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CONCURSO DE DRAMATURGIA DE CURTA DURAÇÃO PRÊMIO QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL Vencedores 2006, 2007 e 2008

CONCURSO DE DRAMATURGIA DE CURTA DURAÇÃO · cheios das imagens das minhas misérias, e das chamas ... Quarta-feira de cinzas Walner Danziger Personagens: Zileide, Múcio, Aragão

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CONCURSO DE DRAMATURGIA DE CURTA DURAÇÃO

PRÊMIO QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

Vencedores 2006, 2007 e 2008

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Apresentação

A Liga Solidária, por meio do Programa Qualificação Profissional, realizou três edições do Concurso de Dramaturgia de Curta Duração - Prêmio Qualificação Profissional, com o objetivo de incentivar a literatura dramática e o surgimento de novos talentos.

Em 2006, por idealização do professor de teatro Edilson Castanheira, foi proposta a realização do 1º Concurso. Nos três anos dessa realização, contamos com a participação de pessoas residentes no estado de São Paulo, maiores de 15 anos.

Esta publicação traz uma compilação das nove obras vencedoras em primeiro, segundo e terceiro lugar, nos anos de 2006, 2007 e 2008.

Os textos inscritos foram apreciados pela Comissão Julgadora composta pelo professor de teatro e mais quatro profissionais indicados pelo grupo de coordenadores dos programas da Liga Solidária.

A avaliação dos textos foi baseada segundo os critérios de: originalidade e significância temática, arranjo de formas literárias (lírico, épico e dramático), combinação entre enunciado temático e formal, gramática e ortografia, estrutura do texto, viabilidade de encenação e consonância com nossos valores.

Para nós, da Liga Solidária, é de grande importância contribuir e apoiar programas que proporcionam desenvolvimento cultural. Somos agradecidos pelo apoio do FUMCAD - Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, do Instituto Votorantim e do Instituto Hedgind Griffo e ao professor Edílson Castanheira pelo importante trabalho que coordenou.

Xinha d’Orey Espírito SantoPresidente

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“Tinha também, ao mesmo tempo, uma paixão violenta pelos espetáculos do Teatro, que estavam

cheios das imagens das minhas misérias, e das chamas amorosas que alimentavam o fogo que me devorava”

Santo Agostinho (354-430) “Confissões”

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SUMÁRIO

2006

O silêncio antes do tiroLuiz Felipe Freitas Peres 12

Quarta-feira de cinzasWalner Danziger 21

Um instantePaulo Murilo Abreu Fonseca 33

2007

O Caso Max ou Nunca brinque com a morteMarcos Nogueira Gomes 56

Questão de minutosCarlos Renato Russo Junque 66

Tempo perdidoPaulo Murilo Abreu Fonseca 81

2008

360 do avessoEduardo Brito de Sousa 96

Espelhos paralelosPedro Simões Lopes 102

A doaçãoRogério Guarapiran 107

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1º Lugar

O silêncio antes do tiroLuiz Felipe Freitas Peres

2º Lugar

Quarta-feira de cinzasWalner Danziger

3º Lugar

Um instantePaulo Murilo Abreu Fonseca

2006

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O silêncio antes do tiroLuiz Felipe Freitas Peres

Personagens:

UMHomem de 40 anos. Solitário e possui fobia de silêncio. Despenteado, usa uma regata branca suja, bermuda curta azul e meias pretas.

DOISHomem de 27 anos. Bonito e solteiro. Assassina mulher e se vê sem esperanças de fugir, preso pelo sentimento de culpa. Usa terno verde, camisa branca e sapatos pretos. Segura uma arma e tem as mãos manchadas de sangue.

TRÊSHomem de 32 anos. Amigo de DOIS. Alcoólatra e gozador. Gosta de gozar a vida, mas não tem jeito com mulheres. Usa camisa amarela, calça jeans preta e tênis. Está sempre com uma garrafa ou um copo na mão.

QUATROMulher de 26 anos. Conquistadora e moderna. Vive na alta sociedade e não aceita não como resposta. Usa vestido vermelho e sapato de salto alto.

Cena 1Quatro focos de luz revelam quatro cadeiras. Todos os personagens entram e ficam olhando para o público como se estivessem sendo interrogados. UM começa a falar.

UM – Já falei para você que eu odeio o silêncio?

DOIS – Logo, logo começa a bagunça toda...

TRÊS – Garçom! O senhor jura que eu disse que aquele era o último?

QUATRO – Odeio este lugar. Tenho nojo de tudo isso. Nunca mais volto aqui.

UM – Silêncio idiota...

DOIS – Como eu queria fumar um cigarro agora...

TRÊS – Garçom! Ei! Traz um trago desse aqui, igual ao meu, para o meu amigo aqui.

QUATRO – Gosto de lugares chiques, pessoas finas e homens elegantes. (Apontando para a platéia.) Tá vendo aqueles dois ali?

UM – Me mudo para um apartamento no meio da cidade, em cima de um bar e nada... Nem um ruído!

DOIS – Agora que a merda está feita, o que se pode fazer?

TRÊS – Onde? Aquelas quatro? Ah! São duas é? Hum... Acho que são bonitas sim, viu.

QUATRO – Isso! Aquele da direta, ele não tira os olhos de mim.

UM – As paredes do bar devem ser acústicas. Quem foi o idiota que inventou isso?

DOIS – Não sei o que aconteceu... Simplesmente não sei...

TRÊS – Amigo, já te disse que te amo? Te amo, sabia? Você é um cara legal.

O silêncio antes do tiro | Luiz Felipe Freitas Peres

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QUATRO – Acho que vou lá falar com ele! (QUATRO se levanta da cadeira e acende um cigarro.)

UM – Cadê os vizinhos chatos? Cadê as buzinas dos carros? E por que as crianças não choram?

DOIS – (Levanta-se.) E agora? Eu fujo? Corro? Pulo a janela? Não existe nenhuma saída. (DOIS se senta no lugar de QUATRO.)

TRÊS – Quer uma cerveja? Um uísque? Uma vodka? Que foi? Não gostou do que eu disse? (QUATRO se senta no lugar de DOIS.)

QUATRO – Oi. Vem sempre aqui? Não. Como você se chama?

UM – Acho que todos eles têm medo da noite. Isso! Medo da noite!

DOIS – Ela era tão bela... E essa noite que não acaba nunca...

TRÊS – A noite é uma criança! Não é? (Vira o rosto.) Eu? Me chamo...

QUATRO – Não você, idiota! Ele... Me diga.

UM – E eu tenho medo do silêncio... Shiii... Acho que escutei algo.

DOIS – Eu não posso ser preso. (Gritando.) Eu não posso ser preso!

TRÊS – Eita mulher doida de pedra. Eu vou é conversar com outra pessoa. (TRÊS levanta-se.)

QUATRO – Hum... Lindo nome. Quer dançar?

UM – Acho que são passos!

DOIS – Acho que bebi demais...

TRÊS – Acho que eu estou muito chapado de bêbado alcoólatra.

QUATRO – Não? Hum. Entendi. Acho você lindo sabia?

UM – Shiiii! (Levanta-se e se senta no lugar de TRÊS.) Cala a boca! Deixa eu escutar.

DOIS – São passos, gritos, gritos, portas batendo. Deve ser a polícia. Só pode ser a polícia.

TRÊS – (Senta-se no lugar de UM.) Oi gatinha, você que é amiga daquela gostosa ali? É?

QUATRO – Ah é? Você gostou das minhas pernas?

UM – Será que esse é o máximo de barulho que essa gente sabe fazer?

DOIS –Não. É só o rebuliço causado pelo tiro.

TRÊS – Eita mulher brava! Poxa... Só fiz uma pergunta, oras...

QUATRO – E os meus seios? Você gostou deles também?

UM – Barulho vagabundo... Onde já se viu? Precisar de silêncio para poder ouvir algo que quebre o próprio silêncio. Não faz sentido.

DOIS – É... Na vida real, a polícia demora um tempo infinitamente maior do que nos filmes. Poderia estar num filme agora. Estaria na prisão. Apagariam as luzes e ouviria a voz do diretor. Corta!

TRÊS – É por isso que eu digo! Se estiver magoado? Afogue as mágoas! (Dá um gole e enche outro copo.) Se estiver furioso? Afogue a raiva.

O silêncio antes do tiro | Luiz Felipe Freitas Peres O silêncio antes do tiro | Luiz Felipe Freitas Peres

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(Dá outro gole e enche outro copo.) Se estiver feliz? Bebe mais pra comemorar! Saúde! (Bebe e saúda.)

QUATRO – Feche os olhos. (O palco fica mais escuro.) Imagine um quarto, uma cama... Está imaginando? Bom, muito bom. Agora imagina o que a minha boca pode fazer num ambiente desse...

UM, DOIS, TRÊS e QUATRO – (Falam ao mesmo tempo.) Nada é por acaso, sabia? Nada! Tudo e nada sempre levam para o mesmo território comum e o tempo as corrói. Pelo menos eu acho... Pelo menos foi o que me disseram. (Pausa.) Ou não disseram? Há! Há! Há! (Apagam-se as luzes e eles continuam rindo.)

Cena 2 As quatro cadeiras estão em círculo. Todos os personagens estão sentados se entre olhando.

UM – E você? O que acha? Do quê? O silêncio não te incomoda?

DOIS – Não... E esse sangue no chão, nas minhas roupas, nas minhas mãos...

TRÊS – Pensar na ressaca antes de ela chegar é a pior coisa que se pode fazer. Ai! Minha cabeça...

QUATRO – Pode passar a mão...

UM – Será que só eu sou louco?

DOIS – Nunca vai sair. (Esfregando as mãos.) Nunca!

TRÊS – Ai! Minha cabeça dói! (Agacha com as mãos na cabeça.)QUATRO – Isso... (Os quatro personagens viram suas cadeiras do contrário e ficam um de costas para o outro.)

UM, DOIS, TRÊS e QUATRO – (Falam ao mesmo tempo.) Que tal um pouco de ação? Um pouco... Só um pouquinho... Não? Por que não?

UM – Shiiiiiii...

DOIS – Manchado!

TRÊS – Girando...

QUATRO – Aqui! (Passa a mão na coxa.)

UM – Shiiiiiii...

DOIS – Sujo!

TRÊS – Rodando... (Com as mãos na cabeça.)

QUATRO – Hum... (Sensual.)

UM – Shiiiiii...

DOIS – Flores vermelhas.

TRÊS – Vertigem e abismo.

QUATRO – Pecado?

UM – Silêncio...

DOIS – Velas acesas.

TRÊS – Vou ao banheiro. (Levantando-se.)

QUATRO – No seu apartamento? (Levantando-se também.)

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UM – Shiiiii... Esse tum, tum, tum. Será meu coração? (Levanta-se.)

DOIS – Chuva. Poderia chover agora... (Levanta-se também.)

TRÊS – Eita diacho! Não consigo acertar a privada não...

QUATRO – Você mora em cima do bar? Lindo apartamento...

UM – Ou é do vizinho?

DOIS – E a água poderia levar tudo! O corpo, o sangue, eu... E todo o lixo desse mundo.

TRÊS – Ei! Você! Acha que vai chover hoje? Eu acho que não.

QUATRO – Vem... Estou toda molhadinha.

UM – É o vizinho... Certeza.

DOIS – E essa arma?

TRÊS – Você viu? Quem? O meu amigo, oras.

QUATRO – Sim!

UM – Gritos! São gritos!

DOIS – E ela?

TRÊS – Cadê ele?QUATRO – Mais! (Gritando. Ouve-se o estampido de um tiro. Apagam-se as luzes.)

UM – Um tiro...

DOIS – E eu? E eu?

Cena 3Ouve-se portas fechando e abrindo, murmúrios, cachorros latindo, crianças chorando e sirenes da polícia. As quatro cadeiras não estão no palco. Todos os personagens estão de pé. O cenário possui uma janela atrás de UM, uma porta atrás de DOIS e uma mesa alta para TRÊS. Um estroboscópio vermelho e um azul piscam ao fundo como se tivessem muitos carros de polícia.

UM – Há! Há! Há! Barulho! Finalmente! Finalmente!

DOIS – Meu deus! A polícia chegou.

TRÊS – Meu senhor. Eu não bebi tudo isso não.

UM – Portas fechando e abrindo, murmúrios desesperados, cachorros latindo, crianças chorando e chamando seus pais! (Gritando.) Tudo! O mundo está vivo! Vivo!

DOIS – Ela está gelada e morta...

TRÊS – Não, eu não vou pagar isso... Vai chamar a polícia?

UM – Mais! Eu quero mais!

DOIS – (É carregado por dois homens.) Não! Não fui eu! Não fui eu!

TRÊS – (Abrindo a carteira.) Já que o senhor insiste... UM – São sirenes! Sirenes e buzinas também!

DOIS – Não! Não! Nãoooo!

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TRÊS – Não volto aqui nunca mais!

UM – O caos!...Que delícia!

TRÊS – Nossa, que bagunça aqui fora... (Apagam-se as luzes. A música e os ruídos de fundo diminuem. Dois focos de luz.)UM – Não para! Cadê o barulho? Cadê? Será que eu preciso matar alguém para ter um pouco de barulho? Heim? Será que eu preciso matar alguém?

TRÊS – Cala a boca, seu bêbado! (Apagam-se as luzes. Ouve-se um barulho de tiro.)

Quarta-feira de cinzasWalner Danziger

Personagens: Zileide, Múcio, Aragão

Uma birosca. Fim da madrugada, início da manhã. A cidade ferveu todos seus dias de Carnaval. Algumas almas festivas flanam pelas esquinas. Na birosca, chão sujo, restos de fantasias, serpentina e confetes. Pelo balcão e nas mesas, copos, pratos e garrafas. Numa das mesas, um sujeito dorme. Vê- se que é um brutamontes, sujão, bebão. Zileide, cumpre o ritual mecânico de final de expediente. Levanta cadeiras e recolhe copos. Múcio entra vestido de mulher. Meia arrastão, sandália, sutiã sobre o peito cabeludo, bolsinha à tiracolo, pulseiras e anéis. Uma improvisada peruca e máscara feminina. Está bêbado e agitado.

Zileide – (Virando-se e dando de cara com Múcio.) Ai! Mas o que é isso? Puta que pariu! Que susto! Não faz assim comigo! De onde foi que tu saiu?

Múcio– (Desesperado.) Onde fica...?

Zileide – O quê, criatura?

Múcio – O banheiro... Onde fica o banheiro?

Zileide – Quebrado.

Múcio – Não brinca.

Zileide – Pode crê.

O silêncio antes do tiro | Luiz Felipe Freitas Peres

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Múcio – Moça, da Rio Branco até aqui tá tudo fechado... Tu não sabe, mas...Eu tô por um triz... Sabe qual é? Nos 45 do segundo tempo!

Zileide – Meu querido, o que eu posso fazer?

Múcio – Tu, eu não sei, mas eu sei bem o que eu posso fazer nas calças se não usar o seu banheiro... Agora!

Zileide – Quebrado.

Múcio – Eu não me importo.

Zileide – Claro que não. Até porque, quem limpa depois sou eu. Vai ali na praça e mija lá mesmo.

Múcio – Com todo respeito, se meu problema fosse um xixizinho, eu não tava assim, nesta agonia.

Zileide – Agora é que não usa mesmo o toalete.

Múcio – Pelo amor de Deus! Eu pago! Eu pago!

Zileide – Hum! Comecei a entender o teu idioma...

Múcio – Ótimo!

Zileide – Na verdade o toalete não tá quebrado.

Múcio – Eu desconfiava. Me dá logo a chave. Por tudo quanto é mais sagrado!

Zileide – Eu pus a plaquinha pra espantar vagabundo que pensa que aqui é parada de beira de estrada. Desce, faz lá suas necessidades e continua a viagem.

Múcio – Quanto é ?

Zileide – Depende...

Múcio – De que, meu São Jorge Guerreiro?

Zileide – Pode ser qualquer valor. É só tu consumir alguma coisa.

Múcio – Qualquer coisa?

Zileide – Gastou, usou o toalete.

Múcio – (Jogando sobre o balcão algumas moedas que retirou da bolsinha.) Então está aqui. Me vê aí um punhado de balinhas de hortelã.

Zileide – Só isso?

Múcio – Não foi tu mesma que disse que podia ser qualquer coisa?

Zileide – Foi, mas... Balinhas de hortelã?

Múcio – E que importância isso tem? Problema meu. Eu quero balinhas de hortelã e pronto!

Zileide – Fazer o que com balinhas de hortelã a uma hora dessas?

Múcio – Moça, não me faz perder os modos contigo. Quer mesmo saber o que é que eu vou fazer com as malditas balinhas? Escuta: É Carnaval. Eu tomei uns aperitivos a mais. Vou chupar as balinhas pra aliviar com a patroa quando chegar em casa. Tá bem assim?

Zileide – Coitadinha da tua esposa.

Quarta-feira de cinzas | Walner DanzigerQuarta-feira de cinzas | Walner Danziger

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Múcio – O que é que a minha esposa tem a ver com isso?

Zileide – Um marido... Biriteiro e cagalhão!

Múcio – Coitada de tu se eu liberar isso que tá dentro de mim louco pra sair bem aqui, no meio do teu salão.

Zileide – Então escolhe logo outra coisa. Tem cigarros...

Múcio – Eu não fumo.

Zileide – Tremoço, bananada, batatinha frita, ovo cozido. Cerveja, encerramos.

Múcio – Vamos fazer o seguinte: Põe aí um traçado. Eu uso o banheiro. Quando acabar o serviço, bebo o dito cujo e vou embora.

Zileide – Feito. (Zileide dá a volta pelo balcão e começa calmamente a preparar a bebida.)

Múcio – Moça, tu se incomoda de me dar a chave primeiro?

Zileide – Que cabeça, a minha... (Zileide entrega a chave a Múcio, que corre pro banheiro. Pausa. Múcio volta em desespero.)

Zileide – Tu é rápido, hein?

Múcio – Um problema. O zíper do vestido. Aqui... Eu não consigo... Sozinho. Tu se importa?

Zileide – (Localizando o zíper.) Parece que emperrou. Comeu o tecido...

Múcio – Eu vou desmaiar...

Zileide – Brincadeirinha. Pronto. (O zíper é aberto e Múcio sai em disparada.)

Múcio – (Do banheiro.) Aqui não tem papel.

Zileide – Não diga!?

Múcio – Tu não tem nada por aí? Jornal? Revista antiga?

Zileide – Não.

Múcio – Panfleto de pizzaria? Qualquer coisa?

Zileide – (Avista uma pequena pilha de jornais, se aproxima, mas em seguida a esconde.) Vou ficar devendo... (Longa pausa. Múcio sai do banheiro. Sua expressão é de total alívio. Os dois se olham.)

Múcio – A gente sempre dá um jeitinho nas coisas... Carteira de pobre nunca tem dinheiro, mas comprovantes de depósitos, folheto de autoescola, volante da Mega sena... Chato foi ter que usar meu ingresso do último jogo do Botafogo. O “Fogão” atropelou o Vasco. Ia dar pro meu pivete quando ele crescesse. Pena... (Múcio vai até o balcão para pegar a bebida.)

Zileide – O senhor lavou as mãos, pelo menos?

Múcio – Não pude. Tua pia não tem torneira. (Pausa) Moça, preciso te dizer um troço... Eu tentei puxar a descarga...

Zileide – E qual é o problema? Faltou água?

Múcio – Tinha água sim, moça. (Pausa.) Até demais. Tu entende? Não...Não... Não desceu.

Quarta-feira de cinzas | Walner DanzigerQuarta-feira de cinzas | Walner Danziger

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Zileide – Deus do céu!

Múcio – Transbordou um pouquinho...

Zileide – O que é que há? Tô há seis noites sem pregar os olhos, trabalhei como doida, aturei cantada de pinguço... Eu não mereço... (Zileide começa a chorar.)

Múcio – O que é isso, moça... Não faz assim...

Zileide – Porra, o Carnaval acabou. Graça a Deus. Era fechar o estabelecimento e ir pra casa. Tu precisava aparecer por aqui? Precisava?

Múcio – Se não tivesse me dado aquele piriri, os nossos destinos jamais teriam se cruzado. Sabe o que acontece? Não posso com acarajé. Fico doido. Um negócio. Me faz um mal danado. Acho que é o dendê. Eu sei disso mas não posso controlar... (Zileide para instantaneamente de chorar. Olha fixamente pra Múcio.)

Múcio – Algum problema?

Zileide – Tu poderia me fazer a fineza de tirar essa máscara?

Múcio – O quê?

Zileide – A máscara. (Incisiva.) Tira!

Múcio – A troco de quê? Tô bem com ela.

Zileide – Não vou pedir de novo. Tira logo essa maldita máscara antes que eu faça um escândalo. (O homem atirado na mesa se mexe. Rosna qualquer coisa e volta a dormir.)

Múcio – Tu está muito nervosa. Melhor eu ir andando...

Zileide – (Pegando uma enorme faca de cozinha e apontando pra Múcio.) Tira essa máscara. Agora! (Pausa. Lentamente, Múcio tira a máscara.)

Múcio – (Olhando para a mulher.) Leidinha?

Zileide – Então é tu mesmo né, Múcio?

Múcio – O que é que tu tá fazendo nesta birosca a uma hora dessas?

Zileide – O que tu acha?

Múcio – Leidinha, francamente... Isso aqui não é lugar pra ti.

Zileide – Que preocupação é essa? Tu é meu macho por acaso?

Múcio – Não falei por mal. Bom, eu preciso ir. Deixei... A mulher sozinha em casa... (Provocativo) ...com o “bacuri”.

Zileide – Novidade. Então tu arrumou outra trouxa que caiu na tua conversa mole, ”Lábios de Mel”? Veio equipada com filho e tudo ou foi tu que providenciou?

Múcio – A obra é minha, sim senhora. Com direitos autorais registrados e tudo. Um poeta jamais fica só, minha flor. Eu tava bem como tava. Feliz da vida mesmo. Diz pra mim, Leidinha, fui eu que te mandei embora?

Zileide – Tu é um vagabundo que não quer nada com as responsabilidades da vida.

Múcio – Alguma vez tu passou fome ao meu lado, mulher?

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Zileide – Claro que não. A “Amélia” aqui pegava pesado na Casa de Sucos. Se fosse depender das tuas cantorias...

Múcio – Composições! Composições! Pelo visto tu continua a mesma. Indiferente e desrespeitosa com nossa arte maior. O berço genuíno da cultura popular brasileira. Lembra? Tua ignorância? Tu pensava que o Paulinho da Viola era cantor sertanejo. (Observando.) Leidinha, tu engordou, nega.

Zileide – E tu continua o mesmo cachaceiro de sempre. Bebão! Nem me reconheceu.

Múcio – Pudera. Tu ficou assim... Mais forte.

Zileide – Tu eu reconheço até de máscara. Pelo bafo!

Múcio – Agora a vida é outra. Não é por nada, mas os caminhos abriram muito depois que tu partiu. Não tá reparando nada? Espia! Dei um trato no “sorriso negro”. Lembra das falhas na parte de cima? Arranquei tudo e sapequei uma “Rio-Niterói”. De ponta a ponta. Um espetáculo!

Zileide – Deve ter arrumado alguém que te botou na linha. Parou com aquela besteira de música?

Múcio – Composições, minha flor! (Irônico, olhando ao redor.) Pelo visto, tu subiu na vida também.

Zileide – Tu por acaso não tá pensando que... (Ri.) Aqui é um bico. Durou um Carnaval. A birosca é do tio de um colega de Faculdade...

Múcio – Entraste na Faculdade, Leidinha?

Zileide – Enfermagem. Durante o dia continuo na Casa de Sucos. De noite, aula. Segundo ano.

Múcio – Poxa, Leidinha... meus pára-choques! Eu tinha prometido. Se pusesse aquele samba na avenida, te pagava os estudos... faltou tão pouco...

Zileide – Teu samba tirou o sétimo lugar, Múcio!

Múcio – (Alterado.) Tudo armação. Meu samba era o melhor. Disparado. Tu sabe bem disso.

Zileide – O que eu sei é que daqui dois anos largo a Casa de Sucos. Já tenho quem me encaixe num hospital em Vila Isabel.

Múcio – Bom pra tu. Eu também sigo a minha sina. Não desisto não. Fiz chegar uma composição nas mãos do Almir Guineto. Grande Almir! Nos finais de semana continuo tocando no “Cotovelos de Balcão”.

Zileide – Espelunca.

Múcio – Implicância tua, minha flor. A nata do samba carioca baixa lá. Uma hora o sol há de brilhar.

Zileide – Tu continua o mesmo sonhador de sempre. Por aí, sem eira nem beira... E quem diria... Olha pra você... Francamente hein, Múcio?

Múcio – É Carnaval. Carnaval é pra isso mesmo. Sou feliz assim, Leidinha. Livre. Amante do sereno... Gosto das ruas, do orvalho no meu chapéu, da boemia. (Pausa.) Mesmo assim, quando tu foi morar comigo, eu pensei: “Enfim é chegada a primavera! Vou sonhar colorido!” Eu faria todas as minhas canções pra ti. Tu plantaria um lindo jardim na frente da nossa palhoça e quando nascesse a primeira rosa eu faria um samba pra ela. Eu seria o teu Cartola e tu, a minha Zica.

Zileide – Múcio... Tu foi a “zica” na minha vida. Tremendo atraso. Quando fui embora, tudo melhorou. Passei no vestibular, ajudo

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minha velha nas prestações da casa. Tenho até DVD!

Múcio – Felicidade não se compra na loja, minha flor. Se assim fosse, não tinha tanto magnata se atirando pela janela lá na zona sul. Eu te compreendo. Fui somente um rio que passou na tua vida, minha “lady”.

Zileide – Pois é. (O brutamontes rosna novamente na mesa.)

Múcio – Quem é?

Zileide – Eu é que sei?

Múcio – Quer que eu ponha pra fora?

Zileide – Deixa. O dono já vai chegar pra fechar. Foi à Cinelândia e volta logo.

Múcio – Eu preciso ir.

Zileide – Melhor. Tua mulher pode estar preocupada. (Pausa.)

Múcio – Não tem mulher não, Leidinha. Nem filho, nem nada. Somente eu e Deus.

Zileide – Bem... Talvez... Fica mais um pouco. Eu abro uma cerveja e...

Múcio – Fica pra outro dia. O Carnaval acabou e amanhã eu pulo cedo da cama.

Zileide – Até nisso tu é torto. Boêmio que acorda cedo.

Múcio – Descolei emprego num estacionamento. Enquanto o sol não brilha, eu vou me defendendo.

Zileide – Assim é que é.

Múcio – Se tiver disposição, aparece qualquer sábado desses lá no “Cotovelos”. Eu canto o teu samba.

Zileide – Quem sabe.

Múcio – Então...

Zileide – Até. (Múcio apanha sua máscara e vai embora. Zileide permanece imóvel por algum tempo. Depois vai até a mesa onde o sujeito dorme e sacode-o.)

Zileide – Ei! Acorda gambá! Anda!

Aragão – Hein?... Ah... Porra! O que foi, Zileide! Qual é a tua?

Zileide – Preciso fechar. (Aragão levanta e caminha em direção ao banheiro.)

Zileide – Onde tu vai?

Aragão – (Coçando a barriga peluda.) Onde tu acha? Soltar um barro. Botar os morenos pra nadar! (Pausa.)

Aragão – (De dentro do banheiro.) Porra, Zileide! Que imundície é essa? Foi tu que cagou aqui? Como tu é porca hein, Zileide.

Zileide – (Mansa, junto à porta.) Aragão...

Aragão – Fala, porra!

Zileide – Separei uma porção daquela moela que tu gosta. Deixei no forninho.

Quarta-feira de cinzas | Walner DanzigerQuarta-feira de cinzas | Walner Danziger

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Aragão – E eu lá quero saber de moela uma hora dessas? Aqui não tem papel, Zileide! (Zileide apanha um rolo de papel higiênico branquinho e entrega a Aragão pelo vão da porta.)

Zileide – Aragão, tu por acaso pensou naquele cursinho que eu te falei? Lembra? No final do ano tem vestibular e... O tempo tá passando. Daqui a pouco fico velha pros estudos...

Aragão – (Saindo do banheiro.) Vestibular é igual Carnaval: Todo ano tem. Tá uma puta nojeira lá dentro. (Ri.) Bom, é tu que limpa, né? Abaixa a porta que nós vamos cair por aqui mesmo. Amanhã a gente vai pra casa. Tá bem?

(Aragão caminha em direção ao suposto quartinho. Zileide permanece imóvel. Luz se apaga.)

Um instantePaulo Murilo Abreu Fonseca

Personagens:

Suicida, 40 anos, usa roupas mal cuidadas.

Homem, 35 anos.

Senhor, 55 anos.

Mulher, 40 anos. Parece uma beata com saia longa e com expressão recatada.

Policial, 25 anos, com uniforme. É um sujeito bastante disciplinado.

Noite de madrugada.

CenárioEm cima de um prédio velho, bem desgastado pelo tempo. Decadente. Há antenas de TV, alguns encanamentos, parafernália e sucata esparramados pelo chão. Suicida aparece em cima do prédio, em silêncio, olha para a plateia, angustiado anda de um lado para o outro, tem dificuldade para falar, hesita, mas acaba falando.

Suicida – Hoje é o dia de tomar uma decisão muito importante na minha vida. É como se eu estivesse a mil por hora dentro de uma Ferrari e agora fosse o momento de entrar em um túnel totalmente escuro. Talvez fosse melhor não falar em público, muitas testemunhas deixam a nossa vontade meio acanhada. Esclarecimentos. Lembre-se: decisões sempre pessoais. Cometendo crime, quem vai em cana é você. Não se trata de roubo nenhum, até porque nunca tive

Quarta-feira de cinzas | Walner Danziger

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Um instante | Paulo Murilo Abreu FonsecaUm instante | Paulo Murilo Abreu Fonseca

o perfil de um bom contraventor. Algo bem mais simples que isso. Tudo começou com uma pergunta que sempre me acompanhou durante a vida e chegou um momento de responder. O que vou fazer da minha vida? Não é casamento, já pensei nisso, mas a outra parte não botou muita fé. Ela acreditava piamente no altar, mas pensou demais e acabou não aceitando o matrimônio. Vocês aí podem até achar que é uma decisão precipitada, ciscando de um lado para o outro. Consutei especialistas, de alto gabarito, e cheguei à conclusão que corro para vários lados e não chego a lugar algum. Depois de várias reflexões, cheguei à conclusão que é melhor prevenir mesmo. Vou me matar. Vou cometer o suicídio. Poderia escrever uma carta dizendo os motivos que me levaram a cometer esse ato, mas isso só aumentaria o sentimento de culpa dos que ficam. Alguns dos meus familiares dirão: poderia ter feito algo para impedi-lo. Bobagem. Toda a responsabilidade é minha, por tudo que acontece comigo, e que esse fato não seja de inspiração a ninguém. Prefiro que lembrem os momentos que tive nesse mundo e, se possível, peço para ter melhores no lado de lá. Vou contar até três, no três eu pulo. (Olha para baixo.) Um, dois...

Homem – (Fumando na janela de um apartamento em frente ao prédio do Suicida.) Ei, você aí em cima do prédio, me diz uma coisa: você sabe o número da pizzaria da esquina? Estou com uma fome de dar inveja a qualquer miserável aí na rua. Se eu esperar mais uns minutos, acabo virando defunto.

Suicida – Tenho no meu celular, mas estou sem ele agora. Vai ate lá, é pertinho.

Homem – É que eu não estou bem hoje. Toma cuidado com esse telhado. Esses dias tive aí em cima consertando uns canos e vi o quanto a situação está feia. Pode se machucar. Nem respeitam mais os telhados.

Suicida – Não tem problema, vou pular do prédio. Pouco me importa a condição deste telhado.

Homem – (Não acreditando.) Como? O senhor está louco? Dessa altura o senhor pode morrer. Os nossos problemas não se resolvem desta maneira. Pular de prédio é muito desespero.

Suicida – Esse é mesmo o meu objetivo: morrer. Não nasci pra viver. Pronto. Sem maiores detalhes, por favor. É a melhor saída para eu encontrar a paz.

Homem – Não olhe para baixo. Por acaso não gostaria de desabafar alguma tristeza, contar um pouco da sua história, compartilhar as dificuldades? É por aí que se chegar a algo positivo.

Suicida – São tantas situações negativas que não vejo mais luz no fim do túnel. Aliás, o túnel é tão comprido que desconfio até do seu fim.

Homem – Tenho uma ótima sugestão: passe uns dias no campo, rodeado de cavalos, vacas, passarinhos, vai perceber o quanto a vida é divina. Tenho uma amiga que ficou na serra dez dias, comia o que se plantava na fazenda e viveu sem energia elétrica, diz que voltou outra. Encontrou a paz de espírito.

Suicida – Já frequentei muitas corridas de cavalo. Faz muito bem para o prazer, a adrenalina em alta. Ótima turma esta que vai aos jóqueis. Depois de um tempo comecei a entrar na rotina, comprava o bilhete já sabendo que não iria ganhar.

Homem – Pelo menos fez algumas dívidas. Sair assim ileso da vida sem causar nenhum dano é puro amadorismo. Conte quantas contas deixou para sua família pagar?

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Suicida – Dívidas? Nada. Acho que a única dívida é a conta de telefone que venceu ontem. Cheguei meio minuto atrasado no banco e não me deixaram entrar. O resto está tudo em dia, nunca me passou pela cabeça essa idéia de fazer uma bagunça e sair de repente. Já basta a vida para quem fica.

Homem – Poderia aproveitar um pouco mais a vida enquanto está vivo. Depois de pular é um breu só. O túnel vai continuar escuro.

Suicida – Ah, já estou aqui em cima. Agora não será isso que vai me fazer mudar de ideia . A realidade é que eu cansei da vida. O homem, a cada dia que passa, precisa ter algo que o leve a acordar disposto a viver, eu não tenho nenhum imã que me atraia a gozar da vida. Está na hora de eu pegar o meu caminho.

Homem – É... (Concordando contrariado.) Não sei se concordo muito com a sua posição, mas peraí um minutinho. Sinceramente, também acho essa vida uma merda, acabei de terminar um namoro e estou na pior. Deixa eu te contar a minha história antes de você pular.

Suicida – Não tenho muito tempo a perder. Se pensa que irá me impedir, está enganado. Ninguém vai obstruir a minha vontade. (O Homem desaparece da janela.)

Suicida – (Com expressão de conformado.) É... pelo menos, não tentou me impedir.

Homem – (Chega em cima do prédio.) Quem sou eu para te impedir? Ninguém impede a morte de ninguém, não. Eu tinha um amigo que se envolveu com drogas pesadas e estava prestes a se matar. Trancamos ele em um quarto, fizemos vários tipos de tratamento para ele largar o vício, mas tudo em vão. Na primeira oportunidade, pulou da janela e morreu. Mas não vim até aqui para falar sobre isso. É que... preciso desabafar com alguém, quebra meu galho antes de cair. O que você tem é tempo. Preciso conversar com alguém que está meio fodido que nem eu.

Suicida – (Assustado. Pergunta para si mesmo.) Eu estou com cara de fodido? Aposto que ele terminou o relacionamento. Dirá: a vida agora não vale a pena. (Dirige-se ao Homem.) Então, o que aconteceu para a vida virar uma merda?

Homem – Para ser sincero, nem vale a pena falar do leite derramado, não tem jeito de recuperar. Minha mulher me deixou. (Com preguiça.) Acho que se eu contar, o senhor não terá mais vontade de se matar.

Suicida – Muito enganado. Já estou decidido. Então veio até aqui por quê? Toma cuidado, caiu daqui de cima, um abraço.

Homem – A minha mulher me largou. Deixou tudo, do jeitinho que a casa estava e nem deu mais sinal de vida. Sumiu, desapareceu. O pior é que acho que ela me trocou por outro. Desconfio de um rapaz jovem, novato na redondeza, quase certeza de que foi ele. Não esperava, foi de repente.

Suicida – Sei o que é isso. Já aconteceu comigo também, a mulher me largou, não sei se foi por um rapaz jovem, mas, enfim... Mas não é esse o motivo que me levou até aqui. O que você deve fazer é procurar outra mulher antes que comece a se sentir vazio. Não deixa a solidão tomar conta que é pior. Por mais que goste dela, pense que o senhor tem uma vida pela frente, acorda.

Homem – Você que conhece pensa que é fácil? Para mudar a minha vida, preciso de uma revolução.

Suicida – Que revolução? Larga de ser adolescente mimado. Não se faz mais revoluções. Ainda mais quando o assunto é sentimento. Vai tomar uma cerveja ali embaixo no bar do Benê que logo arruma outra. Não vai dar tempo nem de lembrar da infeliz. Viver é bom, o problema é que não esquecemos os fatos que deixam a gente triste.

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Homem – Infeliz estou eu. Ela que deve estar rindo à toa. Acho melhor eu pular com você para evitar maior sofrimento. Pra mim, não tem essa de trocar de mulher. Não adianta. Sabe quando você troca de roupa, troca de casa, troca de trabalho e o problema ainda te persegue? É questão de pele, não se troca. Parece que estou até doente. É assim que estou me sentido.

Suicida – Não quero dar conselhos médicos, mas, se o problema é de pele, tem cura. Nem precisa ser especialista, cirurgia plástica. A sua doença tem cura. Eu tenho certeza do que estou fazendo. Pense direito, resolver a questão às pressas por ignorância é imperdoável.

Homem – Sou honesto comigo mesmo. Antes de você aparecer com a ideia, já tinha pensado nisso. A morte deixará a minha alma encontrar o seu lugar no universo. A chegada do senhor apenas acelerou o processo, precisava de alguém que me incentivasse, atiçasse o fogo da minha vontade.

Suicida – Não se apresse. O suicídio só tem sentido se for bem pensado, quando os olhos não veem mais nada, caso contrário é acidente de percurso.

Homem – O senhor acha que sou um romântico? Acha que morreria por uma desilusão amorosa? Sou incapaz de fazer uma poesia de três versos, não posso morrer por uma desilusão. Simplesmente sou um rapaz que tentou outras formas de amor e não encontrou, estou cansado, sou novo, mas estou cansado.

Suicida – A vida é sua, rapaz. Não posso fazer muita coisa por você. Na verdade, você não tem ideia do que seja o amor. Experimentou uma, não gostou, agora quer pular fora do barco. Com uma coisa concordo, sem amor não é possível viver. Aviso: pulou e nem vai sentir mais o corpo.

Homem – Entendi. A decisão é minha e ponto final. Alias, se matar depende só de quem morre. Pode parar de me impedir do que quero fazer.

Suicida – Então, no três a gente pula. Não quer dizer alguma coisa antes?

Homem – Não, já disse até demais.

Suicida – Um, dois.... (Ouve-se um barulho forte. Acaba a luz de toda a rua e dos prédios.)

Homem – Não! Por que parou de contar? O que aconteceu?

Suicida – Alguém apagou a luz. Parece que acabou a luz de todo o quarteirão. Que coisa estranha. Alguma coisa está acontecendo.

Homem – Já morremos e pensamos que ainda estamos vivos. (Ao fundo, um Senhor com uma vela acesa. O Senhor vai a caixa de luz até ouvir um barulho.)

Senhor – Ei, quem está ai?

Homem – Somos moradores do prédio vizinho.

Senhor – Não se mexam, a luz do prédio acabou.

Homem – Estamos vivos ainda.

Suicida – Pelo visto foi no quarteirão inteiro, daqui de cima só luz de vela.

Senhor – Deveriam voltar para suas casas? É perigoso permanecer na beirada no prédio.

Suicida – Para nós, não é perigo, é salvação. Vamos pular.

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Senhor – Vocês não são os primeiros nem serão os últimos a cometer essa imbecilidade. Quem brinca de herói se ferra no final.

Suicida – Acha que essa falta de luz vai demorar?

Senhor – (Vê a altura do prédio.) Nos faroestes se morre ou pelo amor ou pela honra. Hoje se perde a vida no escuro. Não sei se a luz volta. Quando falta no quarteirão, o problema é municipal.

Suicida – Quem pula dessa altura se desfaz no ar. Nem se espera o impacto com o chão. Puft! Acabou, o corpo torna-se um saco de migalhas.

Senhor – Se querem chamar atenção, porque um não atira no outro? Ao mesmo tempo. Duplo homicídio. Tenho dois revólveres lá embaixo. (O senhor, afastado, fica observando)

Suicida – Falar de morte para o senhor não é problema algum.

Homem – Por favor, poderia nos dar licença e não testemunhar o acontecimento? É uma questão pessoal.

Suicida – (Em tom mais bravo.) O senhor sabe quando volta a luz?

Senhor – Eles só tomam atitude quando a reclamação é grande.

Homem – Meio estranho morrer, assim, no escuro. Vamos esperar.

Suicida – Se não demorar muito, podemos esperar. Nessa escuridão, qualquer ato é suspeito, mal compreendido. É melhor aguardar, podemos passar despercebidos. Não respeitarem nossos corpos.

Senhor – Ultimamente, não respeitam nem vivo, vão respeitar morto? Hoje fui ao hospital, fiquei esperando duas horas para ser atendido.

Falta de consideração para quem está doente, como eu.Suicida – O que aconteceu?

Senhor – A realidade é que estou com um problema meio emperrado. Descobri que estou ruim do rim. Fiz os exames e preciso ir toda a semana ao hospital para receber o tratamento.

Homem – Então o problema é grave mesmo?

Senhor – Diz a medicina. Estou falando que é sério pela cara do médico. Ele já me receitou uns remédios para eu tomar duas vezes ao dia. Pelas dores, não devo ter muito tempo de vida.

Suicida – Faz o tratamento direitinho que poderá dá certo. Nessas horas, precisa ter fé.

Senhor – Pelo o que entendi, o tratamento será doloroso. Tomo os remédios e vou ver no que dá. Não sei até que ponto o remédio pode ajudar um velho como eu.

Suicida – Pensa nos seus familiares, que o senhor vence qualquer dificuldade.

Senhor – É isso que eu fiz essa semana. Fiz um seguro de vida, em caso de morte eles estarão tranquilos.

Homem – Não acredito que o senhor está pensando.... (Indicando para baixo.)

Senhor – Pois é... Não vou durar muito tempo mesmo. Se fizer o tratamento, irei gastar uma fortuna com hospital; morrendo desse jeito, pelo menos alguém sairá lucrando. O seguro pagará um bom dinheiro nesse caso.

Suicida – O senhor está pensando na pior das hipóteses. Quando curado, vai achar tudo uma bobagem.

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Senhor – Esses médicos dizem que tudo é possível, basta pegar a doença no princípio. Atualmente, anda doendo tanto desse lado do corpo (Aponta para o rim.) Eles ficam só alimentando a minha esperança, mas, no fundo, é o fim que se aproxima. Vou com vocês.

Suicida – Não senhor. Não quero incentivar o suicídio na cidade. Depois de morto, vão dizer que, além de suicida, também sou assassino. Repito, sei o que faço, não se precipitem porque estou aqui.

Senhor – Deixa de bobagem. Fique tranquilo, não é por causa da sua presença que tomarei essa atitude. Ao contrário dos suicidas comuns, noto que você me parece muito sensato. Deveria trabalhar com algo bastante sério.

Suicida – Trabalhava em um banco. Sensato e disciplinado, tudo o que queriam. (Risada.) Algo bem diferente do senhor.

Senhor – (As luzes do quarteirão se acendem.) Voltou a luz. Sempre disse o que problema não está no prédio, está na rua. Por que não escolheram o prédio da frente? É bem maior.

Suicida – Tanto faz o prédio, o que importa é o resultado.

Homem – Estamos conversando demais.

Senhor – Assim é melhor para todo mundo. Vou com vocês. Para vocês é sempre encorajador ter mais um companheiro, para mim evita mais dores e para a minha família é satisfatório ter uma vida melhor com o dinheiro do seguro.

Suicida – Que fique claro a situação. O senhor tem experiência, sabe a burrice que está cometendo. Poderia ao menos se despedir dos familiares. Considero precipitado a sua atitude, mas, infelizmente, é você quem resolve. Ainda tem muito peso para carregar nessas costas.

Senhor – Fico admirado por se preocuparem com o meu futuro. Bom saber do apoio esse momento. Odeio despedidas, só servem para chorar. Se vocês quiserem pular juntos primeiro, eu pulo em seguida. Não tem problema.

Homem – Então vamos.

Senhor – Por acaso vocês estão com os seus documentos?

Suicida – Não, por quê?

Senhor – Os policias precisam identificar os corpos. (Pegando no bolso.) Ainda bem que não saio de casa sem ele.

Homem – O senhor é que precisa ser identificado o mais rápido possível, o senhor vai deixar família. Pouco me importo como vou ser enterrado. Estarei morto mesmo.

Homem – Eu esqueci o meu lá na mesa de casa.

Suicida – O meu está ali em cima da cama, mas agora não vou pegar nem morto.

Senhor – Agora eu, nunca mais? Eu avisei, depois não reclamem de ser misturados com outros corpos sem procedências. Eu preciso ser identificado rápido, como o seguro vai me reconhecer?

Suicida – Alguém da família acaba encontrando o senhor.

Homem – São detalhes demais para uma coisa muito maior. O Senhor tem um motivo de força maior para ser identificado. Ele irá lucrar com a morte, no nosso caso é um detalhe burocrático.

Senhor – De qualquer jeito estou prevenido.

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Suicida – O Senhor está preocupado com os detalhes, deveria confiar mais na medicina. Conheço tanta gente que daria tudo por um minuto a mais de vida.

Senhor – Sabia que o senhor fala bem? Deveria também desistir desse negócio de morte e começar a ganhar dinheiro com a palavra. O problema é que fala demais.

Suicida – Primeiro, o senhor falou que sou sensato, depois disse que falo bem, muitos elogios na hora errada. Não pensa que vou desistir de pular.

Senhor – Vamos pensar nas consequências. Os fins justificam os meios.

Homem – Então vamos lá. (Todos fecham os olhos.) No três, a gente pula: um, dois... (Embaixo do prédio, uma mulher acabara de observar a conversa entre o Senhor, o Homem e o Suicida. Fala da rua, olhando para cima . )

Mulher – Oi, por favor. Desculpe interromper a conversa dos senhores, mas acho necessário me intrometer em um assunto que envolve tantas vidas. Como faço parte da Igreja, tenho a impressão que posso ajudá-los.

Senhor – Minha senhora, eu acho que a senhora entrou na cena na hora errada. Já passamos o momento de reflexão.

Homem – Estamos já quase no final da peça, não tem jeito de voltar atrás. A morte nos aguarda.

Mulher – Ainda dá tempo de desistir. Entendo esse momento de dúvida. Pensem com carinho na opção de sairem ilesos. Viver é uma benção de Deus. O limite dos senhores chegou.

Suicida – Desculpe desagradar a vontade da senhora, mas a nossa questão é mesmo de ultrapassar limites. Discordamos dessa vida limitada.

Se soubesse de tudo sobre nós, acharia que esse é o caminho certo.

Mulher – Não precisa se desculpar. Deve ser uma opção que está acima do bem e do mal, no entanto, discordo. Caso não seja incômodo, gostaria de saber o que levaram vocês a tomarem essa atitude?

Homem – Eu cansei de tentar acertar no alvo e errar. Não consegui ter um bom relacionamento com alguém que amei.

Senhor – Tomei essa decisão por uma questão familiar. Considero que a minha doença irá prejudicar a minha família. Com a minha morte, a minha família se beneficiará do dinheiro do seguro.

Suicida – Meus motivos são interiores, não vale a pena serem falados. Posso dizer que cheguei ao limite da sobrevivência.

Mulher – Tive um irmão que também ultrapassou esse limite. Ele se matou. Foi uma tristeza irreparável...

Suicida – Morreu de suicídio? Assim, pulou do prédio?

Homem – Sentimos muito pela morte de uma pessoa querida, mas infelizmente a gente não pode fazer nada por ele.

Mulher – Vou subir aí para falar um pouco sobre ele. Importante conhecer experiência alheia. Vou subir aí, um minuto.

Homem – Agora, nossos ouvidos viraram penico das lamentações. Daqui a pouco vou abrir é uma Igreja. (Olha para o suicida.) Com essa sua paciência, não vamos morrer nunca.

Suicida – Deixa ela desabafar, coitada. Perdeu o irmão, morreu de repente. Precisa de um auxílio. Ainda mais sendo uma morte tão triste como é a do suicídio.

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Homem – Pouco me importa o que vai acontecer comigo depois de pular. Já basta a vida para ficar me programando. Para mim, o futuro é um escuro vazio, nada demais.

Senhor – Descansarei em paz sendo enterrado no cemitério. Minha família fará orações para mim.

Mulher – É uma vergonha desprezar o futuro dessa maneira. Depois da morte do meu irmão, toda a família entrou em parafuso. Não sei se vocês me entendem? Ele era um eixo de toda uma engrenagem, todos perderam a referência com a sua ausência. Minha mãe hoje toma remédio para dormir.

Suicida – Deveria cuidar da sua mãe, senão daqui pouco é ela quem vai.

Senhor – Minha senhora, a minha pretensão não é pesar os ombros da minha família. Sabem que estou doente e daqui a pouco tempo vou depender deles, por isso preferi tomar essa decisão.

Homem – Entendemos a sua situação e pode estar certa de que ficamos sensibilizados pelo acontecido. Tomara que seu irmão esteja em algum lugar em paz. Mas, no nosso caso, aqui ninguém é referência de mundo para ninguém. Morrer é a maneira mais simples para evitar maiores sofrimentos.

Senhor – Infelizmente, ou felizmente, realmente a decisão está tomada. A senhora perdeu o irmão, mas a vida continua para quem fica.

Suicida – Olhe para frente. O que passou passou e não dá para voltar.

Mulher – Pelo menos, gostariam de deixar alguma mensagem para o mundo? Algo que faça o mundo melhor.

Suicida – O homem precisa saber a hora de morrer.

Mulher – Oi. Tudo bem? Os três respondem – Tudo bem.

Mulher – Então, tudo foi muito inesperado. Um dia, pela manhã, liga um policial lá em casa perguntando se eu conhecia um tal de João Carlos. Eu disse que era meu irmão, então o policial pediu para eu comparecer à delegacia que tinha um assunto muito importante para falar comigo. Quando cheguei lá, recebi a notícia, ele tinha pulado do prédio. Esse daqui da frente. (Todos se assustam.) Depois disso, a minha vida perdeu o sentido.

Suicida – Que desperdício, a senhora é nova, tem uma longa vida pela frente. Um acidente como esse acontece.

Mulher – Eu sei, mas desse jeito não poderia ser pior. Talvez, se eu tivesse sido mais atenciosa, mais cuidadosa, ele poderia estar ao meu lado agora. Era tão bonito.

Homem – E há algum motivo especial para ele ter cometido suicídio?

Mulher – Por enquanto temos algumas suspeitas. Parece que ele era usuário de drogas e ficou louco. O excesso desnorteou o rapaz. Desmiolou, sabe? Desconfio que seja má influência de uns rapazes mal encarados que andavam com ele. Suicida – Morreu na hora? De uma vez?

Homem – Que pergunta!!! Evidente. E você acha que sobra alguma coisa de quem pula de um prédio? Claro que morreu na hora.

Senhor – É comprovado, dessa altura nem alma escapa.

Mulher – Por isso, peço: evitem a morte desse jeito. A vida pode ser melhor, pense nos seus parentes. Lembrem-se: quem morre assim não tem lugar assegurado no céu.

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Homem – Do que vale a vida se não for para amar? Diga isso para a humanidade.

Senhor – O homem tem que reconhecer as suas limitações. Do que vale abraçar o mundo, se não é capaz de cuidar dos próximos?

Mulher – Confesso que estou sensibilizada com essas mensagens. O mundo se tornaria mais feliz se ouvisse as mensagens de vocês. É uma pena que não possam continuar contribuindo com palavras. (Polícia embaixo do prédio. Sirene toca, o pisca-pisca vermelho é aceso.)

Polícia – (OFF, alertando, no alto-falante.) Por favor, acalmem-se. Estamos preparando para que tudo corra na maior tranquilidade possível, nossa equipe de resgate está a caminho para que ninguém sofra maiores danos.

Senhor – Não se aproximem, nós vamos pular. Nós vamos pular, minha senhora.

Suicida – (Gritando.) Desliguem as sirenes, não queremos confusão. Minha senhora, se afaste um pouco, não é uma boa cena para assistir.

Homem – Não se aproximem, pode ser perigoso.

Mulher – Eles vão chegar até aqui, esperem. Eles vão ajudar. Se meu irmão tivesse tido uma oportunidade como essa, poderia estar em casa a essas horas.

Homem – Nós vamos pular de qualquer jeito, não é nada contra a senhora. (Todos confirmam com a cabeça, apesar de o Suicida estar receoso).

Mulher – Esperem. Um momento. Acho melhor ir com vocês. Estão precisando de alguém para guiá-los até o Reino dos Céus.

Suicida – Ficou louca agora?

Homem – O que a senhora não pode fazer é observar a gente pular. A polícia irá pensar que está compactuando com o nosso suicídio e cobrará satisfação das suas atitudes.

Suicida – Você está louco, ela quer evitar um desastre e você convida a participar.... Está maluco, seu inconsequente. Minha senhora, fique calma, espera, deixa o tempo passar, durma bem e quando acordar amanhã verá o quanto o dia estará lindo.

Mulher – Acho que não conseguiria dormir, acordar, ver um bom dia, sabendo dessa falha. Deixei o meu irmão morrer assim.

Senhor – A única coisa que posso dizer para a senhora é se afaste ou junte-se a nós.

Suicida – Sem propósito é tomar uma atitude como essa sem nenhuma reflexão.

Homem – Por que não pode? Ela se sente tão mal pela perda do irmão, sente-se culpada por tudo o que aconteceu. É melhor sair dessa e ir para uma melhor.

Senhor – Quanto mais a gente demorar, mais rápido os policiais chegam até aqui. Vamos apressar o processo.

Homem – Então? A hora é essa. De qualquer jeito, vai sofrer alguma culpa.

Mulher – Esperem. É verdade, eu me sinto responsável por deixar vocês assim desolados. Sinto que devo acompanhá-los. Meu irmão precisou de amparo, eu não fui capaz de atendê-lo, de descobrir a sua dificuldade. Agora tenho a oportunidade de evitar um mal maior acho que se for com vocês posso orientá-los melhor depois da morte.

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Suicida – Eu discordo. Vejo que a senhora fez a sua parte tentando convencer a gente de não pular. Esse negócio de orientar para o Reino dos Céus, deixa para os anjos da guarda. Pensa o quanto poderia ajudar os necessitados nessa Terra.

Homem – Vamos, antes que a polícia chegue. Preparem-se.

Suicida – É uma pena ver uma pessoa morrer por causa de outra. Sinceramente, a senhora não está pensando na colheita toda, está preocupada com os pequenos grãos.

Mulher – Fala bonito, isso sim que é um desperdício. Fala tão bonito. Como seria bonito ver você falar todos os dias! Agora peço, não insista, acredito que pulando irei encontrar meu irmão lá em cima.

Senhor – Então, no três a gente pula. Um...

Suicida – Um minuto.

Homem – Vamos? Para que contar até três? Para quem quer morrer mesmo, pouco importa o tempo final. Quando eu falar já, todos pulam e viva a vida eterna.

Todos, menos o Suicida – Ok.

Policial – (OFF) Não se precipitem. A vida não pode ser jogada fora assim.

Senhor – Que a paz esteja conosco.

Suicida – Acho que primeiro ....(Hesitando.)

Mulher – Faço isso por você, meu querido, e por todos os presentes. Rezo que as almas encontrem seus caminhos e que Deus abençoe as nossas escolhas.

Homem – Já!

Policial – (OFF) Não cometam uma atitude sem pensar nas consequências.

(O Homem, o Senhor, e a mulher pulam do prédio. O Suicida está de olhos fechados; apesar de nervoso, olha para baixo com a sensação que foi um alívio não ter pulado. Sente-se meio nas nuvens.)

Suicida – Acho que primeiro... (Policial joga o Suicida ao chão. Suicida assustado, treme de nervoso.)

Policial – (Agarrando o Suicida) Peguei. Consegui, você não vai não.

Suicida – O que está acontecendo? (Olha para os lados.) Não é possível!

Policial – É verdade, a mais pura realidade. Eles se foram. Brincaram com fogo, acabaram se queimando.

Suicida – Que absurdo! Nunca imaginei que fossem capazes de uma coisa dessas.

Policial – O que temos que fazer agora é rezar pelas almas deles.

Suicida –Foi isso que eu propus. Imaginei que quanto mais adiasse o pulo deles, mais rápido chegariam aqui. Foi por pouco.

Policial – Mesmo assim poderia ter impedido. Já seria grande o lucro se salvasse ao menos um.

Suicida – Não tive culpa. Eles se jogaram assim de repente. Eu avisei, morte é coisa séria, não se precipitem. De repente... Como segurar três pessoas com atitudes suicidas? Não tenho experiência psiquiátrica.

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São vocês os responsáveis. Por que não chegaram antes? Vocês que conhecem as técnicas para tratar de gente desmiolada.

Policial – Infelizmente, fomos informados há poucos minutos. Se tinham tanta vontade de morrer, não sei se resolveríamos muita coisa.

Suicida – Tratar com pessoas que não sabem mais a diferença entre a vida e a morte não é simples. Já não distinguiam o certo do errado. Encontrei os três completamente transtornados. Talvez tenham tomada o caminho melhor.

Policial – O senhor não pode falar muita coisa. O que estava fazendo por aqui a essas horas? Não pulou e não impediu de pulá-los.

Suicida – (Olha para os canos) Encanamento. O morador daqui de baixo pediu para eu dá uma olhada no encanamento, porque o cano da sua cozinha estava entupido. Quando cheguei, vi esse pessoal conversando. Comecei a ouvi-los e... Não tenho idéia de quando tudo isso começou. Entendo que o senhor é policial, mas tem que entender que não foi fácil ver esse pessoal pulando dessa altura. (Chegando ao parapeito do prédio.)

Policial – Se tentar de novo, vou tomar providências mais duras contra o senhor. Poderia ter evitado essa tragédia. Está me entendendo? (Empurrando-o.)

Suicida – Calma, seu policial, sou um rapaz sensato. Tudo não passou de um acidente, de um mal-entendido. Não me culpe pelas ações dos outros. Pensei que isso tudo não passava de uma encenação.

Policial – Pensava que eles estavam fazendo teatro? Acho que o senhor está fora da realidade. Para trás, por favor, o pessoal do resgate vai chegar a qualquer momento.

Suicida – Você acha que em um filme desses sobraria um para contar a história? Muito enganado. (Pausa.) Pensando bem, sempre tem um sujeito que escapa nesses momentos de definição, alguém tem que contar a história.

Policial – Pelo jeito, o senhor está ótimo. Falando desse jeito, não sofreu nada com o acontecido.

Suicida – Sabia que eles disseram para eu começar a escrever? Não sei se tenho talento, mas gostei da idéia. Acredito ser uma boa opção para começar uma nova vida. Pensar demais na vida torna tudo mais complicado. Já que disseram que tenho intimidade com as letras, por que não? Deixa eu ir embora, era melhor não ter saído de casa hoje. (Dá uma olhada para baixo.)

Policial – Sem chance. Já está passando de novo do limite.

Suicida – Calma, policial, do jeito que você está nervoso, daqui a pouco é o senhor que cai. Estou verificando a altura. Prédio alto. Estou meio zonzo só de estar aqui em cima.

Policial – O senhor não pode subir nessas alturas. Fique tranquilo, lembra que faz parte do meu trabalho subir em prédios.

Suicida – (Descendo o prédio) Desculpe o incômodo, não foi essa a minha intenção. Fui pego desprevenido, vendo toda essa cena. Nesse momento, entrei em pânico, comecei pensar em toda a vida e não saí do lugar. Fiquei desnorteado, por isso não consegui salvar ninguém.

Policial – (Ironicamente.) Pensou demais e não viu o que aconteceu. É melhor o senhor descer mesmo. (Suicida sai de cena. O policial olha para baixo e sente um calafrio, em seguida, sai de cena. Luz abaixa devagar.)

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1º Lugar

O Caso Max ou Nunca brinque com a morteMarcos Nogueira Gomes

2º Lugar

Questão de minutosCarlos Renato Russo Junque

3º Lugar

Tempo perdidoPaulo Murilo Abreu Fonseca

2007

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O Caso Max ou Nunca brinque com a morte

Marcos Nogueira Gomes

Personagens:Max, investigadores, chefe, Morte, Eleonora

Investigadores – Max era um sujeito oculto com a incrível habilidade de se esconder em pontos cegos. Em lugares públicos se tornava translúcido, indefectível a qualquer panorâmica. Somente o foco poderia capturá-lo. (Foco em Max.)

Investigadores – Morava sozinho em um apartamento subterrâneo na região do Paraíso, apartamento 13, porém, três abaixo do nível da rua. Antigamente Max morava no apartamento menos 33, mas, por uma questão simétrica, os condôminos aboliram os números negativos. Max não protestou. Batia muito pouco sol no apartamento de Max, apenas alguns raios que entravam pelo vão central do edifício durante o meio do dia. Cheirava mal, tanto ele como o seu apartamento... e como a sua geladeira, consequentemente. Max não tinha talento para culinária, havia abolido o fogão há alguns anos, vivia de restaurantes por quilo, pães com queijo, pizzas... que geralmente eram arquivadas na sua geladeira. (Max come um pedaço de pizza.)

Investigadores – Max tinha poucos passatempos, talvez dois, tão poucos que não vale a pena descrevê-los. O que se destacava era a apreciação de livros escolares, principalmente a leitura de resumos de biologia e gabaritos de química. Adorava estudar pequenas formas de vida, como bactérias, fungos e protozoários. Dedicava-se com afinco ao estudo de células animais e vegetais, com ênfase para suas partes constitutivas: mitocôndrias, corpúsculos de Golgi, nucléolos, citoplasmas, paredes celulares...

Max – As células reproduzem-se por divisão. Logo, todas as células vivas são derivadas de uma mesma célula, morta.

Investigadores – Buscava respostas objetivas, desprezava os pormenores. Era um ser obtuso com o segundo grau técnico completo. Pretendia prestar vestibular para contabilidade ainda aquele ano.

Max – Trezentos e noventa e nove mil, menos quatrocentos e sessenta e sete, mais dois por cento de um milhão quatrocentos e trinta e dois mil setecentos e cinquenta e dois, vezes a sobra de dois por cento de noventa e quatro mil duzentos e sessenta e um e meio, menos mil oitocentos e oitenta e três vírgula vinte cinco... (Entra o chefe, gargalhando.)

Chefe – Para, para, para... Para tudo! Você conhece aquela do médico? Não? Essa você precisa ouvir...

Investigadores – Max trabalhava no setor de faturamento de uma empresa aérea nas imediações do aeroporto. Por suas mãos passavam todos os dias milhões e milhões em notas fiscais vindas de todos os cantos do planeta. Sua tarefa consistia em emitir e arquivar esses milhões, gabando-se de nunca ter esquecido um zero sequer em mais de cinco anos, todos arquivados. Orgulhava-se, mas não era faustoso, pelo contrário, chegava a perder o colorido quando pressentia um elogio, preferia permanecer no eclipse dos competentes, avesso a mudanças, avesso à meritocracia. Era muito meticuloso em seu trabalho, por isso, odiava quando lhe interrompiam. Principalmente se a intenção fosse boa.

(Chefe gargalhando.)

Chefe – Volta amanhã!... Entendeu? O médico disse, volta amanhã!... Amanhã!...

O Caso Max | Marcos Nogueira Gomes

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Investigadores – Odiava seu chefe, o suficiente para aturá-lo. Era dos poucos que não riam das suas piadas, no máximo esboçava um sorriso quando estritamente necessário. (Max sorri sem vontade.)

Chefe – Pô, Max! Sem graça você... (Sai.)

Max – Trezentos e noventa e nove mil, menos quatrocentos e sessenta e sete, mais dois por cento de um milhão quatrocentos e trinta e dois mil setecentos e cinquenta e dois, vezes a sobra de dois por cento de noventa e quatro mil duzentos e sessenta e um e meio, menos mil oitocentos e oitenta e três vírgula vinte cinco... (Interrompe a conta como se estivesse ouvindo alguma coisa.)

Investigadores – Adorava matemática. Sentia-se confortável na presença de números, mais até do que de pessoas. Tinha uma fixação por operações complexas e números inteiros. Sua especialidade, porém, eram as tabuadas. Havia criado um método para inferir mentalmente qualquer tabuada com até três dígitos. Tal habilidade foi intensamente desenvolvida por ele e se transformou logo em uma espécie de música, algo intuitivo. Era comum, em dias comuns, distrair-se com qualquer número, aleatoriamente, na rua, no escritório, nos azulejos... Esse recurso, a princípio, trouxe diversas contribuições para a sua vida, tanto no trabalho quanto na sua própria. Recentemente, por exemplo, lembrou-se com entusiasmo dos longos períodos que passou acometido por uma insônia atroz... só aplacada pelo uso sistemático da tabuada! Era nessa época um ser apático, mais do que o de costume, só os números lhe davam algum tipo de equilíbrio; seus “carneirinhos”, como dizia. No trabalho passou a realizar operações complexas pela metade do tempo, inclusive durante o almoço, adiantando o serviço. Todavia, como acontece com toda boa música que ouvimos demais, os números se transformaram em obsessão, uma espécie de voz. Foi então que as crises de insônia voltaram...

(Tarde da noite no escritório.)

Max – Trezentos e noventa e nove mil, menos quatrocentos e sessenta e sete, mais dois por cento de um milhão quatrocentos e trinta e dois mil setecentos e cinquenta e dois, vezes a sobra de dois por cento de noventa e quatro mil duzentos e sessenta e um e meio, menos mil oitocentos e oitenta e três vírgula vinte cinco... (Notando a presença de alguém.) Pode ir limpando a sala, eu não me importo. (A Morte fica parada olhando fixo para ele, tendo ao seu lado um balde com uma vassoura dentro – só vemos o cabo. Max enfim se irrita.)

Max – Algum problema?

Morte – Você... morreu.

Max – Eu já estou de saída... Menos mil oitocentos e oitenta e três vírgula vinte cinco igual a... O que você disse?

Morte – Você acabou de morrer. (Silêncio. Max não sabe o que dizer, por isso volta a trabalhar.)

Max – Eu já tô saindo, só mais um minutinho... (A Morte se aproxima, calmamente.)

Max – Hei! Hei! Hei! Espera aí! (A Morte para.)

Max – Qual é a sua, cara?

Morte – Eu sou a Morte.

Max – (Ri um tanto nervoso, arrumando suas coisas.) Olha aqui, eu tô saindo, tá? Você venceu...

Morte – Não precisa mais se preocupar com as suas coisas, elas são inúteis.

O Caso Max | Marcos Nogueira GomesO Caso Max | Marcos Nogueira Gomes

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Max – (Pega um bloquinho.) Qual que é o seu nome?

Morte – Morte.

Max – Tá, bom... Legal. Essa foi boa. (Bem humorado.) Você não se parece com a Morte, sabia? A Morte costuma usar um capuz, sabe? Uma foice também.

Morte – Eu não tenho um capuz.

Max – Tá vendo? Então você não é a Morte.

Morte – Essa parte é sempre difícil... Acredite, Lanny, você está morto.

Max – Eu não me chamo Lanny, meu nome é Max. Viu? Por que você não procura em outro departamento?

Morte – Eu não costumo me enganar.

Max – Muito menos eu.

Morte – Você nunca ouviu o ditado: nunca brinque com a morte?

Max – E você? Nunca ouviu o ditado: nunca fale com estranhos?

(Silêncio.)

Morte – Eu devo levá-lo, agora.

Max – Me levar? Pra onde?

Morte – A curiosidade matou o gato.

Max – Eu nunca tive gatos.

Morte – São animais agradabilíssimos. Têm sete vidas... Infelizmente, você não é um gato. Mas não precisa se assustar, Lanny.

Max – Meu nome é Max! Max!

Morte – Nem ficar nervoso.

Max – Dá para manter distância, por favor? Eu não suporto gente perto de mim!

Morte – Lanny...

Max – Eu não me chamo Lanny! Meu nome é Max! Max!

(Silêncio. A Morte o encara fixamente.)

Morte – Tem certeza?

Max – É claro que eu tenho certeza!

Morte – Então prove.

Max – Eu não tenho que provar nada pra você. Por que você não começa logo a varrer a sala e para de me encher o saco, hein?

Morte – Última chance, Lanny.

Max – Eu não me chamo Lanny! (Nessa hora percebemos que o cabo que pendia do balde escondia uma foice.)

Max – O que é isso, cara? Como é que você entrou aqui com essa coisa?

Morte – Eu sempre a carrego comigo.

O Caso Max | Marcos Nogueira GomesO Caso Max | Marcos Nogueira Gomes

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Max – Aqui dentro tem câmera, sabia? Você vai se dar mal! Escuta o que eu tô te dizendo!...

Morte – O seu tempo acabou, Lanny.

Max – Por que você não procura em outro departamento? Eu não conheço nenhum Lanny, mas... Como é esse cara que você está procurando? Me dá uma descrição dele.

Morte – Morte natural.

Max – E... Que mais?

Morte – Só.

Max – Então. Como é que você pode ter tanta certeza de que sou eu mesmo?

Morte – Porque você morreu de morte natural.

Max – Tá, tá, eu morri, tá...! Mas pula essa parte, que eu já entendi. Bota uma coisa na sua cabeça: eu não me chamo Lanny, ok? Meu nome é Max! Max! (Se prepara para sair. A Morte barra a saída de Max com a foice.)

Morte – Receio que não.

Max – Puta que pariu... Tó! Pode ficar com tudo, pega a minha carteira, pode levar... eu não me importo.

Morte – Nem eu. Só quero você.

Max – Cara, pelo amor de Deus! Me deixa ir embora! Eu tô cansado, trabalhei o dia inteiro!

Morte – Não, Lanny.

Max – (Entregando à Morte seu crachá.) Tó! Satisfeito, agora? Pode ver a foto... O que tá escrito embaixo? Dá uma olhada.

Morte – Está escrito: Max, faturamento.

Max – Tá vendo?

Morte – Eu também tenho um crachá.

Max – Ah, é? E nele tá escrito o quê? “Morte, limpeza geral”?

Morte – Está escrito...: “Geraldo, auxiliar de limpeza”. Mas eu não me chamo Geraldo.

Max – Nem eu me chamo Max!... Quer dizer, Lanny! Eu não me chamo Lanny! Lanny!

Morte – Você me parece confuso.

Max – Olha, Geraldo... O que você quer? Hein? Pode pedir, confia em mim, eu prometo que não vou falar com ninguém...

Morte – (Confuso.) Eu não me chamo Geraldo.

Max – Tó, pega... Pega, Geraldo! Pega tudo!

Morte – Eu não me chamo Geraldo. Eu sou a Morte. (Bate a foice no chão.)

Max – Calma... calma... É... vamos conversar, tá? (Tem uma idéia.) Tá, tá certo!... Me diz só uma coisa, como é que eu vou saber se você é a Morte, mesmo? Eu também tenho direito a uma prova, não tenho?

O Caso Max | Marcos Nogueira GomesO Caso Max | Marcos Nogueira Gomes

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Seria muito injusto, não acha? Eu acho que você é o Geraldo, mas você me diz que é a Morte. Como é que eu vou ter certeza, hein?Morte – Porque você morreu.

Max – Justamente. Se eu nem tenho certeza que morri, como eu posso acreditar que você é a Morte? Se pelo menos eu me sentisse morto, mas assim é meio difícil, Geraldo! (A morte ergue a foice.)

Max – Eu tenho uma proposta. (Recua.)

Max – Vamos supor que você seja a Morte mesmo, de verdade. E eu morri. Nesse caso, você estaria morto, concorda? Principalmente sendo a Morte, não dá pra dizer que você esteja vivo. Pois bem, se você é a Morte e está morto, consequentemente você não pode morrer, certo? A gente só morre uma vez, ou eu tô enganado? Bom, sendo assim, se você... vamos supor... pulasse daquela janela, ali! Você continuaria vivo, não é mesmo?... Ou melhor, morto... A questão é que você pode pular daquela janela e eu não, de modo que se você diz mesmo que é a... Hei cara, eu tava brincando!

Morte – Nunca brinque com a morte.

Max – Hei, espera!! Espera!!!

(A Morte se mata pulando da janela.)

Investigadores – Fora Eleonora, a secretária de seu chefe, quem primeiro o encontrou. Precisamente às sete da manhã do dia seguinte, dormindo em posição fetal, dentro do armário e com um recado colado na testa: “Lanny”. Segundo relatos, ela ficou tão assustada que chegou mesmo a dar um grito, porém leve. Max estava em apuros e ela entendeu isso muito rápido, tão rápido que o seu coração se encheu de uma espécie de piedade quase divina. Certa do seu dever e motivada pela mais profunda compaixão, experimentou olhá-lo por

alguns segundos, de tal forma diferente do modo como costumava fazer nos dias normais, que se sentiu envergonhada, como se estivesse sendo observada por ele também. Reparou que Max parecia um bebê, depois ficou triste, lembrou-se de que tinha esquecido a conta do cartão de crédito em cima da mesa da sala, ao lado da cumbuca com as chaves e as canetas. Decidiu acordá-lo. (Eleonora acorda Max. Ele se assusta e grita, ela também. Max sai correndo.)

Investigadores – Os problemas de Max com a justiça começaram naquele dia. Em uma palavra, talvez duas, Max precisou agir. As implicações de sua fuga foram determinantes. Bem como a análise dos fatos miraculosos relatados posteriormente pelo acusado em carta. Não fosse pelo cadáver do auxiliar de limpeza que jazia na parte de trás do edifício, em posição que indicava ter sido empurrado por alguém, assim como a ausência de qualquer referência a suicídio pela vítima, ou pelo acusado, em carta, Max teria sido declarado inocente. Ou, devido ao seu histórico, apenas mais uma vítima do estresse. Hoje não sabemos a localização exata de Max nem os motivos que o levaram a cometer tal crime. Há rumores de que vive sob a alcunha de Lanny, em algum país da Ásia Central; outras fontes afirmam que veio a falecer como indigente, em Campinas, mas não há nenhuma prova concreta disso. As buscas continuam.

(Black-out.)

O Caso Max | Marcos Nogueira GomesO Caso Max | Marcos Nogueira Gomes

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Questão de minutos | Carlos Renato Russo Junque

Questão de minutosCarlos Renato Russo Junque

Personagens:1 – um homem que aparenta mais de 30 anos.

2 – um homem de 20 a 30 anos.

3 – uma mulher jovem, pouco mais de 20 anos.

(Barulho de tic-tac de relógio, número 1 está impaciente, esperando por alguém, quando surge o número 2).

1 – Oi!

2 – Oi!

1 – Posso te perguntar uma coisa?

2 – Claro!

1 – Bem... Eu estava andando por aqui... Eu estou meio atrasado... Desculpe, qual é o seu nome?

2 – Eu não sei...

1 – (Rindo.) Não sabe? Como assim?

2 – Na verdade, eu estou esperando você me dizer!

1 – Desculpe, mas acho que não entendi... Eu só estou querendo saber o seu nome... Eu estou à procura de uma pessoa...

2 – O que eu posso dizer é que eu não estou à procura de ninguém!

1 – Ok, mas o seu nome...?

2 – Como disse, eu não sei!

1 – (Rindo.) Você não sabe o seu nome?!

2 – Não! Na verdade eu estou dentro do teu sonho, portanto quem tem que dizer quem sou eu, é você!

1 – Você está dentro do meu sonho?

2 – Sim, por isso eu não sei quem sou!

1 – Bem, você deve estar brincando comigo... Eu não estou sonhando!

2 – Não está sonhando?

1 – Não! Eu estou aqui conversando com você!

2 – Mas quem me garante que você não está sonhando?

1 – Eu!

2 – Mas você tem certeza disso?

1 – Não, não tenho, mas...

2 – Então está sonhando!

1 – Não! Não estou! Eu parei aqui porque me perdi, estou à procura de uma pessoa que não conheço, por isso perguntei o seu nome!

2 – Se não conhece a pessoa, acho que encontrou!

1 – Quem?

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Questão de minutos | Carlos Renato Russo JunqueQuestão de minutos | Carlos Renato Russo Junque

2 – A pessoa que você estava procurando!

1 – Onde?

2 – Aqui na sua frente!

1 – Mas você ainda não me disse quem você é!

2 – Acho que eu sou a pessoa que você não conhece e estava procurando...

1 – Nossa! Que confuso! Afinal, qual é o seu nome? Se é que você tem um nome...

2 – Não sei, você ainda não me disse! (Inconformado.)

1 – Mas se o nome é seu, como eu vou saber? (Começando a se irritar.)

2 – Porque eu estou dentro do seu sonho e é você quem tem que me dizer qual é o meu nome!

1 – Mas, primeiro: eu não estou sonhando. Segundo: eu nunca te vi antes. Terceiro: eu não sei o seu nome!

2 – Primeiro: você está sonhando, sim! Segundo: foi você quem me colocou no seu sonho. Terceiro: estou esperando pra saber qual é o meu nome!

1 – E como eu vou saber qual é o seu nome?

2 – Pra que serve um nome?

1 – Bem, o nome de uma pessoa serve para dar singularidade a pessoa, para que ela se torne única e para as pessoas a chamarem!

2 – Então, estou esperando você me tornar uma pessoa única! Você é uma pessoa?

1 – (Rindo.) Acho que sim! Não pareço uma pessoa?

2 – Parecer, parecer, não parece não... Mas, voltando à história do nome, se o nome serve para as pessoas me chamarem, e se você é uma pessoa... Eu estou esperando!

1 – Esperando o quê meu amigo?

2 – A pessoa, você, me chamar de algum nome... Mas o importante é que já definimos um vínculo!

1 – Que vínculo?

2 – De amigo!

1 – Como assim?

2 – Não sei, foi você quem disse: “esperando o quê, meu amigo?”. Eu só aceitei.

1 – Como eu vou ser amigo de uma pessoa que nunca vi?!

2 – (Rindo.) Também não sei, foi você quem disse! Mas o importante é que agora somos amigos. (Aperta a mão do número 1.) Prazer.

1 – O prazer é todo meu!

2 – Bem, levando em consideração que você teve prazer em me conhecer, é porque você gostou de mim... Viu só como os relacionamentos são estabelecidos?

1 – (Inconformado.) Não, eu não gostei de você!

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2 – Não tem problema... Já estou percebendo que você é um tanto neurótico, numa hora diz “prazer”, logo em seguida fala: “eu não gostei de você!” É uma relação de amor e ódio!

1 – Que amor e ódio? Nem te conheço, meu rapaz!

2 – Bem, já definimos mais um item importante, agora eu sou um rapaz, e possuímos uma relação de amor e ódio.

1 – “Meu rapaz“ é jeito de falar, da mesma forma que poderia te chamar de “minha querida”.

2 – Já estamos entrando no cerne psicológico do meu Eu. Se posso ser minha querida pra você, ao mesmo tempo sou um rapaz, e se tudo isso está vindo da sua cabeça, logo há uma confusão sexual dentro de você!

1 – Espera aí, você está me chamando de...

2 – Gay! Viu só? É por isso que os sonhos são importantes, revelam coisas que estão bem lá no fundo... Coisas que nem nós sabemos!

1 – Tá querendo me deixar nervoso, é?!

2 – Ih, bichinha nervosa não, né?

1 – Não sou bichinha nem nervosa, sou um senhor e quero respeito!

2 – Não há problemas, senhor! Amigos respeitam amigos.

1 – Que bom! Então retire o que você disse!

2 – Não posso retirar, eu sou parte sua porque sou parte do seu sonho, quem te chamou de gay foi parte de você! E ficar bravo comigo é ficar bravo com você mesmo. Você não pode ficar estressado... Cuidado com o coração!

1 – Está me irritando!

2 – Mas é essa minha função?

1 – Se não é, está sendo!

2 – Mas um amigo irrita outro amigo?

1 – Mas quem disse que você é meu amigo?

2 – Você!

1 – Eu nunca fui seu amigo. Nem conheço você.

2 – Bem, estamos estabelecendo um outro aspecto, o de falsidade!

1 – Que falsidade?

2 – Se você havia me dito: “prazer” e “meu amigo” e já fomos apresentados um ao outro, e agora você está me dizendo que nem me conhece, logo, você é falso!

1 – Meu amigo, como eu posso ser falso com alguém que eu não sei nem o nome, nunca vi antes!?

2 – Então seus problemas são mais graves ainda... Se nunca me viu antes, e já se irritou comigo, e está sendo falso comigo, é porque você, além da confusão sexual, tem certa paranóia.

1 – Paranóia?

2 – É, paranóia. Sabe, mania de perseguição? De que todo mundo está contra você?

1 – Mas eu não estou contra ninguém!

Questão de minutos | Carlos Renato Russo JunqueQuestão de minutos | Carlos Renato Russo Junque

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2 – Ninguém. Estou feliz! Agora eu tenho um nome!

1 – Nome? Que nome?

2 – Ninguém!

1 – Mas eu não conheço ninguém que se chame: Ninguém.

2 – Bem, prazer novamente. Sou Ninguém!

1 – E se você é Ninguém, o que ainda está fazendo aqui?!

2 – Primeiro, me sinto magoado quando o Senhor fala assim comigo, sou Ninguém e mereço respeito. Segundo, o Senhor ainda não me falou...

1 – O que eu tenho que falar?

2 – O que eu estou fazendo aqui!

1 – Mas como eu vou saber o que está fazendo aqui?

2 – Ei! Lembra? O sonho é do senhor, esqueceu?!

1 – Se o sonho é meu, você entrou de intrometido.

2 – Se eu sou intrometido, e se intrometido é ser mal-educado, e se foi o senhor que me inventou, logo, o intrometido mal-educado é você, digo, o senhor!

1 – Como eu posso ser intrometido dentro do meu próprio sonho?

2 – Isso eu já não sei, o sonho é do senhor, mas o segundo passo o senhor já deu.1 – Que passo, meu filho?!

2 – Mas estamos indo muito bem nesse processo de descobertas! Nosso vínculo afetivo está indo de vento em poupa. É o seguinte, papai: embora nossa relação seja uma relação complicada entre pai e filho, talvez por responsabilidade sua que não sabe me educar, já que você é um intrometido mal-educado. O importante é que você assumiu que está sonhando!

1 – Sonhando?

2 – Sim! O que significa que você está em desdobramento astral!

1 – Desdobramento do quê?

2 – Pelo que estou percebendo, tem uma parte sua que é meio burra também! Desdobramento astral. Você está ganhando consciência que está sonhando...

1 – Essa coisa é você quem está dizendo!

2 – Sim, eu sou uma parte sua, ou ainda não entendeu?

1 – Hã... Sei... E que parte minha você é?

2 – É você quem define!

1 – (Rindo.) Então quero que você seja a minha parte burra que falou há pouco!

2 – Isso só está mostrando ainda mais como você é, e como você trata as pessoas com quem convive. Lida com todo mundo como se fossem uns burros. E você se enaltece com isso, né?

1 – (Sem graça.) Bem... Eu não quis dizer isso... Só estava brincando!2 – Outra característica sua: brincalhão. Mas, por vezes passa, por estúpido e grosseiro! Como chamar um filho seu de “burro”?

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1 – Mas eu nem tenho filhos!

2 – Nãããão... Eu não acredito... Se você não tem filho, eu sou o quê? Ou você acabou de me abortar?

1 – Abortar?

2 – Já percebi tudo! Você transou com uma mulher, não gostou, daí a confusão sexual, virou gay, bichinha, descobriu que ela estava grávida, pediu para abortar, se arrependeu do pedido, daí virou um neurótico paranóico, com mania de perseguição, achando que o filho que você matou está querendo voltar para cobrar o direito de vida que você não deu a ele!

1 – Nossa! Que confuso!

2 – Por isso que está sonhando! Para organizar seus pensamentos.

1 – Eu pensava que o sonho era algo que ia acontecer...

2 – Tolinho... Você achava que sonho era premonição?!

1 – Sim, tem gente que diz que sonha algo que irá acontecer, outros dizem que o sonho é a elaboração do dia anterior, outros dizem que é uma mensagem existencial, tem gente que acha que os espíritos vêm nos visitar em sonho... Você é um espírito?

2 – Não sei. Tenho cara de espírito?

1 – Só se for espírito de porco! (Gargalha.)

2 – Me senti ofendido!1 – Desculpe, não foi a minha intenção.

2 – Está perdoado!

1 – Você tem algo contra espíritos?

2 – Não. Só contra porcos.

1 – Por quê?

2 – Quem tem que dizer isso é você, afinal, eu sou sua parte burra, esqueceu?

1 – Ah, deve ser isso, é que, dos animais, prefiro o burro a porco! (Gargalha novamente.)

2 – Acabou de rir?

1 – Acabei... Será que quem está sonhando aqui não é você?

2 – Será?!

1 – Sim, afinal de contas, você não sabe nada a seu respeito, e quando dormimos não temos consciência, certo?

2 – Verdade, eu não havia parado pra pensar nisso. E como saber se sou eu quem está sonhando?

1 – Bem, se você levar um susto, talvez acorde!

2 – E você pode me assustar?

1 – De que jeito prefere ser assustado?

2 – Não sei, a idéia foi sua!

1 – Ah, já sei! Ouvi dizer que quando sonhamos a lei da física é totalmente diferente de quando estamos acordados, conseguimos voar nos sonhos, esticar parte do corpo como se fosse borracha, nos

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teletransportar... Tente fazer algo parecido!

(Surge a personagem número 3 e fica observando a cena.)

2 – Então, se eu desaparecer aqui na sua frente, não se preocupe, é porque eu estava sonhando. Vou tentar me teletransportar!

1 – Isso! Tente! (Como se meditando pra ajudar o amigo.) Suma... Suma... Suma...

2 – (Fazendo força, caras e bocas, como se estivesse querendo defecar. Depois de algum tempo.) É... Acho que não está dando muito certo.

1 – Sonho tem cheiro?

2 – Não sei, por quê?

1 – Porque estou chegando à conclusão que tudo isso não é sonho, não. Além de eu estar te vendo, estou sentindo muito bem a sua presença!

2 – Então vou tentar voar (Fica pulando.) Acho que também não está dando muito certo...

1 – Tente bater asas... Quem sabe você não consiga alçar voo?

2 – (Tentando bater os braços como se fossem asas.) É, acho que não está dando muito certo...

1 – Puxe o pescoço pra ver se estica!

2 – (Tentando puxar o pescoço.) Também não consigo...

1 – (Percebe a presença do número 3.) Espere um pouco, tem mais gente nesse nosso sonho! (Chama o número 3 para conversar.) Por favor, pode me ajudar?

3 – Claro! Pois não?

1 – Você está sonhando?

3 – Não. (Rindo.)

1 – Qual é o seu nome?

3 – Maria de Ninguém

2 – Ela é minha?

1 – (Falando para o número 2.) Não! Este é o nome dela!

2 – Mas Ninguém sou eu! Se ela é Maria de Ninguém, ela é minha!

1 – (Falando para o número 3.) Maria, vi que você estava observando o que estávamos fazendo, certo?

3 – Sim, achei vocês dois muito engraçados!

1 – Então, eu gostaria de saber qual a sua percepção de tudo que viu aqui!

3 – Na verdade, pensei que vocês eram dois loucos, ainda mais agora, me perguntando se eu estou sonhando...

2 – Então me deixe explicar, já que a senhorita é minha!

3 – Sua? Como assim? (Sem entender o que está acontecendo.)

2 – Prazer, meu nome é Ninguém, sou filho dele (Apontando o número 1).

3 – Prazer, Maria de Ninguém.

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2 – (Falando para o número 1.) Viu só? Maria de Ninguém!

3 – O que está acontecendo, então?

2 – Eu estava aqui, este senhor chegou até mim me perguntando quem eu era. Daí eu respondi que eu não sabia quem eu era porque estava dentro do sonho dele, e era ele quem tinha que me responder... Só que, depois de muita conversa, vi que há uma possibilidade de eu estar sonhando, e não ele. Entendeu?

3 – Nossa! Confuso essa história, né? Desculpe, é que eu estou um pouco atrasada, marquei um encontro com uma pessoa que eu não sei quem é! Estou procurando... Eu acabei perdendo hora, dormi demais...

1 – Será que quem você está procurando não sou eu?

3 – Na verdade, eu não sei... Eu não conheço... Estou à procura de um senhor.

2 – Sim! É ele mesmo, ele é o Senhor, meu pai, ele é gay viu? Mas é gente boa... (Vira para o número 1.) Aí! Depois não diz que não sou seu amigo! Estou te ajudando a ganhar a gata!

3 – Bem, se é o senhor, que bom! Desculpe pela demora! Se o senhor não se importar, pode me contar essa história do sonho?

1 – Bem, eu acho que não estou sonhando... Porque estava à procura de alguém... E pelo jeito encontrei! (Virando-se para o número 2.) Acho que não se trata de sonho, e sim de loucura. Você é um louco que apareceu na minha frente! Agora pode me deixar em paz?

2 – (Concluindo.) Bem, quem disse que os sonhos não são loucos? Ainda acho que pode ser um sonho!

3 – Bem, pelo jeito a discussão é: de quem, afinal, é este sonho? Certo?

1 e 2 – (Juntos.) Exatamente isso!

3 – Outro dia eu estava lendo um livro sobre este assunto, e estava escrito que às vezes nós sonhamos algo e, por vezes, nem aparecemos no sonho, ou somos aquele que menos aparece no sonho...

2 – Quem menos apareceu no sonho até agora foi a senhorita Maria minha!

3 – Sim, de fato, eu cheguei agora, mas eu não estou sonhando!

2 – Tem certeza?

3 – Não, não tenho... Sabe, agora eu estou pensando em tudo isso... Hoje eu coloquei o despertador pra me acordar, ele tocou e eu acordei, mas estava muito cansada, daí voltei a dormir, mas ele volta a tocar depois de 10 minutos... E não me lembro de ter acordado pra vir até aqui! Bem, mas se eu cheguei até aqui, é porque eu acordei, certo?

2 – Errado! Acho que você não está aqui, e ainda está dormindo... Sabe quando a gente acorda e depois tem aqueles 10 minutinhos que a gente cochila? Acho que você está dentro dos 10 minutinhos!

1 – (Dirigindo-se ao número 2.) Será que nós estamos dentro do sonho dela? (Virando e falando para o número 3.) Para que horas estava marcado o encontro?

3 – Para as 9h15min.

2 – E para que horas você colocou o despertador?

3 – Para as 8 horas

1 – E que horas são agora?

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Tempo PedidoPaulo Murilo Abreu Fonseca

Cena 1

Cenário vazio.

Cidadãos de uma cidade grande andam de um lado para outro meio apressados. De repente param, olham para os relógios em seus pulsos. Olham de um lado para o outro, desconfiados que estão sendo vigiados. Continuam a andar. Este movimento se repete até o final do OFF.

OFF 1 – Onde você está? Por favor, não fale, é melhor permanecer no anonimato.

OFF 2 – Você viu os olhos do sujeito de camisa azul clara? Ele parou na esquina por três segundos a mais do que de costume. É um suspeito e tanto.

OFF 3 – (Grito.) Pare! Se voltar de novo sofrerá uma advertência. Tempo perdido é motivo para ser penalizado. Repetir é um privilégio permitido apenas para as altas patentes.

OFF1 – O que eu posso fazer se não conseguir acertar de primeira?

OFF2 – Tome cuidado, depois que abaixou a lei de segurança nacional, qualquer relance sem explicação é motivo de punição.

OFF3 – Fique tranquilo, o meu “contador” está afiado. Consigo ter a nítida exatidão de quanto tempo eu tenho de folga.

OFF1 – Onde será que arrumo um desses?

3 – (Olhando para o relógio.) São 8h10min. (Ouve-se um barulho de despertador tocando. A luz geral é apagada. Logo em seguida, a luz é acesa. Número 3 está esperando alguém, impaciente, quando surge o número 1).

3 – Oi!

1 – Oi!

3 – Posso te perguntar uma coisa?

1 – Claro!

3 – Bem... Eu estava andando por aqui... Eu estou meio atrasada... Desculpe, qual é o seu nome?

(Black-out)

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OFF3 – Impossível. Foi repassado apenas para as autoridades específicas.(Black-out.)

Cena 2Foco de luz em um homem sentado. Ele está uniformizado como segurança.

Homem 1 – Quero comunicar que os segundos excedidos no trabalho foram simplesmente por zelar pela segurança. Fiz de acordo com o que me foi recomendado, segui passo a passo as instruções, mas na prática, infelizmente, não aconteceu conforme o combinado. Queria me desculpar pelos 31 segundos a mais que ultrapassei do tempo. Afirmo que nunca mais se repetirá esta falha, mesmo sabendo que a prática é traiçoeira com a teoria. Independente de doença ou problemas familiares, estou ciente de que primeiro vem a obrigação. Todo o episódio foi pura distração; apesar de humano, foi um erro bastante grave para a minha condição. Fiquem tranquilos que farei o relatório, preenchendo os mínimos detalhes do que aconteceu, segundo por segundo dos acontecimentos. A partir de agora estou mais atento às recomendações, o tempo só pode ser desperdiçado em caso de uma ameaça significativa, não qualquer uma, mas que ameace a segurança do Estado Nacional.

Cena 3Rapaz de 20 anos, vestindo roupas novas e com perfume espera namorada. É um sujeito da periferia que trabalha em uma fábrica de calçados. A namorada, 18 anos, veste roupa de festa; trabalha em uma loja de bijuterias. Ela chega apressada, toda esbaforida. Namorada beija o rapaz no rosto, ele não é nada receptivo. Ela está com uma rosa na mão.

Namorada – Oi, meu amor, que saudades. (Observando a roupa.) Olha como está bonito. Nada como uma data especial.

Rapaz – É, eu sei..... Estou bonito mesmo.

Namorada – Ihh, pelo visto já está convencido.

Rapaz – E este atraso!!! Não poderia ter chegado mais cedo?

Namorada – É verdade. Fiz o possível para chegar o quanto antes, mas não deu. Você sabe, um trânsito infernal. O meu chefe agora nos vigia com o relógio na mão.

Rapaz – Você acha certo eu esperar 12 min e 36 segundos? Eu perdi 3 minutos do trabalho para chegar no horário combinado. Como você faz uma defesa como está? Assim o namoro não vai para frente.

Namorada – Desculpa. Assumo que abusei no atraso.

Rapaz – Precisamos ter compromisso.

Namorada – Quer dizer que está insatisfeito com o nosso contrato de namoro?

Rapaz – Precisa ser revisto; se não me engano, é a segunda vez que você se atrasa em seis meses.

Namorada – O primeiro foi por causa da sua mãe, você lembra? Eu a esperava porque precisava recontar o número de convidados. Fiquei lá, igual a uma palhaça, sem poder fazer nada. Agora você quer me cobrar.

Rapaz – Acordo é acordo. Você fez o acordo comigo e não com a minha mãe.

Namorada – Você tem o direito de mudar?

Rapaz – Mudar o quê?

Namorada – O contrato, se quiser, pode mudar. Mas daí eu não tô nem aí para a sua mãe.

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Rapaz – Tenho o direito, mas pelo o que entendo você precisa concordar, senão não tem validade.

Namorada – Desculpa querido, eu entendo. Você sabe que eu, de salto, ando menos passos por minuto. (Pausa.) Se quiser, posso te pagar esses 3 minutos que você perdeu. Hoje aconteceu uma coisa tão boa para mim. Consegui um trabalho extra. Vou contar quantos passos um bebê de um ano e meio dá por dia. Não é o máximo?

Rapaz – Serve como treinamento. Dá para ganhar uns trocados. Mas, me diga: Você vai ganhar por passos ou por hora?

Namorada – Por minutos. Assim a patroa tem mais controle do meu serviço.

Rapaz – Independente da sua vontade, o meu chefe não engole fácil abuso com o horário. Quando eu estava saindo, todos me olharam de lado. Parecia que eu estava cometendo uma infração. E, olha, todos sabiam que isso era por causa do seu aniversário. O mais tímido me disse que data de aniversário se comemora nos finais de semana, quando o tempo é contado por minutos.

Namorada – O que importa é que você veio. Você entendeu como esta data é importante para mim. (Pausa.) Agora vamos jantar.

Rapaz – Vamos. Mas quero te pedir um favor. É possível que seja rápido. Amanhã tenho que acordar mais cedo do que de costume. Preciso chegar antes do chefe. É para diminuir a pressão.

Namorada – Tem algum perigo de ser demitido?

Rapaz – Tem perigo de eu ser chamado para depor. A justificativa de aniversário é irrelevante.

Namorada – Olha o que eu trouxe para você. (Entrega uma rosa.) Pensei que você não teria tempo para comprar nada, então achei melhor me garantir em presente.

Rapaz – Muita atenção da sua parte. Nesse sentido você está cumprindo direitinho o nosso contrato. Caso uma das partes esteja sobrecarregada por motivo de tempo, é necessário a parte mais privilegiada tomar partido e cumprir as obrigações do outro.

Namorada – Uma rosa fez toda a diferença na nossa relação. Que dia especial hoje.

Rapaz – Então o presente está entregue. Agora vamos.

Cena 4Palco vazio. Durante esta cena em pequenos focos, caem do alto pequenos fios de areia até o chão. Percebe-se que, com o tempo, a areia acumulada forma pequenos morros. Tanto A1 quanto A2 são dos serviços especiais de controles temporais, responsáveis por reclamações e sugestões em relação ao tempo.

A1 – Alguma novidade?

A2 – Exatamente como é exigido. As marcações estão conforme o padrão. Os pedestres passam sem alarde. Todos os movimentos são muito bem cronometrados pelo computador.

A1 – Eu não disse que tudo não passava por uma questão de disciplina? Eu disse, o efeito seria imediato. No começo, haveria resistência por parte dos corpos, mas, depois de acostumados, eles acham fundamental, dá consistência à organização social.

A2 – Você é um gênio. E tem resistentes que dizem que é controle.

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A1 – Quem fala isso são os comerciantes, os comerciantes do sexo. Gente que quer lucrar em cima da bagunça dos outros.

A2 – Por acaso já há planos para colocar o padrão em outras áreas?

A1 – Evidente que sim. A questão é estudada pelo alto comando. Eles apenas temem que, com o tempo, o padrão se desgaste, torne-se um retrocesso à realidade.

A2 – Com os nossos computadores, podemos atualizá-los. Não podemos perder esta chance por causa de um detalhe tão pequeno assim. Está nas nossas mãos ter o controle do patrão em todo o Estado.

A1 – Calma, camarada... O negócio é grande, não é porque uma meia dúzia aceitou o monitoramento que tudo mundo vai topar a parada.

A2 – Mexemos nossos esquemas com o esquadrão do medo, assim enquadramos todos a receberem a ordem.

A1 – Uma ótima oportunidade. (Pausa.) Agora é melhor eu desligar, senão avanço na quantidade de palavras que posso falar por dia. E ainda não passou nem 3/5 do dia.

A2 – Continuemos a vistoria.

Cena 5Mulher gorda, roupa branca, cabelos penteados.

Mulher – Faço parte da comissão de enumeração de pessoas que tem um tempo de sobra. É uma comissão do Governo Federal. Cargo importante no controle de verbas do Governo. (Pausa.) Ultimamente, o trabalho está pesado, a eficiência é tanta por parte dos funcionários que quase todos cumprem com suas obrigações antes

mesmo do tempo exigido. Por um lado isso é bom, eu me garanto no emprego por mais tempo; por outro, preciso fazer horas extras, sem discussão. Imagina se todo mundo estivesse ocupado, eu faria o quê? (Pausa.) Eu me formei enfermeira, trabalhei por anos em um hospital particular, até acharam melhor colocar aquelas sucatas ambulantes no meu lugar. Fui demitida. O que eu posso fazer? Agora cuido de pessoas junto com os números. Daqui a pouco, vem o comandante pegar os dados coletados por mim. O que eu queria saber é se esses números servem para alguma coisa. Desconfio que apenas sirvam para estatísticas, ou melhor, para eu ter um emprego justo. (Sujeito aparece ao fundo. Mulher olha para ele e começa descrevê-lo.)

Mulher – Ele é um sujeito sem escrúpulos, não faz questão de saber o meu nome. Eu já disse um milhão de vezes, mas ele faz questão de esquecer. Uma vez eu perguntei: tenho algum problema que te incomoda? Ele não respondeu; como ele é chefe, tem este direito. Não seria tão estranho, ele se importa apenas com os números. Aliás, nem aos números ele realmente dá importância. Ele quer saber se eu estou sabendo exatamente como vai a quantidade. Na verdade, acho que ele não gosta de mim porque sou gorda.

Sujeito – Mentira. Ela quer justificar a minha cara ruim, e como não sabe nada além de contar, tenta adivinhar o meu mau humor. Se querem saber, não interessa, faz parte da minha propriedade particular. Se tenho alguma vantagem em ser chefe, julgo ser esta a primeira. Ter evidentes privilégios privados. Isso inclui uma privada. Ela acha que não gosto da sua aparência. Na verdade, desconfio que ela burla os números do tempo livre. Pelos seus largos, pelos seus braços sempre em movimento, ela é uma típica suspeita. Ela tem um perfil, já exagera na hora de comer, porque não aumentaria algo que se relaciona com medidas.

Cena 6Quatro senhores em volta de uma mesa jogam pôquer, fumam charutos e bebem uísque. A luz incide apenas sobre a mesa. Os senhores têm

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mais de 60 anos, estão bem vestidos. Acima da mesa está o foco de luz. Do lado oposto onde está a mesa, há uma placa pregada no teto, por cordas, com os seguintes dizeres: Prato do dia – A confiança no tempo.

Senhor 1 – Você acha que eu sou um palhaço?

Senhor 2 – Não sei, mas cara você já tem? (Todos riem.)

Senhor 1 – Acha que suas piadinhas vão diminuir a sua incompetência no jogo?

Senhor 3 – Pode ter certeza de que do jogo ele já desistiu. Ele continua porque não sabe o que fazer em casa.

Senhor 4 – Vamos parar de bagunça. Senão querem levar a sério o jogo, é melhor assistirmos televisão. (Pausa.) Por acaso já pensaram na decisão da reunião?

Senhor 2 – Nada mais natural que adiarmos para a próxima sessão.

Senhor 3 – É a quinta vez este mês. Ninguém acredita mais nas nossas desculpas.

Senhor 1 – É para falar sobre o prato do dia?

Senhor 4 – Exatamente.

Senhor 3 – Esse negócio do tempo foi importante, mas não teve muita reclamação? Ninguém estava acostumando a contar, e da noite para o dia a situação mudou completamente.

Senhor 1 – E os lucros? Como vamos de lucros?

Senhor 4 – Estes caminham a todo vapor, crescem a passos galopantes.

O tempo realmente é dinheiro. Finalmente, descobrimos uma maneira de ter maior controle sobre os roubos.

Senhor 2 – (Com gargalhadas.) Agora não dá para falar em prato do dia, já que não trocamos de prato há mais de mês. (Todos desconsideram o comentário.)

Senhor 1 – Então, não vejo motivo para mudar. Para que as mudanças, se os negócios estão tinindo de bom? Como é mesmo aquele ditado.... em time que está ganhando não se mexe.

Senhor 4 – Ouvi outro dia muitas reclamações e nada agradáveis. Principalmente dos artistas, que reclamaram que a produção deles está em baixa e que é por causa do tempo. O tempo vai contra as suas concepções.

Senhor 3 – Isso é mentira. É desculpa de incompetentes. Eles não estudam, não tem inspiração e querem pôr a culpa no tempo. Todos os empregados cumprem com suas obrigações do tempo estipulado. Agora, por que os artistas são diferentes dos outros?

Senhor 4 – Eles querem um aumento da verba para a categoria, por isso reclamam do tempo. A questão é outra. Aliás, acho que artista tem que ser tratado igual ao assunto dos discos voadores.

Senhor 2 – Eles são mais suscetíveis à decadência depois de perceberem o nosso cronograma. (Com uma boa risada.) São incapazes de dormirem menos do que oito horas.

Senhor 1 – (Rindo.) Eles com certeza voam mais longe que as espaçonaves.

Senhor 4 – Não acham que poderíamos mudar os critérios de acordo com a categoria? Para os artistas, em vez de enquadrá-los na lei do tempo, poderíamos enquadrá-los na lei da fome. Eles teriam uma disposição de comida regrada.

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Senhor 1 – Discordo. Quando se dá liberdade para alguns, todas as outras categorias se sentem no direito de mudança também. Daí, vira uma bagunça. Perderemos o controle.Senhor 3 – Tem toda a razão. Se for para mudar, que mudemos para todos. Sem privilégios.

Senhor 1 – Categorias de suma importância, que zelam pelo futuro da nação, devem gozar de certos privilégios, como é o nosso caso. Os demais precisam, por questão de ordem, estar no limite.

Senhor 2 – Eles são fundamentalistas, afinal de contas? (OFF: coaxo de sapo. Aos poucos, cresce em intensidade.)

Senhor 4 – O que é isso?

Senhor 2 – Parece com o barulho que o sapo faz.

Senhor 3 – E agora esses coaxos de sapo. O que é isso?

Senhor 2 – Deve ser uma manifestação artística.

Senhor 1 – Não pedir para fechar a sala. Trata-se de uma reunião.

Senhor 3 – Não disse que era necessária uma coerção contra eles? Se dermos espaço, eles invertem a situação. Começam a comandar o país.

Senhor 2 – Eles não têm cara para tal pretensão.

Senhor 4 – Os que não têm cara são os mais perigosos.

Senhor 3 – Que horas são? (Todos olham para o pulso a procura de um relógio, mas ninguém está com um.)

Senhor 1 – Eu pedi para que todos os relógios fossem fiscalizados. Esta

sala ainda tem uma permissão do horário livre. É uma área de segurança nacional. (Continua o coaxo dos sapos. O senhor 2 arrota.)

Senhor 2 – Me desculpem, mas por um momento me senti muito livre e não consegui me segurar. (A mulher gorda da Cena 5 corre no palco atrás de um sapo. O sapo é uma pessoa vestida com a fantasia do animal. Depois de dar duas voltas no palco e não alcançar o bicho, ela para e dá uma explicação aos senhores.)

Mulher – Desculpem a intromissão. Algum engraçadinho colocou um sapo nos nossos registros e sobrou para mim, pegá-lo. Ele é inofensivo, mas todos têm medo. Podem continuar a reunião. Prometo ter mais controle de quem está próximo dos senhores.

Senhor 1 – Espero que os senhores mantenham sigilo sobre os nossos privilégios. Por mais que tenhamos autoridade de decidir o que é permitido e o que é proibido em nosso território, é bom não dar motivo para eles entrarem em conflito. Alguém vai apostar? (Todos passam a vez.)

Senhor 4 – E qual será o prato do dia? Alguém já tem uma sugestão? Hoje temos que dar alguma satisfação. Enrolamos demais com o discurso que as mudanças serão feitas quando necessárias.

Senhor 3 – Já faz um tempo que adotamos a proibição do tempo livre. Pelo visto, surtiu efeito, a arrecadação nunca foi tanta.

Senhor 4 – Sugiro o controle na venda de gasolina. Temos que pensar no meio ambiente.

Senhor 3 – Vamos atender às crianças, estamos em outubro, é um bom apelo para chamar a atenção da mídia.

Senhor 1 – Tenho uma idéia melhor. Vamos restringir o espaço ocupado pelas pessoas. Assim, podemos em uma tacada resolver dois problemas.

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Primeiramente, afirmamos que os espaços estão diminuindo, a população está aumentando e a consciência do espaço nunca foi feita. Então, começamos a cobrar uma taxa daqueles que abusam do espaço ocupado na cidade. Coisa muita simples. Por exemplo, quem usa o carro com apenas uma pessoa deve pagar mais imposto.

Senhor 3 – Tenho uma dica boa também. Empresas instaladas no centro da cidade têm que pagar mais impostos.

Senhor 1 – Exato. E o dinheiro confiscado deve ser investido na educação infantil.

Senhor 4 – A única questão a que me oponho é que as penalidades apenas sobrecarregam os mais ricos. E os pobres, qual seria a contribuição deles?

Senhor 2 – Ninguém quer saber de pobre, não. Será que isso pega?

Senhor 1 – Com certeza. São assuntos que estão estampados em tudo quanto é jornal e revista. Agora, sobre os pobres. O que podemos impor?

Senhor 4 – Se continuarmos com a repressão contra os camelôs, já está de bom tamanho. O tamanho das casas construídas pela Cohab também poderia ser reduzido, mas é quase uma mixaria a quantidade de casas, que faria pouca diferença pelo tamanho do trabalho.

Senhor 1 – Agora discordo. É para ter situação de igualdade. Daqui a pouco ouviremos reclamações do outro lado. Gente rica, o que sabe é reclamar.

Senhor 3 – Uma alternativa é diminuir os espaços nas ruas, nos ônibus, nos estádios de futebol, nas praças públicas, nos parques.

Senhor 1 – O que acham?

Senhor 2 – No final das contas, haverá uma alta aceitação.

Senhor 4 – A população é bem receptiva, só precisamos de uma desculpa. Podemos dizer que estamos em estado de emergência, o terrorismo, o aquecimento global, a violência são ótimos motivos para nos posicionarmos.

Senhor 1 – Proponho uma votação. Quem não aceita a minha proposta? A proposta de “proteja os espaços antes que você fique sem o seu”.

Senhor 4 – Seria ótimo.

Senhor 1 – Alguém é contra? (O senhor 4 e senhor 2 levantam a mão.)

Senhor 1 – Por que a objeção, senhores?

Senhor 2 – A piada é sem graça. Não tem novidade limitar os espaços. Desde sempre disputamos territórios. Precisamos algo envolvente, que traga impacto. Sugiro que façamos uma pesquisa, que traga uma novidade para o controle.

Senhor 4 – O negócio é aquecimento global, ninguém vai dar notícia sobre a sua proposta, por mais que ela seja brilhante e bem-intencionada. Aquecimento global é diferente, assunto da moda. (Pausa.) Também apoio uma pesquisa para sabermos com quem estamos lidando.

Senhor 3 – Então, vamos recorrer à pesquisa.

Senhor 1 – Zape! (Zape aparece. Sujeito magro, com bigodes, um capanga bem vagabundo.)

Zape – Pois não.

Senhor 1 – Por favor, convoque uma pesquisa. Queremos saber o que a população acha dos espaços ocupados da cidade. Queremos ter um relatório completo do que se passa com as áreas de ocupação, desde os mais ricos até os sem-teto. Certo? (Zape confirma com a cabeça.)

Tempo perdido | Paulo Murilo Abreu FonsecaTempo perdido | Paulo Murilo Abreu Fonseca

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Senhor 1 – Alguma dúvida?

Zape – Tem alguma previsão para receber o relatório?Senhor 1 – Eu já disse, Zape, aqui não se pergunta sobre o tempo. Esta é uma questão exterior. Mas já que perguntou, exijo que os trabalhos comecem imediatamente.

Senhor 3 – Enquanto isso, eu apoio que a restrição do tempo continue.

Senhor 2 – Ainda temos muitos motivos para as nossas risadas.

Senhor 1 – O importante é que o negócio caminha com estabilidade.

Senhor 4 – Agora, resolvida a questão, podemos voltar ao jogo.

Cena 7As pessoas andam apertadas com os corpos muito colados um ao outro. Sentem que estão sendo vigiadas. O movimento forma uma espécie de coreografia. Temem que algo possa acontecer. Os indivíduos desconfiam um dos outros. Um apito emite um barulho ensurdecedor.

(Black-out.)

1º Lugar

360 do AvessoEduardo Brito de Sousa

2º Lugar

Espelhos ParalelosPedro Simões Lopes

3º Lugar

A doaçãoRogério Guarapiran

2008

Tempo perdido | Paulo Murilo Abreu Fonseca

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360 do avessoEduardo Brito de Sousa

Luz

Desleixe e Deusdará encontram-se amarrados costa a costa. Estão amarrados da seguinte forma: perna com perna, braço com braço e também amarrados pelo tórax como se fosse um só corpo. As cabeças ficam livres.

Desleixe – O outro lado é o outro lado.

Deusdará – Oito. (Se movimenta pra esquerda. Apenas um passo e para.)

Desleixe – Isso! Olha só! Chegamos aqui depois de tanto. É o quadrado do quadro! O redondo da roda! É o reto da reta e o curvo da curva! (Um tempo.) Quando eu era pequeno, o boi correu atrás de mim. (Um tempo.) O boi tinha o mar pendurado no pescoço. No começo não parecia, mas era mar. Depois eu vi que era. O boi correu atrás de mim. (Um tempo.) Não! O boi correu pra mim! E eu vi o mar pendurado no pescoço do boi. O mar foi ficando agitado... Agitado! Furioso. Eu queria tanto entrar no mar! O mar correu atrás de mim, pendurado no pescoço do boi. Lá vem, lá vem cada vez mais agitado, cada vez mais furioso e quando ele chegou bem pertinho eu mergulhei! (Fica introspectivo.). O boi correu atrás de mim! (Para Deusdará.) Fala 33!

Deusdará – Três três três!

Desleixe – Sua doença é realmente incurável! Talvez o ar daqui te cure. Esquece! É incurável. Eu nunca tive uma doença incurável! Eu já te contei que nunca tive uma doença incurável?

Deusdará – Um um!

Desleixe – Pois eu te conto agora. Eu nunca tive uma doença incurável! Isso é isso não é o descambar da descida! Isso não é isso, é o arribar da subida! Isso não é é! Isso é não é!

Deusdará – Três três za. Oitenta e nove jo. Cento e dois re!

Desleixe – Eu falo muito bem 33. 33! 33! 33. 33? 33... Desse jeito eu não morro é nunca. Eu não nunca morro. Morro não nunca eu... Nunca não! Isso é quase o breu do escuro. Quase que é o branco do Cândido. Praticamente o que pratica a mente.

Deusdará – Setenta? Nove. Nove setenta. Sessenta e um... Dois re?

Desleixe – Sinto. Sinto sim. Sinto o não sentir! Eu des-sinto. Eu re-sinto. Mas sentir, não sinto. Sinto a dormência. Eu dormêncio o sentir... O que é que eu fiz? O que é que eu não fiz? Não mereço nem uma doençazinha incurável. Isso é um cu batendo palma em cima do pé de manga! Isso é o que seria o é, se o é não fosse é. É isso que é não ser o que seria o é não é o é fosse. Eu sou a reticência!... (Silêncio. Desleixe deixa cair sua cabeça.)

Deusdará – Dois mil? (Um tempo.) Dois mil.

Desleixe – Quando muito um cochilo de 10 a 15, depois acordo. Dormir mesmo seria o meio dia do fiat lux! O lobisomiar numa noite de lua. É a verdadeira pomba de banda que é a pomba verdadeira, mas é de banda.

(Silêncio.)

Deusdará – Um?

Desleixe – Fala 33!

Deusdará – Três três três!

360 do avesso | Eduardo Brito de Sousa

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Desleixe – Não passa de hoje! Viva! Quer dizer: morra! (Um tempo.) Só vai me restar a ruída que o rato deu no queijo. Preciso aprender a morrer. (Um tempo.) Fala trinta e três!

Deusdará – Três três três!

Desleixe – Como ele consegue isso? Isso é muito difícil. É pior que rezar o creio em Deus pai de ponta-cabeça. Pior que o guinfo que deu a mafagafa quando o mafagafo mafagafiando acordou todos os mafagafinhos que não sabiam guinfar, mas guinfaram e guinfando seguem sem parar. (Um tempo.) Maria bate latas que até lateja as latas que Maria bate! (Silêncio.) Você acha que tô ficando...

Deusdará – Treze!

Desleixe – É. Trezo, mas não transo. Nunca transei com 13. (Silêncio.) 33!

Deusdará – Três três três!

Desleixe – Tá anoitece não anoitece e ainda não chegamos lá. Lá! Lá! Lalá! Lalalaiá! Lá! Lá! Laralaralaralaralaralalalaiá! Resta muito?

Deusdará – Trezentos e sessenta e cinco.

Desleixe – Não vai dar tempo. Por que é que temos que chegar lá? Se lá não der pra se chegar? Aqui! Aqui não. Lá! Sempre lá. Lá! Nada de cá. Cá! Cá! Cacacacá! Cacacaracacá! Caracaracaracaracacaracacá!

Deusdará – Dez vá meio! Treze! (Rindo.) Um um um! (Silêncio.) Uns mais, oitos menos. Su mil. Vinte três três vez. Su mil. Su mil três três uma. (Um tempo.) Mais mais mais. Mais. (Um tempo.) Mais mais menos. Menos. (Um tempo.) Menos mais menos. Mais. (Um tempo.) Mais zero menos!

Desleixe – Vamos para lá. (Deusdará dá um passo para frente.) Pra lá é pra

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lá. Pra lá não é pra lá é pra lá. (Deusdará dá um passo para direita.) Pra lá não é pra lá nem pra lá, pra lá é pra lá. (Deusdará dá um passo para esquerda.) Pra lá não é pra lá nem pra lá nem é pra lá que pra lá é. Pra lá é pra lá. É pra lá que pra lá é. Nada de cá e de acolá, nada de ali, nada de aqui é lá. Lá só é lá! Lá! Lá! Lalá! Lalalaiá! (Deusdará da um passo para trás. Eles estão no mesmo lugar de início.) Chegamos aqui. Aqui! Não é lá, mas também não é ali. Por hora... (Silêncio.) O que é o que é? Que não é que não é? (Silêncio. Repetindo em disparada.) Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! Ninguém se atreve a se atrever! (Um tempo.) Ninguém se atreve a ver! (Cada um pega um espelhinho “retro-visor” em seus bolsos. Se procuram, se encontram, se olham por um tempo.) Olhos?

Deusdará – Dois!

Desleixe – Boca?

Deusdará – Maior!

Desleixe – Dentes?

Deusdará – Três três um!

Desleixe – Trinta e um?

Deusdará – E meio!

Desleixe – Nariz?

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Deusdará – Menor!

Desleixe – Orelhas?

Deusdará – Um, um!

Desleixe – Cara?

Deusdará – Quadrado!

Desleixe – Anos? (Ele não responde.) Anos? (Ele não responde. Duro.) Idade?

Deusdará – Mais!

Desleixe – Mais! (Um tempo.) Mais! (Se olham por mais um tempo.) Deixa eu ver... Abre a boca.

Deusdará – (Abrindo a boca.) Um.

Desleixe – Mostra a língua.

Deusdará – (Mostrando.) Um-na!

Desleixe – Arregala os olhos. (Ele arregala.) Fala trinta e três.

Deusdará – (Sem desmanchar a careta.) Três três três!

Desleixe – Pulso?

Deusdará – (Sem desmanchar a careta.) Dois!

Desleixe – Coração?

Deusdará – (Sem desmanchar a careta.) Um!

Desleixe – Batimentos?

Deusdará – (Desmancha a careta, ouve por um instante. Como quem está ouvindo o próprio coração. Refaz a careta.) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete... (Um tempo.) Zeeeeeeeeeeeeeeeeeeee... (Um tempo.) ...roooooooooooooooooooooooo... (Desleixe está morto. Deusdará fica um tempo em silêncio, depois dá um volta pelo palco tentando reanimá-lo, não acontece nada. Deusdará tira as amarras, mas não consegue andar, cai no chão. Desleixe fica de pé duro e teso.)

(Cai o pano.)

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Espelhos paralelosPedro Simões Lopes

Monólogo em Um Ato.

Personagem:- Homem.

“Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro, de madrugada, em busca de uma dose violenta de qualquer coisa.”

(Um homem sentado no centro do palco. Um jogo de espelhos cria a ilusão da multiplicação infinita da cena.)

Homem – Eu corria pelas beiradas. Sempre encostado na fachada das casas, nunca no meio da calçada. Do lado escuro pra que ninguém notasse e pra que eu não notasse que corria. Mas não tem nada de mal nisso... Me imergiram numa neblina que nada revelava. Desde quando eu consigo me lembrar... Me colocaram pra morar numa casa sem janelas... Mas não tem nada de mal nisso... Me disseram que bastava eu ligar o computador e abrir outras mil janelas pra conhecer o mundo. Então eu fui conhecendo o mundo que eles construíram pra mim. Eles me contaram uma porção de coisas sobre ele. Foram bons comigo porque eu estava imerso na neblina e não conseguia ver. Quando cresci tive que correr. Me disseram que se eu corresse muito poderia ser livre! Então eu fazia tudo correndo. Não parava de correr um minuto atrás da liberdade que eles modelaram e me ofereceram de prêmio no final. Foi duro porque não dava pra ver onde estava o final. E também porque, de tanto correr, já não dava mais pra ver o começo. E também porque, de tanto correr, já não dava nem pra ver onde eu estava. Onde eu estava já tinha passado... Me obrigaram a ler notícias velhas de anteontem, me fizeram tomar cafeína, inalar nicotina,

trabalhar dezoito horas por dia e voltar pra casa para trabalhar dezoito horas por dia. Diminuíram as minhas horas de sono e de sonho. Foi duro, mas eles foram bons comigo! As horas de sonho que sobraram eles deixaram bem organizadinho! Me fizeram sonhar com loiras e cerveja das 2:00 às 2:37, com carros velozes das 2:38 às 3:20, com antisséptico bucal das 3:21 às 4:13, com uma cama que me faria dormir das 4:14 às 4:53, com pessoas que eu deveria ser das 4:54 às 6:00 e aí o despertador tocava. E eu me sentia novo e revigorado! Até trocaram a água pelo Gatorade que era absorvido pelo organismo trinta por cento mais rápido que a própria água, tudo pra eu não ficar tão cansado e pra que eu quisesse correr mais rápido. Transformaram tudo em números! Números exatos para ficar mais fácil de ler! Pra simplificar! Me mediram em reais, em pontos, em gigabytes, em quilos a mais. Tudo dava pra somar, multiplicar, dividir ou subtrair. O que não dava eles limavam e excluíam pra não dar trabalho. Pra simplificar! Me deram uns vales para eu trocar por uma porção de coisas. Assim eu ia trocando... Eles foram tão bons comigo... Não me deixavam desanimar... Eu pegava meus vales e ia trocando! Troquei por uma casa maior, troquei por roupas lindas, troquei por celular, por caviar, troquei por armas, por mulheres, por entretenimento, troquei por comida, porque eu tinha que comer, troquei por energia, porque eu tinha que abrir as janelas e ver como andava o mundo que eles construíram pra mim, troquei por educação, porque eu tinha que aprender uma porção de truques, troquei pra manter minha saúde em dia, porque eu tinha que continuar correndo... Até troquei por coisas que depois de um tempo eu não sabia por que tinha trocado. Imagina que um dia eu troquei meus vales por uma lata de spray vermelho! É! Esses sprays pra grafitar muros, sabe? Que caralho eu ia fazer com uma lata de spray vermelho pra grafitar muros, eu não fazia idéia! Eu nunca fui desenhista e nunca participei de nenhuma gangue de grafiteiros de muros! Hahaha! Me achei esquisito... Mas não tem nada de mal nisso! Eu não me importei... Eles foram muito bons comigo! Nada podia dar errado porque tinham programado tudo pra mim. Tudo! Meus estudos, minha faculdade, minha profissão, minha carreira, minha esposa, meus filhos, meu jardim. Tudo pra que eu não precisasse pensar e me ocupasse só em continuar correndo... Só... Me fizeram ficar em casa porque não era seguro

Espelhos paralelos | Pedro Simões Lopes

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sair. Me fizeram trepar pela internet porque não era seguro entrar. Me deixaram obediente. E eu obedecia e tentava não me aborrecer por ter que obedecer. Em troca me deixaram um pouquinho de desejo, um pouquinho de esperança. Só um pouquinho. Mas um dia aconteceu uma coisa estranha. Estranha e sem explicação! Sem que nem por que! Sem mais nem menos! Naquele tempo eu ainda estava em operação... Naquele tempo eu ainda servia... Eu me lembro de estar olhando para as janelas, todas abertas ao mesmo tempo. Eu me lembro de estar jogando Mortal Combat com um amiguinho do Vietnã que eu não conhecia e que eu desligava e ligava a hora que quisesse para que ele não me atrapalhasse quando eu estivesse correndo... De repente... Sem que nem porque... As janelas foram se fechando uma a uma... Uma a uma se apagando na minha frente... Sem mais nem menos... O amiguinho do Vietnã se diluiu em ondas e fugiu pelas fibras óticas... Se perdeu na rede... Todas as janelas se fecharam, e depois a escuridão. Não sei quanto tempo fiquei no escuro. Não dava pra medir. Mas quando pensei que nada mais ia acender, uma única janela se abriu... Uma de um tipo que eu nunca tinha visto, com um grande xis vermelho do lado esquerdo, e com a seguinte mensagem: “Este programa executou uma operação ilegal e será fechado”. Tentei apertar botões, mas a janela não saia de lá. Tentei reiniciar, mas a janela não saia de lá. Bati desesperadamente nos aparelhos, mas a janela não saia de lá... Não coube tudo no cubo. Quase em pânico então, fechei meus olhos para não ver a janela aberta na minha frente. Pra voltar pro escuro. Mas dentro da minha cabeça brilhava uma outra janela, mais forte do que a primeira, que dizia: “Você executou uma operação ilegal e será fechado”. Eles iam me desplugar... Eu não servia mais! Mas eles foram muito bons comigo! Tentaram me sedar pra eu não sofrer. Me tiraram a surpresa. Me relaxaram para eu não sentir mais nada. Me encheram de comprimidos. Me enxertaram resinas, me lavaram e me enxugaram. Primeiro concordei, depois discordei, depois discorri, depois escorri e me transformei em gelatina. Virei sobremesa. E sobre a mesa operaram as minhas úlceras pra que eu ficasse indolor a mim. Incolor. Incomum. Me provaram para averiguar que merda tinha acontecido comigo e me taxaram de estragado. Me puseram à prova, mas eu não passei porque eu não servia. Não coube

no cubo. Então me colocaram a venda, me compraram e quiseram me trocar porque eu não servia. Roubaram meus vales e me deixaram nu. Riram de mim porque eu não servia. Me passaram pra frente, me passaram pra trás. Esqueceram a luz acesa. Esqueceram de me apagar. Me liberaram defeituoso e fodido por ai. Não coube no cubo. Eu queria mamar. Me repetiram que eu devia continuar odiando quem eu era para que assim eu pudesse querer ser outra coisa. Não me contaram qual era essa outra coisa. Me disseram que eu precisava de muitos alguéns, que eram outros tantos ninguéns procurando outros alguens como eu que não estavam em lugar nenhum. Ninguém se encontrou no final. Não coube no cubo. Eu não servia... Me encheram de porrada, mas não doía mais. Me drenaram, mas não doía mais. Me salgaram, me enlataram, mas não doía mais. Me fizeram ouvir piadas, me transformaram em uma e passaram a me contar. Contaram tanto que perderam a conta de quem eu era e decidiram não me levar mais em conta. Eu decidi não me levar mais em conta. Não coube tudo no cubo. Me jogaram então com outros que tinham outras vidas. Me enquadraram nas estatísticas. Me levaram aos sindicatos. Me inseriram nas ONGs e nas passeatas. Me representaram no congresso, mas ninguém sabia o meu nome. Caralho, ninguém sabia o meu nome! Um dia entrei em casa e comecei a procurar alguma coisa que eu tinha trocado e que realmente me servisse. Procurei debaixo da cama, na cozinha, nas gavetas, nos armários... E nada... Nada me servia porque eu não servia mais... Num canto escuro do quarto a lata de spray vermelho reluziu pra mim. É! Aquela que eu tinha trocado tempos atrás! Peguei a lata de spray vermelho, coloquei no bolso e saí de casa para pichar meu nome em um muro. Mas eu não lembrava mais dele nem de mim. Não coube no cubo. Eu não servia... Pichei outra coisa. Pichei aqueles bonequinhos de mãos dadas que a gente faz no colégio recortando papel. Olhei para o muro pichado e chorei. Me pegaram. Quando eles me pegaram, eu estava ajoelhado de frente pro muro com as mãos sujas de vermelho e com o rosto úmido. Estava escuro. Esqueceram de me apagar. Eu ouvia as vozes deles atrás de mim. Eram muitos. Mas eu não os via. Na minha frente só o muro com o desenho dos bonequinhos dando as mãos. Eles gritavam que era proibido pichar muros. Me levaram dali amarrado. Não coube no cubo... Eu não

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servia. Me sentenciaram, baseando-se em leis que eu não conhecia e nem sabia que existiam. Me crucificaram ao lado de infinitos ninguéns como eu. Não doía mais. Infinitos ninguéns como eu crucificados lado a lado. Era proibido pichar muros. Era proibido ser alguém que não fosse ninguém como eu. Fiquei ali, crucificado no centro dos espelhos paralelos. Sorri por estar bem no centro mesmo! Eu não sabia meu nome, mas foda-se! Eu agora estava bem no centro dos espelhos paralelos! Não coube no cubo. Eu não servia. Me apaga!

(Black-out.)

A doaçãoRogério Guarapiran

Personagens: Marcelo, Carlina e Junta Médica.Cena: sala de espera de um hospital.

Na sala estão Marcelo e Carlina impacientes. Entra a Junta Médica, uma espécie de pequeno coro, ouve-se um agudo gemido de dor renal, que em intervalos se repete.

Marcelo – Então, doutores, como vai minha mãe?Junta Médica – Seus rins estão próximo da falência, é urgente o transplante para tentar salvá-la.

Marcelo – Mas como...? Com toda tecnologia que vocês têm, e a dinheirama que minha mãe tem gasto no tratamento, vocês não...

Junta Médica – Tudo que tinha de ser feito foi.

Marcelo – Esta aí, Carlina, nossos melhores médicos e não conseguem consertar um rim, vamos procurar outros especialistas: medicina oriental, uma cirurgia espiritual, um pajé... Aposto que curaria minha mãe, um pajé.

Carlina – Acalme-se, querido, é claro que eles fizeram tudo o que estava ao alcance deles.

Marcelo – Por que não a levaram para Cuba? Aposto que aqueles socialistas dariam jeito, vamos para Cuba, querida!

Junta Médica – No estado em que está, ela não chega nem na esquina.

Marcelo – Incompetentes!

Espelhos paralelos | Pedro Simões Lopes

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Junta Médica – Quer nos acompanhar para sala de cirurgia?

Marcelo – (Desconfiado.) Para quê? (Esconde-se atrás da mulher.)

Junta Médica – Para que se realize o transplante.Marcelo – Vocês querem o meu rim? Levem o dela. (Empurra a mulher aos médicos.)

Junta Médica – Você é o único doador.

Marcelo – E vocês, por acaso perguntaram se ela que quer mesmo o meu rim? Minha mãe não gosta de coisa usada... Nunca comprou carro de segunda mão... Dizia que as coisas que já foram de outras pessoas ficam carregadas de energias que nem sempre são boas e afetam nossa harmonia. E eu estou carregado da cabeça aos pés. (Ouve-se um agudo gemido de dor renal.) Ah, isso me dá um frio nos rins.

Junta Médica – O senhor se decida logo, porque o tempo urge.

Carlina – (Tomando a frente do marido.) Mas já está decidido. (Ele se espanta.) Ele só está um pouco perturbado com os fatos... Ver a mãe a beira da morte, desnorteia qualquer um. (A Junta Médica agarra Marcelo e o vai arrastando, ele se debate.)

Marcelo – Ei, ei... Vamos com calma, esperem... Tirem as mãos do meu rim! (Eles param.) Preciso falar com minha esposa a sós, despedir-me. (A Junta Médica espera o consentimento da esposa, que acena positivo, eles se retiram)

Carlina – O que deu em você? É a sua mãe...

Marcelo – É meu rim!

Carlina – Como você é egoísta!

Marcelo – Eu?! De maneira alguma, eu só penso nos riscos.

Carlina – Com você estão os melhores médicos, não há o que temer.

Marcelo – Não contesto a perícia deles, devem manejar bem a faca... É que quando se pensa na circunstância de se ficar oco... Ah, não é nada agradável.

Carlina – Uma pessoa vive bem com apenas um rim.

Marcelo – Você está querendo dizer que Deus esbanjou dando-nos dois rins à toa? Para que um fique de reserva, ocioso...? Por que, então, não nos deu logo dois corações, dois cérebros...?

Carlina – Olha só, passou até a acreditar em Deus como criador...?

Marcelo – Com esta ciência incompetente temos que apelar para Deus. Você viu como aqueles médicos olhavam para o meu rim, com olhar de fome. Bem vejo agora que as coisas não são por acaso. Existe uma ordem no universo, e é o homem quem procura bagunçar as coisas que foram deixadas em ordem. Veja eu, uma máquina perfeita, tudo em perfeito funcionamento, trabalhando em harmonia. O que acontece se tiram uma engrenagem de um relógio? Por menor que seja, ele para!

Carlina – Você não está pensando bem, misturando coisas que não têm relação.

Marcelo – Tudo bem, eu vou continuar a viver sem um rim, com um vazio dentro de mim, mas está tudo bem. Depois vou sair na rua, as pessoas vão apontar: “lá vai o homem sem um rim”, não duvide que vão rir de mim.

Carlina – Deixe de drama, como que alguém vai notar uma coisa dessas?

Marcelo – Nesse mundo reparam em tudo. Mas deixe estar... Vou pedir para eles preencherem com jornal velho, ninguém vai notar... Imagina.

A doação | Rogério Guarapiran A doação | Rogério Guarapiran

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Carlina – Cada coisa horrível que você pensa... Bote na cabeça que está salvando uma vida, e que não é uma pessoa qualquer, é uma pessoa que te ama muito.

Marcelo – Ah, mas quem garante que isso vai salvar a vida dela?

Carlina – É a única chance.

Marcelo – É uma roleta russa e quem pode se dar mal nisso tudo sou eu que vou ficar sem rim. Se não der certo, será que eles devolvem?

Carlina – Vai tudo dar certo...

Marcelo – E você já ouvir falar de tráfico de órgãos...? Isso é uma rede internacional. Pode ser que um deles faça parte, aí bau-bau...

Carlina – Ora, que absurdo!

Marcelo – ... lá se vai meu rim para Índia, para China... um desses países populosos que estão sempre precisando de órgãos... (A mãe geme.) Ah, mamãe, me desculpe.

Carlina – É certo ficar preocupado, mas você já está passando dos limites. A sua mãe sofrendo, pelo jeito, não é nada para você. Dê a oportunidade para ela ver os netos crescerem. As pessoas vão te acusar sim, te apontar sim, se você negar esse teu rim para mulher que te deu a vida. Os nossos filhos... O exemplo vergonhoso e covarde que você seria pra eles. Não decepcione nossa família.

Marcelo – Já que falou nos nossos filhos, eu não queria chegar nesse ponto que eu achava ser só uma intuição, mas estou vendo que é bem aí o problema da minha indecisão. (Pausa.) Não está vendo a maldição que está para se formar em nossa família?

Carlina – Estou sim, na tua recusa.

Marcelo – Pois não! (Pausa.) Te digo que vou doar meu rim. (Pausa.) Aí está feito! (Pausa.) Sou eu quem depois amanhã vou precisar repor a peça perdida, e quem vai me socorrer?

Carlina – E quem disse que você vai ter o mesmo problema de sua mãe...?

Marcelo – Quem vai me socorrer?

Carlina – Não duvido que um de nossos filhos bem faria de bom grado, mas...

Marcelo – Ahá... Pois está aí mesmo a continuação da atrocidade a que estaríamos condenados. E as nossas gerações futuras, como se lembrariam de mim? Como o miserável inaugurador dessa maldição. Por favor, meu Deus, não me condene a isso! (A mãe geme.)

Carlina – Você realmente se supera, eu não acredito, eu não acredito... Olha... (Pausa.) ...eu é que não posso conviver com essa vergonha, não... É contra tudo o que eu ensino para os nossos filhos: o amor, a solidariedade... em primeiro lugar... Ah, você se decida! Mas saiba que, se deixar a sua mãe morrer por negar um rim, você pode tratar de esquecer de mim e de seus filhos para sempre.

Marcelo – Não acredito que você seria capaz disso!

Carlina – Nem eu que você seja capaz. (Pausa.)

Marcelo – Está bem, será feito.

Carlina – O quê?

Marcelo – O que tem de ser feito.

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CONCURSOS DE DRAMATURGIA DE CURTA DURAÇÃO

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Carlina – No seu caso, o que tem de ser feito?

Marcelo – Ora, salvar uma vida... (A mãe geme.) ...e rápido.

Carlina – Ah, juro que estou muito feliz com a volta de sua sensatez... (Abraça Marcelo, beija-o, ele se dirige para a saída.) Querido, a sala de cirurgia é do outro lado, estão te esperando.

Marcelo – Sim, eu sei, mas mereço fumar um cigarro, não é todo dia que se perde um rim.

Carlina – Mas você não fuma.

Marcelo – Pois é, tenho tanta coisa pra começar a fazer, vou comprar um cigarro. (Sai.)

(Desfaz-se a cena escurecendo, a mãe geme.)

FICHA TÉCNICA

Presidente Liga SolidáriaMaria Luiza d’Orey Espírito Santo

Diretor Complexo Educacional Educandário Dom DuarteMario Martini

Coordenadora do Programa Qualificação ProfissionalMarina Diniz Nambu

Coordenadores Pedagógicos do Programa Qualificação ProfissionalNeide Maria Cavalcanti de Miranda e Carlos Alberto de Melo

Professor do Núcleo de Artes CênicasEdilson Castanheira

Revisão literáriaNair Hitomi Kayo

Diagramação e ProduçãoDepartamento de Comunicação

Tiragem: 200 exemplares

Junho de 2009

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Essa é uma publicação da Liga Solidária - Programa Qualificação Profissional

Av. Eng. Heitor Antônio Eiras Garcia, 5985Tel.: (11) 3781.4081 - [email protected]

www.ligasolidaria.org.br