Conceito de Pessoa

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  • Problemata Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011), pp. 1126ISSN 15169219.

    Data de recepo do artigo: abril/2011Data de aprovao e verso final: junho/2011.

    O CONCEITO DE PESSOA em Ricardo de So Vitor

    RESUMO: O conceito filosfico de pessoa, que em outrostempos jogou um papel fundamental no desenvolvimento dateologia, na atualidade joga um papel igualmente importantena concepo de ser humano assim como em muitos debatesmodernos sobre tica, poltica e direito. Nos propomosrastrear este conceito tendo como referencia Bocio paraimediatamente focaremos o nosso estudo num dos pensadoresque com mais detalhe tem tratado este tema chamado Ricardode So Vitor cuja originalidade surpreendente ao opor oconceito de substancia ao de existncia.PALAVRAS CHAVE: Pessoa, Ricardo de So Vitor, Bocio,existncia.ABSTRACT: The philosophical concept of person, who onceplayed a key role in the development of theology, currentlyplays an equally important role in the conception of humanbeen as well as in many modern debates about ethics, politicsand law. We propose to trace this concept having as areference Boethius, immediately we will focus our study onone of the thinkers who have dealt with more detail this themecalled Richard of St. Victor whose originality is surprising ashe opposes the concept of the substance to the one of existence.KEY WORDS: Person, Richard of Saint Victor, Boethius,existence.

    Alfredo S. Culleton *

    THE CONCEPT OF PERSON by Richard of St. Victor

    * Doutor em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul(2003). Psdoutorado no Medieval Institute University of Notre Dame USA.Professor adjunto da Universidade do Vale do Rio dos SinosUNISINOS. Membro doBureau Cientfico da Socit Internationale Pour Letude de La PhilosophieMdivale (SIEPM). Membro do Conselho Editorial da Editora Unisinos. m@il:[email protected]

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    1. Introduo:O conceito filosfico de pessoa, que em outros temposjogou um papel fundamental no desenvolvimento da teologia, naatualidade joga um papel igualmente importante na concepode ser humano assim como em muitos debates modernos sobretica, poltica e direito. Na linguagem ordinria os termospessoa e ser humano so usados indistintamente comosinnimos. Cada ser humano, ou individuo racional para sermais preciso, considerado uma pessoa e cada pessoa umindividuo racional. Por momentos, parecem nomesintercambiveis, mas, em outros casos, pessoa utilizado comouma propriedade ou qualidade do ser humano.A distino dos conceitos de Ser Humano e Pessoa nodeveria resultar em afirmaes equivocas como a de que possamexistir seres humanos que no sejam necessariamente pessoasnem que possam existir pessoas independentemente da suanatureza. Nos propomos rastrear este conceito tendo comoreferencia Bocio para imediatamente focaremos o nosso estudonum dos pensadores que com mais detalhe tem tratado este temachamado Ricardo de So Vitor cuja originalidade surpreendente.

    2. BocioQuando falamos de Bocio estamos falando de algumque tratou sistematicamente o conceito como poucos na historiada filosofia. Os pensadores da Idade Mdia, e no s osmedievais, mas a maioria dos pensadores que trataramsistematicamente o tema, posicionamse a respeito do conceitode pessoa tendo como referncia o conceito desenvolvido porBocio, no terceiro captulo do seu Sobre la persona y las dosnaturalezas, onde diz: Persona est naturae rationalis individuasubstantia: a pessoa substncia individual da natureza

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    racional (Bocio 1979, p. 557). Para chegar a essa definio,Bocio estabelece, em forma decidida e refletida, seu ponto departida no marco de uma ontologia da essncia. A substnciadivina carece de matria e de movimento, dir Bocio: por isso, algo uno e o que , no havendo lugar para acidentes oumovimento ser verdadeiramente uno aquilo no qual no se dnenhum nmero, nada fora do que ele . Ele postula de maneiraexplcita que pessoa deve ser definida dentro da naturezaessencial sendo que para ele pessoa no outra coisa que aindividualidade de uma natureza racional. Significa que oindividual enquanto tal o fator propriamente constitutivo dapessoa (Greshake 2001, p. 133). Dito de outra maneira, paraBocio, a essncia da pessoa se constitui j na substnciaracional individual como tal, e no no ato de ser especfico eprprio. Dessa maneira, os acidentes e o aspecto relacionalprprio e diferente de pessoa para pessoa fica fora da suadefinio.O argumento de Bocio, resumidamente, o seguinte: direle que entre as substncias algumas so universais, outrasparticulares. Universais so as que se predicam de cada uma emparticular, como homem, animal, pedra, madeira, eoutras similares que so gneros ou espcies. Assim, o homemse predica de cada homem, e o animal de cada animal, e a pedrae a madeira, de cada pedra e de cada madeira. Particulares soas que no se predicam de outros, como Ccero, Plato, estapedra da qual se fez esta estatua de Aquiles ou a madeira comque foi feita esta mesa. De todos esses casos, nunca se predica apessoa tratandose de universais, mas somente de singulares eindivduos. Portanto, conclui ele, se a pessoa dse somente nassubstncias, e toda substncia natureza, e no se d emuniversais, mas em indivduos, chegamos definio de pessoa:Pessoa a substncia individua da natureza racional.Nesta, como em outras passagens, o acento dado porBocio para o conceito de pessoa est na essncia individual denatureza racional. A natureza racional ser a distino e o quefar que, neste mundo, s humanos possam ser consideradospessoas, o que acaba identificando ambos no sentido

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    essencialista de que todo humano pessoa.A erudio do autor extraordinria e vale a pena nosdeter nas distines que do sustentao ao seu argumento. NoContra Eutychen et Nestorium1 ele vai distinguir quatro tipos denatureza. A primeira natura est earum rerum quae, cum sit,quoquo modo intellectu capi possunt (natureza pertenceaquelas coisas que, desde que existam, podem em certa maneiraser aprendidas pelo intelecto) a segunda, natura est vel quodfacere vel quod pati possit (natureza tanto aquilo que capazde agir como sobre o qual pode se agir) a terceira natura estmotus principium per se non per accidens (natureza um per see um principio de movimento no acidental) e quarto, naturaest unam quanque rem informans specifica differentia(natureza a diferena especifica que d forma a algo).Seguimos a Milano (1987)2 quando diz que esta sucesso dedefinies no devem ser consideradas como uma mera coleode conceitos mas entendidos como percurso lgico do menosdeterminado ao mais determinado, do mais amplo ao maisrestrito e este o caminho de Bocio na conceituao de pessoa.A quarta definio designa algo essencial, a sua forma,aquilo que faz algo ser o que a sua diferena especfica. Estaltima definio parece ocupar o papel central ao distinguirnatureza de pessoa no argumento de Bocio contra oNestorianismo, e refora a definio de natureza como apropriedade especfica de qualquer substancia3 assimreduzindo a natureza a sua essncia.Desta maneira, de acordo com Bocio, assim como anatureza ou substancia ou acidente, e a pessoa no predicao de acidente, se diz que pessoa devidamentepredicado de substancias e estas podem ser ou particulares ouuniversais, pessoa no pode ser predicado de universais, massomente de particulares e individuais4.Mas, diferentemente a Porfirio e tradio platnica quepretende reduzir a individualidade a uma coleo de acidentesou particularidades, Bocio busca entender a individualidadecomo substancializada. Individualidade para Bocio, mesmosendo perceptvel atravs dos acidentes, consiste em um quid

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    proprium na ordem do substancial. O tipo de individuo que umapessoa , o do tipo de individualidade substancial. Ele retomaa clssica distino aristotlica entre substancia e acidentereconhecendo, assim como o prprio Aristteles, que aquilo queverdadeiramente , de maneira absoluta e desqualificada,substancia ou ousa5.3. Ricardo de So Vitor

    A contribuio deste abade do mosteiro agostiniano deSo Vitor, falecido em 1175, muito pouco conhecida nahistria da filosofia. Normalmente includo dentro da tradiomstica e contemplativa do seu predecessor Hugo, mas,enquanto este defende a impertinncia da razo e a necessidadeda f, Ricardo, que publica dois importantes volumes sobre acontemplao, Benjamin minor6 sobre a preparao da alma7, eBenjamin maior8, sobre a graa da contemplao9, refora ocontrrio. O estilo mais escolstico de Ricardo visa darsustentao autoridade das escrituras e da patrstica dandomaior nfase na argumentao dialtica, buscando tenazmenterazes necessrias para a f nas pegadas de Anselmo deCanterbury. no De trinitate10, onde elabora a mais original eesclarecedora formulao da noo de pessoa, tentando situar oproblema da pessoa fora das categorias das explicaes fsicas ecom certa independncia a respeito do conceito de substancia,como veremos a seguir. O estudo desta obra, sobretudo do livroquarto, importante no s do ponto de vista histrico ecronolgico da evoluo do conceito, mas como umaradicalmente nova tentativa de formulao ontolgicoexistencial para o conceito de pessoa.Desde o ponto de vista da teologia trinitria, a tenso sesitua entre uma viso monopessoal e uma perspectiva maissocial da Trindade. Em termos histricos, Plantinga o formulada seguinte maneira: a mais recente discusso tende a se afastardas analogias de carter psicolgicas dominantes de Agostinho

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    para a analogia Agostiniana do amor refinadas pelo Ricardo deSo Vitor no sculo XII11. Dir ele que Agostinho visto comoa principal fonte do que poderia ser chamado de monopersonalismo trinitrio, enquanto que Ricardo de So Vitor noocidente e os Capadcios no oriente seriam considerados asgrandes fontes do trinitarismo social.Cousins12 defender, seguindo a Toms, a idia de quena trindade a incomunicabilidade decorrente da comunicaoda prpria natureza divina. Dir ele que existencialmenteRicardo se esfora por identificar a individualidade erelacionalidade manifesta na Trindade...e esta manifesta o idealhumano...mas o trgico estado do ser humano torna este idealdifcil de realizar. A tragdia a que ele se refere no relativoao pecado, mas a um dado da criao, qual seja, a de ser finito elimitado. Este limite do ser humano constitutivo daindividualidade humana e impede a sua dissoluo numarelao. Somente na natureza divina as pessoas poderiam sertotalmente relacionais e a sua individualidade se sustenta nestarelacionalidade.4. O mtodoA erudio crist busca o que foi chamado deintelligentia fidei, isto , compreender aquilo em que seacredita. A tradio dialtica em geral, e Ricardo em especial,buscam isto atravs da razo. O primeiro movimento nesteprocesso lingstico e ter como referncia a semntica docredo de Atansio13 e uma tentativa de compreenso racionaldos seus termos. Progressivamente ele vai corroborando osdicere por intelligere atravs da demonstrao de que tal dicere recte ou ao menos rectius. E isto s pode ser demonstradoatravs da investigao do significado de um determinadodictum.14 Esclarecendo palavras e conceitos do Credo, sevalendo dos usos que desta nomenclatura fazem Agostinho eBocio nos seus prprios tratados. Ricardo faz o movimento dalinguagem para a realidade atravs do sentido.No caso do conceito de persona, palavra chave no textode Atansio, ele partir da generalidade do termo na linguagem

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    coloquial e como um conceito do senso comum e irrefinando o conceito at convertlo numa formulaoontolgica.15 Ricardo de So Vitor buscar fazer uma anliselgicosemntica de persona a fim de desvendar a constituioontolgica do mesmo.5. A definio

    Encontramos em Ricardo duas verses para a suadefinio de pessoa, no caso de pessoa divina a primeira segueos moldes da formulao de Bocio, e a segunda mais extensa.A primeira a seguinte: persona divina sit divine natureincommunicabilis existentia16 uma incomunicvel existentiada natureza divina. Definio contundente sobre a qual no sedetm demasiado num primeiro momento. Na verso maisextensa e articulada, dois captulos mais tarde, diz: persona sitexistens per se solum juxta singularem quemdam retionalisexistentie modum17. Um ser existente por si mesmo comosingular modo de existncia racional.Ricardo dir que a definio de algo s perfeita seapenas esse algo delimitado pela definio e se esse algo completamente definido por ele. Mas a definio que sempregeral em algum grau, ao mesmo tempo deve ser exata em essageneralidade, isto , to geral quanto especfica. Este ser oargumento para criticar a definio de Bocio, onde a poucapreciso da sua definio torna ela demasiada genrica18 aoponto de se poder entender que Deus enquanto natureza substncia individual, mas isto no pode ser considerado pessoa.Por isso, a incomunicabilidade far a diferena na novadefinio.5. A pessoa para alm da categoria de substancia

    Ricardo dir que de modo geral tem sido dados trs tiposde acceptiones para persona: a) substncia, b) subsistncia ou

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    hipstase, e c) as propriedades pessoais19. Ele vai abandonar oconceito grego de hipstasis, termo este que So Jernimo teriaconsiderado suspeito de conter veneno20. Tambm tenta evitar aexpresso subsistentia por causa da sua complexidade e poucaclareza21. Prefere termos mais familiares como pessoa esubstancia aos quais lhes agregar novas conotaes atravs dasua anlise semntica a fim de lhe dar toda a consistncia quepretende. Tambm rejeita as definies de Bocio, como jvimos, e de Gilberto de Poitiers22 que distingue as propriedadespessoais dos nomes das prprias pessoas.A identificao da pessoa com o termo substncia comopretendia Bocio no daria conta da identidade pessoal que ,em ltima instancia, significada pelo nome que a pessoa tem.Por isso, pessoa no pode ser satisfatoriamente definida apenasusando o parmetro da substncia, mas significa algo mais, que a posse deste ser substancial atravs de uma propriedadeparticular23. pessoa corresponde, para alm de ser umarationalis substantia, uma outra qualificao, que pertenceexclusivamente a um, e diferentemente da racionalidade, nopode ser partilhada por uma srie de substncias, e por essarazo incomunicvel24. Pessoa significa a realidade maisdeterminada, distinta e concreta, unus aliquis solus, ad omnibusaliis singulari proprietate discretus25. Aqui o termo substnciaesta mais prximo do papel de espcie do que ao de substanciaentendido como particular, esta substancia.Dir Ricardo que pessoa designa no tanto aspropriedades particulares de algum como a identidade peculiardo seu nome.26 O autor tem o nome prprio como significando aparticularidade da pessoa para dar certa conotao autoreferencial ao termo e esclarece, se valendo de So Jernimo,que o contedo do nome prprio, isto , a particularidadeimplicitamente expressa no nome, deve ser entendida comoaquela que constitui a personalidade, isto , como o significatumde pessoa. A substncia entendida como aquilo que responde pergunta quid, o que? pessoa o que corresponde perguntaquis, quem?, que sempre um nome prprio. O primeiro semprecorresponder uma propriedade natural comum e segunda,

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    quis, uma propriedade singular (proprietas singularis)27 pelaqual algum separado de qualquer outro. Certamente pessoasignifica substncia racional, mas para cada pessoa distinta nose segue que exista um nmero distinto e correspondente desubstncias racionais, mas o significado prprio e direto depessoa o quis.6. Existncia

    H no termo existncia amplas conotaes que merecemateno. A raiz desta palavra o diferencial de Ricardo arespeito de todas as outras definies anteriores e ser a ponteentre individualidade e relao. Dir ele que pode ser usado pararesponder a duas perguntas bsicas sobre um ser: o seu o qu? Eo seu de onde?, ser o quale quid e o unde, ou a sua essncia ouobtinentia, ou a sua substantia ou origo.28 A existncia designaraquilo que tem uma certa substancialidade e que consiste emuma qualidade prpria ao mesmo tempo que dependente.Ao longo de todo o livro quarto, Ricardo se vale dotermo existentia como categoria distintiva, mas no capitulo 16que ele trabalha mais minuciosamente o conceito. Paradistinguir substncia de pessoa vai se valer da distino entreexistncia comum e existncia incomunicvel, aquela existnciaque comum a muitos e aquela que estritamenteincomunicvel. A primeira corresponde a aquilo que partilhadoentre vrios, enquanto a segunda, caracterizada pelo fato de queno pode ser atribuda a mais do que um individuo singular, constituda de uma proprietas incomunicvel. Aquilo que comum a substancia animal, racional, et alia, mas aquelaproprietas incomunicvel aquilo que s pode convir a uma spessoa (quae nonnisi uni alicui personae convenire potest)29. Aexistncia neste sentido no uma substncia pura esimplesmente, mas uma propriedade determinada que traz em sium princpio originrio. Como resultado, a pessoa constitudade uma propriedade pessoal original que simplesmente aquiloque faz algum ser uma pessoa. A propriedade pessoal aquilo

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    que faz algum ser absolutamente diferente (discretus) de todosos outros. Dir ele, que pretender que uma personalemproprietatem seja comunicvel no seu contedo o mesmo quepensar que uma pessoa possa ser duas e se duas no teriapropriedade particular e no se distinguiria das demais. Aconcluso evidente que a propriedade pessoal absolutamenteincomunicvel, quod proprietas personalis omnino sitincommunicabilis30 e consiste no que no comum e no podeser comum.Deve ser destacado que a personalem proprietatem no um acidente distintivo mas constitutivo da individualidade eda existncia incomunicvel uma propriedade no acidental, a danielidade de Daniel, aquilo que faz Daniel ser Daniel e que ele mesmo, no vem de fora31.Podemos dizer com Ricardo que persona aquilo noqual a natureza existe, como a pessoa humana, que a naturezahumana individual, existe em si mesma. Isto porque a naturezaindividual que existe idntica ao existente, isto , a pessoa, e por isso que se pode dizer que aquela substncia (ou natureza)existe por ou em si mesmo. A pergunta agora : como que istodifere da proposio de Bocio? Para Bocio, pessoa anatureza racional pessoa para Ricardo aquilo no qual anatureza racional existe. Fica claro que nesta definio pessoa esubstancia so conceitualmente distintas de tal maneira quepessoa, enquanto pessoa, se afasta da categoria de substncia ede uma definio fsica de pessoa, ao mesmo tempo queultrapassa a idia de sujeito de atributos ou conjunto depropriedades, apontando para a pessoa como a portadora deuma natureza e sujeito das suas operaes.O grande esforo de Ricardo o de tornar possvel quetal conceito se ajuste tanto a homens como pessoa de Cristoque de acordo com a revelao divina apesar de ter duasnaturezas. Faz assim possvel que a pessoa seja detentora denaturezas sem risco de perder a sua identidade como no caso decorresponder uma pessoa a cada natureza.

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    7. IncomunicabilidadeO carter de incomunicabilidade o determinante darealidade substancial de uma pessoa dir Ricardo.32 No sculoquarto, Baslio o Grande e outros padres Capadcios, j tinhaindicado a importncia da incomunicabilidade ao identificar aspropriedades constitutivas da pessoa no mesmo sentido,Ricardo tendo como ponto de partida a oposio entre anatureza comum e a particularidade do ser humano, tambmapontar para a incomunicabilidade da identidade pessoal, masele explicita e enfaticamente se move desta afirmao quela daincomunicabilidade da prpria existncia pessoal em si.Em termos formais, a pessoa no mais pensada comoalgo (aliquid), mas como algum (aliquis). A ateno no estacolocada sobre a qualidade especfica da racionalidade, que comum a toda pessoa, mas ao absolutamente nico de cadapessoa designada unicamente por um nome prprio. Atravs deuma criativa maneira de usar o termo existere, indicando aconstituio essencial de algo e a sua origem ou seu modo deexistir substancial, a pessoa capaz de ser definida de talmaneira que quebra com as limitaes de um ponto de vistaessencialista, isto , uma perspectiva que v a pessoa somentecomo um tipo de substncia. Existentia permite uma distinoentre pessoas (alius) independentemente de uma distino entrecoisas (aliud).Cada propriedade pessoal, que formal e constitutiva doser pessoa, absolutamente incomunicvel33 e o constitutivo dapessoa a sua existncia incomunicvel (incommunicabilisexistentia), e h tantas pessoas como incomunicveisexistncias. Existncia significa ao mesmo tempo que algo quetraz (de origem) uma certa propriedade. Se essa propriedade incomunicvel, logo a existncia incomunicvel, e precisamente este tipo de propriedade que pertence a o serpessoa, e que supera e vai alm ordinrio noo de substancia.Pessoa existncia incomunicvel. No caso da Trindadeh trs pessoas divinas em virtude do fato que h trs existnciasque partilham a mesma substancia, unidos no mesmo modus

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    essendi, mas diversos no modos existendi. O que conta para adiversidade de pessoas em Deus so as diferentes caractersticaspelas quais as pessoas possuem a mesma substncia. Estascaractersticas distintas constituem o modus obtinentiae queresponde pergunta sobre a origem. A pergunta sobre a origemno descarta o modus essendi, a natureza como uma qualidadeou diferena natural. A incomunicabilidade de algum mais doque uma propriedade de origem esta fundada ao mesmo tempono existere como no sistere, isto , na totalidade da suaexistentia.A primeira vista, entre humanos a pergunta pela origem respondida com algum acidente e por isso que se apela idia de substancia individual como se a individualidade daespcie humana fosse suficiente para ser considerado pessoa. Sepessoa no simplesmente substantia individua naturaerationalis, a formulao deve ser outra e a idia de existncia noseu duplo sentido nos salva.8. Concluso

    A guisa de concluso o artigo de Alvarez Turienzo34 nosajuda a entender a grande tenso em torno do conceito de pessoaque estava em jogo no sculo XII e que vai marcar os sculossubseqentes. Por um lado, a tradio Boeciana de forteinfluencia platnica, onde pessoa um qualificativo deindividuo. Um tipo especifico de individuo, uma naturezaespecialmente dotada pelo fato de ser portadora de razo. Umacoisa entre outras cuja concepo depende de uma cosmologia ese explica por categorias fsicas, e em este sentido dir o autor,naturalista.Ricardo, por sua vez, far uma crtica conceponaturalista e formula o problema de maneira independente doconceito de substncia, mudando, desta maneira, o centro daquesto. Nada h de comum entre pessoa e substncia dir ele,pois a substncia refere a uma propriedade comum enquanto quepessoa a algo que convm exclusivamente a um, ...Sub nomine

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    personae, similiter subintelligitur quardam proprietas quae nonconvenit nisi uni soli...Proprietas individualis, singularis,incommunicabilis35, chega ao individuo sem partir do conceitode substncia. Ele contrape substancia a existncia, ondesubstncia refere ao que comum e a pessoa ao incomunicvel.Enquanto a posio boeciana insiste na individualidade apartir de uma metafsica naturalista na oposio o uno e omltiplo, a proposio de Ricardo insiste na totalidade, emrelao com uma metafsica centrada na anttese plenitudeindigncia, naturezaesprito. Na perspectiva da filosofia danatureza, pessoa uma etapa terminal, resultado se tende adefinir a pessoa em termos de fsica, uma coisa entre outras,inscrita entre uma causalidade e um resultado, no processo danecessidade natural. Na perspectiva da filosofia do esprito apessoa um dado inicial, e compreendida em termos ticos eno fsicos faz parte do mundo do esprito entre uma vocao euma responsabilidade. esta a perspectiva mstica que imprimeo texto de Ricardo.Se a pessoa como individualidade depende de umaconfigurao abstrata, a base de universais, o problema encontrar um princpio de individuao e este ser buscado nosgneros e nas espcies, unidades formais que se realizam emmltiplos sujeitos singulares. Na outra perspectiva, a pessoa entendida como totalidade e se sustenta numa essnciaoriginria onde a individuao um dado o problema determinar aquilo que integra e completa essa realidade.

    9. RefernciasAGOSTINHO DE HIPONA. A Trindade. Trad. do original latino e introd. deAugustinho Belmonte. So Paulo: Paulus, 1994. (Coleo Patrstica7).ALVAREZ TURIENZO, Saturnino. Aspectos del problema de la persona enel siglo XII. In Die metaphysik im mittelater. Miscellanea Medievalia.Berlin: Walter de Gruyter & co. 1963. 795p. (180183).AUGUSTINUS HIPPONENSIS. De trinitate. CPL 0329. SL 5050A (Ed.W.J. Mountain, 1968)BOECIO, S. Sobre la persona y las dos naturalezas. In: Fernndez,

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    Clemente 1979.BOK, Nico den, Richard de SaintVictor et la qute de lindividualitessentielle : La sagesse de la danilit, in : BrigitteMirjam BedosRezak and Dominique IognaPrat, LIndividu au Moyen Age.Individuation et individualization avant la modernit, (Paris :Aubier,2005), 12344.COUSSINS, E. A Theology of Interpersonal Relations, in Thought 45 (1970)p. 5685.____________ The notion of Person in the De Trinitate of Richard ofSaint Victor. Dissertao nao publicada. Fordham University 1966.DEN BOK, Nico. Communicating the most high. A systematic Study ofperson and trinity in the theology of Richard of St. Victor( 1173)Paris: Brepols, 1996. 532p.THIER, Albert Marie. Le De trinitate de Richard de SaintVictor. Par AM. thier, O.P. Paris : J. Vrin, 1939 124p.GILBERT DE POITIERS. In De Trinitate. Ed. N. M. Hring in Thecommentaries on Boethius by Gilbert of Poitiers, Pontifical Instituteof Mediaeval Studies, Toronto, 1966. ( PL, 64)MITALAIT. K. Entre Persona et Natura : La notion de personne durant leHaut Moyen ge, Rev. Sc. Ph. Th., 89 (2005), p. 459484PLANTINGA, C. Social Trinity and Triteism. In R. J. FEENSTRA & C.PLANTINGA (eds) Trinity, Incarnation and Atonement. Philosophicaland Theological Essays. Notre Dame, 1989. p. 2148.RICHARD de SAINTVICTOR. La Trinit. Edio bilingue LatimFrancs.Introduo, traduo e notas de Gaston Salet SJ. Paris : Les editionsdu CERF, 1959. 523 p.

    10. Notas1 Boethius, Contra Eut I, 2558. In MICAELLI, Claudio. Studi sui trattati

    teologici di Boezio. Napoli : M. DAuria, 1988. 129p.2 MILANO, A. Persona in teologia, Edizioni Dehoniane, Naples 1984, p.

    335, 358.3 Hoc nterim constet quod inter naturam personamque deffirre

    praediximus, quoniam natura est cuiuslibet substantiae specificataproprietas, persona vero rationabilis naturae individua substantiaBoethius, Contra Eut. IV, 59 p. 92.

    4 Boethius, Contra Eut. II, 1449. p. 8284.5 Aristteles. Categorias. Introduo, traduo e notas de Maria Jos

    Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. 113 p.

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    6 Richard de SaintVictor. Douze Patriarches ou Beniamin Minor. EdBilinge FrancsLatim, Edio crtica e traduo de Jean Chatillon eMonique DuchetSuchaux. Paris: Ls Editions Du CERF, 1997. 374 p.Cf. PL 196, 194, PetitMontrouge: Migne, 1833.

    7 Cf. Chapelle, A. "Les Douze Patriarches, Ou, Benjamin Minor." NouvelleRevue Theologique, 120: 668669 (1997): 668669.

    8 Richard de SaintVictor. De gratia contemplationis ou Beniamin Maior. PL196, 63192, PetitMontrouge : Migne, 1833.

    9 Cf. Andres, Friedrich, Privatdozent Dr, Bonn. "Die Stufen DerContemplatio in Bonaventuras Itinerarium Mentis in Deum Und ImBenjamin Maior Des Richard Von St. Viktor." Franziskanische Studien, 8(1921): 189.

    10 RICHARD de SAINTVICTOR. La Trinit. Edio bilingue LatimFrancs. Introduo, traduo e notas de Gaston Salet SJ. Paris : Leseditions du CERF, 1959. 523 p. Cf. THIER, Albert Marie. Le Detrinitate de Richard de SaintVictor. Par AM. thier, O.P. Paris : J. Vrin,1939 124p.

    11 PLANTINGA, C. Social Trinity and Triteism. In R. J. FEENSTRA & C.PLANTINGA (eds) Trinity, Incarnation and Atonement. Philosophicaland Theological Essays. Notre Dame, 1989. p. 2148.

    12 COUSINS, E. The notion of Person in the De Trinitate of Richard ofSaint Victor. Dissertao nao publicada. Fordham University 1966.

    13 O Credo de Atansio, subscrito pelos trs principais ramos da Igreja Crist(Catlicos Romanos, Catlicos Ortodoxos e Protestantes), geralmenteatribudo a Atansio, Bispo de Alexandria (sculo IV), mas estudiosos doassunto conferem a ele data posterior (sculo V). O credo de Atansio,com quarenta artigos, um tanto longo para um credo, mas consideradoum majestoso e nico monumento da f imutvel de toda a igreja quantoaos grandes mistrios da divindade, da Trindade de pessoas em um sDeus e da dualidade de naturezas de um nico Cristo.

    14 De Trinitate I, 21 p. 98.15 De Trinitate IV, 6. p. 243.16 De Trinitate IV 22, p. 282.

  • O conceito de pessoa em Ricardo de So Vitor 26

    Problemata Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011). pp. 1126.ISSN 15169219

    17 De Trinitate IV 24, p. 284.18 De Trinitate IV 21, p. 278.19 De Trinitate IV, 3 p. 235. Cf. DEN BOK, Nico. (1996) p. 209.20 De Trinitate IV, 4 p. 237. Cf. St Jerome, Ad Damascum epist. 15:

    Patrologia Latina 22, 356. J.P. Migne, Paris.21 Cf. HIPP, Stephen A. Person in Christian Tradition and the conception

    of Saint Albert the Great. Mnster: AschendorffscheVerlagsbuchhandlung GmbH & Co., 2001. 565 p.

    22 Gilbert de Poitiers. In De Trinitate. Ed. N. M. Hring in Thecommentaries on Boethius by Gilbert of Poitiers, Pontifical Institute ofMediaeval Studies, Toronto, 1966. ( PL, 64)

    23 Significat autem habentem substantiale esse ex aliqua singulariproprietate. DT IV, 19 p. 272.

    24 De Trinitate IV, c. 6. Alias ergo subintelligitur proprietas generalis, aliasproprietas specialis ad nomen autem personae, proprietas individualis,singularis, incommunicavilis. P. 242.

    25 De Trinitate, IV, c. 7 p. 244.26 De Trinitate IV c. 3 Hieronymus in his verbis non decit personas esse

    proprietates personarum sed proprietates nominum, hoc est quod propriesinificant nomina personarum. P 234.

    27 De Trinitate IV, c. 7. p. 24428 De Trinitate IV, 1113. p. 250256.29 De Trinitate IV c. 16 p. 262.30 De Trinitate IV c. 17 p. 266.31 De Trinitate II, cap. 12 p. 13032 De Trinitate II, cap. 12 p. 130.33 De Trinitate IV, cap. 18 p. 267. omnis proprietas personalis omnino est

    incommunicabilis. Cf. cap. 22. p. 282.34 Alvarez Turienzo (1963).35 De Trinitate IV, cap. VI, p. 243.