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Mirandiba Ano 9 nº 1715 Fevereiro/2015 20 Anos Comunidade quilombola luta para preservar a tradição das sementes crioulas e fortalecer banco comunitário Localizada a quatro quilômetros de Mirandiba, no Sertão Central, a comunidade quilombola de Feijão e Posses tem uma história marcada por muita luta e resistência que é transmitida de geração a geração. A comunidade foi fundada por volta da década de 40 e atualmente abriga 48 famílias que vivem da agricultura e da criação de animais, e que preservam as tradições e os ensinamentos dos antepassados, a exemplo da conservação de sementes. Um conquista importante de Feijão e Posses é a presença das mulheres nos processos de formação comunitária. Elas são as grandes incentivadoras das famílias, enfrentam os problemas de frente, lutam por melhorias, sempre participam de reuniões e projetos e devolvem o que aprendem para a comunidade. Fontes de renda As famílias contam que não tem sido fácil enfrentar a seca, e já que não podem fazer suas roças, muitas plantam frutíferas, hortaliças e beneficiam frutas. A produção é vendida entre as comunidades próximas e entregue ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pois a feira agroecológica do município foi desativada por causa da estiagem. “Com a seca, nossa preocupação não é apenas com as sementes de milho e feijão, mas também com as sementes da Caatinga, por isso sempre que é possível participamos de trocas de sementes”. (Mazé) Porfírio Gomes de Souza, patriarca da comunidade Feijão, tinha o apelido de Jiboião, recebido de Lampião quando criança. Você Sabia? Os moradores da comunidade fazem parte da Associação dos Moradores Quilombolas de Feijão e Posses, da Cooperativa dos Agricultores Familiares de Mirandiba (COAFAM), integram o Fórum de Mulheres de Pernambuco, tem grupo de mulheres, grupo de jovens e grupo de dança, além de parceria com instituições, a exemplo do Cecor. Comunidade organizada As sementes nativas ou sementes crioulas são mais resistentes à seca e representam um patrimônio da agricultura local Foto: Juliana Lima Fotos: Juliana Lima

Comunidade quilombola luta para preservar a tradição das sementes crioulas e fortalecer banco comuni

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Marcada por uma história de muita luta pela conquista da terra, comunidade quilombola preserva a cultura das sementes nativas deixada pelos antepassados, prática que foi fortalecida a partir de um banco comunitário de sementes implantado na localidade, que garante espaço e estrutura para as famílias guardarem suas sementes.

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Mirandiba

Ano 9 nº 1715Fevereiro/2015

20 Anos

Comunidade quilombola lutapara preservar a tradição das sementes crioulas

e fortalecer banco comunitário

Localizada a quatro quilômetros de Mirandiba, no Sertão Central, a comunidade quilombola de Feijão e Posses tem

uma história marcada por muita luta e resistência que é transmitida de geração a geração. A comunidade foi fundada

por volta da década de 40 e atualmente abriga 48 famílias que vivem da agricultura e da criação de animais, e que

preservam as tradições e os ensinamentos dos antepassados, a exemplo da conservação de sementes.

Um conquista importante de Feijão e Posses é a presença das mulheres nos processos de formação comunitária. Elas são as grandes incentivadoras das famílias, enfrentam os problemas de frente, lutam por melhorias, sempre participam de reuniões e projetos e devolvem o que aprendem para a comunidade.

Fontes de rendaAs famílias contam que não tem sido fácil enfrentar a seca, e já que não podem fazer suas roças, muitas plantam frutíferas, hortaliças e beneficiam frutas. A produção é vendida entre as comunidades próximas e entregue ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pois a feira agroecológica do município foi desativada por causa da estiagem.

“Com a seca, nossa preocupação não é apenas com as sementes de milho e feijão, mas também com as sementes da Caatinga, por isso sempre que é possível participamos de trocas de sementes”. (Mazé)

Porfírio Gomes de Souza, patriarca da

comunidade Feijão, tinha o apelido de Jiboião,

recebido de Lampião quando criança.

Você Sabia?Os moradores da comunidade fazem parte da Associação

dos Moradores Quilombolas de Feijão e Posses,da Cooperativa dos Agricultores Familiares de Mirandiba (COAFAM),

integram o Fórum de Mulheres de Pernambuco,tem grupo de mulheres, grupo de jovens e grupo de dança,

além de parceria com instituições, a exemplo do Cecor.

Comunidade organizada

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História da comunidade

Os/as moradores/as contam que a comunidade de Feijão surgiu de um conflito entre os fazendeiros Clávio de Menezes e Joaquim Bezerra de Carvalho, que eram donos das fazendas Posses e Quixabeira, respectivamente. Por causa da disputa de território, Joaquim Bezerra ofereceu 42 hectares de sua propriedade ao agricultor Porfírio Gomes de Souza, que era casado com Jacinta Teodora da Conceição, com quem tinha seis filhos. Outros familiares do casal trabalhavam para Clávio de Menezes e, por causa disso, a família vivia dividida, pois quem trabalhasse para um fazendeiro não poderia trabalhar para o outro, senão era mandado embora das terras.

Como as famílias precisavam de terra para viver e sair do meio do conflito dos dois fazendeiros, Porfírio Gomes de Souza aceitou a proposta de Joaquim Bezerra e comprou parte de sua fazenda. Para pagar a dívida a família teve que trabalhar muitas diárias no alugado e fornecer sacas de milho e feijão ao fazendeiro. Desta forma, a terra foi paga e deu origem a comunidade de Feijão.

A partir da compra da terra os familiares de Porfírio Gomes e Jacinta Teodora foram se organizando na propriedade, cultivando alimentos e criando animais. Foi nessa época que surgiu o Movimento Sem Terra (MST) e, então, o INCRA tentou desapropriar as terras da fazenda Posses, porém, o território era insuficiente para o número de famílias que residiam no local, uma vez que pessoas da cidade foram se fixando na esperança de serem beneficiadas pela Reforma Agrária.

Como a desapropriação não aconteceu, muitas famílias foram embora de Posses e só retornaram quando se iniciou a discussão quilombola no local, uma vez que os moradores das duas comunidades são descendentes de africanos escravizados. O reconhecimento quilombola veio em 2004, após as famílias se organizarem e irem à luta. Em 2013 foi concluído o relatório antropológico necessário para a aquisição do título quilombola junto a Fundação Palmares. Os 42 hectares de Feijão e 1800 de Posses já estão demarcados e as famílias aguardam ansiosas pela liberação do título definitivo da terra onde moram e pela qual seus antepassados lutaram de sol a sol para conquistar.

Preservação das Sementes

Como vivem da agricultura de subsistência, as famílias de Feijão e Posses preservam a tradição das sementes crioulas. Sementes produzidas, selecionadas e conservadas pelos/as próprios/as agricultores/as para serem plantadas nos anos seguintes.

As sementes que antes eram guardadas em casa agora são levadas para um banco comunitário, surgido através de um projeto das comunidades quilombolas junto à Embrapa de Petrolina. Com o projeto foi construída a sede do banco comunitário (que serve de sede para a associação) e a aquisição de máquinas, como selecionadora de grãos e debulhadora de milho, embora ainda não tenham sido usadas, pois com os anos de seca não foi possível produzir em quantidade. Recentemente, o banco foi fortalecido pelo Centro de Educação Comunitária Rural (Cecor), através do Programa Uma Terra e Duas Águas, com o fornecimento de estantes, tambores e balança de precisão.

Netos dos fundadores de Feijão, os irmãos Maria José de Souza, 41 anos, que é professora e representante comunitária e João Miguel de Souza, 52 anos, que é agricultor, contam como aprenderam com os avós a importância de guardar as sementes.

“Meu avô fazia um quarto alto do chão, feito de barro, rebocava e ia colocando uma camada de areia e uma de feijão até preencher o lugar. E quando era para comer ou plantar o legume a gente tirava e peneirava com uma peneira de flande”, explica João Miguel. “As sementes também eram guardadas em latas de leite, de gás e em cabaças, e para evitar pragas eles molhavam o feijão com gás, porque aquela semente não podia estragar, tinha que ser plantada no ano seguinte”, acrescenta Mazé, que aprendeu com a avó guardar sementes de jerimum, melancia, gergelim, algodão e muitas outras.

Mesmo com a falta de invernos, o banco permanece ativo. Há uma comissão especial que recebe e anota as sementes doadas pelas famílias, constantemente incentivadas a fortalecerem o banco para no ano seguinte terem a garantia de uma semente de qualidade para plantar. Feijão e Posses tem ainda um viveiro de mudas comunitário, onde são produzidas mudas nativas e de hortaliças.

Hoje as sementes não são mais conservadas em silos de zinco, as famílias usam garrafas pet e tambores de plástico

A tradição das sementes continua porque nossos/as filhos/as estão aprendendocom a gente, assim como nós aprendemos com nossos antepassados.

(Gilvaneide Gomes da Silva Souza – moradora de Feijão)

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Foto: Juliana L

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