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Comunique-se! Maria Stella de Azevedo Santos, Iyarolixá do Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador, BA 1 Todos dizem que vivemos na era da comunicação. Não seria melhor dizermos que estamos na era da informação? Afinal, o fato de termos ao nosso alcance aparelhos que fazem com que as notícias cheguem a tempo real, com rapidez e clareza, outros que nos colocam em contato com os nossos pares quase que permanentemente, não quer dizer que estamos mais capacitados para nos compreendermos mutuamente. Receber e entender uma mensagem que nos foi transmitida não é mais difícil, a dificuldade continua sendo a de termos disponibilidade interior para analisarmos o conteúdo enviado, tendo a grandeza de não nos colocarmos na posição de donos da verdade, nos levando a sermos opositores apenas pelo fato de ser. O filósofo Sócrates disse: “tudo o que sei é que nada sei”. Ele resume nessa frase um fato para o qual deveriam atentar, mas que muitos preferem ignorar: a verdade não pertence a ninguém, uma vez que cada um, de acordo com sua trajetória de vida e as experiências adquiridas, constrói e desconstrói suas próprias verdades. Comunicamo-nos desde sempre. Toda mãe entende a linguagem do bebê quando ele chora pedindo comida, por estar sentindo dor ou por simples “manha” que, aliás, de simples, não tem nada, pois o que chamamos de “manha” reflete uma grande necessidade humana, a necessidade de afeto. Os bebês crescem e a comunicação entre o adulto e o resto do mundo precisa ser afetiva e efetiva. O medo, a competição, a falta de tempo, ou melhor, a incapacidade de estabelecer prioridades, a busca do ter com negligência do ser impede que o contato entre as pessoas tenha uma conexão verdadeira, a qual só acontece quando este contato vem com amizade e amor, sentimentos que geram a compreensão necessária para que a comunicação tenha um efeito real e efetivo, enfim, seja efetiva. Uma comunicação efetiva implica compreender e se fazer compreendido. Impossível compreender o outro se não nos dispusermos a escutá-lo, não só com os ouvidos, mas também com o coração. O ouvir com o coração não se limita a perceber e entender os sons que, para nós, são enviados. Para escutar verdadeiramente o outro, a atenção precisa estar concentrada, o coração livre de preconceitos e a alma aberta para a generosidade. Compreender o outro é difícil e se fazer compreender também. Para que o outro realmente nos escute, é preciso que exista em nosso íntimo um real desejo de sermos compreendidos. Falar com o peito aberto, sem rodeios, sem receio de sermos mal interpretados, colocando as armas de defesa de lado, é fundamental. O silêncio é imprescindível para que se compreenda a comunicação do outro, mas é extremamente prejudicial quando se deseja ser compreendido. É terrível quando alguém acha que o outro tem obrigação de adivinhar seus sentimentos, sem que eles sejam expressos. É comum ouvirmos que um casal se separou porque não tinha diálogo, que nada mais é do que uma troca de opiniões visando o entendimento mútuo. Dialogar é complicado para 1 Publicado originalmente no jornal A TARDE

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Escrito por Mãe Stella, líder espiritual de um terreiro de candomblé em Salvador. É uma linda reflexão sobre comunicação! Nessa religião de origem africana, há um orishá (Exu) responsável pela comunicação entre o mundo espiritual e o mundo material (o nosso). Jorge Amado o chama de "correio dos orishás" e a mensagem é bastante simbólica; sem Exu, ou seja, sem comunicação, sem se estabelecer a rede, nada acontece. Simbolicamente, se também se esquece desse Orishá nos rituais do candomblé - se esquecendo, assim, da comunicação - a confusão se estabelece!

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Comunique-se!

Maria Stella de Azevedo Santos, Iyarolixá do Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador, BA1

Todos dizem que vivemos na era da comunicação. Não seria melhor dizermos que estamos na era da informação? Afinal, o fato de termos ao nosso alcance aparelhos

que fazem com que as notícias cheguem a tempo real, com rapidez e clareza, outros que nos colocam em contato com os nossos pares quase que permanentemente, não quer dizer que

estamos mais capacitados para nos compreendermos mutuamente. Receber e entender uma mensagem que nos foi transmitida não é mais difícil, a dificuldade continua sendo a de termos disponibilidade interior para analisarmos o conteúdo enviado, tendo a grandeza de não nos colocarmos na posição de donos da verdade, nos levando a sermos opositores apenas pelo fato de ser. O filósofo

Sócrates disse: “tudo o que sei é que nada sei”. Ele resume nessa frase um fato para o qual deveriam atentar, mas que muitos preferem ignorar: a verdade não pertence a ninguém, uma vez que cada um, de acordo com sua trajetória de vida e as experiências adquiridas, constrói e desconstrói suas próprias verdades.

Comunicamo-nos desde sempre. Toda mãe entende a linguagem do bebê quando ele chora pedindo comida, por estar sentindo dor ou por simples “manha” que, aliás, de simples, não tem nada, pois o que chamamos de “manha” reflete uma grande necessidade humana, a necessidade de afeto. Os bebês crescem e a comunicação entre o adulto e o resto do mundo

precisa ser afetiva e efetiva. O medo, a competição, a falta de tempo, ou melhor, a incapacidade de estabelecer prioridades, a busca do ter com negligência do ser impede que o contato entre as pessoas tenha uma conexão verdadeira, a qual só acontece quando este contato vem com amizade e amor,

sentimentos que geram a compreensão necessária para que a comunicação tenha um efeito real e efetivo, enfim, seja efetiva.

Uma comunicação efetiva implica compreender e se fazer compreendido. Impossível compreender o outro se não nos dispusermos a escutá-lo, não só com os ouvidos, mas também com o coração. O ouvir com o coração não se limita a

perceber e entender os sons que, para nós, são enviados. Para escutar verdadeiramente o outro, a atenção precisa estar concentrada, o coração livre de preconceitos e a alma aberta para a generosidade. Compreender o outro é difícil e se fazer compreender também. Para que o outro realmente nos escute, é preciso que exista em nosso íntimo um real desejo de sermos compreendidos. Falar com o peito aberto, sem rodeios, sem receio de sermos mal interpretados, colocando as armas de defesa de lado, é fundamental.

O silêncio é imprescindível para que se compreenda a comunicação do outro, mas é extremamente prejudicial quando se deseja ser compreendido. É terrível quando alguém acha que o outro tem obrigação de adivinhar seus sentimentos, sem que eles sejam expressos. É comum ouvirmos que um casal se separou porque não tinha diálogo, que nada mais é do que

uma troca de opiniões visando o entendimento mútuo. Dialogar é complicado para

1 Publicado originalmente no jornal A TARDE

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muitas pessoas porque implica um trabalho mental de ouvir, deduzir e responder, que envolve um grande comprometimento emocional.

Para que possa ocorrer esse entendimento mútuo, é essencial que nos retiremos do lugar “confortável” em que nos encontramos e nos coloquemos no lugar do outro, com a idade, a cultura, os sofrimentos vividos, as crenças e as esperanças. É preciso que exercitemos o que nos pediu Gonzaguinha ao cantar: “quando eu soltar a minha voz, por favor, entendam que, palavra por palavra, eis aqui uma pessoa se entregando, coração na boca, peito aperto, vou sangrando, são as lutas dessa vida que estou cantando”.

Não devemos, pois, silenciar nossas opiniões e desejos, na expectativa de que eles sejam simplesmente captados pelos homens e deuses. Daí a importância dada pela religião que cultua os orixás às preces, as quais são chamadas de adura, realizadas em voz alta. Os deuses

precisam escutar da nossa própria voz os pedidos e agradecimentos. Seja com deuses ou homens, a comunicação, que é inerente à humanidade, precisa ser buscada e aprimorada, sempre.