitanga

Representa a

imagem da mulher

brasileira guerreira,

bondosa e

injustiçada.

Menina pobre, negra,

com cabelos crespos. É

uma mulher forte e com

ideais e consolidados.

Ela é a mocinha que

sofre preconceito, sofre

a destruição de seu

casamento, sofre por

ser expulsa de seu

cortiço, por ser

enganada pelo

almofadinha do

Albertinho (menino

branco e rico), por

todas demais

intempéries que

conduzem a história.

Zé Maria

Lázaro Ramos

O ideal de herói. O

homem que sofre

por não saber;

bondoso, honesto e

inteligente, mas que

é facilmente

enganado. O

trabalhador forte

que não fraqueja,

mas que tem

coração mole.

Homem negro, forte e

sobrevivente acima de

tudo. Zé sofre por lutar

capoeira para se

defender, sofre

preconceito poder ser

negro e pobre, sofre

por perder sua casa e a

mulher que ama; sofre

por não saber.

Laura

Marjorie Estiano

A mocinha. Linda, branca,

bondosa, que sofre por

ser obrigada a se casar

e tem que lutar para

conseguir sua

independência. Mesmo

sendo criada em uma

família preconceituosa,

Laura consegue se

desvincular de toda

falta de caráter e do

pensamento retrógrado

de sua família.

Edgar

Thiago Fragoso

O mocinho. Branco, lindo, bondoso,

honesto e justo. Edgar,

assim como Laura,

consegue se

desvincular de todas as

amarras familiares e

pensar sem

preconceito e lutar pela

igualdade. Mas como

um típico homem da

época, ainda sofre para

conseguir deixar o

machismo de lado.

Constância

Patrícia Pillar

O conservadorismo.

A vilã. Faz tudo que

pode para conseguir

o que quer.

Manipula, joga,

pregadora dos bons

costumes, mas

totalmente corrupta.

É a personificação

do mal, mas que

tem uma garra

inegável. Como seu

nome diz, ela não é

fã de mudanças

drásticas.

Mulher branca, loira, de

olhos claros; elegante e

bem vestida; ex-

baronesa. Ela

representa o antigo, a

época do Império

escravocrata

latifundiário e

conservador que agora

está tentando se

adaptar ao jovem

regime republicano. Ela

faz questão que os

negros a chamem de

baronesa e não

esconde o desprezo

que sente por eles. Sua

família está tentando

manter o status que

tinham durante o

Império mesmo que

falidos. Ela é o produto

de seu tempo:

extremamente

machista.

Senador Bonifácio

Cassio Gabus Mendes

Simboliza o

brasileiro corrupto,

que tenta ter

vantagem a

qualquer custo,

colocando até

família no meio dos

esquemas.

Bonifácio é homem

branco, elitista, rico,

corrupto, machista,

ambicioso e sem

escrúpulos. Representa

o novo regime, mas

com resquícios do

Império. É justamente a

República dos

Governadores, que

buscava fazer reformas

na capital (Rio de

Janeiro), vacinar os

pobres e que não

moveu uma palha

sequer para oferecer

um auxílio aos recém-

libertos escravos.

Tia Jurema

Zezeh Barbosa

A conselheira

bondosa de Isabel.

Trabalhadora.

Representa

claramente as “tias

do morro”, que na

época eram

personagens

comuns do dia a dia

da população mais

pobre. Eu diria que

até hoje elas guiam

a vida nas

comunidades

brasileiras.

Negra, moradora do

morro após ser

despejada do cortiço,

ela cozinha e lava

roupas para se

sustentar, e também

abre sua casa para

rodas de samba e

realizações de práticas

de religiões africanas.

É através de suas falas

que o são abordados

os nomes de grandes

compositores da época,

a luta por direitos dos

negros e os desafios da

vida de quem vivia à

margem da sociedade.

Berenice

Sheron Menezzes

A vilã pobre. Aquela

que teoricamente

tem justificativa para

fazer maldades

porque sofre

injustiças, mas que,

ao mesmo tempo, é

considerada traidora

por não lutar pelo

seu povo.

Negra, pobre,

trabalhadora.

Características boas

que se somam às

maldades desmedidas

cometidas por ela.

Ambiciosa, ladra,

corrupta.

Caniço

Marcello Melo Jr.

O malandro. Negro, pobre,

enganado por

Berenice, lutador, sem

referência de família ou

Estado, Caniço ganha

a vida como pode. Por

vezes honesto, por

vezes malandro.

Delegado Praxedes

Guilherme Piva

A lei. Branco, mas de classe

média. Sem muitas

riquezas, mas que

desposa de poder

minúsculo de executor

da lei. Preza o

cumprimento das

regras a qualquer custo

e não se importa com

as camadas mais

pobres. Apenas cumpre

ordens.

Dona Eulália

Débora Duarte

A hipocrisia. Mãe de Praxedes.

Eulália vai à missa

sempre, faz crochê

para o futuro

casamento de sua neta

(que não tem

namorado), uma

senhora pacata. No

entanto, sabe dos

segredos de Bonifácio

e não titubeia em

chantageá-lo para

conseguir o que quer.

Carlos Guerra

Emílio de Mello

O revolucionário

construído com a

visão

contemporânea da

história.

Também o porta-voz

da opinião pública, a

partir do canal da

imprensa.

Homem branco,

letrado, dono de um

jornal de oposição ao

governo. É o

conselheiro de Edgar,

possui uma mente mais

aberta, progressista e

abre diversos debates

com Bonifácio sobre as

questões sociais na

novela.

Considerações finais:

Pode-se notar que mesmo diante todas as mudanças e adaptações da

sociedade perante as novas tecnologias, a televisão ainda possui um papel muito forte

de mediação com o público. Cada atividade necessária à realização de uma novela

(figurino, cenário, enquadramentos, maquiagem, cenas, etc) ajuda na concretização do

efeito de verossimilhança, fundamental na imersão do telespectador, principalmente em

ficções que trabalham com temáticas históricas, que abordam épocas passadas.

Para ilustrar esse argumento, selecionamos uma cena do capítulo 8 na qual o

personagem Guerra conversa com o personagem Neto (interpretado por Romis

Ferreira) sobre as condições de vida no Morro da Providência. Fica bem claro que toda

a argumentação está embasada no olhar contemporâneo; principalmente no momento

em que ele fala sobre os “dois Rios de Janeiro”, com uma divisão muito clara entre o

morro e as ruas. Isto é, uma cidade estruturalmente desigual.

Guerra: Eu atravessei a madrugada escrevendo, Neto. Eu fiquei muito impressionado com o que

nós vimos lá no morro. Uma gente boa. Sabe? Muito boa mesmo. Alegre. Otimista, até! Apesar

das condições em que vivem. Completamente abandonados ao deus-dará.

Neto: Quer dizer que filhos de escravos, ex-escravos, ex-soldados, todos foram por

mesmo canto?

Guerra: Pois é! Aquele homem que eu entrevistei, Percival, ele lutou em Canudos. O

governo prometeu pra ele uma casa no Rio de Janeiro.

Neto: E?

Guerra: O coitado tá esperando até hoje.

Neto: E o que vai acontecer com esse pessoal todo que morava no cortiço? Se amontoar

nos morros?

Guerra: Essa é a questão! Estão surgindo duas cidades: uma européia e outra que

parece uma aldeia de índios. Isolados, distante de tudo, vivendo em péssimas condições.

As crianças vão crescer longe das escolas, sem médico. A polícia não sobe nunca lá.

Então fica fácil dos bandidos se instalarem ali, no meio daquela gente boa, que nós

conhecemos.

Neto: Pelo menos você vai fazer tudo isso no jornal pra todo mundo escutar, né?!

Guerra: Mas será que eles querem escutar? A cidade européia está mais preocupada em

limpar a cidade, sem pensar nas pessoas envolvidas nisso. O pessoal dos cortiços, por

exemplo. Ficam sonhando em abrir avenidas, chamam de elesê dos trópicos enquanto a

outra parte da cidade.... Eu só espero que quando eles decidirem escutar não seja tarde

demais.

Neto: Por que você diz isso, Guerra?

Guerra: Eu não quero ser pessimista não, Neto. Mas essas duas cidades, a do morro e a

das ruas, nunca vão viver no mesmo Rio de Janeiro. Nunca. Aí eu me pergunto: será que

o Rio vai ser sempre essa cidade dividida?

Se as transformações tecnológicas alteraram, inclusive, o modo como

consumimos narrativas, algumas questões permanecem: o interesse por histórias que

falem de gente e a percepção de que a desigualdade social continua , tem cor e

espaço geográfico definido.

Referências:

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VON MARTIUS, Karl. Como Se Deve Escrever a História do Brasil. Jornal do Instituto

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