Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
Comunicação Coordenada apresentada na 29a Reunião Brasileira de
Antropologia, em Natal, de 3 a 6 de agosto de 2014. Eixo temático « Patrimônio,
turismo e museus ».
Intervenções urbanas e processos de patrimonialização: as reelaborações da
Pequena África na região portuária do Rio de Janeiro (anos 1980 e 2000)
Simone Pondé Vassallo1
Este trabalho busca analisar as dinâmicas subjacentes ao processo de
patrimonialização da cultura afro-brasileira na região portuária do Rio de Janeiro2.
Procuro, em particular, compreender como, a partir dos anos 1980, elaborou-se
progressivamente um imaginário em torno dos três bairros que compõem a região –
Saúde, Gamboa e Santo Cristo – como um território afrodescendente. Tal fato parece
ficar evidente no constante uso da expressão Pequena África para referir-se atualmente a
essa localidade.
A Zona Portuária passa hoje por um importante processo de intervenção urbana, o
Projeto Porto Maravilha. Nesse contexto, ocorre uma efervescência de atividades
culturais – muitas delas relacionadas ao samba e ao carnaval – que valorizam a herança
afro-brasileira da localidade. Tais iniciativas culturais não partem do poder público
municipal – principal responsável pelo projeto de revitalização – mas não podem ser
pensadas fora do contexto do projeto de intervenção urbana. Procuro, neste trabalho,
analisar os processos subjacentes à elaboração dessas ações e representações, que
contribuem para a consolidação do imaginário da região portuária como uma Pequena
África.
Minha reflexão se concentra em dois momentos que considero particularmente
relevantes nesse processo, os anos 1980 e os anos 2000, através da análise de quatro
1 Simone Pondé Vassallo é professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGSOC)
do Iuperj – UCAM. E-mail: [email protected] . 2 Agradeço a Faperj pelo financiamento da pesquisa que permitiu a elaboração desse trabalho, bem
como o auxílio de Alessandra Taceli, bolsista de iniciação científica nesse projeto.
2
acontecimentos: nos anos 1980, a publicação do livro Tia Ciata e a Pequena África e o
tombamento da Pedra do Sal; nos anos 2000, a reivindicação étnico-territorial do
Quilombo da Pedra do Sal e a criação do Circuito Histórico e Antropológico de
Celebração da Herança Africana. Parto de uma perspectiva que privilegia as relações de
tensão e negociação entre lideranças do movimento negro, representantes do poder
público, pesquisadores e agentes culturais.
Partindo desta perspectiva, compreendo o patrimônio como um espaço de lutas
materiais e simbólicas entre diferentes grupos e segmentos da população (Canclini,
1994). Na atualidade, estas lutas envolvem muitas vezes grupos politicamente
minoritários para os quais o patrimônio pode se tornar um meio de se afirmar
identidades e reivindicar direitos. No entanto, procuro ir além de uma definição
meramente instrumental e entendo o patrimônio como um fato social total que engloba
múltiplas dimensões: políticas, econômicas, identitárias, morais, religiosas, de
parentesco, dentre outras (Gonçalves, 2007). As disputas em torno da aquisição de
direitos constituem um dos aspectos da dimensão política do patrimônio,
particularmente importante na atualidade.
Inspiro-me na noção de « bens inalienáveis » (Weiner, 1992), ou seja, de bens de um
valor extremo que contribuem para a afirmação da identidade de um indivíduo ou de um
grupo, e que, portanto, não devem ser trocados. Para seus proprietários, tais bens são
dotados de um caráter único, de uma importância percebida como suspensa fora do
tempo presente, pois estabelecem laços com deuses, ancestrais, lugares sagrados e
forças divinas. Através destas forças legitimadoras, um bem se eleva acima do fluxo das
outras coisas que podem facilmente ser trocadas (ibid.) e se torna um alvo de
permanentes disputas. Seu valor se intensifica não apenas por sua trajetória histórica
(Sansi, 2013), mas também pela ameaça de perda devido às disputas pela sua posse. No
mundo moderno, as características de um bem inalienável remetem frequentemente ao
objeto aurático proposto por Walter Benjamim (2011), que encarna a autenticidade na
época da reprodução técnica dos produtos culturais. A ideia de bens inalienáveis pode
nos ajudar a refletir sobre a noção de patrimônio e a dimensão política que ela adquire
na contemporaneidade.
Acredito que a relação de posse entre um indivíduo ou grupo e seus bens não deva
ser naturalizada. Ela emerge em certos contextos, quando uma nova configuração
política permite que esses bens (materiais ou imateriais) sejam percebidos por um
indivíduo ou grupo como lhe(s) pertencendo. A partir de então, estes bens serão
3
considerados como inalienáveis e serão disputados por todos os que os reivindicam.
Assim, num novo contexto político, esta prática, objeto ou espaço adquire um novo
significado. Trata-se, portanto, de levar em conta a dimensão processual das dinâmicas
que dizem respeito ao patrimônio e aos principais agentes que o reivindicam.
Neste trabalho, procuro compreender como, no contexto político dos anos 1980 e
2000, alguns espaços da região portuária do Rio de Janeiro começaram a ser percebidos
como estreitamente associados à história dos africanos e seus descendentes e, portanto,
reivindicados como um patrimônio dos afrodescendentes. De acordo com estas
representações, estes espaços passam a ser pensados como dotados de um caráter único
e uma autenticidade ligados à ancestralidade negra. Na medida em que estes novos
sentidos emergem, estes bens são progressivamente valorizados e começam a ser
reivindicados por militantes negros, por órgãos do poder público, por pesquisadores e
por agentes culturais, dentre outros atores significativos neste processo.
A expressão Zona Portuária, atualmente utilizada pela Prefeitura, designa os bairros
Saúde, Gamboa e Santo Cristo. As primeiras grandes intervenções urbanas nesses
bairros ocorreram na primeira década do século XX, quando o então Prefeito Pereira
Passos, inspirando-se no Barão de Haussmann em Paris, realizou diversas obras de
modernização da cidade e do porto. Este processo levou ao deslocamento de um
importante número de moradores de baixa renda rumo à Cidade Nova, onde fica a Praça
Onze, bem como para as primeiras favelas que então surgiam e para os subúrbios.
Desde os anos 1980, os três bairros da região portuária são alvos de novos projetos
de intervenção urbana. No entanto, as densas fronteiras sociais criadas por seus
moradores e frequentadores não coincidem necessariamente com as que lhes são
atribuídas pelo poder público. No contexto das disputas patrimoniais e dos projetos de
revitalização que simultaneamente envolvem esses bairros, novas fronteiras simbólicas
são construídas, inclusive as que compõem o território negro que passou a ser
amplamente reivindicado nas últimas décadas.
Os anos 1980
No início dos anos 1980, com o enfraquecimento da ditadura militar (1964-1985), as
práticas democráticas foram progressivamente integrando as instituições do Estado e da
4
sociedade civil. Os movimentos sociais começaram a se reestruturar, ao mesmo tempo
em que diversos grupos de artistas, intelectuais e políticos valorizavam a cultura popular
como um meio de denunciar a desigualdade e as relações de opressão existentes no país.
Nesse contexto, em 1980, a FUNARTE criou o prêmio Lúcio Rangel de
monografias, destinado às pesquisas sobre os grandes mestres da música popular
brasileira. A monografia vitoriosa, do realisador Roberto Moura, foi publicada em 1983
com o título de Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. O livro de Moura
conta a história dos negros baianos que migraram para o Rio de Janeiro na virada do
século XX, logo após a abolição da escravidão, e se instalaram sobretudo nos arredores
do porto, no bairro da Saúde. Com as obras de modernização, realizadas por Pereira
Passos, muitos tiveram que se deslocar para a Praça Onze, então mais periférica, e
outras localidades. Foi então que esta praça tornou-se uma referência fundamental para
a música popular brasileira e para o samba que surgia como gênero musical. Nos anos
1940, esta praça também foi destruída para a construção da Av. Presidente Vargas.
O termo “Pequena África” é retomado de uma expressão do músico e compositor
popular Heitor dos Prazeres, que assim designava a região “que se estendia da zona do
cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze”, onde morava Tia
Ciata (Moura, 1983: 92), uma importante liderança nesta localidade. Em sua casa se
reuniam os grandes nomes da música popular.
A narrativa de Roberto Moura não parece marcada por uma busca de raízes e
autenticidades africanas. Sua reflexão gira em torno do papel dos baianos na
modernização de uma cultura popular carioca “plástica” que incorporaria “elementos de
diversos códigos culturais” (ibid, 86). O autor fala em “tradições redefinidas por essa
situação precisa de encontro na sociedade brasileira da virada do século, (...) propiciada
pela marginalização, pela miséria e pela tortuosa experiência nacional com a
proletarização” (ibid., 86). E aponta que: “com os anos, a partir deles [dos baianos]
apareceriam as novas sínteses dessa cultura negra no Rio de Janeiro, uma das principais
referências civilizatórias da cultura nacional moderna” (ibid., 44).
De acordo com Roberto Moura, o bairro da Saúde, debruçado sobre o cais do porto,
consistia num atraente local de moradia para os imigrantes baianos que ali buscavam
trabalho na estiva, abriam suas casas de santo, criavam suas rodas de samba e seus
ranchos carnavalescos. As vizinhanças da Pedra da Prainha, depois conhecida como
Pedra do Sal, tornariam-se locais de intensa sociabilidade entre africanos –
remanescentes do período do tráfico negreiro – e baianos.
5
Segundo o autor,
“a partir da ocupação da Cidade Nova pela gente pobre deslocada pelas
obras, que a superpovoava na virada do século, a praça [Onze] se tornaria
ponto de convergência desses novos moradores, local onde se desenrolariam
os encontros de capoeiras, malandros, operários do meio popular carioca,
músicos, compositores e dançarinos, dos blocos e ranchos carnavalescos, da
gente do candomblé ou dos cultos islâmicos dos baianos, de portugueses,
italianos e espanhóis” (ibid., 58).
As tias baianas, lideradas por Tia Ciata, “eram os grandes esteios da comunidade
negra, responsáveis pela nova geração que nascia carioca, pelas frentes do trabalho
comunal, pela religião” (ibid., 92). Em suas casas, “as grandes figuras do mundo
musical carioca, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, surgem
ainda crianças naquelas rodas onde aprendem as tradições musicais baianas a que depois
dariam uma forma nova, carioca” (ibid., 102). E a casa de Tia Ciata, na Praça Onze, era
a capital da Pequena África. Na obra de Moura, a Pequena África designa uma região
sem fronteiras muito precisas que engloba a Saúde, o Centro e a Cidade Nova, onde
moravam e se encontravam cariocas, baianos e africanos em processo de proletarização,
que ali realizavam seus ritos sagrados e profanos.
O livro de Roberto Moura parece encontrar ressonância junto a lideranças do
movimento negro. Em 1984, um ano após a sua publicação, a Pedra do Sal foi
provisoriamente tombada pelo INEPAC, órgão estadual de proteção do patrimônio, por
solicitação do historiador e importante militante negro Joel Rufino dos Santos . Em
1987 ocorreu o tombamento definitivo. No material referente ao tombamento, podemos
perceber que há uma valorização da dimensão étnico-racial da Saúde em detrimento da
perspectiva mais modernizante e sincrética de Roberto Moura.
Na documentação anexada ao processo de tombamento, a Pedra do Sal é considerada
“testemunho cultural mais que secular da africanidade brasileira” e também “o mais
antigo monumento que se pode vincular à história do samba carioca”3. Neste material, a
Pedra do Sal é referida como “um precioso monumento histórico das manifestações
culturais negras da cidade do Rio de Janeiro” e como um “monumento religioso afro-
brasileiro” onde as tias baianas realizavam “festas de candomblé, recebendo lá também
os ranchos que durante o carnaval vinham cumprimentá-las”. Diz ainda o documento
3 Lettre du Conseiller Marcelo Moreira de Ipanema, du 30 avril 1984, procès de classement de Pedra do
Sal, quartier de Saúde.
6
que “todos, baianos e africanos, frequentavam o largo da Pedra do Sal (...). Era aí que as
tias faziam as peixadas, os mocotós, as festas de São João”4.
Joel Rufino dos Santos, encarregado da pesquisa histórica que compunha o dossiê de
tombamento, fundamenta seus argumentos a partir de várias passagens do livro de
Roberto Moura. Na sua carta às autoridades encarregadas do tombamento, o historiador
afirma a importância da Pedra do Sal como um “raro testemunho da cidade negra” e
enfatiza a importância do local como berço do samba : “lá se encontravam as célebres
tias, cabeças de família extensa – Bibiana, Marcelina, Ciata, Bahiana... Pretas forras, foi
nas suas ‘pensões’ que o batuque e o jongo se transformaram em partido alto e, logo,
no amplo espaço da Praça Onze, no samba que conhecemos”. Neste mesmo material,
Joel Rufino declara que “os moradores da Saúde, e seus migrantes, eram
predominantemente negros baianos (...). A Saúde, debruçada sobre o Porto, era uma
pequena Bahia (como a Bahia, por sua vez, era uma pequena África)” 5.
O argumento de Joel Rufino retoma uma ideia nascida nos anos 1930 e amplamente
difundida nos anos 1980 que faz da Bahia o locus da autenticidade das práticas culturais
de origem africana. Essas representações emergem num contexto de rearticulação do
movimento negro durante o processo de redemocratização do país. Neste momento, o
movimento negro opta por privilegiar a dimensão cultural das práticas afro-brasileiras e
a perspectiva afrocêntrica, que busca a pureza africana das atividades culturais em
detrimento do que considera ser fruto de um sincretismo (Alberti & Pereira, 2007;
Gomes, 2010; Guimarães, 2012). Seus militantes dirigem severas críticas à ideia de
democracia racial, defendida inicialmente por Gilberto Freyre e alçada a símbolo das
relações raciais brasileiras, supostamente mais amistosas e menos preconceituosas do
que em países como os EUA e a África do Sul.
Começa a ocorrer o que alguns pesquisadores chamaram então de “processo de
reafricanização”, que engloba cultos de matriz africana (Dantas, 1988 ; Capone, 1999),
grupos de capoeira (Vassallo, 2003), blocos de carnaval (Agier, 2000), dentre outras
manifestações afro-brasileiras . A leitura de Joel Rufino dos Santos acerca da Saúde e
da Pedra do Sal se insere nesse contexto, quando lideranças do movimento negro e das
expressões culturais afro-brasileiras se empenham em buscar espaços de autenticidade
negro-africana.
4 Document extrait du procès de classement de Pedra do Sal. 5 Ibidem.
7
Temos então um deslocamento das fronteiras simbólicas da Pequena África. Se o
livro de Roberto Moura privilegia a Praça Onze como sua capital, as lideranças negras
dos anos 1980, em busca de símbolos de africanidade no novo contexto político de suas
lutas, optam pela valorização da Pedra do Sal, na Saúde. Na medida em que a Praça
Onze havia sido destruída para dar origem a grandes reformas urbanísticas na Cidade
Nova, a Pedra do Sal emergia como vestígio e símbolo do território negro que havia
existido. Apesar do livro de Roberto Moura ser uma das principais referências
bibliográficas do processo, não é a sua perspectiva de uma “síntese cultural” que
prevalece aqui, mas sim a afirmação da Saúde como um território negro-africano.
Disputas semelhantes ocorriam no mesmo ano a nível nacional, quando o primeiro
processo de tombamento de um terreiro de candomblé – o da Casa Branca, em Salvador
– gerou inúmeras críticas de setores conservadores, num momento de flexibilização da
noção de patrimônio junto aos órgãos do Estado (Velho, 2006). Em 1986, também
graças às mobilizações do movimento negro, o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) tombou a Serra da Barriga, local que havia abrigado, no
século XVII, o Quilombo de Palmares, o grande símbolo da resistência negra na
atualidade. Os movimentos sociais, recentemente reorganizados, começavam a
incorporar as interpretações políticas das noções de patrimônio e cultura, veiculadas
internacionalmente como fonte de reivindicação de direitos diante do Estado. Tais lutas
se consolidam na Constituição de 1988, com a criação dos artigos 214 e 215, que falam
dos direitos culturais e patrimoniais dos diferentes segmentos que formam a sociedade
brasileira. Também estão por trás do decreto que institui a salvaguarda do patrimônio
imaterial, em 2000.
Em 1982, Leonel Brizola vence as eleições para o governo do Estado do Rio de
Janeiro pelo PDT, com o apoio de várias lideranças do movimento negro e das camadas
de baixa renda, que formam a sua base eleitoral. O antropólogo Darcy Ribeiro assume
como vice-governador e Secretário de Estado de Ciência e Cultura. De acordo com
Mariza Soares, “de 1982 a 1986 ocorre um progressivo estreitamento entre o Governo
do Estado e o Movimento Negro explicado pela presença, dentro do PDT, de
importantes lideranças do movimento. Engajadas em vários cargos do governo do
Estado e do Município, essas lideranças conseguem validar, junto a uma parcela
representativa do movimento, o esforço do governo do Estado em apresentar-se como
arauto da negritude” (Soares, 1999: 128-129).
8
Nesta época, a Saúde e a Praça Onze disputam o título de berço do samba. Ainda
para esta autora, “a Saúde é vista pelos memorialistas como precursora da Praça Onze,
que foi palco do carnaval carioca de 1912 a 1942” (ibid., 125). Em 1984, é inaugurada
na Praça Onze a Passarela do Samba, idealizada por Darcy Ribeiro e projetada pelo
arquiteto Oscar Niemeyer. Para Mariza Soares, o Sambódromo, como é também
chamado, era pensado pela grande imprensa e pelo governo do Estado como um lugar
do futuro, ao passo que o movimento negro buscava as suas raízes no passado e não se
identificava com essa nova construção arquitetônica.
É nesse contexto que surge a demanda de tombamento da Pedra do Sal, que encarna
as raízes negro-africanas por oposição ao Sambódromo. Joel Rufino teria levado a ideia
do tombamento a Darcy Riberio, que o apoiou. Dois anos depois, atendendo às
reivindicações do movimento negro e com o intuito de valorizar a dimensão
afrodescendente da Praça Onze, Darcy Ribeiro inaugurava a estátua de Zumbi nesta
localidade. Creio ter sido esse contexto político de democratização e de veiculação das
noções de identidade, cultura e patrimônio como meios de reivindicação de direitos que
propiciou o início das leituras etnicizantes do bairro da Saúde, ou seja, o seu
entendimento como um território negro. Poucos anos depois, o Centro Cultural José
Bonifácio, igualmente na Saúde, tornava-se centro de referência da cultura afro-
brasileira.
Pouco depois, em 1987, foram realizadas as primeiras rodas de samba na Pedra do
Sal, promovidas por Ângela Nenzy, que havia assessorado Roberto Moura nas
pesquisas históricas visando a elaboração do seu livro. Ângela criou o Café e Bar João
da Baiana, na Pedra do Sal, onde desenvolveu por três anos o projeto “Amigos de João
da Baiana: cante na Pedra”. No material de divulgação, Ângela menciona a importância
de seu evento para a “comunidade negra” e para a “retomada de consciência da
importância cultural do centro da cidade e do bairro da Saúde”. Nestes relatos, João da
Baiana, nascido no Rio de Janeiro em 1887, estivador, sambista, candomblecista e filho
da baiana Tia Perciliana, encarna uma síntese das novas representações da Saúde e, em
particular, da Pedra do Sal. Ele é descrito como “um zelador de santo batuqueiro que se
formou sentindo todo o aconchego da vivência em grupo de negros místicos,
quimbandeiros, guerrilheiros e insubordinados, capoeiras, na Pedra do Sal, na Saúde –
na época, início do século, o grande centro de encontro dos estivadores e, também dos
homens do samba; hoje local sagrado da memória negra” (INEPAC, 1984).
9
Com as atividades de Ângela Nenzy, percebemos que a interpretação da Pedra do Sal
e da Saúde como um território negro, cara ao movimento negro, se consolida
progressivamente. O material produzido por ela é incorporado ao processo de
tombamento definitivo da Pedra do Sal, em 1987.
Os anos 2000
Os projetos de revitalização do Porto se intensificam a partir da primeira gestão de
César Maia na Prefeitura (1993-1996) e são retomados na sua segunda e terceira gestão
(2001-2004 e 2005-2008). A chegada desse político representa uma guinada em termos
de gestão urbana. Apresentando-se como um “síndico” que pretende manter a “ordem”,
César Maia assume o poder com um discurso supostamente apolítico de “gestor”, em
que declara poder fazer transformações mesmo sendo de direita. Sua atuação reproduz a
tendência que David Harvey (2005) chama de empresariamento da gestão urbana, em
que as cidades assumem um comportamento empresarial e subordinam seus fins à
lógica do mercado. Para Harvey, tal processo vem ocorrendo nas últimas décadas, num
contexto de desindustrialização em que as cidades buscam novas formas de se gerir e se
sustentar economicamente.
Esta tendência também se caracteriza por incorporar a cultura como elemento
diferenciador das cidades, visando o desenvolvimento do turismo e a atração de um
público globalizado. Neste sentido, « o patrimônio histórico, as tradições locais, a
cultura popular e outros elementos têm se transformado em mercadoria altamente
valorizada no mundo contemporâneo” (Botelho, 2005: 54). Os projetos de revitalização
que vêm sendo realizados mundialmente nas últimas décadas tendem a se inspirar
nessas tendências e Barcelona torna-se o grande modelo a ser seguido. Nesse contexto,
diversos centros históricos e regiões portuárias – repletos de atraentes vestígios do
passado para a indústria cultural e turística – tornam-se alvos, nas últimas décadas, de
projetos de revitalização por todo o mundo. O interesse de Maia pela reforma na região
portuária deve ser entendido nesse contexto.
Em outubro de 2001, é oficialmente divulgado o Plano Porto do Rio, que visa a
“recuperação” e a “revitalização” da área, através da alteração das condições de
10
utilização e ocupação do solo e da construção de equipamentos culturais e esportivos.
Por iniciativa da Prefeitura, são então construídas a Cidade do Samba e a Vila Olímpica
da Gamboa. Boa parte do que foi previsto no projeto não se concretizou, mas contribuiu
para transformações no espaço físico e nas dinâmicas de moradores e agentes culturais
locais. Acredito que este projeto de revitalização e o seu sucessor, o Porto Maravilha,
atualmente em execução, estejam na base das novas dinâmicas de patrimonialização da
cultura afro-brasileira na localidade e contribuaem para a cristalização do imaginário
que começa a se desenvolver nos anos 1980, o da Saúde como uma Pequena África.
Nos anos 2.000, no contexto do Plano Porto do Rio, deflagra-se o conflito fundiário
envolvendo moradores do sopé da Pedra do Sal e a Venerável Ordem Terceira de São
Francisco da Penitência – VOT. O conflito dá origem à reivindicação étnico-territorial
do Quilombo da Pedra do Sal , cuja certificação de comunidade remanescente de
quilombo foi concedida pela Fundação Palmares em 20056. Os quilombolas alegam
que, devido ao projeto de revitalização, os imóveis em que moram – no entorno da
Pedra do Sal e de propriedade da VOT – estão se valorizando demasiadamente e a VOT
não tem mais interesse em mantê-los lá.
Em 2006, como exigência do processo judicial envolvendo os quilombolas e a Igreja,
foi elaborado o Relatório histórico-antropológico sobre o Quilombo da Pedra do Sal. O
documento cita o livro de Roberto Moura e, tal como este, entrelaça a Pedra do Sal ao
trabalho no porto, às rodas de samba, aos ranchos carnavalescos, ao povo-de-santo e às
revoltas populares ocorridas na localidade. De acordo com o relatório, “para além do
espaço material da Pedra do Sal, esse local de celebração representa simbolicamente a
presença cultural dos afrodescendentes na cidade do Rio de Janeiro: um lugar de
memória do samba, do candomblé e do trabalho negro no porto” (Mattos e Abreu, 2012:
25).
Mas, ao contrário de Moura, a referência a um território étnico é explícita e se opõe a
uma outra identidade cultural, a VOT, “católica, colonial e associada à presença
portuguesa no bairro” (ibid.: 25). Segundo suas autoras, o grupo de moradores em
questão “defende a manutenção e o revigoramento de uma memória afro-brasileira na
área (...) e tem por objetivo visibilizar um patrimônio cultural imaterial herdado de seus
antepassados escravos e africanos” (ibid.: 24). Os quilombolas reivindicam ser os
6 A Constituição de 1988 afirma o direito à propriedade fundiária dos que se consideram descendentes de quilombos. Tal fato dá origem a uma nova categoria jurídica, a de remanescentes de quilombos (Arruti, 2006).
11
legítimos herdeiros das tradições negro-africanas veiculadas na Pedra do Sal na virada
do século XIX para o XX, encarnando, no presente, o modo de vida dos negros que ali
se reuniam no passado.
Com o intuito de dar visibilidade ao pleito étnico e à identidade quilombola que
reivindicam, fortemente relacionada ao samba, ao trabalho no porto e ao candomblé,
alguns de seus integrantes criam então o projeto Sal do Samba, que organiza rodas de
samba semanais na Pedra do Sal. Também começam a promover festas na Pedra do Sal
em datas específicas, como no Dia da Consciência Negra (20 de novembro) , no Dia
Nacional do Samba (2 de dezembro) e no Dia de São Jorge (23 de abril). Nestas
comemorações, além de rodas de samba, são realizadas lavagens da Pedra do Sal pelo
Afoxé Filhos de Gandhi e por integrantes de religiões de matriz africana. A atuação dos
quilombolas atualiza e complexifica o imaginário da Pequena África na região
portuária. A existência de um quilombo contemporâneo traz uma concretude presente a
um modo de vida até então atribuído ao passado e relacionado à estiva, ao samba e ao
candomblé.
É também no contexto do Porto do Rio que várias atividades culturais, escolas de
samba, blocos de carnaval e rodas de samba, na Pedra do Sal e em outras localidades da
região, são criadas ou revitalizadas. Muitas não mobilizam nenhum discurso étnico, mas
é interessante observar que todas fazem referência às tradições afro-brasileiras
reivindicadas para a localidade. Estas atividades se intensificam na atualidade, com o
novo projeto de revitalização, o Porto Maravilha, e têm um grande sucesso junto ao
público.
Com a valorização da localidade pelo poder público municipal é fundado, em 2005, o
Instituto dos Pretos Novos – Museu Memorial (IPN). O Instituto foi criado pelo casal
Merced e Petrúcio Guimarães que, em 1996, em meio a obras em sua residência na
Gamboa, descobriu um sítio arqueológico no subsolo: o Cemitério dos Pretos Novos.
De acordo com os historiadores e arqueólogos que trabalham atualmente no Instituto
(Pereira, 2007; Honorato, 2008; Tavares, 2012), trata-se de um local que havia sido
destinado ao sepultamento de cativos africanos que morriam no momento próximo ao
desembarque, antes de serem vendidos como escravos. O cemitério teria funcionado
entre a década de 1770 – quando o desembarque de cativos africanos foi transferido da
Praça XV para a região do Valongo, no atual bairro da Saúde – e o ano de 1831, –
quando a proibição do tráfico negreiro transatlântico levou ao seu fechamento. O IPN
foi criado pelo casal Guimarães com o objetivo de divulgar a história do cemitério e de
12
denunciar o modo desumano pelo qual os sepultamentos foram ali realizados (Vassallo,
2013).
O interesse despertado pelo sítio arqueológico Pretos Novos levou à criação do
Decreto Municipal nº 24.088, de 5 de abril de 2004, que determinou a construção do
Portal dos Pretos Novos, a ser instalado na Praça do Comércio, localizada na Saúde,
onde no passado funcionava o mercado de escravos. Além disso, previa-se a criação de
um Museu a Céu Aberto, composto pelo Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério
dos Pretos Novos, os Jardins Suspensos do Valongo, a Pedra do Sal, as igrejas
históricas, dentre outros. A intenção do Decreto era a de “demarcar as influências da
cultura negra no território da cidade do Rio de Janeiro, em especial no bairro da Saúde e
Gamboa”. Nem o portal e nem o museu a céu aberto foram criados, apenas algumas
placas indicando sua importância histórica foram colocadas nesses locais.
A descoberta do Cemitério dos Pretos Novos mobiliza historiadores e um arqueólogo
que evidenciam o “Complexo do Valongo” (Honorato, 2008), que engloba o mercado
de escravos, os locais de desembarque de cativos e africanos, o lazareto e o próprio
cemitério. A atuação estes pesquisadore, do casal Guimarães e de representantes do
poder público municipal contribuem para a ampliação dos limites do território étnico da
Saúde, até então mais restrito à Pedra do Sal.
O Projeto Porto Maravilha, atualmente em execução na região portuária, foi criado
em 2009, quando Eduardo Paes assumiu a Prefeitura (gestão 2009-2012 e 2013-2016).
Ele se inspira fortemente no de seu antecessor, César Maia, e reproduz a mesma
percepção empresarial e mercadológica da cidade. Trata-se de um projeto de
modernização que implica em enormes intervenções no seu espaço físico visando a
adequação da cidade aos grandes eventos que irá abrigar: a Copa do Mundo de Futebol,
em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. O projeto prevê a requalificação de 5 milhões
de metros quadrados e engloba os bairros Saúde, Gamboa, Santo Cristo e uma parte da
Cidade Nova. Para tanto, criou por lei uma “Área de especial interesse urbanístico” –
AEIU – que se submete a uma legislação específica e a uma gestão também própria que
atua através de uma Parceria Público-Privada. A sustentação financeira do projeto
provém da venda do aumento do potencial construtivo que, em diversas vias, chega a 50
andares. Se o projeto obtiver o êxito esperado pela Prefeitura, ele implicará numa
enorme verticalização do antigo bairro. Trata-se de um dos principais projetos de
Eduardo Paes, que deseja que a Zona Portuária se torne o novo cartão postal da cidade,
junto com o Corcovado e o Pão de Açúcar.
13
Intervenções como a do Porto Maravilha inserem-se no que Neil Smith (2006) chama
de “novo urbanismo”, caracterizado por um processo de “gentrificação generalizada”.
Nos anos 1960, Ruth Glass (1964) analisava um processo espontâneo e localizado de
gentrificação, promovido por setores da classe média londrina que buscavam residência
em bairros proletários e que não contava com nenhuma participação significativa do
Estado. Para Smith, o que ocorre hoje, ao contrário, é um movimento de revitalização
que parte da iniciativa do Estado, mas que busca parcerias público-privadas para se
financiar. Esta tendência se generaliza pelos diferentes centros urbanos de todo o
mundo, com forte presença do capital globalizado e submissão dos investimentos dos
governos locais às regras do mercado.
No início das obras do Porto Maravilha, a arqueóloga Tânia Andrade Lima e o
Historiador Carlos Eugênio Líbano Soares solicitaram ao IPHAN a escavação do Cais
do Valongo e o pedido foi aceito. De acordo com estes pesquisadores, este teria sido um
dos principais cais de desembarque de cativos africanos na cidade até que ocorresse a
proibição do tráfico transatlântico. Em 1843, o Cais da Imperatriz foi construído sobre
as pedras do Cais do Valongo, para o desembarque da princesa Tereza Cristina, futura
esposa do Imperador D. Pedro II. Na primeira década do século XX, este segundo cais
foi encoberto durante as obras de modernização do porto, na gestão de Pereira Passos.
Quando o Cais do Valongo foi desenterrado, no início de 2011, seu bom estado de
conservação – com uma estrutura de pedras de algumas dezenas de metros – atraiu os
órgãos da Prefeitura responsáveis pelo Porto Maravilha e pela preservação do
patrimônio, bem como da midia. Os relatos da arqueóloga e do historiador sobre a
importância do sítio arqueológico encontrado mesclam-se progressivamente ao de
outros pesquisadores e atores locais e vão sendo ampliados e reinterpretados tanto pela
grande imprensa quanto pelas mídias alternativas. A partir de então, começa a se
difundir um entendimento de que este local teria sido um dos principais cais de
desembarque de cativos africanos no Brasil e nas Américas. O número de africanos ali
desembarcados varia entre 500 mil e 1 milhão, de acordo com a versão. O desembarque
teria durado de cerca de 1779 – quando foi transferido da Praça XV para lá – até 1831,
quando o tráfico negreiro foi proibido. No mesmo ano, foi desativado o Cemitério dos
Pretos Novos, também devido à proibição do comércio transatlântico de africanos.
O interesse da arqueóloga Tânia Andrade Lima não reside na diversidade de usos do
cais durante o seu período de funcionamento, mas sim na história dos africanos que por
lá passaram. Para ela, a história da aristocracia já é suficientemente lembrada e
14
valorizada, é preciso trazer à tona a memória silenciada dos africanos desembarcados e
seus descendentes. Segundo ela, houve uma prática deliberada de apagamento da
história do Cais do Valongo e a arqueologia deve ser contrária a essa atitude. De acordo
com a pesquisadora: “Nós tínhamos a superposição de dois sítios arqueológicos: o Cais
da Imperatriz sobre o Cais do Valongo (...). Os escravos foram esquecidos e, mais do
que isso, eles foram deliberadamente apagados ao ser colocado sobre o Cais do Valongo
o Cais da Imperatriz, num processo de superposição fortemente simbólico. Sobre a
escória humana trazida da África foi colocada uma princesa européia, uma Bourbon, a
Princesa das Duas Sicílias. Ela pisando sobre os negros”
(www.youtube.com/watch?v=RQP_8pn0U3E)”. Assim, graças a atuação de Tânia
Andrade Lima, o significado do sítio arqueológico ganha novos rumos : passa a
exprimir as relações de dominação sofridas pelos negros desde seu desembarque nas
Américas.
Tânia se inspira na prática do bioarqueólogo norte-americano Michael Blakey,
responsável pelas pesquisas no African Burrial Ground, em Nova York, onde, no início
dos anos 1990 foram encontradas ossadas de escravos e hoje se tornou patrimônio
nacional. Para ele, a pesquisa em sítios arqueológicos deve contar com a participação do
chama de « comunidade de descendentes » e deve contribuir em suas lutas por
reconhecimento (Blakey, 2010). Ambos os pesquisadores acreditam que a arqueologia
deva contribuir para trazer à tona as memórias de grupos discriminados e submetidos a
intensas relações de opressão.
Tânia considerou fundamental que as lideranças do movimento negro tomassem
ciência do sítio arqueológico e de sua enorme importância histórica. Através da
intermediação dos integrantes do Instituto dos Pretos Novos, promoveu uma primeira
visita ao local com representantes do movimento negro. Nesse momento, Tânia deu-lhes
longas explicações sobre a importância histórica do cais e mostrou-lhes inúmeros
objetos encontrados durante a sua escavação arqueológica no local, então armazenados
em containers nas imediações. Nesta ocasião foi redigida a Carta do Valongo, segundo a
qual o cais de mesmo nome foi “o principal porto de entrada dos africanos escravizados
trazidos para o Rio de Janeiro”. Através dessas ações, o movimento negro volta
novamente os seus olhos para a Saúde.
A partir de então, integrantes do movimento negro e do IPN começam a se reunir
para discutir o seu posicionamento em relação ao cais. Ao longo dessas reuniões, é
elaborada uma Proposta de Carta Aberta de Reivindicações referentes ao Cais do
15
Valongo, segundo a qual “por esse cais passou boa parte dos antepassados que deram
origem ao maior grupo étnico do Brasil contemporâneo. Portanto, a ancestralidade de
mais da metade da população brasileira tem ali uma forte referência simbólica”.
Ao longo de 2011 e 2012, são organizados alguns eventos culturais e manifestações
no entorno do cais, como uma marcha da CUT – Central Única dos Trabalhadores – no
dia da Abolição da Escravidão e duas homenagens póstumas a Abdias Nascimento,
grande liderança do movimento negro. Em maio de 2011, representantes do movimento
negro levam até o cais a Ministra da Igualdade Racial Luíza Bairros, que, emocionada,
declara publicamente: “é de chorar”. Alguns grupos de capoeira começam a organizar
rodas no local.
Durante o ano de 2011, algumas lideranças negras tentaram pressionar órgãos
públicos para que fosse construído um memorial da diáspora africana no entorno do
Cais do Valongo. Também reivindicaram a participação de um arquiteto negro na
elaboração do projeto visando a exposição pública do cais. Através dessas ações, os
integrantes do movimento negro demarcam simbolicamente o que consideram ser o seu
patrimônio: o território negro que integra a região portuária. É nesse sentido que
reivindicam uma participação efetiva nas decisões que dizem respeito ao cais.
A partir das pressões do movimento negro, foram realizadas reuniões entre algumas
de suas lideranças e de representantes do poder público municipal, através das quais foi
se elaborando coletivamente a ideia da criação do Circuito Histórico e Arqueológico de
Celebração da Herança Africana na Zona Portuária. Recuperava-se a ideia do Museu a
céu aberto, de César Maia, com algumas modificações. A iniciativa foi levada ao
Prefeito que, próximo ao Dia da Consciência Negra e no Ano Internacional dos
Afrodescendentes, escolhido pela ONU, criou o Circuito Histórico e Arqueológico
através do Decreto nº 34803, de 29 de novembro de 2011. Este inclui o Centro Cultural
José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos, o Cais do Valongo e da Imperatriz, os
Jardins Suspensos do Valongo, o Largo do Depósito – onde se localizava o mercado de
escravos – e a Pedra do Sal. O Decreto também institui o Grupo de Trabalho Curatorial
do Circuito da Herança Africana, encarregado da elaboração do conteúdo histórico do
seu material de divulgação.
A criação do Circuito incluia representantes da Prefeitura, do movimento negro, do
Instituto dos Pretos Novos, da cultura afro-brasileira e de pesquisadores – sobretudo
arqueólogos, historiadores e antropólogos. Durante essas reuniões, alguns militantes
negros, que defendiam a existência de uma dimensão sagrada permeando o local,
16
sugeriram que mães de santo definissem o símbolo do Circuito. Foram então convidadas
Mãe Beata e Mãe Edelzuita, duas das mais prestigiosas lideranças do candomblé na
cidade, e Mãe Celina, que havia ajudado a arqueóloga Tânia a interpretar objetos
religiosos de origem africana encontrados nas escavações em torno do Cais do Valongo.
As três ialorixás deveriam visitar o Cais do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos e a
Pedra do Sal, considerados os locais mais importantes do Circuito, para que os orixás
lhes comunicassem o símbolo a ser escolhido.
Na visita das mães de santo ao IPN, realizada em 11 de maio de 2012, o historiador e
arqueólogo Reinaldo Tavares, responsável por uma pesquisa sobre o cemitério, contou-
lhes que, devido ao grande número de cadáveres de africanos que não paravam de
chegar, os corpos eram triturados, enterrados e, de tempos em tempos, incinerados, para
abrir mais espaço. O cemitério também funcionava como um depósito de lixo para os
moradores do entorno. Tanto as mães de santo quanto lideranças negras ali presentes –
todas mulheres – se emocionaram e entenderam que se tratava de um local sagrado,
onde estariam enterrados os seus antepassados.
Na visita ao Cais do Valongo, Mãe Edelzuita declarou que todos os anos seria
necessária uma lavagem no local, para trazer paz e conforto àqueles que, há mais de
duzentos anos, clamavam por justiça. Disse ainda que sentiu uma grande força de
Xangô, orixá responsável por cada homem, mulher, osso e pedra, e símbolo da justiça, e
percebeu que a imagem deste orixá deveria sers o símbolo do Circuito. Para ela, na
região do Valongo, onde fica a Saúde, está a raiz de toda a ancestralidade afro-brasileira
(Vassallo, 2012).
Em abril de 2012, o antropólogo Milton Guran (que havia participado das reuniões
de elaboração do Circuito) e as historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu (autoras do
Relatório Histórico e Antropológico do Quilombo da Pedra do Sal) tornaram público o
Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos
africanos escravizados no Brasil, contendo o levantamento dos 100 lugares mais
relevantes relacionados à escravidão dos africanos no país. Por ocasião da sua
divulgação, Milton Guran declarou publicamente que, dentre os locais inventariados,
considerava o Complexo do Valongo o mais relevante de todo o Brasil.
O trabalho integra a pesquisa “Rota do escravo: resistência, herança e liberdade”,
promovida pela Unesco desde 1994 em vários países, com o intuito de promover o
conhecimento e a reflexão sobre o comércio transatlântico de cativos africanos. Vários
locais inventariados em diversos países foram reconhecidos como patrimônio da
17
humanidade e, nesse processo, ganham destaque os locais de embarque e desembarque
de cativos. Já está sendo encaminhada à Unesco uma solicitação de reconhecimento do
Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade, por iniciativa da Fundação
Palmares.
Alguns meses depois, o órgão da Prefeitura encarregado das obras do Porto
Maravilha começou a oferecer visitas guiadas pela região portuária que incluíam certos
pontos do Circuito da Herança Africana, com o intuito de desenvolver o potencial
turístico da região e atrair um público de fora do bairro. O processo que conduziu à
criação do Circuito da Herança Africana contribuiu ainda mais para a consolidação da
Saúde como um território negro. O destaque dado ao Cemitério dos Pretos Novos, ao
Cais do Valongo e ao mercado de escravos propicia a elaboração de um novo
imaginário sobre a localidade, não só relacionado ao samba, ao trabalho na estiva e ao
candomblé – como era o caso da Pedra do Sal – , mas também ao sofrimento e à dor do
desembarque, da comercialização e do enterramento.
A presença de representantes do poder público, de lideranças negras e de intelectuais
na criação do Circuito da Herança Africana, bem como a sua constante veiculação na
grande imprensa, consolidam as novas fronteiras do território negro que começavam a
se esboçar com a descoberta do Cemitério dos Pretos Novos, ampliando-as para muito
além do entorno da Pedra do Sal. Além disso, através da atuação de lideranças do
movimento negro e do candomblé, ganha destaque a representação da região portuária
como lugar por excelência da ancestralidade afro-brasileira – e, portanto, comolocal
sagrado – , já que ali teria desembarcado a maioria dos africanos trazidos para o país e,
com eles, os seus deuses e as suas culturas.
Conclusão
Neste artigo, parti de uma análise processual que busca desnaturalizar as relações de
posse entre um indivíduo ou grupo e os bens que reivindica para si, tentando
compreender como elas emergem em certos contextos históricos e políticos. Para tanto,
procurei analisar alguns momentos importantes na consolidação das representações da
18
Saúde como um patrimônio afrodescendente. Se, para Heitor dos Prazeres, a capital da
Pequena África se situava na Praça Onze, ela hoje parece se deslocar para a Saúde, que
se torna um território negro. As estreitas analogias tecidas por Roberto Moura entre o
grupo de baianos, o bairro da Saúde, a Pedra do Sal, o trabalho na estiva, a criação dos
ranchos carnavalescos e as casas de santo são posteriormente retomadas e ampliadas por
militantes negros, pesquisadores e agentes culturais locais. Elas hoje se cristalizam no
novo contexto de intervenção urbana da região, em que começa a haver na localidade
uma grande presença da midia, uma enorme entrada de verbas públicas e privadas e um
interesse, por parte da Prefeitura, em desenvolver o potencial turístico da região
portuária.
O deslizamento semântico da Zona Portuária foi possível graças às transformações
que ocorreram nas últimas décadas na sociedade brasileira, que englobam
simultaneamente os projetos de intervenção urbana e o processo de redemocratização,
que inclui a flexibilização da noção de patrimônio nas políticas públicas e as
reivindicações políticas e identitárias por parte dos movimentos sociais. Tais mudanças
de sentido ocorrem na confluência entre, “de um lado, o projeto neoliberal que se instala
em nossos países ao longo das últimas décadas e, de outro, um projeto democratizante,
participativo, que emerge a partir das crises dos regimes autoritários e dos diferentes
esforços nacionais de aprofundamento democrático” (Dagnino, 2004: 140).
Essas novas configurações políticas levam às reivindicações da Saúde – ou de
algumas de suas localidades – como um patrimônio afrodescendente. É ao longo dessa
trajetória que alguns de seus locais se tornam particularmente caros a certos atores
sociais. Eles se tornam posses inalienáveis, suspensas fora do tempo, e encarnam os
laços com divindades e ancestrais. No entanto, essa relação de propriedade não é dada
de antemão, ela é progressivamente elaborada, ao mesmo tempo em que se torna alvo de
disputas entre alguns setores da sociedade, como militantes negros, agentes da
Prefeitura, pesquisadores e agentes culturais locais. Ela ocorre num contexto político
que favorece a emergência de sentimentos de posse, identidade e pertencimento por
parte de lideranças do movimento negro e de outros atores envolvidos no processo.
Bibliografia
19
Agier, Michel. Anthropologie du carnaval. La ville, la fête, l’Afrique. Marseille,
Editions Parenthèses, 2000.
Alberti, Verena et Pereira, Amílcar Araújo. “Qual África? Significados da África para o
movimento negro no Brasil”. Rio de Janeiro, Estudos Históricos, nº 39, 2007, pp. 25-56.
Arruti, José Maurício. Mocambo. Antropologia e História do processo de formação
quilombola. Bauru, EDUSC/ANPOCS, 2006.
Benjamin, Walter. L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproductibilité technique. Paris,
Editions Allia, 2011.
Blakey, Michael. “Le projet de cimetière africain: un paradigme pour la coopération?”
Museum, n° 245-246, vol. 62, 2010, pp. 64-71.
Botelho, Tarcísio. “Revitalização de centros urbanos no Brasil: uma análise comparativa
das experiências de Vitória, Fortaleza e São Luiz”. Revista Eure, Santiago do Chile, vol.
31, n° 93, 2005, pp. 53-71.
Canclini, Nestor Garcia. “O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional”.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n° 23, 1994, pp. 95-115.
Capone, Stefania. La quête de l’Afrique dans le candomblé. Pouvoir et tradition au
Brésil. Paris, Karthala, 1999.
Costa, Flávia Carolina da. Morro da Conceição: uma etnografia da sociabilidade e do
conflito numa metrópole brasileira. Dissertation de Master. Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos, 2010.
Dagnino, Evelina. “Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas
da confluência perversa”. Política e Sociedade, n° 5, outubro de 2004, pp. 139-164.
Dantas, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil.
Rio de Janeiro, Graal, 1988.
20
Glass, Ruth. London: aspects of change. London, Center for Urban Studies and
MacGibbon and Kee, 1964.
Gomes, Edlaine Campos. “Dinâmica religiosa e trajetória das políticas de
patrimonialização: reflexões sobre ações e reações das religiões afro-brasileiras”. In:
Interseções, ano 12, nº 1, 2010, pp. 131-158.
Gonçalves, Reginaldo. “O espírito e a matéria: o patrimônio enquanto categoria de
pensamento”. In: Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de
Janeiro, IPHAN/Coleção Museu, Memória e Cidadania, 2007, pp. 107-116.
Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. “Cidadania e retóricas negras de inclusão social”.
Lua Nova, São Paulo, nº 85, 2012, pp. 13-40.
Guimarães, Roberta Sampaio. A utopia da Pequena África. Os espaços do patrimônio
na Zona Portuária carioca. Thèse de Doctorat, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
Harvey, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume, 2005.
Honorato, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a
1831. Dissertation de Master. Departamento de História, Rio de Janeiro, Universidade
Federal Fluminense, 2008.
Mattos, Hebe et Abreu, Martha. “Relatório histórico-antropológico sobre o Quilombo
da Pedra do Sal: em torno do samba, do santo e do porto”. In: O’Dwyer, Eliane C. (éd.).
O fazer antropológico e o reconhecimento de direitos constitucionais. O caso das terras
de quilombo no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers, 2012, pp. 23-67.
Mattos, Hebe; Abreu, Martha; Guran, Milton. Inventário dos Lugares de Memória do
Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos AfricanosEscravizados no Brasil. Rio
de Janeiro, 2012.
21
Millarch, Aramis. “Lúcio Rangel dá nome para estimular a MPB”. Estado do Paraná,
8/4/1980, p. 6. http://www.millarch.org/artigo/lucio-rangel-da-nome-para-estimular-
mpb, consultado em 23/10/2013.
Moreira, Clarissa da Costa. A cidade contemporânea: entre a tabula rasa e a
preservação. São Paulo, Editora UNESP, 2004.
Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
Pereira, Júlio César M. da S. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Garamond/IPHAN, 2007.
Sansi, Roger. “A vida oculta das pedras: historicidade e materialidade dos objetos no
candomblé”. In: Gonçalves, J.R.; Guimarães, R.S.; Bitar, N.P. (éds.). A alma das coisas.
Patrimônios, materialidade e ressonância. Rio de Janeiro, Mauad, 2013, pp. 105-122.
Smith, Neil. “A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à ‘regeneração’
urbana como estratégia global”. In: Bidou-Zachariasen, C. (éd.). De volta à cidade. Dos
processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São
Paulo, Annablume, 2006, pp. 59-87.
Soares, Mariza de Carvalho. “Nos atalhos da memória: monumento a Zumbi”. In:
Knauss, Paulo. (éd.). A cidade vaidosa. Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: SetteLetras, 1999, vol. 1, pp. 117-135.
Tavares, Reinaldo. Cemitério dos Pretos Novos, Rio de Janeiro, século XIX: uma
tentativa de delimitação espacial. Dissertation de Master. Departamento de
Arqueologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
Vassallo, Simone Pondé. “Releituras da escravidão negra e da Zona Portuária do Rio de
Janeiro: o caso do Instituto dos Pretos Novos”. In: Pontes et alii (éds.). Cultura,
memória e poder: diálogos interdisciplinares. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2013, pp. 83-
92.
22
____. “Desenterrando memórias: Patrimônios afrodescendentes em disputa na Zona
Portuária do Rio de Janeiro”. In: Souza, Rogério (éd.). Sociedade em Perspectiva:
cultura, conflito, identidade. Rio de Janeiro, Ed. Gramma, 2012, pp. 157-187.
____. “Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira ‘autêntica’”.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 32, 2003/2, pp. 106-124.
Velho, Gilberto. “Patrimônio, negociação e conflito”. Rio de Janeiro, Mana, vol. 12, nº
1, 2006, pp. 237-248.
Weiner, A. Inalianable possessions: the paradox of keeping while giving. Berkeley:
University of California Press, 1992.
Documentos
Carta de Recomendações do Valongo, 26 de junho de 2012.
Carta do Valongo, Rio de Janeiro, 17 de março de 2011.
Decreto municipal nº 24088, de 5 de abril de 2004.
INEPAC. Processo de Tombamento da Pedra do Sal, n. 300048, de 2 de maio de 1984.
Proposta de Carta Aberta de reivindicações referentes ao Cais do Valongo e à Pequena
África. Rio de Janeiro, 24 de junho de 2011.