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1 COMUNISMO OU CIVILIZAÇÃO 3 Em lingua portuguesa 1984

COMUNISMO OU CIVILIZAÇÃO 3 - robingoodfellow.info · A REVOLUÇÃO BURGUESA E O ESTADO ... A CRISE DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA NA FASE DE ... O sistema capitalista é como

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COMUNISMO OU

CIVILIZAÇÃO 3

Em lingua portuguesa

1984

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COUCP 3

COMUNISMO OU CIVILIZAÇÃO pela INVARIÂNCIA da teoria do proletariado.

- Defendida na Liga dos Comunistas (Manifesto do Partido Comunista – 1848); na AIT (obra do Conselho Geral de Londres dirigido por Marx); quando da Comuna; na Segunda Internacional; contra a degenerescência e falência desta (Esquerda socialista na Alemanha, Bolcheviques, Esquerda Socialista na Itália – Fração Abstencionista).

- Que triunfa na Rússia em 1917 e internacionalmente:

Moscou 1919: fundação da terceira Internacional; Livorno 1921: fundação do Partido Comunista da Itália: ruptura com a democracia.

- Defendida pela Esquerda Comunista contra a degerescência de Moscou; contra a União Sagrada na resistência ao fascismo.

- Que deve ser restaurada, assim como o Partido Comunista – órgão da classe

proletária – fora de todo democratismo, carreirismo, individualismo, contra o imediatismo e contra toda dúvida revisionista quanto à doutrina.

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“O comunismo é a VERDADEIRA solução do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a verdadeira solução do conflito entre a objetivação e a afirmação de si, entre o indivíduo e a espécie. Ele é o enigma resolvido da história e é consciente disto”. (Marx, 1844)

“A civilização e a justiça da ordem burguesa mostram-se sob sua face sinistra cada vez que os escravos desta ordem levantam-se contra seus mestres. Então, esta civilização e esta justiça desmascaram-se como a selvageria sem máscara e a violência sem lei. Cada nova crise na luta de classe entre o apropriador e o produtor faz ressaltar este fato com maior impacto. As atrocidades dos burgueses em junho de 1848 desaparecem por si mesmas diante da indizível infâmia de 1871. O heróico espírito de sacrifício, com o qual a população de Paris – homens, mulheres e crianças – combateu durante dias após a entrada dos Versalheses, reflete tanto a grandeza de sua causa, quanto as glórias infernais da soldadesca refletem o espírito inato desta civilização de que são os mercenários e os defensores. Gloriosa civilização, certamente, cujo grande problema é saber como livrar-se das pilhas de cadáveres que ela produziu, uma vez encerrada a batalha”. (Marx, “A guerra civil na França” “O determinismo, na sua amadurecida aceitação, nada tem a ver com a passividade. Ele mostra apenas que o homem age antes de ter querido agir e quer antes de saber por que quer, seu cérebro sendo ainda o menos seguro de seus órgãos. Assim, o melhor uso que um grupo de homens pode fazer de seu cérebro sendo ainda o menos seguro de seus órgãos. Assim, o melhor uso que um grupo de homens pode fazer de seu cérebro é ainda prever o momento histórico em que (nada a ver portanto com a passividade) ele será catapultado no turbilhão da ação e da luta – por uma vez a cabeça na frente”. (Diálogo com os mortos, 1957)

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SUMÁRIO 1. O QUADRO HISTÓRICO ........................................................................................ 6

1.1. A ACUMULAÇÃO PRIMITIVA ............................................................................ 6 1.1.1. Condições Históricas .......................................................................................... 6 1.1.2. A Expropriação do Produtor Imediato. ......................................................... 10

1.2. A GÊNESE DO CAPITAL ..................................................................................... 18 1.2.1. O Capital Usurário ........................................................................................... 18 1.2.2. O Capital Mercantil.......................................................................................... 19

1.3. A MAIS-VALIA NAS DUAS FASES: ABSOLUTA E RELATIVA .................. 26 1.4. A TRANSFORMAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO AO LONGO DAS DUAS FASES. ................................................................................................................. 36

1.4.1. A Fase Formal: a Manufatura ......................................................................... 36 1.4.2. A Fase Real: Maquinismo e Grande Indústria. ............................................. 44

2. A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL NO CURSO DAS DUAS FASES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA. ............................................................. 49

2.1. INTRODUÇÃO. ...................................................................................................... 49 2.2. FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL: PAUPERIZAÇÃO ABSOLUTA. .................................................................................. 50 2.3. A SUPERPOPULAÇÃO ABSOLUTA. ................................................................. 54 2.4. A PASSAGEM DA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL À FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL. ............................................. 56 2.5. FASE DE SUBMISSÃO REAL: PAUPERIZAÇÃO RELATIVA. .................... 58 2.6. A SUPERPOPULAÇÃO RELATIVA. .................................................................. 60 2.7. A ÚNICA RIQUEZA HUMANA É O COMUNISMO. ....................................... 64

3. O FETICHISMO DO CAPITAL ........................................................................... 66 3.1. O FETICHISMO DA MERCADORIA. ................................................................ 66 3.2. O FETICHISMO DO CAPITAL NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL. ........................................................................................ 67 3.3. O FETICHISMO DO CAPITAL NA FASE DE SUBMISSÃO REAL. ............. 69 3.4. A COMUNIDADE DO CAPITAL ........................................................................ 76

4. A CIÊNCIA CONTRA O PROLETARIADO .................................................... 78 4.1. CIÊNCIA E MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA. .................................... 78 4.2. CIÊNCIA E SUCESSÃO DAS FORMAS DE PRODUÇÃO. ............................. 81 4.3. TRABALHO GERAL E CIÊNCIA ....................................................................... 83 4.4. A DIALÉTICA CONTRA O MÉTODO CIENTÍFICO ...................................... 85 4.5. A CIÊNCIA NA FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL. ....................................................................................................................... 87

4.5.8. Abaixo a Ciência! ............................................................................................. 90 5. OS SINDICATOS NAS DUAS FASES ............................................................... 92

5.1. OS SINDICATOS NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL. .............................. 92 5.2. A ELIMINAÇÃO DA BASE HISTÓRICA DOS SINDICATOS AO LONGO DA FASE DE SUBMISSÃO REAL. ............................................................................. 97

6. ESTADO E DEMOCRACIA NAS DUAS FASES. ...................................... 103

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6.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................... 103 6.2. GÊNESE. ............................................................................................................... 103 6.3. AS BASES CONTRADITÓRIAS DO ESTADO BURGUÊS. .......................... 104 6.4. O ESTADO NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL ...................................................................................................................... 108 6.5. A REVOLUÇÃO BURGUESA E O ESTADO ................................................... 112 6.6. O ESTADO NA FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL ...................................................................................................................... 118

7. O MOVIMENTO DAS CLASSES SOCIAIS NAS DUAS FASES ........... 124 7.1. BURGUESIA, PROLETARIADO E PROPRIETÁRIOS FUNDIÁRIOS NAS DUAS FASES ................................................................................................................ 124

7.1.1. Fase de Submissão Formal do Trabalho ao Capital .................................... 124 7.1.2. Fase de Submissão Real do Trabalho ao Capital ........................................ 127

7.2. AS CLASSES MÉDIAS NAS DUAS FASES ...................................................... 129 7.2.1. Introdução ....................................................................................................... 129 7.2.2. As Classes Médias na Fase de Submissão Formal do Trabalho ao Capital .................................................................................................................................... 132 7.2.3. As Classes Médias na Fase de Submissão Real do Trabalho ao Capital ... 136

8. AS FORMAS DE DOMINAÇÃO DO MERCADO MUNDIAL NAS DUAS FASES ................................................................................................................ 145

8.1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 145 8.2. FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL: COLONIALISMO ........................................................................................................ 147 8.3. FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL: IMPERIALISMO ......................................................................................................... 151 8.4. .................................................................................................................................. 160

9. AS CRISES NAS DUAS FASES ......................................................................... 161 9.1. A CRISE DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL ..................................... 161 9.2. AS CRISES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA NA FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL ............................................ 167

10. CONCLUSÃO: AS DUAS FASES DO COMUNISMO ............................. 174 10.1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 174 10.2. A FASE DE DOMINAÇÃO FORMAL DO COMUNISMO........................... 175

10.2.1. A Ditadura do Proletariado ......................................................................... 175 10.2.2. O Estado Proletário ...................................................................................... 177 10.2.3. A Fase Inferior do Comunismo ................................................................... 180 10.2.4. Fase de Dominação Real do Comunismo: a Fase Superior do Comunismo .................................................................................................................................... 182

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1. O QUADRO HISTÓRICO

1.1. A ACUMULAÇÃO PRIMITIVA

1.1.1. Condições Históricas

Marx estendeu-se repetidas vezes sobre o sentido exato que era preciso conferir a esta expressão já utilizada por Adam Smith: “acumulação primitiva”. Seria falso considerar que, partindo de nada, o capital começa por criar separadamente os elementos necessários ao seu processo de produção, durante décadas, até que a partir de um dado momento passe a fazê-lo operar.

Pelo contrário , todos os momentos que compõem o processo de produção capitalista já estão presentes na realidade histórica da sociedade pré-capitalista. O capital apenas apodera-se destes elementos, dissolvendo seu antigo modo de ser.

“A acumulação primitiva do capital implica a centralização das condições de trabalho. Ela significa a separação destas condições em relação ao trabalhador e à força de trabalho. Seu ato histórico é o ato da gênese histórica da separação, que transforma as condições de trabalho em capital e o trabalho em trabalho assalariado. Assim, está dada a base da produção capitalista”. (Marx - O Capital – livro III, seção 3)

No início, o capital não cria nada. Contenta-se em modificar o modelo de

ligação dos elementos do trabalho em si. Quanto a estes elementos do próprio trabalho, possuem um caráter invariável e formam enquanto tais a base do TODO processo de trabalho, qualquer que seja sua forma histórica. Para qualquer processo de trabalho, desde o do talhador de sílex até o do operário do complexo petroquímico, passando pelos tipos característicos do camponês e do artesão, é necessário que existam três elementos:

1) atividade pessoal do homem, ou seja, o trabalho propriamente dito; 2) objeto sobre o qual age o trabalho; 3) meio pelo qual age.

Sendo o homem por definição um ser prático, devendo por tanto sempre

dedicar-se a uma atividade produtiva, estes três elementos apresentam-se como condições invariáveis e “naturais” do processo de trabalho humano. O que muda, no curso da história, é a relação destes elementos entre si. É conforme a dialética dizer que a existência de um meio de trabalho e de uma atividade são características permanentes do processo de trabalho. Isto não vale mais a partir do momento em que se substitui estes elementos genéricos pelos termos de

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“capital fixo” ou “proletário”. Estes são caracteres históricos de um processo de trabalho determinado.

Toda a genealogia das formas de produção efetuada por Marx apoiava-se sobre a constatação de que não é a unidade natural do homem e das condições de produção que deve ser explicada, mas pelo contrário sua separação; donde as pesquisas de Marx e Engels, não tanto sobre as sociedades primitivas, mas principalmente sobre o momento de sua dissolução e as formas que lhes sucedem.

De início, o movimento do capital tem por efeito separar os elementos do processo de trabalho, notadamente nas suas determinações objetiva e subjetiva, arrancando do sujeito que trabalha as condições da produção (isto é, a terra, o instrumento e os meio s de subsistência).

A separação, diz Marx, surge como condição normal do modo de produção capitalista.

Se, para que o modo de produção capitalista se estabeleça, é necessário que esta separação já esteja realizada em certa escala, posteriormente ele completa este processo, destruindo inexoravelmente as antigas classes médias oriundas das formas de produção pré-capitalistas e reproduzindo em uma escala sempre maior a separação dos trabalhadores em relação aos meios de produção.

“No fundo do sistema capitalista, há portanto a separação radical do produtor em relação a seus meios de produção. Esta separação reproduz-se em uma escala progressiva a partir do momento em que o sistema capitalista se estabeleceu; como esta separação forma a base deste sistema, este não poderia estabelecer-se sem ela. Para que ele surja na história, é portanto necessário que, pelo menos parcialmente, os meios de produção já tenham sido irremediavelmente arrancados dos produtores que os empregavam para realizar seu próprio trabalho e que já se encontram em poder dos produtores mercantis, que os empregam para especular sobre o trabalho de terceiros. O movimento histórico que faz divorciar o trabalho de suas condições externas, eis portanto o ponto crucial da acumulação chamada “primitiva”, pois ela pertence à idade pré-histórica do mundo burguês.” (O Capital, livro I, seção 8)

O primeiro ato pelo qual o capital surge no mundo é portanto um ato

negativo: ele não cria novas condições de produção, apenas dissolve as antigas. Ele priva definitivamente o trabalhador de sua propriedade. No início, este movimento ocorre apenas de modo esporádico, no seio das antigas condições de produção. É preciso apreender como, dialeticamente, o capital é ao mesmo tempo produto de um estágio histórico determinado e o próprio produtor de suas condições de existência. A aparição de um capital já é, em si mesma, fruto de uso e o valor de troca, indústria e comércio, produção e circulação, etc... Posteriormente, é o próprio capital que acelera sua obra de dissolução, ao mesmo

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tempo graças à força corrosiva do dinheiro que dissolve as ligações naturais, (isto é, baseadas em pressupostos não apenas econômicos) mais tenazes, com o auxílio dos mais diferentes meios, desde sua ação diplomática (vide, por exemplo, as relações entre Inglaterra e Argentina durante o século XIX), até as baionetas coloniais, quando necessário (Índia, por exemplo). O sistema capitalista é como um monstro auto-reprodutor: uma vez constituído como modo de produção predominante, não necessita mais de auxílio externo para produzir e reproduzir incessantemente seu próprio processo.

Para os economistas burgueses, é necessário perenizar e eternizar o capital, mostrando-o como um fato natural, a-histórico. Para a teoria comunista, ao contrário, é vital mostrar como o capital surge na história e ligar esta gênese à outra extremidade do arco histórico: a destruição do modo de produção capitalista. Se a acumulação primitiva é a história da formação das bases da produção capitalista, posteriormente é o próprio capital que reproduz suas bases numa escala cada vez maior (na fase de submissão formal do trabalho, ele o faz lutando contra as formas de produção pré-capitalistas, enquanto que na fase de submissão real do trabalho ao capital ele luta apenas contra suas próprias contradições).

“A acumulação do capital, verdadeiro fundamento do capital, pressupõe por conseguinte a relação capital – trabalho assalariado. Ela reproduz a separação e a fixação da riqueza material frente ao trabalho numa escala sempre mais ampliada.” (Idem)

O importante é ver que, no curso deste processo, o capital não apenas cria-

se a si mesmo como sistema acabado que poria fim à história segundo o esquema econômico burguês também reproduzido na filosofia hegeliana (1), mas que cria-se de maneira antagônica, produzindo materialmente as bases da sociedade que lhe sucederá. A apreensão da gênese do capital, isto é da transformação de condições pré-capitalistas em condições capitalistas de produção, é vital para abranger todo este arco histórico do capital.

(1) “Hegel coloca-se do ponto de vista da economia política moderna.” (Marx)

“Deve-se lembrar que as novas forças produtivas e as novas relações de produção não surgem nem do vazio nem do nada, nem do seio da Idéia que se engendra a si mesma; ao mesmo tempo em que se criam no curso do desenvolvimento dado da produção, opõem-se a este desenvolvimento e às relações tradicionais de propriedade legadas pelo passado. Se, neste sistema burguês acabado, uma relação econômica supõe outra sob a mesma forma da economia burguesa, de modo que todo fator dado é ao mesmo tempo um pressuposto, é que isto vale para todo o sistema orgânico. Embora seja uma totalidade, este tem seus próprios pressupostos e sua evolução rumo à totalidade consiste precisamente em que subordina

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a si todos os elementos da sociedade e cria também os órgãos que lhe faltam. O sistema torna-se assim historicamente uma totalidade e este devir constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento.” (Marx – Grundrisse)

A grande obra do capital foi organizar as relações sociais da espécie

humana em uma totalidade. Embora negativamente, a humanidade está doravante socializada, e isto graças ao capital. Este inaugura, na área européia, a primeira forma mundialmente social de produção. Até o último momento dos modos de produção anteriores, a unidade do seres humanos entre si existe numa escala reduzida e mesquinha (embora possam conhecer, nestes estreitos limites, uma certa grandeza que o capital dissolverá posteriormente). As comunidades rurais ou mesmo as cidades, fechadas sobre si mesmas, agrupam os homens, mas não existe uma rede de relações entre estas unidades, a não ser onde o comércio já está relativamente desenvolvido. A organização social reflete o fraco desenvolvimento das forças produtivas. Mesmo mais tarde, quando o modo de produção capitalista já domina amplamente a produção no plano qualitativo, ainda subsistem ilhas de produção indiferentes ao movimento da história, isoladas e auto-suficientes. Mas este movimento varre tais resíduos que, para se integrar à totalidade social capitalista, devem perder seu caráter arcaico e sofrer por sua vez o processo de dissolução que está na origem do capital. Quando hoje ainda, embora de modo cada vez mais raro, se encontra uma tribo primitiva nos confins de uma floresta equatorial que atravessou a história sem se integrar a ela, não se pode nem mesmo falar de fenômeno social.

Considerar esta socialização efetuada pelo capital como sendo seu grande mérito, só pode ser feito a partir de nosso ponto de vista de comunistas, ou seja, considerando que esta socialização porta em si mesma os germes de um sistema social superior. Como sempre, em nosso s trabalhos de militantes, é apenas enquanto etapa que o capital é aqui considerado. Etapa certamente indispensável, mas portadora de uma história posterior, que não será mais a da humanidade dividida em classes antagônicas, mas da comunidade humana. A compreensão do capital na sua fase de maturidade (fase de submissão real do trabalho ao capital) não é portanto a descrição de um momento da história do capital enquanto tal, mas compreensão de um momento da história da espécie.

“Para nossa escola, definir o capitalismo não significa definir uma estrutura fora do tempo, mas caracterizar seu advento histórico”. (Bordiga)

É por isso que, neste ponto exato, pode-se apreender todo o arco histórico

do capital em direção à sua superação necessária, na medida em que a submissão real do trabalho ao capital coloca e desenvolve as condições materiais e sociais para a passagem ao comunismo.1

1 É necessário precisar que não forneceremos neste capítulo um verdadeiro histórico, mas uma recordação teórica ilustrada historicamente. Deve-se evitar definir um desenvolvimento “modelo” do capital, pois o processo de dissolução das antigas formas de produção não se deu da mesma

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Dialeticamente, a história avança por saltos qualitativos. Há um momento

em que a quantidade se transforma em qualidade. Por exemplo, quando a cisão entre o homem e a terra se dá em uma escala suficientemente importante pode-se afirmar que entramos na era capitalista. Mas isto não se verifica ao mesmo tempo, do mesmo modo e em todos os lugares. Marx acentua o fato de que foram necessários três séculos (do XVII ao XVIII aproximadamente) para que se realizasse integralmente, com todas as conseqüências que isto implica, a expropriação do produtor direto na Inglaterra. No entanto, bem antes do século XVIII , já surgem as primeiras manufaturas. Muito antes desta data já aparecem o arrendatário livre e o jornaleiro assalariado, figuras típicas do modo de produção capitalista. Há uma diferença entre o peso histórico de um fenômeno, mesmo embrionário, ou parcialmente realizado, e sua realização definitiva e total (o que aliás, não ocorre praticamente nunca). Isto não deve entravar nossa compreensão histórica dos fenômenos fundamentais, nem provocar ilusões sobre sua importância. De qualquer modo é difícil estabelecer uma distinção nítida, por exemplo, entre o que é próprio da acumulação primitiva e o que é próprio da fase de submissão formal do trabalho ao capital. Considerando, como o faz Marx a acumulação dita primitiva como “pré-história” do mundo burguês, não se pode traçar seus limites rígidos no tempo, muito menos buscar características específicas. Não se trata aqui de um modo de produção, transitório, mas do estabelecimento progressivo do modo de produção capitalista sucedendo ao feudalismo (no caso da área européia). Globalmente, datamos o modo de produção capitalista (na sua fase formal, na área européia) do século XVI.

“A ordem econômica capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal. A dissolução deste último liberou os elementos constitutivos do outro”. (Marx, O Capital – livro I , seção 8)

Procuramos ver, portanto, nesta fase, somente a emergência progressiva

das categorias do capital. Se distinguimos metodologicamente entre a dissolução das formas de produção anteriores à capitalista e a constituição do modo de produção capitalista, no movimento histórico real dos dois fenômenos estão estreitamente imbricados entre si, sob seu duplo aspecto negativo e positivo.

1.1.2. A Expropriação do Produtor Imediato. “Quanto ao trabalhador, ao produtor imediato, para poder dispor de sua própria pessoa, era preciso inicialmente que perdesse todo vínculo com a gleba ou que deixasse de ser subordinado a outra pessoa; sem ter-se livrado do regime das corporações, com seus mestres, vigilantes e suas leis de aprendizado, também não poderia ter-se tornado um livre vendedor de trabalho, levando sua mercadoria onde quer que existisse um mercado para

maneira em todas as regiões do globo. Marx, seguido pelos defensores da teoria comunista, muitas vezes precisaram que ao lado de cada grande tipo social de produção, contam-se miríades de formas intermediárias, híbridas, etc... A genealogia do conjunto destas formas (puras e impuras) será um trabalho extremamente precioso para a obra de restauração comunista.

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ela. O movimento histórico que converte os produtores em assalariados apresenta-se portanto como sua liberação frente à servidão e à hierarquia industrial. Do outro lado, estes homens livres só se tornam vendedores de si próprios após terem sido despojados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias de existência oferecidas pela antiga ordem social. A história de sua expropriação não é assunto para conjecturas: foi escrita nos anais da humanidade com letras de sangue e fogo indeléveis”. (Marx, O Capital, livro I, seção 8)

Adam Smith vê na violência um não cumprimento das leis naturais da

economia política e um fenômeno exterior ao desenrolar do processo econômico, que seria por natureza pacífico, legal, etc. Que, historicamente, as grandes riquezas se constituam com base em pilhagens, roubos, extorsões diversas, usura desavergonhada, crimes, etc, isto é um fato que a economia política não explica e não pode explicar, pois constitui um grave atentado às leis sacrossantas do comércio. Nas primeiras páginas da 8 ª seção do livro I do Capital, Marx mostra ironicamente como se explica a acumulação primitiva segundo a economia política, ou seja, de modo moralista como seria de se esperar. De um lado, estão aqueles que trabalham não poupam suor e perseveram na poupança até acumularem um tesouro em suas mãos. Do outro, aqueles que fazem o papel da cigarra na fábula e que de tanto cantar e beber acabam se arrependendo um belo dia! Como a virtude sempre é recompensada e a natureza nunca deixa de triunfar, estes últimos acabam então reembolsando os primeiros por aqueles breves momentos de alegria mediante a eterna alienação de sua força de trabalho. Quod erat demonstrandum!

“Nos anais da história real, é a conquista, a sujeição, a rapina a mão armada e o reino da força brutal que sempre levou a melhor. Nos beatos manuais da economia política, ao contrário, é o idílio perfeito que sempre reinou. De acordo com estes, nunca existiram, com raras exceções, outros meios de enriquecimento que o trabalho e o direito. Com efeito, os métodos da acumulação primitiva são os mais variados possíveis, porém nada idílicos”. (idem)

O papel da violência não é qualitativamente o mesmo nas duas fases da

produção capitalista. Na fase formal, à violência inerente ao processo de exploração superpõe-se necessariamente uma violência política aberta encarnada pelo Estado, com o objetivo de sustentar um modo de produção capitalista que ainda não havia se firmado sobre bases próprias. Na fase real, o que devia ser imposto pela força concentrada e organizada da sociedade, reproduz-se sistematicamente sob a própria ação da produção capitalista. Isto explica que, apesar da dominação sobre a classe (e o totalitarismo do capital sobre o conjunto da sociedade), tornar-se cada vez mais vital para o capital, passou ao mesmo tempo ser possível para ele aplicá-la com todo seu vigor, sem recorrer sistematicamente – muito pelo contrário - à violência aberta do Estado. Isto não exclui , pelo contrário, que os Estados armem-se até os dentes e tornem-se

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autênticos acumuladores carregados de violência prontos à descarregá-la contra tudo aquilo que poderia perturbar a ordem social capitalista.

“Não basta que se apresentem, de um lado, as condições materiais do trabalho sob forma de capital e, do outro, homens que nada têm a vender a não ser sua potência de trabalho. Tampouco basta constrange-los pela força a vendê-la voluntariamente. Na evolução da produção capitalista, forma-se uma classe de trabalhadores cada vez mais numerosa que, graças à educação, à tradição e ao hábito sofrem as exigências do regime tão espontaneamente quanto a mudança de estação. Assim que este modo de produção alcançou um certo desenvolvimento, seu mecanismo quebra qualquer resistência; a presença constante de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da procura do trabalho e, portanto, o salário dentro dos limites adequados às necessidades do capital, e a pressão surda das relações econômicas completa o despotismo do capitalista sobre o trabalhador. Às vezes, ainda recorre-se ao constrangimento, ao uso da força bruta, mas só excepcionalmente. No curso normal das coisas, o trabalhador pode ser abandonado à ação das “leis naturais” da sociedade, isto é, à dependência do capital, engendrada, garantida e perpetuada pelo próprio mecanismo da produção. Durante a gênese histórica da produção capitalista, a situação é diferente. A burguesia emergente precisa necessariamente da intervenção constante do Estado; ela a emprega com o objetivo de “regular” o salário , isto é, deprimi-lo ao nível conveniente, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador no grau de dependência desejado. Esta é um momento essencial da acumulação primitiva.” 2 (idem)

Assim, por ora, não nos deteremos tanto no estudo das influências

puramente econômicas (papel dissolvente do dinheiro, etc.) que preparam a expropriação dos produtores diretos, mas examinaremos as “alavancas empregadas para precipitar violentamente sua marcha.” (Marx)

Em 1867 , no Capital, Marx escreve que, na área européia, apenas a Inglaterra assistiu à realização radical da expropriação dos produtores diretos. Embora levasse três séculos, foi conduzida a toque de caixa e o pequeno campesinato livre conheceu apenas um século de existência pacífica. Se nos

2 Duzentos anos depois de Smith, o Sr. Lefebvre (Henri) comporta-se como autêntico filisteu, mas diferentemente de Smith, a ignorância é que prevalece aqui. Com efeito, graças aos modernos métodos de leitura dinâmica, o Sr. Lefebvre (Henri) pôde ver que:”O próprio Marx só percebeu a violência enquanto distinta do econômico, como pirataria. A inerência do constrangimento ao processo econômico só foi concebida parcialmente (ainda que Engels tenha completado Marx neste ponto). Donde, um certo economicismo na teoria da acumulação do capital.” (Do Estado – tomo 3). Melhor seria que o Sr.Lefebvre(Henri) voltasse para sua cartilha e, daqui a uns trinta anos, quando tiver aprendido a ler e tiver copiado 500 vezes esta página de Marx: “A força é a parteira de toda a velha sociedade em ação. A força é um agente econômico.” (Capital, I, 8)... poderá fazer uma assinatura do Pato Donald.

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atemos apenas à área européia, verificamos que, em outros países como na França e na Alemanha, houve uma defasagem histórica nitidamente maior entre a abolição da servidão e a expropriação dos produtores. Não é a primeira que cria o proletário, mas a segunda. Pois, para o capital, não basta que os camponeses deixem de ser servos da gleba, o que permite na maioria das vezes a formação de uma pequena propriedade rural difusa. É preciso ainda que estes mesmos pequenos camponeses sejam arrancados de suas terras e transformados em assalariados. O capital apóia portanto toda medida que tira a terra dos pequenos camponeses. (ou de antigos povos indígenas).

Voltemos, pois, ao caso da Inglaterra, para ver como se desenrola em toda sua radicalidade e em todo seu horror à expropriação do campesinato.

No início, os grandes senhores foram os principais agentes desta expropriação e desempenharam um papel mais importante que o próprio poder burguês pelo despejo das cortes senhoriais e pela apropriação das terras comunais, das quais o servo era co-possuidor.

“Em guerra declarada contra a realeza e o Parlamento, os grandes senhores criaram um proletariado muito mais significativo, usurpando os bens comunais dos camponeses e expulsando-os do solo, que estes possuíam sob o mesmo título feudal que seus senhores.” (O Capital, livro I, seção 8)

Com o desenvolvimento das manufaturas de lã em Flandres e no

continente, o preço da lã sobe e nesta época a pecuária mostra-se muito mais rentável do que a lavoura. Um rebanho de carneiros proporcionava, por exemplo, uma taxa de lucro de 100%, o que certamente não acontecia com os cereais. Assim, com o objetivo de aumentar a qualquer preço a extensão dos pastos, os feudais empreenderam atos de violência inaudita, para se apropriar da maior quantidade de terras possível, violando todas as leis. No início, o Estado procurou, sem a mínima eficiência, opor-se a esta expropriação. Apesar disto, a classe trabalhadora foi precipitada de sua idade de ouro para sua idade de ferro.

É apenas gradativamente que o Estado começa a assumir os interesses da burguesia. Aqui, ainda estamos numa época de transição (no curso do século XV ) e os interesses do poder real (Estado) e dos capitalistas não coincidem necessariamente. A ferocidade própria à expansão capitalista manifesta-se inicialmente nos fatos, antes de receber uma sanção oficial nas leis. Mas o movimento do capital derruba praticamente todas as legislações que tentam freá-lo. As leis pretendiam conservar para os camponeses alguns hectares de terra e mantê-los com a posse da gleba. Ora, o que o modo de produção capitalista necessitava era justamente o contrário , ou seja, a condição servil das massas, sua transformação em mercenários e a transformação de seus meios de trabalho em capital. (Cf. O Capital, livro I, seção 8)

A etapa seguinte no movimento de expropriação – na área britânica esteve ligada à Reforma. Todos os bens que pertenciam à Igreja Católica naquela época

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( ou seja, a maioria do solo inglês) foram-lhe arrancados, e todos aqueles que residiam em suas terras foram despossuídos de tudo, transformados em proletários.

Um terceiro momento foi o ataque contra o pequeno campesinato livre, ou yeomanry, que desaparece em meados do século XVIII. Este ataque foi comandado pela nova aristocracia fundiária, à qual aliava-se à burguesia capitalista com o objetivo de fazer da terra um artigo de comércio, de aumentar sua fonte de proletários rurais e de ampliar o espaço para a grande agricultura.(cf. O Capital, I, 8)

Os capitalistas se apoderaram da propriedade pública (domínio real) e da propriedade comunal, antiga instituição germânica que havia atravessado toda a Idade Média.

No século XVIII, a própria lei torna-se instrumento de espoliação. Foram baixados decretos, graças aos quais os proprietários fundiários apropriaram-se das terras comunais (movimento dos “enclosures”, cercamento das terras comunais). A entrada na era do capital é acompanhada por uma pauperização em massa.

“A espoliação dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem das terras comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal ou mesmo patriarcal em propriedade privada moderna, a guerra às choupanas, eis aí os procedimentos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e liberaram para a indústria das cidades os dóceis braços de um proletariado desarmado e despossuído.” (idem)

É ao longo destes séculos agitados que se realiza na Inglaterra, de maneira progressiva, a gênese do arrendatário capitalista. No século XVI, há uma classe abastada de arrendatários capitalistas, que se aproveitou de uma elevação de preços, traduzida por uma baixa do salário real e uma diminuição das rendas.

Concluindo, a expropriação da população do campo enquanto fenômeno da acumulação capitalista, leva aos seguintes fatos:

1) chegada de massas de proletários nas cidades; 2) crescimento da produtividade do trabalho agrícola, apesar e mesmo graças

à rarefação das forças de trabalho empregadas na agricultura. Isto ocorre porque há simultaneamente introdução de métodos capitalistas;

3) transformação de uma parte dos produtos imediatos (meios de subsistência) do trabalho agrícola em mercadorias e de outra parte (matérias primas para a indústria) em capital constante;

4) criação de um mercado interno capitalista, com o camponês comprando doravante os produtos de seu próprio trabalho que se tornaram mercadorias.

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“É assim que a expropriação dos camponeses e sua transformação em assalariados traz o aniquilamento da indústria doméstica no campo. O divórcio da agricultura em relação a todo tipo de indústria”. (idem)

Mas, como veremos adiante, sobre a base do próprio regime manufatureiro,

isto é, sobre a base da submissão formal, recria-se uma franja de pequenos agricultores, embora cada vez mais miseráveis3. Somente com a máquina e com a grande indústria, com a passagem para o capital plenamente desenvolvido na fase real, que o capital consegue tender o melhor possível para seu “modelo” de modo de produção com três classes, e eliminar de maneira radical, com exceção de alguns resíduos, o pequeno camponês.

“É a grande indústria apenas que, por meio de máquinas, funda a exploração agrícola capitalista numa base permanente, que expropria radicalmente a imensa maioria da população rural e consolida a separação da agricultura em relação à indústria doméstica do campo, extirpando suas raízes, a fiação e a tecelagem”. (idem)

Quando o camponês trabalha em seu campo, é submetido a uma série de

constrangimentos que ainda são em grande parte naturais. No feudalismo de uma parte, a relação que ele mantém com o senhor feudal é de caráter pessoal; de outra, ela não influi sobre o processo de trabalho propriamente dito. Este desenvolve-se da mesma forma com os mesmos instrumentos, etc, no caso do servo e do camponês livre. O trabalho segue o ritmo sazonal e por mais árduo que seja a disciplina que impõe é inerente a este ritmo: dorme-se mais no inverno que no verão, etc.

Com o sistema capitalista, contudo, quando se trata de fazer trabalhar a massa de sem-reservas nascida no decorrer da fase de acumulação primitiva existe um constrangimento externo, social. A ferocidade dos procedimentos adotados deriva do fato de que era necessário enquadrar toda uma população que não tinha jamais conhecido este tipo de disciplina. É preciso avaliar cuidadosamente o quanto a instauração do trabalho assalariado no seio de nações inteiras necessitou de energia por parte do capital e do Estado. Não somente o capital tinha reduzido os trabalhadores à condição de vagabundos e de mendigos, pois não tinha desenvolvido simultaneamente de modo suficiente as novas estruturas para acolhê-los, mas ainda fez com que pagassem caro pelo próprio fato de terem sido reduzidos a esta condição.

3 Distingue-se as manufaturas como primeiras empresas do Modo de Produção Capitalista da manufatura em geral, designando-se aqui o conjunto dos trabalhos efetuados a partir de ferramentas e que não tem diretamente como objetivo a produção de subsistências agrícolas. Quando fala-se da dissolução do trabalho manufaturado no campo, isto significa evidenciar que, para que surjam as unidades de manufatura capitalistas, era necessário separar e depois dissolver, no seio do próprio campo, o trabalho manufaturado arcaico realizado juntamente com o trabalho na terra.

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“A criação do proletariado despossuído – expulsos pelos grandes senhores feudais, e agricultores vítimas de expropriações violentas e repetidas – ia necessariamente mais depressa do que sua absorção pelas manufaturas nascentes. Por outra parte, estes homens bruscamente arrancados de suas condições habituais de vida não conseguiam se acostumar tão repentinamente à disciplina da nova ordem social. Donde, por volta do fim do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem em todo o Oeste europeu. Os pais da atual classe operária foram castigados por terem sido reduzidos à condição de vagabundos e de pobres. A legislação tratou-os como criminosos voluntários, supondo que dependia de seu livre arbítrio continuar a trabalhar como no passado, como se não tivesse ocorrido nenhuma mudança na sua condição”. (idem)

Por todos os lados decretaram-se leis draconianas contra a vagabundagem,

e a Europa ficou coberta de forças e pelourinhos. Uma coisa é certa: por vontade própria, os expropriados não tinham a mínima intenção de ir se encarcerar nas empresas dos capitalistas para trabalhar.

Preferiam o roubo, a miséria e a rapina. Em suma, não tendo sido ainda disciplinados pela exploração capitalista, preferiam ainda morrer de fome. Mas o capital preferia vê-los produtivos:

“Durante os 150 anos que se seguiram ao reinado de Henrique VII, os anais da legislação inglesa contêm em letras de sangue as medidas de repressão para transformar a massa da população tornada livre e sem propriedade em trabalhadores livres assalariados. A supressão das cortes feudais, o confisco dos bens da Igreja, a abolição das corporações e o confisco de suas propriedades, a violenta dispersão da população camponesa pela transformação das terras agricultáveis em pastos, a divisão dos bens comunais, etc.... fizeram do trabalhador uma simples força de trabalho. No entanto, esta massa preferia – compreensivelmente - a vagabundagem, a mendicância, etc., em vez do trabalho assalariado: foi portanto necessário acostumá-la pela força. A mesma coisa se repete quando da introdução da grande indústria e das fábricas movidas pelas máquinas”. (Marx, Grundrisse)

E foi efetivamente a ferro em brasa que a classe operária inteira foi

marcada. Foi chancelada: classe assalariada. A CLASSE OPERÁRIA É FORMADA PELA FORÇA, DISCIPLINADA PELA VIOLÊNCIA E PELO TERROR.

Assim, o terror é uma das primeiras condições de vida do proletariado. É absurdo dizer que na revolução comunista o proletariado poderia economizar seu próprio terror, sob pretexto de portar em si o comunismo, que abrirá uma era sem violências sociais, sem terror, sem guerra, uma era de fraternidade para toda a humanidade. O senhor Dühring não teria mesmo morrido sob os golpes do velho Engels que o ridicularizava assim:

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“É em meio a suspiros e gemidos que ele admite que a violência talvez seja necessária para derrubar o regime econômico da exploração – por infelicidade! Pois todo emprego da violência desmoraliza aquele que a emprega”.

Aqui, vemos claramente como o capital é um ser em movimento perpétuo. Assim que encontra uma base sólida no seio da sociedade, não deixa de revolucionar suas próprias condições de produção para racionalizar cada vez mais seu modo de ser e favorecer ao máximo a extorsão de mais-valia. Nos capítulos seguintes, veremos como ele consegue isto, através d e metamorfoses sucessivas, assim como a crisálida metamorfoseia-se em borboleta.

No início, o capital encontra na circulação todos os elementos (meios de subsistência, matérias primas, instrumentos, trabalho vivo, etc...) necessários ao seu processo, mas estes ainda não possuem o caráter de capital. Ao dissolver as relações que ligam entre si todos estes elementos no seio de um modo de produção anterior, o capital organiza-os de acordo com suas próprias finalidades. A partir de então, a base para um novo modo de produção está dada. Sobre ela, o capital tende a difundir-se como totalidade, é um ser dotado de propagação. Esta se dá segundo uma racionalidade própria ao capital, que tende a ampliar incessantemente as fronteiras da produção capitalista e mercantil, arrastando na sua órbita formas de produção arcaicas, dissolvendo-as e integrando-as na esfera capitalista. Rosa Luxemburgo mostrava claramente como o capital conhece diversas etapas no seu movimento de acumulação, eliminando ao longo deste as mulatas que lhe foram outrora úteis, para criar incessantemente uma base sempre mais adequada a seu ser.

“A história do arrendatário nos introduz diretamente na segunda fase da acumulação capitalista, da qual é uma ilustração exemplar. O capitalista combate e rejeita em todo lugar a economia natural, a produção para única satisfação das necessidades domésticas, a combinação da agricultura com o artesanato, substituindo-os pela economia mercantil simples. Ele necessita da economia mercantil como ponto de escoamento para sua própria mais-valia. A produção mercantil é a única forma geral sob a qual possa se desenvolver o capitalismo. Mas, assim que a economia mercantil se instalou sobre as ruínas da economia natural, o capital lhe declara guerra. O capitalismo entra em concorrência com a economia mercantil; depois de tê-la feito aparecer, disputa com ela os meios de produção, a mão-de-obra e os mercados. Inicialmente, tratava-se de isolar o produtor, de arrancá-lo dos elos produtores da comunidade, depois de separar a agricultura do artesanato; hoje, o capitalismo tem por objetivo separar o pequeno produtor de mercadorias de seus meios de produção”. (A acumulação do capital)

Precisamente por esta razão que o capital está em perpétuo movimento de crescimento e de racionalização, não se pode separar rigidamente as etapas de seu desenvolvimento e instaurar metafisicamente uma repartição dos fatos: aqui, o que pertence à acumulação primitiva, ali o que é próprio da fase formal. A acumulação primitiva abrange mais o capital balbuciante que surge das formas anteriores. Mas, ao negá-las, o capital se instaura e o faz sobre a base do que foi negado. A própria fase formal está destinada a ser superada.

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1.2. A GÊNESE DO CAPITAL

1.2.1. O Capital Usurário

O que caracteriza o capital usurário é que ele não se imiscui no seio do processo de produção, permanecendo fora dele nos seus dois extremos: à montante, fornecendo os meios para que este se realize (matérias primas, instrumentos, etc.) e à jusante, apropriando-se dos lucros sob forma de juros. Existe aqui um movimento dialético que faz com que o capital usurário, embora surgido do enfraquecimento do antigo modo de produção, aumente por sua vez este enfraquecimento e sua dissolução. Todavia, o que distingue esta forma primitiva do capital de suas formas desenvolvidas é que , neste caso, há dissolução do mo do de produção anterior, mas esta não é revolucionária, pois não produz as condições de sua superação. Aqui, há apenas um fator que entrava e enfraquece o antigo processo de produção. Na Índia, por exemplo, havia simplesmente o capital usurário desenvolvido em bases locais. Mas a obra revolucionária do capital propriamente dita só foi completada com a conquista inglesa.

“A forma pela qual o capital usurário se apropria efetivamente de todo o sobretrabalho do produtor imediato, sem transformar o modo de produção; onde a propriedade ou a posse dos meios de trabalho pelos produtores – e a produção em pequena escala que isto implica – são sua condição essencial; onde portanto, o capital não domina diretamente o trabalho e não o afronta como modo de produção e paralisa as forças produtivas em vez de desenvolvê-las. Ao mesmo tempo, perpetua estas condições miseráveis, onde a produtividade do trabalho não se desenvolve às custas do próprio trabalho, como se verifica na produção capitalista. Assim, de uma parte, a usura exerce uma ação destruidora sobre as antigas riquezas e propriedade feudais. De outra parte, ela mina e arruína a pequena produção camponesa e artesanal, em suma, todas as formas onde o produtor ainda é proprietário de seus meios de produção. Na produção capitalista desenvolvida, o trabalhador não possui as condições de produção , o campo que cultiva, a matéria-prima que elabora, etc. Mas esta alienação do produtor em relação aos meios de produção corresponde aqui a uma verdadeira revolução no próprio modo de produção. Os trabalhadores isolados são agrupados em grandes ateliers, onde as atividades são parcelarias e entrelaçadas; a ferramenta transforma-se em máquina. É o próprio modo de produção que não permite mais a dispersão dos instrumentos de produção - compatível com a pequena propriedade – do mesmo modo que não permite o isolamento do trabalhador. Na economia capitalista, a usura não pode mais separar o

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produtor destas condições de produção, pois a separação está doravante realizada”. (Capital – Livro III, seção 5)

Fator de endividamento, a usura atua como “parasita do modo de

produção”. Ainda mais que o usurário não é, como o comerciante que se torna capitalista, capaz de se aproveitar de seu dinheiro entesourado como um capital produtivo. A formação de uma riqueza independente é aqui uma mediação rumo à gênese do capital industrial. Toda sua importância reside no fato de que ela surge num mundo onde o valor está apenas em via de autonomização, ou seja, predomina ainda amplamente o valor de uso, a forma materialmente determinada da riqueza. A produção ainda não é mercantil e, por contraste, o dinheiro representa a verdadeira riqueza, aquela que não encontra limitação no valor de uso, mas emancipou-se deste.

Neste estágio, o importante para o produtor é possuir os meios de subsistência e as matérias-primas destinadas à produção ( sementes). Ele praticamente não possui tesouro nenhum. A partir de então, qualquer ruptura, mesmo mínima, no processo de produção ( e, em um nível de pouco desenvolvimento das forças produtivas, como safras ruins, guerras, etc.) coloca o produtor inteiramente à mercê do possuidor de dinheiro, pois não tem como voltar a comprar por seus próprios meios as sementes para dar continuidade ao ciclo produtivo. É então que intervém o usurário, colocando o camponês em seu raio de ação de tal modo que, na maioria das vezes, este não tem mais chances de reencontrar sua independência anterior. A importância da usura consiste portanto no fato de que ela desemboca na criação de uma riqueza monetária. Mas, ao mesmo tempo, seu caráter limitado aparece no fato de que ela se desenvolve principalmente onde a produção ainda não encontrou condições de assumir um caráter mercantil desenvolvido.

“A usura e o comércio exploram um modo de produção dado, mas não o criam, permanecem exteriores a ele. A usura visa mantê-lo diretamente a fim de explorá-lo novamente, sem cessar: conservadora ela apenas o torna cada vez mais miserável. Quanto menos elementos da produção entram no processo de produção sob forma de mercadorias e quanto menos saem como mercadorias, mais sua existência parece ser devida ao dinheiro, a um ato particular de geração. Quanto menos importante for o papel desempenhado pela circulação a reprodução social, mais florescente é a usura”. (idem)

1.2.2. O Capital Mercantil.

O capital mercantil já desempenha um papel mais importante em relação ao processo de socialização operado pelo capital. Historicamente não há nenhuma razão para situá-lo depois do capital usurário. Enquanto formas antediluvianas do capital, são irmãos gêmeos. Aliás, a usura se desenvolve apenas a partir da existência de um capital na forma mercantil, monetária. A diferença entre ambos reside mais nos resultados históricos a que leva cada um. Como vimos, o capital

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usurário destrói, sem desenvolver. O capital mercantil mostra-se mais apto a uma superação em direção a formas mais desenvolvidas do capital.

A existência de um capital mercantil é relativamente independente dos modos históricos de produção. Assim que o valor se autonomizou suficientemente para que existam, mesmo de modo marginal, mercadoria e dinheiro (portanto, a partir do momento em que as comunidades chegaram ao seu ponto de dissolução), há possibilidade do capital mercantil existir. Aliás, no começo, é a função do capital por excelência. Surge unicamente com base na circulação, ou seja, no valor de troca e apresenta como objetivo seu próprio crescimento: D-M-D’, enquanto que na pequena produção daquela época, o objetivo era o valor de uso: M-D-M. Existe portanto, de um lado, produção de mercadorias em um grau mais ou menos adiantado conforme o estágio histórico e, de outro, o capital mercantil que assegura a circulação das mercadorias. Este papel de mediador é relativamente independente do volume da produção sobre o qual se apóia. É claro que, quanto mais se desenvolve a produção mercantil, mais se produz, não para uso imediato, mas com vistas à troca e mais se amplia o campo de ação do capital no plano quantitativo. É apenas com base na produção mercantil ainda não capitalista, que o comerciante pode sobreviver na sua independência e na sua autonomia. Representando aqui o capital por excelência, não será mais do que um dos elementos do capital do modo de produção capitalista desenvolvido.

“No seio da produção capitalista, o capital mercantil é despojado da sua autonomia anterior e reduzido a ser apenas um elemento particular do investimento do capital, rendendo a taxa de lucro médio após a igualação dos lucros. É apenas um simples agente do capital industrial. As condições sociais particulares que acompanharam seu desenvolvimento deixaram de ser determinantes a tal ponto que só prevalece em condições de produção superadas. Dentro de um mesmo país é fácil verificar que as cidades puramente comerciais estão muito mais próximas do passado que as cidades industriais. O capital só tem desenvolvimento autônomo e só existe como forma predominante do capital enquanto a produção se apóia sobre uma base social não capitalista. O desenvolvimento autônomo do capital mercantil é proporcionalmente inverso ao desenvolvimento econômico geral da sociedade.” (idem)

Ns fases pré-capitalistas, e mesmo durante a fase formal, o comércio

domina a indústria; pelo contrário, no modo de produção capitalista desenvolvido, a indústria submete a si o comércio . Do ponto de vista que nos interessa aqui, precisamos verificar qual é a ação dissolvente exercida pelo capital sobre as antigas condições de produção.

Confinado na esfera da circulação, o capital mercantil assegura a mediação entre o ato de venda e o de compra. O pequeno produtor encontra-se portanto num estado de dependência frente ao comerciante, estado que se reforça se o comerciante é simultaneamente aquele que fornece inicialmente o material necessário ao desenrolar do processo de trabalho: ferramentas, matérias primas, etc... Isto não supõe uma revolução da situação do produtor em relação aos outros

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produtores, nem em relação ao seu próprio trabalho. O comerciante, situado fora da esfera da produção, constitui um ponto em direção do qual convergem as atividades de diferentes produtores isolados e disseminados. Neste sentido, há socialização, embora em nível bastante precário. Mas esta não é uma socialização de tipo imediato, como ocorre na grande indústria moderna ou mesmo já na manufatura. É de tipo imediato, pois necessita da intermediação do comerciante.

“O capital mercantil limita-se a assegurar a circulação. Na origem, o comércio foi uma condição da transformação dos ofícios corporativos, da indústria rural e da agricultura feudal em empreendimentos capitalistas. Ele transformou o produto em mercadoria, por um lado criando-lhe um mercado e, por outro, introduzindo novos equivalentes-mercadorias e fornecendo novas matérias primas e auxiliares à produção, abrindo assim novos ramos de indústria imediatamente fundados sobre o comércio, tanto sobre a produção para o mercado interno e mundial, como sobre condições de produção resultantes do mercado mundial. Em um certo nível de crescimento, a manufatura - e mais ainda a grande indústria – cria seu próprio mercado conquistando-o pelas suas mercadorias. O comércio torna-se o servidor da produção industrial, que não pode existir sem a continua expansão do mercado. Na medida em que ele só expressa a demanda existente, não é o mercado que limita a produção em massa mas a grandeza do capital empregado e a produtividade do trabalho. O capitalista industrial nunca perde de vista o mercado mundial: deve comparar incessantemente seus custos de produção com os preços vigentes neste mercado e não apenas no mercado nacional. É pelo fato desta comparação ter cabido quase que exclusivamente aos comerciantes outrora que o capital mercantil dominou o capital industrial”. (Marx - Capital – livro III, seção 4)

Com o capital mercantil, cumpriu-se uma etapa do distanciamento do

produtor em relação a seu produto e a alienação que lhe é inerente. Os produtores não são aqueles que efetuam simultaneamente o intercâmbio ou a troca simples, mas trocam por intermédio do comerciante. O que o capital começa por socializar não é o trabalho, são as trocas.

“Em vez de realizar a troca com um grande número de pessoas, passam a fazê-lo com um único capitalista. Temos aqui uma concentração das trocas nas mãos do capital. (grifo nosso – ndr) Este não realiza trocas individualmente: representa o consumo e as necessidades de um grande número de pessoas. Ele não faz mais trocas enquanto agente particular, ele representa o ato social da troca. (id) Da parte do capital, trata-se portanto de um TROCA COLETIVA E CONCENTRADA com os tecelões, etc, que trabalham numa ordem dispersa. Graças a esta troca, ele coleta e reagrupa os produtos do trabalho – e também, portanto, seus respectivos trabalhos, embora sejam realizados independentemente uns dos outros. A associação de seus trabalhos representa um ato particular, ao lado do qual permanecem a dispersão e a

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autonomia de suas atividades. Tal é a primeira condição para que o dinheiro seja trocado como capital contra trabalho livre.” (Grundrisse)

O modo de produção tradicional propriamente dito permanece intacto. O

trabalho a domicílio é a forma do processo de trabalho que acompanha o capital mercantil. Este só aglomera, de início , os produtos do trabalho , de produtores que continuam dispersos. Ainda são freqüentemente os camponeses que praticam uma atividade artesanal suplementar, além do trabalho no campo. Ao contribuir para direcionar este trabalho exclusivamente para o valor de troca, o capital mercantil exerce uma atividade dissolvente e revolucionária sobre a unidade da agricultura e do artesanato no campo. Veremos mais tarde que este sistema de trabalho doméstico também pode se combinar com a manufatura.

Há três vias históricas possíveis para a transformação do dinheiro em capital. Elas não são todas revolucionárias, algumas limitando este processo produtivo a seu estágio já alcançado, outras impulsionando-o para um ponto de modificação a partir do qual se passará para uma etapa superior do desenvolvimento do modo de produção capitalista.

A instauração da primeira produção capitalista pode revestir três aspectos: 1) o comerciante torna-se industrial. 2) Pequenos patrões tornam-se intermediários do comerciante. 3) O industrial torna-se comerciante e produz para o comércio por atacado.

Em todos os casos há uma subversão na escala da produção e, portanto,

um salto qualitativo na força produtiva do trabalho. A taxa de mais-valia eleva-se assim em relação ao sobretrabalho que poderia ter sido obtido para um dia de trabalho e um processo de trabalho idênticos, com base nas antigas formas de produção. No segundo caso, deve-se distinguir o pequeno patrão que emprega assalariados, serve de intermediário e para quem o comerciante pode adiantar capital, e o produtor independente que trabalha a domicílio, e que pode igualmente ver uma parte dos meios de produção adiantada pelo comerciante. O único caso que se enquadra na submissão formal do trabalho ao capital é o do pequeno patrão. Somente aqui o aumento quantitativo da produção pode acarretar um crescimento qualitativo da força produtiva do trabalho, embora seja possível que este progresso não seja tão importante como no primeiro e no terceiro casos. No exemplo do trabalho do produtor independente a domicílio, temos apenas uma forma de transição para a submissão formal, que se situa todavia em um nível mais avançado do que no caso da dominação do capital usurário. Este exemplo não impede um sobretrabalho acentuado, mas este é obtido agravando a situação do produtor direto, cuja condição é mais desfavorável do que a do operário diretamente submetido ao capital.

No caso do produtor doméstico, o ato produtivo propriamente dito ainda não está dominado pelo comerciante. O caráter híbrido desta situação (que pode ser datada sumariamente do século XV, na Europa) desaparecerá assim que o processo de produção estiver diretamente submetido na sua forma ao capital. Com a fase de submissão formal, já se verifica a dependência do trabalhador

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frente ao capital, em condições que são próprias do modo de produção capitalista: doravante o trabalhador livre afronta o capital. Passa-se para um tipo de constrangimento econômico que caracteriza o modo de produção capitalista em relação às formas anteriores (escravidão, servidão), onde o constrangimento físico e brutal e a relação de dominação pessoal constituíam a base de extorsão do sobretrabalho. Aqui surge, de maneira embrionária, a dominação econômica do capital sobre o trabalhador. Mas até um estágio adiantado da produção capitalista, ainda teremos que examinar como se manifesta a violência externa ao processo de produção, o papel do Estado, etc... Para voltarmos à gênese do capital industrial, esta é tornada possível pelo regime colonial, o crédito público, as finanças modernas e o sistema protecionista.

Com as grandes descobertas dos séculos XV e XVI, a burguesia ocidental descobre seu paraíso: ouro, carne humana em abundância, espaços virgens. Toda a rapacidade e a ferocidade de uma classe faminta de sobretrabalho encontrava campo para se manifestar num mundo cujos limites, de súbito, tinham-se alargado desmesuradamente. Enquanto a história da Antiguidade circunscreve-se em torno do Mediterrâneo, principal núcleo de trocas, a era burguesa começa com o domínio do oceano Atlântico, consolidando-se depois com a conquista do Pacífico. Isto tinha sido previsto por Marx desde 1850.

“Graças ao ouro da Califórnia e à incansável energia do Ianques, as duas costas do Pacífico estarão rapidamente povoadas, abertas também ao comércio, tão industriais como o é atualmente a costa entre Boston e Nova Orleans. O Pacífico desempenhará o mesmo papel que cumpre hoje o Atlântico e o Mediterrâneo na Antiguidade e na Idade Média, o papel da grande via marítima do tráfego mundial.” (Nova Gazeta Renana)

Com a febre colonialista, desenvolveu-se a navegação, que Engels

caracteriza imediatamente como uma indústria nitidamente burguesa. Foram criadas grandes empresas marítimas protegidas pelos governos, que favoreciam a acumulação e a centralização do capital. A conquista das colônias assegura mercados aos produtos das manufaturas emergentes, enquanto que os tesouros extorquidos aos indígenas pela pilhagem, pelo roubo ou pelo trabalho forçado, afluíam na Europa como capitais. Por todas estas razões, a supremacia comercial é, no início, uma condição da acumulação (Holanda). A Inglaterra afirmava sua supremacia tanto na esfera comercial quanto na industrial.4

4 No seio dessa expansão colonialista, a América Latina é jogada pela violência no movimento histórico do capital. A falta de restauração da teoria comunista sobre este momento do desenvolvimento orgânico do capital e seus desdobramentos nas duas fases históricas do MPC, em escala mundial, - fase de submissão formal e fase de submissão real do trabalho ao capital -, tem permitido aos partidos reformistas drogar, em doses maciças, o proletariado dessa área geo-histórica com o social-patriotismo. Não desenvolveremos aqui teses que fazem frente ao assalto revisionista neste aspecto particular, deixando tal trabalho – que será semi-elaborado como todos os trabalhos que no momento atual o partido comunista histórico pode entregar-, para um próximo número de nossa revista (tanto em língua portuguesa como francesa) dedicado à quarta parte da reedição do corpo de teses de Invariance n º 6: “O movimento proletário nas outras áreas, as revoluções anti-coloniais”. De qualquer modo, podemos avançar aqui algumas delimitações gerais. Grosso modo,

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Um outro método no processo de constituição do capital é o crédito público,

sistema pelo qual o Estado agrupa em suas mãos grande quantidade de capitais privados, demasiado pequenos para se transformarem por si mesmos em capitais industriais. Estes capitais são de natureza usurária ou comercial, ou fruto da poupança de pequenos artesãos. Só o Estado possui os meios de utilizá-los em grande escala, por exemplo, nos arsenais, nas obras públicas, etc. O papel do Estado é muito importante na gênese do capital industrial. Graças à concentração efetuada nas mãos do Estado pôde haver a criação de grandes empresas e superação do estágio da pequena produção artesanal.

“A dívida, em outros termos a alienação do Estado, seja ele despótico, constitucional ou republicana, deixa sua marca na era capitalista.” (Capital, livro I)

O próprio crédito público engendra o sistema bancário (enquanto expressão

do sistema de crédito). Do mesmo modo que o Estado, mas de maneira privada, o banco concentra uma multidão de pequenos capitalistas que são emprestados aos industriais cuja empresa permite render uma mais-valia da qual o empresário pode deduzir uma parte para o banco (juros), esta retornando então aos poupadores.

O sistema protecionista também é um dos meios destinados a favorecer a acumulação. Deste modo, o Estado limita os mercados de outras nações, instaurando direitos protetores que limitam as importações; o Estado também estimula as exportações via isenções fiscais, etc... a fim de ampliar os mercados externos; favorece a expansão do mercado interno criando monopólios de venda. Nos países que podem ser dominados, tenta-se frear ou mesmo impedir qualquer desenvolvimento capitalista, como fez a Inglaterra que liquidou a manufatura de lã

historicamente, a América Latina conhece até as lutas pela independência política das colônias espanholas e portuguesas (início do século XIX), a forma de dominação do mercado mundial característica da fase formal: o colonialismo (cf. adiante o capítulo 8: “A s formas de dominação do mercado mundial nas duas fases”). Tais lutas ocorrem num período em que a Inglaterra ingressava na fase de submissão real do trabalho ao capital e, tal processo impunha um salto qualitativo na forma de dominação do mercado mundial comandado pelos capitais ingleses: a dominação imperialista, específica da fase real. A Inglaterra, então a única potência imperialista, mostra-se favorável à descolonização da América Latina (processo que não é de forma alguma resultante de uma política deliberada do “demiurgo do Cosmo burguês”): incentiva a abolição da escravatura, o livre-cambismo, etc., para daí adquirir, através de uma intensa atividade de intrigas diplomáticas e coações militares a supremacia econômica na área e sufocar qualquer movimento social de caráter revolucionário. O período que vai das guerras de independência política até o fortalecimento dos Estados nacionais, AL conhece a implantação (contraditória) dos mecanismos próprios da fase real: Estado moderno, submissão econômica ao mercado monetário mundial (libra-esterlina), etc. Mecanismos implantados para bloquear mais eficazmente qualquer tentativa de ação revolucionária (mesmo burguesa) e aprofundar a submissão da área latino-americana ao capital, ao mercado mundial. Este movimento, no entanto, não rompeu o desenvolvimento do capital na área no período, mas manteve-o sempre no nível da produção da mais-valia absoluta. Todos estes aspectos históricos e materiais – a formação das nações, a passagem da dominação colonial espanhola e portuguesa à dominação imperialista, as forças sociais em ação, etc..., deverão ser desenvolvidos e esclarecidos segundo nosso método invariante: do ponto de vista do futuro, da revolução comunista mundial , contra os traficantes stalinistas, trotskystas e esquerdistas “revolucionários” de todos matizes. Em suma, contra o assalto revisionista.

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na Irlanda por meio de casuísmos parlamentares. Outro aspecto da concorrência entre nações é a prática que se verificou, durante o século XVIII, de roubo recíproco de operários qualificados. Na Espanha e na Alemanha, por exemplo, o Estado se encarregava para recrutar a mão-de-obra qualificada, de oferecer altos salários aos operários de outros países. Em troca, estes tomavam medidas autoritárias como a proibição da imigração.

Com a intervenção do Estado na vida econômica, ocorre a tentativa de acelerar a transição ao modo de produção capitalista.

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1.3. A MAIS-VALIA NAS DUAS FASES: ABSOLUTA E RELATIVA A forma de extorsão da mais-valia que corresponde à fase de submissão formal é a produção de mais-valia absoluta, Marx chama esta fase de “formal” porque:

“ela apenas se distingue formalmente dos modos de produção anteriores na base dos quais ela surge espontaneamente (ou é introduzida), que o produtor imediato continue a ser seu próprio empregador, que ele deva fornecer o sobretrabalho a outro. Tudo o que muda é o constrangimento ou método empregado para extorquir o sobretrabalho.” (Marx, Um Capítulo Inédito do Capital)

Por conseguinte: “Se o modo de produção especificamente capitalista conhece ainda outros modos de extorsão da mais-valia (sublinhado por nós), na base de um modo de produção pré-existente, isto é, de um dado modo da força produtiva do trabalho e do modo de trabalho correspondente ao desenvolvimento desta força produtiva, a mais-valia só pode ser extorquida prolongando-se a duração do tempo de trabalho, são forma de mais-valia absoluta. A submissão formal do trabalho ao capital conhece portanto apenas esta única forma de produção de mais-valia.” (idem)

Desde a fase de submissão formal, o proletário vende sua força de

trabalho, isto é, “o conjunto das faculdades físicas e intelectuais que existem no corpo de um homem, na sua personalidade viva, que ele deve por em movimento para produzir coisas úteis.”5

Ele a vende pelo seu valor (aqui fazemos abstração dos elementos que poderiam abaixar ou elevar o preço da força de trabalho – salário – tudo isto será considerado mais em detalhe numa outra parte deste texto), isto é, em função do tempo de trabalho social médio necessário à reproduzi-la. Com efeito, é necessário que esta força de trabalho seja mantida e capaz de objetivar-se (de maneira alienada no modo de produção capitalista) no processo de produção. Para reproduzi-la, é portanto necessário que o operário satisfaça um certo número de necessidades (alimentação, moradia, vestuário, etc...) as quais não se situam obrigatoriamente no nível mínimo de subsistência, ou mínimo fisiológico, como pensam tão freqüentemente os economistas burgueses quando eles se dignam levar em conta a teoria de Marx.( 5)6

(5) Isto não exclui que o salário possa cair abaixo deste mínimo fisiológico.

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Marx sempre combateu ferrenhamente a teoria da lei de bronze dos salários de Lassalle. Com efeito, as necessidades são uma determinação social e histórica e variam de uma área para outra (começando apenas pela diferença no alimento de base: trigo na Europa, arroz na Ásia, milho na quase totalidade da América Latina).7(6)

“As necessidades naturais, tais como alimentação, vestimenta, aquecimento, habitação, etc... diferem conforme o clima e outras particularidades físicas de um país. De outro lado, o próprio número das necessidades ditas naturais, assim como o modo de satisfazê-las, é um produto histórico e depende também, em grande parte, do grau de civilização atingido. As origens da classe assalariada em cada país, o meio histórico no qual ela se formou, continuam por muito tempo exercendo uma enorme influência nos hábitos, nas exigências e, em conseqüência, nas necessidades que ela aporta na vida. A força de trabalho encerra portanto, no ponto de vista do valor, um elemento moral e histórico, o que a distingue das outras mercadorias. Mas para um país e uma dada época, a medida dos meios de produção também é dada.” (Marx, “O Capital”, livro I, seção 2)

O objetivo da produção capitalista nas duas fases é de obter o máximo de

mais-valia. Esta mais-valia é igual à diferença entre o valor de uso da força de trabalho e seu valor de troca. O valor de uso, que o capitalista se apropria pela compra, é a faculdade de criar valor. A diferença entre o valor criado pela força de trabalho e o valor da força de trabalho constitui portanto a mais-valia. O modo segundo o qual efetua-se a valorização do capital adiantado não modifica a essência da produção capitalista.

“A produção de mais-valia (que implica a conservação do valor adiantado inicialmente) torna-se desde então o objetivo determinante, o interesse motriz e o resultado final do processo de produção capitalista, pelo qual o valor transforma-se em capital. O modo ou procedimento empregado na prática para transformar X em X + (delta)X em nada modifica o objetivo e o resultado do processo”. (Marx, Um Capítulo Inédito do Capital)

Para que a produção de mais-valia, e de forma mais geral de

sobretrabalho, possa existir é necessário que já exista um certo nível de desenvolvimento da força produtiva do trabalho.

“Toda mais-valia, não apenas a mais-valia relativa, inclusive a mais-valia absoluta, repousa numa dada produtividade do trabalho. Se a produtividade do trabalho estivesse somente no estágio em que o tempo de trabalho de um indivíduo bastasse simplesmente para mantê-lo vivo, para produzir e reproduzir seus próprios meios de subsistência, não existiria nem sobretrabalho, nem mais-valia, nem diferença entre o valor da força de

(6) Este aspecto importantíssimo da teoria revolucionária será retomado num outro número desta revista, que tratará da questão agrária.

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trabalho e seu ato de criar valor. A possibilidade do sobretrabalho e da mais-valia resulta portanto de uma dada força produtiva do trabalho, produtividade que permite à potência de trabalho reproduzir mais que seu próprio valor, produzir além das necessidades que impõe seu processo vital.” (Marx, Teorias sobre a mais-valia)

Do mesmo modo, desde que o capital domina a sociedade, mesmo

formalmente , segue-se um aumento quantitativo da escala de produção com todas as conseqüências que esta concentração engendra no aumento da força produtiva do trabalho. Mas, uma vez instaurada a produção capitalista o único meio de aumentar a taxa de mais-valia só poderá ser, num primeiro momento, o alongamento da jornada de trabalho. Na base do processo de trabalho existente, o capitalista vela para que o trabalho tenha o grau de produtividade e de intensidade desejado, mas sendo todo seu aumento doravante limitado, a massa de mais-valia só pode aumentar graças ao alongamento da jornada de trabalho, e pelo aumento da população operária submetida ao capital. Suponhamos que o valor criado durante a jornada de trabalho seja de 10 horas e que o valor da força de trabalho eleva-se a 6 horas. A mais-valia será então de 4 horas. Se o capital consegue alongar a jornada de trabalho de maneira que o valor criado na jornada seja de 12 horas, o montante da mais-valia passa então de 4 para 6 horas, a taxa de mais-valia, que é igual à razão entre a mais-valia e o capital variável passa de 4/6=0,66 para 6/6=1.0 grau de exploração da força de trabalho portanto aumentou.

Sendo a duração da jornada de trabalho variável, é do interesse do capitalista alongá-la ao máximo para aumentar a mais-valia extorquida do proletariado, mas, em sentido inverso, é do interesse do proletariado limitar a duração da jornada de trabalho. Por conseguinte, a duração da jornada de trabalho é um fator que depende da luta de classes.

“A regulamentação da jornada de trabalho apresenta-se na história da produção capitalista como uma luta secular pelos limites da jornada de trabalho, luta entre o capitalista, isto é, a classe capitalista e os trabalhadores, ou seja, a classe operária.” (O Capital, livro I, seção 3)

Como já vimos, durante todo o período da acumulação dita primitiva e a fase de submissão formal do trabalho ao capital, este com a ajuda do Estado tenta portanto prolongar a duração da jornada de trabalho. Entretanto, durante todo o período que precede o acesso à fase de submissão real o capital mal conseguiu alongar esta jornada além de seus limites naturais. Durante o século XVII e os três primeiros quartéis do século XVIII, trabalhava-se por volta de 10 horas por dia na Inglaterra. Estamos longe das 14, 16 ou mais horas de trabalho do período seguinte. Além do mais, os burgueses, não tendo o mínimo escrúpulo desde que se trate de defender seus interesses queixaram-se amargamente diante das reivindicações operárias, e, fazendo-se campeões do progresso social declararam triunfalmente que abaixar o tempo de trabalho para 8 horas por dia seria fazer um recuo histórico de dois séculos!!

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Na seção 3 do livro I do Capital, dedicado à jornada de trabalho, Marx observa que em 1496, sob Henry VII, a jornada de trabalho era fixada pela lei no verão, para os artesãos e os trabalhadores agrícolas de 5 horas da manhã às 8 horas da noite. Além do mais, destas 15 horas devia-se subtrair 1 hora para o almoço, 1 ½ para o juntar e ½ hora para a merenda, ou seja 3 horas, o que reduz a jornada de trabalho para 12 horas e ainda isto jamais foi aplicado stricto sensu. No inverno, a jornada era fixada mais ou menos em 12 horas, sendo que também 3 horas dedicadas às refeições. E apesar de que em 1562 ensaiava-se diminuir estas 3 horas, Marx sublinha que na prática “as condições eram mais favoráveis aos trabalhadores do que no livro dos estatutos”. William Petty estima que o trabalho quotidiano na agricultura nesta época era de 10 horas por dia.

Vemos então que, em relação a um tal estatuto, a vontade da parte do capital de alongar a jornada de trabalho assumia obrigatoriamente o caráter de afrontamento incessante com os trabalhadores. E, apesar da violência deste afrontamento, o capital conseguia quando muito em alguns séculos cortar 1 ou 2 horas do tempo de lazer do trabalhador. O verdadeiro “progresso” capitalista neste campo data apenas da época em que, na máquina e no maquinismo, o capital encontra seu fundamento material e o mais seguro auxiliar para fazer do operário um escravo.

“A partir do século 16 até o momento da grande indústria, o capital jamais conseguiu apossar-se de todo o tempo disponível dos operários manufatureiros.” (O Capital, livro I)

No último terço do século XVIII a Inglaterra conhece a passagem à fase de

submissão real, cujo modo de extorsão da mais-valia repousa na mais-valia relativa. Com a fase de submissão real instaura-se um processo de trabalho especificamente capitalista. O capital modela uma tecnologia própria a seu modo de produção. A produção realiza-se numa escala muito mais vasta do que antes e o capital necessário ultrapassa as possibilidades de um indivíduo ou de uma família; o capital é a partir de então engendrado pelo sistema de crédito. O capital fixo, forma mais adequada do capital, desenvolve-se e desempenha um papel cada vez maior no processo de produção.

Do mesmo modo, a ciência recebe um impulso considerável e, incorporada ao maquinismo, domina a partir de então o trabalhador. Isto implica uma desqualificação da força de trabalho. A mistificação é levada a seu apogeu.

Tanto na fase formal como na fase real, o processo de trabalho é submetido ao processo de valorização, pois o objetivo da produção capitalista é sempre a extorsão do máximo de sobretrabalho. Mas, doravante, com a fase real, o processo de trabalho é forjado pelo capital para responder às exigências do processo de valorização. Com o maquinismo, o capital não tem mais necessidade de pedir auxílio ao Estado para deprimir o salário, pois a criação de uma superpopulação relativa pela elevação da composição orgânica do capital (c/v)

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engendra entre os operários uma concorrência que permite abaixar o preço da força de trabalho abaixo de seu valor.

A concentração é inseparável do estabelecimento da produção capitalista e portanto da fase formal.

“A produção capitalista começa de fato a estabelecer-se somente quando um único mestre explora muitos assalariados simultaneamente, onde o processo de trabalho, executado em grande escala, exige para o escoamento de seus produtos um mercado extenso. Uma multidão de operários funcionando ao mesmo tempo sob o comando do mesmo capital, no mesmo espaço (ou, como queira, no mesmo campo de trabalho) com vistas a produzir o mesmo gênero de mercadorias, eis aí o ponto de partida histórico da produção capitalista”. (O Capital, livro I, seção 4)

Dada a grande massa de trabalho empregado, o trabalho realizado é imediatamente trabalho social de qualidade média. De outra parte, a concentração dos meios de produção permite economizá-los com relação a seu uso disperso. A utilização de meios de produção comuns permite abaixar o valor de troca da mercadoria, mesmo se os operários trabalham separadamente (a construção de um edifício empregando 20 operários é relativamente mais barata que a construção de 10 edifícios menores nos quais trabalhariam 2 operários em cada um. O mesmo efeito é obtido pela reunião num mesmo local das matérias primas, o uso comum de certos meios de produção). Além do mais, a cooperação das diferentes forças de trabalho cria uma força de trabalho comum que não equivale simplesmente à soma das forças de trabalho individuais, pois ela é mais produtiva. Enfim, a emulação provocada pela entrada em contacto de muitas forças individuais conduz a uma elevação da força produtiva individual. Todos estes fatores fazem com que, desde seu nascimento, o capital eleva a produtividade e a intensidade do trabalho, ainda que o processo de trabalho permaneça inalterado (além do que o capital apodera-se inicialmente dos ramos nos quais o processo de trabalho é o mais rudimentar, a fiação e a tecelagem no campo). O capital pode desde então concorrenciar às outras formas de produção, mas ainda não pode privar-se da intervenção do Estado, ao mesmo tempo para que sua força de trabalho e abaixar o salário que a acumulação acelerada do capital tende a elevar.

No início da fase de submissão real, o capital que, então havia tido as piores dificuldades para aumentar a jornada de trabalho, varre estes obstáculos com a introdução da grande indústria.

“Após séculos de esforços, quando o capital conseguiu prolongar a jornada de trabalho até seu limite normal máximo e além até os limites do dia natural de 12 horas, o nascimento da grande indústria introduziu em tão no último terço do século XVII uma perturbação violenta que arrastou, como uma avalanche, toda barreira imposta pela natureza e os costumes, a idade e o sexo, o dia e a noite. As próprias noções de dia e de noite, de uma rústica simplicidade nos antigos estatutos, obscureceram-se de uma tal forma que, no ano da graça de 1850, um juiz inglês teve que fazer prova de uma sagacidade talmúdica para poder decidir “com conhecimento de

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causa”, o que era a noite e o que era o dia. O capital estava em plena orgia.” (O Capital, livro I, seção 3)

A fase de submissão real, que se implanta na base do maquinismo,

repousa na criação de mais-valia relativa. Isto é, que para uma jornada de trabalho constante, aumenta-se a mais-valia reduzindo-se o valor da força de trabalho.

Quando se aumenta a força produtiva do trabalho, o valor criado durante a jornada de trabalho incorpora-se num maior número de mercadorias. Por conseguinte, o valor individual da mercadoria diminui. Se esta mercadoria faz parte dos elementos que entram na produção da força de trabalho, então o valor desta diminui.

Para retomar o nosso exemplo citado acima, se a produtividade do trabalho aumenta, o valor da força de trabalho diminui e a taxa e a massa da mais-valia criada aumentam. Se o valor criado na jornada de trabalho é de 12 horas e a força de trabalho se desvaloriza passando de 6 horas para 4 horas, a mais-valia aumenta de 2 horas e a taxa de mais-valia se eleva de 1 para 2 (8/4). Se, com a fase de submissão formal, o aumento do valor de troca é proporcional ao dos valores de uso, isto não é mais verdade na fase real onde o aumento das mercadorias criadas é mais rápido do que o de seu valor de troca.

Se, numa jornada de trabalho, a produtividade duplica o número de mercadorias (não levamos em conta o capital constante), o valor global contido nelas será sempre o mesmo e o valor unitário da mercadoria será diminuído de metade. Isto implica o crescimento das necessidades existentes, a ampliação e outros círculos de necessidades, a criação de novas necessidades e valores de uso. (veremos mais tarde o papel das classes médias num tal processo. Cf. capítulo 7 adiante)

O proletariado desempenha um papel importante na generalização da mais-valia relativa e, por conseguinte, no aprofundamento da fase de submissão real. Graças às suas lutas, o proletariado impõe a vigência das primeiras regulamentações limitando a duração da jornada de trabalho. Em mais de meio século de lutas de classes, o proletariado, diante da degradação completa de suas condições de vida a partir da introdução do maquinismo, a ponto de ameaçá-lo na sua sobrevivência biológica como espécie, conseguiu impor uma limitação da duração do trabalho. Este movimento não é uniforme no tempo e no espaço. Ele supõe avanços e recuos, e não tem a mesma intensidade em todos os países. Ele marca o início de um movimento que, posteriormente vai ampliar-se até no século XX: limitação da jornada de trabalho, interdição do trabalho das crianças, etc...

Portanto, durante todo o final do século XVIII, a primeira metade do XIX e mesmo depois, o capital combina o alongamento da duração do trabalho (mais-valia absoluta) e aumento da mais-valia relativa, aumentando a produtividade do trabalho e portanto desvalorizando a força de trabalho. Se a jornada de trabalho passa de 12 para 16 horas e, de outra parte, o valor da força de trabalho passa de 6 para 4 horas, a massa da mais-valia é então de 12 horas, enquanto que a taxa de exploração eleva-se para 12/4=3.

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Como já explicamos, o capital conserva na fase de submissão real as características gerais da fase de submissão formal. São os meios de produção (o capital) que submetem o trabalho, dominam-no e extorquem-lhe a mais-valia. O capital tende, portanto, a combinar a produção de mais-valia absoluta e mais-valia relativa. Durante uma primeira faz e, vimos que era a mais-valia absoluta que predominava. Em seguida, ao longo de uma segunda fase que é o começo da fase real na Inglaterra (fim do século XVIII – início do XIX), o capital tende a combinar as duas formas. Enfim, no aprofundamento da fase real (a partir do século XIX), a mais-valia relativa generaliza-se nos principais países da área euro-note-americana, a duração do trabalho diminui, mas a intensidade aumenta, compensando inclusive para mais, a diminuição da mais-valia ocasionada pela redução da jornada de trabalho.

“Prolongar a jornada de trabalho além do tempo necessário ao operário para fornecer um equivalente de sua manutenção e outorgar este sobretrabalho ao capital: eis aí a produção da mais-valia absoluta. Ela forma a base geral do sistema capitalista e o ponto de partida da produção da mais-valia relativa. Aí, a jornada já está dividida em duas partes, trabalho necessário e sobretrabalho. Afim de prolongar o sobretrabalho, o trabalho necessário é encurtado por métodos que fazem produzir o equivalente do salário em menos tempo. A produção da mais-valia absoluta afeta apenas a duração do trabalho, a produção da mais-valia relativa transforma inteiramente os procedimento técnicos e as combinações sociais. Ela portanto desenvolve-se com o modo de produção capitalista propriamente dito. Uma vez este último estabelecido e generalizado, a diferença entre a mais-valia relativa e mais-valia absoluta faz-se sentir desde que se trata de elevar a taxa da mais-valia. Supondo que a força de trabalho se paga pelo seu justo valor, chegamos evidentemente à esta alternativa: dados os limites da jornada, a taxa da mais-valia só pode ser elevada pelo aumento, tanto da intensidade, como da produtividade do trabalho. Em contrapartida, se a intensidade e a produtividade do trabalho permanecem as mesmas, a taxa de mais-valia só pode ser elevada por um prolongamento ulterior da jornada”. ( O Capital, livro I, seção 5)

Desde ponto de vista, é a luta de classes que forçou o capital a se

empenhar na via da generalização da mais-valia relativa e é também dialeticamente, a ausência e o esmagamento do proletariado no século XX, após a grande vaga revolucionária dos anos 20, que permitiram a implantação das superestruturas correspondentes a esta fase do modo de produção capitalista.

Do mesmo modo, é necessário aqui, evidenciar o papel revolucionário das lutas anti-coloniais que obrigam o capital a colocar os mecanismos específicos da fase real (como veremos no capítulo 8, a dominação colonial é específica da fase formal). O aumento da produtividade do trabalho, a introdução das máquinas jamais tiveram por objetivo a redução da jornada de trabalho. Foi apenas ao preço de árduas lutas de classes que o proletariado forçou o capital a reduzir a duração do trabalho. O capital percebeu rapidamente que o que ele perdia em duração,

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ganhava em intensidade e que o desenvolvimento da duração do trabalho e da intensidade são, a longo prazo, contraditórios.

“Desde que a revolta crescente da classe operária forçou o Estado a impor uma jornada normal, em primeiro lugar na fábrica propriamente dita, isto é, a partir do momento em que ele interditou o método de aumentar a produção de mais-valia pela multiplicação progressiva das horas de trabalho, o capital lançou-se com toda sua energia e com plena consciência na produção de mais-valia relativa, por meio do desenvolvimento acelerado do sistema mecânico. Ao mesmo tempo, este gênero de mais-valia sofreu uma mudança de caráter. Em geral, a mis-valia relativa é obtida por um aumento da fertilidade do trabalho que permite ao operário produzir mais no mesmo tempo e com o mesmo dispêndio de força. O mesmo tempo de trabalho continua então a render o mesmo valor de troca, se bem que este se realiza num maior número de produtos, onde cada um, tomado separadamente, tem conseqüentemente um preço menor. Mas isto muda com o encurtamento legal da jornada. O enorme impulso que ele dá ao desenvolvimento do sistema mecânico e à economia dos gastos, constrange o operário também a despender, por meio de uma tensão superior, maior atividade num mesmo tempo, comprimindo mais os poros de sua jornada, condensando deste modo o trabalho num grau que não se conseguiria atingir sem este encurtamento(...) O primeiro efeito do encurtamento da jornada procede desta lei evidente que a capacidade de ação de toda força animal está na razão inversa do tempo durante o qual ela age. Dento de certos limites, ganha-se em eficácia o que se perde em duração”.

Aqui, é importante sublinhar que a intensidade do trabalho liga-se à mais-

valia relativa e não à mais-valia absoluta, como pensa o marxismo universitário (Palloix, Marini, Aglietta, etc...). É seu próprio aumento que, em ligação com o aumento da produtividade, conduz a generalização da fase de submissão real e as novas relações que tendem a instaurar o mercado mundial.

O dinheiro torna-se conforme a seu ser, realizando completamente sua função de moeda universal e nisto ele não faz outra coisa senão seguir o movimento de conjunto do capital.

Esta generalização da mais-valia relativa na segunda parte do s éculo XIX e as mutações nas superestruturas ocorridas ao longo das primeira e segunda guerras mundiais, ao longo das quais o capital colocou as formas mais adequadas de sua dominação, explica que o capital tenha agravado, nas nações onde a produção de mais-valia relativa já estava generalizada, as condições da duração do trabalho para o proletariado, quando este estava derrotado. Isto não exclui a procura de superlucros pelo aumento ocasional da jornada de trabalho, nem a perseguição da extração da mais-valia absoluta sob as feições de horas extras. Mas isto não é a forma dominante. Por exemplo na França a jornada de trabalho aumentou de 1945 a 1962 e diminui depois, sendo que o capital encaminhava-se docemente para as 40 horas... obtidas 40 anos mais cedo! Os sindicatos,

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agentes da racionalização do capital, avançam timidamente a palavra de ordem das 35 horas e alinham-se assim com os esquerdistas. Uma das boas razões pelas quais os “marxistas” sábios não compreendem a significação da alta da produtividade e da intensidade, é a que Marx dá no fim desta passagem famosa um dos elementos-chaves do programa comunista:

“Dadas a intensidade e a produtividade do trabalho, o tempo que a sociedade deve dedicar à produção material é tanto mais curto e o tempo disponível para o livre desenvolvimento dos indivíduos tanto maior, quando o trabalho é distribuído mais igualmente entre todos os membros da sociedade e quando uma camada social tem menos o poder de descarregar sobre uma outra esta necessidade imposta pela natureza. Neste sentido, a diminuição da jornada encontra seu limite último na generalização do trabalho manual”. (O Capital, livro I, seção 5)

Generalizar o trabalho manual é uma das tarefas da ditadura do

proletariado, que generalizará a condição de proletário ao conjunto da sociedade, de maneira a poder suprimir-se como classe e por isso abolir todas as classes.

O que é a intensidade? Isto significa produção de uma maior quantidade de mercadorias mas

também de maior valor, sendo que o valor contido em cada mercadoria continua o mesmo.

Se o valor criado numa mesma jornada de trabalho duplica, a massa de mercadorias criadas numa mesma jornada é igualmente duplicada, o valor da força de trabalho não é modificado mas a massa e a taxa de mais-valia são aumentadas. Suponhamos então que a jornada de trabalho diminui de metade e passe de 16 para 8 horas, enquanto que a intensidade do trabalho duplica. Neste caso, teremos criado o mesmo valor em 8 horas de que anteriormente em 16. Se admitimos que a produtividade igualmente dobrou, neste caso o valor da força de trabalho diminui de 6 horas para 3 horas.

A massa da mais-valia criada eleva-se então para 13 horas (ou seja, 16 horas representando o valor criado durante a jornada de trabalho menos 3 horas representando o valor da força de trabalho).

A taxa de mais-valia passa portanto para 13/3 = 4 1/3. A partir deste momento, o movimento do valor da força de trabalho pode

revestir diversos aspectos e sobretudo ele é totalmente divergente do movimento do salário real ou nominal. Com efeito, vimos que com o aumento da intensidade, a massa e a taxa da mais-valia podem aumentar, sem que por isso conduzam a uma baixa no valor da força de trabalho, mesmo reduzindo-se a duração da jornada de trabalho. É possível que (certamente que fazemos aqui abstração de todo progresso na produtividade do trabalho), se o salário real aumenta, o valor da força de trabalho cresce sem que esta possibilidade conduza, por outro lado, uma baixa na taxa de exploração.

Com o aumento da produtividade, o valor da força de trabalho baixa, mas este movimento pode ser mais lento num país que aumenta sua produtividade e sua intensidade numa maior proporção que num outro. Neste caso poderia

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ocorrer que o país mais desenvolvido tivesse simultaneamente o valor da força de trabalho mais elevado e a maior taxa de mais-valia.

A base racional dos sindicatos, o valor da força de trabalho segue, portanto, com a generalização da fase de submissão real, um movimento real que só se reflete de maneira falsa e mistificada no movimento do salário real. Do mesmo modo, com a generalização da mais-valia relativa, o capital pode acomodar-se, dentro de certos limites, à diminuição da jornada de trabalho. Ele pode até nisto ter interesse, na medida em que a diminuição favorece, em recompensa, o aumento da intensidade do trabalho. Por isso ele também pode assegurar-se o apoio da classe operária, diminuindo ligeiramente a jornada de trabalho. Além do mais, as lutas da classe operária, se as confinamos nos limites aceitáveis para o capital, podem contribuir para racionalizar o modo de produção capitalista.

Enfim, o próprio mecanismo da produção capitalista cria uma classe operária coletiva e socializa assim a classe face ao capital (cf. mais adiante, o capítulo 5). Todos estes fenômenos esvaziam de sua substância a base do sindicato. Com o desenvolvimento da mais-valia relativa e dialeticamente o triunfo da contra-revolução, o capital torna-se cada vez mais totalitário. Quanto mais a força de trabalho é desvalorizada, desvalorizá-la é muito mais difícil; a isto, deve-se acrescentar o aumento do capital fixo que impõe uma continuidade cada vez maior do processo de produção, pois é vital para o capital que o valor contido nestes meios de produção seja conservado (o que é efetuado pelo trabalho vivo do proletário). De outra parte, a massa de valor nas mãos do operário aumenta, donde a necessidade de uma vigilância reforçada, tanto maior quanto os meios de produção erguem-se frente ao escravo assalariado e a ele se oponham. Isto produz um movimento contraditório: de uma parte os operários possuem cada vez mais um maior meio de pressão contra o capital, pois eles têm a preponderância numa massa gigantesca de capital fixo: mas, de outra parte , o capital faz tudo para impedir seus ataques e assistimos a um reforço draconiano do despotismo de fábrica, para impedir as greves que param as máquinas, as sabotagens, o absenteísmo, etc... Por todas estas razões, importa que o processo de produção se desenvolva da maneira mais regular possível. O capital tem tudo para temer a parada total do trabalho., inclusive a parada das operações mínimas de manutenção necessárias à uma “boa” retomada do trabalho produtivo após a greve. (sobretudo nas minas, etc...) 8

Entretanto, este reforço despótico do capital não se exerce apenas em alguns setores, mas sobre o conjunto da classe pois, levando-se em consideração a concentração e a centralização do capital, a interdependência cada vez maior dos ramos e a complexidade crescente do aparelho produtivo, qualquer entrave num pólo do processo de produção arrasta necessariamente perturbações no seu

8 Há alguns anos, os operários de Péchiney-Noguères, na França, foram difamados e escarnecidos pela ralé política de todas as cores por terem deixado apagar os fornos, retardando assim a retomada da produção de muitas semanas. Lembrarem-nos que o interesse do operário era também o de proteger as máquinas, isto é, proteger o capital. “Defesa do instrumento de trabalho”, tal era a choradeira sindical-laborista que veio neste caso ao socorro do capital ameaçado.

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conjunto. Enfim, a incessante resistência que opõe uma classe operária coletiva, organizada e disciplinada pelo próprio capital, deve ser vencida. Por isso a simples repressão ou integração exterior não bastam. É necessário, no seio da própria classe operária , uma organização capaz de manter no lugar a ordem capitalista e de inculcar esta disciplina na classe operária. Esta organização, a classe operária encontra-a já pronta no seio do proletariado; é o sindicato. Contudo, é necessário integrá-lo e portanto esvaziá-lo de sua substância proletária. Se o movimento do capital elimina progressivamente a base histórica do sindicato, é apenas no fragor da revolução e da contra-revolução, e com a vitória desta última, que o capital consegue eliminá-la definitivamente, colocando as superestruturas próprias à fase de submissão real.

1.4. A TRANSFORMAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO AO LONGO DAS DUAS FASES.

1.4.1. A Fase Formal: a Manufatura

Vimos até aqui a metamorfose do capital, do ponto de vista do processo de valorização. Entretanto, importa colocarmo-nos do ponto de vista do processo de produção, isto é, da unidade do processo de valorização e do processo de trabalho. Se, na fase formal, o capital herda um processo de trabalho tal como saiu das formas de produção pré-capitalistas, com a fase real ele cria um processo de trabalho conforme o seu ser e próprio para valorizar a extração da mais-valia relativa. É sobre a base deste processo de produção transformado que o capital cria as superestruturas jurídicas, políticas, etc... que lhes são adequadas. Quando analisamos o capital mercantil, vimos que, em primeiro lugar, o capital contentava-se em concentrar e em socializar as trocas. Fisicamente, os produtos permanecem disseminados e espalhados, mas socialmente toda sua produção converge, a partir de então, para um mesmo ponto que é o comerciante, o qual desde esse momento concentra nas suas mãos as trocas. O comerciante capitalista não domina então a própria produção, mas apenas seu resultado.

A fase de submissão formal, longe de ser apenas um “prelúdio” ao modo de produção capitalista já manifesta seu estabelecimento, na medida em que já põe em presença as duas condições necessárias cuja troca e entrada em contacto constituem o fundamento da produção capitalista: força de trabalho livre e valor autonomizado, proletariado e capital.

A pauperização, o desarraigamento, o despojamento do proletário mostra, de chofre, o caráter inumano do capital, a perda de toda comunidade humana para o proletário. Mas não é contraditório declarar que este modo de produção constitui, ao mesmo tempo, um progresso e uma etapa necessária do desenvolvimento humano.

O nascimento de uma classe operária livre destrói as duas principais relações que caracterizam as formas pré-capitalistas: ligação do trabalhador com

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a terra (mesmo mediatizada pela comuna) e ligação do trabalhador com o instrumento de produção. Assim sendo, na área européia, o capital elimina as bases do processo de trabalho feudal que conhece duas formas: agrícola e artesanal.

O camponês e o artesão tornam-se operários no sentido de que não mais produzem para sua própria subsistência (ou para o mercado), mas para um patrão, possuidor dos meios de produção. Enquanto nos situamos nas formas que precedem a fase formal, o capitalista, o homem do dinheiro, não intervém diretamente no processo de produção. Ele só se apresenta como possuidor de dinheiro.

É na base do trabalho a domicílio, sobretudo nos campos, que o comerciante apodera-se do artesanato rural. Antes do período capitalista, na base dos modos de produção anteriores, a agricultura e o artesanato estão ligados, o segundo complementando a primeira.

Este trabalho não é sistematicamente dirigido para o valor de troca. Ele serve de complemento à economia doméstica camponesa e produz para a satisfação do camponês e de sua família, assim como para o senhor e sua corte no caso da servidão. Mesmo quando ele é dirigido para a troca, a venda de mercadorias, trata-se somente de uma profissão acessória. A intervenção do comerciante faz com que esta atividade passe pouco a pouco para o primeiro plano, graças às encomendas cada vez maiores, o assenhoramento dos meios de troca pelo comerciante, etc...

O tecelão rural acaba por encontrar-se na impossibilidade dele próprio vender seus produtos: doravante ele está inteiramente sob o jugo do comerciante.

O trabalhador possui seu instrumento, seu local (isto é, simplesmente sua casa) , mas agora ele só produz para o capitalista. De atividade anexa, seu trabalho artesanal vai tornar-se sua principal atividade e sua principal fonte de remuneração, em detrimento do trabalho da terra. As funções agrícolas e artesanais separam-se. Socialmente os produtores caem nas mãos dos comerciantes, do capitalista, pois é ele que detém a partir de então o monopólio das compras e das vendas. A maior parte das transações deve passar por ele. Ele apodera-se do trabalho dos produtores imediatos.

Desde então, é dado o passo mais importante e é perfeitamente lógico que a etapa seguinte será a da reunião destes produtores espalhados num mesmo lugar de produção: a manufatura.

Do ponto de vista da organização do trabalho, a fase formal corresponde à manufatura e a fase real à grande indústria. Isto se liga às duas formas que vimos da mais-valia: absoluta e relativa. A mais-valia relativa só pode nascer na base do “crescimento das forças produtivas”, isto é, na base do maquinismo.

Na manufatura não se efetuam modificações no desenrolar das operações do processo de trabalho. Lá onde se tinha 30 rodas de fiar espalhadas no campo, ter-se-á 30 rodas reunidas num mesmo local. Aqui já se manifesta a forma associativa do trabalho no modo de produção capitalista. O capital manifesta-se de cara como cooperação. Na história existiram formas de trabalho cooperativo antes do modo de produção capitalista, mas é a primeira vez que este surge na base do trabalho livre. De outra parte, é necessário distinguir uma forma específica de cooperação por fase capitalista. Na primeira fase, trata-se de uma

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cooperação elementar, formada numa base sobretudo quantitativa: a reunião de uma massa de operários. O trabalho humano predomina então amplamente na produção, e, dado que se trata de uma cooperação entre operários, chamaremos de cooperação subjetiva.

Produz-se então um salto qualitativo e uma alta na produtividade. Na fase real, como veremos, esta cooperação combina-se com a divisão de trabalho elaborada que existe no seio da fábrica capitalista.9

Historicamente, a manufatura apresenta-se, de início, sobre a base da cooperação simples, antes que nela se introduza a divisão do trabalho.

“A acumulação e a concentração de instrumentos e de trabalhadores precedem o desenvolvimento da divisão do trabalho no interior da oficina. Uma manufatura consistia muito mais na reunião de muitos trabalhadores, e de muitas profissões num único lugar, numa sala sob o comando de um capital, do que na análise dos trabalhos e na adaptação de um operário especial a uma tarefa bastante simples. A utilidade de uma oficina consistia muito menos na divisão do trabalho propriamente dito, do que na circunstância de que aí se trabalhava numa escala muito maior, de que se poupava muitos gastos improdutivos, etc... No fim do século XVI e no começo do século XVII, a manufatura holandesa mal conheceu tal divisão”. (Marx, Miséria da Filosofia)

Ainda que no livro I do Capital, encontra-se a exposição sobre a

cooperação antes da manufatura, a cooperação não constitui por si só uma fase distinta (no tempo) da produção capitalista. Como conteúdo, ela encontra num primeiro momento uma forma adequada na manufatura. Aqui encontram-se os dois elementos que foram necessários na origem para que se constituísse o ser-capital: uma grande massa de meios de produção, de uma parte, e uma grande massa de operários de outra, prontos para se unirem na produção capitalista. Em relação aos modos de produção anteriores, a aurora da produção capitalista é marcada por um salto qualitativo. Mesmo que estes conhecessem a cooperação, esta não possuía as mesmas bases, não desembocava nos mesmos resultados.

“A cooperação, tal como a encontramos na origem da civilização humana, nos povos caçadores, na agricultura das comunidades indígenas, etc... repousa na propriedade comum das condições de produção e no fato de que cada indivíduo ainda adere à sua tribo ou à comunidade tão fortemente como uma abelha a seu enxame. O emprego esporádico da cooperação em grande escala na Antiguidade, na Idade Média, e nas colônias modernas, funda-se sobre relações imediatas de dominação e de servidão, geralmente sobre a escravidão. Sua forma capitalista pressupõe, ao contrário, o trabalhador livre, vendedor de sua força. Na história, ela se desenvolve em

9 Insistindo no fato de que não se pode comparar a cooperação manufatureira com o tipo de cooperação encontrada na grande indústria, Max mostra que a primeira constitui o germe da segunda e constitui um dos caracteres que definem o capital.

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oposição à pequena cultura do camponês e o exercício independente das profissões, quer estes possuam ou não a forma corporativa. Em face deles, a cooperação capitalista não aparece nunca como uma forma particular da cooperação; mas, pelo contrário, a própria cooperação como uma forma particular da produção capitalista.” (O Capital, livro I, seção 4)

Isto mostra duas coisas: de uma parte que a concentração é indispensável

do capital e inseparável deste; é um dos primeiros atos de socialização que ele realiza; de outra parte, esta concentração é de início apenas quantitativa: há a criação de uma nova força produtiva pelo único poder da aglomeração das diversas forças de trabalho individuais. Cem operários trabalhando juntos, diz Marx, produzem mais do se produzissem separadamente em cem lugares diferentes. Por outro lado, a unidade de produção não é mais agora individual, mas social. Se consideramos individualmente dois artesãos e um deles produz, por exemplo, mais rapidamente do que o outro, então ele possui uma maior produtividade.

Mas quando consideramos de agora em diante um grande número de operários as diferenças individuais se encobrem e nivelam-se na unidade social, o que não vale para o caso do trabalho individual. Consideremos o trabalho total e pouco importa se um fulano contribui com uma parte ligeiramente superior ou inferior a outro. Estes dois operários uma vez inseridos no conjunto produtivo mais amplo, verão desvanecer-se as diferenças na produção do valor. Mais o conjunto produtivo será desenvolvido, mais esta socialização terá importância. No plano do processo de trabalho propriamente dito, não há ainda nenhuma mudança, o operário trabalha sempre da mesma maneira. Nas manufaturas, o operário ainda possuía às vezes seus instrumentos como na oficina artesanal. As mudanças intervêm sobretudo nas condições materiais concomitantes ao processo de trabalho.

“Mesmo se os procedimentos de execução não sofressem mudanças, o emprego de um pessoal numeroso conduz a uma revolução nas condições materiais do trabalho. Os edifícios, os depósitos para as matérias-primas e mercadorias em processamento, os instrumentos, os aparelhos de toda espécie, em uma palavra os meios de produção servem a muitos operários simultaneamente: seu uso torna-se comum. Seu valor intercambiável não se eleva porque deles se tira mais serviços úteis, mas porque eles se tornam mais consideráveis.” (O Capital, livro I, seção 4)

A socialização dos meios materiais do trabalho precede a socialização do

próprio trabalho . Temos portanto a seguinte ordem de sucessão: concentração das trocas nas mãos do comerciante, concentração dos meios de trabalho nas mãos do fabricante; concentração das forças de trabalho individuais numa única força de trabalho social, etapa que, como veremos, só será definitivamente transposta com a era da grande indústria.

Uma vez lançadas as suas bases, a cooperação vai se desenvolver produzindo muitos efeitos. Inicialmente, uma diferenciação no seio do processo de trabalho. O artesão dominava o processo de trabalho no seu conjunto:

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concepção, realização, execução, acabamento, etc... Doravante, o produtor é separado dos meios de produção que não se submetem mais a ele, mas o dominam. A vigilância incumbe ao capitalista, o qual vela para que o processo de produção tenha a regularidade requerida e que a força de trabalho seja despendida com o grau necessário de intensidade e de produtividade.

A direção do processo pelo capitalista aparece inicialmente como acidental, determinado pelo fato de que o operário vendeu sua força de trabalho ao capitalista. Em contrapartida, assim que a cooperação torna-se a base da produção, es ta função torna-se preponderante. (À diferença das formas arcaicas de cooperação em que os trabalhadores são possuidores dos meios de produção, e, de outra parte, da associação na Gemeinwesen futura, na qual todas as tarefas produtivas são cumpridas consciente e voluntariamente).

Dado que a concentração dos trabalhadores faz aumentar simultaneamente seu poder de resistência, a função de controle do capitalista torna-se cada vez mais despótica. Ela suporá portanto, em seguida, a própria demissão do capitalista desta função e sua delegação a um exército de vigias, contramestres, etc...

O segundo efeito da cooperação, que veremos agora, é a divisão do trabalho. Esta nasce infalivelmente na base da cooperação capitalista.

A manufatura conhece duas formas fundamentais: Na primeira, a cooperação toma a forma da reunião de diversos corpos de

ofício, cujos produtos formam os componentes de um mesmo produto total. No caso de uma manufatura agrupando diversos ofícios, assistimos a uma “petrificação” das tarefas, que caracteriza a divisão do trabalho. Por exemplo, o marceneiro empregado numa fábrica de carruagens está, a partir de então, consagrado exclusivamente à fabricação de carroças durante toda sua vida, enquanto que um outro fará, por exemplo, as portinholas. Assim, mesmo no seio da oficina, produz-se uma especialização, o operário polariza-se num aspecto do ofício e adquire assim uma qualificação particular que é diferente da qualificação geral que conhece o artesão.

A manufatura não destrói imediata e radicalmente o sistema de trabalho a domicílio, pelo contrário, ela o mantém durante certo tempo. Durante o período manufatureiro, as indústrias de fiação, tecelagem, assim como a metalúrgica de transformação, etc... permanecem amplamente dependentes da indústria rural dispersa. Por exemplo, uma manufatura qualquer de espelhos efetua o serviço mais pesado nas oficinas manufatureiras, mas confia o polimento a trabalhadores a domicílio. Ou ainda, a manufatura efetua o corte dos tecidos e são os alfaiates e as costureiras a domicílio que efetuam a montagem das peças. Na base da manufatura sobrevivem, portanto, por muito tempo a pequena indústria. Além do mais, na Inglaterra, a manufatura fez ressurgir uma classe de pequenos lavradores, a fim de obter matérias-primas agrícolas, o que constitui uma contra-tendência à expulsão dos trabalhadores campestres que já descrevemos.

“Entretanto, o período manufatureiro propriamente dito não chegou a tornar esta revolução radical. Vimos que ele apodera-se da indústria nacional de uma maneira fragmentária, esporádica tendo sempre por base principal as oficinas das

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cidades e a indústria doméstica dos campos. Se ela destrói esta última sob certas formas, em certos ramos particulares e sobre certos pontos, ele a faz nascer sobre outros, pois ele não poderia privar-se das matérias brutas. Ele assim propicia a formação de uma nova classe de pequenos trabalhadores para os quais a cultura do solo torna-se o acessório, e o trabalho industrial, cuja produção se vende às manufaturas, seja diretamente, seja por intermédio do comerciante, a ocupação principal.” (O Capital, livro I seção 8)

Na segunda forma da manufatura, não encontramos muitos ofícios, mas concentração de muitos trabalhadores de um mesmo ofício. É por exemplo, o caso da concentração de fiandeiros e tecelões.

Neste tipo de manufatura, a obtenção do produto é baseada na reunião de operários que executam cada um uma operação de detalhe. Em oposição à fábrica de carruagens da qual falamos mais acima, na qual se concentravam muitos ofícios e onde, por exemplo, os marceneiros especializavam-se na fabricação de rodas, podemos imaginar agora uma manufatura de rodas reunindo somente marceneiros, que efetuariam uma única operação cada um na série das operações produtivas. Aqui, o ofício decompõe-se em suas diversas operações, que são, cada uma, o apanágio de um trabalhador parcelar. Os operários executam suas operações simultaneamente e lado a lado, o que produz uma maior regularidade no desenrolar do processo de trabalho. Comprimem-se os poros da jornada de trabalho e desenvolvem-se a virtuosidade e a habilidade do trabalhador no seio de sua especialização.

Entretanto, esta divisão do trabalho (são suas duas formas), permanece submetida à base do ofício e portanto diferencia-se da divisão do trabalho tal como vai se desenvolver na base da fase de submissão real e da grande indústria.

“A divisão de trabalho do regime manufatureiro que começa na metade do século XVII e acaba no final do século XVIII na Inglaterra, não é também totalmente distinta da divisão do trabalho da grande indústria, da indústria moderna?” (Marx a Annenkov, 28/12/1846)

É por isso que falaremos da divisão manufatureira do trabalho, por oposição

à divisão industrial do trabalho. Por intermédio do trabalho coletivo, a manufatura permite realizar simultaneamente o que o trabalho artesanal só podia realizar sucessivamente. Este é um dos aspectos da necessária elevação da produtividade do trabalho que acompanha, de chofre, o modo de produção capitalista, mesmo na sua fase de submissão formal.

“Esta simultaneidade provém da forma cooperativa do trabalho, mas a manufatura não se detém nas condições pré-existentes da cooperação; ela cria novas condições pela decomposição que opera nos ofícios. Ela apenas atinge seu objetivo ligando indissoluvelmente para sempre o operário a uma operação de detalhe.” (O Capital, livro I)

A manufatura corresponde à fase de submissão formal, isto é, à fase que

conhece apenas a produção de mais-valia absoluta e na qual a massa de capital

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consagrado à compra da força de trabalho predomina em relação àquela consagrada à compra do capital constante. O ponto importante é que passa-se de uma produção mercantil simples à uma produção para o capital, isto é, uma produção de mais-valia. Desde que o capital domina as condições de produção, o objetivo desta é de reencontrar mais valor no fim do processo do que aquele adiantado no início (D-D’). Este processo existia apenas de maneira limitada quando era o comerciante quem dominava as trocas. Ao mesmo tempo, modifica-se a relação de dependência que está subjacente a relação de exploração. Com o capital, e isto desde a fase formal, o proletário cai na dependência econômica do capitalista, pois este detém as condições do trabalho. Todos se opõem como pessoas livres. A fase formal portanto já conhece a mistificação inerente à relação salariada e à produção capitalista.

O que caracteriza a fase formal é que o capital só aglomera o que já existia. O que vimos sob o ângulo negativo com o movimento da acumulação primitiva, nós o reencontramos aqui (estas são as dificuldades da exposição) sob um ângulo positivo, o da produção capitalista. Na fase formal, o capital reúne sob sua égide os elementos do processo de produção, cuja antiga unidade a acumulação primitiva havia dissolvido.

Quando as manifestações de dissolução deixam de ser esporádicas, para atingir uma certa amplitude (isto é, ao longo do século XVI na área européia) podemos então falar de fase de submissão formal do trabalho ao capital.

“Quando o camponês, até então independente e trabalhando para si mesmo, torna-se diarista e produz para um arrendatário; quando a ordem hierárquica, própria do modo de produção feudal das corporações dá lugar ao simples antagonismo do capitalista que faz trabalhar para ele o artesão que se tornou assalariado; quando o antigo senhor de escravos emprega como assalariados aqueles que eram recentemente seus escravos, etc... fica evidente que estes processos de produção, tão diversamente estruturados do ponto de vista econômico e social, são transformados em processo de produção do capital. É a partir daí que se manifestam as mudanças que analisamos anteriormente. O camponês, até então independente, passa, como fator do processo de produção, para a dependência do capitalista que o dirige e o vigia. Seu próprio emprego depende de um contrato que ele deve, como possuidor de mercadoria – sua força de trabalho – acertar previamente com o capitalista, possuidor do dinheiro. O escravo deixa de ser um instrumento de produção que pertence a seu patrão. A relação entre mestre e companheiro desaparece. O artesão, que era mestre de ofício frente ao companheiro, agora nada mais é do que um possuidor de capital, enquanto que seu par é apenas um vendedor de trabalho.” (Marx, Um Capítulo Inédito do Capital)

Todo constrangimento pessoal desaparece para dar lugar um

constrangimento de tipo puramente econômico, o qual visa extorquir a mais-valia do operário. Na transação monetária que preside o contrato entre o vendedor e o comprador da força de trabalho já está contida, em totalidade, a infâmia da produção capitalista. Mas na fase formal, esta relação de dependência ainda não

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está acompanhada de uma subversão do processo de trabalho. Este permanece inalterado. Ao invés de realizar os gestos da produção para si mesmo, como o artesão, o operário realiza-o para o capital, valor autonomizado ao qual se submete o processo de trabalho.

“Ao capital submete-se, portanto, um processo de trabalho pré-existente e determinado, por exemplo, o trabalho artesanal ou a pequena agricultura camponesa autônoma. As únicas transformações que se pode registrar no processo de trabalho tradicional submetido ao comando do capital, são as conseqüências progressivas da submissão, doravante realizada pelo capital, dos processos de trabalho dados e tradicionais.”(idem)

No início, a submissão na forma do trabalho ao capital significa sobretudo dar campo livre ao valor-capital para que ele cresça pilhando as forças produtivas do operário. Em outras palavras, é necessário eliminar todos os entraves econômicos ligados às formas de produção pré-capitalistas, que conferiam ao processo de produção um caráter arcaico e estável, uma vez que eram essencialmente dirigidas para a produção de valores de uso. O segundo estágio será eliminar as antigas características materiais e técnicas que podem entravar o capital, ou seja, criar uma base adequada ao capital, o que será a obra da fase real, pois isto não pode ser efetuado na base estreita da manufatura.

“É necessário acrescentar que a manufatura não podia nem apoderar-se da produção social em toda a sua extensão, nem subvertê-la em sua profundidade. Como obra de arte econômica, ela erguia-se sobre a base dos corpos de ofícios das cidades e seu corolário, a indústria doméstica dos campos. Mas desde que ela atingiu um certo grau de desenvolvimento, sua estreita base técnica entrou em conflito com as necessidades de produção que ela própria havia criado. Uma de suas mais perfeitas obras foi a oficina de construção, onde fabricavam-se os instrumentos de trabalho e os aparelhos mecânicos mais complicados já empregados em algumas manufaturas”. (Marx, O Capital, livro I, seção 4)

Daí saíram as máquinas sobre esta nova base técnica, adequada ao ser-

capital, as manufaturas deram lugar à grande indústria e ao proletariado moderno, intercambiável, apêndice da máquina. Passa-se portanto para uma outra forma de divisão do trabalho e diz Max, caem as barreiras 10 que ainda se opunham à plena dominação do capital.

10 Entre estas barreiras, é necessário incluir a própria classe operária. Tivemos a ocasião de ver a formação da classe sem reserva, sob o chicote, ao longo da acumulação primitiva. Aqui vemos que, somente quando é introduzida a máquina e que o capital consegue definitivamente submeter de corpo e alma a classe operária. Com efeito, na base da manufatura, portanto do ofício – e a economia política deplora-o claramente – só podia surgir uma classe operária indisciplinada, sem créditos para as exigências da produção capitalista. “A habilidade do ofício permanecendo a base da manufatura, enquanto que seu mecanismo coletivo não possui um esqueleto material independente dos próprios operários, o capital deve lutar incessantemente contra sua insubordinação(...). Durante todo o período manufatureiro, não se ouve senão queixas e mais queixas a propósito da indisciplina dos trabalhadores”. (O Capital, livro I, seção 4)

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Os operários que seguiam o movimento de Hohm Ludd, na Inglaterra e quebravam as máquinas – no fenômeno social do luddismo – tinham toda razão de ver naquelas uma arma nas mãos dos capitalistas contra toda classe operária. Mas é precisamente ao longo de episódios como estes que o capital constitui-se realmente, fornecendo assim à classe operária moderna a base na qual ela se desenvolve para arrevesar o modo de produção capitalista: a grande indústria.

1.4.2. A Fase Real: Maquinismo e Grande Indústria.

É delicado hoje empregar a expressão “revolução industrial” que, depois de Engels (que a emprega judiciosamente nas primeiras páginas da “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”), serve, nos escritos dos burgueses, para designar uma etapa de um movimento de progresso neutro da técnica e da ciência. Assim, empregam o termo de “revolução industrial” para não falar de “revolução capitalista” e não estabelecer a “clássica identidade”, como diz Bordiga (cf. o texto “A alma do cavalo-vapor”), entre maquinismo e modo de produção capitalista.

Além do mais, sempre abstraindo das relações sociais, na base das quais se faz o progresso técnico, puderam alongar indefinidamente a lista destas “revoluções”11 pelo progresso, que de fato, para nós comunistas, apenas revolucionam o modo de produção capitalista segundo sua própria lógica interna, mesmo se o ciclo revolucionário do capital já acabou há muito tempo.

Ora de quaisquer implicações supérfluas, duvidosas e ambíguas que encerram o termo “revolução industrial” é portanto evidente que ele apenas adquire seu sentido se ligamos dialeticamente grande indústria e capital, como fez Marx várias vezes.

Engels, em 1844, utiliza este termo para designar o momento “a partir do qual aconteceu a verdadeira revolução capitalista”: a que permitiu ao capital estabelecer sobre o trabalho (e, portanto, sobre o proletariado) uma dominação real . Ao longo desta, é, a partir de então, o próprio capital que forja os elementos do processo de trabalho, homens e instrumentos, e os organiza conforme suas próprias leis. Com esta fase tem-se, igualmente, a criação maciça do proletariado moderno.

Mal o capital constitui-se em totalidade, o proletariado moderno propõe sua solução histórica expressa no programa comunista e a doutrina de partido, que encontra sua potente e condensada expressão no “Manifesto do Partido Comunista” (1847). Desde o instante em que o capital desenvolveu-se numa base adequada, ele foi, ao mesmo tempo, condenado à morte.

11 Assim os estalinistas, grandes descobridores de novidades, forjaram o conceito de “Revolução Científica e Técnica”, para designar as modificações que sofreu o processo de trabalho a partir do início do século XX. Ora, como veremos mais adiante (cf. capítulo 4), o maquinismo capitalista é de chofre incorporação da ciência na produção. Assim, a ciência aqui faz seu trabalho anti-operário. Isto é, inclusive, segundo nossa teoria comunista, um dos critérios mais seguros para designar a passagem do modo de produção capitalista à fase de submissão real do trabalho ao capital.

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Dedicaremos mais adiante (capítulo 4) um capítulo deste texto ao maquinismo e à ciência, contentando-nos aqui em avançar alguns elementos.

“A caracterização geral da subordinação formal é a sujeição direta do processo de trabalho ao capital, quaisquer que sejam os métodos tecnológicos empregados. Mas sobre esta base, ergue-se um modo de produção tecnológico bem específico, que transforma a natureza e as condições reais do processo de trabalho. É o modo de produção capitalista. É somente quando este aparece que se produz a subordinação real do trabalho ao capital. A subordinação real do trabalho ao capital opera-se em todas as formas que desenvolvem a mais-valia relativa, por oposição à mais-valia absoluta. Com ela cumpre-se uma revolução total (renovada incessantemente) no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho e nas relações entre o capitalista e o trabalhador. Vemos aparecer no processo de trabalho todas as mudanças que analisamos anteriormente. As forças produtivas do trabalho social desenvolvem-se numa grande escala, ao mesmo tempo em que a ciência e a técnica são aplicadas na produção imediata. De uma parte, constituindo-se já na sua especificidade, o modo de produção capitalista cria um novo tipo de produção material; de outra parte, esta transformação material constitui a base do desenvolvimento do sistema capitalista, cuja forma adequada corresponde, conseqüentemente, a um nível determinado do crescimento das forças produtivas do trabalho”. (Um capítulo inédito do Capital)

Caracterizamos a fase desenvolvida do modo de produção capitalista como passagem à produção generalizada de mais-valia relativa. A máquina, como único meio de aumentar verdadeiramente a produtividade e a intensidade do trabalho para além dos limites naturais que impõe a compleição do corpo humano, é o principal agente que permite a transformação do processo de produção, dominado a partir de então pela criação da mais-valia relativa e não mais absoluta. Mais-valia relativa e maquinismo estão indissoluvelmente ligados. Uma paixão anima o capitalista: “ele deseja esticar a elasticidade humana e esmagar todas suas resistências”. (Marx)

Com a máquina, ele encontra seu aliado mais seguro, a submissão do produtor faz-se no próprio coração do processo de produção.

Descrevemos, a seguir, de forma sucinta, as principais etapas da passagem da manufatura à grande indústria.12

A base da manufatura permanece, como vimos, o ofício, isto é, o instrumento. Neste plano, a manufatura está ainda mais próxima do artesanato do que da grande indústria. Enquanto que, com o maquinismo o operário é o simples prolongamento da máquina, na manufatura o instrumento permanece o

12 É necessário sublinhar que Marx apresenta os “complexos automáticos de máquinas” como configuração acabada do maquinismo capitalista, “modelo” de desenvolvimento capitalista. Isto constitui a norma do modo de produção capitalista e as etapas precedentes (máquinas simples, etc...) figuram ainda como momentos transitórios. Isto decorre nitidamente de nossa ciência de classe de previsão, pois à época de Marx (o famoso século XIX que nos repisam nas orelhas!), apenas raríssimas unidades de ponta podiam revestir esta compleição acabada, situando-se o resto numa base menos desenvolvida.

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prolongamento do trabalhador. É o trabalhador que anima o instrumento e não a máquina que anima o trabalhador.

Em primeiro lugar temos, na base da manufatura, a máquina-ferramenta, que constitui o núcleo original do maquinismo. Nesta época, a máquina cumpre, em geral, o mesmo trabalho que o operário, com os mesmos instrumentos e as mesmas operações. A única diferença é uma diferença de escala e é quantitativamente que a máquina transcende o poder produtivo do trabalhador individual. Ela aumenta o campo de suas operações. É por isso que Marx diz: “Uma revolução é realizada mesmo quando o homem permanece o motor”. (O Capital, livro I, seção 4)

O motor aqui ainda é a força humana (considerada aqui como fonte de energia motriz. Isto não impede que, a partir de agora, não é mais o homem mas a máquina que está no centro do processo de produção), mas precisamente a máquina está aqui para multiplicar esta força. É o caso do “circular loom”, engenho para tecer de Claussen, que executava 36.000 malhas por minuto. A máquina permite assim um crescimento da produtividade, caráter que vai se multiplicar assim que a máquina se desenvolve para tornar-se combinação de muitos instrumentos.

Assim, a máquina-ferramenta que inaugura a revolução industrial, serve de ponto de partida para a transformação da manufatura em usina moderna (a “fábrica” de Marx).

“Examinando a máquina-ferramenta, encontramos em grande escala, embora sob formas modificadas, os aparelhos e instrumentos que emprega o artesão ou o operário manufatureiro; mas de instrumentos manuais do homem tornaram-se instrumentos mecânicos de uma máquina. Ora a máquina inteira é apenas uma edição mais ou menos revista e corrigida do velho instrumento manual – é o caso do engenho para tecer mecânico - ora os órgãos de operações ajustados ao arcabouço da máquina-ferramenta são de concepções antiquadas, como os fusos da “mule-genny”, as agulhas dos engenhos de tricotar maias, as folhas de serra da máquina de serrar, a lâmina de cortar, etc... A maior parte destas ferramentas distinguem-se pela sua própria origem da máquina da qual formam os órgãos de operação. Em geral eles ainda hoje são produzidos pela oficina ou a manufatura, enquanto que a máquina a qual eles são em seguida incorporados, provém da fábrica mecânica”. (O Capital, livro I, seção 4)

A máquina tomou o lugar do homem e é aí que se situa a verdadeira revolução capitalista, a superação do caráter organicamente limitado da produção manual.

“O número de ferramentas que uma mesma máquina-operatriz emprega simultaneamente é portanto, em primeiro lugar, emancipado do limite orgânico que a ferramenta manual não podia ultrapassar”. (Idem)

Com esta revolução inicia-se igualmente a inversão mistificadora própria do modo de produção capitalista no qual o capital aparece ativo (produtivo) e o

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operário puro agente material da produção. Pode-se ver aí, em filigranas, toda a essência do desenvolvimento capitalista. À máquina, que forma, ela mesma, o núcleo do sistema mecânico, juntam-se dois outros elementos:

- o motor (o que Bordiga chama de “máquinas motrizes”); - o sistema de transmissão (ou também, “transmissão de energia”, no texto

“A alma do cavalo-vapor”).

A junção de um motor à máquina só foi possível na base da nova máquina à qual o homem já estava submisso como motor. De manipulador de ferramenta, o próprio homem tornou-se instrumento manipulado. A partir de então é apenas uma questão de tempo para que se substitua a força muscular do homem por outras fontes de energia.

Mas não é aí que se situa o ponto de passagem revolucionário que, como vimos, é realizado. Não é o vapor que engendra a revolução industrial, mas a revolução industrial que engendra o vapor.

“A própria máquina a vapor, tal como existia durante o período manufatureiro, a partir de sua invenção no final do século XVII até o começo de 1780, não trouxe nenhuma revolução na indústria. Ao contrário, foi a criação das máquinas-ferramenta que tornou necessária a máquina a vapor revolucionária. Desde que o homem, em lugar de agir com a ferramenta sobre o objeto de trabalho, age apenas como motor de uma máquina-ferramenta, a água, o vento, o vapor podem substituí-lo e a dissimulação da força motriz sob músculos humanos torna-se puramente acidental.” (O Capital, Livro I, seção 4)

Ao mesmo tempo que se cumpre esta revolução, prossegue-se uma outra,

aparente, em que a forma do instrumento de produção se modifica à medida em que ele reduz a parte do trabalho humano propriamente dito.

Cada nova fonte de energia traz uma mudança na morfologia do aparelho produtivo e uma fábrica cuja fonte de energia é a eletricidade difere sensivelmente de uma fábrica que possui máquinas a vapor. Mas, somente os imbecis poderão deduzir que este fato puramente fenomenal pôde impedir os comunistas de compreender integralmente, há um século, não apenas a natureza profunda do maquinismo como também seu devir. A partir do momento em que foi compreendida, no seu fundamento, a revolução operada pela máquina-ferramenta, todas as variações formais ulteriores puderam ser englobadas na compreensão doutrinal do modo de produção capitalista. Não abordaremos aqui as questões do Fordismo, do Taylorismo etc..., o que será feito mais adiante, mas é fácil mostrar que se situam no prolongamento lógico desta revolução operada nos anos 1780. Todas as subversões científicas desta época nasceram portanto das necessidades da produção. É porque a extração da mais-valia atinge rapidamente seus limites, quando o motor é a força muscular do homem, que impõe-se a necessidade de novas fontes de energia. E nasceu então um verdadeiro exército de sábios e pesquisadores que não trabalham puramente ao

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acaso, mas na direção bem precisa que lhes impunha a história do modo de produção capitalista.

Assim, ao longo do século XVIII, na Grã-Bretanha, ocorreu um aumento regular do número de patentes concedidas aos “inventores”. (É necessário precisar que para cada patente concedida a um indivíduo, tem-se, em geral, muitos indivíduos que trabalharam sobre o mesmo problema e na mesma época. A ciência não é nunca individual, mas social).

A junção de outros elementos à máquina-ferramenta relega-a a ser apenas um elemento a mais do sistema produtivo, um “órgão do mecanismo de operação” e permite por isso a criação de um verdadeiro sistema de máquinas. A divisão do trabalho perde o caráter subjetivo que possuía a manufatura, onde cada operário devia poder efetuar a operação à qual estava destinado. Ela se torna objetiva, isto é, todas estas operações são efetuadas por uma máquina, independentemente das faculdades individuais do operário. O maquinismo torna-se um monstro que ergue-se frente ao operário, mas ele é monstruoso porque é o capital encarnado numa coisa material e que esta coisa anima-se, dotada de uma vida infernal, reduzindo o operário a ser apenas um apêndice marginal de seu mecanismo.

“O sist ema das máquinas-ferramenta automáticas que recebem seu movimento pela transmissão de um autômato central, é a forma mais desenvolvida do maquinismo produtivo. A máquina isolada foi substituída por um monstro mecânico que, por seu gigantesco conjunto de membros, enche edifícios inteiros; sua força demoníaca, inicialmente dissimulada pelo movimento credenciado e quase solene de seus enormes membros, explode na dança febril e vertiginosa de seus inumeráveis órgãos de operação”. (O Capital, livro I, seção 4)

Aqui, restringimo-nos simplesmente em mostrar por quais grandes etapas o

capital consegue forjar seu processo técnico específico, característico da fase de submissão real. Retomaremos, mais adiante, os problemas inerentes ao maquinismo: desvalorização, ciclo produtivo, papel da ciência, organização científica do trabalho, etc...

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2. A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL NO CURSO DAS DUAS FASES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA.

2.1. INTRODUÇÃO.

Uma das contra-teses clássicas que nosso movimento sempre combateu é a de que a situação do proletariado melhora na medida em que o capital aumenta sua dominação sobre a sociedade acabando assim com a “miséria do século 19”. Nos países onde a fase de submissão real do trabalho ao capital se impôs, as condições de vida da classe operária tornar-se-iam melhores afastando assim o espectro de uma revolução comunista, enquanto que a generalização do assalariamento e a aparição progressiva das classes intermediárias atenuariam gradualmente os antagonismos entre as classes. É sobre esses mesmos pressupostos que se sustentam o reformismo e o revisionismo. Face a isto o comunismo responde:

“O operário moderno, pelo contrário, longe de melhor com os progressos da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de sua própria classe. O trabalhador transforma-se em pobre e o pauperismo se desenvolve ainda mais rapidamente que a população e a riqueza.” (Marx)

Com o capital realiza-se a fusão do movimento de autonomização do valor

e do movimento de expropriação dos homens. Este último, no início do século 16 na Inglaterra assume a forma aguda da dissolução das camadas feudais e da expropriação violenta da população camponesa. Assim, surge uma massa de indivíduos sem nenhuma ligação com a terra nem com qualquer meio de produção que seja. Esta massa que forma a base da classe assalariada não podia ser absorvida de chofre pela manufatura nascente tão rapidamente quanto se tornava disponível. A conseqüência de tudo isto foi o surgimento de um grande número de mendigos, vagabundos, ladrões, etc... que rejeitavam a formação de uma brigada assalariada e contra os quais o Estado burguês utiliza a violência e o terror a fim de submetê-los a força à disciplina do capital. Assim surge na história uma classe sem reserva, que é obrigada a vender sua força de trabalho para poder subsistir, submetendo-se às exigências do capital. O trabalho desta classe toma necessariamente a forma de trabalho assalariado. Para poder reproduzir sua força de trabalho o operário é obrigado a consumir dia a dia seus meios de subsistência e, por conseguinte, a renovar incessantemente o contrato que o liga ao possuidor dos meios de produção.

A generalização do assalariado (que na origem coincide com a generalização do proletariado) lança na miséria uma parte crescente da humanidade. O proletário é um “sem reserva” pois perde toda ligação comunitária com a terra e os meios de produção. O proletário é totalmente privado da

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Gemeinwesen (comunidade) humana. Nesse sentido, a classe proletária é mais miserável que as outras classes exploradas no curso da história. O escravo e o servo, por exemplo, fazem parte das condições objetivas da produção e portanto não se colocam frente a ela como trabalhadores livres, despojados de tudo, sem reserva. A classe sem reserva é miserável, porque miséria significa perda total do ser humano, precariedade aumentada das condições de existência, ausência de “reservas econômicas destinadas à consumação em caso de necessidade. O proletário é o miserável, isto é, o sem propriedade, o sem-reserva e não o mal pago.” (Battaglia Communista, n º 37, 1949 )

Ser sem reserva significa também encontrar-se completamente despojado frente aos fenômenos sociais inerentes ao Modo de Produção Capitalista (crises, guerras, etc...) Não se pode considerar a miséria apenas sob seu ângulo quantitativo; não é a quantidade de bens colocada à disposição do operário que define a extensão maior ou menor de sua miséria, esta se expressa qualitativamente: de chofre o proletário é miserável porque despojado de toda humanidade. O que importa portanto é sua posição social de proletário.

“Não é a posse de tanto de terra ou de tanto de dinheiro, mas o comando sobre o trabalho que distingue os ricos dos pobres”. (Marx, Grundrisse)

2.2. FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL: PAUPERIZAÇÃO ABSOLUTA.

Com a acumulação primitiva, o capital limpa os bolsos, as casas, os campos, as oficinas, precipita as grandes massas na miséria transformando-as em pobres, em sem-reservas, não possuidores, cujo número vai aumentando. Uma das primeiras condições para que o capital se instaure é arrancar sua reserva do trabalhador.

Assim se forma a classe proletária já despojada de seu ser humano na fase de submissão formal, estranha de si mesma, fazendo de sua atividade um tormento e de sua vida um sacrifício, nada possuindo senão sua força de trabalho, que ela é obrigada a vender para poder se objetivar. Todavia, no curso da fase de submissão formal, o proletariado guarda ainda certas características do passado, que não fazem ainda dele o proletariado moderno. O início da fase de submissão formal (seu estabelecimento através da acumulação primitiva) ainda é o momento da generalização deste despojamento.

“A burguesia começa com um proletariado que é ele mesmo um resto do proletariado dos tempos feudais. No curso de seu desenvolvimento histórico, a burguesia desenvolve necessariamente seu caráter antagônico que, no início, encontra-se mais ou menos encoberto, que só existe em estado latente. À medida que a burguesia se desenvolve, desenvolve-se em seu seio, um novo proletariado, um proletariado moderno: desenvolve-se uma luta entre a classe proletária e a classe burguesa, luta que antes de ser sentida por ambas as partes, percebida, apreciada, compreendida, reconhecida e proclamada claramente, não

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se manifesta nos primeiros momentos senão em conflitos parciais e fugazes, em fatos subversivos”. (Miséria da Filosofia) No curso da primeira fase da vida do capital, esta herda um processo de trabalho inalterado em relação às formas de produção anteriores. Na oficina, a força de trabalho ainda não age realmente como trabalhador coletivo. Desde o início, o Modo de Produção Capitalista realiza um papel socializador, reunindo meios de produção e forças de trabalho outrora separados, o que favorece um aumento da produtividade. Mas este salto qualitativo não se efetua senão pela concentração e pela reunião de elementos outrora separados. Não há ainda uma combinação própria da ordem capitalista. É apenas na fase de submissão real que o processo de trabalho vai ser subvertido para dar lugar a uma tecnologia especificamente capitalista. O capital decompõe o antigo processo de trabalho (divisão do trabalho) mas ainda não realiza a combinação dos trabalhos segundo sua própria lógica e a reunião destes num ser coletivo. O processo de trabalho guarda ainda, na fase de submissão formal, a marca das forças de trabalho individuais (habilidade, destreza, qualificação, arte, profissão,...) e o capital ainda não pode fazer totalmente abstração disto. Neste sentido, a realização do operário coletivo face ao capital, ainda não está acabada. É somente com a introdução do maquinismo, na fase de submissão real, que o capital consegue destruir os últimos vestígios da qualidade da força de trabalho, e a unificá-la realmente, forjando uma divisão objetiva do trabalho, especificamente capitalista, cujo elemento principal é a máquina e não o sujeito trabalhador. Do mesmo modo, a separação entre o trabalho agrícola e o trabalho industrial , separação cuja condição é a ruptura total das ligações do homem com a terra, ainda não está acabada no início da fase de submissão formal do trabalho ao capital.

“Não é necessário recordar que os grandes progressos da divisão do trabalho começaram na Inglaterra, depois da invenção das máquinas. Assim, os tecelões e fiandeiros eram, em sua maioria, camponeses como os que encontramos nos países atrasados. O invento das máquinas acabou de separar a indústria manufatureira da indústria agrícola. O tecelão e o fiandeiro, antes reunidos em uma só família, foram separados pela máquina.” (Miséria da Filosofia)

Em “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, Engels descreveu a

situação patriarcal na qual viviam estes operários da indústria camponesa no início da sua submissão ao capital, quando este ainda não tinha realizado o despojamento integral de suas qualidades, de seu saber prático, de sua cultura, e não os tinha ainda inteiramente arrastado no grande turbilhão histórico das revoluções sucessivas do Modo de Produção Capitalista.

“Outrora, à indústria rural a domicílio, associada à cultura de uma horta e de um campo era, ao menos nos países que se desenvolviam industrialmente, a base de uma situação materialmente suportável e por vezes cômoda da classe laboriosa, mas também a razão de sua nulidade intelectual e política.” (grifo nosso). (Engels, A questão da moradia)

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Assim, a situação desses trabalhadores (situação que só os reacionários

como Proudhon podiam esperar encontrar) como a do diarista agrícola no 16 º e 17o. séculos (cf. A . Smith, citado por Marx na “Teorias sobre a Mais-Valia”) podia coincidir com a salva-guarda de uma certa reserva: uma casa, uma pequena horta, um punhado de capim necessário para alimentar uma vaca, e talvez um hectare ou dois de terra agricultável pouco fértil.

A definição do proletário como um sem-reserva deriva necessariamente de seu caráter de assalariado. O salário é destinado a ser gasto e, seja ele alto ou baixo, não deixa de ser a expressão do despojamento absoluto no qual se encontra o trabalhador na sociedade capitalista. Esta miséria e este despojamento crescem constantemente, na medida em que a acumulação do capital não tem outro resultado senão reproduzir cada vez mais a separação da sociedade entre proprietários dos meios de produção, de consumo e de troca, e classe sem-reserva, força de trabalho subjetiva, despojada de suas condições de objetivação.

“No entanto, as circunstâncias mais ou menos favoráveis nas quais reproduz-se e multiplica-se a classe operária, em nada modificam o caráter fundamental da reprodução capitalista. Do mesmo modo que a reprodução simples traz constantemente de volta a mesma relação social – capitalismo e salariado - a acumulação apenas reproduz esta relação numa escala igualmente progressiva, com mais capitalistas (ou maiores capitalistas) de um lado e mais assalariados do outro. A reprodução do capital engloba a de seu grande instrumento de valorização, a força de trabalho. Acumulação do capital é portanto, simultaneamente, crescimento do proletariado”. (O Capital, livro I, seção 7, XXV)

“Miséria”, no nosso vocabulário programático rigoroso, não significa baixo

salário, significa que a força viva do proletariado, a força produtiva da espécie humana volta-se incessantemente contra ele para explorá-lo. Na fase de submissão formal onde o modo de produção capitalista ganha ainda em extensão, pode ocorrer que a taxa de salário seja favorável ao operário (no século 15, por exemplo, e na primeira metade do século 18), mas isto não altera em nada o caráter da produção capitalista e não pode ir além de certos limites.

“Nas condições de acumulação, até agora admitidas, as mais favoráveis aos operários, sua dependência para com o capital reveste-se de formas toleráveis, ou como diz Eden, de formas “cômodas e liberais”. Em vez de ganhar em intensidade, a exploração e a dominação capitalistas ganham simplesmente em extensão, na medida em que cresce o capital, e com ele o número de seus vassalos. Então ele se apresenta aos vassalos, sob a forma de pagamentos, uma porção importante de seu próprio produto líquido, sempre crescente e progressivamente capitalizado de modo que eles podem mesmo ampliar seus gastos, melhor se alimentarem, vestirem mobiliarem, etc... e formar pequenas reservas de dinheiro. Mas um melhor tratamento, alimentação mais abundante, roupas mais limpas e um maior pecúlio não eliminam as correntes da escravidão, nem as do salariado. O

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movimento ascendente conferido aos preços do trabalho pela acumulação do capital prova, ao contrário que a corrente de ouro, à qual o capitalista retém o assalariado preso e que este, não pára de forjar, foi por demais alongada para permitir um afrouxamento de tensão. Nas controvérsias econômicas sobre esse assunto, esquece-se o ponto principal: o caráter específico da produção capitalista. Nesta, com efeito, a força operária não se compra com a finalidade de satisfazer diretamente, pelo seu serviço ou seu produto, as necessidades pessoais do comprador. O que este se propõe é enriquecer-se valorizando seu capital, produzindo mercadorias em que fixa mais trabalho do que ele paga e cuja venda realiza então uma parte do valor que não lhe custou nada. Produzir mais-valia é a lei absoluta desse modo de produção. A força operária só é vendável enquanto conserva os meios de produção como capital e cria para o capitalista, acima de tudo um fundo de consumo e um capital adicional. Sejam elas pouco ou mais favoráveis, as condições de venda da força operária, implicam a necessidade de sua revenda contínua e a reprodução progressiva da riqueza capitalista. É da natureza do salário colocar sempre em movimento uma certa quantidade de trabalho gratuito. O aumento do salário nada mais indicado que uma diminuição relativa do trabalho gratuito que deve ser fornecida pelo operário; mas esta diminuição não pode jamais chegar ao ponto de prejudicar o sistema capitalista”. (Capital I, 7, XXV)

Durante a fase de submissão formal do trabalho ao capital, este tem apenas

duas possibilidades para impedir esta “diminuição relativa do trabalho gratuito que o operário deve fornecer”, do qual fala Marx: seja diminuir o salário abaixando o preço da força de trabalho abaixo de seu valor, seja alongar a jornada de trabalho. (Na fase formal a valorização do capital apóia-se principalmente sobre a extorsão da mais-valia absoluta). Nos dois casos, o papel do Estado é primordial. Esta fixa o máximo de salário e tenta recuar os limites da jornada de trabalho. Ele se esforça igualmente em constituir e manter uma superpopulação absoluta, a fim de fazer pressão sobre o salário da classe operária. Na fase de submissão formal o capital não dispõe ainda de uma tecnologia específica favorecendo a baixa do valor da força de trabalho. Assim, este valor é relativamente fixo nesta fase, dado que o único verdadeiro meio para abaixar o valor da força de trabalho é modificar os elementos constitutivos necessários à sua reprodução. Assim, o capital substitui os ingredientes consumidos anteriormente pela classe operária por outros menos custosos e de pior qualidade. No que concerne a alimentação, isto se verifica com a questão do alimento de base. Este torna-se vegetal com o estabelecimento do modo de produção capitalista e, no curso da fase de submissão formal, o consumo de carne e de produtos animais em geral sofre uma baixa violenta (este foi dividido por 7 na Alemanha no curso do 16o. e 17o. séculos) – cf. também a introdução da batata na alimentação.

Dado que esta baixa do valor da força de trabalho encontra entretanto limites, o capital recorre ao alongamento da jornada de trabalho para aumentar a taxa e a massa de mais-valia. Todavia, para chegar a isto o capital encontra limites naturais e sociais, não dispondo ainda do maquinismo para impor sua dominação sobre a classe operária. Além disso, o capital procura abaixar o preço

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da força de trabalho (salário) abaixo de seu valor. A redução do salário abaixo do valor da força de trabalho, ligado à tendência à redução deste mesmo valor, pela modificação dos elementos que garantem a reprodução da força de trabalho, concorrem para abaixar o salário real. A degradação de seu nível de vida, que entrava a reprodução normal da força de trabalho do proletariado, e a usura excessiva devido ao alongamento da jornada de trabalho implicam que o proletariado seja reduzido a uma pauperização absoluta. Pode até ocorrer que o salário caia abaixo do mínimo fisiológico, impedindo a renovação das gerações de operários e, ameaçando a própria existência da classe e de seus descendentes. Se, na fase formal propriamente dita, o capital ainda encontra limites para realizar plenamente estas tendências, eles desaparecem com o início da fase real (quando esta se caracteriza pelo aumento da produtividade e pelo alongamento da jornada de trabalho: aumento simultâneo da mais-valia absoluta e da mais-valia relativa.

2.3. A SUPERPOPULAÇÃO ABSOLUTA.

Marx mostrou, contra Malthus, e conforma a dialética da história, que não existe lei universal da população, mas que cada época histórica possui sua própria lei da população. O capital tem necessidade de uma população excedente para fazer pressão sobre os salários e assegurar seu processo de acumulação, mas esta população excedente não assume a mesma forma nas duas fases de produção capitalista. Na fase de submissão formal do trabalho ao capital, existe uma superpopulação absoluta, pois ela provém de um crescimento positivo da população operária ultrapassando os limites da riqueza em vias de acumulação. O aumento da população operária é mais rápido do que o da demanda de força de trabalho necessária à acumulação. Este aumento da população operária não é redutível ao simples fator do aumento natural da população; é necessário considerar igualmente o afluxo de população proveniente de formas de produção pré-capitalistas destruídas pelo capital no curso de seu movimento ; os movimentos migratórios entre as nações, o excedente da imigração em relação a emigração operária reforçando a superpopulação; as variações do número das classes de idade admitidas a vender sua força de trabalho (por exemplo, variação na idade da escolaridade, a duração do serviço militar, a idade da aposentadoria).

Esta superpopulação faz pressão sobre os salários, mas o capital tem dificuldades para manter esta pressão de maneira permanente. É um dos limites do qual falamos acima e que permite à classe operária, em certas condições favoráveis, elevar seu salário real. Quando o ritmo da acumulação é rápido e implica um aumento da demanda de força de trabalho mais rápido que a oferta, a superpopulação diminui e os salários tenderão a se elevar. Este caso é tanto mais freqüente na fase formal onde a taxa de acumulação é elevada, seu ritmo rápido, dado que a taxa de lucro é elevada e coincide com a taxa de mais-valia. Como nesta fase o capital acumulado consiste quase que exclusivamente em capital variável, a demanda de população operária é ainda mais importante. Esse movimento cíclico prossegue assim: a elevação dos salários reage por sua vez sobre a taxa de lucro diminuindo-a e, por conseguinte, o ritmo da acumulação

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desacelera-se até que a demanda de força de trabalho, novamente superior à oferta, dilate outra vez a superpopulação absoluta, restabelecendo a pressão sobre os salários. “Ora, é um excesso de capital proveniente da acumulação acelerada que torna o trabalho oferecido relativamente insuficiente e tende portanto a elevar seu preço. Ora é uma desaceleração da acumulação que torna o trabalho oferecido relativamente superabundante deprimindo seu preço. O movimento de expansão e de contração do capital em vias de acumulação produz portanto, alternadamente, a insuficiência ou a superabundância relativas do trabalho oferecido; mas não é nem um decréscimo absoluto ou proporcional do tamanho da população operária que torna o capital excedente no primeiro caso, nem um acréscimo absoluto ou proporcional ao tamanho da população operária que torna o capital insuficiente no outro caso. (...)

A relação entre a acumulação do capital e a taxa de salário é apenas a relação entre o trabalho gratuito convertido em capital e o adicional de trabalho pago exigido por este capital adicional para ser acionado. Não se trata portanto de uma relação entre dois termos independentes um do outro, ou seja, de um lado a grandeza do capital e do outro o tamanho da população operária, mas em última análise de uma relação entre o trabalho gratuito e o trabalho pago da mesma população operária. Se a quantidade de trabalho gratuito que a classe operária fornece e a classe capitalista acumula cresce do modo suficientemente rápido para que sua conversão em capital adicional necessite de um adicional extraordinário de trabalho pago, o salário sobe e, as demais circunstâncias permanecendo as mesmas, o trabalho gratuito diminui proporcionalmente. Mas, assim que esta diminuição chega ao ponto em que o sobretrabalho que alimenta o capital não parece mais ser oferecido em quantidade normal, ocorre uma reação, uma parte menor do rendimento se capitaliza, a acumulação desacelera-se e o movimento ascendente do salário sofre um contragolpe. O preço do trabalho não pode portanto jamais elevar-se a não ser entre limites que deixam intactas a base do sistema capitalista e asseguram sua reprodução numa escala progressiva”. (Marx, O Capital, livro I, seção 7, cap. XXV)

Os doutos reformistas que ficam na cabeceira do leito do capitalismo moderno acreditam trazer soluções definitivas para o problema do “desemprego”, embora só considerem os aspectos relevantes da superpopulação absoluta. A queda da natalidade, ao mesmo tempo em que provoca as lágrimas natalícias, traz a esperança de uma reabsorção das camadas à procura de emprego. Os ataques desavergonhados das putas da direita, da esquerda ou do meio contra a franja imigrada do proletariado também vão neste sentido. Os urubus dividem o trabalho entre si, uns tomando medidas de expulsão, outros (como os Partidos Comunistas francês, italiano, etc...) exigindo o fechamento das fronteiras. O capital pode muito bem viver na ilusão de que estas medidas contribuirão para “reabsorver definitivamente” o “desemprego”. Isto não impede que os duros ataques que desfecha contra a classe operária o levarão posteriormente a esbanjar ataques ainda mais duros e mais temíveis. Mesmo assim, ele não conseguirá impedi o retorno da crise catastrófica.

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2.4. A PASSAGEM DA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL À FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL.

No curso desta passagem histórica aumenta a exploração que sofre o proletariado e portanto sua miséria. Nesta passagem, que corresponde à introdução ao maquinismo, e que Marx chama de “lua de mel” do capital, este se lança numa exploração desenfreada do proletariado. A máquina é o meio mais eficaz para disciplinar e reunir em brigadas o trabalhador para desqualificar a força de trabalho, para encarnar a potência do capital frente ao operário. O resultado da introdução das máquinas em larga escala foi arrastar mulheres e as crianças na produção, a fim de torná-los apêndices da máquina. No que diz respeito ao salário, isto implica que doravante será necessário o salário de 4 ou 5 pessoas para sustentar a família, quando antigamente uma pessoa, o chefe de família, sustentava 4 ou 5.

“Tornando supérflua a força muscular, a máquina permite o emprego de operários sem grande força muscular, mas cujos membros são mais flexíveis ainda que seu desenvolvimento seja incompleto. Quando o capital se apoderou da máquina, seu grito foi: ao trabalho mulheres, ao trabalho crianças! Esse meio poderoso de diminuir o trabalho do homem transforma-se imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados, submetendo todos os membros da família sem distinção de idade e de sexo, sob o jugo do capital. O trabalho forçado para o capital usurpou o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre realizado para sustento da família, sendo que o suporte econômico dos costumes familiares residia neste trabalho doméstico. O valor da força de trabalho era determinado pelas despesas de subsistência do operário e de sua família. Lançando a família no mercado, distribuindo assim sobre várias forças o valor de uma só, a máquina a deprecia. Pode ser que as quatro forças que uma família operária vende agora lhe rendam mais do que antes, quando apenas o chefe trabalhava; mas agora 4 jornadas de trabalho substituíram uma só, e seu preço caiu na proporção do excesso de sobretrabalho de quatro em relação ao sobretrabalho de um só. Agora é preciso que 4 pessoas forneçam não apenas trabalho, mas ainda trabalho extra para o capital para que uma só família possa viver. É assim que a máquina aumenta simultaneamente o grau de exploração, aumentando a matéria humana explorável." (O Capital, livro I, seção 3, cap. XV)

No decorrer desta passagem, o capital não impôs nenhum limite à

horrorosa degradação das condições de vida da classe operária. Na sua extraordinária sede de mais-valia, o capital combinava a extração de mais-valia relativa, com a de mais-valia absoluta, prolongando desmesuradamente a jornada de trabalho, confundindo a noite e o dia, etc...

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Ao mesmo tempo, o modo de produção capitalista acaba de destruir os últimos vestígios de vida patriarcal para os operários, concentrando-os em grandes massas nas cidades.

“Para apreender a ligação íntima entre a fome que tortura as camada mais trabalhadoras da sociedade e a acumulação capitalista com seu corolário, o sobreconsumo grosseiro ou refinado dos ricos, é necessário conhecer as leis econômicas. A situação muda completamente quando se trata das condições do domicílio. Todo observador desinteressado vê perfeitamente que, quanto mais os meios de produção se concentram em uma grande escala, mais os trabalhadores se aglomeram em um espaço estreito; que, quanto mais rápida é a acumulação do capital mais as habitações operárias tornam-se miseráveis. Com efeito, é evidente que as melhorias e os embelezamentos das cidades – conseqüência do aumento da riqueza – como a demolição dos bairros mal construídos a construção de palácios para bancos, entrepostos, etc., e o alargamento das ruas para a circulação comercial e para as diligências de luxo, a implantação de estradas de ferro no interior, etc., sempre expulsam os pobres para confins cada vez mais insalubres. Por outro lado, cada um sabe que o encarecimento das moradias dá-se em razão inversa de sua qualidade e que as minas da miséria são exploradas pela especulação com muito mais lucros e menores custos do que o foram as minas de Potosi”. (O Capital, livro I, seção 7 , cap. XXV)

Não são apenas as condições da habitação13 que se agravam à medida em

que chega nas cidades industriais uma massa de material humano explorável, mas também todas as condições de reprodução da força de trabalho, vestuário, alimentação, etc... Marx descreve longamente no livro I d’O Capital as falsificações dos alimentos como o pão. Na fase de submissão real já amadurecida efetua-se a mesma falsificação, mas em grande escala e graças aos serviços da química, em princípio, o pão e outros alimentos não estão mais cheios de baratas, de pó, de fragmentos de madeira e outras porcarias, mas de substâncias tóxicas, cancerígenas, etc...

Como tudo mais, na fase de submissão real, a própria miséria é mistificada. A negritude da miséria reveste-se das cores da ciência.

Como vimos, no primeiro capítulo, o pleno estabelecimento da fase de submissão real e o processo de pauperização relativa que lhe é inerente, só aparecem completamente quando a luta encarniçada da classe operária, para salvaguardar sua existência física de classe (ameaçada a tal ponto que até o interesse do capital apela para sua preservação), impõe a redução da jornada de trabalho. A partir de então, o capital precipita-se impetuosamente sobre a produção de mais-valia relativa, combinando o acréscimo da intensidade e da produtividade do trabalho.

13 Num dos próximos números de nossa revista em língua portuguesa, dedicado à questão agrária, abordaremos mais detalhadamente a questão da moradia e da renda urbana.

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2.5. FASE DE SUBMISSÃO REAL: PAUPERIZAÇÃO RELATIVA.

Com o desenvolvimento do ser-capital, a classe operária no seu conjunto (o trabalho tornou-se uma força coletiva social) sofre o jugo de um monstro animado, que ela contribui para reforçar incessantemente face ao qual se encontra cada vez mais desmunida. A posição social da classe operária degrada-se cada vez mais em relação à da classe capitalista (e de seus lacaios) e à da potência do monstro impessoal capitalista. “1. A perpetuação das condições de trabalho enquanto propriedade de outro perpetua sua situação de assalariado, e portanto sua sorte, consistindo em trabalhar constantemente de modo gratuito para uma terceira pessoa durante uma parte de seu tempo de trabalho; 2. a ampliação dessas condições de produção, ou seja, a acumulação do capital, aumenta a massa e a amplitude das classes que vivem de seu sobretrabalho; ele deteriora sua situação relativamente aumentando a riqueza relativa do capitalista e de seus associados, aumentando além disso seu sobretrabalho relativo pela divisão do trabalho, etc... e reduzindo a parte do produto bruto que se converte em salário; enfim, pelo fato de que as condições de trabalho se amontoam de uma forma cada vez mais gigantesca, afirmam-se crescentemente como potências sociais, face ao trabalhador individual e que, por conseguinte desaparece a possibilidade fortuita de apropriar-se destas, como na pequena indústria”. (Teoria sobre a Mais-Valia)

Podemos caracterizar esta degradação constante como pobreza ou pauperização “relativas”, com a condição de bem precisar que o termo “relativo” não significa a possibilidade de diminuição dos antagonismos entre proletariado e classe capitalista, mas ao contrário seu crescimento, aumento da polarização da sociedade. O debate stalinista sobre a pauperização absoluta OU relativa é um absurdo: na fase de submissão formal do trabalho ao capital, a classe proletária é absolutamente pobre frente às condições da produção das quais ela foi despojada e que lhe faz em face como uma força hostil; na fase de submissão real do trabalho ao capital reforça-se cada vez mais o jugo sob o qual pena a classe proletária, e aumenta a potência que a explora. É nesse sentido que podemos dizer que embora a classe proletária seja de chofre totalmente miserável, posteriormente sua situação piora relativamente, pois o capital só pode sobreviver pilhando cada vez mais as forças criadoras da riqueza: o proletariado e a natureza. A força produtiva do trabalho humano transforma-se no seu contrário.

“A lei segundo a qual uma massa sempre maior de elementos constituintes da riqueza pode, graças ao desenvolvimento contínuo dos poderes coletivos do trabalho, ser colocada em ação com um dispêndio de força humana cada vez menor, esta lei que coloca o homem social na condição de produzir em maior quantidade com menos esforço, torna-se no meio capitalista – onde não são os meios de produção que estão a serviço do trabalhador, mas o trabalhador que está a serviço dos meios de produção – em lei contrária – ou seja, quanto mais o trabalho ganha em recursos e potência, mais existe pressão dos trabalhadores

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sobre seus meios de emprego, mais a condição de existência do assalariado, a venda de sua força de trabalho torna-se precária”. (Capital, livro I, seção 7, cap. XXV)

Os imensos progressos da produtividade e da intensidade do trabalho realizados no curso da fase de submissão real, permitem colocar uma maior quantidade de mercadoria à disposição do operário, isto é, permitem aumentar o salário real ao mesmo tempo em que abaixam constantemente o salário relativo. Marx explica, em “Trabalho Assalariado e Capital”, o que é o salário relativo:

“Ora, nem o salário nominal, ou seja, a soma de dinheiro pela qual o trabalhador se vende ao capitalista, nem o salário real, isto é, a soma de mercadorias que ele pode comprar com este dinheiro, esgotam as relações implicadas no salário. O salário também é antes de tudo, determinado pela relação em que ele se encontra com o seu ganho, com o lucro do capitalista. É o salário proporcional, relativo. O salário real exprime o preço do trabalho em relação ao preço de outras mercadorias; o salário relativo, ao contrário exprime o preço do trabalho imediato em relação ao trabalho acumulado, o valor variável da parte respectiva do capitalista e do trabalhador”.

Na fase de submissão real, dado o constante aumento da produtividade e

intensidade do trabalho, o salário relativo tende a diminuir. De outra parte, o salário é o salário do ciclo industrial, ou seja, ele é válido para toda a classe, e não para o indivíduo isolado. O que significa que as melhorias que a classe pode obter nos períodos de prosperidade mal compensam a degradação de suas condições de vida na fase descendente do ciclo. Ou seja, para que a classe operária possa obter na totalidade do ciclo um salário equivalente ao valor da força de trabalho, seria necessário que ela tivesse obtido, nos períodos de expansão por meio de uma luta encarniçada e graças a circunstâncias favoráveis um salário superior ao valor da força de trabalho.

“A primeira destas leis (da economia, NDR) é que a concorrência reduz o preço de toda mercadoria ao mínimo de seus gastos de produção. Assim, o mínimo de salário é o preço natural do trabalho. E o que é o mínimo de salário? É apenas o necessário para fazer produzir os objetos indispensáveis à sustentação do operário, para colocá-lo em condições de se alimentar bem ou mal e de propagar sua raça. Não acreditemos por isso que o operário terá apenas este mínimo e que sempre o terá.

Não. Conforme esta lei, a classe operária será por vezes mais feliz, terá mais que o mínimo. Mas este excedente será apenas o suplemento do que ela terá a menos do que o mínimo, nos momentos de estagnação industrial. Isto quer dizer que, num certo lapso de tempo que sempre é periódico no círculo descrito pela indústria, passando pelas vicissitudes da prosperidade da superprodução, da estagnação da crise, contando tudo que a classe operária terá a mais ou a menos em relação ao necessário veremos em suma que ela não terá tido nem mais nem menos que o mínimo; isto significa que a classe operária só se terá conservado

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como classe à custa de inúmeras infelicidades, misérias e cadáveres abandonados no campo de batalha industrial. Mas que importa? A classe sempre subsiste e, melhor ainda, sempre aumentará.” (Discurso sobre o livre-câmbio)

É assim que evolui, ao longo do ciclo, o salário da classe na sua totalidade. No entanto, também deve-se levar em conta as diferenças de salário no seio da classe. Os fundamentos desta diferenciação permitem a uma parte da classe operária, sua aristocracia, obter um salário superior ao valor da força de trabalho, enquanto que a outra parte contenta-se com um salário inferior. O conjunto da classe operária não pode vender sua força de trabalho a seu valor (quanto mais acima dele), a não ser o preço de uma luta encarniçada e sempre reiniciada que, longe de ser sustentada pelos sindicatos tornados órgãos do capital na fase de submissão real, é sistematicamente entravada por eles. Ademais, não se pode esquecer que o salário da parte ativa do exército industrial deve ser dividido pela totalidade do exército industrial, ou seja, incluindo o exército de reserva.

2.6. A SUPERPOPULAÇÃO RELATIVA.

Com base na produção capitalista amadurecida, vai surgir uma superpopulação qualificada de relativa, pois provém do fato de que uma parte da população operária é liberada pelo próprio movimento do capital, o que lhe permite livrar-se de uma massa relativamente grande de proletários, servindo-se destes para pressionar os salários do conjunto da classe.

“A demanda efetiva de trabalho sendo regulada não apenas pela grandeza do capital variável já em ação, mas ainda pela mídia de seu crescimento contínuo, a oferta de trabalho permanece normal enquanto prosseguir este movimento. Mas, quando o capital variável cai para uma média de crescimento inferior , a mesma oferta de trabalho até então normal torna-se doravante anormal, superabundante, de modo que uma fração mais ou menos considerável da classe assalariada tendo deixado de ser necessária para a valorização do capital e tendo perdido sua razão de ser, tornou-se agora supérflua, excedente. Como este jogo continua a se repetir com a marcha ascendente da acumulação, esta arrasta atrás de si uma superpopulação crescente. A lei do decréscimo proporcional do capital variável e da diminuição correspondente na demanda de trabalho relativa tem portanto, como corolários, o acréscimo absoluto do capital variável e o aumento absoluto da demanda de trabalho numa proporção decrescente e finalmente, por completo, a produção de uma superpopulação relativa. Chamamos esta de “relativa” pois ela provém não de um acréscimo positivo da população operária que ultrapassaria os limites da riqueza em vias de acumulação, mas, pelo contrário, de um crescimento acelerado do capital social que lhe permite livrar-se de uma parte mais ou menos considerável de seus operadores. Como esta sobrepopulação só existe em relação às necessidades momentâneas da exploração capitalista, ela pode inchar-se e reforçar-se de modo súbito.

Ao produzir a acumulação do capital e à medida que ela o consegue, a classe assalariada produz portanto, por si mesma, os instrumentos de sua

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retração ou de sua metamorfose em superpopulação relativa. Esta é a lei da população que distingue a época capitalista e corresponde a seu modo de produção particular. Com efeito, cada um dos modos históricos da produção social possui também sua própria lei de população, lei que só se aplica a ele, que possa com ele e que só tem por conseguinte um valor histórico. Uma lei de população abstrata e imutável só existe para a planta e para o animal, e ainda só quando não sofrem a influência do homem.” (O Capital – Livro I, seção 7, cap. XXV)

É somente com a fase de submissão real do trabalho ao capital que este consegue manter permanentemente, a existência de um exército de reserva industrial, do qual lança mão em função de suas necessidades e das vicissitudes de acumulação.

“Se a acumulação, o progresso da riqueza sobre a base capitalista, produz necessariamente portanto uma superpopulação operária, esta torna-se por sua vez a mais possante alavanca da acumulação, uma condição de existência da produção capitalista no seu estado de desenvolvimento integral. Ela forma um exército de reserva industrial que pertence ao capital de modo tão absoluto, como se ele o tivesse educado e disciplinado por conta própria. Este exército fornece às suas necessidades de valorização oscilantes e independentemente do acréscimo natural da população, a matéria humana sempre explorável e sempre disponível. A presença desta reserva industrial, sua reentrada ora parcial, ora geral, no serviço ativo e, posteriormente, sua reconstituição numa escala mais ampla, tudo isto é fruto da vida acidentada atravessada pela indústria moderna, com seu ciclo decenal mais ou menos regular – a não ser alguns solavancos irregulares – de períodos de atividade ordinária, de produção sob alta pressão, de crise e de estagnação. Esta marcha singular da indústria, que não encontramos em nenhuma época anterior da humanidade, era igualmente impossível na infância da produção capitalista. O progresso técnico era então lento, generalizando-se de modo mais lento ainda, e as mudanças na composição do capital social mal foram sentidas. Simultaneamente, a extensão do mercado colonial recém-criado, a multiplicação correspondente das necessidades e dos meios de atendê-las e o surgimento de novos ramos de indústria ativavam, com a acumulação, a demanda de trabalho. Embora lento, do ponto de vista de nossa época, o progresso da acumulação chocou-se contra os limites naturais da população e veremos mais tarde que estes só foram alargados por força de golpes de Estado. É apenas sob o regime da grande indústria que a produção de um excesso de população torna-se um agente regular da produção de riquezas.” (O Capital – livro I, seção 7, cap. XXV)

Um dos traços específicos da fase real é o desenvolvimento da ciência e

sua incorporação à produção, principalmente por meio do capital fixo. Assim, as manifestações potenciadas do próprio trabalho do operário erguem-se frente a ele, incorporadas ao capital, contribuindo para distanciar cada vez mais o proletariado

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de seu ser humano. Nesta fase, o peso do trabalho morto – capital constante – cresce; disto resulta uma mudança na composição orgânica do capital, que tende a crescer. Segue-se que uma menor quantidade de força de trabalho passa a ter condições de movimentar um capital constante idêntico, ou mesmo maior. Diminui a parte do trabalho vivo no valor criado; por conseguinte, o crescimento do capital constante não exige um aumento proporcional da classe operária. Este é o processo pelo qual é engendrada a superpopulação relativa.

Graças ao exército de reserva, o capital pode frear as pretensões da classe operária e fazer com que os salários caiam abaixo do valor da força de trabalho. Com efeito, a existência de uma fração não ocupada da classe operária não implica um alívio para a parte ativa, pelo contrário, significa o reforço de sua exploração.

“O excesso de trabalho imposto à fração da classe assalariada que se encontra em serviço ativo engrossa as fileiras da reserva e, ao aumentar a pressão que a concorrência desta última impõe à primeira, força-a a sofrer mais docilmente as ordens do capital.(...) A condenação de uma parte da classe assalariada à ociosidade forçada não apenas impõe à outra um excesso de trabalho que enriquece os capitalistas individuais, mas ao mesmo tempo, e em benefício da classe capitalista, mantém o exército industrial de reserva em equilíbrio com o progresso da acumulação.” (O Capital – I, 7, XXV)

As formas da superpopulação relativa são as seguintes:

1o. Superpopulação flutuante – operários que entram e saem das usinas conforma a evolução da técnica e a divisão do trabalho diferente que se desenvolve. Trata-se de operários rejeitados pelo aumento da composição orgânica do capital (expulsos tendencialmente do processo de produção imediato), mas que são novamente empregados nos ramos em expansão, a tal ponto que “o processo de atração acaba levando a melhor sobre o processo de repulsão”. (Marx) 2o. A forma latente da superpopulação relativa existe quando a repulsão da força de trabalho não e compensada por uma atração suficiente (é o caso da agricultura, por exemplo, quando se considera os operários industriais chegados do campo quando encontram condições favoráveis). É na agricultura que se manifesta melhor esta forma latente da superpopulação relativa, na medida em que a acumulação do capital nela diminui de modo absoluto a massa dos operários necessários. 3o. Superpopulação estagnante – raramente necessária para a grande indústria – trabalhadores a domicílio, operários com atividades marginais cujos salários são muito baixos. Esta forma estagnante caracteriza-se pelo fato de que só é empregada de modo sazonal, e em diversas atividades (trabalho temporário na agricultura, por exemplo). Segundo uma pesquisa recente do órgão burguês “A

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Expansão”, a Europa contaria atualmente com cerca de 10 milhões de proletários desta espécie. 4o. Pauperismo oficial. Trata-se aqui de uma última categoria do exército de reserva industrial, que divide-se em três grupos: a) desempregados crônicos, embora aptos para o trabalho, cuja massa varia com o ciclo industrial; b) “crianças de pobres que recebem assistência e órfãos”; c) finalmente, os operários e operárias cuja qualificação foi destruída, que foram “desmonetarizados” e cuja idade é muito elevada, além das “vítimas diretas da indústria – doentes, estropiados, viúvas...” 5o. Fora da classe operária, e naquilo que se denomina “lumpen-proletariado”, delinqüentes, prostitutas, bem como aqueles que vivem d e expedientes de todo tipo: vagabundos, mendigos, etc... Embora freqüentemente utilizados pela burguesia para suas tarefas de baixo galão, estes elementos podem vir a ser arrastados atrás do proletariado no turbilhão da revolução social. (cf. Manifesto).

Como vimos, o exército de reserva contribui para pressionar os salários do conjunto da classe operária. Além disso, sua manutenção cabe ao resto da classe, o que se traduz para ela por um aumento de exploração. Aqui, devemos considerar igualmente um elemento importante de nossa teoria no que diz respeito ao salário: o salário global da classe deve ser dividido pelo conjunto da classe operária (exército ativo+exército de reserva industrial). Contrariamente ao que afirmam os stalinistas e outros trotskistas, não foi uma das menores derrotas do proletariado do que se ter deixado arrancar o monopólio da manutenção de seu exército de reserva e das suas camadas mais deserdadas. Às caixas de solidariedade, fundos de seguros, etc, assumidos pelos próprios operários por meio dos sindicatos e das cooperativas operárias, sucedeu a gestão pelo Estado e pelos sindicatos integrados ao capital do conjunto destes mecanismos. Assim, o Estado-capital possui doravante um meio suplementar de controlar o salário operário.

A existência de uma superpopulação relativa desempenha igualmente um papel entre as causas que contrarestam a queda da taxa de lucro. Como sempre, as mesmas causas que provocam a queda da taxa de lucro geram a possibilidade de freá-la. A elevação da composição orgânica ao mesmo tempo em que gera a queda da taxa de lucro, libera uma superpopulação relativa que contribui para pressionar os salários, rebaixando-os e, por conseguinte, reerguendo a taxa de lucro. Além disso, também existe uma massa permanente de população disponível para uma acumulação do capital em novos ramos e, mais particularmente, naqueles que vão necessitar de uma grande massa de trabalho vivo. As indústrias de luxo, por exemplo, que desenvolvem-se com a fase de submissão real e que vão permitir o consumo por parte das classes médias assalariadas. O desenvolvimento destes ramos com forte presença de trabalho vivo (embora sem produzir mais-valia relativa diretamente) contribui igualmente para contrarrestar a queda da taxa de lucro. O inchaço das classes médias, característica da fase de submissão real, também pode ser caracterizado como

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superpopulação, que pode ser qualificada de improdutiva e que Marx, que tinha perfeitamente previsto este fenômeno, descreve assim:

“A produção fundada sobre o capital tem, invariavelmente, como condição a maior massa absoluta de trabalho necessário, ao mesmo tempo que a maior massa relativa de sobretrabalho. Sua condição essencial é, portanto, o crescimento máximo da população – da força de trabalho viva. As condições do desenvolvimento das forças produtivas e de trocas têm como complemento o crescimento da população: divisão do trabalho, cooperação, observação universal, que qualquer uma multidão incomensurável de indivíduos, ciência e o maior número possível de centros de troca. Além disso, a apropriação de sobretrabalho de outrem supõe a existência de uma superpopulação inativa, por oposição à população necessária, ou seja, a população que representa o trabalho necessário para a produção. Além da superpopulação industrial, ligada aos capitalistas industriais, o capital suscitou ao longo de sua evolução posterior, uma superpopulação de puros consumidores. O grande negócio destes ociosos é consumir os produtos de outrem e, como o consumo de artigos correntes tem seus limites, precisam de produtos mais refinados, ou seja, de produtos de luxo. Quando os economistas falam de superpopulação, é claro que nunca consideram este excedente de ociosos. Pelo contrário, os fanáticos das questões de população consideram com justa razão – que esta população é necessária... para o consumo. A expressão superpopulação visa exclusivamente a mão-de-obra, ou seja, a população necessária. Mas isto não decorre logicamente da natureza do capital?” (Marx, Grundrisse)

Esta superpopulação improdutiva tem por objetivo realizar uma parte da

mais-valia, permitindo assim diferir a crise de superprodução regulando temporariamente a acumulação do capital; estas camadas cuidam igualmente da vida do capital (atividade científica, processo de circulação do capital, etc...)14.

Uma das medidas da ditadura do proletariado, única medida que fornece todo o sentido e toda a razão à redução da jornada de trabalho, é a generalização do trabalho produtivo, da obrigação do trabalho manual para todos os membros da sociedade. É com esta condição apenas que se poderá reduzir o trabalho “a uma medida normal, proporcional à idade e ao sexo dos assalariados”. (Marx) A ditadura do proletariado subverterá também a esfera produtiva capitalista, já que 90% da produção hoje é parasitária e anti-social, desperdício desenfreado de forças produtivas humanas.

2.7. A ÚNICA RIQUEZA HUMANA É O COMUNISMO.

14 Voltaremos mais detalhadamente sobre estas questões nas teses dedicadas às classes médias e à crise. (cf. capítulos 7 e 9)

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O próprio fato de que, no modo de produção capitalista, o conjunto das condições da população afrontem o trabalhador de maneira hostil e estranha, mostra que o objetivo e o sentido da atividade humana foi completamente invertido. A vida produtiva da espécie, sua vida genérica, tornou-se meio da vida individual.

A máquina, este meio maravilhoso de reduzir o tempo de trabalho necessário é o meio mais seguro para nela acorrentar o proletariado. As forças produtivas do trabalho humano desenvolvidas de maneira inaudita tornam-se meios de pilhagem e de destruição da natureza e da espécie humana, em vez de favorecer a apropriação da natureza e das riquezas humanas. O tempo livre da humanidade, esta riqueza que permitirá concretamente, graças às medidas enérgicas da ditadura do proletariado, o salto do reino da necessidade para o da liberdade, é atualmente apropriado pelas classes médias para ser desperdiçado. Assim, o preço do desenvolvimento da riqueza humana em geral é o despojamento total da classe proletária, que representa a espécie humana. Para reapropriar-se desta riqueza – reapropriar o ser humano, englobado na comunidade do capital – o proletariado terá que realizar sua tarefa histórica: a revolução comunista mundial, destruição pela violência e pelo terror da comunidade do capital. A amplitude desta revolução será proporcional ao seu atraso na cena histórica, pois quanto mais pobre realmente for o proletariado, mais o ser humano é potencialmente rico, MAIS PRÓXIMA ESTÁ A REVOLUÇÃO COMUNISTA A NÍVEL MUNDIAL.

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3. O FETICHISMO DO CAPITAL

A questão do fetichismo próprio ao modo de produção capitalista é um momento vital de nossa teoria comunista e não, como afirmam os imbecis, a expressão de restos idealistas ou hegelianos no seio desta. Com efeito, não basta desvendar as relações de exploração, é necessário mostrar ainda porque os proletários que são confrontados a elas não entram imediatamente em revolta; deve-se mostrar quais são os pontos de apoio das mistificações e ideologias burguesas, se se pretende evitar a explicação idealista, que só vê cinismo e enganação no poder da burguesia; deve-se explicar a possibilidade de fenômenos como o reformismo, se não se pretende cair na explicação pela traição dos chefes. É por isso que fornecemos a seguir alguns elementos teóricos a fim de ver como, no curso das duas fases do modo de produção capitalista, reforça-se a ilusão de que as relações capitalistas são relações naturais, a-históricas.

3.1. O FETICHISMO DA MERCADORIA. 3.1.1. Apesar do fetichismo da mercadoria ser característico da produção mercantil simples e da circulação simples, ele constitui o fundamento dos fenômenos mistificadores que se expressam no modo de produção capitalista. Aliás, é por esta razão que Marx aborda esta questão desde os primeiros capítulos da primeira seção do livro I do Capital. Na medida em que diz respeito à circulação simples e, portanto à toda sociedade onde se trocam regularmente mercadorias, é falso considerar o capítulo sobre o fetichismo da mercadoria, no livro I do Capital, como a descrição da extraneização (alienação) 15 acabada tal qual ela se realiza no modo de produção capitalista amadurecido. Este capítulo explica o que ocorre quando o valor impõe-se aos homens como regulador de sua atividade. Por conseguinte, este capítulo contém o núcleo da teoria do fetichismo, pois mostra seu fundamento real, a inversão da atividade humana dominada pelo valor. Deve ser portanto ligado ao conjunto da obra comunista para se perceber a realização desta inversão e a dominação do proletariado pelo capital. Ao mesmo tempo, em que mostra o fundamento de todo o processo, este capítulo mostra onde e como se efetuará a crítica pelas armas do proletariado e a destruição de todo germe de mistificação: na destruição do valor. 3.1.2. A maior parte dos teóricos que estudaram este capítulo procurando uma explicação da mistificação acabada do capital, não souberam colocar em evidência o salto qualitativo que ocorre com a passagem da produção mercantil para a produção capitalista. Assim, Lukacs por exemplo, não soube, não

15 A extraneização (entfremdung) é o processo durante o qual o capital, tendo comprado a força de trabalho do proletário, procura valorizar-se, tentando extorquir-lhe o máximo de mais-valia. Ou seja, a extraneização é a forma sob a qual efetua-se a atividade do operário: sob uma forma estranha e não-humana. Ela é sofrida unicamente pelo proletário, no seio do processo de produção. Ela é o fundamento de toda mistificação do capital.

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conseguiu dar conta desta passagem no curso da qual o fetichismo da mercadoria realiza-se em fetichismo do capital, e a fortiori no curso das duas fases da produção capitalista. Esta subestimação da potência mistificadora do capital conduziu entre outros, Lukacs a avançar teses iluministas sobre a questão da consciência de classe. Apesar de uma vontade real por parte de Lukacs de trabalhar no sentido de uma restauração integral do programa comunista, a não-junção entre o movimento revolucionário na área eslava e aquele na área ocidental teve conseqüências terríveis sobre este movimento de reapropriação da teoria revolucionária. Por um lado, “desvios idealistas” dos Korsch, Lukacs, Pannekoek, etc..., do outro, o materialismo burguês dos Lenine, Zinoviev, que permaneceram prisioneiros do cientismo à la Kautsky em muitos pontos. Quanto a Isaac Rubin (que escreve quando a vaga revolucionária perde fôlego e quando a contra-revolução está a ponto de triunfar definitivamente)16, ele confunde sistematicamente os livros I e III do Capital e aplica pura e simplesmente as características do fetichismo da mercadoria ao modo de produção capitalista desenvolvido. Ora, a circulação simples não é um estágio, nem uma fase histórica, mas designa metodologicamente uma sociedade composta de indivíduos proprietários de seus meios de produção, cujo objetivo não é mais a produção de valores de uso, mas de valores de troca. Estes indivíduos entram em contato uns com os outros por meio da troca, o caráter social de seus trabalhos é assegurado pela mediação da troca e este caráter social assume a forma de uma relação entre coisas.

“A descoberta científica feita posteriormente de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são a expressão pura e simples do trabalho humano despendido na sua produção, marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipa de modo algum a fantasmagoria que faz aparecer o caráter social do trabalho como um caráter das coisas, dos próprios produtos. O que vale apenas para esta forma de produção particular, a saber a produção mercantil: que o caráter social dos trabalhos os mais diversos consiste na sua igualdade como trabalho humano, e que este caráter social específico reveste uma forma objetiva, a forma valor dos produtos do trabalho; este fato, para o homem preso nas engrenagens e nas relações de produção das mercadorias, parece antes como depois da descoberta da natureza do valor, tão invariável e de uma ordem tão natural quanto a forma gasosa do ar, que permaneceu a mesma antes e depois da descoberta de seus elementos químicos.” (O Capital, livro I, seção I, cap. IV)

3.2. O FETICHISMO DO CAPITAL NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL. 3.2.1. A característica principal da fase de submissão formal do trabalho ao capital é que o processo de trabalho permanece idêntico ao que era nas formas 16 Cf. “Ensaios sobre a teoria do valor de Marx”.

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anteriores de produção, mas é doravante submetido ao processo de valorização capitalista.

Já nesta fase afirma-se a natureza particular do modo de produção capitalista, como modo de produção onde o trabalhador está separado das condições da produção como pura força de trabalho subjetiva, afrontando-as enquanto capital. Por conseguinte, o capital já aparece como condição “sine qua non” da atividade produtiva e esta não mais parece emanar da força de trabalho viva.

“Mesmo na relação permanente formal – válida em geral para toda produção capitalista, pois esta conserva, mesmo no seu pleno desenvolvimento, as características de seu modo pouco evoluído – os meios de produção, condições materiais do trabalho, não estão submetidos ao trabalhador, é este que lhes é submetido: é o capital que emprega o trabalho. Nesta simplicidade, esta relação coloca em evidência a personificação dos objetos e a reificação das pessoas.” (Um capítulo inédito do capital)

Vimos o que caracterizava o fetichismo da mercadoria, é uma relação social

entre os homens que assume para eles a aparência de uma relação das coisas entre si. Do mesmo modo, o modo de produção capitalista, isto é, uma relação determinada entre os homens, aparece como uma relação entre objetos e pessoas, ou seja, esta relação histórica e transitória aparece como uma propriedade social natural dos objetos.

No modo de produção capitalista, o proletariado afronta sua própria força vital como uma força hostil e estranha, que o domina, sob forma de capital. Este processo manifesta-se como reificação das pessoas e como personificação das coisas (isto é, das condições de produção). O proletário sofre a dominação das coisas e sua atividade produtiva, doravante alienada, reforça constantemente o poder destas coisas. Segue-se que todas as capacidades produtivas do homem transformam-se em propriedades do capital e esta reificação das pessoas é dialeticamente acompanhada pela personificação das coisas, que começam a agir “como se estivessem possuídas pelo demônio”. Estas coisas, investidas da atividade produtiva humana, parecem dotadas de vida.

“O dinheiro não pode tornar-se capital se não for trocado contra força de trabalho, mercadoria vendida pelo próprio operário. Por seu lado, o trabalho só pode aparecer como trabalho assalariado se suas próprias condições objetivas lhe fazem frente como potências autônomas, propriedade de outrem, valor em si e para si, em suma, enquanto capital. Por conseguinte, quando o capital no seu aspecto material (ou enquanto valor de uso) só pode compor-se das condições objetivas do próprio trabalho, sob seu aspecto formal, estas devem opor-se ao trabalho como potências autônomas, estranhas, como valor (trabalho materializado) que se reporta ao trabalho vivo, como simples meio de sua própria conservação e de seu próprio crescimento”. (Um capítulo inédito do Capital)

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3.2.2. Esta situação contraditória e invertida, longe de aparecer como tal, e irracional, apresenta-se, graças ao fetichismo do capital, como o processo normal e natural da vida humana. O processo de exploração, longe de aparecer imediatamente aos olhos de todos, é mistificado e o capital parece produzir ele mesmo o valor.

“Intervém também a mistificação inerente ao capitalismo: a força de trabalho, conservadora do valor, aparece como força do capital que se conserva a si mesma; a força de trabalho criadora de valor aparece como a força do capital que se valoriza por si mesma. No conjunto, e por definição, o trabalho materializado aparece como empregador do trabalho vivo.” (Idem)

Este fetichismo reforça-se consideravelmente na fase de submissão real.

3.3. O FETICHISMO DO CAPITAL NA FASE DE SUBMISSÃO REAL. 3.3.1. Com esta fase, como mostra Marx, não são apenas as coisas, mas as

formas sociais do trabalho que afrontam o operário de maneira hostil.

“Mas esta relação torna-se ainda mais complicada e aparentemente mais misteriosa. Com o desenvolvimento do modo de produção propriamente capitalista, as coisas diretamente materiais não são as únicas a se erguer enquanto “capital” contra o trabalhador. Também opõem-se a ele as formas do trabalho socialmente evoluído, como a cooperação, a manufatura (divisão do trabalho), a fábrica (o trabalho socialmente organizado como base no maquinismo), que são formas próprias do desenvolvimento do capital e, por conseguinte, as forças produtivas que delas decorrem – inclusive a ciência e as forças naturais. De fato, a unidade na cooperação a coordenação na divisão do trabalho, a utilização produtiva das forças naturais e da ciência, assim como dos produtos do trabalho no maquinismo, tudo isto aparece, frente aos trabalhadores individuais, como objetos estranhos, meros meios de trabalho que não dependem deles e dominam-nos, meios que, na sua forma simples e tangível (matérias-primas, instrumentos, etc.) , são para eles funções do capital, portanto do capitalista.” (idem)

3.3.2. Com o surgimento de um processo de trabalho especificamente capitalista, tal qual é forjado na fase de submissão real do trabalho ao capital, o fenômeno segundo o qual é o capital que aparece como produtivo e não mais o trabalho, vai encontrar uma base material adequada, capaz de multiplicar infinitamente sua potência. Doravante, com o maquinismo, há todo um fundamento material (capital fixo) com o qual aprofunda-se a reificação. Verifica-se a adequação da relação social (valor que domina o trabalhador) e da relação material (tecnologia especificamente capitalista). No maquinismo, o capital, que tornou-se monstro animado, afronta o trabalhador e sua todas as suas forças vitais, a fim de

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aumentar a extorsão de mais-valia, enquanto que o operário só aparece como um simples apêndice de máquina. “A apropriação do trabalho vivo pelo trabalho materializado – forma ou atividade valorizante pelo valor em si – é inerente ao conceito de capital; ela pertence à produção mecânica como o próprio caráter do processo de produção, em função dos elementos e do movimento materiais deste processo. Este deixou de ser um processo de trabalho submetido do trabalho enquanto fator único e dominante. Em numerosos pontos do sistema mecânico, o trabalho aparece mais como o simples órgão consciente de trabalhadores individuais e vivos. Disperso, subordinado ao processo conjunto do maquinismo, é um mero elemento de um sistema cuja unidade reside não no indivíduo, mas na máquina viva (ativa), vista como um possante organismo frente à atividade individual e insignificante do trabalhador. Através da máquina, o trabalho materializado opõe-se ao trabalho vivo no próprio processo de trabalho; ele é a potência dominante representada pelo capital enquanto apropriação do trabalho vivo. Ademais, a realização do processo de trabalho como simples elemento de valorização do capital é materialmente confirmada pela transformação do instrumento de trabalho em máquina, e do trabalho vivo em simples acessório ou agente desta.”

O processo de exploração que, no modo de produção capitalista, só é sofrido pelo PROLETARIADO, assume necessariamente – e isto nas duas fases de produção capitalista – a forma de reificação das pessoas e da personificação das coisas. Com a fase real, desenvolve-se uma base material própria para reforçar a reificação – personificação. Por outro lado, este fenômenos são levados a seu auge, pois as formas sociais do trabalho aparecem como formas do desenvolvimento do capital, forças produtivas do capital. Todos os caracteres sociais que o desenvolvimento histórico capitalista imprime ao trabalho (cooperação, divisão do trabalho, operário coletivo, maquinismo, ciência, etc.) surgem como qualidades inerentes ao capital e, em conseqüência, voltam-se contra o operário.

“As formas sociais de seu próprio trabalho, ou as formas de seu próprio trabalho social, são totalmente independentes dos trabalhadores individuais. Submetidos ao capital, os trabalhadores tornam-se um elemento destas formas sem que estas lhes pertençam. Elas apresentam-se a eles como sendo orgânicas ao capital, dele resultantes e nele incorporadas, inteiramente distintas da força de trabalho isolada dos trabalhadores. Por um lado, este caráter torna-se mais real à medida em que o trabalho, ele mesmo modificado por estas formas, torna-se impotente enquanto força independente, fora de sua ligação com o capital, a ponto de ver quebrada sua capacidade produtiva autônoma; por outro, à medida em que as condições devidas ao desenvolvimento do maquinismo dominam o trabalho, no plano tecnológico, ao mesmo tempo em que substituem-no elas esmagam-no e tornam-no supérfluo sob suas formas independentes.” (Marx – Um capítulo inédito do capital)

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3.3.3. Todo este processo aparece como natural, o fetichismo do capital é elevado ao seu auge. Todas as classes da sociedade fetichizam o capital, mas só o proletariado é explorado, só ele se encontra confrontado a esta inversão que engendra a personificação das coisas e a reificação das pessoas. É somente como classe revolucionária, com sua constituição em partido comunista, que o proletariado pode se libertar deste fetichismo e entrar numa luta de classe revolucionária consciente contra o capital. A fetichização do capital pelas diferentes classes impede de ver nas relações capitalistas de produção outra coisa que relações naturais, normais, etc... Assim, o capital vê sua dominação preservada. É esta realidade alienada (isto é, a realidade capitalista tal qual aparece como realidade natural) que vai ser teorizada pela ideologia burguesa.

O ideólogo não é simplesmente um falsário, mas ele estabelece, no melhor dos casos, expressões teóricas adequadas a esta realidade alienada, sem jamais poder ultrapassar os limites que lhe impõe o fetichismo do capital. Se os maiores teóricos da burguesia, como Hegel ou Ricardo, souberam realizar uma obra científica e foram mais a fundo no estudo desta realidade alienada, eles foram incapazes de compreender por quais processos esta realidade torna-se alienada.

“A economia clássica tem o grande mérito de ter posto um fim a toda esta fantasmagoria, a esta individualização e a es ta ossificação dos diversos elementos sociais da riqueza, a esta personificação das coisas e a esta transformação das relações de produção em coisas; ela destruiu esta religião profana reduzindo o juro a uma parte do lucro, e a renda a um excedente acima do lucro médio, se bem que ambos se confundem na mais-valia; representando o processo de circulação como uma simples metamorfose de formas; enfim, reduzindo, no processo direto da produção , o valor e a mais-valia das mercadorias ao trabalho. No entanto, os melhores porta-vozes desta escola não deixam de permanecer e não poderia ser diferente do ponto de vista burguês – prisioneiros deste universo ilusório que destruíram por sua crítica, e assim quase todos caíram em inconseqüências, em meias verdades, em contradições insolúveis. Em conseqüência é perfeitamente natural que os agentes reais da produção sintam-se perfeitamente à vontade nestas formas alienadas e irracionais: capital-juro, terra-renda fundiária, trabalho-salário, pois são precisamente as manifestações deste universo ilusório onde se movem e onde encontram sua ocupação diária. Não é portanto menos natural que a economia vulgar, que em suma é apenas a tradução didática mais ou menos doutrinal, das idéias familiares aos agentes da produção, e que sabe colocar uma certa ordem racional nisto, encontra precisamente nesta trindade desprovida de toda coerência interna o fundamento natural e indubitável de suas nulidades pomposas.” (Capital, livro III, seção 7, cap. XXV)

3.3.4. O fetichismo do capital inclui igualmente – e assim ele se encontra completado – as formas fenomenais revestidas pelo capital no processo de

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circulação. Aqui, todas as mediações reais são ocultadas escondendo totalmente os fundamentos da ordem social capitalista.

“Já evidenciamos o caráter mistificador das mais simples categorias do modo de produção capitalista, inclusive da produção mercantil, da mercadoria e da moeda, mistificação em virtude da qual as condições sociais, às quais os elementos materiais da riqueza servem de base na produção, são transformados em propriedades destas mesmas coisas (mercadorias), mistificação que consegue também fazer das próprias relações de produção uma coisa (dinheiro). Todos os tipos de sociedade, quando atingem o estágio da produção mercantil e da circulação monetária, participam desta perversão. Mas é no modo de produção capitalista e sob o reino do capital, sua categoria dominante e sua relação de produção determinante, que este mundo invertido e enfeitiçado desenvolve-se plenamente. Se consideramos inicialmente o capital no processo de produção imediato como um meio de extorquir sobretrabalho, esta relação é ainda muito simples, e os próprios capitalistas, agentes deste processo, não podem ignorar o acorrentamento real do qual ainda têm consciência. A violenta luta para limitar a duração da jornada de trabalho é uma prova flagrante disso. No entanto, mesmo nesta esfera onde o processo desenvolve-se diretamente entre o trabalho e o capital, as coisas não são tão simples. À medida em que a mais-valia relativa desenvolve-se no sistema especificamente capitalista, e que a produtividade social do trabalho cresce, as forças produtivas e as conexões sociais do trabalho parecem se desligar do processo produtivo e passar do trabalho ao capital. O capital torna-se assim um ser misterioso pois todas as forças produtivas do trabalho social parecem nascer no seu seio e pertencer-lhe, nada sendo deixado ao trabalho como tal. A seguir intervém o processo de circulação onde as mudanças materiais e formais afetam todas as partes do capital, seja ele agrícola, na medida mesmo em que se desenvolve o modo de produção especificamente capitalista. É uma esfera onde as condições nas quais o valor é primitivamente produzido passam inteiramente para segundo plano.” (Capital, livro III, seção 7, cap. XXV)

3.3.5. Por conseguinte, com o processo de circulação do capital adequado à fase de submissão real, a mistificação se reforça. Com a passagem à fase real realiza-se a passagem da taxa de mais-valia para a taxa de lucro, ou seja, não se relaciona mais a mais-valia ao capital variável, como é o caso na fase formal, onde o trabalho vivo predomina e onde o capital constante é pouco desenvolvido, mas com a totalidade do capital: c+v.

Enquanto que na fase formal, podemos considerar do ponto de vista teórico que as mercadorias são vendidas pelo seu valor, na fase de submissão real, elas são vendidas pelo seu preço de produção. Sabemos também que a formação do valor de produção de mercado implica uma diferença entre a mais-valia produzida e a mais-valia realizada. Esta fenômeno amplifica-se ainda mais com a passagem ao preço de produção de mercado.

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Com a perequação da taxa de lucro estabelece-se um lucro médio que camufla a ligação entre a exploração da classe operária e o lucro obtido.

É sobre estes fenômenos, que se apresentam na superfície da produção capitalista, que se apóia a teoria econômica vulgar (isto é, todos os economistas posteriores a Ricardo), que renuncia a ir além da aparência dos fenômenos do modo de produção capitalista.

“Não é somente na aparência, mas efetivamente, que o preço médio das mercadorias difere aqui do seu valor, e portanto do trabalho realizado nelas; e o lucro médio de um capital particular difere da mais-valia que este capital extorquiu aos operários que ele emprega. O valor das mercadorias só se manifesta diretamente na influência que exercem as mudanças de produtividade do trabalho sobre a alta e a baixa dos preços de produção, sobre seus movimentos, mas de modo algum sobre seus limites últimos. Aparentemente, o lucro só é determinado de maneira acessória pela exploração direta do trabalho: na medida em que esta permite aos capitalistas, diante dos preços reguladores de mercado que parecem existir independentemente desta exploração, realizar um lucro que se distancia do lucro médio. Os próprios lucros médios normais parecem ser uma virtude imanente do capital e independente da exploração. A exploração anormal ou ainda a exploração média em condições excepcionalmente favoráveis só parecem condicionar os desvios em relação ao lucro médio e não este mesmo lucro médio. (Idem)

Com esta última frase, que nós sublinhamos é fornecida ao mesmo tempo a

explicação e a condenação de todos os reformistas, esquerdistas, autogestionários e outros inimigos da classe operária. Estes só “lutam” só convidam o proletariado para lutar tentando controlá-lo por meio de partidos reformistas, sindicatos, etc... contra a exploração “excessiva”, “anormal”, os superlucros, etc..., entregando de pés e mãos amarradas o proletariado à exploração “normal”, “ordinária” e quotidiana, da qual vivem o modo de produção capitalista e os crápulas que ele nutre. 3.3.6. A ligação entre a extração de mais-valia, a exploração da classe operária e o lucro, é ainda encoberta pois para os agentes ordinários da produção, o lucro parece resultar de sua habilidade em comerciar, de sua astúcia, sua chance, e de todas as eventualidades próprias às flutuações do mercado. De outra parte, mesmo os capitais investidos nestas esferas que não produzem mais-valia (comércio, serviços, etc... ) rendem um lucro. Donde a ilusão de que mesmo as classes médias , doravante assalariadas, fornecerão um trabalho produtivo, o que permite negar o papel específico do proletariado. 3.3.7. Esta ocultação de todas as ligações reais no processo de trabalho criador de mais-valia realiza-se com o capital portador de juros. Enquanto que o lucro ainda guarda a lembrança de sua origem, este não é mais o caso do juro.

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“Se na origem, o capital apareceu na superfície da circulação sob seu aspecto fetichista, como valor criador de valor, ele reaparece, agora enquanto capital produtivo de juros, sob sua forma mais alienada e mais significativa. É por isso que a fórmula “capital-juros” associada à “terra-renda” e a “trabalho-salário” é mais lógica que “capital-lucro”, pois, no lucro, subsiste sempre uma reminiscência de sua origem, que não somente é apagada no juro, mas opõe-se diametralmente a esta origem”. (Capital, livro III, seção 7 , cap. XXV) 3.3.8. Os economistas partem dos três rendimentos: salário, lucro (juro) e renda e os relacionam a 3 fontes diferentes: trabalho, capital e terra. Eles são incapazes de ver as mediações pelas quais a totalidade da mais-valia se reparte. Na medida em que cada uma destas fontes parece produzir um rendimento, todo o caráter histórico da produção capitalista é negado em bloco.

“Nesse sentido a fórmula capital-juro (lucro), terra-renda, trabalho-salário, é de uma igual e simétrica incongruência. Com efeito, o trabalho assalariado não aparece como uma forma socialmente definida do trabalho, mas todo trabalho apresenta-se por natureza como trabalho assalariado (é desse modo pelo menos que se apresentam as coisas a todo o indivíduo prisioneiro das relações de produção capitalistas). Por esta razão as formas sociais específicas investidas pelos meios materiais de trabalho (meios de produção criados e terra) frente ao trabalho assalariado (que inversamente supõem a existência prévia deste último) são identificados assim, sem outra análise, a estes meios de trabalho sob o aspecto material sob o qual existem ou com sua forma no processo real de trabalho, sem relação com qualquer forma social, historicamente determinada, e mesmo sem relação com qualquer forma social deste processo que seja. Por conseguinte, esta forma dos meios de trabalho, que para o trabalho é uma forma alienada, que se tornou autônoma frente a ele, o resultado de uma evolução esta forma onde os meios de produção criados convertem-se em capital e a terra em terra monopolizada, em propriedade fundiária, esta forma portanto, que pertence a um período histórico determinado, identifica-se à existência e à função dos meios de produção criados e da terra, no processo de produção em geral. Estes meios de produção são em si, por sua natureza, capital; capital, é simplesmente a “denominação econômica” destes meios de produção, assim como a terra é em si, por sua natureza a terra monopolizada por um certo número de proprietários fundiários.” (idem)

Toda a dialética do desenvolvimento histórico encontra-se portanto negada,

e a burguesia encontra, na base mistificada da realidade social a justificativa para a perenização de suas relações de dominação:

- O trabalho surge necessariamente e naturalmente como trabalho assalariado.

- Os meios de produção aparecem necessariamente como capital.

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- Finalmente, a terra parece produzir rendimento (renda), do mesmo modo que produz capim.

“Finalmente, o capital, fonte autônoma da mais-valia, é acompanhado pela propriedade fundiária, que limita o lucro médio e transfere uma parte da mais-valia para uma classe que não trabalha nem explora diretamente os trabalhadores. Ela também não pode, analogamente ao capital portador de juro, invocar edificantes justificativas morais, como o risco e o sacrifício acarretados pelo empréstimo do capital. A partir do momento em que uma parte da produção de mais-valia parece ligar-se aqui, diretamente, não mais a condições sociais, mas a um elemento natural, a terra, a alienação e a ossificação recíprocas das diferentes partes da mais-valia atingem então sua forma acabada, a ligação interna é rompida para sempre, sua fonte é completamente obstruída e isto precisamente por causa da separação recíproca e definitiva das relações de produção ligadas aos diversos elementos materiais do processo de produção.” (O Capital, livro III, seção 7, cap. XXV)

3.3.9. Com base nesta realidade completamente arrevesada e mistificada onde o “Senhor Capital e a Senhora Terra” dançam sua ronda de fantasmas, vão desenvolver-se uma série de expressões teóricas e ideológicas (economia política, filosofia hegeliana, etc...) adequadas a este mundo arrevesado, mas incapazes de desvendar o fetichismo do capital e de explicar a origem deste mundo, ou, incapazes de explicar como as próprias relações de produção são produzidas (economia política).

Se as classes possuidoras, graças ao fetichismo do capital acreditam (e isto reforça seu poder) na eternidade de seu reino, o proletariado, quando dispõe de seu órgão de classe, o partido comunista, está em condições de superar a mistificação, de apreender as formas capitalistas como formas transitórias e de enunciar seu objetivo histórico: abolição do salariado e de todas as categorias mercantis. 3.3.10. “Ao expor deste modo a reificação das relações de produção e como estas tornam-se autônomas em relação aos agentes da produção, não estamos mostrando detalhadamente como as interferências do mercado mundial, suas conjunturas, o movimento dos preços de mercado, os períodos de crédito, os ciclos da indústria e do comércio, as alternâncias de prosperidade e de crise, aparecem para estes agentes como leis naturais todo-poderosas, expressão de uma dominação fatal e que se manifestam para eles sob o aspecto de uma necessidade cega. Não o mostramos porque o movimento real da concorrência situa-se fora do nosso plano e por que nós temos que estudar aqui apenas a organização do modo de produção capitalista na sua média ideal.” (Idem)

Assim, não são apenas os fundamentos da economia capitalista (o trabalho produtivo criador de mais-valia) que não podem mais ser compreendidos, mas nesta mesma base e considerando todos os efeitos da mistificação o conjunto dos fenômenos sociais torna-se um autêntico mistério. Assim, vão desenvolver-se não

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apenas tentativas de explicação racionais, fatalmente condenadas ao fracasso pois desconhecem as próprias causas da mistificação (economia clássica, filosofia até Hegel), mas também puras e simples justificações vulgares da realidade mistificada (de Dühring a Sarte, uma mesma linha invariante do cretinismo e da nulidade). Todo este cortejo das ideologias modernas apenas reproduz, em palavras ou por escrito, em diversos graus, o próprio conteúdo da mistificação. O capital dispõe doravante de meios adequados para difundir esta ideologia, ou seja, para reforçar a mistificação. Em termos de luta de classes, a mistificação torna-se propaganda, o capital faz sua própria publicidade.

Por si só, a crise catastrófica já arrasa as justificações ideológicas da burguesia e a partir de então, como observava John Reed no seu livro sobre a revolução russa, surge um momento em que cada discurso oficial, cada tomada de posição por parte do poder vigente, cada artigo que faz a apologia da ordem existente, apenas exacerba a ira dos explorados.

3.4. A COMUNIDADE DO CAPITAL 3.4.1. Reconhecemos na espécie humana um caráter comunitário Gemeinwesen), pois a característica fundamental da espécie humana, o que diferencia de todas as outras espécies vivas – é de organizar-se coletivamente para apropriar-se da natureza por meio do trabalho. O homem é um ser social. 3.4.2. Todavia, afirmamos simultaneamente que, uma vez destruída a unidade primitiva (que não se situava no nível da espécie, na sua totalidade, mas no nível de grupos humanos reduzidos e isolados, dispersos no planeta, sem meios de comunicação entre si) , só se poderá reencontrar a unidade da espécie em um nível superior na sociedade comunista, uma vez realizado o arrevezamento violento da ordem existente pela revolução comunista. Enquanto isso, toda a história da humanidade é a da humanidade dividida em classes e, por conseguinte, a história da luta de classes. 3.4.3. No curso deste arco histórico, a unidade da espécie humana face à natureza afirma-se portanto necessariamente de modo negativo, antagônico e contraditório.

No modo de produção capitalista, a espécie humana conhece o despojamento de sua comunidade de modo total, esta afirma-se frente a ela como a comunidade do capital. Mais exatamente, e para evitar qualquer ressonância democrática, a única classe que representa o ser humano, isto é, o proletariado, é totalmente despojada de sua comunidade.

Erguendo-se contra o capital, isto é, quando ele se organiza em partido comunista, o proletariado antecipa a comunidade futura dos homens, unidos num mesmo movimento e com o mesmo objetivo. 3.4.4. Para caracterizar esta comunidade do capital, não se poderia apenas falar de comunidade material, como isto foi feito no n º 2 da revista Invariance, primeira

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série , (1968)17 . Neste texto, com efeito, define-se por comunidade material em primeiro lugar, a falsa unidade que se cria na troca quando os homens entram em relação uns com os outros por intermédio do equivalente geral, o dinheiro. Mais uma vez, faz-se confusão com a circulação simples, é o mesmo problema verificado com o fetichismo. Se a explicação do núcleo do processo de alienação é fornecida pela circulação simples, o movimento ulterior desenvolve, superando-o, este primeiro momento.

Assim, na medida em que se tem uma comunidade material, não se pode falar ainda de uma comunidade capitalista, e na medida em que se tem uma comunidade capitalista, não se pode falar de uma simples comunidade de coisas, de uma comunidade material.

Definir a comunidade do capital como uma comunidade material revela uma limitação. Dá-se muita importância à forma material, mas já mostramos que a forma social submeteu a forma material. 3.4.5. O capital constitui-se em comunidade a partir do momento em que concentra frente ao proletário as forças produtivas do trabalho, suas formas sociais.

A comunidade do capital é a autonomização de todas as forças vitais da espécie humana (do proletariado) sob a forma do capital. A mistificação inerente à comunidade do capital é que esta parece ser a Gemeinwesen humana. 3.4.6. A destruição da extraneização sob todos seus aspectos não pode ser efetuada atacando-se as conseqüências, mas somente às próprias causas. Apenas a destruição do valor pode permitir eliminar as mistificações que ele gera. Destruir as classes a fim de tornar simples e transparentes as relações sociais, tal como ocorrerá na sociedade comunista, é a única maneira de eliminar o misticismo, sob qualquer forma que seja, da vida dos homens.

17 Invariance n º 2 – antiga série – reúne o trabalho dos anos 1964-66, sobre o capítulo inédito do Capital, e, através dele, sobre a periodização do modo de produção capitalista em duas fases e o desdobramento de sua comunidade alienada.

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4. A CIÊNCIA CONTRA O PROLETARIADO

Dentre os instrumentos adequados à dominação real sobre o trabalho forjados pelo capital, a ciência ocupa um lugar de destaque. Longe de liberar a humanidade do jugo das forças naturais, como afirma a ideologia burguesa, a ciência contribui para reforçar o jugo da comunidade do capital sobre o proletariado. Não cabe interrogar-se sobre “a utilização” (boa ou má) da ciência, mas é necessário ver como um momento da praxis humana arreveza-se em seu contrário no Modo de Produção capitalista. O comunismo é crítica radical da ciência, mas é somente graças a uma restauração teórica rigorosa dos princípios comunistas que se poderá limpar os estábulos de Águias do cientismo que desde há muito tempo tem gangrenado o movimento comunista.

4.1. CIÊNCIA E MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA. 4.1.1. O capital é um ser em perpétuo movimento (valor em processo), que revoluciona e amplia constantemente sua base produtiva, no curso de um processo histórico que não se desenrola harmoniosamente, mas ao contrário, através de crises e contradições violentas. Ao longo deste desenvolvimento o capital secreta as expressões e órgãos específicos de sua dominação sobre o trabalho, dentre os quais a ciência, que se constitui definitivamente com o modo de produção capitalista e, mais precisamente, com a fase de submissão real do trabalho ao capital.

A mistificação do capital, que expusemos no capítulo precedente, permite compreender a fetichização da ciência, do progresso técnico, etc... O civilizado de hoje não tem qualquer mérito para ridicularizar seu ancestral primitivo que divinizava a natureza, na medida em que ele diviniza o capital, que emprega todo o saber passado e presente da espécie humana, seu trabalho geral que assume uma forma adequada ao modo de produção capitalista: a ciência. Todo este saber e as forças que o encarnam parecem ser uma propriedade do capital.

“Nesse processo, onde os aspectos sociais do trabalho aparecem de uma certa maneira capitalizados – por exemplo, no maquinismo, os produtos tangíveis do trabalho apresentam-se como dominando o trabalho – o mesmo naturalmente ocorre quanto às forças da natureza e à ciência: produto intelectual geral do desenvolvimento da sociedade, manifestam-se face aos trabalhadores como potências do capital. Elas separam-se, de fato, da habilidade e do saber do trabalhador individual, e se bem que , com relação à sua fonte, elas sejam sempre o produto do trabalho, como incorporadas ao capital”. (Marx, Grundrisse) 4.1.2. O modo de produção capitalista desenvolve de uma maneira gigantesca as forças produtivas, mas ele o faz de maneira contraditória, tendo por objetivo não o livre desenvolvimento das riquezas da espécie humana, mas sua auto-valorização,

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a procura de um máximo de mais-valia. Ora, se o capital desenvolve a “ciência”, o estudo da natureza exterior e dos fenômenos naturais, quantificando-os, é porque seu próprio ser o impele a perseguir seu objetivo e a ultrapassar seus próprios limites.

Mais o capital se desenvolve, mais ele acirra em definitivo suas contradições mortais, mais ele desenvolve as armas que o abaterão e os homens que as manejarão: os proletários. Estes nada têm a esperar da ciência ou do desenvolvimento científico como lhes cantam as numerosas sereias (as quais se poderia qualificar de demo-cientistas, como se verá mais tarde). Ao contrário, sempre foi claro para o proletariado revolucionário, que a humanidade somente gozará da livre disposição de seus recursos, de suas riquezas, de suas forças produtivas universais, de seu corpo inorgânico a natureza, uma vez destruídas as últimas pedras do edifício social capitalista. Nesse combate , a ciência não será poupada.

“Lancemos portanto o grito que deixa perplexos todos aqueles cegados pela sugestão dos pútridos lugares comuns: Abaixo a ciência!” (Bordiga – Reunião de Milão 1962)

4.1.3. “A produção capitalista tende constantemente a superar esses limites inerentes; ela somente consegue isto por meios que erguem novamente estas barreiras, mas numa escala ainda mais formidável. A verdadeira barreira da produção capitalista, é o próprio capital. Eis em que consiste o capital e sua expansão aparecem como o ponto de partida e o fim, como o móbil e o objetivo da produção; [a produção é unicamente produção para o capital] em vez dos instrumentos de produção serem meios para uma realização sempre mais intensa do processo da vida para a sociedade dos produtores.” (Capital, vol. III)

Em conseqüência, se o modo de produção capitalista desenvolve as forças produtivas, a dominação e o controle (relativos) das forças naturais etc... ele o faz tendo como único objetivo o próprio crescimento do capital, a busca de um máximo de mais-valia, a produção e a reprodução das relações capitalistas. É com o mesmo objetivo que o capital desenvolve a ciência, não somente como um meio, mas como um momento orgânico de seu próprio movimento. 4.1.4. Estão portanto absolutamente enganados aqueles que reclamam uma “ciência para o povo”, ou ainda uma “ciência proletária”, assim como aqueles que se opõem às “más utilizações” da ciência. A ciência só pode ser capitalista. Ela é secreção orgânica do capital com o fim de responder às suas necessidades. No capítulo 1, acima, desenvolvemos sobretudo a questão da técnica, do maquinismo, etc... e lembramos que, como dizia Bordiga, há uma “clássica identidade” entre maquinismo e modo de produção capitalista. Quer isto dizer que amanhã, liberada da canga capitalista, a humanidade não utilizaria as máquinas, e assim como não utilizaria as invenções, as descobertas, etc...? É evidente que não: ela utilizará máquinas, invenções, mas subverterá a natureza destas, uma vez destruídas a ciência e a técnica capitalista. Ao contrário, o capital emprega as máquinas dentro de certos limites, impostos pelas exigências da valorização; daí

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que toda uma franja de progresso técnico que permitiria reduzir o tempo de trabalho, não ser aplicada pelo capital.

Suponhamos uma mercadoria cujo valor decompõe-se em 100 c + 500 v + 500 mv = 1100. Admitamos que uma invenção permita, graças à introdução de uma máquina, reduzir pela metade o tempo de trabalho vivo, substituindo assim a antiga máquina que vale 100 c (desconsideremos aqui as matérias-primas). O novo valor da mercadoria será então de X + 250 v + 250 mv , onde X representa o valor da nova máquina. O capitalista somente introduzirá a máquina se os custos de produção forem reduzidos do seguinte modo, ou seja: 250 v + X for inferior a 500 v + 100 c = 600; conseqüentemente o valor máximo da máquina deve ser inferior a 350 c. Ao contrário, no comunismo leva-se em conta a totalidade do tempo de trabalho e não apenas a parte que corresponde ao capital variável no modo de produção capitalista. Portanto, no comunismo a máquina será introduzida conquanto diminua o tempo de trabalho global necessário para produzir o produto em questão. Portanto , se 250 “v” + 250 “mv” + X for inferior a 1.100.

Conseqüentemente uma máquina que represente 400 horas de trabalho não será posta em funcionamento no modo de produção capitalista, mas o será no comunismo.

Este aspecto não limita o alcance da revolução comunista no que concerne à introdução de máquinas. Poder-se-á decidir pela utilização de uma máquina “não rentável”, isto é, que representará para a sociedade um pouco mais de trabalho mas que permitirá a supressão do caráter penoso ou perigoso de certos trabalhos.

Se efetivamente a máquina “é inocente das misérias que ela provoca” toda sua morfologia, seu modo de funcionamento (e não apenas sua utilização, palavra com a qual os democratas enchem a boca), são determinados pelo modo de produção capitalista e serão revolucionados. Não se trata, portanto, de saber se os “resultados” da ciência são “bem” ou “mal” aplicados (oh moral! Você nos escraviza!) 18 , mas de ver que a ciência inteira (no seu objeto, nos seus objetivos,

18 É sabido que o capital destrói a moral. Não é de surpreender que os critérios para julgar o “bom” ou “mal” uso da ciência, seu caráter “liberador ou opressivo”, “humano ou capitalista”, “produtivo ou destrutivo”, sejam guiados por imperativos que levam em conta somente o valor de uso. Ora, para o capital o valor de uso só tem interesse enquanto suporte do valor, quer se trate de manteiga ou de canhões, nada muda. No modo de produção capitalista é produtivo o que produz mais-valia, o que contribui (mesmo contraditoriamente) para a valorização do capital. Pode-se perguntar como o maniqueísmo democrático explica o fato, por exemplo, de que sejam os militares quem desenvolvem atualmente certos ramos “ecológicos” da ciência, tais como a oceanografia, o estudo da linguagem dos peixes, etc... Que estas pesquisas se façam para fins militares (submarinos, radares,...) não impede que elas contribuam para “fazer avançar a ciência”, mesmo que a exploração destes domínios seja útil para o capital. Nesse sentido, os militares americanos têm estimulado e desenvolvido (e não apenas utilizado) certos ramos das ciências ditas humanas, tais como a antropologia, desovando incessantemente uma torrente de estudos sobre as sociedades primitivas as práticas religiosas e místicas das regiões onde efetua-se a intervenção americana. Como disse Engels, uma necessidade social engendra mais descobertas do que o fariam dez universidades. Em virtude de uma necessidade capitalista (aqui ligada às intervenções do imperialismo), engendram-se efetivamente descobertas graças à colaboração ativa de pesquisadores, de dezenas de Universidades, ainda que pacifistas, democratas e, por que não, anti-militaristas!

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no seu método, na sua organização) é específica do modo de produção capitalista, inteiramente determinada pelas exigências da valorização do capital.

4.2. CIÊNCIA E SUCESSÃO DAS FORMAS DE PRODUÇÃO. 4.2.1. Ao inverso, nas formas de produção anteriores ao modo de produção capitalista o trabalho geral não assume a forma da ciência. No modo de produção capitalista, além de se constituir em esfera separada, a ciência tende apenas a poder apreender adequadamente o que é quantitativo. Nisto ela é perfeitamente conforme a um modo de produção fundado exclusivamente no valor de troca.

“Forma da riqueza geral, valor de troca que se tornou autônomo, o dinheiro não é capaz de qualquer movimento que não seja o quantitativo: ele só pode aumentar, segundo seu conceito, ele é a quintessência de todos os valores de uso mas ele é apenas uma grandeza de valor determinada de ouro ou prata: assim seu limite quantitativo está em contradição com sua qualidade. É por ser da sua natureza querer superar incessantemente seu próprio limite”. (Marx – Fragmento da versão primitiva à Crítica da economia política)

4.2.2. Para compreender a sucessão das diferentes etapas do conhecimento humano ligado aos momentos sucessivos da apropriação da natureza pelo homem, seria necessário retomar a direção do trabalho empreendido pela Esquerda Comunista da Itália em Milão, em 1962, intitulado “Programa do comunismo integral e teoria marxista do conhecimento”, onde a Esquerda, lançando “uma vista de conjunto sobre nossas reuniões”, tentava ligar as questões ditas “filosóficas” – entre as quais a da ciência figura em lugar de destaque – à sucessão das formas e modos de produção no curso do desenvolvimento da espécie humana.

Pode-se dizer com efeito que o conhecimento ( se se entende por isso a totalidade dos conhecimentos teórico-práticos da espécie humana em um dado momento de sua história) é sempre tributário da forma de comunidade que o homem mantém com ele mesmo e com a natureza inorgânica.

Na origem da história humana, o homem vive em comunidade direta (tribo), baseada nos laços sanguíneos e em estreita unidade com uma natureza que ele não domina, mas a qual ele se subjuga. Esta unidade do homem com o homem e do homem com a natureza só é possível então graças ao frágil desenvolvimento das forças produtivas. No entanto todo alargamento da base produtiva, todo crescimento das forças produtivas (entre as quais o “conhecimento”, transmissão do saber prático da espécie) , ameaça o quadro estreito da comunidade, rompe-o e a partir desse momento a apropriação da natureza pela espécie humana efetuar-se-á de uma maneira antagônica e contraditória que atinge seu auge com o modo de produção capitalista. 4.2.3. O homem não pode produzir, isto é objetivar-se, sem entrar e manter-se em contato estreito com a “natureza” exterior (ou seja, tudo o que não é seu próprio

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corpo). Assim, sua atividade assume a forma da humanização da natureza e, dialeticamente naturalização do homem. Esta objetivação realiza-se através de vários elementos:

- A capacidade subjetiva do trabalhado. - Os órgãos objetivos criados e mantidos pelo trabalho. - A natureza exterior na sua forma já modificada pelo homem. - As relações determinadas dos produtores entre si.

“O que é realmente “acumulado” não enquanto massa morta, mas enquanto elemento vivo, é a habilidade do trabalhador, o grau de desenvolvimento do trabalho. Todavia o que Hogdeskin não sublinha, porque face às concepções grosseiras dos economistas importa-lhe enfatizar o sujeito, ou seja, o que há de subjetivo no sujeito, por oposição à coisa; o nível de desenvolvimento da força produtiva do trabalho, de que se parte em cada caso, não existe apenas enquanto disposição, capacidade do trabalhador, mas ao mesmo tempo, nos órgãos objetivos que este trabalho criou para si e renova quotidianamente. E é este o verdadeiro elemento primeiro que constitui o ponto de partida, e este elemento primeiro é o resultado de um desenvolvimento. Acumulação é aqui assimilação, manutenção contínua e ao mesmo tempo transformação do que já foi transmitido, do que é realizado. É dessa maneira que Darwin fez da “acumulação” por hereditariedade em todo o mundo orgânico, vegetal e animal, o principal motor de formação deste mundo, se bem que os diversos organismos constituem-se por “cumulação” e são somente “invenções” dos sujeitos vivos acumuladas pouco a pouco. Mas isso não é o único elemento prioritário para a produção. No animal e na planta é a natureza que lhes é exterior , portanto, tanto a relação não orgânica quanto sua relação com outros animais ou plantas. O homem, que produz em sociedade, encontra igualmente uma natureza já modificada (também, particularmente, o elemento natural transformado em órgão de sua própria atividade) e relações de terminadas aos produtores entre si. Esta acumulação é, em parte, o resultado do processo histórico, em parte, para o trabalhador individual, transmissão de conhecimento prático”. (Teorias sobre a Mais-valia)

4.2.4. É somente no modo de produção capitalista que nos encontramos numa situação onde a própria força viva do proletariado (da espécie humana) lhe escapa, para concentrar-se frente a ele numa força hostil e dominadora. Se esse fenômeno não se manifesta nas formas e modos de produção anteriores é que aí o valor ainda não está autonomizado e que a principal característica dessas sociedades é estreiteza da base da produção social. Na antiguidade a execução do trabalho por uma massa de escravos proporciona aos cidadãos o lazer de dedicar-se às artes, à filosofia, à ciência, que ainda não se apresentam na sua separação acabada mas sim estreitamente imbricadas entre si. Pitágoras liga os números e a música (ritmo) por exemplo, do mesmo modo que Platão liga todas as expressões da atividade intelectual entre si no seu projeto de educação

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(cf. “A República”). Mas o mais importante, o que é ao mesmo tempo um produto e um pressuposto da estreiteza das condições da reprodução, “a aplicação das ciências naturais à produção material era ainda desconhecida”. (Marx)

No feudalismo (forma terciária de produção) a estreiteza das condições da produção caracteriza-se pelo localismo e ainda pela predominância do valor de uso no processo de produção. O trabalho do artesão é fim em si, e não simples meio, guardando portanto um caráter “semi-artístico” . (Marx)

Mas o mais importante é que ele conserva para si uma forma de comunidade derivada do trabalhador (artesão) em relação à sua ferramenta a seu instrumento de produção, e em conseqüência, à compreensão do instrumento e de seu manejo. O homem permanece possuidor de tudo isso, o que não é uma simples característica do processo de trabalho, mas uma marca característica da sociedade feudal, como sociedade, onde não se realizaram ainda todas as condições da separação da espécie com sua própria práxis. A dotação produtiva exprime-se também como transmissão do conhecimento prático, técnicas, truques do ofício... e na época feudal é o círculo estreito da corporação , com os segredos e os ritos de iniciação que constitui o quadro estreito através do qual se efetua essa transmissão.

4.2.5. De fato, é somente na sociedade comunista que a humanidade poderá se beneficiar plenamente dos resultados de um processo social milenar, englobando num mesmo fundo comum à totalidade das gerações humanas, a totalidade das “descobertas”, desde a do fogo, há milhares de anos, à da fissão do átomo.

4.3. TRABALHO GERAL E CIÊNCIA 4.3.1. Designamos por trabalho geral (universal) o conjunto das invenções, descobertas, etc... que forma essa riqueza ao mesmo tempo ideal e prática, patrimônio social comum da humanidade, que cada geração contribui para enriquecer e no qual ela se nutre amplamente a fim de assegurar a continuidade do processo de reprodução social. 4.3.2. É importante sublinhar que esse trabalho é o patrimônio comum de todas as gerações; ele forma um dos componentes essenciais da Gemeinwesen humana.

Como mostra Marx, ele é portanto diferente do trabalho coletivo, que supõe a cooperação entre os vivos, mas, ao mesmo tempo, eles estão intimamente ligados, ou seja: o trabalho geral só pode objetivar-se pelo trabalho coletivo.

“Notemos que é necessário distinguir entre o trabalho geral e o trabalho em comum. Ambos desempenham um papel no processo de produção, os dois se interpenetram, mas, no entanto, os dois se diferenciam. O trabalho geral é todo trabalho científico, toda descoberta, toda invenção. Ele tem por condição quer a cooperação com os vivos, quer a utilização dos trabalhos dos que desapareceram. O trabalho em comum supõe a cooperação direta dos indivíduos”. ( O Capital, livro III, seção I)

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4.3.3. Com o modo de produção capitalista desenvolvem-se todas as condições para o trabalho geral (universal) seja aplicado à produção sendo que essa aplicação efetua-se numa grandessíssima escala com a fase de submissão real do trabalho ao capital. Esse trabalho geral apresenta-se no modo de produção capitalista sob forma de ciência. 4.3.4. O único objetivo do capital é a busca de um máximo de mais valia. Nessa corrida à mais-valia o capital revoluciona constantemente sua base produtiva, alarga as condições da produção, tira proveito de todos os conhecimentos da espécie humana, tenta domesticar as forças naturais para aplicá-las à produção, etc...

Nessa voracidade de mais-valia, essa fuga para a frente do capital, a ciência desempenha um papel privilegiado. Com efeito, as descobertas científicas, sua reprodução e sua incorporação à produção permitem multiplicar a potência produtiva do trabalho humano, se bem que essa força produtiva aparecerá como produtiva do capital.

A ciência desempenha o mesmo papel que as forças naturais, ora “o fato é que o trabalho é naturalmente mais produtivo quando se conjuga com uma força da natureza”. (Marx)

Uma terra mais fértil (embora esta fertilidade “natural” só seja realizada por intermédio do trabalho humano), um filão mineiro mais rico, uma queda de água, etc... são condições naturais que favorecem o aumento da produtividade sem nada custar ao capitalista. Todavia, na medida em que se trate de meios de produção não reprodutíveis são monopolizáveis por um capital particular que poderá, portanto beneficiar-se disso de maneira exclusiva obtendo assim um super-lucro.

“Não é o caso da ciência. No limite todo capital poderá beneficiar-se de uma invenção e a alta da produtividade que ela favorece generalizar-se-á socialmente, enquanto que uma força da natureza que não está às ordens de todo capital na mesma esfera de produção (...), não decorre disso que se utilize uma tal força onde quer que haja capital investido.” (Capital, vol. III, seção 6, cap. XXI)

Ao contrário, a ciência “fruto do desenvolvimento humano na sua

quintessência abstrata” e generalizável universalmente, pode ser e é apropriada por qualquer capital em função.

A ação comum do trabalho geral e do trabalho coletivo consegue produzir uma riqueza material que é ela mesma reprodutível.

Assim, a ciência abre novos campos de acumulação ao capital permitindo, ao mesmo tempo, um crescimento desmesurado da produtividade e da intensidade do trabalho humano e, conseqüentemente, da mais-valia. Todo progresso na arte de refinar a exploração é de despojar o trabalhador. A ciência enquanto momento do capital está portanto, imediatamente voltada contra o proletariado. Este nada tem a esperar dela, nem dos cientistas e nem de uma mística “ciência proletária”.

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“Certamente, não aceitamos subordinar nossa agitação social à vossa

ciência acadêmica. Vós não sabeis ir da causa ao efeito, do passado ao presente nem em física, nem em astronomia, nem em biologia, nem em antropologia. Não nos abalamos por tão pouco: não temos necessidade da parafernália de vossas bibliotecas e de vossas universidades; jubilamos vê-la caducar e não é presentemente que nos encarregaremos d remoçá-la; espereis para isso a ditadura comunista mundial: vós sereis atendidos.

Afirmamos ser ciência, segura e correta a teoria determinista em história e em sociologia; não confiamos vossa morte de classe a um vacilante probabilismo, mas a uma certeza armada”. (Bordiga, “Programa do comunismo integral e teoria marxista do conhecimento”) Então a classe dos ignorantes utilizará seus possantes músculos para calar a classe dos cientistas.

4.4. A DIALÉTICA CONTRA O MÉTODO CIENTÍFICO 4.4.1. A ciência elabora um método adequado à base fetichista sobre a qual ela surge, adequada a seu ser, e revela-se incapaz de abordar dialeticamente a realidade que estuda. Conseqüentemente até no seu método, a ciência é conforme ao modo de produção capitalista. O proletariado, cujo método dialético é revolucionário, não pode absolutamente situar-se no terreno da ciência, mas deverá destruí-la. O modelo clássico da crítica proletária ao método da ciência é a crítica da economia política, sendo esta uma ciência incapaz de apreender plenamente a natureza da produção capitalista. Os limites desta ciência encontram-se no fetichismo do capital, o que implica também a elaboração de um método conforme a este fetichismo. Para os melhores representantes da economia clássica (Smith, Ricardo, lll) “o valor como quantidade absorve sua atenção” (Marx)

“A observação superficial deste fato, ou seja, de que na equação do valor o equivalente só figura como simples quantum de um objeto de utilidade, induziu ao erro tanto S. Bailey como muitos economistas antes e depois dele. Viram na expressão do valor somente uma relação de quantidade”. (Capital I, l, III, sublinhado por nós) No entanto, se a economia política é uma ciência que regride a partir de 1830, outras ciências podem continuar a progredir, embora em ritmos diferentes, em função dos imperativos da valorização do capital, sendo que o progresso das ciências segue geralmente este caminho: exigências da valorização do capital (produção de um máximo de mais-valia) necessidades técnicas – exigências científicas.

“Vocês afirmam que a técnica depende em grande parte do nível da ciência. Ora, esta depende infinitamente mais do nível e das exigências da técnica. Quando a sociedade tem uma necessidade técnica, isto dá mais impulso à ciência do que o faziam dez universidades. Toda a hidrostática (Torricelli,

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etc...) foi suscitada na Itália nos séculos XVI e XVIII, pela necessidade vital de regularizar as torrentes de montanha. Só conhecemos alguma coisa de racional da eletricidade depois que se descobriu sua utilização técnica”. (Engels a Borgius, 25/01/1894)

4.4.2. Assim o capital despreza ramos inteiros do conhecimento. Um exemplo recente demonstrou isto de maneira flagrante quando em Guadalupe, a reentrada de um vulcão em atividade (vapores sulfurosos) forçou a evacuação de uma parte da população da ilha, após o parecer de cientistas oficiais, segundo o qual a erupção era inevitável. Enquanto isso, do outro lado, o “artesão” H. Tazieff apreciava mais corretamente a situação prevendo que não haveria erupção, o que se revelou exato.

Além disso, o capital e seus cientistas sentem-se muito mais à vontade nos domínios onde a realidade é mais facilmente abordável de um ponto de vista quantitativo. Ao contrário, as ciências que se encontram confrontadas a processos orgânicos etc... sofrem um desenvolvimento menos rápido.

Portanto, o capital conhece mais dificuldades no domínio da biologia que no da mecânica. (Veremos no estudo a ser publicado sobre a Questão Agrária o atraso da agricultura com relação à indústria, dado que as ciências que favorecem o desenvolvimento da agricultura (química , biologia,...) desenvolvem-se mais tardiamente do que aquelas ligadas à indústria (mecânica, física,..)

“Somente no século XIX, mais precisamente nos últimos decênios é que se desenvolvem as ciências que favorecem diretamente em alto grau as bases específicas tanto para a agricultura como para a indústria, química, geologia, fisiologia.” (Teorias sobre a mais-valia)

4.4.3. Um outro aspecto que não se pode negligenciar e que favorece a regressão da ciência, é a luta de classes entre o proletariado e a burguesia. Contrariamente aos stalinistas de todos tipos 19 não entendemos que esta luta de classes se travaria no interior da ciência (entre cientistas “burgueses” e “cientistas proletários”) , mas mostramos o irredutível antagonismo entre capital e proletariado, entre ciência e programa comunista.

Os interesses de classe da burguesia levam-na a negar, a deformar certos aspectos da realidade. Vimos que, no que concerne a economia política isso foi determinante para sua transformação em economia vulgar, mas esse fenômeno pode operar-se igualmente nas ciências da natureza, na medida em que a burguesia procura na natureza argumentos para justificar sua dominação social.

“A brava gentinha de origem burguesa raciocina assim: o marxismo revolucionário faz repousar tudo sobre um “causalismo” social segundo o qual o fato econômico determina a luta política. Se o determinismo causalista cair, livraremo-nos deste espectro que nos aterroriza. E se em biologia e ainda mais, na física da própria natureza não viva, a ciência oficial exclui o determinismo, existe aí uma esperança não viva, a ciência

19 B. Coriat, por exemplo, em “Ciência, Técnica e Capital”, e consortes.

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oficial exclui o determinismo, existe aí uma esperança de domar o monstro revolucionário da guerra social.” (Bordiga; Programa do comunismo integral...)

4.5. A CIÊNCIA NA FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL. 4.5.1. Com a ciência, o capital possui assim uma força produtiva cujo custo é irrisório em relação às vantagens que proporciona. Com efeito, o custo de reprodução da ciência é sempre inferior ao seu custo de produção. Por exemplo, a elaboração de uma teoria matemática pode tomar muitos anos da vida de um cientista, enquanto que mais tarde, dezenas de alunos a aprenderão em algumas horas. No custo global da ciência é necessário contar também o de seu terceiro momento: a incorporação à produção, tarefa geralmente efetuada pelos engenheiros, técnicos, etc...

O que acabamos de dizer encontra-se verificado pela:

“1 º - A grande diferença quanto aos custos de construção entre um protótipo de máquina e sua reprodução (ver sobre esse assunto Ure e Babbage).. 2 º - Os custos posteriores bem mais elevados que implica a exploração de um estabelecimento posterior, surgido das ruínas do primeiro, ex suis possibus (de sua ossada). Tanto é verdade que, os primeiro s empreendedores usualmente vão à falência e que somente seus sucessores fazem fortuna comprando a preço vil as construções, máquinas, etc... Isto porque são, em geral, os capitalistas da espécie mais indigna e mais desprezível os manipuladores do dinheiro, quem tiram o maior lucro de todos os novos progressos do espírito humano e de sua aplicação social através do trabalho em comum”. (Capital, III, l, IV)

O custo total da ciência é portanto representado pela soma dos custos de

produção, de reprodução e de incorporação da ciência à produção. Concretamente, isso compreende, por exemplo, todas as fontes consagradas à pesquisa científica, o orçamento da Educação Nacional, os meios de produção utilizados pelos engenheiros, e técnicos, seus salários, etc...

Pode-se então constatar que a ascensão da ciência com a fase de submissão real é uma das bases do inchamento das classes médias, o que foi muito bem previsto por Marx (estudaremos este aspecto mais detalhadamente nas teses de trabalho do capítulo 7, adiante). Quando a queda tendencial da taxa de lucro começa a produzir seus efeitos, o capital é constrangido a atacar as despesas improdutivas (das quais a ciência, e no interior desta, mais particularmente, as despesas ligadas à produção da ciência). É isto que se verifica há uns dez anos, nos Estados Unidos e outros lugares. Enquanto que, depois da Segunda Guerra Mundial as despesa s em matéria de pesquisa cresciam de uma maneira tal, que, segundo as projeções, se este crescimento

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fosse mantido, a totalidade da população americana estaria empregada neste setor no ano 2.000 , este movimento foi brutalmente inflexionado com os primeiros sintomas da crise. 4.5.2. A atividade científica geralmente é estreitamente dependente do nível de desenvolvimento da práxis humana, da qual constitui um momento (arrevesado no modo de produção capitalista) e cujos resultados não são apenas “teóricos” ou intelectuais.

A ciência é sempre um produto social, e mesmo o tradicional personagem literário do inventor ou do cientista que descobre a fórmula genial fazendo voar pelos ares seu laboratório sob o olhar estupefato de sua velha empregada, nada tirava de sua cabeça, apenas encarnava um momento do trabalho geral, do desenvolvimento social da espécie humana. Se a historiografia dos imbecis reteve o nome do “inventor” da máquina a vapor, foram no entanto dezenas a terem-na “inventado” ao mesmo tempo, e centenas a terem nela trabalhado.

Com a fase de submissão real do trabalho ao capital, desenvolvem-se as condições adequadas a este caráter social.

Doravante, a socialização deste ramo da atividade social será efetiva, na medida em que o modo de produção capitalista desenvolve instituições que permitem a este caráter social da ciência exprimir-se imediatamente. Lá como cá o modo de produção capitalista segue seu movimento de socialização das forças produtivas. O trabalho científico organiza-se segundo os critérios capitalistas de organização, de divisão do trabalho, nos laboratórios, centros de pesquisa, etc... A complexificação e o custo crescente dos equipamentos, materiais, instalações... fecham definitivamente a via do trabalho científico ao indivíduo isolado.

Todo o movimento dito “crítico “ da ciência que emana dos chamados “trabalhadores científicos”, e que se desenvolveu nestes últimos anos (“Science for the people” nos USA, a revista “Impascience” na França, as obras coletivas como “Auto-crítica da ciência”, etc...) é produto dessa situação . Não se trata de questionar a ciência,como força produtiva do capital, mas de uma série de reivindicações específicas às classes médias e que se exprimem aqui, como em outros setores da sociedade: autogestão, reivindicação do poder de decisão, controle das condições de trabalho, crítica do processo de trabalho, etc...

No fundo, todas essas reivindicações têm em comum a reivindicação da democracia, esse “reino da quantidade eternamente impotente para tornar-se qualidade” (Bordiga). Esta ideologia “demo-cientista”, reivindica participação em partes iguais de cada indivíduo no processo social e, particularmente aqui, no processo científico. 4.5.3. Os “trabalhadores científicos” podem muito bem, assim como seus colegas das classes médias, reivindicar a democracia e a soberania do indivíduo sobre seu mesquinho destino, mas o proletariado invariavelmente reivindica o comunismo, o qual já se encontra seguramente descrito num antigo texto comunista:

“A atividade social e o gozo social não existem de modo algum sob a única forma de uma atividade imediatamente coletiva e de um gozo imediatamente coletivo, isto é, a atividade e o gozo que se verificam e se

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exprimem diretamente em sociedade real com outros homens encontram-se sempre onde esta expressão imediata da sociabilidade esteja fundada na essência de seu conteúdo e apropriada à sua natureza. Mas, mesmo se minha atividade é de ordem científica etc... e que eu raramente possa dedicar-me a ela em comunidade direta com outros, sou social por que ajo enquanto homem. Não apenas o material de minha atividade – como a própria linguagem graças à qual o pensador exerce a sua - me é dado como produto social, mas minha própria existência é atividade social. Conseqüentemente o que faço de mim, faço-o para a sociedade, e com a consciência de mim enquanto ser social”. (Manuscritos de 1844)

4.5.4. Uma outra tendência, que se manifesta com a fase de submissão real e que se completa com a Segunda Guerra Mundial, é o papel do Estado, ou seja, o Estado assume o encargo da atividade científica.

Os fatores que impõem essa ação do Estado são, além da importância crescente dos capitais necessários, a socialização do risco inerente à pesquisa. Vimos que o custo de produção da ciência poderia ser muito elevado sem que se tivesse antecipadamente certeza de um resultado frutuoso; o Estado assume assim o encargo dos riscos inerentes e dos custos da produção científica, após o que os diversos capitais poderão apropriar-se de seus resultados para aumentar seus lucros. 4.5.5. Somente com a fase real, quando o capital submete o Estado, é que este vai desenvolver as Instituições que permitem-lhe assumir esse encargo. Na França, por exemplo, pode-se ver as primeiras realizações dessa tendência sob o Segundo Império (criação do “Museum D”Histoire Naturelle”, da “École Polytechnique”, do “Observatoire” , etc...) Posteriormente esta tendência reforça-se. Por exemplo, no período entre as duas guerras mundiais, assistiu-se à criação do CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas) pela frente popular, enquanto seu equivalente alemão era criado pouco antes pelos nazistas 20 e a administração Roosevelt tomava nos USA medidas similares. A ciência conhece um desenvolvimento gigantesco a partir de 1945. 4.5.6. A dano dos pacifistas de todo tipo é o exército quem assegura a maior parte desse encargo, sobretudo nos USA, por exemplo, (mais particularmente no que tange à produção da ciência). O exército torna-se assim o principal agente do desenvolvimento científico.

Nos USA, em 1957, 53% do montante total das despesas americanas na atividade científica foram reservadas ao setor militar. Em 1972, só o departamento de Defesa beneficiou-se de mais de 8 bilhões de dólares, ou seja, 20 Contrariamente às lendas da democracia, perpetuamente à cata do “grande álibi”, nem a Alemanha nazista, nem a URSS stalinista “retornaram ao obscurantismo” no que concerne à atividade científica durante esse período (cf. os resultados em balística, V1 e V2 dos alemães em 1943). Eles tinham material humano de sobra para fazerem experiências absurdas e atrozes, e não tinham o mínimo escrúpulo. Aliás, o grande argumento dos democratas é contestar a “utilidade” dessas experiências constatando que algumas não forneceram resultados convincentes.

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50,4% das despesas federais para pesquisa científica. Em 1982, o orçamento armamentista foi quase seis vezes maior que o total dos gastos com pesquisas das 776 maiores empresas americanas. 4.5.7. Contrariamente ao que alguns afirmam, as despesas em armamento geralmente não têm como função econômica “realizar a mais-valia”. Não se pode assimilar os armamentos a bens de luxo, os quais são comprados para ser consumidos pelas classes médias.

O reforço constante do Estado e do militarismo explica, de uma parte, esta intensa produção de armamento, sendo os Estados obrigados a se armarem até os dentes para enfrentarem seus concorrentes no mercado mundial, para preparar-se às tensões inter-imperialistas e “last but not least”, para aterrorizar o proletariado e reforçar o Estado contra toda e qualquer ameaça que seja.

Se bem que a ciência possa ser produzida “no civil” – e aliás, ela também o é – o setor militar revela-se particularmente o mais apropriado para a condução desta atividade.

Sendo o capital obrigado a superar incessantemente sua base produtiva e a acelerar o progresso técnico, favorecendo assim sua fuga para a frente, produz-se um fenômeno de obsolescência que o setor militar tem muito mais condições de suportar do que o setor industrial. Uma nova invenção, a partir do momento em que ela é aplicada, desvaloriza imediatamente o capital existente. Donde, toda uma série de problemas econômicos ligados à rentabilidade do capital (substituição antecipada de máquinas e de equipamentos, baixa do preço das mercadorias, necessidade de alargamento de mercados, etc...).

Em contrapartida, mesmo em tempo de paz, o armamento pode ser constantemente modificado, modernizado, renovado, etc... sem colocar o mesmo tipo de problemas. Assim, decidir-se-á que tal arma tal modelo de tanque, de fuzil está superado, na medida em que apareça como indispensável a todos dispor do armamento mais moderno e mais aperfeiçoado para a defesa da nação.21

O mesmo fenômeno é encontrado na pesquisa espacial. Por outro lado, o armamento tem a vantagem evidente de ser feito para ser destruído e todo conflito transforma-se em vasto campo de experimentação. Por exemplo, no Vietnam, o armamento americano era testado no campo de batalha, melhorado, re-testado, etc... e isto fazendo intervir todos os ramos da ciência: climatologia, bacteriologia (sem esquecer as “ciências humanas”).

Como vimos, o custo de produção da ciência é elevado, dado o papel específico do exército nesse setor, o custo dos armamentos aumenta mais rapidamente que o nível geral dos preços.

4.5.8. Abaixo a Ciência!

A ciência é, portanto, o modo de conhecimento específico do modo de produção capitalista, chegando a seu pleno desenvolvimento com a fase real. O

21 Apesar da crítica que surge por vezes, nos meios conservadores que caracterizam como “desperdício” (sic!) o abandono de equipamentos ainda viáveis.

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proletariado só terá uma saída se quiser reapropriar o saber da espécie humana, ou seja, destruir a ciência:

“No campo da teoria das transformações econômicas que permitem passar do capitalismo – do qual conhecemos muito bem a estrutura enquanto os economistas oficiais ignoram-na totalmente – ao comunismo, dispensamos igualmente as contribuições da ciência burguesa, e temos o mesmo desprezo pela técnica e tecnologia burguesa, às quais todo mundo, sobretudo os ensandecidos traidores oportunistas, decanta como voltadas para grandes conquistas. De um modo totalmente revolucionário temos edificada a ciência da vida da sociedade e do seu esboço futuro. Quando esta obra da mente humana, for perfeita, e só poderá sê-lo depois do extermínio do capitalismo, de sua civilização, de suas escolas, de sua ciência, e de sua tecnologia de ladrões, o homem poderá assim escrever, pela primeira vez, a ciência e a história da natureza física e resolver os grandes problemas da vida do universo desde as origens (que os cientistas reconciliados com o dogma continuam chamando “criação”) até seus desenvolvimentos nas escalas do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, no futuro mais longínquo, hoje indecifrável.” (Teses de Nápoles, 1965)

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5. OS SINDICATOS NAS DUAS FASES

Se o caráter hoje contra-revolucionário dos sindicatos integrados ao capital não coloca qualquer dúvida para a fração consciente do proletariado revolucionário, não é suficiente constatar que os sindicatos freiam as lutas para provar esse fato. Os comunistas não podem fazer economia de um trabalho teórico visando demonstrar que os sindicatos, doravante órgãos do capital, devem ser destruídos. Ora, um trabalho aprofundado sobre o sindicato, como órgão de combate da classe operária no passado (isto é na fase de submissão formal) e órgão do capital hoje, é de uma importância vital para a revolução comunista que enfrentará amanhã o problema da organização das lutas reivindicativas do proletariado e de sua ligação com o objetivo final, ligado à destruição dos sindicatos órgãos da contra-revolução. Tentaremos fornecer aqui alguns elementos para mostrar como o sindicato esvaziou-se de seu conteúdo proletário, no curso do desenvolvimento histórico capitalista, para ser finalmente esvaziado e integrado à sociedade burguesa.

5.1. OS SINDICATOS NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL. 5.1.1. O sindicato não nasce com o capitalismo moderno, com a fase de submissão real do trabalho ao capital, mas quando a sociedade só conhece ainda uma dominação formal do capital sobre o trabalho.

O processo de trabalho estando submetido desde esta fase ao processo de valorização, o que significa que o objetivo perseguido é a extração de um máximo de mais-valia, permanece tal como se encontrava nas formas de produção pré-capitalistas. Se mudanças significativas não são introduzidas no processo de trabalho, a força produtiva do trabalho dá um salto qualitativo na medida em que a produção capitalista implica a cooperação e a concentração de diversas forças de trabalho individuais (capítulo 1, acima). A divisão do trabalho própria à fase de submissão formal, a divisão manufatureira, conhece diversas formas: a cooperação formada pela reunião de diversos ofícios especializados cujos produtos formam os elementos de um mesmo produto final e a cooperação de trabalhadores de um mesmo ofício. As duas formas baseiam-se na especialidade do ofício, na força de trabalho qualificada da qual depende a valorização do capital na fase formal. O processo de trabalho apóia-se ainda na habilidade do trabalhador, seu saber prático, sua qualificação. O operário ainda está portanto na situação de um ofício e é sobre este que ele pode apoiar-se para afrontar a classe capitalista.

Na fase formal o trabalho vivo predomina sobre o trabalho morto e a parte variável do capital é relativamente maior que a parte constante. Já mostramos que na fase de submissão formal a taxa de lucro mv/c+v podia ser assimilada à taxa de mais-valia mv/v, na medida em que o capital constante avançado é pouco expressivo. A concorrência dos operários em ter si, a qual é o “aspecto mais

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nefasto para os operários na sociedade atual, a arma mais afiada da burguesia contra os proletários”, ainda é limitada em relação àquela que vai resultar da produção capitalista desenvolvida. De uma parte, os operários não são intercambiáveis, (como é o caso na fase real), dada a importância da qualificação da força de trabalho no processo de produção; de outra parte, a superpopulação não conhece a amplitude que tem na fase de submissão real. A superpopulação específica da fase formal é, como vimos, a superpopulação absoluta, isto é, o crescimento da população operária é mais rápido que a necessária à acumulação capitalista. Como a acumulação do capital é muito rápida, dada a elevada taxa de lucro, a população operária empregada é considerável, tanto mais que a acumulação do capital traduz-se essencialmente pelo crescimento da massa do capital variável. 5.1.2. Os operários esforçam-se para limitar os efeitos dessa concorrência “formando associações, donde a ira da burguesia contra essas associações e sua euforia a cada revés que ela lhes impõe. “Os sindicatos são, portanto, “uma primeira tentativa para suprimir a concorrência. Eles atacam a concorrência, este nervo vital da sociedade burguesa”. (Engels)

Na fase de submissão formal é, portanto, muito mais fácil combater os efeitos da concorrência, na medida em que esta concorrência é limitada. Vimos que, quando a superpopulação diminuía o salário tinha inclusive uma tendência a elevar-se. Assim, a burguesia recorre permanentemente ao Estado, a fim de que a concorrência atue plenamente e favoreça o rebaixamento do salário abaixo do valor da força de trabalho. 5.1.3. Quando de seu advento (estabelecimento da fase formal – acumulação primitiva), a burguesia não pode deixar de recorrer constantemente ao Estado em todos os domínios. Este intervém para disciplinar a massa dos sem-reserva expropriados, de modo a canalizá-los para a produção capitalista, fornecendo-lhe a mão-de-obra necessária, criando uma superpopulação absoluta capaz de pressionar os salários.

De outra parte, o Estado fixa um máximo de salário proibindo toda associação dos operários que tente obter um salário superior a este máximo. (Em princípio esta obrigação estende-se aos patrões, que não têm o direito de oferecer mais que o máximo a seus operários). Portanto, a burguesia serve-se do Estado para regular o salário, para rebaixá-lo abaixo do valor da força de trabalho.

Quando a fase de submissão formal se consolida, com a burguesia tendo assentado muito mais solidamente sua dominação sobre o proletariado, o Estado está sempre presente sem, todavia, ser onipresente.

“Durante o período manufatureiro propriamente dito o modo de produção capitalista tinha crescido suficientemente para tornar a regulamentação legal do salário tão impraticável como supérflua; mas estava bem ao alcance da mão, para casos imprevistos, o velho arsenal de arbitrariedades (...). Enfim, em 1813, abole-se as leis sobre a fixação dos salários; com efeito, elas não eram mais que uma anomalia ridícula, numa época em que

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o fabricante regia com sua autoridade privada seus operários, através de éditos qualificados de regulamentos de fábrica, onde o arrendatário completava com a ajuda da taxa dos pobres o mínimo de salário necessário ao sustento de seus homens. As disposições dos estatutos sobre os contratos entre patrões e assalariados, segundo os quais em caso de ruptura, a ação civil só é acolhida contra os primeiros, enquanto que a ação criminal é admitida contra os segundos, ainda estão hoje em vigor.” (Marx)

Em contrapartida na fase de submissão real: “O trabalhador pode ser abandonado à ação das “leis naturais” da sociedade, isto é, à dependência do capital, engendrada, garantida e perpetuada pelo mecanismo da produção.” (idem)

Enfim, a burguesia serve-se do Estado para alongar a jornada de trabalho.

Vimos igualmente no capítulo 1, acima, as dificuldades enfrentadas pelo capital para fazer com que a classe operária se enclausure por 12 ou 14 horas nas fábricas. É somente na primeira parte da fase real com a introdução do maquinismo, que ela conseguirá alongar desmesuradamente a jornada de trabalho. Ora, na fase de submissão formal a mais-valia produzida só pode ser uma mais-valia absoluta; é portanto vital para o capital alongar a jornada de trabalho e, para fazer isso, a ação do Estado é necessária. 5.1.4. Na medida em que os operários coalizam-se formam associações e sindicatos, podem ter esperança de estabelecer temporariamente uma relação de forças entre eles e a classe capitalista, de modo que o salário seja igual ao valor da força de trabalho. Quando a superpopulação diminui, dada a rápida acumulação do capital, os operários, graças à organização sindical têm condições de arrancar aumentos de salários.

Enfim, o sindicato permite um reerguimento mais rápido do salário na saída da crise (pois não se poderia considerar que o sindicato possa obter sucessos de longa duração), mais rápido que se os sindicatos não existissem. 5.1.5. O valor da força de trabalho constitui, portanto, a “base racional e declarada dos sindicatos, cuja importância para a classe operária não se deve subestimar. Os sindicatos têm por objetivo impedir que o nível dos salários não caia abaixo do montante pago tradicionalmente nos diversos ramos da indústria, e que o preço da força de trabalho não caia abaixo de seu valor.”

“Os operários coalizam-se a fim de se colocar de algum modo num pé de igualdade com o capitalista no tocante a seu contrato de venda de seu trabalho. Tal é a razão ( a base lógica) dos sindicatos”. (Marx)

Além da ação sobre os salários os sindicatos desempenham também um

papel preponderante na luta pela diminuição da jornada de trabalho. Nesse domínio igualmente a burguesia opõe-se ferozmente ao proletariado tanto no plano dos interesses materiais (a mais-valia absoluta resultando do alongamento

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da jornada de trabalho), como no teórico (nesse período da luta de classes a burguesia ainda tem plena confiança na sua teoria contra a teoria do proletariado). 5.1.6. No entanto, não se pode exagerar o alcance da ação sindical. Se os sindicatos podem opor-se às usurpações cotidianas do capital, nada podem contra suas tendências profundas. De outra parte, no caso de ações de envergadura tendo um alcance geral sobre a sociedade, como por exemplo uma lei que reduza a jornada de trabalho, é somente sendo dirigida pelo partido de classe que ação pode ter sucesso. Os sindicatos devem, portanto , esta sob a direção do partido e este deve sempre orientar e inflexionar sua ação. Assim, para o partido comunista a importância dos sindicatos não reside tanto nos sucessos efêmeros que possam trazer à classe operária, mas no fato de que constituem um potente centro operário que, dirigido pelo partido de classe, torne-se um elemento determinante do processo revolucionário.

“O objetivo final do movimento político da classe operária é naturalmente a conquista do poder político em seu proveito, o que implica necessariamente que previamente uma organização suficientemente desenvolvida da classe operária nasça e cresça a partir de suas próprias lutas econômicas. No entanto, para torna-se político, um movimento deve opor às classes dominantes os operários agindo enquanto classe para fazê-las ceder por meio de uma pressão do exterior. Assim, a agitação é puramente econômica quando os operários tentam, por meio de greves, etc... numa só fábrica, ou mesmo num só ramo de indústria, obter dos capitalistas privados uma redução do tempo de trabalho; ao contrário, ela é política quando arrancam pela força uma lei que fixe em oito horas a jornada de trabalho, etc... É desta maneira que de todos os movimentos econômicos isolados dos operários desenvolve-se em todos os lugares um movimento político, ou em outras palavras um movimento de classe para realizar seus interesses sob forma geral e que tenha força de coação sobre a sociedade inteira. Esses movimentos supõem uma certa organização prévia ao mesmo tempo em que são, por sua vez, um meio de desenvolver essa organização.” (Marx)

Portanto, é apenas quando está organizado em partido político que o

proletariado possui a consciência de seus interesses gerais e é capaz de ir além das reivindicações locais e parciais. 5.1.7. O sindicato continua a desempenhar esse papel determinante após a revolução. Na fase de submissão formal a força de trabalho não é ainda verdadeiramente uma força coletiva, o que ela se torna no modo de produção especificamente capitalista. Então a força produtiva do trabalho individual não tem mais eficácia se não se insere no seio de uma totalidade orgânica, na qual o sistema de máquinas dirige todo o processo. Conseqüentemente, para assegurar a transformação revolucionária da sociedade capitalista os sindicatos são, quando a fase formal ainda é predominante na maior parte dos países, indispensáveis para assegurar de certa maneira a “socialização” da classe quando as bases

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materiais desta socialização ainda são insuficientes. Enfim, é no seu seio que pode ser realizada a proletarização dos membros da sociedade, prelúdio à negação das classes e, portanto do proletariado. 5.1.8. – Na fase de submissão formal do trabalho ao capital, o movimento comunista apoiava igualmente as cooperativas operárias (sobretudo as de produção), as quais podiam também, ainda que em menor medida que os sindicatos, favorecer a passagem à sociedade comunista.

Com efeito estas cooperativas poderiam ter favorecido a passagem a uma produção comunitária, na medida em que serviam de paliativo ao fraco desenvolvimento da grande indústria, a qual constitui a base capitalista real do comunismo. Estas cooperativas podiam servir de estágio intermediário para a passagem ao comunismo (dado que a fase mal afirma-se na Inglaterra), a partir do momento em que o proletariado se tivesse apoderado do poder político.

“Marx e eu, jamais duvidamos que, para passar à economia plenamente comunista, a gestão cooperativa em grande escala constituía uma etapa intermediária. Ora, será necessário prever sua organização, de modo que a sociedade – portanto, de início o Estado – conserve a propriedade dos meios de produção e que interesses particulares das cooperativas não possam consolidar-se frente à sociedade no seu conjunto.” (Engels a Bebel – 20/01/1886) Em contrapartida, enquanto se permanece no quadro da economia burguesa, as cooperativas não podem ter outro papel senão o de exemplos de propaganda e ainda com a condição de atuarem conscientemente nesse sentido. Ou seja, “elas somente têm valor na medida em que são criações autônomas dos trabalhadores e não são protegidas nem pelo governo nem pelos burgueses”. (Marx)

Elas devem igualmente “dedicar uma parte de seus fundos à propaganda

de seus princípios”, favorecer a igualdade dos salários no seio da cooperativa, mantendo-se sempre consciente de que, por si só o sistema cooperativo é impotente para transformar a sociedade capitalista.

“Para converter produção social em um amplo e harmonioso sistema de trabalho cooperativo, são indispensáveis mudanças gerais. Estas mudanças não serão jamais obtidas sem o emprego das forças organizadas da sociedade. Portanto, o poder de Estado, arrancado das mãos dos capitalistas e dos proprietários fundiários, deve ser manejado pelos próprios produtores.” (Marx, 1886)

5.1.9. O papel de alavanca na transformação social para o comunismo desempenhado pelos sindicatos, e em menor medida pelas cooperativas operárias, vai ser ultrapassado pelo próprio movimento do capital. A base histórica que justificava sua existência, de um ponto de vista proletário, encontra-se progressivamente solapada ao longo do desenvolvimento da fase de submissão real.

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5.2. A ELIMINAÇÃO DA BASE HISTÓRICA DOS SINDICATOS AO LONGO DA FASE DE SUBMISSÃO REAL. 5.2.1. Segundo a concepção comunista clássica, o sindicato, dirigido pelo partido de classe desempenhava na fase formal, um papel de alavanca para revolucionar as condições existentes e para a instauração da sociedade comunista.

A partir de 1850 as bases materiais do comunismo estão qualitativamente desenvolvidas (donde o surgimento do programa comunista), mas é somente na Inglaterra que existe a fase de submissão real do trabalho ao capital.22 Portanto, o sindicato conserva ainda todas as suas funções proletárias; apenas progressivamente irão manifestar-se seus limites, até sua integração na maioria dos países avançados, a qual se manifesta com a ruptura violenta de 1914.

A partir da instauração da fase real, desenvolvida na Inglaterra, manifestam-se os primeiros sintomas da eliminação da base histórica dos sindicatos. Todavia, na medida em que a fase real ainda não se generalizou, o capital possui ainda uma margem histórica graças à qual pode barrar o assalto do adversário. Assim, o maquinismo revelou-se ser uma arma adequada para derrotar os movimentos reivindicativos da classe operária.

“Na luta do capital e da propriedade fundiária contra o trabalho os dois primeiros elementos beneficiam-se em relação ao trabalho, de uma vantagem particular: o concurso da técnica. Com efeito, nas condições atuais, esta também volta-se contra o trabalho.” (Engels, 1842)

Com o desenvolvimento de uma tecnologia especificamente capitalista, são

criadas as condições materiais que transformam totalmente o processo de trabalho, e as formas da valorização do capital, eliminando assim as condições históricas que tinham permitido a emergência do sindicato. 5.2.2. A teoria revolucionária “estabelece que a indústria mecânica representa apenas um estágio (estágio superior) da produção capitalista e mostra que ela resulta da manufatura (...); ela estabelece que a indústria mecânica constitui um processo gigantesco na sociedade capitalista, não apenas porque ela aumente em enormes proporções as forças produtivas e socializa o trabalho em toda a sociedade, mas também porque destrói a divisão do trabalho própria da manufatura, obriga os operários a passar de um trabalho a outro, abolindo definitivamente as relações patriarcais atrasadas, notadamente no campo, e dá ao movimento progressivo da sociedade um vigoroso impulso, tanto pelas razões já indicadas como em conseqüência da concentração da população industrial. Este processo, como de resto todos os outros processos do capitalismo, também é

22 Lembremos que de 1850 a 1871, a Inglaterra é o único país do mundo a conhecer a fase real plenamente desenvolvida (com base no desenvolvimento da intensidade e da produtividade do trabalho), enquanto o continente, no seu conjunto, permanece ainda durante toda essa época na fase formal.

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acompanhado de um “processo” das contradições, isto é, de sua aparição e de sua extensão.” (Lenine. “Para caracterizar o romantismo econômico”)

Com a passagem à fase de submissão real, um dos elementos fundamentais no qual a classe operária apoiava-se – o ofício, a qualificação -, para impor a venda da força de trabalho por seu valor, desaparece. Doravante, o capital modela um operário intercambiável, sem qualificações, que pode passar de um posto a outro, de um ramo a outro, de uma região a outra. O operário da fase de submissão real é indiferente a seu trabalho e a seu local de trabalho.

Se o sindicato desempenhava até aí um papel importante unificando a classe frente ao capital e podia constituir uma alavanca poderosa para a transformação revolucionária da sociedade, com a fase de submissão real é o próprio capital que realiza esta unificação criando uma força de trabalho coletiva; com isto, o espaço histórico para a ação sindical diminui. Apenas restará ao capital integrar os sindicatos pela força, o que será feito a partir de 1914 na Europa. Na sua luta contra o proletariado o capital dispõe, na fase de submissão real, de uma arma suplementar, a técnica, que está diretamente dirigida contra a classe operária.

“Na Inglaterra, as greve s provocaram regularmente a invenção e a aplicação de algumas máquinas novas. As máquinas eram, pode-se dizer, a arma que os capitalistas empregavam para abater o trabalho especial em revolta. O “self-acting”, a maior invenção da indústria moderna, pôs fora de combate os fiandeiros revoltados. Ainda que as coalizões e as greves não tivessem outro efeito do fazer reagir contra elas os esforços do gênio mecânico, sempre exerceriam uma imensa influência no desenvolvimento da indústria.” (Miséria da Filosofia )

5.2.3. Conseqüentemente, a técnica atua num duplo plano:

1o) desqualificação da força de trabalho, eliminação do ofício, criação de uma força de trabalho intercambiável e, portanto, crescimento da concorrência entre os operários. Doravante, não é mais possível coalizar-se na base do ofício para impedir a usurpação por parte do capital e obter um salário igual ao valor da força de trabalho. Assim, Marx e Engels exortaram os sindicatos, para que atingissem seu objetivo, a abandonar a base do ofício e da nação.

“O objetivo imediato dos sindicatos era todavia limitado às necessidades das lutas quotidianas, a expedientes contra a usurpação incessante do capital, em uma palavra, às questões de salário e de horas de trabalho. Esta atividade não é apenas legítima, ela é necessária. Não se pode renunciar a ela enquanto durar o sistema atual; e mais, os sindicatos

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operários devem generalizar sua ação unindo-se em todos os países.” (Revolução da AIT sobre os sindicatos)

O desenvolvimento da fase real começa a produzir seus efeitos e tende a esvaziar os sindicatos de sua subsistência. Se nem tudo está perdido até 1914 (até a integração no Estado, e esta ainda não afeta a totalidade dos países europeus), a tendência histórica vai mais no sentido de uma acentuação dos limites do sindicato do que no sentido de sua superação. Mas até 1870, este fenômeno concerne apenas à Inglaterra, no entanto vai generalizar-se como no último quarto do século XIX.

2o.) Criação de uma concorrência muito mais viva entre a fração ativa e a de reserva do exército industrial. O desenvolvimento do maquinismo cria uma superpopulação relativa cuja extensão é muito maior do que aquela que surge quando o capital submetia formalmente o trabalho. Doravante, a acumulação do capital não tende a restringir a superpopulação e, portanto, a fornecer os aumentos de salário, ao contrário, a superpopulação relativa reforça a concorrência entre os operários e exerce uma pressão sobre os salários.

De outra parte:

“No processo da produção capitalista, forma-se uma classe mais e mais numerosa de trabalhadores que, graças à educação, à tradição, ao hábito, sofrem as exigências do regime tão espontaneamente quanto a mudança das estações. Desde que este modo de produção adquiriu um certo desenvolvimento, seu mecanismo quebra toda resistência, a presença constante de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda do trabalho, e assim o salário, nos limites conformes à necessidade do capital, e a surda pressão das relações econômicas, completa o despotismo do capitalista sobre o trabalhador.” (Capital I, 8, XXVIII)

5.2.4. Como vimos, o valor da força de trabalho constitui, na fase de submissão formal, a “base nacional e declarada dos sindicatos”. Ora, com a fase de submissão real, o movimento do valor da força de trabalho é obscurecido e não pode mais ser imediatamente apreendido; só o partido de classe tem condições de desvendar esse movimento e de lhe tirar todas as conseqüências para a ação. Portanto, não pode mais haver , ao nível do sindicato, apreensão consciente ( = de base declarada) dos “mecanismos” que fixam o valor da força de trabalho.

Nas duas fases da produção capitalista exprime-se a mistificação seguinte, inerente ao salariado: o salário parece ser a remuneração do “valor do trabalho” quando, de fato, é o preço do valor da força de trabalho. No entanto esta mistificação reforça-se com a fase de submissão real pois, doravante, a ligação entre o trabalho produtivo e a mais-valia é definitivamente escondida; o capital parece produtivo; o salariado generalizou-se ao conjunto da sociedade e não é

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mais sinônimo de produção de mais-valia (classes médias) etc... (cf. as teses sobre o fetichismo do capital no capítulo 3, acima.)

Quanto ao movimento aparente do valor da força de trabalho, ele não reflete mais seu movimento real.

Na fase formal o valor da força de trabalho é relativamente constante, conseqüentemente o movimento do salário traduz apenas, através de suas oscilações, o valor da força de trabalho. Uma alta no salário implica obrigatoriamente uma baixa dos lucros e, inversamente, um dos meios para aumentar a produção de mais-valia é baixar o salário real.

Este movimento é diretamente compreensível para os operários, que se reagrupam justamente nos sindicatos para opor-se aos ataques do capital. O mesmo acontece com o alongamento da jornada de trabalho.

Em contrapartida, na fase de submissão real, com o aumento da produtividade e da intensidade do trabalho, o capital tem condições de aumentar o salário real da classe operária, reduzindo simultaneamente o salário relativo e aumentando a taxa e a massa de mais-valia.

Assim, o capital pode autorizar um aumento do salário real e reduzir a jornada de trabalho, aumentando simultaneamente a mais-valia extorquida.

Assim, são reforçadas as possibilidades da dominação de classe, que só é possível “enquanto os oprimidos são preservados da mais extrema miséria.” (Marx)

A burguesia encontra-se assim em melhores condições de assegurar o apoio da classe operária, apoio sem o qual não pode governar. Além disso, o fenômeno de constituição de uma aristocracia operária assume uma maior importância.

Nesta notável citação, Rosa Luxemburgo mostra muito bem como a base do sindicato é sabotada:

“O papel pessoal do explorador é visível quando se trata do salário absoluto, isto é, do nível de vida real. Uma redução de salário que leve a um rebaixamento do nível de vida real dos operários é um atentado visível dos capitalistas contra os trabalhadores e estes lhes respondem imediatamente pela luta, onde existe um sindicato e, nos casos favoráveis, eles impedem-na. A baixa do salário relativo opera-se sem a menor intervenção pessoal do capitalista e, contra ela, os trabalhadores não têm possibilidade de luta e de defesa no interior do sistema salarial, isto é, no terreno da produção mercantil. Contra o progresso técnico da produção, contra as invenções, contra a introdução das máquinas, contra o vapor e a eletricidade, contra os aperfeiçoamentos dos transportes, os operários não podem lutar. Ora, a ação desses progressos sobre o salário relativo dos

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operários resulta automaticamente da produção mercantil e do caráter de mercadoria da força de trabalho. É por isso que os sindicatos mais poderosos são impotentes contra essa tendência ao rápido rebaixamento do salário relativo. A luta contra o rebaixamento do salário relativo é a luta contra o caráter de mercadoria da força de trabalho, contra toda a produção capitalista. A luta contra a queda do salário relativo não é mais uma luta no terreno da economia mercantil, mas um assalto revolucionário contra esta economia, é o movimento socialista do proletariado. Donde, as simpatias da classe capitalista pelos sindicatos que ela de início combateu furiosamente, uma vez que a luta socialista tenha sido iniciada e na medida em que os sindicatos tenham-se deixado opor ao socialismo. Na França, as lutas operárias pela obtenção do direito de coalizão foram vãs até os anos 1870 e os sindicatos eram perseguidos e atingidos por sanções draconianas. No entanto, pouco após a Comuna ter inspirado à burguesia um terror pânico do espectro vermelho, uma brusca mudança operou-se na opinião pública. O órgão do presidente Gambetta, “La République Francaise”, e todo o partido reinante dos “republicanos saciados”, começam a encorajar o movimento sindical, a fazer por ele uma ativa propaganda. Aos operários ingleses, citava-se como exemplo, no início do século XIX, a sobriedade dos operários alemães; ao contrário, é o operário inglês, não sóbrio mas “ávido”, o trade-unionista comedor de bife, que se recomenda como modelo ao operário alemão. Tanto é verdade que, para a burguesia, a mais furiosa luta pelo aumento do salário absoluto é uma inofensiva bagatela frente ao atentado contra o santo dos santos, contra a lei do capitalismo que tende a uma baixa contínua do salário relativo.” (Introdução à economia política)

5.2.5. Durante toda a fase de submissão formal, o sindicato devia constituir um momento importante na passagem ao comunismo, unificando a classe operária gente ao capital. Assim, o sindicato permitia o acabamento da constituição da classe em si e mais, sob a direção do partido de classe, podia permitir a constituição da classe em si e para si. Ora, essa função, que é uma das mais importantes do sindicato, foi destruída pela passagem à fase de submissão real, tendo doravante o capital realizado por si mesmo essa unificação da classe operária (criação do operário coletivo etc...).

Portanto, se para o partido de classe, o sindicato constituía uma mediação necessária para a passagem ao comunismo, favorecendo a unificação da classe em si, como prelúdio da sua unificação em si e para si (isso tanto depois como antes da revolução) , em contrapartida, a unificação da classe pelo capital suprime a utilidade dos sindicatos enquanto mediação para o comunismo.

Criando o mercado mundial, desenvolvendo o operário coletivo, o próprio modo de produção capitalista criou as bases para a emergência desses “homens universalmente desenvolvidos, universalmente preparados e que sabem tudo fazer” dos quais Lenine falava na “Doença infantil” e cuja emergência o sindicato deveria favorecer. Doravante, a realização da Gemeinwesen (Comunidade) humana não tem mais necessidade da mediação do sindicato.

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5.2.6. A partir de 1850 , o comunismo é possível, mesmo se é apenas na Inglaterra que existe a fase de submissão real. Conseqüentemente, sob a direção de um partido comunista em escala internacional, as lutas do conjunto do proletariado são dirigidas para o comunismo. Todavia, a estratégia revolucionária na maioria dos países, assumia ainda as vias da revolução dupla.

A dialética da história deixava ao modo de produção capitalista uma possibilidade histórica de desenvolvimento (passagem à fase real) e é em boa parte a luta operária que favoreceu esta passagem, obrigando o capital a lançar-se na produção da mais-valia relativa. Se o resultado do movimento histórico foi que a luta do proletariado favoreceu indiretamente a generalização da fase de submissão real, este não era de modo algum seu objetivo.

Com efeito, desde que o proletariado existe ele luta pelo comunismo. Desde os primeiros movimentos do proletariado, este manifestava uma tendência em reivindicar seu objetivo histórico: a reconquista da Gemeinwesen; mas , enquanto se permanece na fase formal, as condições materiais e históricas, as quais não estavam amadurecidas, não permitiam que esta reivindicação se exprimisse de maneira pura e consciente.

É por isso que na fase de submissão formal temos um comunismo carregado de reminiscências religiosas (Münzer, 1525), de políticas igualitaristas (Babeuf, 1793) ou utópicas (Fourier, Saint-Simon). Somente quando as condições objetivas estão reunidas (por volta dos anos 1850 na Inglaterra) é que o programa comunista pode expressar-se em toda sua pureza.

Posteriormente, mesmo quando as bases do comunismo já existem, o capital ainda tem que generalizar a fase real nas outras áreas. É no curso desse processo que se realiza a eliminação da base proletária dos sindicatos e sua integração, sendo que seus limites manifestam-se mais cedo na Inglaterra do que em qualquer outro lugar.

5.2.7. Desde que se realizam as superestruturas próprias à fase de submissão real do trabalho ao capital, o sindicato deixa de ser um órgão proletário e afirma-se como órgão do capital. Todavia, esta integração só pôde se completar através da violenta crise aberta pela primeira guerra mundial.

Conseqüentemente, os comunistas não têm mais que conquistar os sindicatos e a ditadura do proletariado deverá tomar as medidas necessárias para destruí-los enquanto órgãos do capital.

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6. ESTADO E DEMOCRACIA NAS DUAS FASES.

“Enquanto houver Estado não haverá liberdade, quando houver liberdade não haverá mais Estado”. (Lenine)

6.1. INTRODUÇÃO

6.1.1. A partir da dissolução das comunidades primitivas, para cada época histórica, o processo de produção e reprodução da vida material engendra superestruturas de força e de consciência correspondentes. A cada modo de produção responde um tipo de Estado que , enquanto superestrutura de força, sustenta e reforça a dominação deste modo de produção: em outros termos o Estado é o instrumento da classe que se encontra numa situação dominante no seio de relações de produção determinadas.

6.1.2. Com a ascensão da classe burguesa, que assenta seu poder no seio da sociedade civil na medida em que vai dispondo pouco a pouco dos meios e das condições da produção, manifesta-se a necessidade de apoderar-se do poder político a fim de varrer todos os obstáculos à sua emancipação e à das forças produtivas capitalistas. Donde a necessidade que ela tem de afirmar-se definitivamente como classe dominante, de forjar um Estado que seja o verdadeiro instrumento de sua dominação de classe.

Como vimos, é ao longo das duas fases da produção capitalista que esta engendra a forma de Estado que lhe é adequada.

6.2. GÊNESE.

6.2.1. Historicamente, o Estado só aparece quando as comunidades primitivas foram dissolvidas e que a antiga unidade da espécie humana deu lugar à divisão da sociedade em classes e à atomização da espécie em indivíduos. Quando a humanidade não conhecia nem propriedade privada, nem divisão do trabalho, nem antagonismos sociais ligados às classes, não existia base para a aparição de um órgão encarregado de regular as atividades comuns. A comunidade assegurava a gestão destas de maneira imediatamente coletiva. Do mesmo modo, a sociedade desta época também não conhecia a democracia.

“ O Estado não existe portanto por toda eternidade. Houve sociedades que enfrentaram suas dificuldades sem ele, que não tinham qualquer idéia do Estado e do pode de Estado. Em um certo estágio do desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligado à divisão da sociedade em classes, esta divisão fez do Estado uma necessidade”. (Engels “Origem da Família, da Propriedade privada e do Estado”)

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6.2.2. Tem sido freqüentemente afirmado que no início da vida de nossa espécie, no estágio das comunidades primitivas, havia germes de democracia, alguns falando mesmo de formas. Ora, ao dizer isso, não se compreende que os germes da forma superior podem manifestar-se esporadicamente na forma inferior.A “democracia” em questão aparecia em circunstâncias bem definidas. Uma vez eliminadas, ocorria o retorno ao antigo modo de organização; exemplo: a democracia militar em seu início. Quando era necessário, a eleição do chefe realizava-se em um momento preciso, tendo em vista certar operações. Uma vez concluídas, o chefe era reabsorvido no seio da comunidade, não se autonomizando em relação a ela. A “democracia” que se manifestava temporariamente era reabsorvida. A democracia só pode realmente manifestar-se a partir do momento em que os homens foram totalmente divididos e que o cordão umbilical que os unia à comunidade foi rompido, isto é, quando existem indivíduos.

6.2.3. Todas as sociedades ulteriores, uma vez rompida esta unidade primitiva, conheceram a existência do Estado, cujas formas variam historicamente. Na sociedade burguesa desenvolvida o Estado encontra-se plenamente realizado.

Não cabe aqui o exame de todas suas formas e variantes. O leitor pode reportar-se aos trabalhos clássicos do comunismo: Engels, Bordiga,... A partir do momento em que as formas sociais que se sucedem são todas, historicamente, sociedades de classe, todas têm necessidade do Estado, e este é o órgão do poder da classe dominante.

“O Estado não é, portanto, um poder imposto à sociedade a partir de fora; ele também não é a “realidade da idéia moral”, a “imagem e a realidade da razão”, como pretendia Hegel. Ele é muito mais um produto da sociedade em um estágio determinado de seu desenvolvimento; é a evidência de que esta sociedade emaranha-se numa insolúvel contradição consigo mesma , cindindo-se em oposições inconciliáveis que ela é impotente para conjurar. Mas para que os antagonistas, as classes com interesses econômicos opostos, não se consumam elas e a sociedade, em uma luta estéril, impõe-se a necessidade de um poder que, situado aparentemente acima da sociedade, deve escamotear o conflito, mantê-lo nos limites da ordem; e este poder, oriundo da sociedade, mas que se coloca acima dela e torna-se-lhe cada vez mais estranho é o Estado (...) Como o Estado nasceu da necessidade de refrear as oposições de classe, mas como ele nasce, ao mesmo tempo, em meio ao conflito dessas classes, ele é, geralmente o Estado da classe mais poderosa, daquela que domina do ponto de vista econômico e que, graças a ele, torna-se também classe politicamente dominante e adquire assim novos meios para reprimir e explorar a classe oprimida.” (idem)

6.3. AS BASES CONTRADITÓRIAS DO ESTADO BURGUÊS.

6.3.1. De início, o Estado repousa numa contradição: ele é o instrumento da classe dominante mas, ao mesmo tempo, apresenta-se como um organismo

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acima das classes, representando o conjunto da sociedade, arbitrando e controlando o conflito de classes. Nascido na base de uma sociedade separada e dividida, é o único órgão que pode pretender encarnar a universalidade, a comunidade, donde uma mistificação inerente ao Estado em geral e que a forma particular do Estado burguês leva ao seu paroxismo.

6.3.2. A burguesia, que já possuía uma potência de fato no seio da sociedade feudal (potência conferida pelo dinheiro, a propriedade dos meios de produção), tinha que fazer reconhecer em direito essa superioridade social. Donde, para ela a necessidade de acabar com seu isolamento frente ao Estado, de conquistar o poder político . Pode-se dizer que esta é a maneira pela qual se coloca para a burguesia o problema da comunidade. Teórica e praticamente o que se colocava para a burguesia do século XVIII, quando se completa, na área européia, o movimento de expropriação dos homens e a dissolução dos últimos vestígios de comunidade natural, é o problema de substituir a comunidade desaparecida. Todo o movimento social estava confrontado a esta exigência de reapropriação do ser humano, mas só o proletariado encontra-se historicamente colocado nas condições adequadas para satisfazê-la. A burguesia só avançava soluções políticas, constitucionais. Ela possuía um ser social, faltando-lhe um ser político. Donde o fato de que tudo via sob o ângulo político e a caracterização da revolução burguesa como uma “revolução social com alma política”.

Na medida em que a burguesia destruía as antigas relações sociais pré-capitalistas e generalizava novas (relações de produção capitalistas), ela completava uma gigantesca obra revolucionária, de resto saudada pelos teóricos comunistas (cf. Manifesto). Mas, na medida em que a burguesia tinha que instaurar e fazer reconhecer uma nova forma de dominação, necessitava encontrar uma forma política adequada ao conteúdo social de sua atividade, ou seja, instaurar e fazer reconhecer uma nova forma de dominação, necessitava encontrar uma forma política adequada ao conteúdo social de sua atividade, ou seja, instaurar uma nova forma de Estado. Em outros termos, a comunidade reivindicada pela burguesia era uma comunidade política, a qual devia favorecer a plena realização da comunidade do capital. (Isto é, doravante todas as forças vitais do proletariado, portanto da espécie humana, voltam-se contra ele sob forma do capital, valor em processo que busca valorizar-se ao máximo e, cuja comunhão inumana, constitui o elo de ligação e de desenvolvimento da espécie sob a forma contraditória e monstruosa da comunidade do capital).

6.3.3. Ao jovem hegeliano Arnold Ruge, que profetizava o sufocamento de toda revolta que eclodisse no “isolamento funesto dos homens do ser coletivo “ (Gemeinwesen), Marx respondia em 1842 que toda revolta social eclode neste isolamento, pois visa precisamente dar-lhe fim. Isso não significa nada se não se precisar a natureza do ser coletivo do qual se fala. Para a burguesia trata-se de apropriar-se de uma Gemeinwesen política, de por fim ao isolamento frente à esfera política, frente ao Estado. Assim, Marx replica a Ruge que:

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“... a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes sem influência política de suprimir seu isolamento frente ao ser do Estado e do poder. Seu ponto de vista é o do Estado, de uma totalidade abstrata que só existe na separação da vida real, que seria impensável sem a contradição organizada entre a idéia geral e a existência individual do homem. Em conformidade com sua natureza limitada e ambígua, uma revolução com alma política organiza, portanto, uma esfera dominante na sociedade às suas próprias custas”. (Marx, “O Rei da Prússia e a reforma social”, 1844)

6.3.4. Assim, a luta da classe burguesa por sua emancipação, falsamente apresentada como uma luta que libera universalmente a humanidade, somente chega a restabelecer uma nova forma de dominação de classe. Com a sociedade burguesa realiza-se a separação radical entre a esfera particular e a esfera universal.

No modo de produção capitalista efetua-se o triunfo do interesse egoísta 23, a destruição última de todo vestígio de comunidade natural, mas sem que surja uma livre comunidade dos homens fraternalmente unidos entre si.

Pelo contrário, é o capital que tenta colocar-se como comunidade, como princípio unificador na medida em que implica a separação da sociedade em classes. Ele efetua a socialização negativa na medida em que os homens acham-se unificados por um princípio que não é um princípio humano, mas um princípio capitalista: o valor, o dinheiro , o capital. A vida dos homens, suas relações sociais na sociedade civil, são inteiramente determinados pelo capital. A partir do momento em que a comunidade é destruída e a espécie atomizada em indivíduos, estes aparecem como personagens independentes e isoladas, deixando crer que o movimento social efetua-se de maneira não determinada, ao nível do acaso e da vontade dos indivíduos. De fato, como mostra Marx no Urtexte24, a interdependência dos indivíduos reforça-se com o desenvolvimento histórico e o movimento social impõem-se aos indivíduos como uma força superior. Na medida em que, ao mesmo tempo, reforça-se a aparência de autonomia e de independência dos indivíduos, a contradição entre a ideologia burguesa do livre-arbítrio, a apologia da iniciativa privada, etc... e a realidade do capital, onde este impõe as leis de seu desenvolvimento às classes que compõem a sociedade. O capital unifica, embora contraditoriamente, sob a forma da separação25 . Nossa doutrina, de pronto, previu a eclosão definitiva da contradição, que se tornou

23 “Ela (a burguesia, NDR) afogou os arrepios sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da sentimentalidade barata nas águas geladas do cálculo egoísta. Ela fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e substituiu as numerosas liberdades tão caramente adquiridas pela exclusiva e imperdoável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração escondida nas ilusões religiosas e políticas, ela introduziu uma exploração aberta, desavergonhada, direta, árida”. (Manifesto) 24 Fragmento da versão primitiva Contribuição à Crítica da Economia Política. 25 Cf. Hegel: “ O único interesse da razão é superar tais contrários cristalizados. Esse interesse da razão não tem sentido de opor-se em geral, à oposição e à limitação; pois a evolução necessária é um fator da vida que se forma na oposição eterna: a totalidade, na sua mais intensa vitalidade, só é possível pelo restabelecimento a parti da mais intensa separação.” (Diferenças dos Sistemas de Fichete e de Schelling)

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insustentável, dizendo que as forças produtivas tornaram-se muito grandes para relações de produção demasiado estreitas. As forças do comunismo já estão em ação no próprio interior da sociedade burguesa, e a revolução comunista é o ato de violência que permitirá inflexionar estas forças num sentido puramente comunista, suprimindo o entrave das relações sociais capitalistas.

6.3.5. O capital triunfa na esfera privada, na vida civil. Acima dessa esfera privada, o Estado aparece como princípio unificador por excelência, o órgão em que se realiza a essência social do homem, em suma, como uma pseudo-comunidade. O Estado, disse Marx na Ideologia Alemã, é uma comunidade ilusória.

“Segundo sua essência, o Estado político perfeito é a vida genérica do homem por oposição à sua vida material. Na sociedade civil todas as condições desta vida egoísta subsistem fora da esfera do Estado, mas como caracteres próprios da sociedade civil. Onde o Estado político atingiu seu desenvolvimento verdadeiro, o homem vive uma dupla existência, não apenas no pensamento, na sua consciência, mas na realidade, na vida, uma existência celeste e uma existência terrestre: a vida no seio da comunidade política, onde ele se considera como ser comunitário, a vida na sociedade civil, onde ele exerce sua atividade como homem privado, onde ele rebaixa a si próprio ao nível de maio e torna-se joguete de forças estranhas.” (A questão judia)

6.3.6. Temos portanto: uma comunidade real formada pela absorção das forças vitais do proletariado por parte do capital = a comunidade do capital. Este último tende a impor sua dominação tentacular sobre toda a sociedade. No seio desta reina o interesse egoísta; aparentemente, o homem vive e age na mais perfeita autonomia e independência em relação a seus semelhantes. Produto dessa sociedade, o Estado aparece como uma pseudo-comunidade, uma comunidade ilusória, lugar onde se encobrem as diferenças de classe e onde os indivíduos, enquanto cidadãos, encontram-se unidos em uma mesma esfera, como na religião.

6.3.7. O proletariado é excluído de toda comunidade, isto é, ele também é excluído da comunidade política que é o Estado. Este último não reconhece existência política das classes, e portanto ao proletariado. O proletariado ergue-se enquanto classe contra a burguesia (portanto contra o Estado), quando está organizado em partido comunista, o qual prefigura a comunidade humana. Quando revolucionário o proletariado opõe, portanto, sua própria comunidade à comunidade do capital. Inversamente, enquanto está submetido à comunidade do capital, nos períodos de contra-revolução, o proletariado deixa de existir como classe revolucionária.

6.3.8. Esta situação particular do proletariado tem conseqüências precisas sobre a natureza de sua atividade revolucionária: esta não é uma atividade política no sentido tradicional do termo. O proletariado não tem que procurar inserir-se na

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sociedade, a fazer-se admitir por ela, mas procurar destruí-la de alto a baixo. No mesmo sentido (tese que foi amplamente reforçada e demonstrada no decorrer da Comuna de Paris), o proletariado revolucionário não tem que tomar, tal qual, a máquina de Estado e fazê-la “funcionar em seu próprio benefício”, mas destruí-la.

6.3.9. A partir dessa situação real do proletariado face ao Estado, pode-se distinguir duas posições teóricas divergentes: uma, para a qual a emancipação do proletariado é a que faz cessar essa exclusão frente ao Estado, e outra, para a qual não é no terreno da emancipação política, que não é o seu, mas no da emancipação humana, que o proletariado deve agir.

6.3.10. A primeira posição – antes de ser erigida em princípio pelas correntes reformistas e depois oportunistas estalinistas - , foi defendida pelos jovens hegelianos (Ruge, Bauer...) e atacada prontamente por Marx, em suas polêmicas contra esta corrente. Na medida em que Marx disse então que uma das primeiras tarefas era destruir o monstro hegeliano (para quem a teoria do Estado ocupa um lugar importante, senão o principal), compreende-se que os textos ditos de “juventude” dêem uma grande importância à questão do Estado. Portanto, é falso dizer que Marx “nada escreveu sobre o Estado” e que outros (Lenine por exemplo) teriam vindo completar nesse ponto, uma teoria deficiente. Ao contrário, a importância de textos como “A questão judia”, “O rei da Prússia e a reforma social”, “Crítica moralizante e Moral Crítica” ou “Crítica da filosofia do direito hegeliano”, todos escritos nos anos 1842-44, é que, sob muitos aspectos liquidam o problema do Estado. De resto, todas estas posições foram depois confirmadas historicamente e comentadas em textos como “O 18 Brumário”, “A Guerra Civil na França”, as “Lutas de Classes na França”, etc. Há na obra comunista todos os elementos necessário para levar a bom termo a crítica exaustiva desta esfera alienada, desta “comunidade ilusória”, que é o Estado. Não há dúvida de que todos esses elementos esparsos teriam sido reunidos num “todo artístico” no volume previsto sobre o Estado da “Economia” em seis livros26. É portanto, um trabalho de partido que o proletariado revolucionário deverá efetuar.

6.4. O ESTADO NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL

6.4.1. Definimos a fase de submissão formal do trabalho ao capital como a época em que o modo de produção capitalista precisa ainda completar sua dominação sobre o conjunto da sociedade e na qual luta para aniquilar definitivamente os resíduos das formas de produção anteriores. Para acelerar esta destruição, para precipitar um desenvolvimento que o movimento histórico “espontâneo” por si só

26 O plano do livro sobre o Estado é o seguinte: “Síntese da sociedade burguesa sob a forma do Estado; o Estado considerado em si mesmo; as classes improdutivas; impostos; dívida pública; crédito público; a população; as colônias; emigração”.

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realizaria num período muito mais extenso, a classe burguesa, nesta fase, recorre sistematicamente à intervenção do Estado.

6.4.2. Retomando os principais ensinamentos de nossa teoria de partido, mostramos no primeiro capítulo deste trabalho, que o capital nada cria, “nada acumula”, mas separa os elementos pré-existentes do processo de produção ( o trabalhador, a terra, os instrumentos de produção) para reuni-los em seguida sob sua autoridade, submetê-los à sua organização. Nesse movimento a burguesia não pode prescindir da ajuda do Estado, que lhe é indispensável para:

- romper as relações sociais pré-capitalistas

- completar a separação entre o trabalhador, a terra e os meios de produção

- romper a resistência das camadas sociais, até então dominantes (nobreza)

- disciplinar e forjar pelo terror o proletariado nascente

- abrir novos campos à expansão do capital (protecionismo, colonialismo,...etc).

- fornecer a constituição de um mercado nacional quadro no qual a atividade da sociedade burguesa pode realizar-se plenamente.

“Descentralizada nos dois sentidos, vertical e horizontal, a organização da sociedade e do Estado feudal constitui um obstáculo ao impulso burguês que tende à formação da nação unitária moderna. Com efeito, de uma parte, as “ordens” reconhecidas têm cada uma seu próprio direito e excluem, até certo ponto, as relações sociais com o exterior, se bem que formam, por assim dizer, outras tantas nações autônomas; de outra parte, os distritos feudais também funcionam como economias fechadas, inclusive no que diz respeito à força de trabalho humana, fazendo dos grupos de trabalhadores servos outras tantas pequenas nações subjugadas.” (Bordiga, Fatores de raça e de nação...)

6.4.3. A “questão política” sempre é determinada pela questão social. Ora, a questão social, para a burguesia ascendente, era a questão da propriedade.

“No curso da revolução inglesa, como na revolução francesa, a questão da propriedade era: fazer prevalecer a livre concorrência e suprimir todas as condições feudais da propriedade, tais como o poder dos senhores sobre a terra, as corporações, os monopólios, ...etc, o que, para a indústria que havia crescido entre os séculos XVI e XVII, tinham se tornado entraves.” (Marx. Crítica moralizante e moral crítica)

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6.4.4. Como mostrava Engels contra Dühring, não é a violência enquanto tal que pode contribuir para criar um tal estado de coisas, mas, ao contrário, é o movimento histórico quem coloca as bases disso na realidade material, e a violência ( o Estado) só pode contribuir para completá-la, para realizá-la 27. Assim o valor, o dinheiro, o capital exercem sua ação dissolvente sobre a economia patriarcal, sobre as relações de produção feudais, contribuindo para romper a antiga unidade do homem com a terra, os meios de produção, ... etc. O Estado, enquanto superestrutura de força, intervém para redobrar o movimento que se exerce na base material, para reforçá-lo, canalizá-lo na direção desejada, acelerá-lo, radicalizá-lo.

6.4.5. Na fase de submissão formal do trabalho ao capital, a burguesia não pode prescindir de uma intervenção constante do Estado. É necessário, portanto, que ela o conquiste para dispor de um instrumento que lhe franqueie o caminho, que facilite sua emancipação e sua constituição em classe dominante. Para conquistar o Estado, a classe burguesa dispõe da mais dissolvente dar armas: o dinheiro.

“(...) os servos compraram sua liberdade; as comunas compraram os direitos municipais; os burgueses, pelo comércio e a indústria, subtraíram, de uma parte o dinheiro dos bolsos dos senhores feudais, cuja propriedade fizeram volatilizar-se em títulos, ajudaram, de outra parte, a monarquia absoluta a triunfar sobre os grandes senhores feudais, minados dessa maneira, e compraram dela seus privilégios, assim como posteriormente exploraram as crises financeiras da monarquia absoluta...etc...etc; graças ao sistema da dívida pública – produto da indústria moderna e do comércio moderno – a monarquias mais absolutas tombaram sob a dependência dos barões das finanças; nas relações internacionais dos povos, o monopólio industrial transforma-se imediatamente em supremacia política; e é assim que os príncipes da Santa-Aliança foram, na “guerra da independência alemã”, meros joguetes a soldo da Inglaterra...etc”. (Crítica moralizante e moral crítica)

6.4.6. A expressão adequada dessa força da burguesia, que ainda não tinha conquistado realmente o poder político e no momento em que a velha organização feudal e as forças que a sustentam estavam em vias de soçobrar, é a monarquia absoluta.

“O poder centralizado do Estado, com seus órgãos, sempre presentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura, órgãos dispostos segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do trabalho, data da época da monarquia absoluta, onde ele servia à presente

27 Pode ser que o Estado tente opor-se a esse desenvolvimento histórico, mas nesse caso, cedo ou tarde, é este último que imporá sua lei. Em todo caso, não há uma ação mecânica unilateral da base material sobre o Estado, este age também sobre as condições históricas.

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sociedade burguesa de arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo. No entanto, seu desenvolvimento permanecia entravado por toda sorte de escombros da idade média, prerrogativas dos senhores e dos nobres, privilégios locais, monopólios municipais e corporativos, e constituições provinciais. A gigantesca espanada da revolução francesa do século XVIII arrancou todos esses restos de tempos passados, desembaraçando assim, simultaneamente, o substrato social dos últimos obstáculos que se opunham à superestrutura do edifício do Estado moderno”. (Guerra Civil na França).

6.4.7. Assim, a classe burguesa já dispunha de um instrumento (mesmo se o poder real da época não era o Estado burguês) cuja grande missão civilizadora é a centralização, ruptura radical com o feudalismo, cuja palavra-chave é “localismo”. Dotada deste Estado, a burguesia podia utilizá-lo para fornecer sistematicamente a acumulação do capital.

Toma-se medidas protecionistas para proteger as indústrias nascentes; proíbe-se a emigração dos trabalhadores qualificados e inversamente favorece-se sua imigração. Na Inglaterra, o Estado intervém para facilitar o movimento dos “enclosures” (cercamento das terras comunais), permitindo a este último tomar sua verdadeira amplitude a partir do século XVIII. Na França, o Estado favorece a constituição das primeiras grandes manufaturas. Unifica-se pela força as províncias, sob a autoridade do Estado central, permitindo assim a livre circulação das mercadorias e do dinheiro. Fixa-se o curso das moedas. Impede-se a concorrência estrangeira de se manifestar, arruinando a indústria dos outros países, como a Inglaterra o fez com a Irlanda. Onde as necessidades da concentração do capital excedem as possibilidades dos capitalistas, o Estado intervém para conceder subsídios aos chefes de indústria. (É o caso da França no tempo de Colbert, cf. Marx, Capital I, 3a seção, XI)

6.4.8. Por todo lugar, o Estado intervém no curso da acumulação primitiva e da fase de submissão formal, para derrotar e disciplinar a classe operária nascente. Quando da expropriação da população dos campos, assistiu-se à generalização da vagabundagem, da mendicância, ... etc, pois “a criação do proletariado sem domicílio (...) era necessariamente mais rápida que sua absorção pela manufatura nascente” (Capital I, 8)

O assassinato, a tortura e todas as formas possíveis da força física brutal foram empregadas contra os vagabundos, os antigos servos camponeses livres, pequenos artesãos da cidade, para fazê-los proletários. Assim, muito antes que o próprio capital impusesse sua disciplina à classe operária, através do maquinismo, ele submeteu- pela violência política e o terrorismo. É igualmente o Estado que se encarrega de agravar as condições de exploração da classe operária, criando e mantendo uma superpopulação absoluta, como já vimos, rebaixando o salário e decretando leis que visam alongar a jornada de trabalho.

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6.4.9. Há um momento em que a separação da burguesia com relação ao Estado torna-se insustentável. É necessário realizar a adequação entre seu ser social e seu ser político, do qual falamos acima. Mesmo a pressão que ela exerce sobre a monarquia e graças à qual esta favorece a expansão histórica do modo de produção capitalista, não é mais suficiente. É necessário que a própria burguesia tome as rédeas do poder político, forje seu próprio Estado.

“Quando as condições de vida materiais da sociedade estão suficientemente desenvolvidas para fazer da modificação da sua forma política oficial uma necessidade vital, toda a fisionomia da velha potência política se transforma. É assim que a monarquia absoluta, em vez de centralizar, o que constituía sua verdadeira ação civilizadora, procura agora descentralizar. Oriunda da derrota das castas feudais, na destruição das quais ela mesma toma a parte mais ativa, procura salvaguardar pelo menos a aparência das distinções feudais. Enquanto antes ela favorecia o comércio e a indústria ao mesmo tempo que o sucesso da classe burguesa, como outras tantas condições necessárias da potência nacional e do seu próprio esplendor, a monarquia obstaculizou, por toda parte, o comércio e a indústria, que se tornaram armas cada vez mais perigosas nas mãos de uma burguesia já poderosa. Da cidade, berço de sua ascensão, ela lança um olhar ansioso e fraco sobre o campo fertilizado pelos cadáveres de seus antigos e gigantescos adversários.” (Crítica moralizante e moral crítica).

6.5. A REVOLUÇÃO BURGUESA E O ESTADO

6.5.1. No que concerne à revolução burguesa, não se pode separar a conquista do Estado pela burguesia da formação do Estado nacional. Como lembrava Bordiga, a burguesia não impõe a dominação mundial do sistema de produção do qual ela é portadora por meio de uma revolução mundial, mas graças a uma série de revoluções nacionais, cujo objetivo é a implantação da sociedade burguesa, seguindo ciclos que variam de acordo com as áreas e as épocas históricas.

6.5.2. É ao longo da dinâmica precisa e complexa dessas lutas burguesas para a implantação e a realização do Estado burguês nacional, que se efetua a demarcação do proletariado em relação à reivindicação burguesa do Estado nacional, ciclo ao longo do qual o proletariado, longe de desdenhar as lutas e movimentos nacionais, apóia-os a fim de poder conduzir de maneira nítida e clara sua própria luta contra a classe dominante e seu Estado.

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6.5.3. No que concerne à Europa ocidental 28 os tempos fortes deste ciclo são marcados pelas seguintes datas: 1648 na Inglaterra; 1789, 1830 e 1848 na França; 1871 na Alemanha e Itália.

As revoluções inglesas (1648) e francesa (1789) aparecem como figuras-modelo da revolução burguesa, no sentido em que elas contribuíram radicalmente para instaurar um novo modo de produção: o modo de produção capitalista. Na medida em que o proletariado nelas intervém, é para radicalizá-las, forçar o seu curso, e assim pressionar ao máximo a realização das condições mais aptas à expressão de suas próprias reivindicações.

“Nas duas revoluções (inglesa e francesa, ndr) a burguesia era a classe que se encontrava realmente à testa do movimento. Nas cidades o proletariado e as outras categorias não pertencentes à burguesia ou não tinham interesses diferentes dos da burguesia, ou não formavam ainda classes ou frações de classe com um evolução independente. Conseqüentemente, mesmo onde se opunham à burguesia, como por exemplo de 1793 à 1794 na França, só lutavam para fazer triunfar os interesses da burguesia, mesmo quando não fosse à sua maneira. Todo o Terror na França não foi outra coisa senão um método plebeu de acabar com os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o espírito pequeno burguês.

As revoluções de 1648 e 1789 não eram revoluções inglesa e francesa, eram revoluções de estilo europeu. Não eram a vitória de uma classe determinada da sociedade sobre o antigo sistema político, mas a proclamação de um sistema político para a nova sociedade européia. Eram o triunfo da burguesia, mas o triunfo da burguesia era o triunfo de um novo sistema social, a vitória da propriedade burguesa sobre a propriedade feudal, do sentimento nacional sobre o provincianismo, da concorrência sobre o corporativismo, da partilha sobre o morgado, da dominação do proprietário da terra sobre a dominação do proprietário que o era graças à terra, das luzes da superstição da família sobre o nome, da indústria sobre a preguiça heróica, do direito burguês sobre os privilégios da idade média. A revolução de 1648 era o triunfo do século XVII sobre o XVI, a revolução de 1789, a vitória do século XVIII sobre o XVII. Estas revoluções exprimiam ainda mais as necessidades do mundo de então do que as regiões do mundo onde se produziam, a França e a Inglaterra.” (Marx, A burguesia e a contra-revolução, in: Nova Gazeta Renana).

6.5.4. A partir do momento em que a burguesia, enquanto classe revolucionária, agita a bandeira da democracia política, do liberalismo, como guia de ação contra o feudalismo e os restos de formações sociais anteriores, destruindo as comunidades fechadas, ilhas de produção – consumo, pregando a unificação do

28 Na medida em que nossa tarefa aqui é apenas lembrar algumas posições fundamentais concernentes ao Estado e tirar ensinamentos concernentes à periodização do capital, utilizamo-nos somente do exemplo histórico da Europa. (Para o resto o leitor se reportará aos trabalhos da Esquerda).

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mercado nacional e desenvolvendo o mercado mundial, o proletariado luta ao seu lado, combate paralelamente à burguesia, para que essa realize o mais profundamente possível sua tarefa histórica. Mas, é o próprio curso da revolução burguesa que se manifesta “a alma social” revolucionária do proletariado, face à “alma política” da revolução burguesa. Desde o início, portanto, o proletariado luta contra a burguesia.

6.5.5. A democracia, que atinge sua forma acabada no Estado republicano (República democrática) é o quadro no qual as contradições sociais do modo de produção capitalista são levadas ao seu paroxismo, (cf. mais adiante tese 6.5.8.) e, conseqüentemente, é na luta de classe proletária pela “questão social” 29 que o proletariado enfrenta a burguesia enquanto classe distinta, reivindicando a verdadeira Comunidade (Gemeinwesen) humana, classe que não faz parte e nada tem a reivindicar na abstração da Gemeinwesen política burguesa. Ao longo dessa luta a classe burguesa tende a limitar seu movimento, capaz de levá-la longe demais e no curso do qual seu sistema de dominação corre o risco de ser colocado em questão. Assim, a burguesia volta-se contra o proletariado.

“O problema do proletariado é de saber aquilo que lhe fornece mais meios para atingir seus próprios objetivos: o atual regime político de dominação da burocracia ou o regime ao qual aspiram os liberais, um regime de dominação burguesa. Basta comparar a situação do proletariado inglês, francês e americano à do proletariado alemão para se convencer de que a dominação da burguesia dá aos proletários armas totalmente novas para lutar contra essa mesma burguesia e que ela o coloca também numa situação totalmente nova: seu reconhecimento enquanto partido.

(...) O proletariado não pode, naturalmente, mostrar qualquer interesse pelos direitos das diferentes ordens sociais. Mas uma Dieta que exigiria a instituição do júri, a igualdade de todos perante a lei, a abolição dos encargos feudais, a liberdade de imprensa e de associação e um verdadeira representação popular; uma Dieta que romperia para sempre com o passado e que basearia suas exigências nas necessidades atuais e não em velhas leis; uma tal Dieta poderia então contar com o mais enérgico apoio do proletariado”. (Marx, “O comunismo de Rheinischer Beobachter”, in Deutsche Brusseler Zeitung, 12.09.1847)

29 Em toda revolução burguesa surge uma ala radical capaz de colocar (senão de resolver) a “questão social” em termos outros do que aqueles da burguesia, que, como vimos, só é capaz de raciocinar em termos políticos. “A primeira aparição de um partido político realmente atuante produz-se no quadro da revolução burguesa, no momento em que a monarquia constitucional acaba de ser posta de lado. Os republicanos mais conseqüentes na Inglaterra, os niveladores, e na França, Babeuf, Buonarotti..., etc, são os primeiros a terem proclamado estas “questões sociais”. A conspiração de Babeuf, escrita por seu amigo e companheiro Buonarotti mostra como os republicanos buscaram no “movimento” histórico a idéia de que, livrando-se da questão social: Monarquia ou República, não se teria ainda resolvido a menor “questão social” no sentido do proletariado”.

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6.5.6. Um dos episódios históricos que melhor ilustra a dinâmica da luta do proletariado na revolução burguesa, sua delimitação enquanto classe, e portanto enquanto partido, face à classe burguesa e portanto face ao Estado burguês, é a revolução de 1848, no curso da qual foram traçadas definitivamente as grandes linhas do programa histórico do proletariado. Para a burguesia francesa, que havia sofrido em 1815 uma contra-revolução (no que concerne ao proletariado, a contra-revolução data de 1795), colocava-se o problema de “refazer”, ou melhor, de acabar seu ciclo revolucionário. Tal havia sido o motivo da insurreição de 1830, que só chegou a dar o poder a uma fração da burguesia, e mesmo assim não àquela que era a mais avançada historicamente. Sob a monarquia de Louis-Phelippe reinavam a alta finanças e os proprietários fundiários. Como Marx e Engels demonstraram brilhantemente em seus escritos de partido de então 30, a dominação burguesa no seu conjunto e notadamente da burguesia industrial era uma necessidade histórica para tirar a França de seu estado de subdesenvolvimento crônico e torná-la, como a Inglaterra, uma verdadeira nação capitalista. Em outros termos, a passagem à fase de submissão real necessitava tanto de uma revolução na esfera da produção como de uma revolução dos mecanismos políticos, para torná-los adequados a essa transformação.

“O desenvolvimento do proletariado industrial tem como condição geral o desenvolvimento da burguesia industrial. É somente sob a dominação desta última que sua existência assume uma amplitude nacional permitindo-lhe elevar sua revolução ao nível de uma revolução nacional; é somente então que ele mesmo cria os meios de produção modernos que tornam-se também meios de sua libertação revolucionária. Somente a dominação da burguesia industrial extirpa as raízes materiais da sociedade feudal e aplaina o único terreno sobre o qual uma revolução proletária é possível. A indústria francesa é mais evoluída, e a burguesia francesa é mais desenvolvida, do ponto de vista revolucionário, que a do resto do continente. Mas a revolução de fevereiro não foi dirigida diretamente contra a aristocracia financeira? O fato provou que não era a burguesia industrial que reinava sobre a França. A burguesia só pode reinar onde a indústria moderna tenha modelado à sua maneira todas as relações de propriedade, e a indústria só pode conquistar este poder onde tenha conquistado o mercado mundial, pois as fronteiras nacionais não bastam ao seu desenvolvimento. Ora, a indústria francesa só controla grande parte do mercado nacional graças a um sistema proibitivo submetido a modificações mais ou menos grandes”. (Marx, As lutas de classes na França)

Era necessário, entre outras coisas, substituir o protecionismo por um verdadeiro desenvolvimento capitalista autônomo a nível nacional, isto é, generalizar a passagem à fase de submissão real do trabalho ao capital.

30 Qual revolucionário conseqüente não deplorará amargamente o fato de que ninguém hoje – e sobretudo os lamentáveis escriturários da corrente “revolucionária” que folheiam desesperadamente a imprensa burguesa à cata de “explicações históricas” dos acontecimentos atuais – seja capaz de efetuar, graças a trabalhos de partido, o equivalente das análises que Marx e Engels produziram sobre os eventos de seu tempo.

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6.5.7. “(...) a República de Fevereiro fez aparecer a dominação burguesa em toda a sua clareza, derrubando a coroa atrás da qual se dissimulava o capital”. (idem)

Foi a Revolução de Fevereiro que permitiu à burguesia unificar-se e exercer sua dominação enquanto classe com todas as frações unidas (os antagonismos entre burguesia industrial e aristocracia fundiária assumiram a forma de enfrentamentos políticos entre duas frações realistas).

“A monarquia burguesa de Louis-Philippe só pode suceder a república burguesa. Isto quer dizer que, enquanto sob a monarquia era uma parte restrita da burguesia que havia reinado em nome do rei, doravante é o conjunto da burguesia quem deve reinar em nome do povo”. (O Dezoito Brumário de Louis Napoléon Bonaparte)

Assim, a República Burguesa é, por excelência, a forma de governo de toda classe burguesa, forma em que a classe enquanto totalidade encontra sua unidade pela fusão de seus diferentes momentos, frente ao proletariado. É no curso desse movimento histórico que esse realiza “o alinhamento político das classes” (Bordiga) em luta: de um lado a burguesia, cujo Estado é o “comitê de gestão”, de outro, o proletariado, que se organiza em partido político para derrubar o Estado burguês.

6.5.8. A própria realização da República democrática burguesa impõe a partição política entre os dois adversários: a burguesia e o proletariado. Como exprime Marx, é dialeticamente o próprio proletariado quem impele à realização desta partição “fazendo surgir uma contra-revolução compacta, poderosa, criando um adversário e combatendo-o” É assim que “o partido da subversão pôde enfim tornar-se um partido verdadeiramente revolucionário”. (Lutas de Classes na França). Assim verifica-se, uma vez mais, o fato de que a própria ação do proletariado obriga a burguesia a realizar sua missão 31 , assim como é o proletariado que, engajando a luta contra o capital, obriga-o a realizar sua dominação adequada sobre a sociedade forçando a passagem à fase de submissão real do trabalho ao capital.

6.5.9. Desde que a polarização das duas classes adversas está plenamente efetuada, desde que o Estado burguês consolidou-se frente a seu inimigo proletário, que é o único que resta na arena, uma vez eliminados os resíduos das forças que se punham à introdução do modo de produção capitalista, não há mais lugar para qualquer aliança entre a burguesia e o proletariado. Qualquer um que proponha a perenidade de tal aliança é um traidor. Desde então só há lugar para o enfrentamento radical, definitivo entre os dois campos. É conta a república

31 “Fazendo se seu túmulo o berço da República Burguesa, o proletariado força-a aparecer prontamente sob sua forma pura como o Estado cujo objetivo declarado é perpetuar a dominação do capital, a escravidão do trabalho” (idem)

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democrática que o proletariado empunhou as armas em junho de 1848. Ele foi batido, mas no curso dessa derrota demonstrou, com as armas na mão, o que era e o que devia ser o autêntico combate do proletariado contra a dominação burguesa sob todas as suas formas.

“Foi a burguesia que obrigou o proletariado de Paris à insurreição de junho. Daí sua sentença de condenação. Suas necessidades imediatas, reconhecidas, não o levavam a querer obter pela violência a derrubada da burguesia, ele ainda não estava à altura para cumprir essa tarefa. Coube ao “Moniteur” ensinar-lhe oficialmente que já fora o tempo em que a República julgava oportuno homenagear suas ilusões, e só a derrota o convenceu da verdade de que a mais ínfima melhoria de sua situação permanece uma utopia no seio da República burguesa, utopia que se transforma em crime assim que pretenda realizar-se. A suas reivindicações, exageradas pela forma, pueris pelo conteúdo e por isso mesmo ainda burguesas, com as quais ele queria arrancar a concessão à revolução de Fevereiro, substituiu a audaciosa palavra de ordem de luta revolucionária: Derrubada da burguesia! Ditadura da classe operária! (Lutas de classes na França)

6.5.10. A advertência, a reprimenda do proletariado, que anunciava de um modo enérgico o crepúsculo da sociedade burguesa aos seus defensores sanguinários, fez a burguesia tomar conhecimento, de um só golpe, de todo o perigo de uma situação onde o antagonismo de classe se polarizou, a burguesia e o proletariado estando doravante sozinhos frente a frente, como dois inimigos.

Assim, frente ao espectro do comunismo, a burguesia aciona forças que rapidamente a superam; buscando aliados e protetores contra o proletariado, ela mesmo assume o risco de sofrer uma dominação, de ver-se lesada em seus interesses políticos. Para que a verdadeira missão da burguesia – o desenvolvimento das forças produtivas – pudesse completar-se, era necessário derrotar e liquidar o proletariado. Para isso era preciso, uma vez mais, que toda potência do Estado se dirigisse contra o gigantesco adversário, “o inimigo coberto de cicatrizes, implacável e invencível”, (Marx): contra o proletariado. É essa dinâmica que levou a burguesia, durante todo o Segundo Império, a deixar o Estado imperial cumprir as tarefas policialescas contra a classe operária, ao preço da demissão política da burguesia.

“Louis Bonaparte tirou dos capitalistas seu poder político, sob pretexto de protegê-los, eles os burgueses, contra os operários, e por sua vez proteger os operários contra eles; mas, em contrapartida, sua dominação favoreceu a especulação e a atividade industrial, em suma o desenvolvimento e o enriquecimento de toda a burguesia a um ponto inimaginável”. (Engels, Introdução à “Guerra Civil na França”, 1891)

Quando a democracia burguesa foi colocada em questão, por ocasião do golpe de Estado de Louis-Bonaparte, o proletariado que havia apr5endido a

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conhecer em junho de 1848 a verdadeira natureza, a natureza sangrenta e feroz dessa democracia, não fez um movimento para defendê-la.

6.5.11. Desse retraimento das frações da burguesia diante do Títere Bonaparte, não se deve concluir que a burguesia enquanto classe renunciava ao cumprimento de sua tarefa histórica: o desenvolvimento das forças produtivas. Ao contrário, liberada das preocupações imediatas da política, ela podia dedicar-se muito melhor à esta tarefa. Durante todo esse período o modo de produção capitalista conheceu na França um grande desenvolvimento, generalizando a fase de submissão real do trabalho ao capital. Todavia durante todo esse período a forma de dominação política ainda não é adequada, tendo a burguesia delegado o poder político a Napoleão III, por medo ao proletariado e devido às suas divisões internas.

6.5.12. Do desenvolvimento da sociedade burguesa, durante esse período deviam nascer as bases para aprofundamento da fase real em escala européia. A fase fecha-se em 1871, com a guerra franco-alemã. Na Alemanha, transformada doravante em nação plenamente capitalista, não mais se coloca – é também o caso para toda a Europa ocidental – o problema da revolução dupla. Em nenhuma parte na Europa, o proletariado tem que sustentar a emancipação nacional de sua burguesia. A Europa entra na era das guerras imperialistas e das revoluções comunistas. Um fato que demonstrou que o ciclo histórico em que o proletariado participa na emancipação nacional da burguesia – e portanto, numa certa medida, na constituição do Estado – nação – estava definitivamente morto, foi a Comuna de Paris. Mas o Império foi derrotado e a república democrática proclamada, o proletariado parisiense sublevou-se, confirmando assim a teoria e a palavra-de-ordem lançada vinte anos antes: contra a república democrática a única resposta proletária é a ditadura do proletariado. Contra o Estado burguês: Revolução Comunista!

“A antítese direta do Império foi a Comuna. Se o proletariado de Paris havia feito a revolução de Fevereiro ao grito de “Viva a República Social”, este grito só exprimia uma vaga aspiração a uma república que não devia apenas abolir a forma monárquica da dominação de classe, mas a própria dominação de classe. A Comuna foi a forma positiva desta República”. (Guerra Civil na França)

6.6. O ESTADO NA FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL

6.6.1. Democracia Política e Democracia Social

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6.6.1.1. Enquanto classe revolucionária, na primeira fase de sua existência, a burguesia fazia-se campeã dos ideais democráticos. Como dissemos, ela propõe uma solução política para a perda da comunidade. Ela pretende conciliar politicamente os antagonismos no seio do Estado.

“O Estado abole a seu modo as diferenças de nascimento, de condição, de instrução, de emprego, quando declara que nascimento, condição, instrução, emprego, são diferenças não políticas, quando, sem considerar essas diferenças, proclama que cada membro do povo participa do modo equivalente na soberania do povo, quando trata todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Isso não quer dizer que o Estado não deixa a propriedade privada, a instrução, o emprego, exercerem sua ação e fazerem valer sua natureza particular à sua maneira, isto é, como propriedade privada, como instrução, como emprego. Longe de suprimir estas diferenças de fato, ele só existe, ao contrário, pressupondo-as, ele só reconhece a si mesmo como Estado político e só faz valer sua universalidade na oposição a esses elementos que lhe pertencem.” ( A Questão Judia).

Na “Origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Engels exprime exatamente a mesma tese, mostrando igualmente seu caráter histórico. Quando o Estado alcança o nível em que conseguiu, aparentemente demarcar-se dos antagonismos ligados às diferenças de classe, ter-se-á atingido o mais alto momento do Estado, seu acabamento. Ele consegue não mais repousar oficialmente sobre diferenças de fortuna de situação, ... etc, mas apresentar-se como Estado de todos. Marx, Engels, e depois Lenine, sempre apresentaram a República democrática como a forma acabada e adequada do Estado.

“(...) (O) reconhecimento político da diferença de fortuna não é o todo essencial. Pelo contrário, denota um grau inferior de desenvolvimento do Estado. A forma do Estado mais elevada, a República democrática, que se torna cada vez mais uma necessidade inelutável nas nossas condições sociais modernas, e que é a forma de Estado sob a qual pode ser travada até o fim a última batalha decisiva entre proletariado e burguesia, a república democrática não reconhece mais, oficialmente, as diferenças de fortuna. A riqueza exerce seu poder de uma maneira indireta, mas muito mais segura” (Origem da Família.... grifado por nós)

6.6.1.2. A República democrática é a forma adequada do Estado na fase de submissão real. Se o Estado aparece como liberado das diferenças sociais, estas vão dialeticamente atuar plenamente na vida civil como diz Engels. As classes presentes cristalizaram-se e alinham-se uma perante a outra para o combate final. No plano político tem-se a realização de uma democracia de tipo político = igualdade dos cidadãos no seio do Estado. Participação igual de cada um na vida do Estado, sem consideração das diferenças de fortuna ou de origem social. Mas a mistificação reside no fato de que, como sublinha Engels, deixadas em “estado natural”, na esfera da vida real, estas diferenças expandem-se, realizam-se,

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agindo de maneira perfeitamente adequada. Assim, como, quando Estado separa-se oficialmente da religião, ele realiza-se como Estado, enquanto que a religião reforça-se no extremo oposto (cf. A Questão Judia); aqui, o Estado atinge seu mais alto grau de desenvolvimento.

6.6.1.3. Doravante encontramo-nos numa situação em que o enfrentamento decisivo entre as classes é facilitado, uma vez que os obstáculos à este enfrentamento foram derrubados. Temos a dominação pura da burguesia e frente a ela o proletariado. Não há mais terceira força (nobreza, realeza), sobre a qual desviar a ação do proletariado, como era o caso até 1848, quando a dominação da burguesia ainda era mascarada pela predominância de uma de suas frações realistas. Doravante (cf. Comuna de Paris), não há mais obstáculo para que uma luta direta e decisiva possa desenvolver-se entre o proletariado e a classe capitalista.

6.6.1.4. Mas, como vimos e como explicaram, desde cedo, os teóricos comunistas, a solução da “questão política” não resolve os antagonismos no seio da sociedade. Ao contrário, ele permite sua polarização, sua realização. A “questão social” coloca-se de maneira ainda mais aguda para a burguesia, pois doravante, o capital reina soberano e a questão social só pode ser resolvida pelo desaparecimento do capital. Estes males sofridos pela sociedade só têm um único responsável: o modo de produção capitalista. Com a fase de submissão real, portanto, coloca-se de maneira ainda mais aguda para a burguesia a necessidade de mistificar o proletariado, de dissimular e desnaturar o conflito de classes. Completado seu ciclo revolucionário, a burguesia torna-se conservadora e busca a todo preço a manutenção da ordem social existente.

O papel do Estado, “de um poder que, colocado aparentemente acima da sociedade, deve ocultar o conflito (de classes) e mantê-lo nos limites da ordem” (Engels), vai realizar-se plenamente com a fase de submissão real, em que todos os meios são acionados para mistificar o proletariado, integrá-lo, derrotá-lo, tirar seu caráter revolucionário.

6.6.1.5. Com a fase de submissão real, instaura-se o processo de produção adequado ao modo de produção capitalista. Os mecanismos da produção de mais-valia se complexificam e o capital tolera cada vez menos as perturbações em seu seio. É necessário que o processo de valorização prossiga com o máximo de continuidade e de regularidade. O capital deve proteger as enormes massas de capital constante (capital fixo) engajadas para favorecer a maior exploração do proletariado e para que a utilização desse capital fixo seja feita dentro das normas sociais requeridas, isto é, com toda a eficácia desejada. Donde, toda interrupção da produção, seja ela devido à parada normal da jornada de trabalho ( o que pressiona o capital, por causa do valor engajado, a utilizar os meios de produção

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24 horas por dia), seja ela devido a atos de luta ou de revolta do proletariado (greves, sabotagens,...) torna-se intolerável para o capital. Donde a necessidade vital de um reforço draconiano no despotismo do monstro-capital sobre o proletariado. Além disso, mais as forças produtivas estão socializadas, mais sua interdependência aumenta e menos pode ser tolerada uma ruptura em qualquer parte do organismo social. Dialeticamente, esse despotismo crescente é tão mais eficaz quanto mais poderosa seja a democracia.

Doravante a classe capitalista poderá arregimentar o proletariado, tentará atuar no terreno social, propondo reformas,... etc. Donde a implantação de uma democracia social. Doravante, não se trata apenas de conceder uma igualdade política, uma participação de cada um na esfera do Estado, mas trata-se também de uma igualdade econômica, uma participação de cada um na “expansão”, nos resultados da acumulação. O reforço do capital, no curso da fase de submissão real fornece-lhe os meios adequados para realizar esta democracia social: generalização do salariado, tentativa de negar as classes; intervenção crescente do Estado na economia (Welfare State); melhoria das condições de vida da classe operária, ... etc.

6.6.1.6. Esta preocupação da classe capitalista transparece desde a passagem à fase de submissão real, na Europa após 1871. Mas é com o fascismo – através da guerra da derrota e do aniquilamento do proletariado – que se implantam plenamente os mecanismos da democracia social e da intervenção crescente do Estado na sociedade. É por isso que escrevemos: democracia social = fascismo. É também por isso que uma das teses maiores da Esquerda Comunista da Itália após 1945 era: o fascismo ganhou a guerra, malgrado os fascistas a tenham perdido. Isto significa que os mecanismos implantados com a instauração do regime fascista foram mantidos e reforçados uma vez desaparecido o regime. De todo modo, a evolução para a democracia social foi um fenômeno geral, inclusive nas democracias ocidentais. Nos Estados Unidos o New-Deal, na França a Frente Popular, desempenharam mais ou menos o mesmo papel que o fascismo italiano e alemão na evolução do modo de produção capitalista.

6.6.1.7. É graças à intervenção do proletariado na luta de classes no curso do ciclo revolucionário burguês, que o Estado capitalista foi forçado a realizar-se. “Todas as revoluções tiveram portanto, como conseqüência única, o aperfeiçoamento do aparelho do Estado, em vez de rejeitar esse tormento asfixiante”. (Marx, Primeiro Ensaio de redação de A Guerra Civil na França).

Assim como ocorre na esfera da produção, na esfera política é a ação do proletariado que força o capital a implantar os mecanismos da fase de submissão real, e assim ele força-o a generalizar as condições de sua destruição.

Levando a seu termo a revolução burguesa, e empreendendo lutas pelo sufrágio universal, o proletariado força a burguesia a fechar o capítulo da

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emancipação política, e a abrir o da emancipação social. Mas, desde então, não é mais ela que está em condições de resolver o que quer que seja, mas o proletariado. Para isso, o proletariado não tem que empregar meios políticos; o único e derradeiro ato político que ele cumpre é a revolução comunista.

“A questão da propriedade que é, “em nossa época”, uma questão mundial, só tem sentido, portanto, na sociedade burguesa moderna. Mais essa sociedade está desenvolvida mais a burguesia está, portanto, do ponto de vista econômico, desenvolvida num país, mais a questão social aparece aguda; ela é mais aguda na França do que na Alemanha, na Inglaterra que na França, em uma monarquia constitucional do que numa monarquia absoluta, mais aguda numa república do que numa monarquia constitucional. É assim, por exemplo, que as colisões do crédito, da especulação, ... etc, não são em nenhuma parte mais agudas do que nos Estados Unidos. E em nenhuma parte a desigualdade social afirma-se mais claramente do que nos Estados do leste da América do Norte, porque em nenhuma parte ela está menos escondida pela desigualdade política.” (Crítica moralizante e moral crítica)

6.6.1.8. Doravante, com a fase de submissão real, o capital submete o Estado. É graças ao Estado, à sua onipresença na sociedade, a sua intervenção constante, que o capital vai pretender resolver questão social, realizar a democracia social, o Estado, doravante integrado ao capital, é o instrumento graças ao qual este vai tentar planificar e regularizar a atividade econômica. É ele igualmente que pelo viés de todo um sistema de assistência social procura reforçar a integração do proletariado, reconciliar-se com ele a fim de reforçar o equilíbrio social.

6.6.1.9. Portanto, a relação do Estado com o capital modificou-se. Enquanto que na fase de submissão formal a fraqueza e a falta de maturidade dos mecanismos da produção capitalista impõem o recurso constante ao Estado, enquanto organismo externo que sustenta e favorece o desenvolvimento da produção capitalista 32, na fase de submissão real o modo de produção capitalista tornou-se suficientemente forte para assegurar, por si mesmo, seu próprio movimento, a reproduzir seu próprio processo. Agora, não é mais da ajuda externa do Estado que o capital necessita. Em contrapartida, o capital submeteu o Estado, englobou-o como um de seus momentos, e este lhe é indispensável para manter o status quo social, manter as condições mais propícias ao bom desenvolvimento do processo de produção capitalista. Assim, se num primeiro momento temos a constante intervenção aberta do Estado, um emprego constante da força do Estado para sustentar o modo de produção, num segundo momento “O Estado moderno é então apenas a organização que se dá a sociedade burguesa para manter as condições externas gerais do modo de produção capitalista contra as

32 “Enquanto a potência do dinheiro não é o elo de ligação entre os homens e as coisas. As relações sociais devem ser política e religiosamente organizadas” (Grundrisse)

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usurpações provenientes dos operários e de capitalistas isolados” (Engels – Anti-Dühring)33

Por outra parte, na fase de submissão real o Estado dispõe de uma base material – os impostos – nitidamente mais ampla, na medida em que pode apropriar-se de uma parte muito maior da mais-valia, o que lhe permite desempenhar um papel mais importante no processo de reprodução da sociedade burguesa.

6.6.1.10. Cada vez mais integrado ao capital, o Estado intervém de modo constante na economia, tentando planejar a produção e racionalizar a atividade econômica. É por intermédio dele que o capital integra os sindicatos. Em certa medida, o Estado facilita o fortalecimento da comunidade do capital; doravante, a comunidade ilusória que ele é vê sua capacidade de mistificação reforçada em função da realização da democracia social, cuja necessidade para o capital cada vez mais despótico e totalitário, já apontamos anteriormente. Para derrubar a dominação do capital e abrir caminho para a emancipação da espécie humana, o proletariado organizado em partido comunista terá que destruir o Estado capitalista e exercer sua ditadura.

33 cf. Marx – O Capital – livro 1, seção 8

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7. O MOVIMENTO DAS CLASSES SOCIAIS NAS DUAS FASES

Com a passagem para a fase de submissão real, o capital realiza-se, encontra uma base adequada ao seu ser e estabelece sua dominação integral sobre o conjunto da sociedade. É portanto normal que as principais classes presentes, que são as protagonistas do conflito histórico inerente ao modo de produção capitalista, vejam sua fisionomia modificar-se, sua existência social tornar-se cada vez mais pua e mais conforme às exigências do modo de produção capitalista plenamente desenvolvido. Ao mesmo tempo, a mistificação que cresce consideravelmente encobre e embaralha totalmente as cartas, nas quais os estatísticos burgueses não encontram mais as categorias “superadas” da teoria comunista. Nesta parte do nosso texto, nos ateremos principalmente à questão das classes médias, pedra de toque do revisionismo e pedra de escândalo das correntes supostamente revolucionárias, que proclamam-se continuadoras da obra comunista.

Examinaremos portanto, de modo apenas sucinto, os três principais protagonistas do modo de produção capitalista: burguesia, proletariado e proprietários fundiários. Principais, porque únicos a desempenhar um papel histórico no seio da sociedade.

7.1. BURGUESIA, PROLETARIADO E PROPRIETÁRIOS FUNDIÁRIOS NAS DUAS FASES

7.1.1. Fase de Submissão Formal do Trabalho ao Capital

7.1.1.1. A fase de submissão formal assiste à emergência de dois inimigos cujos interesses opõem-se irredutivelmente: burguesia (e proprietários fundiários) e proletariado. Para poder colocar em ação os meios de produção, o burguês capitalista deve encontrar à sua frente, no mercado, uma mercadoria de um gênero particular: a força de trabalho, que cria mais valor do que custa para ser mantida. Em outros termos, a burguesia deve encontrar à sua frente uma classe sem reserva, cujas ligações com a terra e com os instrumentos de produção foram rompidas. Já vimos anteriormente quais são as principais etapas deste processo: emergência de uma burguesia proprietária dos meios de produção e expropriação dos homens destinados a formar a massas explorada do proletariado. A burguesia partilha então com os proprietários fundiários o monopólio dos meios de produção, dos meios de consumo, enquanto o proprietário fundiário dispõe da terra.

7.1.1.2. Vimos que, durante a fase de submissão formal, a unidade produtiva modelo do modo de produção capitalista era a manufatura. Na escala da sociedade, permanecia ainda amplamente a oficina artesanal. No conjunto, a

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produção continua fundamentada na profissão. O operário conserva uma habilidade herdada do período artesanal.

Ao longo desta fase, a força de trabalho permanece qualificada. A divisão do trabalho que é instaurada nas manufaturas apóia-se ainda nesta qualificação. A força de trabalho tem pouca mobilidade, ficando confinada nos acanhados limites da profissão, da região. A população operária é ainda pouco encontrada, mas cresce rapidamente dada a força da acumulação do capital. 34 O operário ainda guarda vínculos com o campo; sua condição de sem-reserva ainda não atingiu a universalidade que ela conhecerá com a fase de submissão real. No seu conjunto, a classe operária ainda continua marcada pelos limites de um modo de produção que ainda não amadureceu, pela pouca amplitude do mercado mundial, dos meios de comunicação, etc..., sintomas de um desenvolvimento ainda fraco das forças produtivas e de uma situação que implica para a classe operária um horizonte estreito e limitado, que não a torna ainda uma classe capaz de subverter a sociedade e de alçar-se à consciência histórica desta tarefa.

O capitalista ainda tem poucos operários, trabalha freqüentemente com eles e participa da produção. Quando seu capital é suficientemente desenvolvido, ele deixa de trabalhar manualmente e passa exercer apenas a função do capital, isto é, passa a dirigir seu processo de produção e de circulação. Ele age então como capitalista ativo, cuja função consiste em que seja produzido o máximo de mais-valia.

Ao favorecer a concentração do capital, ao aumentar o volume da produção, ao derrubar os obstáculos herdados do localismo das sociedade pré-capitalistas, a burguesia favorece um crescimento das forças produtivas. A ação revolucionária da burguesia foi facilitar o desenvolvimento da produção, o crescimento das forças produtivas. Por exemplo, criticando o luxo e os gastos da antiga nobreza feudal, pregando os novos valores morais do trabalho, da poupança e da abstinência, a burguesia só faz expressar no plano ideológico a profunda tendência que caracteriza seu ser: a paixão pela acumulação. O capital é um valor em processo que sempre procura valorizar-se ao máximo. A classe que encarna os interesses do capital se faz a intérprete deste impulso constante rumo à acumulação, fabricando para si a máscara austera do capitalista ávido de ganho, duro nos negócios, valorizando o esforço, pouco propenso ao consumo e ao prazer, jogando todas as suas forças na capitalização da mais-valia, na acumulação do capital:

“O capitalista não tem nenhum valor histórico, nenhum direito histórico a vida, nenhuma razão social de ser, porquanto funciona como capital personificado. É apenas a este título que a necessidade transitória de sua própria existência está implicada na necessidade transitória do modo de produção capitalista. O objetivo determinante de sua atividade não é portanto nem o valor de uso, nem o gozo, mas sim o valor de troca e seu

34 Para os demais aspectos referentes ao sindicato, pauperização, etc..., cf. capítulos anteriores.

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crescimento contínuo. Agente fanático da acumulação, ele força os homens, sem misericórdia nem trégua, a produzir por produzir, levando-os assim instintivamente a desenvolver as potências produtivas e as condições materiais únicas a poder formar a base de uma nova sociedade superior. O capitalista só é respeitável na medida em que ele é o capital tornado homem (...)

Sua vontade e sua consciência só refletem as necessidades do capital que representa, no seu consumo pessoal ele vê apenas uma espécie de roubo, ou de empréstimos, feitos à acumulação; e, com efeito, a contabilidade das partidas dobradas coloca as despesas privadas no passivo, como somas devidas pelo capitalista ao capital.” (Capital, 1, seção 7)

7.1.1.3. Esta paixão pela acumulação também leva a burguesia a criticar impiedosamente o “parasitismo” das antigas camadas sociais e das instituições que ela ainda não conseguiu submeter totalmente a si.

“É a linguagem da burguesia enquanto ela ainda é revolucionária, enquanto ela ainda não submeteu a sua lei toda a sociedade, o Estado, etc.

Aqui, todas estas profissões de nível elevado, veneráveis, soberanos, juízes, oficiais, padres, etc, todo o conjunto dos velhos corpos ideológicos que engendram, seus sábios, professores, eclesiásticos são, no plano econômico, assimilados à tropa de seus próprios servidores. Vivem do produto da atividade outras pessoas e devem portanto ser reduzidos ao mínimo. O Estado, a Igreja, etc, só se justificam na medida em que constituem organismos encarregados de gerir ou de administrar os interesses comuns dos burgueses produtivos; e os gastos que representam, já que fazem parte, no fundo, dos gastos improdutivos da produção, devem ser reduzidos ao mínimo indispensável.” (Teoria sobre a mais-valia)

Do mesmo modo, o capitalista obrigado a pagar renda ao proprietário fundiário, vê neste rendimento uma sinecura inaceitável e julga esta classe parasitária e redundante; assim, as mais radicais tradições da classe burguesa não hesitam em propor a transferência da rena ao Estado e, portanto, a nacionalização da terra, com o objetivo de liberar a produção e reduzir os impostos.

“(...) O modo de produção capitalista uma vez suposto, o capitalismo não é apenas um agente necessário, mas o agente dominante da produção. No entanto, neste modo de produção o proprietário fundiário é totalmente supérfluo. Tudo que lhe é necessário é que o solo não seja propriedade comum, que ele enfrente a classe operária como condição da produção que não lhe pertence, e este objetivo é perfeitamente alcançado quando é o Estado que aufere a renda fundiária. O proprietário fundiário, agente essencial da produção no mundo antigo e medieval é, no mundo industrial, uma excrescência inútil. O burguês radical, ao mesmo tempo em que olha

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de soslaio para a supressão de todos os outros impostos, chega deste modo, no plano teórico, a negar qualquer propriedade privada do solo, que ele gostaria de tornar, sob a forma de propriedade do Estado, propriedade comum da classe burguesa, do capital”. (Teorias sobre a mais-valia)

7.1.2. Fase de Submissão Real do Trabalho ao Capital

7.1.2.1. Com a fase de submissão real, o conjunto da sociedade tornar-se conforme às exigências do modo de produção capitalista. Este vai modelar as diferentes classes sociais, “purificá-las”, tendendo cada vez mais para a realização de seu conceito.

Inicialmente, como veremos mais adiante, o modo de produção capitalista tende a eliminar as classes intermediárias impuras, herdadas das antigas formas de produção.

“A conseqüência imediata da socialização das forças produtivas do trabalho pelo capital, é que este deve ser proprietário dos meios de produção em escala social, pois seu valor não guarda mais, doravante, nenhuma proporção com o que pode produzir um indivíduo ou sua família (...). Á medida que o capital vê seu valor aumentar, assumindo dimensões sociais, ele perde todos seus caracteres individuais.” (Capítulo Inédito)

Por conseguinte, o capital despersonaliza-se à medida em que se assiste a separação entre a propriedade e a função do capital. Com o desenvolvimento das sociedades por ações, assiste-se à “transformação do capitalista exercendo efetivamente suas funções em um simples administrador (do capital de outrem), e dos proprietários de capital em simples proprietários, simples financistas.” (Capital, III, seção 5).

Na condição de proprietária do capital, a burguesia reveste então o mesmo caráter parasitário que o proprietário fundiário.

“Os capitalistas, enquanto funcionários deste processo, que simultaneamente acelera esta produção social e, portanto, o desenvolvimento das forças produtivas, tornam-se supérfluos na medida em que, por procuração da sociedade, entregam-se ao gozo e vêem sua importância artificialmente inchada, na condição de proprietários desta riqueza social e como pessoas que comandam o trabalho social. O mesmo ocorre com os feudais, cujos títulos, com a ascensão da sociedade burguesa, transformavam-se em simples privilégios anacrônicos e sem objeto, na medida em que seus serviços tornavam-se supérfluos, o que precipitou sua derrocada.” (Capital, livro III)

Esta identidade com a propriedade fundiária é ainda real na medida em que seus interesses fusionaram; os burgueses tornam-se proprietários fundiários comprando a terra e os proprietários fundiários investem na indústria.

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A burguesia perde então todo caráter revolucionário e não procura mais questionar a propriedade privada da terra; do mesmo modo, à medida em que ela mesma se torna uma classe parasitária, sua crítica das classes improdutivas desaparece, pois ela mesma tem que se defender dos ataques da única classe produtora da sociedade: o proletariado.

“(...) Assim que a burguesia conquistou todo o terreno, em parte apoderando-se ela mesma do Estado, em parte concluindo um compromisso com seus antigos dirigentes, que ela também compreendeu que os corpos ideológicos eram o sangue de seu sangue e que ela os tinha transformado em todos os lugares em seus funcionários; assim que ela mesma não os enfrenta mais como representantes do trabalho produtivo, mas que, pelo contrário, os trabalhadores produtivos propriamente ditos levantam-se contra ela e lhe dizem por sua vez que ela vive da “other people’s industry” (atividade de outras pessoas) assim que ela é suficientemente culta para não dedicar-se inteiramente à produção mas para querer também consumir-se de um modo “culto”; assim que as atividades intelectuais voltam-se cad vez mais para seu serviço, entrando a serviço da produção capitalista, a página está virada e a burguesia procura justificar, no plano “econômico”, a partir de seu próprio ponto de vista, o que ela tinha combatido e criticado outrora.” (Teorias sobre a mais valia)

7.1.2.2. Com a fase de submissão real, a classe capitalista perde sua frugalidade e seu ascetismo e descobre gostos pelo consumo e pelo gozo, à medida que se civiliza, sem que isto coloque em questão sua paixão pela acumulação.

“(...) o progresso da produção não cria apenas um novo modo de fruições: abre, com a especulação e o crédito, mil fontes de súbito enriquecimento. Ao atingir um certo grau de desenvolvimento, chega mesmo a impor ao infeliz capitalista uma prodigalidade consentida, ao mesmo tempo ostentação de riqueza e meio de crédito. O luxo torna-se uma necessidade intrínseca e entra nos gastos de representação do capital. Não é tudo: o capitalista não se enriquece, como o camponês e o artesão independentes, proporcionalmente a seu trabalho e à sua frugalidade pessoais, mas em razão de trabalho gratuito de outrem que absorve e da renúncia a todas as fruições da vida imposta a seus operários. Embora sua prodigalidade não revista portanto nunca a franca aparência daquela do senhor feudal, embora ele tenha dificuldade para dissimular a mais sólida avareza e o mais mesquinho espírito de cálculo, ela cresce inevitavelmente à medida em que este acumula, sem que sua acumulação seja necessariamente restringida por seu gasto, nem este por aquela.” (Capital I, seção 7)

7.1.2.3. Doravante, na fase de submissão real, o proletariado não possui mais caracteres herdados das formas de produção anteriores, sendo modelado pela

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produção especificamente capitalista. O proletário torna-se indiferente ao conteúdo, à qualidade de seu trabalho.

“O único objetivo do trabalho de um assalariado sendo o dinheiro de seu salário, ou seja uma certa quantidade de valores de troca dos quais qualquer particularidade do valor de uso está eliminada, ele é totalmente indiferente ao conteúdo de seu trabalho, portanto ao tipo particular de sua atividade.” (Capítulo Inédito)

Nesta fase, a força de trabalho é desqualificada, móvel, concentrada, o processo de trabalho especificamente capitalista e a divisão do trabalho que lhe corresponde forjaram um trabalhador coletivo, ao qual as formas sociais fazem frente como forças produtivas do capital.

Tornando universalmente sem reserva, o proletariado tem condições de superar o horizonte burguês e de produzir a crítica pelas armas: o programa comunista.

7.2. AS CLASSES MÉDIAS NAS DUAS FASES

7.2.1. Introdução

7.2.1.1. Dentre as mentiras, as calúnias e as contra-verdades, há uma contra-tese particularmente bem estabelecida e que os teóricos da burguesia arremessam com regularidade na cara do partido comunista. Trata-se da desavergonhada afirmação segundo a qual a teoria revolucionária por ele defendida não teria previsto a emergência e o crescimento das novas classes médias assalariadas, que ocupam uma parte preponderante na população ativa dos países capitalistas mais desenvolvidos. Esta contra-tese conclui que o proletariado desaparece progressivamente para fundir-se numa classe intermediária, no seio da qual existiriam certamente algumas disparidades – desigualdades para os sociais-democratas – que não chegariam, contudo, a fundamentar diferenças irredutíveis capazes de determinar um enfrentamento entre elas.

No campo pretensamente revolucionário, não apenas nenhum esforço é feito para refutar esta contra-tese, pelo contrário ela chega até a ser aceita. Na melhor das hipóteses, procura-se para seduzir estas classes médias, mostrar que elas fazem parte de um novo proletariado. Joga-se portanto às traças o programa comunista, substituindo-o por um programa de colaboração de classes, que permita a unidade dos “trabalhadores” contra o capital. A emergência e o conforto econômico, social e político destas classes intermediárias, que são as primeiras afetadas pelas vicissitudes da economia capitalista, conforme o demonstrou há muito o partido comunista, constitui uma formidável fortaleza contra a revolução comunista. Favorecido pela contra-revolução, este inchaço das classes médias contribuiu simultaneamente para manter, favorecendo-a durante um certo tempo, a “estabilização” da produção capitalista, ao reforçar a segurança e a potência da classe dirigente, instilando sua ideologia até as fileiras do proletariado. Estas

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mistificações têm raízes materiais que somente o programa comunista soube revelar. Com a fase de submissão real do trabalho ao capital, o assalariado generaliza-se ao conjunto da força de trabalho. Por conseguinte, todos os trabalhos e serviços improdutivos transformam-se em “trabalho assalariado”. Com o desenvolvimento da produção plenamente capitalista, a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo torna-se totalmente nebulosa e reforça a mistificação do capital.

“Todo trabalhador produtivo é assalariado, mas isto não significa que todo assalariado seja um trabalhador produtivo. (...) Com o desenvolvimento da produção capitalista, todos os serviços se transformam em trabalho assalariado e todos que os praticam tornam-se trabalhadores assalariados, tanto que adquirem este caráter comum com os trabalhadores produtivos, é o que incita alguns a confundir estas duas categorias, tanto mais que o salário é um fenômeno e uma criação que caracteriza a produção capitalista. Ademais, isto proporciona a oportunidade, para os apologistas do capital, de transformar o trabalhador produtivo, sob pretexto de ser assalariado, em um trabalhador produtivo, sob pretexto de ser assalariado, em um trabalhador que simplesmente troca seus serviços (isto é, seu trabalho como valor de uso) contra dinheiro. É passar comodamente ao largo do que caracteriza de modo fundamental o trabalho produtivo e a produção capitalista: a produção de mais valia e o processo de auto-valorização do capital, que incorpora a si o trabalho vivo como mero agente.” (Capítulo Inédito)

O ataque empreendido pelo reformismo contra a classe operária, englobando-a politicamente nas classes médias assalariadas, acompanha necessariamente a revisão da teoria comunista, tentando negar a nítida visão que tinha Marx do desenvolvimento das classes médias assalariadas.

Nosso movimento sempre combateu estas contra-teses que procuram descrever as classes intermediárias e sua evolução no período mais recente do desenvolvimento capitalista como um fenômeno desconhecido, capaz de atenuar gradualmente os antagonismos entre burguesia e proletariado. Por conseguinte, devemos repetir, mais uma vez, como nossa teoria estabeleceu, há mais de cem anos, não apenas uma previsão do aparecimento destas classes, mas também sua conexão com a acumulação capitalista (coisa que os revisionistas são incapazes de fazer) e o aprofundamento conseqüente da polarização entre capital e proletariado.

7.2.1.2. Muitas vezes afirmamos que o modo de produção capitalista conhece três classes fundamentais: proletariado, burguesia e proprietários fundiários. Como pode esta análise conciliar-se com a tese segundo a qual o partido comunista teria previsto há mais de um século o desenvolvimento das novas classes médias assalariadas próprias d fase de submissão real do trabalho ao capital? As três classes definidas acima são fundamentais porque são as únicas que podem constituir-se em partido político. A classe média é uma classe intermediária à

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deriva entre o capital e o trabalho, incapaz de ter uma representação política organizada, incapaz de formar um partido de classe suscetível de defender seus interesses econômicos e sociais, políticos e históricos. Sua ideologia é utópica e reacionária, seu horizonte é, na melhor das hipóteses, o socialismo pequeno-burguês, ou seja, o socialismo de empresa fundado na autogestão, isto é, a autogestão do capital. Sua crítica do capital limita-se à crítica da mercadoria e do processo de trabalho. A crítica do processo de produção capitalista, enquanto unidade do processo de valorização e do processo de trabalho, jamais é levada a bom termo e isto pela simples razão que estas classes não criam nenhuma mais-valia (nem valor) e, portanto, são incapazes de apreender as relações de produção capitalistas na sua totalidade.

Única classe a exercer, na sociedade burguesa, um trabalho produtivo, ou seja, única classe a produzir mais-valia, o proletariado é a única classe revolucionária capaz de destruir a ordem capitalista e de liberar dos flancos da antiga sociedade o comunismo, a comunidade humana. As outras classes, inclusive as novas classes médias vivem do sobre-trabalho, da mais-valia extorquida à classe operária. Portanto, não são classes exploradas. Quando protestam contra a “exploração” da qual seriam vítimas, têm em mente que o capitalista realiza, graças a elas, um lucro, considerando portanto que uma fração adicional do produto social deveria caber-lhes. Para estas classes, não se trata de destruir as relações de produção capitalistas de abolir o salariado e as categorias mercantis, de acabar com a exploração da força de trabalho e com a separação da sociedade em classes sociais antagônicas. Pretendem apenas obter uma melhor repartição da mais-valia, uma melhor distribuição dos rendimentos, um aumento de seu poder de consumo ( que é sua própria razão de ser). Compreende-se que a burguesia tenha conseguido apoiar-se nesta classe para promover a democracia social, o “Estado do bem-estar” e a “sociedade do consumo e do lazer”, com base na exploração desenfreada do proletariado.

Não trataremos em detalhe, aqui, certos aspectos ligados ao papel anti-cíclico das classes médias, pois serão examinados de modo mais aprofundado no trabalho dedicado à crise catastrófica do modo de produção capitalista, ao qual dedicaremos vários números de nossa revista. A mesma observação vale para as relações entre classe média, Estado e democracia, que serão aprofundados posteriormente.

7.2.1.3. Dado que seu trabalho é improdutivo, que vivem da mais-valia e que não a produzem, quando surgem os primeiros sintomas da crise do modo de produção capitalista estas classes são as primeiras a serem afetadas. O capital, cujo objetivo é a produção do máximo de mais-valia, ataca relativamente menos os produtores diretos desta do que aqueles cuja função é realizá-la em parte. As classes médias entram portanto em luta contra o capital antes do proletariado, mas sem poder fornecer uma solução histórica para a crise da civilização capitalista. Elas entregam ao proletariado seu ingresso de entrada em cena revolucionária. Nossa corrente mostrou que na maioria dos grandes movimentos do período recente, como Maio de 68, o proletariado só interveio como classe

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mobilizada atrás das classes médias, cuja ideologia impregnou todo o movimento. Até aqui, pelo menos nos países capitalistas mais desenvolvidos, as classes médias só tinham sofrido a crise do ponto de vista da perda de prestígio e da auréola ligadas às suas profissões, e não em termos de uma concorrência reforçada, de uma desqualificação de seu trabalho. À medida que as rachaduras no edifício capitalista tornam-se mais fortes, estas classes vêem cada vez mais erguer-se à sua frente o fantasma do desemprego – elas foram relativamente mais afetadas do que os operários – , a progressão de seu rendimento ficar cada vez mais lenta e até mesmo diminuir – aqui ainda as classes médias foram relativamente mais atingidas do que os operários. Deste ponto de vista, a nova crise cíclica do modo de produção capitalista que começou nos Estados Unidos em março de 1980, foi caracterizada por uma forte queda da demanda das classes médias e afetou dois setores-chave sensíveis da sociedade de consumo”, além dos bens de consumo duráveis: automóveis e construção civil. Esta crise que se desencadeia portanto na data prevista por nós há muito tempo (cf. nosso no 2, em língua francesa, editado em novembro de 1976, é a primeira das crises do pós-guerra na qual a deterioração da estrutura relativa das classes médias tenha desempenhado um papel tão importante. Ela é portanto o sinal precursor de um agravamento das contradições da acumulação capitalista. Ela traz e trará implicações para o proletariado, na medida em que os ramos que trabalham para satisfazer a demanda das classes médias vêem sua atividade fraquejar.

Como observava Marx, são os operários das indústrias de luxo os primeiros proletários a sofrer os efeitos da crise do modo de produção capitalista. No entanto, estamos vivendo apenas o prelúdio do massacre social das classes médias; estas entrarão portanto numa luta ainda mais violenta contra o capital, mas isto só servirá para anunciar, na frente do palco, presença de uma classe de outra estatura histórica e cujas manifestações, ainda raras e limitadas embora reais, fazem tremer as classes dirigentes: o proletariado.

7.2.2. As Classes Médias na Fase de Submissão Formal do Trabalho ao Capital

7.2.2.1. Na fase de submissão formal do trabalho ao capital, este ainda não destruiu as formas de produção pré-capitalistas. Por conseguinte, subsistem com elas um certo número de classes sociais que a evolução histórica condena. Dentre estas, as antigas classes médias desempenham um papel particularmente importante. Tratam-se principalmente dos camponeses, artesãos e comerciantes, além de todas estas classes pequeno-burguesas que regridem frente à extensão do salariado. A dialética exige que não se separe mecanicamente as diversas fases da produção capitalista e, quanto mais esta se desenvolve, maior é seu grau de pureza em relação ao “modelo teórico”. Na reunião de Asti (junho 1954), a Esquerda Comunista da Itália tinha corretamente definido este grau de pureza na dominação do capital, em função da importância do salariado na sociedade e da importância das formas características das antigas classes médias. A evolução histórica demonstrou perfeitamente a perspectivas teóricas do programa comunista. Desaparecimento da pequena propriedade camponesa e produção

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incessantemente crescente desta para o mercado, isto é, eliminação e submissão crescente desta pequena propriedade às leis do capital.

A mesma evolução caracteriza o artesanato e o pequeno comércio. No entanto, diferentemente das novas classes médias, uma grande fração destas classes (campesinato, artesãos), sem ser produtiva no sentido da produção capitalista, já que não produz mais-valia, é contudo criadora de valor. Na fase de submissão formal, embora seu trabalho não tenha a produtividade desenvolvida pela manufatura, estas classes contribuem para a determinação do tempo de trabalho social médio necessário à reprodução das mercadorias. Deste modo, uma parte do valor criado é transferida para as empresas mais produtivas e, por conseguinte, para as empresa onde predomina o modo de produção capitalista. Quando, sob a influência dos mecanismos próprios da fase de submissão real, a produtividade do trabalho cresce vertiginosamente, o trabalho destas classes é cada vez mais marginalizado e elas passam não participar da determinação do tempo de trabalho social médio, pois sua produtividade é irrisória frente a produtividade social que se desenvolve com base no trabalho associado. Neste caso, sua miséria não provém da transferência de valor que elas sofrem, mas do fato da evolução econômica ter destruído a força produtiva do trabalho sobre a qual se apoiavam.

Se fazemos abstração destas antigas classes médias, cuja importância política e social foi sublinhada desde o manifesto comunista, e cujo papel reveste um caráter particularmente importante por ocasião da revolução dupla, existe desde a fase de submissão formal, uma classe média que se desenvolve e vive como parasita da burguesia e da propriedade fundiária, fornecendo serviços às classes exploradoras. Seu rendimento é derivado das outras classes da sociedade, ou seja, elas não desempenham um papel específico quanto à realização da mais-valia, só permitem a alternância dos gastos das outras classes para as quais venderam seus serviços. Depois de Marx, Rosa Luxemburgo tinha mostrado corretamente que as classes médias não desempenham nenhum papel direto na realização da mais-valia, analogamente aos proprietários fundiários, que recebem a renda após a realização da mais-valia.

“Todos os membros da sociedade que não figuram diretamente na reprodução, com ou sem trabalho, só podem receber sua parte do produto mercadoria anual, portanto seus meios de consumo, das mãos daqueles a quem este produto cabe primeiramente, ou seja, os operários produtivos, os capitalistas industriais e os proprietários fundiários. Deste ponto de vista, seus rendimentos derivam materialmente do salário (dos operários produtivos), do lucro e da renda fundiária. Mas, por outro lado, os beneficiários destes rendimentos derivados percebem-nos graças à sua função social de rei, sacerdote, professor, cortesã, soldado, etc, o que lhes possibilita portanto ver na sua função a fonte primeira de seu rendimento.

(...) Mas se a parte da mais-valia das mercadorias, que o capitalista industrial deve pagar como renda fundiária ou juros a outros co-

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proprietários da mais-valia, não pode se realizar pela venda das mercadorias, é por causa do pagamento da renda fundiária e dos juros, e, os antigos beneficiários, não podendo mais gastá-los, ficam impossibilitados de assegurar a conversão em dinheiro de certas partes da reprodução anual. O mesmo ocorre com os gastos de todos os operários improdutivos: funcionários, médicos, advogados, etc., e todos aqueles que, sob o rótulo do grande público, servem para os economistas políticos explicarem o que na realidade não explicam.” (Marx – O Capital – livro II, citado por R. Luxemburgo, in: A acumulação do capital)

7.2.2.2. O trabalho produtivo e improdutivo na fase de submissão formal do trabalho ao capital

Seja na fase de submissão formal, ou na real, do trabalho ao capital, é produtivo, no modo de produção capitalista, o TRABALHO QUE FORNECE MAIS-VALIA. Na fase formal, predomina a mais-valia absoluta, na fase real predomina a produção de mais-valia relativa, mas em ambos os casos a essência geral do trabalho produtivo é a mesma: é o trabalho criador de mais-valia. Não nos estenderemos aqui de modo detalhado sobre esta questão. Na fase de submissão formal, a força de trabalho do proletário ainda é uma força de trabalho qualificada e a divisão manufatureira do trabalho é de dois tipos: coexistência dos operários que executam separadamente a totalidade do produto, ou execução por cada operário de uma parte específica do produto. No entanto, o ritmo da produção ainda é ditado pela força de trabalho que maneja as ferramentas, e não pela máquina. Por conseguinte, na manufatura, é fácil delimitar o trabalho produtivo do improdutivo; não existe ainda um trabalhador coletivo, conjunto combinatório das atividades intelectuais e manuais no qual o indivíduo insere-se para constituir um momento e fora do qual não é possível obter uma produtividade do trabalho correspondente à norma social. Notemos que, na fase de submissão formal, ocorre que o capitalista cumpre um trabalho produtivo com seus operários. Somente com a concentração de seu capital é que poderá dedicar-se exclusivamente a sua função de capitalista e parar com todo trabalho manual, na medida em que este processo realiza-se perfeitamente com a passagem para a fase de submissão real. Paralelamente, algumas classes médias que vendem seus serviços são mantidas graças aos rendimentos dos capitalistas. Estas gastam portanto seu dinheiro enquanto rendimento e não enquanto capital. Todas estas classes, advogados, médicos, cobradores, mercenários, dançarinas, empregadas domésticas, funcionários, juízes, artistas, prostitutas, padres, etc., são improdutivas e vivem com base no sobretrabalho extorquido ao proletariado e às outras classes não características do modo de produção capitalista (as antigas classe médias, na medida em que seu trabalho gera valor e pelo fato de ocuparem ainda um lugar importante na sociedade burguesa).

Por ocasião da passagem histórica para a fase de submissão formal, isto é, quando esta ainda não está generalizada, alguns trabalhos que, posteriormente, uma vez submetidos realmente ao capital, vão entrar integralmente na categoria do trabalho improdutivo, podem ser consideradas produtivos, na medida em que

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contribuem diretamente para produzir mais-valia e pelo fato do dinheiro funcionar como capital, ou seja, na medida em que estes trabalhos são assalariados.

“Uma cantora que canta como um pássaro, é um trabalhador improdutivo; na medida em que ela vende seu canto por dinheiro, é uma assalariada e uma comerciante. Mas, esta mesma cantora torna-se um trabalhador produtivo quando é contratada por um empresário para cantar e ganhar dinheiro, pois ela produz diretamente capital. Um professor que leciona não é um trabalhador produtivo; mas torna-se produtivo se é contratado com outros como assalariado para valorizar, com seu trabalho, o dinheiro do empresário de um estabelecimento que cobra pelo ensino. Na realidade, a maioria destes trabalhos mal estão submetidos formalmente ao capital: são formas de transição.” (Marx – Capítulo Inédito)

7.2.2.3. Na fase de submissão formal, do desenvolvimento das novas classes médias encontra limites. Além de sua função econômica não ser necessária, as classes que citamos só permitem a alternância do consumo dos capitalistas ou de outras classes, só ajudam-nas a gastar seu rendimento e portanto não desempenham nenhum papel direto na realização da mais-valia; encontram um primeiro limite na taxa e na massa de mais-valia produzida. Como estas classes vivem do produto líquido, da mais-valia, e que esta é ainda relativamente pequena em relação ao trabalho necessário dado o grau ainda pouco desenvolvido da força produtiva do trabalho, a limitação da produção de mais-valia à mais-valia absoluta, seu desenvolvimento permanece limitado. A relação entre população produtiva e improdutiva varia conforme as diversas formas de extorsão da mais-valia.

De outra parte, na fase de submissão formal, a mentalidade da burguesia se caracteriza por sua austeridade, sua “abstinência”, pregando a virtude da poupança e do investimento, criticando o luxo da feudalidade e as funções improdutivas ( o que faz com que, nesta fase, teóricos burgueses como Smith conseguem chegar relativamente longe no estudo do trabalho produtivo e improdutivo). Posteriormente, a burguesia aprende que ela deve preservar estas classes, ainda mais porque ela mesma se reveste de um caráter cada vez mais parasitário.

Por conseguinte, na fase formal, a classe capitalista dedica-se inteiramente à realização de seu ser: a acumulação do capital. Deste ponto de vista, ela tende a limitar a multiplicação das classes médias. Enfim, a superpopulação ainda é apenas uma superpopulação absoluta e o próprio progresso da produção capitalista tende a reduzi-la. Por conseguinte, a transformação de uma parte da população excedente em classes médias não reveste a mesma necessidade e acuidade do que na fase real, onde o desenvolvimento da superpopulação relativa tende a tornar-se uma ameaça crescente para a sociedade fundada sobre o capital. Assim, burguesia é levada a ocupar, ainda que em atividades inúteis e parasitárias, ou mesmo nocivas, uma parte crescente da população.

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7.2.3. As Classes Médias na Fase de Submissão Real do Trabalho ao Capital

7.2.3.1. Se há uma contra-tese que a contra-revolução não pára de martelar com uma ousadia desavergonhada, é aquela segundo a qual nosso partido não teria previsto a emergência de classes assalariadas que, situadas entre o capital e o trabalho, constituem novas classes intermediárias, mas que surgem sobre a base da produção capitalista. Assim, proletarização prevista por Marx não ocorreria em toda a escala estimada; a pauperização, que já não afetaria o proletariado porque seu salário real cresce, seria ainda mais desmentia pela existência destas classes médias que ocupam uma parte crescente da população ativa à medida que o modo de produção capitalista se desenvolve. Portanto, baixo com a pauperização, a proletarização, o proletariado e a revolução comunista! Os ideólogos suspiram de alívio, embora este seja um pouco forçado, dada a insistência com a qual esta contra-tese é periodicamente repisada, como se se quisessem convencer de sua justa fundamentação.

“É um dos grandes novos problemas do socialismo – um daqueles que Marx não previu – que a industrialização crescente da produção deixa, num certo grau d seu desenvolvimento, de provocar um acréscimo equivalente no número de proletários industriais. Na época da racionalização, o progresso mecânico despovoa as oficinas das fábricas e povoa os balcões do comércio. É incontestável que há anos o número de empregados cresce em relação ao número de operários industriais.” (Henri de Man – O Socialismo construtivo – 1933)

Cinqüenta nos depois, o mesmo disparate, desta vez mais vulgar nos é servido pela revista burguesa L’Expansion (“A Expansão”).

“Sem dúvida, é isto que desfere o golpe mais rude contra o marxismo: a distinção entre infraestrutura e superestrutura se apaga; estas tornam-se produtivas: mais da metade do PNB americano pode ser atribuída a atividades intelectuais.” (L’Expansion – 02/10/80)

Infelizmente, depois de trinta anos de prosperidade raramente arranhados por algumas crises rapidamente superadas, o desenvolvimento de conflitos na periferia das metrópoles, o assassinato sistemático de 50 milhões de indivíduos mortos de fome a cada ano, eis que as primeiras rachaduras surgem na fachada do edifício capitalista reformado após duas sangradas imperialistas, e que o espectro tão temido do comunismo volta a assombrar o mundo. Infelizmente, s previsões revolucionárias revelam-se cada dia mis exatas e, em particular, aquelas sobre o destino histórico das classes médias.

7.2.3.2. Na fase de submissão real do trabalho ao capital, a acumulação do capital funda-se sobre a produção de mais-valia relativa. A taxa e a massa de sobretrabalho extorquida por operário eleva-se, enquanto incha desmesuradamente a massa de mercadorias produzidas. Para o capital, que desenvolve uma exploração desenfreado do proletariado é particularmente vital

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que este lhe seja perfeitamente submisso pois quanto mais é desvalorizada a força de trabalho, mais se torna difícil arrancar um novo quantum de mais-valia; quanto mais o capital fixo é desenvolvido, mais a função do trabalho vivo de conservar o valor do capital constante cresce em importância. Quanto mais centralizado é o capital, mais avançada a divisão do trabalho e mais acentuada a interdependência, maior é a necessidade de continuidade do processo de produção. O capital, esfomeado de mais-valia, torna-se cada vez mais totalitário. Deve forçosamente integrar a si a classe operária, o que tenta realizar concedendo-lhe uma magra reserva de uma parte, e integrando os sindicatos de outra, já que qualquer organização autônoma do proletariado lhe é crescentemente insuportável. Enfim, para incrementar sua segurança e sua estabilidade, o capital tende a aumentar cada vez mais os elementos que vivem do produto líquido, do sobretrabalho, da mais-valia.

“O ideal supremo da produção capitalista é – ao mesmo tempo em que ela aumenta de maneira relativa o produto líquido – diminuir ao máximo o número daqueles que vivem de salário e aumentar ao máximo o número daqueles que vivem do produto líquido.” (Marx – Capítulo Inédito)

No entanto, o desenvolvimento das classes médias, em relação ao que era n fase formal, encontra uma base material muito mais ampla, podendo então assumir grande extensão dado o agravamento da exploração sofrida pela classe operária; ademais, estas novas classes médias preenchem funções econômicas precisas, graças às quais o capital procura diferir suas contradições oriundas de seu processo contraditório de valorização-desvalorização. Contradições que se resolvem periodicamente através de crises gerais catastróficas.

7.2.3.3. O trabalho produtivo e improdutivo na fase de submissão real do trabalho ao capital

7.2.3.3.1. Única classe a executar um trabalho produtivo no modo de produção capitalista, o proletariado é a única classe revolucionária. As demais classes, seja a burguesia, os proprietários fundiários ou classes intermediárias não sofrem a exploração que caracteriza a classe proletária, que assume a forma do operário coletivo na sociedade burguesa desenvolvida.

Se, como vimos, para esquematizar, poderíamos assimilar o trabalho produtivo ao trabalho assalariado na fase formal, o mesmo não ocorre na fase de submissão real, onde os serviços por exemplo são realizados por assalariados. Do mesmo modo, todo um conjunto de funções outrora pouco desenvolvidas ou que cabiam apenas à burguesia e às antigas classes médias, é cumprido doravante pelas novas classes médias assalariadas.

A distinção entre trabalho produtivo e improdutivo torna-se assim cada vez mais nebulosa. O problema se complica ainda mais pois doravante é uma força de trabalho social que age na esfera da produção. O problema reveste dois aspectos: de uma parte, algumas frações desta força de trabalho social não são

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produtivas, diremos que estão agregadas àquelas que são produtivas; de outra, a fração produtiva que denominamos operário coletivo distinguem-se fundamentalmente da classe operária que existia com base no processo de trabalho ainda não especificamente capitalista, ou seja, durante a fase de submissão formal do trabalho ao capital.

Marx descreve aqui a força de trabalho social que combina ao mesmo tempo esta parte das classes médias que atua na esfera de produção e o operário coletivo propriamente dito. No seio da força de trabalho social, temos portanto elementos especificamente produtivos (é o operário coletivo que produz mais-valia) e outros que não são produtivos (engenheiros, técnicos, contra-mestres, etc).

“Ao mesmo tempo em que se desenvolve a subordinação real do trabalho ao capital, ou seja, o modo de produção especificamente capitalista, não é o trabalhador individual mas uma força de trabalho socialmente coordenada que se torna o agente real do processo de trabalho no seu conjunto. As diversas forças do trabalho que cooperam e constituem a máquina produtiva total participam diferentemente do processo imediato da produção das mercadorias (ou melhor, dos produtos), já que a tarefa de alguns é essencialmente física, de outros intelectual, este como gerente, engenheiro, técnico, etc, aquele como supervisor, o terceiro como simples operário manual ou braçal.” (Marx – Grundrisse)

A seguir, Marx descreve mais precisamente o próprio operário coletivo na oficina, que é o trabalhador específico da fase de submissão real:

“A partir de então, classifica-se cada vez mais as funções da força de trabalho de acordo com o conceito imediato de trabalho produtivo e seus agentes como trabalhadores produtivos, diretamente explorados pelo capital e totalmente subordinados ao processo de valorização e de produção do capital. Se considerarmos a oficina como o trabalhador coletivo que é, sua atividade coordenada materializa-se diretamente em um produto coletivo, que é ao mesmo tempo uma massa total de mercadorias, e pouco importa que a função do trabalhador individual, engrenagem do trabalho coletivo esteja mais ou menos próxima do simples trabalho manual. A atividade desta força de trabalho coletiva é seu consumo produtivo imediato pelo capital, isto é, o processo de auto-valorização do capital, a produção direta de mais-valia e, conforme demonstraremos mais adiante, a transformação direta da mais-valia em capital.” (idem)

Na fase de submissão real, para que o trabalho seja produtivo, é preciso que ele participe diretamente da criação de mercadorias. 35

35 É necessário lembrar aqui, como o fazia Marx contra Smith, que o trabalho pode ser considerado produtivo, isto é, criador de mercadorias, sem que tenha deixado um vestígio paupável, tangível, no próprio objeto. Portanto, não se pode reduzir a mercadoria apenas à coisa produzida. “Quando falamos da mercadoria como

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“Pode-se portanto afirmar que a característica dos operários produtivos, isto é, dos operários que produzem capital, é que seu trabalho realiza-se em mercadorias, em riqueza material.” ( Marx – Teorias sobre a mais-valia)

7.2.3.3.2. Como se explica o desenvolvimento destas classes médias? Aparentemente, ele é perfeitamente lógico, na medida em que a produção capitalista se apodera de todos os ramos de atividade e que as classes médias assalariadas crescem. Aqui, os funcionários tornam-se assalariados e as funções outrora preenchidas pelas antigas classe médias passam a sê-lo pelas classes médias assalariadas. Mas o problema que se coloca é o do seu crescimento em relação ao proletariado que, mesmo crescendo em termos absolutos, representa uma parte relativamente pequena da população ativa.

“Sua (de Malthus, ndr) esperança suprema – que ele mesmo qualifica de mais ou menos utópica – é que a massa da classe média aumenta e que o proletariado (aquele que trabalha) constitua uma proporção cada vez menor, em termos relativos, da população total (mesmo se ele aumenta em termos absolutos). Esta é efetivamente a evolução da sociedade burguesa.” (Marx – Teorias sobre a mais-valia)

7.2.3.3.3. Se Malthus é reacionário porque defende o status de classes parasitas efetivamente condenadas pela evolução histórica, não deixa de ter a intuição de um fenômeno efetivamente real: o desenvolvimento das novas classes médias que, situadas entre o trabalho e o capital, reforçam este último.

Se, como vimos, na fase formal o burguês ainda trabalha com seus operários, progressivamente ele se dispensa do trabalho manual; a própria evolução da sociedade burguesa, a socialização das forças produtivas tende a expulsar a burguesia de seu papel de funcionária do capital, este sendo doravante desempenhado pelas novas classes médias.

7.2.3.3.4. A conseqüência imediata da socialização das forças produtivas do trabalho, para o capitalista é que ele tem que ser proprietário dos meios de produção em escala social, pois “seu valor não guarda doravante qualquer proporção em relação ao que pode ser produzido por um indivíduo ou sua família materialização onde o trabalho se investe no sentido de seu valor de troca – temos em vista somente uma existência imaginária da mercadoria, existência unicamente social, que nada tem a ver com sua realidade física; esta será representada como quantidade determinada de trabalho social ou de dinheiro. Pode ocorrer que o trabalho concreto da qual é o resultado não tenha deixado nela nenhum vestígio. Para a mercadoria manufaturada, este vestígio é a forma assumida exteriormente pela matéria-prima. Na agricultura, etc. se a forma que a mercadoria trigo, boi, recebe é igualmente produto do trabalho humano e de um trabalho que se transmite e se completa de geração em geração, em contrapartida nada no produto o indica. Em outros trabalhos industriais, o trabalho não tem por objetivo modificar a forma do objeto, ms apenas alterar sua determinação espacial. Por exemplo, quando se transporta uma mercadoria da China par a Inglaterra, não se consegue reconhecer, no próprio objeto, o vestígio do trabalho (com exceção feita a aqueles que se lembram que esta mercadoria não é produzida na Inglaterra). Deste modo, portanto, não se compreenderia a materialização do trabalho na mercadoria. (Neste caso, a ilusão é provocada pelo fato de que uma relação social apresenta-se sob forma de coisa)” (Teorias sobre a mais-valia)

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(...). À medida que o capital vê seu valor crescer e que assume dimensões sociais, ele perde todas as suas características individuais.” (Marx – Capítulo Inédito)

Na fase de submissão real, o aumento da taxa de mais-valia extorquida aos trabalhadores produtivos e, o conseqüente crescimento da produtividade, elevam ao mesmo tempo o “mínimo de capital” e, portanto, requerem a concentração e centralização do capital em poucas mãos. Ao longo deste movimento, a presença do proprietário capitalista se torna supérflua para a realização das funções de vigilância e de comando do processo de produção imediato.

“O capitalista não é capitalista por ser diretor industrial; pelo contrário ele se torna chefe de indústria por ser capitalista. O comando na indústria torna-se atribuição do capital (...). O capitalista começa por se dispensar do trabalho manual. Depois, quando seu capital cresce e com ele a força coletiva que explora, ele se demite de sua função de vigilância imediata e assídua dos operários e dos grupos de operários, transferindo-a a uma espécie particular de assalariados. Assim que ele se encontra à frente de um exército industrial, passa a precisar de oficiais superiores (diretores, gerentes) e inferiores (vigilantes, inspetores, contramestres), que comandam em nome do capital, durante o processo de trabalho. O trabalho e a vigilância tornam-se sua função exclusiva.” (Marx – O Capital – Livro I)

“A exploração do trabalho custa trabalho. Na medida em que o trabalho realizado pela indústria capitalista é simplesmente tornado necessário pela oposição entre trabalho e capital, ele passa a fazer parte dos custos de seus vigilantes (ou sub-oficiais da indústria) e já se encontra contado na rubrica dos salários, assim como os custos do vigilante de escravos e seu chicote são contabilizados nos custos de produção dos proprietários de escravos. Tais custos, assim como a maioria dos custos comerciais, fazem parte dos gastos improdutivos da produção capitalista.” (...)”Para o trabalho de direção, resta apenas a função geral de organizar a divisão do trabalho e a cooperação de certos indivíduos. Este trabalho é inteiramente representado pelos salários do diretor geral nas empresas de certo porte”. (Teorias sobre a mais-valia)

Quando sai da esfera da produção, o capital não deixa de continuar o seu processo; ele deve novamente metamorfosear-se em dinheiro, isto é, realizar seu valor a fim de estar novamente disponível para se converter em meios de produção e em força de trabalho, extorquindo assim o máximo de mais-valia. Esta permanência na esfera da circulação acarreta gastos que devem ser deduzidos da mais-valia. A realização das tarefas ligadas à circulação do capital cabe às novas classes médias, o que é uma das causas de sua hipertrofia. Elas são assim empregadas principalmente pelo capital comercial; o trabalhador do comércio “(...)realiza uma função necessária, embora improdutiva, no processo de reprodução que inclui necessariamente tais funções. Ele trabalha tanto quanto

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outro qualquer mas, intrinsecamente, seu trabalho não cria valor nem produto. Ele mesmo faz parte dos gastos improdutivos da produção” (Capital, livro II) 36

São estas classes médias ainda que cumprem as funções de contabilidade, administração, etc, ligadas à circulação do dinheiro propriamente dita: bancos, instituições financeiras, etc. O mesmo ocorre para as atividades ligadas à conservação (armazém, abastecimento) de mercadorias. Dentre os outros setores improdutivos, viveiros de classes médias, pode-se citar os seguros, alguns ramos de transporte, etc...

Na fase de submissão real, a ciência recebe uma enorme impulsão e torna-se um atributo do capital, contribuindo para completar sua dominação sobre o proletariado e reforçar a mistificação própria do modo de produção capitalista.

“Este antagonismo entre a riqueza que não trabalha e a pobreza que trabalha para viver, também faz surgir um antagonismo ao nível do saber. O saber e o trabalho separam-se. O primeiro faz frente ao segundo a título de capital ou de artigo de luxo do rico.” (Teorias sobre a mais-valia)

“Por outro lado, todas as formas de sobretrabalho exigem um aumento da população: na primeira fase, será a população operária e, na segunda, a população em geral, dado que passas a ser necessário um desenvolvimento da ciência, etc... De qualquer modo, a população aparece, sempre como a fonte primeira de toda riqueza”. (Grundrisse)

Se a vantagem da ciência é ter um custo de reprodução amplamente inferior a seu custo de produção, isto não impede que o conjunto de seu custo social deva ser suportado pelo capital, entrando portanto nos seus gastos improdutivos. Neste custo da ciência, deve-se incluir os gastos voltado para a sustentação das classes médias empregadas no setor, tanto a nível do custo de produção (pesquisadores, cientistas, etc) como de reprodução (professores, etc), ou ainda de incorporação (engenheiros, técnicos).

Por conseguinte, na fase de submissão real, o desenvolvimento científico acarreta o crescimento de uma força de trabalho improdutiva que vive da mais-valia e cujo papel indicamos rapidamente.

7.2.3.3.5. Até aqui, vimos como se desenvolve a classe média, no curso do processo de produção e reprodução do capital. Resta-nos ver agora sua função específica no seio deste processo.

Com a fase de submissão real, a massa de mercadorias cresce desmesuradamente em função do nível de desenvolvimento da produtividade do trabalho. Como a taxa de mais-valia aumenta, aumenta conseqüentemente a

36 Estas classes fornecem também um contingente de pessoal utilizado para publicidade, pesquisas de mercado, comercialização, etc...

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massa de mais-valia que pode se reconverter em capital. A classe capitalista pode ter-se habituado ao luxo e ao prazer, mas seu motivo determinante sempre é a acumulação e não o consumo; ela será eternamente a classe que encarna a paixão pela acumulação. Que ocorreria num sociedade onde se defrontariam apenas a classe capitalista e a classe operária?

A massa de mais-valia destinada para a acumulação, ou seja, a ser convertida em capital constante adicional e em capital variável adicional cresceria sem parar. O valor dos meios de produção acumulados aumentaria e sua massa cresceria mais ainda, permitindo que se multiplicasse a força produtiva do trabalho e que se engendrasse portanto uma massa maior de mais-valia, assim como uma massa maior de mercadorias (composta de meios de produção e de meios de consumo). A expansão da produção capitalista assumiria proporções crescentes, a esfera das necessidades e, principalmente, das necessidades de meios de produção precisaria aumentar rapidamente. A produção capitalista pareceria um máquina cujo motor disparou. A contradição valorização-desvalorização seria forçosamente levada ao auge. Para frear o desenvolvimento das forças produtivas que entraria cedo demais em conflito com as relações de produção capitalistas, é portanto necessário que exista uma classe que não tenha a acumulação por objetivo e que possa encarnar a paixão pelo consumo, pelo gasto, a fim de limitar a acumulação, de limitar a contradição valorização-desvalorização, de fornecer à acumulação capitalista uma esfera que não gera uma acumulação adicional, mas cujos produtos podem ser consumidos improdutivamente. Esta classe é a classe média. Evidentemente, ela não liquida o processo descrito acima, mas ela o limita, difere-o e com ela o capital procura estabilizar uma acumulação frenética. A nova classe média desempenha ainda melhor o seu papel e na medida em que, ao gastar seu salário, realiza uma parte do produto social, uma parte da mais-valia. Portanto, independentemente do nível da taxa de lucro, ela reforça assim a estabilidade da produção capitalista.

É enquanto classe representando a riqueza usufruidora que a classe média consome uma parte do sobreproduto:

“De resto, o luxo é uma necessidade absoluta para um modo de produção que, ao criar a riqueza para os não-produtores, deve lhe conferir formas que permitam sua apropriação apenas por aqueles que são usufruidores.” (Capítulo Inédito)

Assim, a esfera dos bens de luxo, isto é, das mercadorias que não fazem parte da determinação do valor da força de trabalho, se amplia. É claro que a classe média, consumidora de bens de luxo, consome também meios de consumo necessários, o que acaba ampliando seu mercado, facilita sua produção a um custo menor e favorece portanto o aumento da mais-valia relativa. Por outro lado, os ramos que produzem artigos mais refinados se desenvolvem portanto com o inchamento das classes médias e, se estes ramos empregam mais capital variável do que a média, isto contribui para reerguer a taxa de lucro.

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7.2.3.3.6. Portanto, se a necessidade desta classe de puros consumidores é sentida pelo capital, sua possibilidade também está dada com o desenvolvimento da mais-valia relativa; no entanto, ela exige uma perfeita dominação sobre o proletariado, uma perfeita submissão deste à ordem capitalista. Na medida em que o capital pode se dedicar a uma exploração irrestrita do proletariado, desenvolvendo a produção de mais-valia relativa, pode então, conforme seu ideal, sustentar um máximo de pessoas com base no produto líquido, a própria mais-valia. Enquanto que na fase formal o desenvolvimento de uma tal população encontraria um limite n fraqueza da mais-valia produzida pelo operário, com a grande indústria e a fase real estes limites são amplamente alargados.

Além disso a mudança, ou melhor, a evolução da mentalidade e da psicologia da classe burguesa faz com que esta se acomode doravante com um consumo crescente, sem deixar de renunciar à acumulação e à busca de um máximo de mais-valia, ao amor da produção pela produção. Esta evolução favorece no entanto a emergência das classes médias, na medida em que sua finalidade não se choca mais com a da burguesia. Esta integrou as preocupações e os hábitos das classes médias. Com a fase real, a superpopulação (que é u ma superpopulação relativa) tende a tornar-se muito maior do que a classe operária; deste modo, a possibilidade de transformar uma parte desta superpopulação em classe média 37 permite à burguesia limitar o crescimento da superpopulação relativa, atenuando a guerra civil larvada que seu aumento pode engendrar. No entanto, a burguesia também não procura reduzir a zero – se é que tem capacidade para tal – esta superpopulação, pois isto tenderia a permitir a elevação do salário e portanto reduziria a mais-valia. Por outro lado, ao constituir esta classe média, ela reforça sua segurança e seu poder.

“A primeira tendência joga o operário na rua e cria a superpopulação, a outra reabsorve estes operários e não deixa de ampliar o salariado a ponto do operário, jogado de lá para cá, não poder jamais sair de sua miserável condição. É por isso que o operário acredita, com razão, que é ameaçado pelo desenvolvimento das forças produtivas do seu trabalho enquanto que o capitalista só vê nele um elemento indesejável e procura eliminá-lo da produção. Estas são as contradições nas quais se debatia Ricardo. O que ele esquece de ressaltar é o aumento contínuo das classes médias que, situadas entre os operários e os capitalistas, vivem quase todas diretamente do rendimento, pesam sobre a classe operária e aumentam a potência e a segurança das classes superiores.”(Teorias sobre a mais-valia)

Toda esta política de “pleno emprego”, como dizem os teóricos da burguesia, ou seja, uma política que procura regular o exército de reserva, apóia-se evidentemente, sobre um crescimento feroz da exploração do proletariado.

37 “Suponhamos que ao invés de 500 operários só se utilize 300, mas que estes 300 forneçam uma quantidade relativamente maior de sobretrabalho; os outros 200 podem ser ocupados pelo sobreproduto a partir do momento em que este cresceu suficientemente” (Teorias sobre a mais-valia)

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No entanto, com o agravamento das contradições internas da produção capitalista, as classes médias são ameaçadas. O capital tende a recolocar em questão seu status e a golpeá-las em primeiro lugar, na medida em que estas classes consomem uma massa de mais-valia que tende a lhe fazer falta e que elas não produzem. Elas são levadas então a lutar contra o capital, abrindo caminho para um protagonista muito mais sério: o proletariado revolucionário.

7.2.3.3.7. Até agora, são principalmente estas classes médias que entraram em luta contra o capital, enquanto que sua ideologia, suas mentalidades, infestavam e infestam as fileiras do proletariado e daqueles que se dizem seus defensores. No curso de suas lutas, o proletariado nada terá propor a estas classes, senão seu programa comunista; não precisará bajulá-las e não integrará portanto, nas suas reivindicações classistas, reivindicações das classes médias, que vivem de sua exploração. Se é evidente que, para vencer, o proletariado terá que se juntar a uma parte das classes médias, em nenhum caso poderá fazê-lo por meio de comprometimentos e concessões teóricas, mas, pelo contrário, vencerá colocando-se como o adversário mais resoluto e mais radical do capital, como a única classe capaz de propor uma solução histórica: o comunismo.

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8. AS FORMAS DE DOMINAÇÃO DO MERCADO MUNDIAL NAS DUAS FASES

8.1. INTRODUÇÃO

A existência do mercado mundial é uma base necessária para a emergência do modo de produção capitalista. No entanto, ao desenvolver-se este modela um mercado mundial à sua imagem, “a noção de mercado mundial estando incluída no conceito de capital”. Sobre esta questão crucial para o movimento proletário revolucionário, o trabalho de restauração do programa comunista é particularmente difícil. De uma parte, porque os elementos de resposta a este problema não foram desenvolvidos quando dos primeiros trabalhos empreendidos pelo partido comunista. (Marx pensava em dedicar um livro inteiro da “Economia” ao mercado mundial, além de outro ao comércio exterior, mas ambos não chegaram a ser escritos). De outra, porque os desenvolvimentos posteriores sobre esta questão, notadamente aqueles feitos pela esquerda dos partidos socialistas na II Internacional, não estiveram sempre integralmente inseridos na totalidade orgânica do programa fundado desde 1847. Para Lenine, por exemplo, a fase imperialista do capitalismo, isto é, a fase mais recente, começou nos anos 1898 e, por conseguinte, Marx e Engels não a teriam totalmente conhecido. De acordo com Lenine, esta fase caracteriza-se por cinco pontos:

“1o ) concentração da produção e do capital em um grau de desenvolvimento tão elevado que gerou os monopólios, cujo papel é decisivo na atividade econômica; 2o) fusão do capital bancário e do capital industrial e criação, com base neste “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira; 3o) a exportação dos capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, assume uma importância toda particular; 4o) formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que repartem o mundo entre si, e 5o) fim da divisão territorial do globo entre as grandes potências capitalistas.” (Lenine – O imperialismo...)

Como podemos constatar, os fenômenos descritos por Lenine (independentemente do fato de que se possa contestar alguns elementos adiantados por eles), são, com efeito, característicos da fase de submissão real do trabalho ao capital e, por conseguinte, já tinham sido antecipados por Marx. Deste modo, as forças recentes do desenvolvimento capitalista não mereciam nenhum conceito novo: o “imperialismo”, que deveria dar conta destas (“aliás, emprestado dos teóricos burgueses), dado que tais formas recentes expressavam a realização do ser do capital, o estabelecimento da fase de submissão real do trabalho ao capital, como mostra o programa comunista. Além disso, ao se enfatizar apenas alguns elementos fenomenais, negligenciava-se as mutações verificadas no

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processo de produção, tanto no processo de trabalho (instauração de uma tecnologia especificamente capitalista) quanto no processo de valorização (desenvolvimento da produção de mais-valia relativa). Em vez disso o leninismo (não se trata aqui de assimilar Lenine e o leninismo) só ressalta – e de modo pouco dialético – a evolução das formas da concorrência e a emergência da dominação do “capital financeiro” (discutiremos adiante estes pontos específicos).

Quanto à análise luxemburguista, obnubilada pelo problema da realização da mais-valia destinada à acumulação, ela explica a necessidade do imperialismo, concebida a partir do aspecto da corrida aos mercados solváveis e pré-capitalistas, o que faz com que o advento completo da fase de submissão real, isto é, um fase na qual o capital livrou-se das formas de produção que o antecediam, seja absolutamente impossível, pois o capital destruiria assim os mercados que lhe permitem realizar a mais-valia. 38 Por conseguinte, aqui também verifica-se uma incapacidade de apreender plenamente as mutações da base material da produção capitalista e, portanto de compreender o “imperialismo”.

Se se pretende designar por este termo a fase última do desenvolvimento do capitalismo, então de nada adianta utilizar um conceito que se mostra menos claro e preciso do que o de “submissão real do trabalho ao capital”. Se, por comodidade, continuamos a empregar este conceito de imperialismo, não é no sentido apresentado acima, mas para designar as formas de dominação do mercado mundial correspondentes à fase de submissão real do trabalho ao capital, como foi afirmado no no 6 da revista Invariance antiga série:

“Na época de Lenine, tratava-se da passagem para a dominação real do capital, da primeira grande manifestação de sua tendência à totalidade. É portanto preferível rejeitar o termo de imperialismo para caracterizar uma etapa da vida do capital. Ele continua válido quando se trata da tendência à dominação por parte de um determinado país. Pode-se falar, por exemplo, em imperialismo americano.” (Invariance – no 6 – antiga série – tese 4.5.8.)

Do mesmo modo, quando falamos das formas de dominação do mercado mundial características da fase de submissão formal do trabalho ao capital, utilizaremos o conceito de colonialismo.

Como vimos no capítulo I, n a medida em que a Inglaterra atinge a fase de submissão real no fim do século XVIII e, na sua forma mais acabada, no início do século XIX, ela conhece portanto a fase imperialista, a mesma que para alguns não teria sido descrita por Marx e Engels. Ademais, as formas específicas da 38 Para continuar defendendo esta posição, quando a fase real já adveio, o luxemburguismo degenera em cretinismo puro e simples. Com efeito, esta corrente degenerada afirma, com toda seriedade , que os mercados solváveis não existem mais desde 1914, sendo que após esta data o capitalismo entrou na sua fase de decadência – embora o capitalismo tenha conhecido um crescimento econômico mais rápido que no século XIX. Como pôde ele realizar a mais-valia produzida se os mercados que permitiram esta realização não existem mais? Se a resposta houver, ela certamente ganhará um lugar de destaque no anedotário de asneiras do comunismo vulgar.

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dominação do mercado mundial e a organização do próprio mercado mundial foram amplamente circunscritas pelos primeiros teóricos comunistas (embora este trabalho não tenha sido terminado), tanto é que o caráter de totalidade orgânica do programa comunista não se alterou, pelo contrário, está perfeitamente reforçado.

Por conseguinte, o mercado mundial e sua organização constituem uma base para o advento da produção capitalista e, por sua vez, esta modifica-o, forjando-o à sua imagem. O mercado mundial realiza-se plenamente com a fase de submissão real do trabalho ao capital. Esta traduz o advento da dominação imperialista, enquanto que na fase de submissão formal temos uma dominação colonialista.

O imperialismo do capital é característico deste modo de produção e funda-se sobre suas próprias leis, uma nação tornando-se imperialista quando acede à fase de submissão real, quando os obstáculos ao seu desenvolvimento e à sua generalização são eliminados.

8.2. FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL: COLONIALISMO

Retomando por conta própria a argumentação do revisionismo social-democrata e naufragando assim na economia vulgar, algumas frações do movimento revolucionário acreditam que o capitalismo poderia existir sem comércio exterior. O fato de Marx, nos seus esquemas de reprodução ter partido da hipótese de uma sociedade burguesa sem nenhum intercâmbio com outras nações capitalistas ou não capitalistas, não justifica de modo algum que deva se considerar o comércio exterior como um elemento anexo e secundário no movimento de acumulação capitalista. Pelo contrário, este deve ser compreendido como um momento orgânico da reprodução da forma de produção capitalista.

Do mesmo modo, sem a análise do comércio exterior e do mercado mundial, não se poderia apreender na sua totalidade um fenômeno de uma importância tão grande para a ação revolucionária como as crises do modo de produção capitalista. Não é por acaso que, apenas no último livro da Economia ( “O mercado mundial e as crises” ) é que Marx devia estudar as crises. Com efeito, é com o mercado mundial que a crise adquire toda sua universalidade.

O regime colonial faz parte dos diferentes métodos da acumulação primitiva, método que vem acelerar a passagem para o modo de produção capitalista.

“Os diferentes métodos de acumulação primitiva que a era capitalista faz surgir dividem-se inicialmente, por ordem mais ou menos cronológica, entre Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra, até que esta combine todos eles, no último terço do século XVII, em um conjunto sistemático, englobando ao mesmo tempo o regime colonial, o crédito público, as finanças modernas e o sistema protecionista. Alguns destes métodos

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apóiam-se sobre o uso da força bruta mas todos sem exceção exploram o poder do Estado , a força concentrada e organizada da sociedade, a fim de precipitar violentamente a passagem da ordem econômica feudal para a ordem econômica capitalista e de abreviar as fases de transição.” (O Capital – livro I, seção 8, cap. XXXI)

Quando as manufaturas são implantadas, elas se apoderam dos ramos onde o trabalho é simples e não recorre – a não ser parcamente – a uma habilidade artesanal ou a um dos artístico. Se um mercado interno lhes é fornecido em função da revolução na agricultura, algumas manufaturas estabelecem-se também nas cidades portuárias, produzindo diretamente para a exportação. É também nestas cidades (na Itália por exemplo) que, esporadicamente, as manufaturas podiam existir antes que a fase de submissão formal do trabalho ao capital fosse generalizada. O mercado externo e colonial desempenha imediatamente um papel importante para assegurar mercados às manufaturas e permite um acumulação mais rápida do capital. 39

O progresso da produtividade do trabalho conhecia limites rapidamente, na medida em que chocava-se contra uma base técnica pré-capitalista; como as mercadorias produzidas não tinham uma grande diversidade e não exigiam um saber particular, as nações nas quais implanta-se a fase de submissão formal do trabalho ao capital podem encontrar-se rapidamente confrontadas a uma concorrência por parte de outras nações, que desenvolvem uma produção manufatureira idêntica ou que dispõem, por exemplo, na agricultura, de condições naturais mais favoráveis. Para proteger o desenvolvimento capitalista e arruinar o de outras nações colonialistas recorrem a um protecionismo sistemático.

Estas medidas protecionistas não têm o mesmo aspecto quando a fase de submissão formal ainda não está efetivamente implantada (no capítulo I, vimos que isto correspondia à fase chamada de acumulação primitiva) e quando esta generalizou-se em certas nações.

“O segundo período começou em meados do século XVII e durou quase até o fim do século XVIII. O comércio e a navegação tinham se desenvolvido mais rapidamente que a manufatura, que desempenhava um papel secundário; as colônias passaram a ser grandes consumidoras; ao preço de longos combates, as diferentes nações dividiram entre si o mercado mundial que se abria então. Este período começa com leis sobre a navegação e com os monopólios coloniais. Evitou-se na medida do possível, por meio de tarifas, proibições e tratados, que as diversas nações pudessem fazer concorrência entre si; e, em última instância , foram as guerras e, principalmente, as guerras marítimas que serviram para a guerra da concorrência e decidiram seu resultado. A nação mais potente no mar, a Inglaterra, conservou a preponderância no plano do comércio e da

39 “O primeiro florescimento das manufaturas na Itália e, mais tarde em Flandres, teve como condição histórica o comércio com as nações estrangeiras.” (Ideologia Alemã)

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manufatura. Já se nota, aqui, concentração em um único país. A manufatura era constantemente garantida no mercado nacional por direitos protecionistas, pela concessão de monopólios no mercado colonial e por alfândegas diferenciais voltadas para o mercado externo. Favoreceu-se a transformação da matéria bruta produzida no próprio país (lã e linha na Inglaterra, seda na França); proibiu-se a exportação da matéria-prima produzida localmente (lã na Inglaterra) e desprezou-se ou bloqueou-se a da matéria-prima importada (algodão na Inglaterra). A nação que tinha a supremacia no comércio marítimo e a potência colonial assegurou naturalmente para si a maior extensão quantitativa e qualitativa da manufatura. Esta não podia absolutamente carecer de proteção, dado que a menor modificação produzida em outros países pode causar-lhe perda de seu mercado e arruiná-la; pois, se ela pode ser facilmente introduzida num país com estas condições ligeiramente favoráveis, pode ser igualmente destruída com a maior facilidade.” (Ideologia Alemã)

Como observaram diversos autores, a diferença de grau de desenvolvimento das forças produtivas entre as n ações européias destinadas a tornarem-se as maiores potências capitalistas, e certas regiões de outros continentes, não era muito importante. Ora, ao longo do século XVIII e mais particularmente no XIX e no XX, o distanciamento entre ambos aprofunda-se, e isto apesar ou por causa do desenvolvimento da produção capitalista impulsionado nestas regiões pelas potências colonialistas, e depois imperialistas.

A concorrência podia portanto manifestar-se muito rapidamente (vimos os principais aspectos do leque protecionista a que recorre a potência colonial para limitá-la; para as nações colonialistas, é particularmente importante apoderar-se ou exercer uma influência direta sobre o poder político das nações colonizadas, a fim de aniquilar toda tentativa que iria de encontro aos interesses da potência colonial. Foi assim que a Inglaterra pôde sufocar o desenvolvimento da manufatura na Irlanda).

Do mesmo modo, este poder político serve para favorecer a dissolução das antigas formas de produção e para modelar a produção em função dos interesses colonialistas. (Nos países onde não se logrou obter o poder político, a destruição das comunidades pré-capitalistas é ainda mais difícil – ver a este respeito, a diferença entre a Índia e a China). Servindo-se do Estado, a burguesia organiza a pilhagem das colônias. Ela assegura para si, entre outras, a produção e exportação de metais preciosos. Esta, que é sobretudo característica da primeira parte da fase de submissão formal, tem como efeito aumentar a taxa de lucro do capital reduzindo o salário. A descoberta de novas minas e o desenvolvimento da exportação destes metais reduz seu valor e, por conseguinte, aumenta o nível geral dos preços, sendo que os metais preciosos (ouro, prata) encarnam o equivalente geral, o Dinheiro. Como os salários não vão aumentar no mesmo ritmo que os preços, o salário real cai e a taxa de mais-valia e a taxa de lucro sobem. O processo inflacionário gerado pelo comércio de metais preciosos permite portanto ao capital da nação colonial aumentar a exploração do proletariado.

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“Eles (os mercantilistas, ndr) constataram nestes países (os países colonizadores, ndr) um rápido crescimento da riqueza e da classe média. Sobre o que apoiava-se de fato este efeito do ouro? Os salários não aumentavam na mesma proporção que os preços das mercadorias. Os salários diminuíam então e, portanto, aumentava o sobretrabalho relativo, a taxa de lucro, não porque tinha ocorrido uma diminuição do salário absoluto (isto é, da soma dos meios de subsistência que o trabalhador recebe), em suma, porque a situação dos trabalhadores se agravava. Nestes países, o trabalho tornava-se portanto mais produtivo de fato para aqueles que o empregavam. Este feito guardava uma relação com o afluxo dos metais preciosos.” (Marx – Teorias sobre a mais-valia)

Além disso, o capital assegura para si um monopólio exclusivo sobre os produtos coloniais (chá, condimentos, açúcar, produtos exóticos). O lucro que obtém ora é um lucro de alienação – ou seja, extorque-se um sobretrabalho às outras formas de produção comprando-se os produtos a preços baixos e revendendo-os a preços muito maiores –, ora um lucro proveniente da organização da produção colonial no âmbito do modo de produção capitalista. Nas minas e nas plantações de certos produtos coloniais, pode-se produzir com menores custos do que na nação de origem, graças a condições naturais mais favoráveis (exclusividade de certos produtos em função do clima, fertilidade da terra, riqueza das jazidas de minérios, etc...), ou ainda graças a condições sociais particulares nas quais esta produção se efetua. Neste tipo de colônias, está fora de cogitação para a burguesia desenvolver a manufatura e introduzir o salariado, o que faria da colônia um pólo potencial de desenvolvimento e de concorrência. O sistema de produção, embora capitalista, apóia-se então sobre a escravidão e extorque-se assim sobretrabalho e mais-valia sem que isto coloque as bases para um desenvolvimento capitalista. Além disso, nestas produções coloniais, o capitalista e o proprietário fundiário são a mesma pessoa e, não havendo formação de renda absoluta, o capital não encontra obstáculos para investir-se nestes ramos de produção. Segue-se, sem contar que os solos ainda não estão esgotados (ao dispensar-se de melhorá-los 40, o capitalista economiza uma parte do capital constante, mesmo tendo um rendimento relativamente elevado dada a presença de elementos orgânicos no solo). Por conseguinte, os produtos importados pela potência colonial contribuem para aumentar a taxa de lucro, reduzindo o valor: 1) de certos elementos que entram na reprodução da força de trabalho, 2) de elementos que entram no capital constante.

“De início, no segundo tipo de colônias 41 plantations – as formas de especulação comercial produzem para o mercado mundial, é a produção capitalista que existe embora de modo formal apenas, posto que a escravidão dos negros exclui qualquer trabalho assalariado livre e, portanto,

40 Dentre os estragos causados pelas potências coloniais nos países colonizados, figura com lugar de destaque o esgotamento da terra. 41 Não trataremos aqui do “primeiro tipo” distinguido por Marx, ou seja, as colônias de povoamento, como os Estados Unidos, a Austrália, a Nova-Zelândia, etc...

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a base da produção capitalista. Mas são capitalistas que operam seus negócios com escravos negros. O modo de produção que introduzem não é originário da escravidão, mas enxertado sobre ela. Neste caso, capitalista e proprietário fundiário são uma só figura. É a existência elementar do solo face ao capital e ao trabalho não oferece resistência ao investimento do capital, nem portanto à concorrência dos capitais. Aliás, não se desenvolve aqui uma classe de arrendatários diferentes dos landlords (proprietários fundiários). Enquanto durar esta situação, nada impede que o custo de produção regule o valor da mercadoria.” (Marx – Teorias sobre a mais-valia).

Esta produção colonial fornece a ocasião para um comércio bastante frutuoso: o tráfico de escravos. Por intermédio do comércio de metais preciosos, dos produtos coloniais, dos escravos, do sobretrabalho extorquido destes nas plantações e nas minas, assim como nas formas de produção pré-capitalistas, uma massa de mais-valia afluía para a mãe-pátria para nela funcionar como capital. Além disso, como as oportunidades para investimentos com altas taxas de lucro não faltavam na própria nação, esta recorria também ao empréstimo de capitais para aumentar a acumulação de capital.

De outra parte, como vimos, o colonialismo permite aumentar a exploração da classe operária da nação colonial. Finalmente, ele proporciona mercados para as manufaturas. Mas na fase de submissão formal, a potência da nação apóia-se sobre o capital comercial e não sobre o capital industrial. “Na época manufatureira propriamente dita, é a supremacia comercial que dá a supremacia industrial”. 42 é o capital mercantil que domina o capital industrial e cabe aos comerciantes comparar os custos de produção nacionais com aqueles em vigor no mercado mundial. Assim, o “regime colonial fornece um grande impulso à navegação e ao comércio.” O objetivo perseguido por potências coloniais como a Inglaterra não era fundamentalmente apropriar-se de novos territórios, mas assegurar uma imensa rede de feitorias comerciais e de bases marítimas, sendo que as implantações são efetuadas muito mais ao longo das costas ou em ilhas (com exceção da América do Norte) do que no interior.

8.3. FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL: IMPERIALISMO

8.3.1. Embora um novo mercado mundial seja instaurado com a fase de submissão formal do trabalho ao capital, este tem ainda uma amplitude limitada ao mesmo tempo em que forma a base do mercado mundial especificamente

42 Na medida em ela consegue exportar (a manufatura, ndr), depende portanto inteiramente da extensão ou da limitação do comércio e por sua vez exerce sobre este uma ação relativamente fraca. Donde sua importância secundária (...) e a influência dos comerciantes no século XVIII.” (Ideologia alemã)

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capitalista 43 - característica da fase de submissão real do trabalho ao capital – e não tem ainda a universalidade que terá nesta nova fase.

“Embora notadamente acelerado, o movimento do capital não deixava de ser ainda relativamente lento. A fragmentação do mercado mundial em frações isoladas, cada um sendo explorada por uma nação particular, a eliminação da concorrência entre nações, a falta de destreza da própria produção e o sistema financeiro que mal tinha superado o primeiro estágio de seu desenvolvimento entravavam muito a circulação. Decorreu disto uma mentalidade de pequeno lojista, sordidamente mesquinha, da qual impregnavam-se todos os comerciantes e todo o modo de exploração do comércio. Comparados com os manufatureiros e mesmo com os artesãos, eram efetivamente grandes burgueses, mas comparados com os comerciantes e industriais do período seguinte, não passavam de pequenos burgueses. (Ideologia Alemã)

Graças à fase de submissão real, o capital vai poder realizar sua natureza, tornar-se adequado a seu ser, conforme a seu conceito. Com efeito, é apenas no mercado mundial (que engloba a totalidade dos mercados nacionais) que o capital consegue desenvolver todas as tendências que contém. Donde a importância do comércio exterior.

“Se o sobretrabalho ou a mais-valia só se apresentasse no sobreproduto nacional, o acréscimo do valor por amor ao valor, e assim a extensão do sobretrabalho, chocar-se-ia contra os limites impostos pelo estreito leque dos valores de uso que representariam o valor do trabalho (nacional). É o comércio exterior que desenvolve a verdadeira natureza deste sobreproduto enquanto valor, a partir do momento em que faz do trabalho contido no sobreproduto trabalho social que se apresenta sob forma de uma série ilimitada de valores de uso diferentes, e confere de fato um sentido à riqueza abstrata...

É somente o comércio exterior, a transformação do mercado em mercado mundial que transforma o dinheiro em dinheiro mundial e o trabalho abstrato em trabalho social. A riqueza abstrata, o valor, o dinheiro, portanto o trabalho abstrato desenvolvem-se à medida em que o trabalho conceito evolui no sentido de uma totalidade dos diferentes modos de trabalho engendrados pelo mercado mundial. A produção capitalista é baseada no valor, ou seja, sobre o desenvolvimento do trabalho social contido no produto. Mas isto ocorre apenas com base no comércio exterior e no

43 “A concentração do comércio e da manufatura em um único país, a Inglaterra, tal como se desenvolveu no século XVII, criou progressivamente para este país u m mercado mundial relativo e suscitou assim uma demanda por produtos ingleses manufaturados que as forças produtivas industriais anteriores não podiam mais atender. Esta demanda que superava as forças produtivas foi a força motriz que suscitou o terceiro período da propriedade privada após a idade média, criando a grande indústria.” (Ideologia Alemã)

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mercado mundial. Portanto, é simultaneamente condição e resultado da produção capitalista.” (Teorias sobre a mais-valia)

Pode-se medir aqui toda a estupidez do ricardianismo de certas frações do movimento revolucionário, que negligenciam completamente o comércio exterior e a função moeda universal do dinheiro. No entanto, é somente no mercado mundial que o capital pode alcançar sua maturidade.

8.3.2. Com a fase de submissão real, a produtividade do trabalho desenvolve-se, a massa de valores de uso cresce proporcionalmente mais do que seu valor, enquanto ganha impulso a produção de mais-valia relativa. “A necessidade de produzir numa escala constantemente ampliada incita a estender o mercado mundial; doravante, não é o comércio que revoluciona a indústria, mas a indústria que revoluciona constantemente o comércio.” (Marx)

Dado o desenvolvimento desta produtividade, pelo menos na primeira parte da fase de submissão real, caracterizada por um aumento da produtividade e da extensão da jornada de trabalho, as mercadorias produzidas têm um valor menor do que as das nações concorrentes que ainda não implantaram a grande indústria. O protecionismo, que era necessário com a manufatura, torna-se na sua forma anterior, supérfluo e até mesmo nocivo. A nação, doravante imperialista, funda sua potência no capital industrial e sua capacidade de produzir mais-valia relativa. O aumento da produtividade do trabalho permite-lhe concorrer eficazmente contra seus rivais e ela mostra-se portanto favorável ao livre comércio, a fim de abrir para si mercados sempre mais vastos. Por outro lado, as nações que ainda ficaram na época e na fase de submissão formal, são constrangidas a introduzir os mecanismos da fase real se querem conservar sua posição e a proteger esta indústria nascente por meio de um novo protecionismo. O mercado mundial limitado que se tinha formado com a fase de submissão formal é questionado e substituído por um verdadeiro mercado mundial, universal, no seio do qual o ser do capital desenvolve-se e realiza-se; por outro lado, a divisão internacional do trabalho característica do colonialismo desaparece em proveito de uma nova.

8.3.3. Vimos que quanto um capitalista introduz uma nova técnica de produção mais produtiva, obtém durante certo tempo – até que a produtividade do trabalho obtida seja igual à produtividade social média do trabalho – um superlucro. No entanto, assim como esta nova força produtiva reduz o valor das mercadorias, ela necessita de uma ampliação do mercado. Quanto mais vasto for o mercado para as empresas que produzem nas melhores condições, maior é a massa de superlucro que podem obter. Por outro lado, o valor social da mercadoria também é diminuído e se esta tem influência no valor da força de trabalho, taxa geral da mais-valia e sua massa aumentam. Por conseguinte, a busca de mercados externos (quanto mais na medida em que são o monopólio das empresas de melhor performance) só pode favorecer por um lado o capital em geral, aumentando a mais-valia relativa, e de outro o capital em particular que, graças a

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estes mercados adicionais, pode embolsar um superlucro adicional. Cada nação imperialista tem portanto todo interesse em que estes mercados potenciais para o capital nacional sejam os mais extensos possíveis, a fim de favorecer a produção da mais-valia relativa e a taxa de lucro em cada uma delas.

O próprio movimento do capital nacional leva irresistivelmente cada nação a aumentar o campo externo da produção, a aumentar sua importância no mercado mundial.

8.3.4. Com o modo de produção capitalista, a lei do valor realiza-se e assume todo seu significado. Sabemos perfeitamente que a teoria dos preços de produção não contradiz a lei do valor, pois esta continua a agir com toda sua força e alcança ainda sua derradeira forma de desenvolvimento com a fase de submissão real do trabalho ao capital. Com o desenvolvimento da produtividade do trabalho, “a massa e o valor das máquinas empregadas aumentam”...”porém não na mesma proporção que ela, ou seja, não em razão da multiplicação do produto fornecido pelas máquinas. Por conseguinte, nos ramos de indústria que consomem matérias-primas, ou seja, onde o próprio objeto do trabalho é produto de um trabalho anterior, a produtividade do trabalho expressa-se precisamente pela relação segundo a qual uma maior quantidade de matéria-prima absorve uma certa quantidade de trabalho, portanto pela massa crescente da matéria-prima que, em uma hora, é transformada em produtos acabados ou mercadorias. Na medida em que se desenvolve a produtividade do trabalho, o valor da matéria-prima constitui um elemento constantemente crescente do valor do produto mercadoria, e isto não apenas porque ela entra em totalidade neste valor, mas por que em cada fração do produto total a parte que representa a usura das máquinas e a que é formada pelo trabalho recém-acrescentado estão ambas em constante diminuição. Como conseqüência desta tendência à queda há um aumento proporcional da outra parte do valor representada pela matéria-prima, a menos que este aumento seja anulado por uma redução proporcional do valor da matéria-prima, redução devida à produtividade crescente do trabalho empregado para produzir esta matéria-prima.” ( O Capital, livro III, seção I)

Em nosso estudo sobre a questão agrária (que sairá num dos próximos números da edição em língua portuguesa), mostraremos que o preço das matérias-primas agrícolas ou industriais é relativamente maior que o preço dos produtos manufaturados; dada a importância que o valor das matérias-primas tende a adquirir no produto, segue-se que as potências imperialistas têm todo interesse em obter matérias-primas a preços reduzidos. A forma de dominação do mercado mundial corresponde à fase de submissão formal do trabalho ao capital, ou seja, a dominação colonial, torna-se um entrave para um modo de produção que deve enfrentar uma necessidade crescente de matérias-primas baratas.

Assim, desde o fim do século XVIII e do início do século XIX, assiste-se à instauração da nova forma de dominação do mercado mundial: o imperialismo. Abolição da escravidão, livre cambismo (abolição das leis dos cereais), ab-rogação dos atos de navegação. Se, no curso do século XIX, a expansão colonial

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continua (em 1800 a Europa e suas posses representam 55% das terras do planeta e, em 1878, antes que se inicie uma nova fase de aquisições esta superfície ocupa 67% da superfície das terras), ela não constitui mais uma característica decisiva da dominação imperialista. Com efeito, a Inglaterra, então a única potência imperialista, mostra-se favorável à descolonização da América do Sul. Assim, ela arranca este continente às nações colonialistas, Espanha e Portugal. A Inglaterra adquire a supremacia neste continente, ainda que este não se torne uma de suas colônias.44

Por conseguinte, o imperialismo pode perfeitamente acomodar-se a uma descolonização, embora esta – não mais que a redução da jornada de trabalho – não seja em si o fruto de uma política deliberada do imperialismo. Assim como a luta do proletariado está na origem da redução da jornada de trabalho e da necessidade para o capital de lançar-se desabaladamente na busca de um máximo de mais-valia relativa, a luta dos povos submetidos ao colonialismo e ao imperialismo favorece a instauração dos mecanismos específicos da dominação imperialista.

8.3.5. Com a fase de submissão real e a dominação imperialista, a ação dos países imperialistas muda sua orientação, seu interesse voltando-se então prioritariamente para a busca e a exploração de matérias-primas passando para o primeiro plano. Independentemente da extensão das posses coloniais, o imperialismo estende sua dominação sobre o mercado mundial. A Inglaterra, por exemplo, aumenta suas zonas de influência comercial e industrial. Por outro lado, nos países dominados pelo imperialismo, a produção é doravante subvertida; a necessidade de aumentar a produção de matérias-primas implica, em certos setores, o desenvolvimento de uma produção capitalista fundada sobre o salariado. Assim, a escravidão tende a desaparecer nestas regiões durante o século XIX e imperialismo moderno mostra-se anti-escravagista.

“Uma nova divisão internacional do trabalho, imposta pelos principais centros da grande indústria, converte deste modo uma parte do globo em campo de produção agrícola para a outra parte, que torna-se por excelência o campo de produção industrial”. (O Capital, livro I, seção 4)

44 Seja na fase colonialista (apoio da França e da Espanha à independência americana) ou na fase imperialista (apoio britânico à independência das colônias espanholas e portuguesas na América Latina), a intervenção das potências colonialistas e capitalistas nas lutas de independência nunca constituiu para o programa comunista um fato por si só suficiente para rejeitar o caráter revolucionário destes movimentos, mesmo se ele permanece burguês. O imperialismo “apóia” aliás estas lutas, assim como o reformismo “apóia” as lutas do proletariado, ou seja, para melhor entravá-las e limitar seu caráter revolucionário. O imperialismo que precisa de matérias-primas a baixos preços tudo faz e tudo fará para impedir o desenvolvimento capitalista – isto é o desenvolvimento da fase real – dos países produtores de matérias-primas que domina. Por outro lado, as nações imperialistas livram-se a uma concorrência recíproca desenfreada para conservar ou melhorar sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado monetário. É particularmente estúpido ver nestas lutas contra o imperialismo apenas “um momento da luta até a morte entre as potências imperialistas grandes ou pequenas para adquirir um controle sobre o mercado mundial”, como escreve uma das sectas do luxemburguismo decadente.

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8.3.6. Se na fase de submissão formal o baixo preço dos produtos coloniais explica-se em parte pela ausência de renda fundiária, esta explicação não pode mais ser aplicada na fase de submissão real do trabalho ao capital. Com efeito, as nações submetidas ao imperialismo são atiradas no movimento histórico, as antigas formas de produção nele se dissolvem; tornam-se submetidas às leis gerais da produção capitalista. Na medida em que a propriedade privada instala-se nestas nações colonizadas e que os capitalistas passam a ser figuras distintas dos proprietários fundiários, renda absoluta aparece. Ademais, usando de sua potência, o imperialismo procura apoderar-se das diversas rendas (diferencial, absoluta, de monopólio). Ao mesmo tempo em que favorece um desenvolvimento capitalista nos setores produtores de matérias-primas e em todas as esferas que não engendram uma generalização da criação de mais-valia relativa 45 e portanto da fase de submissão real do trabalho ao capital, o imperialismo confina estas nações ou áreas num “atraso” capitalista relativo; ou seja, ele pressiona com todas suas forças para obstaculizar o pleno desenvolvimento da fase de submissão real do trabalho ao capital. Simultaneamente, aciona todos os meios para extorquir nestes países o máximo de sobretrabalho. A exploração destas nações será tanto mais forte quanto maior for o distanciamento relativo entre elas e as nações imperialistas.

8.3.7. Com a plena realização da fase real (o que caracterizamos como segundo momento desta fase) 46, desenvolvem-se produtividade e a intensidade do trabalho. Isto induz no plano internacional uma modificação importante na aplicação internacional da lei do valor.

“Em cada país, há uma certa intensidade média, corrente, na falta da qual o trabalho consome na produção de uma mercadoria mais do que o tempo socialmente necessário e, por conseguinte, não conta como trabalho de qualidade normal. É apenas um grau de intensidade superior à média nacional que, num dado país, modifica a medida do valor somente pela duração do trabalho. O mesmo não ocorre todavia no mercado universal, do qual cada país forma apenas uma parte integrante. A intensidade média ou corrente do trabalho nacional não é a mesma em diferentes países. Ora é

45 Dentre as tendência mais recentes do desenvolvimento capitalista, pode-se citar a instauração, sob a égide do imperialismo, de indústrias de luxo cuja produção não tem influência sobre o desenvolvimento da mais-valia relativa. Enquanto que nestes países as classes médias inchavam desmesuradamente e que o proletariado sofria uma exploração desenfreada, caracterizada pela queda do salário real, o aumento da jornada de trabalho e da intensidade e da produtividade do trabalho, os apólogos do capital entoavam-lhe hinos de glória à sua capacidade de “industrializar o terceiro-mundo”. Os melhores exemplos são os “milagres” iraniano, coreano e brasileiro. Cantos de sereia aos quais responderam rapidamente a revolução iraniana, as agitações coreanas e as grandes lutas de proletários brasileiros. Se está claro para o programa comunista que de fato o imperialismo não mudou em nada sua natureza e não renunciou em manter estes países numa estreita dependência em relação a ele mesmo freando seu desenvolvimento, isto é, impedindo a generalização da fase de submissão real o mesmo não ocorre para os confusionistas que se pretender herdeiros do programa comunista, como o PCI – Partido Comunista Internacional – ( hoje implodido) , que decretava subitamente que o imperialismo tinha doravante outros interesses que as matérias-primas – subentendo que tinha interesse agora em favorecer o desenvolvimento destas nações. 46 Cf. Capítulo 1, pag.

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maior ora é menor. Estas médias nacionais formam portanto uma escala da qual a intensidade corrente do trabalho universal é a unidade de medida. Comparado ao trabalho nacional menos intenso, o trabalho nacional mais intenso produz portanto no mesmo tempo mais valor, que se expressa em mais dinheiro. Na sua aplicação internacional, a lei do valor é ainda mais profundamente modificada, porque no mercado universal o trabalho nacional mais produtivo conta também como trabalho mais intenso, todas as vezes que a nação mais produtiva não é forçada pela concorrência a reduzir o preço de venda de suas mercadorias ao nível de seu valor.” (O Capital, livro I, seção 6)

Isto constitui a base de uma exploração por parte das nações imperialistas contra as nações dominadas por elas, e mesmo entre as nações imperialistas. Este é um dos principais fundamentos de sua concorrência encarniçada. Com efeito, resulta deste processo, por exemplo que “três dias de trabalho de um país trocam-se contra um dia apenas de outro país (...). Neste caso, a lei do valor sofre um modificação importante. Ou então, a relação que existe num país entre trabalho qualificado, complexo e trabalho não qualificado simples, pode existir entre as jornadas de trabalho de países diferentes. Neste caso, o país mais rico explora o mais pobre (mesmo se este ganha na troca).” (Marx – Teorias sobre a mais-valia)47

Por conseguinte, quanto maior for a diferença no grau de desenvolvimento capitalista, no desenvolvimento da força produtiva do trabalho, maior será a exploração das nações pobres pelas nações ricas.

8.3.8. É sobre esta hierarquia da forças produtivas que vai instaurar-se uma divisão internacional do trabalho. Se a tese revisionista segundo a qual a igualação das taxas de lucro não ocorreria na fase última do modo de produção capitalista (isto é, na fase em que este se concentra e se centraliza) é falsa, a outra, segundo a qual esta igualação das taxas de lucro realizar-se em escala internacional, é igualmente falsa. Pelo contrário, o mercado mundial, enquanto totalidade orgânica composta de diversos momentos apóia-se sobre a hierarquia do desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, sobre taxas de lucro nacionais diferentes e que não se igualam em escala internacional.

“Isto assume toda sua importância quando se compara entre elas taxas de lucro em diferentes países. Suponhamos que em países da Europa, a taxa de mais-valia seja de 100%, de modo que um operário trabalhe meio dia para si e meio dia para seu empregador. Suponhamos que, em países da

47 Enquanto que esta tese essencial do programa comunista foi vergonhosamente deturpada pelo revisionismo terceiro-mundista, para fazer crer por um lado que o proletariado dos países avançados “explora” o da nações oprimidas, e por outro que este último devia aliar-se à sua burguesia para combater o imperialismo, alguns agrupamentos do movimento revolucionário, por seu lado, estigmatizam globalmente a tese da exploração destas nações por outras (inclusive Marx e Lenine, que a defenderam) como sendo contra-revolucionária. Como explicar então o imperialismo se este não explora as nações dominadas a fim de extorquir o máximo de sobretrabalho?

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Ásia esta taxa seja de 25% e que o operário trabalhe durante 4/5 de sua jornada para si mesmo e durante 1/5 para seu empregador. No país europeu, a composição suposta do capital nacional seria 84 c + 16 v, e 16 c + 84 v no país asiático onde emprega-se poucas máquinas, etc, e onde o consumo produtivo de matérias-primas é relativamente fraco para um tempo e uma quantidade dados de força de trabalho. Eis nosso cálculo:

No país europeu, o valor do produto = 84 c + 16 v + 16 mv = 116; taxa de lucro = 16/100 = 16%.

No país asiático, o valor do produto = 16 c + 84 v + 21 mv = 121; taxa de lucro = 21/100 = 21%.

No país da Ásia, a taxa de lucro é portanto superior de mais de 25% à taxa do país europeu, embora a taxa de mais-valia no primeiro seja 4 vezes menor que no segundo.” ( O Capital, livro III, seção 2)

Enquanto que a igualação das taxas de lucro a nível nacional supõe uma identidade da força produtiva do trabalho entre os diversos ramos, o mercado mundial organiza-se com base numa diferença destas forças produtivas. 48

8.3.9. Contrariamente às teses que pretendem que a expansão do modo de produção capitalista vai atenuar a exploração do proletariado, nossa tese comunista mostra que, permanecendo idênticas todas as demais condições, o proletariado dos países adiantados sofre uma exploração tanto maior quanto mais desenvolvidas são as forças produtivas. Assim, de uma parte, a taxa de mais-valia é tendencialmente mais elevada (de qualquer modo a massa de mais-valia o é) nos países mais adiantados do que nas nações menos desenvolvidas; assim, mesmo recebendo um maior salário real, o operário alemão é mais explorado que o operário francês, e este mais explorado que o operário brasileiro (permanecendo idênticas as demais condições).

Por outro lado, a composição orgânica é mais elevada nos países adiantados que nos demais, refletindo assim um maior desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, a taxa de lucro tende a ser mais elevada à medida que se desce na escala do desenvolvimento capitalista. Donde a tendência das nações desenvolvidas de estender seu campo de produção de mais-valia, buscando taxas de lucro mais elevadas nestes países menos desenvolvidos.

Se esta diferença de composição orgânica reflete desvios no desenvolvimento das forças produtivas, ela reflete também uma diferença nas 48 Para os fiéis seguidores do stalinista Grosmann, opera-se um perequação das taxas de lucro em escala internacional. Como se não bastasse, acrescentam que, no nível nacional, a igualação não é obra da “invisível mão” do mercado, mas uma função assegurada pela intervenção do Estado para “proteger o capital nacional”. Além do caráter contra-revolucionário da primeira afirmação, recaem num erro ainda mais catastrófico, na medida em que pretendem que é apenas com a intervenção do Estado que a perequação das taxas de lucro pode ocorrer.

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produções (do ponto de vista do valor de uso). Aqui, a diferença de composição-valor traduz uma diferença de composição técnica entre os capitais e reflete portanto, simultaneamente, processos de produção dessemelhantes, que empregam um capital fixo mais ou menos importante e tecnologias mais ou menos avançadas. O mesmo ocorre com a esfera dos bens de consumo, sejam eles destinados ao proletariado ou, por exemplo, às classes médias, cuja importância varia de acordo com o desenvolvimento da mais-valia relativa. (As necessidades sociais variam em função do desenvolvimento da produção capitalista e da distribuição das classes no seio da nação).

8.3.10. Sobre esta base, opera-se uma especialização, uma divisão internacional do trabalho da qual j á vimos alguns aspectos. Por exemplo, os países dominados pelo imperialismo vão ser transformados em países produtores de matérias-primas. A seguir, entre as potências imperialistas, vai operar-se uma distribuição na fabricação dos produtos, em função de seus potenciais tecnológicos específicos. Se o livre-câmbio tende a levar ao máximo esta especialização, é evidente que um protecionismo vai ressurgir para favorecer a posição da indústria nacional no mercado mundial e isto provoca uma feroz concorrência entre as potências imperialistas.

8.3.11. Por outro lado, no seio da produção material, será importante para os países imperialistas produzir bens de luxo, formando assim novos ramos nos quais a parte do trabalho vivo será superior à média (este processo favorece a taxa de lucro sob três aspectos diferentes: de uma parte, porque a massa de mais-valia produzida é maior; de outra, graças aos ganhos que poderiam resultar de uma troca destas mercadorias com as nações menos desenvolvidas; finalmente, se esta troca se faz com produtos agrícolas, será possível influir sobre a taxa de mais-valia relativa).

Além da produção material, é evidente que as nações imperialistas têm todo interesse em exportar serviços e outras atividades improdutivas em troca de produtos materiais, o que lhes permite aumentar relativamente a parte das classes médias, e, portanto, correlativamente, diminuir a parte relativa do proletariado. Deste modo, o imperialismo procura conjurar o espectro do comunismo.

8.3.12. Todos estes fatores contribuem para determinar também a fisionomia específica da implantação do capital nas diferentes áreas, bem como a do comércio entre as diferentes nações imperialistas. É evidente que a esfera dos mercados para as potências imperialistas será maior nos países cujas condições da produção e organização social são mais próximas. Assim, os produtos de um país de grande desenvolvimento capitalista como os Estados Unidos encontrariam mais facilmente mercados na Europa que nas outras áreas menos avançadas. Isto explica, em boa parte, que a maior parte do comércio mundial efetua-se entre as metrópoles capitalistas. O mesmo ocorre com a exportação de capitais, quando ela ocorre sob forma de investimentos diretos; ela é determinada em parte pela composição orgânica existente. Dado o nível relativamente baixo dos salários nas nações menos desenvolvidas, a acumulação de um capital constante importante

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nestes países será entravada. (O que confirma diferentes estudos que mostram que as multinacionais instauram, nas nações menos desenvolvidas, processos de trabalho que freqüentemente foram abandonados nos países de origem).

“Mas é apenas a primeira diferença que determina o preço final para o capitalista, forçado pela concorrência a levá-lo em conta. Assim, vê-se hoje máquinas inventadas na Inglaterra que só podem ser empregadas na América do Norte. Pela mesma razão, a Alemanha nos séculos XVI e XVII, inventava máquinas que apenas a Holanda utilizava; e muitas invenções francesas do século XVIII só eram exploradas pela Inglaterra.” (O Capital, livro I, seção IV, cap. XV)

8.3.13. Com a fase de submissão real do trabalho ao capital, o crédito desenvolve-se e, portanto, o capital financeiro (este de acordo com Marx, o que nada tem a ver com a definição de Hilferding) vê sua importância crescer. O capital expande-se em mercado monetário e o valor das moedas perde cada vez mais sua referência em relação ao ouro, sem contudo poder liberar-se completamente. Ele encarna o grau de desenvolvimento da intensidade e da produtividade do trabalho em cada nação.

Desenvolve-se em escala internacional todo um mercado monetário e financeiro no seio do qual as taxas de juros – diferentemente das taxas de lucro – tendem a igualar-se.

Ademais, convém salientar aqui, mesmo se não o desenvolvemos, um aspecto extremamente importante da dominação imperialista: o monopólio exclusivo do dólar como moeda internacional, monopólio que permite aos Estados Unidos da América explorar o planeta inteiro.

8.4.

Como vimos, ao longo desta exposição, os principais traços daquilo que se chamou de “imperialismo” são na realidade as características do modo de produção capitalista na sua fase de submissão real. Mesmo se a teoria do comércio exterior e do mercado mundial, momento orgânico do programa comunista, não foi desenvolvida exaustivamente, pudemos ver, por meio dos elementos abordados aqui, que o programa enquanto totalidade fornece o quadro através do qual ela pode ser levado a bom termo. É portanto prosseguindo o trabalho teórico sobre a periodização do capital em duas fases que poderemos caracterizar plenamente o advento do capital mundial.

Assim, o partido comunista não poderá dispensar-se de cumprir o trabalho previsto sobre o mercado mundial e o comércio exterior, ou seja, prosseguir “A Economia” em 6 livros, prevista por Marx.

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9. AS CRISES NAS DUAS FASES

Introdução

O estudo da teoria das crises é um momento crucial para a compreensão e a defesa de nosso programa comunista. Na perspectiva do trabalho de restauração do programa comunista, contra sua pilhagem feita pela contra-revolução, dedicaremos, conforme nosso plano de publicação, uma longa série de números de nossa revista para tratar ampla e profundamente desta questão, ao longo dos próximos anos. As teses que publicamos abaixo, assim como algumas teses de trabalho que publicamos no nosso número 1 em língua portuguesa (março de 1981) – por exemplo as teses 3.2.4., 6.9. e seguintes, etc..., como também nos números 8, 12 e 14 de nossa revista em língua francesa, não têm por objetivo resumir nem mesmo apresentar a teoria comunista da crises, mas dentro de um quadro preciso de nosso trabalho sobre as duas fases da produção capitalista, mostrar em grandes linhas as diferenças principais concernentes às crises ao longo destas duas fases.

9.1. A CRISE DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA NA FASE DE SUBMISSÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL

Como já lembramos muitas vezes, na fase de submissão formal do trabalho ao capital, o valor de troca das mercadorias permanece relativamente constante. A própria instauração do modo de produção capitalista provoca um crescimento da produtividade social do trabalho em relação às épocas anteriores. Uma vez efetuado este salto, durante todo o período histórico que se caracteriza pela submissão formal do trabalho ao capital, o nível da produtividade do trabalho tende a permanecer sensivelmente constante. Isto, na medida em que o processo de trabalho permanece tal como se desenvolveu nas formas de produção anteriores, sendo que o capital realiza um ganho de produtividade inicial, graças, sobretudo, à concentração e à centralização dos meios de produção e dos trabalhadores. Assim, durante toda esta fase o aumento do valor de troca é proporcional à dos valores de uso. A possibilidade de produzir um maior número de mercadorias implica um crescimento proporcional do valor de troca incorporado nestas mercadorias.

Durante este período, permanecendo dadas a produtividade e a intensidade do trabalho, o capital só consegue aumentar a taxa e a massa da mais-valia extorquida do proletariado pelo alongamento da duração do trabalho, não obstante o rebaixamento do salário.

De outra parte, na fase de submissão formal, o capital constante – e muito particularmente o capital fixo –, não é significativo em relação à parte variável do capital. Podemos considerar – de um ponto de vista teórico –, que a taxa de lucro

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coincide, nesta fase, com a taxa de mais-valia. Do mesmo modo, à passagem teórica, e em certa medida prática, da taxa de mais-valia à taxa de lucro corresponde a passagem histórica da fase formal à fase real. Dado que o trabalho vivo predomina sobre o trabalho morto, a taxa de mais-valia prima sobre a taxa de lucro. Como o capital constante não é significativo podemos assimilar, de um ponto de vista teórico, a taxa de lucro à taxa de mais-valia.

Conseqüentemente, para uma dada taxa de mais-valia, a taxa de lucro é tanto mais elevada quanto menor for a importância do capital constante. Sabemos que a taxa de lucro é igual a m v / c+ v, isto é, à razão entre a mais-valia (mv) e o capital total ( constante ( c ) + variável (v)) adiantado. Fazendo c=0, obtemos uma taxa de lucro máxima igual a m v / v e, portanto, igual à taxa de mais-valia. A taxa de lucro atinge portanto seu limite máximo, ou seja, a taxa de mais-valia.

Nesta primeira fase da vida do modo de produção capitalista, a acumulação do capital realiza-se portanto essencialmente sob a forma de capital variável, pois o trabalho vivo constitui a maior parte da mais-valia capitalizada. Dado que não intervém nem grande subversão no processo de trabalho nem grande revolução no valor das mercadorias, o crescimento do capital variável e do proletariado é proporcional à taxa de crescimento da produção capitalista. Entre as características da fase de submissão formal do trabalho ao capital, temos portanto um nível elevado da taxa de lucro, um alargamento da esfera das necessidades em relação direta à acumulação do capital ( o aumento dos valores de uso é proporcional à dos valores de troca); a taxa de acumulação, isto é, a parte da mais-valia acumulada é elevada; a taxa de crescimento é elevada na mesma proporção. 49

Reencontramos aqui a tese estabelecida pela nossa escola histórica, segundo a qual quanto mais um capitalismo é jovem, tanto mais a taxa de crescimento é elevada.

“O capitalismo acumula, nos seus primórdios, a um ritmo rápido, e na sua maturidade, a um ritmo lento. Historicamente, o ritmo da a cumulação decresce (do mesmo modo que a taxa média de lucro), enquanto que a massa do produto do capital, do rendimento, do lucro, da potência mundial do Capital aumenta. Com o socialismo, o ritmo cai ao mínimo e, teoricamente, senão à zero, ao menos no ritmo do aumento anual da população, isto é, para os países mais prolíferos, a 1%: tais são as conclusões marxistas nesta matéria (...)

49 A taxa de crescimento é igual a (m v k / c+v), onde “k” representa a taxa de acumulação. Uma parte da mais-valia é acumulada, isto é, transformada em capital adicional, sendo que a outra parte é consumida pela classe capitalista e Cia. A taxa de acumulação define portanto a razão da mais-valia acumulada à mais-valia total. Por exemplo, acumulando-se a metade da mais-valia, a taxa de acumulação “k” é igual a 0,5. * O mesmo vale para países que não conheceram o feudalismo.

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A regra é portanto, que mal um país sai do feudalismo* ele tem um ritmo de industrialização mais elevado do que um país de capitalismo mais envelhecido. Se este ritmo era proporcional ao bem-estar (ao invés de ser, como é o caso na realidade, à exploração e ao tormento do trabalho assalariado), é não apenas o sistema capitalista, mas o feudal – e não o socialismo – que ganharia a competição; e para aquele que é independente de nossos analfabetos nacionais na matéria de marxismo, isto não é um paradoxo nem econômico, nem histórico.” (Bordiga. Diálogo com os mortos).

Por conseguinte, acumulação do capital na fase formal caracteriza-se por um nível elevado da taxa de lucro, dada a fraca importância do capital constante e, particularmente, do capital fixo. Além disso, este nível elevado da taxa de lucro, assim como uma esfera das necessidades cuja satisfação implica um crescimento do valor de troca proporcional à do valor de uso, favorecem uma grande taxa de acumulação. Podemos também constatar que, nesta fase a forte acumulação é favorecida pela propensão absoluta que a burguesia possui pela acumulação. Mais tarde, sem renunciar a este momento fundamental da reprodução do capital, a burguesia deixar-se-á levar às delícias do consumo.

Durante a fase de submissão formal do trabalho ao capital, o modo de produção capitalista ainda não conhece suas contradições específicas, muito particularmente a contradição valorização/desvalorização, característica da fase de submissão real. A valorização do capital não engendra aqui sua desvalorização, pois o valor de uso aumenta em relação ao valor de troca. A composição orgânica, como dissemos, é frágil e a composição técnica tende a permanecer idêntica, pois o processo de trabalho não é subvertido.

Nestas condições, como se manifestam as crises na fase de submissão formal? Quais as formas que assumem? Quais são suas causas?

As respostas a todas estas questões nós as encontramos na obra comunista. Marx respondeu antecipadamente. Na fase de submissão formal do trabalho ao capital, a crise engendrada pela baixa da taxa de lucro engendra uma superacumulação absoluta (super-produção absoluta) de capital.

Acabamos de mencionar a baixa da taxa de lucro como causa da crise. Ora, como manifesta-se a baixa da taxa de lucro nesta fase, dado que a força produtiva do trabalho só conhece um frágil progresso e que o movimento da composição orgânica do capital não está ligado a um tal progresso?

Vimos que na fase de submissão formal, o nível relativo da taxa de lucro é elevado, que a taxa de acumulação é grande e que a fração da mais-valia acumulada sob a forma de capital variável é preponderante. O processo de trabalho conhece poucas mudanças, o progresso da população operária é proporcional à taxa de crescimento da produção capitalista. Dado que esta situa-se em nível elevado, o aumento do número de operários é muito rápido.

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A acumulação acelerado do capital conduz a uma reabsorção da superpopulação absoluta (isto é, da superpopulação específica à fase de submissão formal. (cf. capítulo 2, acima). Esta diminuição tende a fazer aumentar o salário, o que implica uma baixa da taxa de lucro, dado que a parte variável do capital eleva-se e que a mais-valia diminui. Na fórmula dada acima: mv / c+v (que na fase formal pode ser reduzida, de um ponto de vista teórico, à mv/v), o aumento de “v” ligado à uma redução de mesma grande de “mv” engendra – permanecendo idênticas todas as demais condições – uma baixa da taxa de lucro. A taxa e a massa da mais-valia diminuem, o mesmo acontecendo com a composição orgânica do capital, dado o aumento dos salários. Mas esta baixa de composição orgânica não compensa a da taxa de mais-valia e, por conseguinte, a taxa de lucro cai.

Na fase de submissão formal, a crise explode quando ocorre a superacumulação absoluta, a superprodução absoluta de capital.

“Desde que, em relação à população operária, o capital tivesse portanto acrescentado-se numa proporção tal que nem o tempo de trabalho absoluto fornecido por esta população, nem o tempo de sobretrabalho relativo não poderiam ser estendidos ( o que, por outro lado, seria irrealizável no caso em que a demanda de trabalho seria bastante forte para determinar uma tendência à alta dos salários), desde que o capital acrescido não produzisse portanto outro tanto, mas mesmo menos mais-valia do que antes de seu crescimento, ter-se-ia superprodução absoluta de capital. Em outras palavras, o capital acrescido, c + ∆c, não produziria maior lucro, talvez menos, que o capital c antes de seu acréscimo ∆c. Nos dois casos, ter-se-ia também uma baixa sensível e súbita da taxa geral de lucro, mas a causa seria desta vez uma mudança na composição do capital., não devida ao desenvolvimento das forças produtivas, mas à uma alta no valor monetário do capital variável ( em razão dos salários aumentados) e à diminuição correspondente na relação de sobre-trabalho ao trabalho necessário.” (O Capital – livro III, seção 3, cap. 10)

Quando os salários aumentam, a taxa e a massa da mais-valia produzida por operário diminui, mas esta diminuição é compensada até um certo ponto pelo aumento do número de operários causado pela acumulação. Entretanto, para uma dada taxa de acumulação, o número de operários tenderá doravante a aumentar menos rapidamente, dado que para uma mesma massa de capital variável empregar-se-á um número menor de operários, uma vez que os salários destes últimos aumentou. Além do menor rendimento, a baixa da taxa de lucro tende a pesar sobre a taxa de acumulação.

Se queremos resumir o conjunto do movimento, diremos que enquanto a diminuição da massa de mais-valia produzida por operário é compensada pelo aumento global da massa de mais-valia, devida à contratação de operários suplementares, a taxa de lucro baixa sem por isso engendrar crise; esta baixa

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testemunha as dificuldades crescentes encontradas pela burguesia e a necessidade para ela de fazer frente a uma situação que se degrada.

A crise explode quando, o fenômeno de compensação que acabamos de descrever não mais acontece. Isto é, quanto para um dado aumento de capital, a massa de mais-valia novamente produzida pelo capital aumentado permanece idêntica, ou mesmo diminui, em relação à massa de mais-valia anteriormente produzida pelo capital antes de seu aumento. Em outras palavras, se temos um capital adiantado c (bem entendido, este capital adiantado decompõe-se em capital constante e variável, e na fase formal a parte variável é dele maior), e que este capital adiantado produz uma massa de mais-valia ‘mv’; se após o aumento do capital adiantado, c+ ∆c produz sempre uma mais-valia igual, ou inferior a ‘mv’, então temos uma baixa da taxa de lucro que passa de mv/c para mv/ c+∆c. Esta baixa traduz-se por uma superacumulação absoluta de capital e uma parte deste deve ser alqueivada, desvalorizada, de modo a restabelecer a taxa de lucro e relançar a acumulação. Por conseguinte, a crise explode quando a alta dos salários e, portanto, a baixa da mais-valia que decorre, não é mais compensada pelo aumento da mais-valia devida ao crescimento da população operária.

Para a economia política, seja sua tendência Ricardiana (à qual e liga a economia política Leninista, assim como Grosmann e Cia) , ou sua tendência Sismondiana (na linhagem da qual se situa o luxemburguismo), a crise do modo de produção capitalista só afeta uma parte do produto social (o que se explicaria pelas desproporções entre os diversos ramos em Ricardo e no leninismo, por uma insuficiência da massa da mais-valia para financiar a acumulação, como afirma Grosmann por uma impossibilidade de realizar a mais-valia destinada à acumulação, como diz Rosa Luxemburgo).

Contrariamente à esta concepção burguesa que tende a negar que a crise do modo de produção capitalista seja uma crise catastrófica e que, por conseguinte, conduz o proletariado a ficar sob a ameaça do reformismo contra-revoluc9ionário, o comunismo teórico sempre defendeu a tese segundo a qual é a totalidade do produto social que não pode ser realizada, dada a baixa brutal da taxa de lucro (isto na medida em q eu o nível da taxa de lucro torna-se tal que desencoraja qualquer tentativa de valorização do capital). Em conseqüência, não é apenas uma parte da mais-valia ‘mv’, isto é, uma parte do capital total que vai sofrer de superprodução, mas sua totalidade, isto é, c+v+mv (que na fase formal pode resumir-se a v+mv). Se quisermos resumir todo o antagonismo de classe que separa a economia política, de qualquer lado que esteja, da teoria comunista que não procura compreender abstratamente os mecanismos do modo de produção capitalista, mas a antecipar teoricamente sua destruição, diremos então que para a primeira a crise é parcial e de fraca amplitude, para a segunda a crise é geral e catastrófica.

Na fase de submissão formal do trabalho ao capital, dado que o capital a inda domina penas formalmente o conjunto da sociedade e que, além disso, o

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capital constante e muito particularmente sua parte fixa são relativamente frágeis, as crises sempre tendo de chofre um caráter catastrófico e sendo geradoras de crises sociais e políticas, não têm um caráter tão profundo e tão devastador como o que elas vão assumir na fase de submissão real, quando o capital submete a si toda a sociedade.

Vimos como explode a crise na fase de submissão formal do trabalho ao capital, falta-nos ver agora como, nesta mesma fase, restabelecem-se as condições de um movimento “sadio” de produção capitalista. Para que o processo de valorização seja retomado, é necessário, como já dissemos que uma parte do capital sofra uma desvalorização. Dado que maior parte do capital consiste em capital variável, o meio mais adequado para desvalorizá-lo consiste em fazer baixar os salários. Como a parada da acumulação traduz-se por um inchaço rápido da superpopulação, exerce-se uma pressão sobre os salários tendendo a fazê-los baixar. Ao mesmo tempo, o capital esforça-se em alongar a jornada de trabalho para a parte da classe operária que permanece em atividade. Do mesmo modo, a ação conjugada de uma baixa dos salários ( o que se traduz em nossa equação da taxa de lucro, por uma diminuição – desvalorização – do capital adiantado no denominador e por um aumento da mais-valia no numerador), e de um reerguimento da taxa de exploração favorece a restauração da taxa de lucro, o travamento da crise e assim a acumulação do capital pode recuperar-se para um novo ciclo.

Com a elevação da taxa de lucro consecutiva à nova fase de expansão, a taxa de acumulação que havia caído e tornando-se muito baixa para reabsorver a superpopulação absoluta, pode recuperar-se progressivamente. Sob a ação conjugada destes dois fatores: elevação da taxa de lucro e elevação da taxa de acumulação, a taxa de crescimento aumenta e, em um dado momento, vai ultrapassar a taxa de crescimento da população operária, contribuindo assim para reabsorver a superpopulação absoluta. Desde então, segundo um movimento cíclico, estão dadas as premissas de uma nova crise.

Na fase formal existem igualmente causas que tendem a se contrapor à baixa da taxa de lucro. Mas na fase de submissão formal, estas contra-tendências não agem “naturalmente”, a burguesia não pode privar-se da ajuda do Estado. Graças a este último, ela fixa um máximo de salário e impede que este se eleve. Ela igualmente procura manter uma superpopulação absoluta que faça pressão sobre os salários. A burguesia pode assim compensar a baixa da taxa de lucro aumentando a duração da jornada de trabalho, modificando as condições de reprodução da força de trabalho (por exemplo, a introdução da batata na alimentação dos operários ingleses), assim como pelo expediente da dominação colonial que lhe fornece sobretrabalho e matérias-primas a baixo preço, como já vimos em outras partes deste texto.

As crises que afetam o modo de produção capitalista na fase de submissão formal do trabalho ao capital e as lutas de classes que não deixam de procriar empurram então a burguesia a colocar os mecanismos próprios à fase de

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submissão real do trabalho ao capital. Para impedir os salários de aumentar, para encontrar uma resposta à este problema burguês, o que melhor do que a introdução das máquinas? Uma alta dos salários tende a favorecer a introdução das máquinas e portanto modificar o processo de trabalho (bem como o processo de valorização na medida em que assim se desenvolve o processo de produção de mais-valia relativa). Assim sendo, uma parte da classe operária vai engrossar as fileiras da superpopulação – aqui relativa – e vem exercer uma pressão num sentido de baixa nos salários. Do mesmo modo, as lutas proletárias que tinham seu apoio no ofício, na qualificação do operário, podem ser rapidamente derrotadas com a colocação de máquinas que desqualificam a força de trabalho. Um outro efeito fundamental consiste no desenvolvimento da produtividade e da intensidade do trabalho, ao menos quando a fase de submissão real ganha uma certa amplitude (vimos no capítulo 2, que, no início, a introdução de máquinas tem como efeito permitir, despedaçando a classe operária, um alongamento desmedido da duração da jornada de trabalho). Por esta razão, a expansão do modo de produção capitalista pode muito bem acomodar-se ao aumento do salário nominal e real, na medida em que a produtividade do trabalho cresce mais rapidamente. O salário real pode elevar-se enquanto a taxa e a massa da mais-valia aumentam. O capital engloba então as contradições ligadas à fase de submissão formal; a necessidade que experimenta o capital para sobrepujar suas crises de juventude, empurra-o à colocação de um processo de trabalho especificamente capitalista e a lançar-se freneticamente na produção de mais-valia relativa. Deste modo, o capital constante, e muito particularmente o capital fixo, desenvolve-se e seu tempo de rotação funda um novo ciclo de produção capitalista, enquanto que anteriormente o ciclo estava ligado ao movimento do salário. Surge uma contradição específica característica da fase real, a contradição valorização/desvalorização. Doravante, o capital vai conhecer uma nova fase de superacumulação. A superacumulação, superprodução relativa do capital.

9.2. AS CRISES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA NA FASE DE SUBMISSÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL

O desenvolvimento da mais-valia relativa, característica da fase real repousa na desvalorização do valor da força de trabalho e na sua intensificação do trabalho. No primeiro caso, isto significa que para um dado tempo de trabalho é produzido mais valores de uso. Por conseguinte, a massa das mercadorias incha-se enquanto que o valor que elas contém permanece o mesmo. Portanto, o valor individual das mercadorias diminui. Para reproduzir a força de trabalho, basta então um menor tempo de trabalho. Conseqüentemente, o tempo de trabalho necessário para a manutenção da classe operária é diminuído e o sobretrabalho, a mais-valia, aumentada na mesma proporção. No segundo caso ( o aumento da intensidade), a massa da mercadorias aumenta mas o valor que elas contêm aumenta igualmente, se bem que o valor individual da mercadoria permanece constante. A mais-valia aumenta porque no mesmo tempo a força de trabalho cria mais valor e, portanto, mais sobretrabalho.

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Com a fase de submissão real, forjando um processo de trabalho especificamente capitalista, o capital superar as limitações que encontrava na fase formal para a realização de seu ser. Doravante, o processo de produção é adequado a seu ser; o capital pode perseguir seu objetivo (a produção do máximo de mais-valia) com toda a eficiência desejada. Mas o capital coloca, ao mesmo tempo, novos limites à produção capitalista e desdobra ao máximo suas contradições que se verificam periodicamente nas crises catastróficas, verdadeiros cataclismos sociais que colocam em causa os próprios fundamentos da sociedade burguesa.

Na fase de submissão real, o aumento dos valores de uso é mais que proporcional ao do valor de troca, a massa de mercadorias incha-se enquanto que o valor que elas contêm aumenta menos rapidamente. Para valorizar-se ao máximo o capital desvaloriza-se, isto é, ele diminui o tempo de trabalho necessário à sua reprodução. Fundado na lei do valor e do tempo de trabalho necessário; baseado na procura do máximo de sobretrabalho que ele extorque do proletariado, o capital desbasta assim a própria base sobre a qual ele é edificado, desvalorizando as mercadorias. Esta contradição valorização/desvalorização apresenta-se sob o aspecto da baixa tendencial da taxa de lucro.

“O roubo do tempo de trabalho do outro, base atual da riqueza, parece uma piada miserável comparada a que cria e desenvolve a própria grande indústria. (...)

O capital é contradição em ato: ele tende a reduzir ao mínimo o tempo de trabalho, tornando-o a única fonte e a medida da riqueza. Também diminui-o na sua forma necessária para aumentá-lo na sua forma inútil, fazendo do tempo de trabalho supérfluo – questão de vida ou de morte –, tempo de trabalho necessário. De um lado, o capital põe em movimento todas as forças da ciência e da natureza, estimula a cooperação e comércio sociais para liberar (relativamente) a criação da riqueza do tempo de trabalho; de outro, quer medir em tempo de trabalho as imensas forças assim criadas, de modo que contém, imobiliza e limita as forças adquiridas. Forças produtivas e relações sociais – duplo princípio do desenvolvimento do indivíduo –, apenas são e significam para o capital simples meios para manter-se sobre sua própria base estreita. Na realidade, são estas condições naturais que farão explodir os fundamentos do capital.” (Marx, Grundrisse)

A fim de obter o máximo de sobretrabalho, é necessário aumentar ao máximo a produtividade e a intensidade do trabalho e, para tanto, o capital deve subverter constantemente a relações de produção. Isto se traduz por uma revolução permanente no processo de trabalho que torna-se conforme ao modo de produção que o engendra, permitindo ao capital valorizar-se ao máximo produzindo mais-valia relativa. Deste modo, o capital fixo desenvolve-se e a composição técnica e em valor do capital, isto é, a composição orgânica do capital aumenta. Isto significa que a parte do trabalho morto, o capital constante, aumenta

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em relação ao trabalho vivo. Como a mais-valia provém apenas da exploração da força de trabalho, a mais-valia criada não é mais proporcional ao capital adiantado, isto é, ao capital constante + capital variável, mas unicamente ao capital variável. A contradição reside portanto no fato de que, para poder extorquir o máximo de mais-valia, o capital encontra-se constrangido a reduzir a parte relativa do capital variável, enquanto que apenas esta parte do capital engendra a mais-valia.

Quando um capital adiantado c+ ∆c produz uma massa de mais-v alia mv2, tal que mv2 / c+ ∆c < mv1 / c, isto é, quando a nova taxa de lucro (ou seja, a massa de mais-valia criada relacionada a um capital adiantado c+ ∆c superior à c ) é inferior à taxa de lucro que existia anteriormente (mv1/c), esta queda, traduzindo uma baixa no processo da produtividade do trabalho, conduz a uma superacumulação relativa do capital.

Para desenvolver-se, para valorizar-se, o capital deve incessantemente desvalorizar os produtos existentes. O progresso da acumulação tende dilapidar a parte de capital variável, única criadora de mais-valia, em relação ao capital constante. Quando o aumento da produtividade do trabalho revela-se insuficiente para compensar a diminuição relativa da massa de mais-valia que engendra a alta da composição orgânica, então explode a crise. O capital é incapaz de realizar-se, isto é, de passar da forma mercadoria à forma dinheiro pois o grau de valorização do capital, cuja medida é a taxa de lucro, baixa brutalmente. A crise é igualmente aqui uma crise catastrófica; ela afeta a totalidade do produto social ‘c + v + mv’ e não apenas ‘mv’ ou qualquer outra parte limitada do capital.

Com a fase de submissão real, a crises atingem seu máximo de extensão e de intensidade. Enquanto que na fase formal a parte pertencente ao capital constante no produto social era extremamente frágil na fase de submissão real ela particularmente desenvolveu-se a tal ponto que, doravante, é o tempo de rotação do capital fixo que determina o ciclo da produção capitalista. Se na fase formal o ciclo repousa no movimento cíclico do capital variável, quando a grande indústria dita sua lei à produção capitalista o ciclo é, a partir de então determinado pelo capital fixo.

Historicamente, quando se instaura a fase de submissão real do trabalho ao capital, o ciclo da produção capitalista alonga-se passando de 5 anos, durante a fase de submissão formal, para aproximadamente 10 anos, com o advento da fase de submissão real. Depois, este ciclo tende a encurtar-se, para atingir uma duração de aproximadamente 6 anos após 1945. As crises tornam-se tanto mais violentas quanto mais a produção capitalista desenvolver-se. Quanto mais esta é avançada maior é a massa de mercadorias, mais fraco é seu valor de troca e maior deve ser o progresso da produtividade do trabalho para desvalorizá-las ainda mais e para que o capital possa obter um acréscimo de mais-valia. Assim sendo, a massa de mercadorias incha-se sempre mais. Marx demonstrou que, todas as demais condições permanecendo idênticas quanto mais elevada for a

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taxa de exploração, mais a força produtiva do trabalho deve aumentar para arrancar uma massa de sobretrabalho cujo crescimento está longe de ser proporcional à da produtividade. Esta é, como dissemos, uma das razões do totalitarismo crescente da sociedade burguesa. Se na fase de submissão formal o capital podia englobar as crises que conhecia apressando a colocação das formas de sua dominação específica, quando a fase de submissão real é efetiva as crises atingem uma dimensão sem comparação com aquelas que aconteciam na fase juvenil do modo de produção capitalista.

Para reabsorver superprodução, é necessário desvalorizar o capital de modo a restaurar as condições que prevaleciam anteriormente e que asseguravam um taxa de lucro suficiente para o capital. Para restabelecer o nível de produtividade anterior, é necessário alqueivar um parte do capital, desvalorizá-lo. Por conseguinte, o movimento dos preços por atacado segue no sentido inverso daquele do valor. O nível dos preços baixa até que o capital esteja suficientemente desvalorizado para que possa ser retomada a caça ao máximo de mais-valia. Por outro lado, o movimento de desvalorização é acelerado pelo fato de que a parada do ciclo capitalista conduz a destruição dos valores de uso (mercadorias que não se vendem deterioram-se, etc...) e, conseqüentemente, o valor de troca que contém.

À medida em que as crises ganham em intensidade, que o grau de produtividade na base do qual elas explodem, é mais elevado, que a massa das mercadorias produzida é pletórica, torna-se cada vez mais necessário para a burguesia organizar sistematicamente a crise, se ela não quer ver as forças produtivas em revolta destruírem as relações de produção caducas nas quais elas se desenvolveram. A guerra torna-se então o último recurso para favorecer uma desvalorização que, entregue unicamente às forças do mercado, revelar-se-ia muito perigosa. Não é possível deixar desenvolver-se o exército de reserva, sem o longo prazo afrontar uma guerra civil cuja violência corre o risco de ser proporcional ao grau de desenvolvimento da sociedade. A guerra permite então acelerar a desvalorização do capital e também reduzir fortemente a massa dos produtos existentes; isto é, que se destrua capital. Enfim “last but not least”, a guerra reúne em brigada o proletariado contra o qual ela é dirigida, tentando entravar o desenvolvimento de seu instinto, de sua vontade e de sua consciência revolucionária. Ela visa quebrar sua organicidade em partido político distinto oposto ao capital e às corças que o defendem.

Segue-se que toda elevação da composição orgânica do capital não se traduz necessariamente por uma crise. Com efeito, as mesmas causas que engendram baixa da taxa de lucro igualmente engendram contra-tendências à ela, se bem que ela pode encontrar-se contraposta no todo ou em parte. O capital, na sua procura do máximo de mais-valia, tende a elevar a composição orgânica a fim de aumentar a produtividade social do trabalho. Assim sendo, ele tende a fazer baixar a taxa de lucro mas produz também contra-tendências à esta baixa. Por exemplo, se a acumulação do capital conduz a um aumento de seu valor e que a parte constante eleva-se em relação à parte variável, o aumento da produtividade,

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diminuindo o valor do capital adiantado, vai de encontro à tendência precedente. Além disso, na medida em que desvalorizou-se a força de trabalho, aumenta-se, permanecendo iguais todas as condições, na mesma proporção a mais-valia. Por conseguinte, a taxa de lucro eleva-se sob a influência deste fator.

Do mesmo modo se a intensidade de trabalho aumenta, a massa de mais-valia criada por operário aumenta, mesmo se a taxa de mais-valia permanece constante. Na medida em que a superpopulação relativa tende a crescer-se, a pressão sobre os salários faz-se mais forte e o preço da força de trabalho tende cair abaixo de seu valor.

Outros fatores permitem reerguer a taxa de lucro geral 50. Uma rotação mais rápida do capital, o agravamento da dominação imperialista é portanto, a possibilidade de diminuir o preço das mercadorias importadas, enquanto que capitais são aplicados em nações onde produzem taxas de lucro mais elevadas do que na nação mãe. Um outro ponto importante (no que concerne o trabalho produtivo), é a criação de novos ramos. Com o desenvolvimento da fase real, como vimos, o inchaço da massa de mercadorias é mais que proporcional ao aumento do valor de troca. O capital deve portanto incessantemente procurar novos mercados de escoamento, quer seja pelo crescimento do consumo existente, pela extensão deste consumo a esferas que até aqui não o conheciam, ou pela criação de novas necessidades. É, como veremos, a necessidade de encontrar um mercado para esta massa crescente de mercadorias, limitando ao mesmo tempo a acumulação e portanto a amplificação deste processo, que implica , para o capital, o recurso a uma classe de consumidores cuja paixão pelo dispêndio permite realizar uma parte da mais-valia, limitar a acumulação da mais-valia e tentar por aí “estabilizar” a produção capitalista. Entretanto, a criação de novos ramos, e isto tanto mais que estão voltados para a produção de artigos de luxo que vão ser consumidos pelas classes médias, pode baixar o nível médio da composição orgânica do capital, na medida em que estes ramos exploram mais trabalho vivo.

Todos estes fatores contribuem, portanto, a se contrapor à baixa da taxa de lucro que é apenas uma tendência; o que significa que invariavelmente as necessidades da produção capitalista empurram a taxa de lucro à baixa, mas que esta mesma produção capitalista engendra antídotos à esta baixa, se bem que conforme a importância destas contra-tendências a taxa de lucro pode permanecer estacionária, aumentar ou diminuir . Quando as causas que contrapõem à esta baixa não agem, ou não agem suficientemente, para prevenir um brusca modificação nas condições da produção da mais-valia, a crise explode, a superprodução generaliza-se, os meios de produção e de consumo não encontram mais à sua frente uma demanda solvável para realizar o valor e a mais-

50 Consideremos aqui apenas a taxa de lucro geral e os ramos do capital produtivo. Em conseqüência, não levamos em consideração a influência que podem ter sobre a taxa geral de lucro fatores tão diversos como o desenvolvimento do capital por ações, a baixa da venda, a intervenção do Estado, os impostos, etc... nem os efeitos do capital aplicado nas esferas improdutivas, comércio, etc...

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valia que contém, enquanto, de um outro lado, aumenta a força de trabalho desempregada. É necessário restaurar as antigas condições de produção e isto ao preço de uma desvalorização brutal, cujos elementos essenciais já descrevemos.

No entanto é bom notar que, mesmo quando os fatores que se contrapõem à baixa da taxa de lucro agem plenamente, mesmo que o capital não entre em crise, ele põe suas contradições em um nível superior, pois a massa de mercadorias incha-se ainda mais, a desvalorização é mais profunda, o nível da produtividade social do trabalho é maior e, portanto, as forças produtivas sufocam mais ainda no estreitíssimo quadro das relações de produção capitalistas. A crise apenas foi adiada para preparar u ma crise muito mais violenta.

Compreendemos aqui a necessidade para o capital encontrar uma classe de puros consumidores que não pode ser a classe capitalista, cuja paixão pela acumulação permanece sendo o móbil fundamental, mesmo se na fase de submissão real seu ascetismo desaparece. Na medida em que, para extorquir o máximo de sobretrabalho do proletariado, a massa de mercadorias incha-se sempre mais desmedidamente, aumenta a instabilidade da produção capitalista e esta tendência seria rapidamente insustentável se a acumulação prosseguisse no ritmo que ela pôde conhecer na fase de submissão formal. Para o capital, é portanto necessário que se desenvolva uma classe que possa limitar a acumulação e, ao mesmo tempo, tentar estabilizar a produção capitalista. Esta classe, que representa a paixão do dispêndio, a paixão do consumo é a classe média. Consumindo uma parte da mais-valia, ela permite ao capital manter a taxa de acumulação em um nível que não é excessivamente elevado, a fim de que a reprodução ampliada e acelerada do capital não se torne rapidamente explosiva.

De outra parte, o salário destas classes não sendo um rendimento derivado da outras classes da sociedade, mas fazendo parte do “capital variável”. 51 dos capitalistas, permite a realização de uma parte do produto social e, mais particularmente, da mais-valia, isto independentemente do nível da taxa de lucro. Por conseguinte, deste ponto de vista as classes médias contribuem igualmente à solidez do edifício social capitalista. Contrariamente às teorias ricardianas de Grossmann, Mattick e Cia, a parte da mais-valia consumida para fins individuais não diminui sob o efeito da elevação da composição orgânica e da tendência à baixa da taxa de lucro. Bem ao contrário, o desenvolvimento da contradição valorização/desvalorização impõe a necessidade de uma classe de consumidores capazes de realizar a mais-valia.

51 Empregamos aqui o conceito de “capital variável” por comodidade, pois o trabalho das classes médias não sendo produtivo não cria nem valor nem mais-valia, ele não reproduz “seu próprio equivalente e além disso um excedente” (Marx – O Capital – livro I). Em conseqüência, é evidente que os conceitos que caracterizam o trabalho produtivo (capital variável, composição orgânica, etc...), não podem ser estendidos “stricto sensu”, às classes médias.

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Quando os primeiros sinais da crise aparecem, o capital ataca inicialmente as classes improdutivas, as classes que consomem mais-valia sem produzi-la, enquanto esta última tende justamente a fazer falta.

Assim sendo, uma das balaustradas da produção capitalista desaparece. Laminando as classes médias, o capital reduz à zero seu papel de “estabilizador”, ao mesmo tempo que ele as empurra a entrar em luta contra ele.

A produção capitalista é portanto então como um equilibrista que teria ele próprio lançado seu balancim no vazio. Tomado de vertigem lutando desesperadamente para conservar seu equilíbrio sobre sua corda, cujas oscilações cada vez mais fortes tenta brecar, ele não pode de modo algum retardar o momento em que ele próprio irá perder-se no fundo do abismo.

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10. CONCLUSÃO: AS DUAS FASES DO COMUNISMO

10.1. INTRODUÇÃO

10.1.1. Ao fim de nosso estudo sobre as duas fase históricas da produção capitalista onde mostramos qual era o devir do modo de produção capitalista, e a passagem necessária a uma forma de produção superior: o comunismo, resta-nos mostrar quais são os momentos históricos desta passagem. Por analogia, falaremos de uma “fase de dominação formal” – em que ainda a nova sociedade porta os estigmas da antiga sociedade – que inclui a fase de transição política (ditadura do proletariado) e a fase inferior do comunismo, e de uma “fase de dominação real” em q eu a forma social desdobra seu próprio conteúdo, realizando-o, sem que aí não mais se oponha qualquer obstáculo herdado das formas sociais anteriores.

Temos então a seguinte sucessão:

Fase de dominação formal do comunismo.

� Ditadura do proletariado � Fase inferior do comunismo

Fase de dominação real do comunismo

10.1.2. A revolução comunista é o necessário arrevesamento de todo o curso da história humana, momento em que o proletariado, organizado em partido político, de classe submissa ao despotismo capitalista, erige-se, com a ditadura do proletariado, em classe dominante, antes de negar-se a si próprio e, portanto, todas as outras classes na sociedade comunista.

10.1.3. Empregando aqui o termo “dominação” formal ou real do comunismo, não queremos dizer que este seria um “modo de produção” repousado na dominação de uma fração da humanidade sobre outra. O comunismo é a realização da comunidade (Gemeinwesen) humana, comunidade da espécie que domina e subjuga suas condições de vida.

10.1.4. O partido comunista sempre afirmou que a descrição dos caracteres da sociedade comunista estavam no primeiro plano de sua teoria. Exporemos, portanto, aqui os diversos momentos da sociedade para a qual tende necessariamente a espécie humana, separada em classes antagônicas desde a dissolução das comunidades primitivas. É necessário antes de tudo, insistir no primeiro momento deste processo: a ditadura do proletariado.

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10.2. A FASE DE DOMINAÇÃO FORMAL DO COMUNISMO

10.2.1. A Ditadura do Proletariado

10.2.1.1. Sempre combatemos a tese stalinista (igualmente aceita pelo esquerdismo em todas suas variantes), segundo a qual o comunismo se constrói, quando na verdade as bases deste já estão contidas e desenvolvidas nas entranhas da sociedade burguesa, e que é apenas destruindo esta última que se permitirá a emergência da sociedade futura.

10.2.1.2. Para liberar o comunismo dos flancos da velha sociedade o proletariado deve apossar-se do poder político. A fase ao longo da qual o proletariado destrói o Estado capitalista e, erigindo-se em classe dominante, utiliza o poder político (Estado proletário) a fim de reorganizar as forças produtivas numa perspectiva comunista, é a ditadura do proletariado.

“Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista, coloca-se o período de transformação revolucionária daquela nesta. A que corresponde um período de transição política no qual o Estado não poderia ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado.” (Crítica ao programa de Gotha)

10.2.1.3. Enquanto a ditadura do proletariado ainda não se estendeu às principais metrópoles capitalistas e ainda não sufocou as veleidades da resistência da classe capitalista e das forças sociais que se opõem à revolução proletária, o comunismo não pode se desenvolver livremente. O proletariado deve, portanto, lutar contra a reação capitalista e, para tanto, deve conduzir resolutamente guerras civis e guerras revolucionárias em escala internacional.

Mas, desde que o proletariado, organizado em partido comunista, tomou o poder num país ou numa zona do globo, continuando a combater militarmente contra-revolução mundial, ele pode e deve tomar as medidas necessárias para quebrar a influência política, social e econômica do modo de produção capitalista. Se a revolução comunista não conseguisse melhorar de chofre as condições de vida das massas operárias, ela seria incapaz de assegurar seus próprios fundamentos.

10.2.1.4. Desde este momento da luta, o comunismo pode manifestar-se tanto mais que se age numa área em que o modo de produção capitalista está mais fortemente desenvolvido. É evidente que nos USA e na área Euro-Norte-Americana em geral, as condições materiais estão já há muito tempo mais do que maduras para a revolução comunista e as medidas da ditadura do proletariado poderão aí ser tanto mais radicais que o próprio modo de produção capitalista aí desenvolveu anteriormente a socialização das forças produtivas, que constitui a base de sua superação. Mas toda concepção que, desde hoje, não englobe numa totalidade mundial os diversos momentos da ditadura do proletariado, demonstra apenas sua incapacidade de afrontar amanhã os problemas de junção dos fenômenos revolucionários que aparecerão nas diferentes áreas, tanto nas do

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velho capitalismo desenvolvido, como naquelas em que o modo de produção capitalista implantou-se recentemente e de maneira não acabada.

10.2.1.5. De outra parte, não importa em que zona, poderá produzir-se uma maior ou menor aceleração dos processos em função da situação internacional. Uma vitória rápida sobre a reação capitalista permitirá abreviar a fase transitória pelo aporte maciço de elementos vindos dos países avançados. O comunismo é um fenômeno mundial e não nacional.

10.2.1.6. É necessário considerar a ditadura do proletariado e as medidas que ela tomará numa dinâmica mundial e não de um ponto de vista estático e geograficamente limitado. Assim, segundo o grau de desenvolvimento capitalista, as medidas da ditadura, ainda que dirigidas para o mesmo objetivo: a instauração do comunismo, serão diferentes. Por exemplo, segundo o pelo das massas camponesas e a extensão da penetração do salariado no campo, as medidas a serem tomadas face ao campesinato não terão o mesmo caráter. Segue-se do mesmo modo em geral para a política a adotar face às classes camponesas, tanto as antigas quanto as modernas. Do mesmo modo, o grau de produtividade diferente entre as diversas áreas implica que não se pode basear, por exemplo na redução do tempo de trabalho unicamente nas zonas desenvolvidas. Considerando apenas os Estados Unidos poderia-se aí dividir imediatamente o tempo de trabalho por, digamos 4, no conjunto do planeta teríamos que dividi-lo por exemplo por 2.

10.2.1.7. Tanto é falsa e infantil a visão segundo a qual o fenômeno revolucionário manifestar-se-á por todos os lados e no mesmo momento com o mesmo grau de pureza, como é falso apresentar mecanicamente a unidade da revolução mundial como a adição de diferentes situações revolucionárias, representando diferentes graus da maturidade espraiadas no tempo e no espaço.

10.2.1.8. O poder proletário que se estabelece numa zona dada toma imediatamente, além das medidas que visam estender e reforçar o fenômeno revolucionário, medidas que tendem facilitar a instauração do comunismo. Mais a zona é desenvolvida, mais elas tendem rapidamente para o comunismo, sendo que a extensão do fenômeno revolucionário permite generalizá-las e concluí-las.

10.2.1.9. O comunismo não é apenas a negação do modo de produção capitalista, mas também a de todas as sociedades de classe que o precederam. Deste fato, o movimento liberado dos entraves da sociedade atual, movimento impulsionado pelo proletariado constituído em partido, apresentar-se como a inversão daquilo que conheceu a espécie humana desde a dissolução das comunidades comunistas primitivas. A expropriação dos homens e sua atomização (fenômeno contraditório sob o qual exprimia-se a socialização efetuada pelo capital) é substituída pela unificação destes. A partir de então, a espécie humana unificada, reconciliada com a natureza, apropria-se como espécie dos produtos de sua atividade social. Com o fim da pré-história humana, é a maior força produtiva que

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é liberada a espécie humana que está atualmente no alqueive, desperdiçada ou destruída.

10.2.1.10. Como já dissemos, não se “constrói” o comunismo, mas este é liberado dos flancos da sociedade por meio de um ato político: a revolução. A violência é a parteira de toda velha sociedade em trabalho. Desenvolvimento do comunismo e destruição dos entraves à sua emergência são ligados entre si. É isto que explica que ao longo da fase de ditadura do proletariado e a fase inferior do comunismo (o conjunto = dominação formal do comunismo), é sobretudo aparece o aspecto destrutivo que aparece da erosão da forma antiga. Na ditadura do proletariado, a ação político-militar, isto é liberação do comunismo, será predominante.

10.2.2. O Estado Proletário

10.2.2.1. Ao longo da revolução comunista e da ditadura do proletariado, este toma o poder político e destrói o Estado capitalista. Mas este último, como vimos, é uma superestrutura de força da comunidade do capital. Ora, para destruí-la é necessário atacá-la no seu fundamento, aquilo que pelo qual ela se reproduz: em outros termos, é necessário destruir o processo de valorização. Com efeito, a destruição do Estado seria insuficiente se o processo de produção capitalista fosse deixado intocado. Neste caso, chegaria um momento em que o processo de valorização do capital exerceria uma pressão que favoreceria o ressurgimento de forças anti-proletárias, minando e ameaçando exterminar o poder do Estado proletário.

10.2.2.2. A tomada do poder pelo proletariado permite travar a regeneração da comunidade do capital e facilita o desenvolvimento do comunismo. Mas não é possível substituí-la imediatamente por uma comunidade humana. Donde a necessidade de um órgão transitório, o Estado proletário exercendo a ditadura. Este Estado é dirigido pelo partido comunista, detentor da solução histórica: a unificação da espécie humana.

10.2.2.3. Pela primeira vez na história, tem-se uma revolução feita por uma classe cujo objetivo histórico é negar todas as classes e negar-se a si mesma. Por conseguinte o Estado está igualmente destinado a definhar, a extinguir-se. Se a revolução comunista deve erigir um novo poder de Estado para facilitar a emergência da nova sociedade das entranhas da velha, esta revolução é ao mesmo tempo dirigida contra o Estado (cf. Lenine “O Estado e a revolução”).

Conseqüentemente o Estado proletário não poderia ser um Estado no sentido tradicional do termo. Ele é, desde sua aparição, um semi-Estado. De uma parte sua administração, sua organização é confiada às grandes massas da população laboriosa; seus mecanismos, seu funcionamento são simplificados ao extremo, ao ponto em que, mesmo sobre a base da acanhada instrução fornecida à classe operária e a seus filhos por seus mestres capitalistas, cada proletário pode tomar parte na direção do Estado.

Para isso, medidas essenciais devem ser tomadas imediatamente:

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- Supressão da burocracia, do funcionalismo permanente “colocado acima da sociedade” (Engels)

Donde, entre outras:

- Rotatividade das tarefas; eleição dos “funcionários” pelos órgãos do poder proletário; não distinção no nível de vida entre “funcionários” e operários; supressão dos títulos, cargos, carreiras, etc.

- Revogação das principais leis do Estado burguês.

Tudo isso implica que os proletários dediquem uma parte de seu tempo de trabalho ao aprendizado do Estado e de suas funções.

De outra parte, devem ser tomadas outras medidas visando o desmantelamento do Estado burguês e a ereção do Estado proletário, tais como:

- Supressão do exército permanente, da política, dos tribunais. Desarmamento da burguesia. Constituição do exército vermelho, armamento e treinamento do proletariado, criação de milícias proletárias. Desenvolvimento da produção de guerra. Instituição de tribunais revolucionários.

- Interdição de todos os partidos políticos, sindicatos, ligas privadas, associações, etc.

- Fusão dos poderes executivo, legislativo e judiciário no seio do Estado proletário.

- Medidas tendendo a favorecer o desenvolvimento da criatividade e da expressão do proletariado.

- Destruição dos principais edifícios e símbolos políticos e ideológicos da classe capitalista.

10.2.2.4. A ditadura do proletariado é a tomada do poder político pelo proletariado e este poder repousa na violência exercida pelas massas proletárias contra as forças hostis ao comunismo. O Estado proletário, como todo Estado, é um “poder especial de repressão” (Lenine) nas mãos da classe dominante. Ele tem como tarefa sufocar as antigas classes dominantes e as forças que se opõem à revolução.

O proletariado deve igualmente servir-se de seu Estado para exercer sua ditadura sobre as forças produtivas e reorientá-las de modo a assegurar a emergência do comunismo.

• Expropriação da burguesia e da grande propriedade fundiária • Socialização dos meios de produção e de troca

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• Medidas tendendo à abolição do salariado e à instauração do bônus de trabalho. Para tanto, o proletariado utiliza todos os elementos fornecidos pela própria sociedade burguesa, por exemplo, o desenvolvimento dos bancos, etc...

• Medidas visando à eliminação de qualquer caráter mercantil da produção

• Reorganização da produção.Censo e repartição de todas as atividades produtivas

• Instalação de um plano de consumo humano, reconvertendo e repartido as forças produtivas universais

• Ruptura dos limites nacionais e da empresa. Destruição da empresa, célula de base do modo de produção capitalista

• Desenvolvimento e mecanização da agricultura. Aumento da força de trabalho alocada nesta esfera. Planificação demográfica e medidas visando a reconciliação da cidade e do campo

• De outra parte, para não cair na lógica capitalista do mínimo de esforços para o máximo de resultados, o proletariado não hesitará na base herdada da produção capitalista, em aumentar os custos de produção. Assim, enquanto durar a transformação completa da técnica e da tecnologia especificamente capitalistas, que não permitem liberar totalmente as forças produtivas, o proletariado deverá romper com as antigas cadências da produção e a produtividade inumana do modo de produção capitalista. Isto não impede a redução do tempo de trabalho. Supressão das atividades anti-sociais. Obrigação do trabalho para todos os membros da sociedade. Generalização do trabalho manual. Desenvolvimento da automação, muito particularmente para as tarefas penosas e perigosas.

• Interdição do trabalho noturno • Socialização das tarefas domésticas: trabalhos domésticos, educação

das crianças, a fim de suprimir a escravidão das mulheres, cuja emancipação completa é impossível sem a desaparição da família.

• Generalização máxima da gratuidade: refeições, serviços coletivos, saúde, transportes, aluguéis, etc.

• Requisição e expropriação das moradias da burguesia. Redistribuição das moradias.

• Paralisação da construção das grandes cidades. • Criação das infra-estruturas coletivas próprias à instauração das formas

de vida comunitárias. • Interdição da circulação automobilística nas grandes cidades. • Medidas visando a reconciliação do trabalho manual e intelectual, e a

suprimir a divisão social do trabalho. Rotação das tarefas. • Medidas tendendo a uma educação que combina as atividades

intelectuais, manuais e físicas.

10.2.2.5. A ditadura do proletariado conhece a generalização da condição de proletário no conjunto da sociedade. Ela é a forma inicial fundamental assumida

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pela negação das classes, o objetivo final da revolução comunista. Todavia, enquanto medida transitória, trata-se de uma negação ainda negativa da sociedade de classes. A negação será verdadeiramente completada quando comunidade humana estiver realizada. Mas, desde então, com obrigação do trabalho produtivo para todos os membros da sociedade, reafirma-se a natureza genérica da espécie humana; a partir de então, ela não é mais mascarada pela mistificação salarial. Realizou-se aqui, portanto, um primeiro passo para que a espécie humana afirme-se diretamente na sua atividade produtiva, atividade vivificante e não alienante do homem. Mas, para realizá-la verdadeiramente, é necessário destruir radicalmente o valor, extirpar as raízes do modo de produção capitalista, processo que se acaba com a instauração da fase inferior do comunismo.

10.2.3. A Fase Inferior do Comunismo 10.2.3.1. A ditadura do proletariado tem como papel favorecer a emergência do comunismo, seu parto das entranhas da velha sociedade. Ela é portanto transitória. Na medida em que seu objeto é atingido, ela realiza-se, sua razão de ser esvanece-se. Assim, as indispensáveis medidas de coerção que toma o Estado proletário tornam-se progressivamente sem objeto, assim como o próprio Estado, deixando deste modo os processos impulsionados inicialmente desabrocharem-se por si mesmos, desenvolverem-se no seio da sociedade, até o ponto em que nenhuma outra “medida” coercitiva transitória seja necessária para ajudar o comunismo a realizar-se. Do mesmo modo que a estaca obriga a jovem planta ainda frágil a endireitar-se na direção desejada e torna-se supérflua quando a planta ganhou em força e em potência, do mesmo modo a ditadura do proletariado tem como tarefa favorecer a instauração da fase inferior do comunismo. É por isso que designamos, por comparação, a fase que engloba a ditadura do proletariado e a fase inferior do comunismo como uma fase de dominação formal do comunismo. Aí, como da instauração do modo de produção capitalista, o comunismo deve estabelecer-se CONTRA uma antiga sociedade, as antigas relações de produção, as antigas classes sociais, um antigo modo de vida. Para cumprir sua missão histórica, o proletariado não pode abster-se da força organizada, do Estado. 10.2.3.2.Com o desaparecimento da ditadura do proletariado, penetra-se abertamente no comunismo, mas este ainda permanece marcado pelos estigmas da velha sociedade: ainda estamos na fase inferior do comunismo. Por exemplo, a sociedade ainda não supera o direito burguês na esfera da repartição do individual dos produtos. Também utiliza-se do bônus de trabalho.

Com a generalização do trabalho produtivo (trabalho manual) a todos os membros da sociedade, tem-se um primeiro passo para a abolição do salariado. Cada indivíduo participa do processo produtivo social. Há uma previsão das necessidades da sociedade e cada um cumpre sua parte do trabalho produtivo. Também o caráter social do trabalho do indivíduo é colocado antes da produção, enquanto que no modo de produção capitalista é o valor que vem sancionar

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depois o caráter social do trabalho efetuado. Aqui, o valor desapareceu. A sociedade domina suas condições de vida e de produção. A anarquia própria ao modo de produção capitalista desapareceu. Para chegar a este domínio e a repartir o tempo de trabalho entre os indivíduos, a sociedade estabelece um plano de consumo e recenseia as necessidades necessárias para satisfazê-la. Neste nível, o tempo de trabalho tem um duplo papel. De uma parte ele permite regrar “a relação exata entre as diversas funções e as diversas necessidades. “ (Marx); assim a sociedade sabe que deverá dedicar tanto tempo para a produção de um tal bem, etc... O comunismo, desde sua fase inferior supõe um sistema mundial; um tal domínio das condições de produção só pode ser estabelecido em escala planetária. De outra parte, o tempo de trabalho serve para medir a participação individual de cada um na atividade coletiva.

Na fase inferior do comunismo, o consumo individual ainda é contingenciado e a repartição dos produtos faz-se segundo o tempo de trabalho de cada um. É aí que se coloca o bônus de trabalho, sancionando a participação do indivíduo no trabalho da sociedade e permitindo-lhe retirar bens de consumo individuais. Segue-se que aqui considera-se apenas o tempo de trabalho concreto, pois o trabalho abstrato desapareceu. Em outras palavras, considera-se apenas “tempo de relógio”: um indivíduo que cumpre uma hora de trabalho recebe a mesma qualidade de bens de consumo individuais que um outro que igualmente trabalhou uma hora. Não se leva em conta as diferenças, tais como se criam na base da produção capitalista. Quando se raciocina em função do valor, isto é no modo de produção capitalista, uma hora “de relógio” do trabalho de um indivíduo pode valer mais ou menos do que uma hora “de relógio” do trabalho de um outro indivíduo, em virtude do trabalho de um ser, por exemplo, mais ou menos intensivo, ou complexo, do que o trabalho do outro.

Do tempo de trabalho global fornecido pelos indivíduos associados, a sociedade deduz o tempo necessário à substituição dos meios de produção usados, uma fração suplementar para aumentar a produção, um fundo de reserva ou de seguro contra os acidentes e as perturbações devidas a fenômenos naturais, etc... A sociedade também encarrega-se de manter seus membros que não podem trabalhar: crianças, velhos, doentes. Mas esta dedução operada pela sociedade é efetuada sobre o fundo global do trabalho fornecido no seio desta última. Todo antagonismo entre trabalho necessário e sobretrabalho desapareceu. 10.2.3.3. O bônus de trabalho não é dinheiro. Ele não circula. Com ele pode-se apenas efetuar uma única “transação”: contra uma quantidade de trabalho dada, obtém-se uma quantidade de produtos dada. O bônus de trabalho é, portanto, limitado por natureza; ele não pode tornar-se equivalente geral. Assim, bloqueia-se definitivamente qualquer ressurgimento do modo de autonomização do valor. 10.2.3.4. Sendo ainda limitada a massa de produtos a distribuir, o bônus de trabalho assegura a repartição determinada desta partilha. Esta faz-se proporcionalmente ao tempo de trabalho efetuado. Se bem que as necessidades de cada indivíduo sejam fundamentalmente diferentes, tem-se ainda uma repartição igualitária, “democrática”, entre os indivíduos, donde a permanência do “direito burguês”.

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10.2.3.5. Na fase inferior do comunismo, tem-se ainda, numa certa medida, um antagonismo entre tempo de trabalho e tempo disponível, pois o tempo de trabalho ainda desempenha um papel de medida. Para abolir a contradição, a sociedade comunista reduz a jornada de trabalho, prossegue o desenvolvimento racional da automação, libera ao máximo a espécie humana das tarefas necessárias à sua manutenção. Dizemos ao máximo porque a espécie humana não pode deixar de produzir e reproduzir quotidianamente seus meios de existência. Assim, o tempo de trabalho não pode ser reduzido a zero.

“Na verdade, o reino da liberdade começa apenas a partir do momento em que cessa o trabalho ditado pela necessidade e os fins exteriores; ele se situa, portanto, pela sua própria natureza, além da esfera da produção material propriamente dita. Assim como o homem primitivo, o homem civilizado é obrigado a medir-se com a natureza para satisfazer suas necessidades, conservar e reproduzir sua vida; este constrangimento existe para o homem em todas as formas da sociedade e sob todos os tipos de produção. Com seu desenvolvimento, este império da necessidade natural amplia-se porque as necessidades multiplicam-se; mas ao mesmo tempo desenvolve-se o processo produtivo para satisfazê-las. Neste ponto a liberdade só pode consistir no seguinte: os produtores associados – o homem socialização – regram de maneira racional suas trocas orgânicas com a natureza e submetem-nas a seu controle comum, ao invés de serem dominados pela potência cega destas trocas; e eles as realiza despendendo a menor energia possível, nas mais dignas condições, nas mais conformes à sua natureza humana. Mas o império da necessidade não deixa de subsistir. É para além daí que começa o desabrochar da potência humana que é seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade que, entretanto, só pode florescer fundando-se no reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental desta liberação.” (Marx, Capital, livro III, seção 7, conclusão)

10.2.4. Fase de Dominação Real do Comunismo: a Fase Superior do Comunismo

10.2.4.1. Com a passagem à fase superior do comunismo, entramos numa nova era: a dominação real do comunismo. Na fase qualificada como dominação formal do comunismo, incluímos dois momentos: a ditadura do proletariado e a fase inferior do comunismo, a fim de mostrar claramente a dinâmica da passagem da ditadura do proletariado ao comunismo na sua fase inferior. Os elementos colocados ao longo da ditadura do proletariado favorecem o desenvolvimento da fase inferior do comunismo. Nesta fase subsistem certos traços da velha sociedade. São necessários meios para extirpar definitivamente da sociedade as raízes do valor, como por exemplo o bônus de trabalho. Com a fase de dominação real do comunismo, opera-se uma nova subversão. A revolução (no seu sentido amplo, no sentido da subversão total das condições d vida existentes) completa-

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se. As últimas formas e elementos transitórios desaparecem. O comunismo criou-se uma base própria sobre a qual a comunidade humana irá enfim poder desenvolver-se e desabrochar-se plenamente.

10.2.4.2. Durante a ditadura do proletariado, o partido comunista exerce um papel dirigente. É ele quem dirige o Estado. Com o comunismo plenamente desenvolvido, a espécie humana não mais precisa desta mediação. Assim como o Estado, o partido na sua acepção formal definha e desaparece. Mas aquilo que, no partido histórico, era prefiguração da comunidade humana ganha corpo, desabrocha e generaliza-se ao conjunto da sociedade. A partir de então a espécie humana não tem mais necessidade de nenhuma outra mediação além da própria comunidade humana.

10.2.4.3. No comunismo, as classes, o Estado e a divisão do trabalho desaparecem. Não há mais oposição entre a cidade e o campo, mas a humanidade é repartida harmoniosamente na superfície do planeta. A divisão do trabalho, a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual desaparecem. Os homens entregam-se livremente à atividade genérica da reprodução da espécie humana.

“Numa fase superior da sociedade comunista, quando terão desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não será apenas um meio de viver, mas tornar-se-á ele próprio a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças produtivas também serão aumentadas e que as fontes da riqueza coletiva brotarão em abundância, somente a partir de então é que o horizonte limitado do direito burguês poderá ser definitivamente superado e a sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (Crítica ao programa de Gotha)

10.2.4.4. Com o comunismo enfim desenvolvido fecha-se o primeiro capítulo da aventura da humanidade: sua pré-história. A partir daí começa sua história. O comunismo não é portanto o fim de alguma coisa, mas o começo. Com ele a espécie humana penetra numa nova etapa de sua odisséia, mas daí em diante seu desenvolvimento não prossegue mais sob um forma antagônica, contraditória, no meio do fragor do afrontamento das classes em luta, mas efetua-se como desenvolvimento da espécie, senhora dela mesma e plenamente consciente de sua vida e de seu destino.

10.2.4.5. “O comunismo, como a superação positiva da propriedade privada, portanto da auto-alienação humana e, por conseguinte, como apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem; é o retorno total do homem a si como homem social, quer dizer humano, retorno consciente, realizado em toda a riqueza do desenvolvimento anterior.

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Este comunismo é um naturalismo acabado e, como tal, um humanismo; como humanismo acabado ele é um naturalismo; ele é a verdadeira solução do conflito do homem com a natureza, do homem com o homem, a verdadeira solução da luta entre a existência e a essência, a objetivação e a afirmação de si, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie. Ele é o enigma da história resolvido e sabe que é esta solução.” (Marx, Manuscritos de 1844)