CONEXÃO - joaonunes.comjoaonunes.com/wordpress/wp-content/uploads/Conexão_final_portugu... · Em simultâneo surgem dois JEEPS da GNR acelerando ... Os militares do GOE, armados,

CONEXÃOArgumento de João Nunes

Ideia original de Jorge Almeida

Este argumento é publicado exclusivamente para fins educacionais

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A CONEXÃO – TELEFILME I

EXT. ALTO MAR - NOITE

EXT. PRAIA - NOITE

Ondas suaves batem contra o casco de uma embarcação.

NARCISO (OFF)Cuidado, cuidado – não deixes cair.

A traineira "Mariazinha" está fundeada perto de uma praiapequena. O MESTRE NARCISO, um homem de 60 anos, de ar seco esério, passa um GRANDE FARDO forrado de plástico a um outroPESCADOR, mais novo, que está num bote atracado à embarcação.Vários outros fardos esperam o mesmo destino.

Narciso olha para a praia, aparentemente vazia. Depois consultao relógio, preocupado.

NARCISOJá estava na hora dos tipos teremaparecido.

PESCADORSão galegos...

Nesse momento, ouve-se o barulho do motor de uma LANCHAPOTENTE. Os dois homens olham nessa direcção.

PESCADORO que é isto?

Narciso não hesita.

NARCISOPuxa o ferro! Depressa, vamos embora!

O pescador salta a amurada regressando à traineira e começa atentar recolher a âncora da traineira. O bote afasta-se àderiva, com dois fardos lá dentro.

A lancha aproxima-se e vemos o FEIXE DE LUZ de um projectorvarrendo o mar e a costa, cada vez mais perto.

O Mestre Narciso liga o motor e grita para o seu homem.

NARCISODespacha isso! Depressa!

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Mas é tarde demais. A lancha aproxima-se e o feixe de luz cegao pescador, que tapa os olhos com a mão estendida. E, nessepreciso momento...

... dois MERGULHADORES ARMADOS surgem nas suas costas, subindopela amurada da embarcação. Estão fardados como membros dosG.O.E. (Grupo de Operações Especiais).

Em simultâneo surgem dois JEEPS da GNR acelerando pela areia dapraia.

MERGULHADOR#1Mãos ao alto! Ninguém se mexe!

Narciso e o pescador viram-se, surpreendidos.

MERGULHADOR#2Desligue o motor, patrão! Já!

Os jeeps travam na areia e vários elementos da GNR descem empasso de corrida. Do outro lado a lancha acerca-se datraineira. Os militares do GOE, armados, cortam qualquerpossibilidade de fuga.

MERGULHADOR#1Vá lá, patrão. Não adianta...

Narciso leva a mão à chave e desliga o motor da traineira.Depois ergue as mãos; o seu rosto é uma máscara de desespero.

GENÉRICO

Segue-se montagem de imagens que ilustram o percurso de umadose de droga, desde a produção até ao consumidor, mas filmadascomo se fosse do POV DA DROGA:

- um camponês andino que se debruça para colher uma planta decoca;

- água em ebulição e uma figura que espreita;

- fogo e uma figura que espreita;

- um homem com ar sul-americano que se debruça para tirar umadose e embalar;

- uma mala que se fecha; ruído de aeroporto; uma luz que passade um lado ao outro, como se fosse o raio-X de uma passadeirade aeroporto;

- a mala abre-se; em fundo vemos uma troca de dinheiro;

- luzes de uma festa; um jovem de ar endinheirado debruça-secom um cartão de crédito na mão; atrás dele duas mulheresbonitas;

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- uma das mulheres debruça-se na direcção do POV, com um dosdedos tapando o nariz e "snifa”, terminando a sequência.

Sobre esta sequência de imagens, que tem obviamente umtratamento gráfico muito marcante, surgem as legendas da FICHATÉCNICA principal.

EXT. VILANOVA DE AROZA/GALIZA - AMANHECER

O dia nasce numa povoação da Galiza. Montagem de imagens.

INT. QUINTA DOS ALBERRO - AMANHECER

Um homem de 27 anos, latino e bonito, percorre em passosrápidos o corredor de uma grande propriedade rural. É TONIALBERRO e tem o ar preocupado de um portador de más notícias.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/COZINHA - AMANHECER

Mãos experientes descascam favas para um alguidar.

TONI ALBERRO abre a porta da cozinha da herdade e entra derompante.

Uma mulher de 60 anos, vestida de negro, com o cabelo grisalhopreso, olha para ele sem deixar de descascar as favas nem defalar com outras DUAS MULHERES que estão ocupadas em outrasactividades de cozinha. É Marica Alberro, que toda a genteconhece por TIA MARICA.

MARICA(fala sempre em galego)

Quer dizer que toda a gente já sabiaque ele andava com a outra?

COZINHEIRA(fala sempre em galego)

Isso mesmo. Só a pobrezinha estava naignorância.

MARICAValha-me Deus...

Toni aproxima-se dela mas fica parado à sua frente, esperandopermissão para falar.

COZINHEIRABom dia, Toni. Já comeste?

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TONI(fala sempre em galego)

Não, mas...

Não consegue disfarçar o nervosismo.

MARICAO que queres, filho?

TONITemos de falar, mãezinha. Noescritório.

Marica olha-o com ar sério e empurra o alguidar.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/ESCRITÓRIO - AMANHECER

Um grande retrato a óleo do patriarca da família, o falecidoAlfonso Alberro, pontifica numa das paredes de um pequenoescritório de móveis antigos e aspecto de pouco uso. MARICAestá sentada numa cadeira junto à janela, olhando para fora comar apreensivo. TONI está de pé ao lado dela.

MARICAQuinhentos quilos, hem...?

TONIMeia tonelada, mãezinha. Já é o segundocarregamento de haxixe que perdemoseste ano.

Marica pensa por um momento.

MARICAComo é que os chuis souberam?

TONIE eu adivinho?

Marica olha-o com ar de censura, deixando-o atrapalhado. Éevidente o respeito que o homem tem pela mãe.

TONINão sei, mãe. Pode ser sorte apenas.

MARICAOu não... O teu irmão já sabe disto?

TONIAinda não o encontrei. Ele foi fazer umserviço ontem à noite.

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Marica levanta-se e ajeita o avental branco.

MARICAProcura-o. Temos de tomar decisões.

EXT. LOTA DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - AMANHECER

Um GRUPO DE HOMENS exaltados cercam um camião frigorífico commatrícula espanhola. Gritam e erguem as mãos em gestos deameaça. São PESCADORES da Vila. Um deles é HUMBERTO, um trintãomal encarado.

PESCADOR#1Vai-te embora, ó galego!

PESCADOR#2Ladrões!

HUMBERTOFilhos da puta! Vão vender para a vossaterra!

PESCADOR#2Não queremos peixe espanhol.

O MOTORISTA está fechado dentro da cabina do camião, olhandopara os homens com ar preocupado. O grupo aperta mais o cerco eHumberto começa a bater com um pau na caixa do camião.

HUMBERTOAbre as portas, cabrão!

Na fila de trás do grupo de pescadores um homem mais velho, nacasa dos 50, observa os pescadores irritados. É o MESTRE MÁRIODAVID, e está acompanhado por TEOTÓNIO, um pescador de 60 emuitos anos.

MÁRIO DAVIDIsto não leva a nada...

TEOTÓNIOA ver vamos.

O motorista apita a buzina do camião e faz sinal para os homensse afastarem. Acelera o motor, ameaçando pôr-se em marcha.

Uma homem bate com a palma da mão no vidro do camião. Omotorista encolhe-se por instinto e o alarido aumenta ao seuredor.

Mário avança, furando pelo meio dos manifestantes.

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MÁRIO DAVIDAlto aí! Alto aí! Calma, Humberto!

Chega à frente e interpõe-se entre os pescadores e o camião.

MÁRIO DAVIDVamos lá ter calma! Nós não somosbandidos!

HUMBERTOBandidos são esses gajos, que nos vêmroubar o pão.

MÁRIO DAVIDEu sei, mas não é assim que...

PESCADOR#2(interrompendo)

Estes gajos têm de aprender que não sãobem vindos, Mestre. A gente não os queraqui.

MÁRIO DAVIDAgora somos todos europeus, Manel...

Uma pedra bate na caixa ao seu lado, interrompendo-o. O Mestreencolhe-se, assustado.

HUMBERTONão te metas, Mário. Tu és dos nossos!

Teotónio puxa Mário pelo braço, arrastando-o pelo meio do grupoque agora está a bater de todas as formas no camião.

TEOTÓNIONão adianta, Mário. Eles queremsangue...

Mário deixa-se arrastar, contrariado mas impotente.

Nesse momento um OUTRO PESCADOR aproxima-se a correr do grupo,gritando alto.

OUTRO PESCADORArrestaram o "Mariazinha”!

Alguns dos manifestantes olham para ele.

OUTRO PESCADORO Narciso foi preso. Estão a chegaragora.

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Os manifestantes entreolham-se. Mário olha para Teotónio.Alguns pescadores começam a afastar-se do camião. Humberto jogao pau no chão.

EXT. POSTO DA GNR - DIA

Os MANIFESTANTES, incluindo MÁRIO DAVID e TEOTÓNIO, chegam àrua do posto da GNR local, a tempo de ver...

... o MESTRE NARCISO e o PESCADOR, de cabeça baixa, com as mãosalgemadas atrás das costas, a ser desembarcados de dois jeepsda GNR que estão ali estacionados.

Um carro à paisana está também no local, a alguma distância.Dentro dele estão dois agentes da PJ que iremos conhecer melhormais adiante. Ele é RAFAEL MARQUES, 40 anos, moreno ebronzeado; ela é ALEXANDRA GOMES, 30, bonita e de cabeloscurtos. Limitam-se a observar os acontecimentos.

Um dos pescadores avança para os militares. É HUMBERTO.

HUMBERTOO que é que aconteceu?

(para o Mestre Narciso)Estás bem, Narciso?

O guarda afasta-o com a mão estendida.

GUARDA#1Saia da frente.

HUMBERTOO que houve?

GUARDA#1O Comandante vai fazer um comunicadoesta tarde. Arreda, arreda!

O pescador afasta-se e o guarda empurra o Mestre Narciso paradentro do posto. O homem continua sempre de olhar em baixo, semdizer uma palavra. O inspector da PJ observa a cena comatenção.

Teotónio faz um sorriso de desprezo.

TEOTÓNIOO que é que houve...? Droga, o que éque havia de ser. Isto tinha de acabarassim.

MÁRIO DAVIDCoitado do homem.

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INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/SUITE - DIA

Mãos masculinas apertam o nó de uma bonita gravata de seda.

MIGUEL ÂNGELO olha-se ao espelho, para confirmar o nó. É umhomem de trinta e poucos anos, másculo e confiante.

MIGUEL ÂNGELOVou sair, amor.

MARIA DEL CARMEN (O.S.)(fala sempre em galego)

Não tomamos o pequeno-almoço juntos?

MIGUEL ÂNGELOAinda estás muito demorada?

MARIA DEL CARMEN, 27 anos, surge por trás dele, saindo do WC dasuite, com o cabelo molhado e apenas uma toalha enrolada àvolta do corpo. É uma espanhola bonita, de longos cabelosescuros e formas voluptuosas. Aproxima-se dele, sedutora.

MARIA DEL CARMENDepende do que entendas por demorada...

Miguel Ângelo vira-se e olha para a mulher, com um sorrisomalandro.

MIGUEL ÂNGELOPara dizer a verdade, não tenho muitapressa...

Maria recua, sorrindo.

MARIA DEL CARMENNão, não, não! Acabei de tomar banho...

MIGUEL ÂNGELOTomamos outro depois.

Ela finge preocupação.

MARIA DEL CARMENMas não tens clientes à espera... nemreuniões importantes...?

Miguel empurra-a para cima da cama...

MARIA DEL CARMEN...nem negócios milionários para fazer?

... e desfaz o nó da gravata. Ajoelha-se na cama com as pernasà volta da mulher, que sorri abertamente.

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MIGUEL ÂNGELOTens de mudar de gel de banho.

Deita-se para a frente, comprimindo-a com o seu corpo, ebeijam-se apaixonadamente.

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/COZINHA - DIA, MAIS TARDE

INT. SEMANÁRIO "AGORA”/REDACÇÃO - DIA

INT. SEMANÁRIO “AGORA”/GABINETE - DIA

EXT. ARMAZÉM FRIGORÍFICO - DIA

Estamos numa sala refrigerada de um grande armazém de mariscocongelado. DOIS HOMENS de jeans e camisas riscadas vigiam aporta, enquanto esfregam as mãos e se encolhem com frio.

JUAN (O.S.)(fala sempre em galego)

Olha para mim, panasca! Nos olhos!

Vemos JUAN ALBERRO. Tem 30 anos e é baixo e encorpado, mas comum ar extremamente perigoso. Está com as mangas da camisaenroladas, e fala com raiva. Ao seu lado um outro homem,FRANCISCO, 40 anos, cabelo rapado e cara de assassino, segura-lhe o casaco. Juan debruça-se sobre um DEALER magro emacilento, que está amarrado a uma cadeira, nu. Tem váriasnódoas negras no corpo enregelado e sangra abundantemente donariz.

JUANPorque é que vocês têm de ser assim?Porque é que insistem em meter a mão nomeu bolso. Olha para mim!

Puxa a cara do homem, forçando-o a olhar.

JUANEu não te tratei sempre bem?

DEALER(fala em galego)

Senhor Juan. Por favor...

Juan endireita-se.

JUANPor favor.

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Desfere uma violenta estalada na cara do homem, que começa achoramingar.

JUANEu estou a fazer-te um favor, meupanilas.

DEALERNão me mate...

JUANSe eu te deixasse roubar a minha mãe,que tipo de homem era eu?

Nesse momento BATEM na porta de metal do armazém. Um dosguardas abre-a com cuidado, levando a mão à cintura, por baixoda camisa.

TONI ALBERRO entra na sala e olha para a cena. O irmão fala comele, sem tirar os olhos do miserável sentado à sua frente.

JUANO que é que eu faço a este tipo, Toni?O quê?

TONIDá-lhe um tiro nos cornos, corta-lhe ostomates, estou-me a cagar. A mamã querfalar contigo.

Juan olha para o irmão, subitamente sério. Começa a desenrolaras mangas da camisa. FRANCISCO veste-lhe o casaco.

JUANÉ coisa séria?

TONIDemais...

JUAN(para Francisco)

Tirem-me esse merdoso daqui. Ainda mecontamina o peixe.

INT. TASCA DE PESCADORES - DIA

Uma pequena tasca perto do rio, com o ambiente soturno que lhesé característico. Quase se consegue sentir o cheiro a vinhobarato e serradura. Ao balcão o dono GOMES compõe uma travessade ovos cozidos com casca, enquanto controla o ambiente. Emvárias mesas HOMENS falam agitadamente, em voz baixa.

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Um desses grupos está na mesa de MESTRE MÁRIO - são TEOTÓNIO eHUMBERTO, que já conhecemos, e ZÉ, um velhote simpático edesdentado. Todos têm copos de três à frente, mas não os bebem.

TEOTÓNIOServiu-lhe de muito, o dinheiro...

HUMBERTOPelo menos deu-lhe bom uso.

TEOTÓNIOBom uso?! Diz-me lá, ó Humberto, e queuso é que lhe vai dar agora? De que éque lhe serve a moradia e o carro novolá na prisa?

HUMBERTONão serve a ele, serve à família. Osfilhos terminaram os estudos, estãotodos bem na vida.

ZÉA filha dele é cá uma brasa. Vi-a nooutro dia...

MÁRIO DAVID(para Humberto)

O que é que eles preferiam, diz-me lá?Ter o canudo na mão ou ter o pai forada prisão?

TEOTÓNIOOlha que por acaso não sei. Os filhosdo Narciso não são grandes espingardas.

Um rapaz entra na tasca. É magro e veste de preto. Está na casados vinte anos e chama-se NELSON. É o filho mais velho doMestre Mário. Os homens olham para ele, que sorri para o paienquanto se aproxima.

NELSONBoas...

(para o pai)Tens uns trocos que me adiantes, pai?Para o tabaco.

MÁRIO DAVIDVais jantar?

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Mestre Mário puxa a carteira e tira uma nota de cinco euros. Osoutros homens entreolham-se em silêncio.

NELSONObrigados. Vou - até logo.

O rapaz afasta-se em direcção ao balcão. Humberto interrompe osilêncio embaraçoso que se segue.

HUMBERTOOlha o que ganhas em ser honesto. Umfilho desempregado que ainda vive à tuaconta.

Mário bebe o resto do vinho de um golo e levanta-se.

MÁRIO DAVIDPelo menos vou dormir em casa, com aminha mulher.

Afasta-se da mesa. Humberto resmunga com desprezo.

HUMBERTOAté ela se fartar de viver na miséria.

EXT. STAND DE AUTOMÓVEIS USADOS - DIA

Um stand de automóveis de topo de gama, na beira da estrada.Tem uma área coberta, onde ficam guardados os melhores modelos,e um parque de estacionamento exterior, cercado por umavedação, onde estão os outros. É aí que encontramos JOSÉCARVALHO BAPTISTA, 40 anos, pesado e de bigode aristocrático, eJOSÉ ROMÃO, 35, e ar do que é - vendedor de automóveis usados.

JOSÉ BAPTISTAQuinhentos quilos, meu amigo. Foi umapipa de massa que os espanhóisperderam.

José Baptista sorri.

JOSÉ ROMÃOSó tenho pena porque já tinhaconvencido o gajo a trocar o carro damulher. Era aquele BM ali.

Os dois olham para um dos carros do stand. Nesse momento umMercedes descapotável entra no parque, conduzido por MIGUELÂNGELO. Estaciona perto deles.

MIGUEL ÂNGELODesculpa aí o atraso, Zé.

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INT. CARRO DA PJ - DIA, AO MESMO TEMPO

Enquanto José Baptista entra no MERCEDES de MIGUEL, é observadoà distância pelos dois inspectores da PJ que já vimos antes,RAFAEL MARQUES e ALEXANDRA GOMES.

RAFAELÉ hoje?

ALEXANDRAAcho que não... Vamos esperar.

O Mercedes põe-se em movimento e sai do stand no sentidocontrário.

EXT. PORTO DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - DIA

MESTRE MÁRIO, TEOTÓNIO e ZÉ estão sentados em pequenos bancosde madeira, perto da porta de um barraco de madeira que servede armazém. À sua volta estendem-se redes que os pescadoresreparam meticulosamente, procurando malhas soltas em silêncio.HUMBERTO aproxima-se deles com má cara.

TEOTÓNIOJá estás mais calmo, pá?

HUMBERTONão te metas, Teotónio.

(para Mário)Quando é que vais pagar o que me deves,Mário?

O patrão olha para ele com ar sério.

HUMBERTOTenho compras para fazer, dívidas parapagar.

MÁRIO DAVIDPosso adiantar-te uma parte. E podemosfazer uma saída esta noite...

ZÉEsta noite é boa. Cheira-me a peixame.

HUMBERTOEu não preciso de mais trabalho,preciso é de mais dinheiro.

MÁRIO DAVIDUma coisa só costuma vir com a outra.

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Humberto abre os braços, zangado.

HUMBERTODiz quem? É que não é isso que eu tenhovisto! Achas que mais uma saída oumenos uma saída vai fazer algumadiferença?

TEOTÓNIOTem calma, homem...

HUMBERTOCalma, calma! Estou farto de ter calma!

Mário levanta-se e saca a carteira.

MÁRIO DAVIDÓ Humberto, se é lá por isso...

HUMBERTO(interrompendo)

Ou me pagas tudo e quitamos ou então...

MÁRIO DAVIDTudo não posso, já te disse.

HUMBERTOEntão guarda o teu dinheiro, Mário. Nãopreciso de esmolas.

O pescador afasta-se, com má cara. Mário fica de pé, com acarteira na mão.

TEOTÓNIOPorra, que mau feitio! Esse gajo nãomuda.

MÁRIO DAVIDO pior é que ele tem razão, Teotónio.Esta vida não está para quem trabalha.

Arruma a carteira e fica a olhar para o homem que se afasta.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/PÇTIO - DIA

A TIA MARICA está reunida com os filhos TONI e JUAN, e maisdois homens. Um é FRANCISCO. O outro veste fato e gravata, temar de contabilista, mas não é menos perigoso. Chama-se EMILIO.Estão num pátio, debaixo de umas parreiras, e a mulher faztricot enquanto ouve a discussão animada à sua volta.

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TONIO problema são os marroquinos. Aquelagente não é de confiança, vendem-se porcinco tostões.

JUANToda a gente se vende por cincotostões, se nós deixarmos. Se estascoisas acontecem é porque nós andamosmuito descuidados.

TONIIsso é uma crítica?

JUANEntende como quiseres. Mas estaoperação era tua, e correu mal

TONIO Francisco já está a averiguar o quese passou e como é que a políciaportuguesa soube da descarga.

JUANO teu problema é esse. São sempre osoutros que estão a investigar, a fazer,a resolver.

TONISe tu tens um problema comigo, é melhoracertar já isso aqui...

EMILIOTenhamos calma, senhores. Isso nãoresolve nada.

TONITu não te metas nisto...

MARICA(interrompendo)

O Emilio tem razão.

Toda a gente se cala e olha para ela, que continua a tricotarcalmamente. Fala sem levantar os olhos.

MARICAEsse pescador que foi preso, ele podeser um problema?

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TONIPenso que não.

JUANNão, como?! Então ele não te conhece?

TONISim, mas o mestre Narciso é um homem deconfiança.

MARICANinguém é de confiança até perceber quenão se pode dar ao luxo de ser outracoisa. Façam uma visita à famíliadesse homem.

(para Emilio)E tu, Emilio, vai oferecer-lheaconselhamento jurídico. Ele certamenteapreciará.

Os homens entreolham-se, tentando perceber se a reunião acabou.Marica levanta finalmente os olhos para eles.

MARICAVão, vão! Do que é que estão à espera?

Todos se levantam e Marica suspira.

MARICAAh... homens...

INT. AEROPORTO DE PEDRAS RUBRAS/FRONTEIRA - DIA

Um homem espera a sua vez na fila dos passageiros de línguaportuguesa. É ROMUALDO, 23, um brasileiro do Nordeste. Estánervoso e um pouco agitado, mas também o estão outrospassageiros à sua volta. O agente do SEF faz-lhe sinal paraavançar.

AGENTE DO SEFPróximo!

Romualdo avança e estende o passaporte e o formulário deentrada. O agente olha-o com a habitual cara de desconfiança econsulta o computador.

AGENTE DO SEFMotivo da visita?

ROMUALDO(nervoso)

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Venho visitar a família. Meus avós sãoportugueses.

AGENTE DO SEFE são de onde?

ROMUALDOComo?

AGENTE DO SEFOs seus avós, são de onde?

ROMUALDONão sei exactamente, eles já morreram.

AGENTE DO SEFEntão e essa família, é de onde?

ROMUALDOEu... não sei bem... venho procurareles... quer dizer, tenho umasideias...

O agente levanta os olhos para ele, com ar desconfiado.

EXT. AEROPORTO/PARQUE DE ESTACIONAMENTO - DIA

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/INTERROGATÓRIOS - DIA

O MESTRE NARCISO está sentado numa sala de interrogatórios daPJ, com os inspectores RAFAEL e ALEXANDRA. Esta está encostadaà parede, enquanto o inspector está sentado numa cadeira pertodo pescador. Narciso tenta manter a compostura, mas os olhostraem o seu desespero.

RAFAELDesembucha logo, Narciso! Achas queadianta alguma coisa estares para aíarmado em mula?

NARCISOQuando é que chega o meu advogado?

RAFAELEle é um homem muito ocupado. Não vemlogo a correr só porque umtraficantezinho de merda foi apanhadocom a boca na botija.

Mário não responde.

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ALEXANDRANós já lhe telefonámos, estejadescansado. Deve vir a caminho.

RAFAELEntretanto podemos ir adiantandoserviço. Quem é que são os teuscontactos aqui em Portugal?

NARCISONão tenho contactos nenhuns, já lhesdisse.

Rafael levanta-se, exasperado.

RAFAELEste gajo deixa-me louco. Louco!

(para Narciso)Mas tu achas que eu engulo que um pérapado como tu, um pescador miserável,anda a traficar sozinho com osmarroquinos?

Bate com a mão na mesa.

RAFAELNomes! Dá-me os nomes deles.

Alexandra adianta-se e coloca a mão no ombro de Rafael, que seafasta. A inspectora senta-se ao lado do pescador.

ALEXANDRAMestre Narciso... Tente perceber anossa posição. O senhor foi apanhadocom meia tonelada de haxixe no seubarco. Não há como fugir aos factos.

Narciso baixa o rosto e fecha os olhos.

RAFAELIsso - baixa a cabeça. Pode ser queacordes noutro lugar e isto seja só umpesadelo.

Alexandra faz-lhe sinal para se acalmar.

ALEXANDRANós queremos ajudá-lo, Mestre. Juro quequeremos. Não são os soldados como osenhor que nos interessam - são osgenerais. Mas para o ajudarmos oMestre tem de se ajudar a si próprio.

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Mário volta a endireitar-se, muito sério.

NARCISOQue acordo é que vocês podem prometer-me?

Rafael aproxima-se de novo.

ALEXANDRANeste momento, nenhum.

RAFAELMas se nos deres nomes, a gente podever o que é que se arranja.

ALEXANDRAOs procuradores são mais generosos paraquem é generoso também.

O pescador olha-os por um momento, pensativo.

NARCISOPosso comer alguma coisa enquantoespero pelo meu advogado? Ou vão fazer-me passar fome?

Rafael bate com a mão na parede, exasperado.

RAFAELPorra!

INT. CASA DOS ALVAREZ/SALA DE JANTAR - DIA

MARIA DEL CARMEN almoça com os pais, D. MANOLO ALVAREZ, 65, umvelho industrial galego, e EVA, uma mulher distinta de cabelosgrisalhos mas bem arranjados. Estão na luxuosa sala de jantarda sua casa de La Guardia, na Galiza.

Maria fala animadamente, com um entusiasmo que não éacompanhado pelos pais. O diálogo é todo em galego.

MARIA DEL CARMENO Miguel foi hoje para o Porto, para umgrande negócio. Por isso é que ele nãopode vir.

D. MANOLOEntão as coisas estão a correr-lhe bem?

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MARIA DEL CARMENGraças a Deus que sim. Ele tem muitojeito para os negócios e é trabalhador.

EVAAinda bem...

D. MANOLOVender carros usados não exige muitosaber. Só manha.

MARIA DEL CARMENLá estás tu outra vez, pai.

D. MANOLOMas é verdade, pequena. Sem menosprezopelo teu marido, mas...

EVAPor favor, Manolo.

D. MANOLONão me interrompas. O português sabecomprar barato e vender caro. É um bomprincípio, mas não faz dele umindustrial.

MARIA DEL CARMENO teu problema é esse, não é? Ele serportuguês.

D. MANOLOClaro que não, que disparate.

MARIA DEL CARMENÉ por isso que nunca lhe deste umahipótese contigo, e é por isso que elejá não vem cá a casa.

Levanta-se, levando o prato na mão.

MARIA DEL CARMENE qualquer dia eu também não.


JOSÉ CARVALHO BAPTISTA está nitidamente nervoso. Anda de umlado para o outro e olha para o relógio. MIGUEL, pelocontrário, mantém a calma.

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JOSÉ BAPTISTAMas o gajo já não devia ter saído?

MIGUEL ÂNGELOIsto às vezes demora um pouco mais.

JOSÉ BAPTISTASerá que ele embarcou mesmo?

MIGUEL ÂNGELOSe não tivesse embarcado eles tinham-nos avisado.

JOSÉ BAPTISTAPode ter havido algum problema deúltima hora. Uma denúncia... sei lá...

Tira o telemóvel do bolso.

JOSÉ BAPTISTATalvez seja melhor fazer um telefonemaaos colombianos, só para confirmar.

Miguel trava-lhe o gesto.

MIGUEL ÂNGELOEstás louco! Não fazes telefonemanenhum. Queres assustar os homens, é?Vamos ter calma e esperar mais umpouco.

José volta a olhar para o relógio.

INT. CASA DOS ALVAREZ/COZINHA - DIA

MARIA DEL CARMEN está a lavar o seu prato com energiaexagerada. A mãe, EVA, aproxima-se dela e coloca-lhe a mão noombro.

EVADeixa estar isso, a empregada logolava.

MARIA DEL CARMENPorque é que o pai nunca aceitou oMiguel? Porquê?

EVANão é isso, Mariazinha. Sabes como oteu pai é, não sabes?

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MARIA DEL CARMENO Miguel nunca lhe fez mal nenhum,tentou agradar-lhe de todas asformas...

EVASe o Miguel...

Interrompe a frase. Maria olha para ela curiosa.

MARIA DEL CARMENSe o Miguel o quê...?

EVASe o teu marido não gostasse tanto degastar dinheiro com coisas inúteis. Senão gostasse tanto de exibir o dinheiroque ganha.

MARIA DEL CARMENMas qual é o problema, mãe? Desde que oganhe honestamente.

EVAMas isso é tão... novo-rico...

MARIA DEL CARMENNem toda a gente herdou uma fortuna jáfeita.

EVAMaria...

MARIA DEL CARMENO Miguel tem orgulho no que tem. Éfruto do seu trabalho. E vocês não têmo direito de o criticar por isso.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/SALA - DIA

É uma casa modesta, limpa mas sem luxos. Na sala comum há umaTV pequena, ligada sem som, um sofá e um cadeirão, um louceiro,e uma mesa com toalha aos quadrados. Sentados ao redor de umarefeição de peixe e batatas estão MESTRE MÁRIO, a sua mulher,ROSA, 40 anos que mais parecem 50, e os filhos NELSON e SARA,16 anos, magra e de ar triste. Enquanto Rosa o serve, Márioolha para o filho.

MÁRIO DAVIDTens ido ao Centro de Emprego?

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NELSONPara quê?

MÁRIO DAVIDOra, para quê? Para saber se têm algumanovidade para ti, para que é que haviade ser.

NELSONEles telefonam se tiverem.

MÁRIO DAVIDEu não te entendo, Nelson.

NELSONO que é que não entendes, pai?

MÁRIO DAVIDSe tu queres mesmo arranjar trabalho,ou se estás satisfeito com esta vida.

NELSONClaro que eu quero trabalho, pai, o queé que achas? Que eu sou algum chulo?

Rosa observa aflita o rumo que a conversa está a tomar. Saraolha os dois com curiosidade.

ROSANinguém acha isso, filho, é que o teupai...

NELSON(interrompendo)

Não te metas, mãe!

MÁRIO DAVIDVê lá como é que falas com a tua mãe...

Nelson levanta-se da mesa.

NELSONEu falo como muito bem entendo! Já nãosou uma criança, porra! Parem de mechatear!

Sai da sala, zangado.

MÁRIO DAVIDNelson! Volta aqui, Nelson! Não teadmito...

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Rosa interrompe-o colocando-lhe a mão no braço.

ROSADeixa-o ir, ele não disse aquilo pormal. Precisa de dinheiro, e ninguémgosta de viver assim.

Mário respira fundo.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/COZINHA - DIA

SARA entra na cozinha onde ROSA está a lavar a louça.

SARAEu também preciso de dinheiro, mãe.

ROSAPara quê?

SARASão só vinte euros, para comprar unslivros que a sotôra de Português pediu.

ROSALivros, livros. Para que é que sãotantos livros, meu Deus?

SARAEu também acho. Mas se me puderes darainda hoje...

ROSADá-me a lista dos livros, que eu comproquando sair.

Sara fica aborrecida.

SARAPorque é que não posso comprar eu, mãe?

ROSADá-me a lista e não discutas, Sara. Jáchega de discussões hoje.

Sara atira os pratos para cima da bancada.

SARAO Nelson é que tem razão. Vocês nãoconfiam em nós, vocês acham que nós nãoprestamos para nada...

-26-

Sai a correr da cozinha.

ROSASara, volta aqui!

Abana a cabeça.

ROSAO que é que se passa com estes miúdos?

INT. AEROPORTO DE PEDRAS RUBRAS/FRONTEIRA - DIA

EXT. AEROPORTO/PARQUE DE ESTACIONAMENTO - DIA, MAIS TARDE

JOSÉ BAPTISTA e MIGUEL ÂNGELO continuam no parque deestacionamento do aeroporto. José endireita-se de repente.

JOSÉ BAPTISTAAli! Acho que é aquele.

Na direcção para onde ele aponta vem ROMUALDO, com a suamalinha de viagem, andando apressadamente e olhando em redor.José faz-lhe sinal.

JOSÉ BAPTISTARomualdo?!

O jovem olha para eles.

ROMUALDOSou eu. Graças a Deus, moço, graças aDeus que já saí dali...

Miguel endireita-se.

MIGUEL ÂNGELO(para Romualdo)

Mas demoraste, hem.(para José Baptista)

Agora é que podes telefonar para oscolombianos.


HUMBERTO entra no pátio de exposição do stand. Passeia pelomeio dos carros de luxo, olhando em redor. Pára ao pé de umjeep de topo de gama e espreita para o interior. O seu ar depescador contrasta com o luxo do veículo. JOSÉ ROMÃO surgeperto dele.

-27-

JOSÉ ROMÃOPosso ajudar?

HUMBERTOTalvez...

O vendedor olha-o de cima a baixo, com alguma sobranceria.

JOSÉ ROMÃOEstá interessado nesse carro?

O pescador não acusa o toque.

HUMBERTOAinda não, mas quem sabe um dia.

(pausa)O senhor Miguel Ângelo está? Tenho umnegócio para lhe propor.

JOSÉ ROMÃOO senhor Miguel Ângelo não está no ramodas pescas, por isso...

Humberto sorri.

HUMBERTOConfie em mim. Eu sei muito bem em queramo é que o senhor Miguel Ângelo está.

José Romão muda de expressão.

EXT. PRAÇA DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - DIA

INT. SEMANÁRIO "AGORA"/GABINETE - DIA, AO MESMO TEMPO

EXT. PRAÇA DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - DIA

EXT. RUA DE CLASSE MÉDIA - DIA

Numa rua de moradias de classe média um jeep de vidros fumadosestaciona. O vidro desce e vemos que no seu interior estão TONIe JUAN ALBERRO, juntamente com o capanga FRANCISCO.

JUANÉ aquela?

Olham para uma moradia com bom aspecto.

TONISim.

-28-

O irmão olha em redor, avaliando a rua. Há crianças a andar debicicleta e um varredor.

JUANÉ melhor esperarmos pela noite, paraisto ficar mais calmo. Alguém trouxeumas cartas?

Sobe novamente o vidro do carro, no qual fica reflectida amoradia.

EXT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - FIM DO DIA

Um solar antigo, de traça tradicional nortenha, ergue-se nomeio de jardins bem cuidados. Uma placa identifica-o como sendoum Turismo de Habitação. A luz do poente estende longassombras.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/CORREDOR - FIM DO DIA

MIGUEL e JOSÉ BAPTISTA caminham por um corredor do solar.Cruzam-se com DOIS TURISTAS estrangeiros que cumprimentam com acabeça.

JOSÉ BAPTISTAGood afternoon.

Miguel abranda junto de uma janela e olha para a paisagem.

MIGUEL ÂNGELOAbençoados fundos comunitários...

JOSÉ BAPTISTAAqui não está só dinheiro da CEE.Também já investi muito do meu.

MIGUEL ÂNGELOImagino...

JOSÉ BAPTISTAE muito trabalho. Muito!

Recomeçam os dois a andar e param perto da porta de uma suite.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/SUITE 10 - FIM DO DIA

MIGUEL e JOSÉ BAPTISTA entram na suite, que está vazia. Josédirige-se a uma porta interior e bate.

-29-

JOSÉ BAPTISTAAlguma novidade?

A voz abafada de Romualdo ouve-se do interior.

ROMUALDO (O.S.)Ainda não, senhor...

JOSÉ BAPTISTAPorra... este gajo demora a cagar.

Miguel dirige-se a uma secretária onde está pousada umachaleira eléctrica.

MIGUEL ÂNGELOTalvez com mais um chazinho a coisa vá.

Liga o aparelho.

JOSÉ BAPTISTAIsto é dos medicamentos que oscolombianos lhe deram. O gajo fica comprisão de ventre e a gente é que sofreaqui à espera.

MIGUEL ÂNGELOPorque é que não trocas com ele?

INT. TASCA DE PESCADORES - NOITE

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/SUITE - NOITE

MARIA DEL CARMEN descalça-se e joga a bolsa para cima da cama,depois de tirar o telemóvel de última geração. Marca um número.

MARIA DEL CARMENMiguel?

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/SUITE 10 - NOITE

MIGUEL atende do outro lado, sentado na cama da suite. JOSÉBAPTISTA também está no quarto, lendo o jornal.

MIGUEL ÂNGELOOlá...

O diálogo intercala entre os dois.

MARIA DEL CARMENOnde estás?

-30-

MIGUEL ÂNGELOA terminar uns assuntos.

MARIA DEL CARMENVais demorar?

MIGUEL ÂNGELOUm pouco ainda. Não depende só de mim.

MARIA DEL CARMENVem depressa. Estou com saudadestuas...

MIGUEL ÂNGELOVou logo que possa. Um beijo.

O homem desliga o telefone. José olha-o por cima do jornal.

JOSÉ BAPTISTATenho pena de ti...

MIGUEL ÂNGELOSim? Porquê?

JOSÉ BAPTISTAIsso não é uma aliança que tens aí nodedo. É uma grilheta.

Miguel levanta-se sem responder e dirige-se para a casa debanho. Abre a porta e espreita.

JOSÉ BAPTISTAUm casamento não é uma prisão, homem.

Do seu POV vemos ROMUALDO, sentado na sanita do WC, com araflito. Miguel fecha de novo a porta e olha o sócio.

MIGUEL ÂNGELOVindo de ti, conselhos matrimoniais atédão vontade de rir.

JOSÉ BAPTISTAPois não devias. Eu não aprendi com oprimeiro casamento, não aprendi com osegundo... mas agora estou muito bem,obrigado.

Levanta a mão esquerda, mostrando-a sem alianças. Levanta-se edirige-se de novo para a chaleira eléctrica, ligando-a.

-31-

MIGUEL ÂNGELOIsto já não vai com chás. O melhor échamar o Romão cá.

Miguel agarra no telefone e marca um número.

JOSÉ BAPTISTADevias arranjar uma namorada como aminha. Novinha, quente, semcompromissos nem exigências...

MIGUEL ÂNGELOImportas-te que eu trate dos nossosnegócios ou preferes continuar a falarda minha vida amorosa?

José Baptista sorri, por ter conseguido chatear o amigo.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/SALA PRIVADA - NOITE

O MESTRE NARCISO está numa pequena sala sem janelas, sentado auma mesa de metal. Um tabuleiro com um prato de comida vazioestá ao seu lado. À sua frente está EMILIO, o advogado dosAlberro.

EMILIOEstão a tratá-lo bem?

NARCISOSim...

EMILIOMas espero que não o estejam a tratarbem demais.

O pescador olha o advogado com desconfiança.

NARCISOO que é que quer dizer com isso?

Emílio inclina-se para a frente.

EMILIOSimples. Se estivessem a tratá-lo assimcom exagero, eu podia desconfiar quevocê tinha feito alguma espécie deacordo com eles.

Volta a encostar-se.

-32-

EMILIOE os seus sócios não iam gostar nadadisso. Eles não apreciam que os seusex-empregados andem a falar deles com apolícia.

NARCISOÉ fácil falar, não são vocês que estãoaqui presos.

EMILIONão pensou nisso quando o dinheiroestava a entrar?

NARCISOO dinheiro... Não me fale em dinheiro.Eles ganharam muito mais do que eu, eagora...

(pausa)Pelo menos os judites fazem-mepromessas...

Emilio fica muito sério.

EMILIONão é boa ideia ficar a pensar nessaspromessas. Isso pode dar a volta àcabeça de um homem.

Narciso zanga-se.

NARCISOVocê veio aqui para me fazer ameaças oupara me ajudar?

O advogado tira um telemóvel do bolso e começa a marcar umnúmero.

EMILIOEu estou a ajudá-lo, Mestre Narciso. Eusou o melhor amigo que você tem nomundo.

Estende o telefone ao homem.

EMILIOConhece esse número?

Narciso olha o visor do telefone.

NARCISOÉ... a minha casa.

-33-

EMILIOFale aí, homem.

Narciso leva o telefone ao ouvido.

NARCISOEstá sim?

INTERCALA COM:

INT. CASA DE MESTRE NARCISO/SALA - NOITE, AO MESMO TEMPO

Do outro lado do telefone está TONI ALBERRO. Atrás dele, pertode UMA SENHORA DE 60 ANOS com uma bebé ao colo, estão JUAN eFRANCISCO.

TONIConhece a minha voz?

NARCISOSim... você é...

TONI(interrompendo)

Nada de nomes, meu amigo.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/SALA PRIVADA - NOITE, AO MESMO TEMPO

EMILIO observa a conversa de NARCISO.

NARCISOO que é que está a fazer aí?

TONIUma visita de cortesia, meu amigo. Vimver se está tudo bem com a sua família.

NARCISOSaia da minha casa, já!

Toni não se deixa abalar pela fúria do outro homem.

TONIA sua família está bem, graças a Deus.Pelo menos por enquanto.

NARCISOVocê...

-34-

TONIE o seu neto é lindo. Um bebémaravilhoso. Nós vamos tomar contadele, não se preocupe. Enquanto vocêestiver aí...retirado... não lhe vaifaltar nada.

NARCISOSe acontecer alguma coisa ao meunetinho...

Emilio arranca o telefone das mãos de Narciso e fala comseriedade.

EMILIOIsso só depende de si!

O velho pescador encosta-se para trás e começa a chorar.

NARCISOA minha família não... por favor...

Emilio encosta o telefone ao ouvido.

EMILIOParece-me que ele já entendeu.

Desliga o telefone e fica a olhar friamente para o pescadorque soluça à sua frente.


NELSON joga matraquilhos com três amigos.

HUMBERTO entra na tasca e olha para Nelson. Dirige-se aobalcão.

HUMBERTODá aí duas minis.

O GOMES serve-lhe as cervejas e Humberto joga umas moedas paracima do balcão. Dirige-se à mesa de matraquilhos, onde Nelsoncelebra a vitória.

NELSONQuem é que é o maior? Quem é?

Humberto aproxima-se dele e estende-lhe uma das minis.

HUMBERTOToma aí, para celebrar.

Nelson olha-o desconfiado, mas não rejeita a cerveja.

-35-

NELSONEstamos ricos, é?

HUMBERTOSe calhar... Anda sentar-te ali.

Dirige-se para uma mesa e senta-se com a cerveja, à espera dorapaz.


MIGUEL ÂNGELO e JOSÉ BAPTISTA estão verdadeiramente chateadoscom ROMUALDO, que os olha aflitos.

JOSÉ BAPTISTAPorra, pá! Isto já começa a ser demais.O que é que se passa contigo?

ROMUALDONão sei, senhor.

MIGUEL ÂNGELOMas isto é normal?

ROMUALDOÉ a minha primeira vez, senhor. Como éque eu vou saber se é normal?

JOSÉ BAPTISTAPorra, porra!

Nesse momento BATEM À PORTA da suite.

MIGUEL ÂNGELODeve ser o Romão.

José vai abrir a porta, espreitando primeiro com cuidado.Depois abre-a e deixa entra JOSÉ ROMÃO. Este traz um saco defarmácia na mão.

JOSÉ BAPTISTAPorra, que também demoraste.

JOSÉ ROMÃOTive de andar à procura da farmácia deserviço. O gajo ainda não...?

JOSÉ BAPTISTANão. Nem um para amostra.

-36-

José Romão tira qualquer coisa do saco de plástico. É umCLISTER. Romualdo esbugalha os olhos.

ROMUALDOO que é isso?

MIGUEL ÂNGELOÉ uma coisinha que te vai ajudar, pá.Não te preocupes.

ROMUALDOVocês não vão me meter isso na bunda,vão?

Olha em redor.

ROMUALDONão, imagina que eu vou deixar umacoisa dessas.

JOSÉ BAPTISTANão te armes em parvo, pá.

Romão avança para o jovem brasileiro, acompanhado pelos doisoutros homens.

ROMUALDOChega para lá, cara!

MIGUEL ÂNGELOAgarrem-me esse gajo!

Os três carregam sobre ele, dominando-o, e enfiam-no para acasa de banho, tapando-lhe a boca. O jovem continua aespernear, tentando resistir. Miguel Ângelo fecha a porta dacasa de banho com o pé, cortando-nos a visão do que se está apassar no interior.


HUMBERTO e NELSON conversam em voz baixa, com ar suspeito.

NELSONO meu pai nunca vai alinhar nisso. Ovelho tem a mania que é honesto.

HUMBERTOE quem é que disse que precisamos doteu pai?

-37-

Nelson pára um momento para pensar. Humberto faz sinal aoGomes.

HUMBERTOSão mais duas!

(para Nelson)Eu sei manobrar o barco, tu arranjas achave. O teu velho nem dá por nada.

NELSONSe ele descobre fica lixado connosco.

Gomes traz as cervejas nesse momento e retira-se.

HUMBERTODescobre como, meu? Saímos de noite,voltamos de madrugada, é só o tempo dogajo dar duas voltas na cama.

NELSONNão sei...

Humberto levanta a garrafa de mini.

HUMBERTOÉ o negócio das nossas vidas, meu. E senós não formos rápidos, outro gajoqualquer vai adiantar-se. Toda a gentequer o lugar do mestre Narciso.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/CELA - NOITE, MAIS TARDE

MESTRE NARCISO está sentado, sozinho. Pensa. Após um momentolevanta-se e dirige-se à porta, batendo com força.

NARCISOEstá aí alguém?

Como ninguém responde, volta a bater na porta com mais força.

NARCISOEhhh! Quem é que está aí?

UM GUARDA responde-lhe do outro lado, mas sem abrir a porta.

GUARDA PRISIONAL (O.S.)Pouco barulho, ó! Isto não são horaspara cenas.

NARCISOEu tenho de fazer um telefonema.

-38-

O guarda abre uma pequena janela na porta da cela. Só vemos osseus olhos.

GUARDA PRISIONALJá passou a hora. Vai dormir, vá.

NARCISOMas eu preciso de falar com a minhafamília.

GUARDA PRISIONALE eu precisava de ter uma gaja aquicomigo, a fazer-me umas massagens.

NARCISOEstou a falar a sério.

GUARDA PRISIONALE eu também, porra! Chega de conversa.

Narciso encosta a cabeça à porta, desanimado.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - NOITE

MIGUEL ÂNGELO, JOSÉ BAPTISTA e JOSÉ ROMÃO estão na suite, aolhar para ROMUALDO, que está deitado numa cama, na posiçãofetal, cheio de dores.

JOSÉ BAPTISTASerá que o gajo está bem?

JOSÉ ROMÃOSim, aquilo é normal.

JOSÉ BAPTISTAEspero que seja. A última coisa que euquero é que o gajo me morra aqui.

MIGUEL ÂNGELODescontrai-te, pá.

José Romão acende um cigarro.

JOSÉ ROMÃOE quanto ao pescador? O que é quequerem fazer?

-39-

JOSÉ BAPTISTAEu ainda não percebi bem o que é que ogajo queria. Porque raio é que veiofalar connosco?

JOSÉ ROMÃOO gajo sabe o que nós fazemos e achaque podemos pô-lo em contacto com afamília Alferro.

JOSÉ BAPTISTAEra o que faltava! Agora tornava-memanager de traficantes.

Miguel senta-se.

MIGUEL ÂNGELOOlha que pode não ser uma má ideia,sabes?

JOSÉ BAPTISTAO quê? Dar-lhe o telefone dos Alferro?

MIGUEL ÂNGELONão, porra!

Aponta para o jovem brasileiro deitado ali ao lado.

MIGUEL ÂNGELOTu não estás farto disto? Destas cenas?Isto é o que se chama "um trabalho demerda"...

Os outros dois riem.

JOSÉ BAPTISTALá nisso tens razão... Mas, e daí?

MIGUEL ÂNGELOPorque é que não mudamos de nível?Vamos falar com os Alferro e com oscolombianos. Os galegos entram com ofinanciamento, nós organizamos aoperação. Pode ser bom para todos.

Romão ouve com atenção.

JOSÉ BAPTISTANão sei, pá. É capaz de ser muita areiapara a nossa camioneta. Galegos, pá...

-40-

Nesse momento Romualdo levanta-se da cama e corre para a casade banho, agarrado à barriga.

ROMUALDOVou cagar! Vou cagar!

Depois do rapaz passar, Miguel olha de novo para o sócio.

MIGUEL ÂNGELOTens a certeza de que não queres falarcom o tal pescador?


HUMBERTO continua a falar com NELSON.

HUMBERTOEste gajo que eu conheço - ele tem ocontacto dos galegos. O gajo vai meter-nos no negócio, Nelson. A gente vaidar-se é bem...

Levanta a garrafa para fazer um brinde.

HUMBERTOBate aí!

O rapaz já está mais convencido e ergue também a garrafa. Osdois tocam os gargalos...

...precisamente no momento em que MESTRE MÁRIO DAVID entra natasca, a tempo de ver o brinde do filho com o ex-empregado.

Mário dirige-se na direcção deles, mas é interrompido por umPESCADOR que o desafia de uma mesa de bisca.

PESCADOR#2Vai uma cartada, Mestre?

MÁRIO DAVIDEsta noite não.

Quando olha de novo, o filho já se levantou da mesa e afastou-se no sentido contrário. Humberto está a pagar as cervejas.

MÁRIO DAVIDBoas...

HUMBERTOBoas.

Mário tira um maço de notas do bolso e estende-o ao outro.

-41-

MÁRIO DAVIDEstá aqui o teu dinheiro. Todo.

Humberto hesita, mas agarra no dinheiro.

HUMBERTOAs boas contas fazem os bons amigos,não é?

MÁRIO DAVIDPois.

Olha na direcção de Nelson, que está a sair da tasca com OSSEUS AMIGOS.

MÁRIO DAVID(para Humberto)

Posso saber ao que estavas a brindarcom o Nelson?

HUMBERTOFutebol. Ao nosso FCP. Porquê,incomoda-te?

MÁRIO DAVIDPor acaso, incomoda.

Humberto arruma o dinheiro no bolso e sorri com cinismo.

HUMBERTOAzar o teu.

Afasta-se de Mário.

EXT. TASCA DE PESCADORES - NOITE, MAIS TARDE

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/SUITE 10 - NOITE, MAIS TARDE

JOSÉ BAPTISTA e MIGUEL ÂNGELO estão na suite. ROMÃO fala dooutro lado da porta da casa de banho.

JOSÉ ROMÃO (O.S.)Pronto, já está. O gajo já pariu tudo.

JOSÉ BAPTISTAFoda-se, até que enfim.

Deixa-se cair para trás.

MIGUEL ÂNGELOLava-me isso bem, ouviste?

-42-

JOSÉ ROMÃO (O.S.)Já está tudo tratado...

A porta da casa de banho abre-se e lá de dentro sai JOSÉ ROMÃOcom uma toalha de mão a fazer de saco. Aproxima-se da cama eestende-a em cima, revelando o seu conteúdo.

São cerca de TRINTA CÁPSULAS DE BORRACHA BRANCAS, do tamanho deum dedo polegar bem gordo. José Baptista agarra numa delas comcuidado e uma expressão de nojo.

JOSÉ BAPTISTATanto merda por causa desta... merda...

MIGUEL ÂNGELO(para Romão)

Contaste bem? Está aí tudo?

JOSÉ ROMÃOUm quilo certo. E é mesmo cocaína, dapura.

ROMUALDO sai nesse momento da casa de banho. Vem com um arbranco e macilento.

ROMUALDOJá está. Já têm o que querem. Posso tero meu dinheiro agora?

JOSÉ BAPTISTAAproveita para descansar, pá. Não vaisvoltar a dormir num quarto tão bom comoeste.

ROMUALDOEu preferia ter o meu dinheiro hoje, seo senhor não se importar. Quero dar ofora daqui.

Os dois sócios entreolham-se.

MIGUEL ÂNGELOPaga-lhe, se é isso o que ele quer.

José Baptista mete a mão no casaco e tira um envelope não muitogordo.

JOSÉ BAPTISTANão percebo porque é a pressa, mas...

Dá o dinheiro ao rapaz, que se vira de costas para o contar.

-43-

MIGUEL ÂNGELONão o gastes todo em gajas.

(para os comparsas)Vamos lá falar com esse Humberto.

Com um gesto, Miguel volta a embrulhar as cápsulas de droga.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/CORREDOR - NOITE, MAIS TARDE

Um GUARDA PRISIONAL caminha pelo corredor da zona de celas daPJ, fazendo uma inspecção de rotina. Para à frente de umaporta, abre a pequena portinhola e espreita para o interior.Volta a fechá-la e segue para a porta seguinte.

Repete a operação. Abre a portinhola, espreita para o interiormas, desta vez...

GUARDA PRISIONALPorra! Mas o que é...?

Tira as chaves da cintura, tentando soltá-las rapidamente.Escolhe uma chave, abre a porta e...

...vemos finalmente o que provocou a sua surpresa: o CORPOINERTE DE MESTRE NARCISO, enforcado num dos cantos da cela. Oguarda faz uma cara de horror.

INTERVALO


O vento sopra forte e joga salpicos de água do mar no rostocurtido de HUMBERTO. O pescador está ao leme da traineira "RosaLinda", que navega sem luzes de presença em direcção à costa.

À proa da embarcação segue NELSON, o filho de Mestre Mário. Vaiinclinado para a frente, perscrutando o horizonte com olhosatentos.

NELSONJá vi o farol.

HUMBERTOEu sei. Mais meia hora e estamos emterra.

Nelson vira-se e senta-se no convés, ao lado de um VOLUMEcoberto de lona. Acende um cigarro e sorri.

-44-

EXT. PRAIA DESERTA - NOITE, AO MESMO TEMPO

Uma praia completamente vazia, meio deserta, na costaportuguesa. As gaivotas dormem na areia, em bando.

Subitamente, uma CARRINHA TIPO PICKUP, de caixa fechada, entrana areia e avança rapidamente pela praia. As gaivotas esvoaçam,assustadas pela luz dos faróis. A carrinha pára virada para omar, com as luzes acesas.

EXT. ESTAÇÃO DE ABASTECIMENTO - NOITE, AO MESMO TEMPO

Vários jeeps da GNR estão estacionados no parque deestacionamento de um posto de abastecimento, numa estradasecundária.

Perto deles está também o carro à paisana dos inspectores da PJRAFAL MARQUES e ALEXANDRA GOMES. O homem está fora do carro, afumar.

ALEXANDRANão está na hora?

Rafael consulta o relógio e atira o cigarro aceso para o chão.Faz sinal a um TENENTE da GNR que está perto de um dos jeeps.

RAFAELVamos embora!

A voz de comando desencadeia uma movimentação nos MILITARES.Entram nos jeeps, ligam motores, acendem faróis. Algunsverificam as metralhadoras.

Depois de conferir a cena, Rafael abre a porta do seu carropara entrar. Alexandra aponta a beata acesa.

ALEXANDRALindos exemplos que tu dás...

RAFAELEu sou assim - gosto de viverperigosamente.

Alexandra sorri enquanto o colega põe o carro em marcha e sejunta à coluna de veículos em movimento.

EXT. MAR ALTO - NOITE, AO MESMO TEMPO

HUMBERTO estica-se para ver mais longe e fala para NELSON.

HUMBERTOEstamos a chegar.

-45-

O rapaz levanta-se e atira o cigarro apagado para o convés daembarcação, pisando-o de seguida. Olha para terra.

Do seu POV vemos uma faixa de arribas com uma praia encaixadano meio. Distinguimos a luz de dois faróis virados para o mar.

NELSONJá estou a vê-los.

HUMBERTOVai buscar a lanterna.

EXT. ESTRADA RURAL - NOITE, AO MESMO TEMPO

A COLUNA de jeeps da GNR avança por uma estrada de terra,seguida a grande velocidade pelo CARRO da PJ.

Levantam uma nuvem de poeira densa à passagem.

EXT. MAR ALTO - NOITE, AO MESMO TEMPO

NELSON surge do interior da traineira com uma grande LANTERNAna mão. Acende-a, para verificar, e ilumina HUMBERTO.

HUMBERTOVira essa porra para lá!

Nelson aproxima-se do volume coberto de lona e destapa-o,apontando-lhe a lanterna. Vemos que por baixo da coberturaestão VÁRIOS FARDOS de aspecto suspeito, embrulhados emplástico preto forte e bem amarrados com cordas. O seu aspectoé profissional, mas destoam naquela lancha de pescadores.

HUMBERTOFaz mas é sinal para terra.

NELSONPorra, que chato!

Encosta-se à amurada e faz alguns sinais de luzes para a praia.

Do seu POV vemos que os faróis na praia se apagam e acendem, emresposta.

EXT. PRAIA DESERTA - NOITE, AO MESMO TEMPO

Os JEEPS DA GNR saem da estrada e invadem a areia da praiadeserta, avançando em grande velocidade na direcção da PICKUPestacionada.

-46-

O CARRO DA PJ pára na berma da estrada e os inspectores RAFAELe ALEXANDRA desembarcam, seguindo a pé na mesma direcção.

Entretanto, os jeeps cercam a carrinha. O TENENTE sai doprimeiro jeep, de pistola em punho, seguido de VÁRIOS SOLDADOSarmados de metralhadora.

TENENTEMãos ao alto. Saiam do veículo!

Os militares dispõem-se em círculo à volta do carro, de armasapontadas.

Rafael e Alexandra aproximam-se a passo.

TENENTEJá cá para fora, com as mãos para cima!

A porta do lado do condutor abre-se e vemos uma mão que saipara fora, segurando A CHAVE DO CARRO. A porta do lado dopassageiro abre-se também.

Do lado do condutor sai UM RAPAZ na casa dos vinte anos. Estáem cuecas, com um ar aflito no rosto, e olha assustado emredor.

RAPAZEu... nós... ainda não fizemos nada.

Do lado do passageiro sai uma RAPARIGA. Também está em roupainterior e tenta cobrir o corpo com as peças de roupa soltas.Alguns militares sorriem com o espectáculo.

TENENTEMas que merda é esta?

Rafael e Alexandra aproximam-se da cena.

O tenente vira-se.

TENENTEO que é que se passou aqui, inspector?A sua informação...

RAFAEL...pelos vistos estava errada.

EXT. OUTRA PRAIA DESERTA - NOITE, AO MESMO TEMPO

A traineira "Rosa Linda" está fundeada perto de uma outrapraia. VÁRIOS HOMENS estão com água pela cintura, transportandoos FARDOS numa pequena lancha entre a traineira e uma CARRINHAFRIGORÍFICA.

-47-

MIGUEL ÂNGELO e JOSÉ ROMÃO assistem à operação, acompanhadospor TONI ALBERRO. Têm um ar de satisfação. O galego olha emredor.

TONINem sinal da polícia. Parece que avossa manobra de distracção deuresultado.

MIGUEL ÂNGELOOs polícias são todos iguais. Têm tantapressa em apanhar-nos que acreditam emqualquer coisa.

TONIMas isso só funciona uma vez.

Miguel sorri, arrogante.

MIGUEL ÂNGELOPara a próxima inventamos outra coisa.

(pausa)Porque vai haver uma próxima, não vai?

Toni responde apenas com um sorriso.

Na traineira, HUMBERTO faz sinal para terra, indicando que jánão há mais nada no barco. José Romão responde com um sinaluniversal: o braço estendido, o punho fechado, o polegarespetado para cima. Tudo está bem no reino do narcotráfico.

GENÉRICO

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/ENTRADA - NOITE

MIGUEL ÂNGELO abre a porta de casa, entrando sem fazer barulho.Traz o telefone encostado no ouvido.

MIGUEL ÂNGELOAgora vou ter de desligar. Já cheguei acasa. Falamos mais logo.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/QUARTO - NOITE, AO MESMO TEMPO

Intercala com JOSÉ BAPTISTA, que está do outro lado da linha,deitado na cama, em troco nu.

JOSÉ BAPTISTAEstá bom... Miguel...

(pausa)

-48-

Parabéns.

MIGUEL ÂNGELOPara nós todos. Tchau.

José Baptista desliga o telefone e vira-se na cama. Abraça umvulto que está ao seu lado. É uma mulher nova, com pouco maisde 20 anos, bonita. O seu nome é DENISE e, logo que fale,perceberemos que é brasileira.

JOSÉ BAPTISTACorreu bem, a nossa operação.

Denise fala de olhos fechados.

DENISE(com sotaque brasileiro)

Que bom, amor...

O homem faz-lhe um carinho nos cabelos e fala com ar sonhador.

JOSÉ BAPTISTATenho um feeling de que isto vai serbom para nós. Vêm aí grandes coisas.

DENISEDeus lhe ouça, meu bem...

José abraça-a com força.

JOSÉ BAPTISTAVamos poder comprar uma casa lá noBrasil, para as férias...

DENISEDorme agora, meu bem. Depois a gentefala.

O homem deita-se, mas continua de olhos abertos e um levesorriso no rosto.


Entretanto, MIGUEL ÂNGELO está a tentar enfiar-se na cama semacordar MARIA DEL CARMO. Esta, contudo, dá pela sua presença evira-se na cama.

MIGUEL ÂNGELOSou eu... dorme.

MARIA DEL CARMENQue horas são?

-49-

MIGUEL ÂNGELOÉ tarde. Vamos dormir.

A mulher abre os olhos e puxa-o para si.

MARIA DEL CARMENAcho que perdi o sono, Miguel. E só háuma maneira de voltar a dormir...

Aproxima a boca da dele, tentadora.

MARIA DEL CARMENSabes qual é, não sabes?

Os dois beijam-se com ardor.

EXT. PORTO DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - AMANHECER

O dia nasce sobre a vila. A traineira "Rosa Linda" entra noporto e aproxima-se do seu lugar de ancoradouro.

HUMBERTO e NELSON seguem aos comandos da embarcação. Quandochegam ao seu destino, Nelson salta para o cais para tratar dasamarrações. Humberto joga-lhe um cabo.

HUMBERTOAgarra!

O jovem segura o cabo com destreza e corre a amarrá-lo. Pelasegurança dos seus movimentos sabemos que já fez aquilo muitasvezes.

A manobra é observada por ZÉ, o velho pescador que faz parte datripulação de Mestre Mário. O homem dá um último golo numagarrafa de vinho e joga-a para o lado. Aproxima-se de Nelson,cambaleante.

ZÉBons dias...

Nelson olha para ele e logo para Humberto, que se endireita.

NELSONBom dia, Zé.

ZÉEntão foram à pesca e não disseramnada?

NELSONNão, fomos só dar uma voltinha...

-50-

ZÉA estas horas?

Humberto salta para terra e aproxima-se.

HUMBERTOFomos ver se picava, mas não deu nada.

Zé olha-o, com ar cínico.

ZÉE o Mestre Mário ficou em terra? Nemparece coisa dele...

HUMBERTOOlha, Zé - é melhor não te meteres ondenão és chamado.

ZÉEle sabe que vocês saíram, não éverdade?

NELSONÓ tio Zé, acontece...


Acontece é que tu tens de ficar de bicocaladinho, e não dizer nada a ninguém.Percebeste, Zé?

ZÉEra mais fácil fechar a boca se nãotivesse a barriga vazia.

NELSONIsso resolve-se já.

Nelson leva imediatamente a mão ao bolso. Tira um molho denotas e estende uma de 100 euros a Zé.

NELSONToma lá e vai comer qualquer coisa.

Zé recebe a nota sem tirar os olhos das outras.

ZÉObrigado, Nelsinho. Eu sabia que tu ésum bom mocinho.

Humberto puxa-o por um braço.

-51-

HUMBERTOE bico calado, hem...?

Zé sacode-lhe a mão. Beija a nota e afasta-se, feliz,cambaleando. Humberto acompanha-o com o olhar.

HUMBERTONão lhe devias ter dado tanto. Só vaisalimentar a ganância dele.

NELSONNão te preocupes. Com o pifo que vaiapanhar nem se vai lembrar donde veio odinheiro.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/PÁTIO - DIA

Mãos experientes depenam uma galinha morta. MARICA ALBERRO estásentada num pequeno banquinho de madeira, com um alguidar aospés, preparando a galinha para cozinhar.

TONI ALBERRO está com ela.

MARICAOs marroquinos disseram alguma coisa?

TONIFicaram satisfeitos por desta vez tertudo corrido bem. Querem marcar já apróxima operação.

MARICAVamos ter calma. Como dizem osportugueses, "há mais marés quemarinheiros"...

TONIDevíamos aproveitar esta enquanto estáa nosso favor.

MARICAAs marés mudam muito depressa na vida.Especialmente nesta nossa vida.

(pausa)Quer dizer que os nossos novos sóciosse portaram bem?

TONIAinda melhor do que eu esperava.

-52-

MARICAMas o teu irmão não foi conhecê-los.

Toni vira as costas.

TONIA mamã sabe o que ele pensa destanovidade.

Marica abana a cabeça, pensativa. Depois levanta-se, com agalinha meio depenada na mão.

MARICAVamos marcar um almoço com esses teusportugueses. Se eu gostar deles,pensaremos em abrir uma conexão com aColômbia.

Toni vira-se, satisfeito.

TONIParece-me bem, mamã. O futuro está aímesmo.

(pausa)Entretanto, o que é que eu digo aosmarroquinos?

MARICAPorque é que precisas de dizer algumacoisa?

Joga a galinha ao filho.

MARICAAcaba tu isto, para não perderes ojeito.

Vira as costas e afasta-se, deixando o filho perplexo.


MESTRE MÁRIO toma um pequeno-almoço frugal juntamente com SARAe ROSA. A filha não está satisfeita.

SARANunca me dão dinheiro para nada. Jáestou farta, farta!

ROSAChega, Sara. Não vamos começar o diaassim.

-53-

Sara cala-se, com esforço.

MÁRIO DAVIDComo é que vão as tuas aulas, filha?

SARAAté parece que isso te interessa.

Mário olha a fria com ar zangado.

MÁRIO DAVIDJá não é costume trazerem os testespara assinar?

SARAPorquê? Agora também achas que vosestou a enganar com os testes, é?

ROSACalma, filha, ninguém disse nada disso.

SARANão disseram mas pensaram...

A porta da rua abre-se nesse momento e Nelson entra em casa.Vem animado.

NELSONBom dia!

(para Sara)Ei, que cara é essa?

SARAÉ a minha, porquê?

NELSONPorra, alguém acordou mal disposto.

Olha os pais enquanto se senta à mesa.

NELSONOu então já a chatearam de manhã...

ROSAIsto são horas de chegar a casa,Nelson?

O rapaz suspira fundo.

NELSONAi, agora viraram-se para mim.

-54-

Sara levanta-se, ainda zangada.

SARAQueres saber a verdade, pai? Sou eu queassino os testes em teu nome. Já façoisso há três anos e tu nunca deste pornada.

Vira-se e afasta-se, apanhando a mochila a caminho da porta. Ospais ficam a olhá-la, espantados. Nelson ri-se.

NELSONHem, pai, com esta é que não estavas acontar?

Mário olha-o zangado.

INT. SEMANÁRIO "AGORA"/REDACÇÃO - DIA

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/ANEXO INTERROGATÓRIOS - DIA


MIGUEL ÂNGELO está sentado ao volante de um Porsche já comalguns anos, mostrando o interior a um COMPRADOR que está depé.

MIGUEL ÂNGELONeste mundo só há dois tipos de homens.Os que já conduziram um Porsche, e osoutros.

O seu TELEFONE TOCA. Miguel sai do carro.

MIGUEL ÂNGELOSó um momento. Vá experimentando olugar.

O homem entra para o carro e Miguel atende o telefone.

MIGUEL ÂNGELOEstou, sim?

INT. QUINTA DOS ALBERRO/ESCRITÓRIO - DIA, AO MESMO TEMPO

A chamada vem de TONI ALBERRO.

TONISou eu. A minha mãe quer conhecer-vos,a ti e ao teu sócio.

-55-

Intercala com Miguel.

EXT. STAND DE AUTOMÓVEIS USADOS - DIA, AO MESMO TEMPO

MIGUEL ÂNGELO tenta disfarçar o entusiasmo com a notícia.

MIGUEL ÂNGELOQuando?

TONIVai ser um almoço. Depois combinamos.

MIGUEL ÂNGELOFico à espera, então.

TONIEnquanto esperas, pensa bem na propostaque tens para nos fazer. Só vais teruma oportunidade para convencer a minhamãe.

MIGUEL ÂNGELONão preciso de mais.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/QUARTO - DIA, AO MESMO TEMPO

INT. STAND DE AUTOMÓVEIS USADOS - DIA, AO MESMO TEMPO

INT. LICEU/SALA DE AULAS - DIA

SARA está sentada numa sala de aulas de um liceu público. O seuolhar é completamente ausente, fixo numa nesga de céu que se vêpela janela.

PROFESSORA (O.S.)Sara...?

Sara continua a olhar pela janela. A PROFESSORA aproxima-sedela. Os COLEGAS acompanham a cena.

PROFESSORASara! Podes regressar à Terra, porfavor?

Sara percebe finalmente que estão a falar com ela.

SARASim..?

-56-

PROFESSORAÉ um prazer ter-te de volta, Sara.Estávamos a sentir saudades tuas.

Os colegas riem, incluindo dois que conheceremos melhor daqui apouco: JOÃO e MANÉ. A mesma idade de Sara, 16, as mesmas roupasvulgares, as mesmas borbulhas e ar descuidado.

SARAPois eu não estava a sentir nenhumassaudades suas.

Os colegas riem mais com a resposta, o que irrita a professora.

PROFESSORAVê lá como é que falas, menina...

SARAVocê é professora de Matemática, nãotem nada a ver com o meu português.

PROFESSORAEstás a sair da linha, Sara.

SARAQuer saber uma coisa? Estou-me a cagarpara isso.

PROFESSORASara...!

SARAJá sei, já sei...

A professora aponta a porta.

PROFESSORAPõe-te imediatamente...

SARA...na rua, já sei.

Sara já está de pé, com os livros nas mãos. Fala para oscolegas.

SARANão sei como é que vocês aturam estavaca.

-57-

EXT. LICEU/TRASEIRA DOS PAVILHÕES - DIA

SARA está sentada na relva, encostada a uma árvore, olhando océu. JOÃO e MANÉ aproximam-se dela.

JOÃOIhhh, Sara, desta vez esticaste-te.

MANÉA gaja ficou lixada contigo. Nemimaginas...

JOÃOMas foi muita bem. A gaja é mesmo umavaca.

Mané senta-se ao lado dela e tira um maço de tabaco do bolso doblusão. Lá de dentro tira um CHARRO já enrolado.

MANÉIsto merece uma comemoraçãozinha.

Sara sorri enquanto o amigo acende o charro e tira a primeirapassa. Quando a miúda estende a mão ele faz-lhe uma finta.

MANÉTens dinheiro? É que isto não nasce nasárvores...

SARAPor acaso até nasce.

MANÉTens money ou não?

SARAEu pago-te depois.

MANÉNem penses nisso.

João tira o charro da mão do amigo e dá uma passa. Depoisestende-o a Sara, que aceita e faz o mesmo.

JOÃO(para Mané)

Não chateies, meu, eu pago a partedela.

-58-

MANÉEu não estou a chatear. Mas a Sara temde arranjar guito, não pode andarsempre à pendura.

SARAEu arranjo, não te preocupes.

Mané encosta-se a ela.

MANÉOu isso, ou vais pensando em pagar deoutra maneira...

SARAVai sonhando, vai.

Dá uma passa profunda e devolve o charro a João, deixando-secair para trás, olhando o céu sem limites.


ZÉ entra na tasca do costume, feliz e contente. Dirige-se aobalcão e bate no tampo com a palma da mão.

ZÉGomes!

O taberneiro GOMES aproxima-se.

GOMESO que é que queres?

Zé levanta a mão, mostrando uma NOTA de 100 euros.

ZÉIsto chega para pagar o que devo?

Gomes apanha rapidamente a nota.

GOMESTenho que ver.

ZÉEnquanto fazes isso, dá-me aí um copode três.

Gomes espreita a nota contra-luz.

GOMESO mestre Mário anda a pagar bem, hem?

Zé disfarça.

-59-

ZÉVá lá, o meu copinho... Estou com umasede que nem me endireito.

INT. SEMANÁRIO "AGORA"/GABINETE - DIA

EXT. ESPLANADA - DIA

MIGUEL ÂNGELO está com JOSÉ BAPTISTA numa pequena esplanada,gozando o sol da hora do almoço. Tem o telefone no ouvido e éobservado com muita atenção pelo sócio.

MIGUEL ÂNGELOEstá tudo a correr muito bem. Muito bemmesmo.

Faz um sinal afirmativo a José.

MIGUEL ÂNGELOEstá a correr tão bem que eu acho que éaltura de darmos um passo em frente.

INTERCALA COM:

EXT. FAZENDA EM CALI/COLÔMBIA - DIA, AO MESMO TEMPO

Numa fazenda encravada num vale tropical...

Legenda: CALI, COLÔMBIA

INT. CASA NA COLÔMBIA/ESCRITÓRIO - DIA, AO MESMO TEMPO

... um homem está a falar com Miguel. É NESTOR PRECIADO, 34, umcolombiano moreno, de ar perigoso, vestido com um fato de linhoamachucado. Está de pé junto a uma janela e é observado porMARCOS ROMEU, um brasileiro mais novo e descontraído.

NESTOR(fala em espanhol daColômbia)

E isso quer dizer o quê?

MIGUEL ÂNGELOQue está na hora de expandirmos a nossaoperação. Deixarmos os quilos epassarmos às toneladas.

-60-

NESTORÉ um passo muito grande. Pode sergrande demais para a perna...

MIGUEL ÂNGELOA perna está boa, não se preocupe.

Nestor olha para Marcos, que faz uma expressão de curiosidade.

NESTOREntão talvez seja melhor que nosencontremos. Essas coisas não sediscutem pelo telefone.

MIGUEL ÂNGELOÉ isso mesmo que eu ia sugerir.

NESTORPrepare tudo por aí. Eu e o meu sóciovamos fazer-vos uma visita.

Nestor desliga o telefone.

MARCOS(com sotaque brasileiro)

O que é que os portugueses querem?

NESTORExpandir.

MARCOSE têm como?

NESTORÉ bom que tenham. Detesto viajar semnecessidade.

EXT. TRAINEIRA "ROSA LINDA" - DIA

MESTRE MÁRIO está no barco, ao pé da tampa do motor. TEOTÓNIO alavar o convés com um esfregão.

MÁRIO DAVIDTenho de fazer uma revisão a estemotor, se não ainda fico sem ele.

Mexe no motor.

MÁRIO DAVIDIsto não devia ficar parado tantotempo...

-61-

Teotónio debruça-se e apanha o MAÇO DE TABACO amachucado queNelson atirou para o chão.

TEOTÓNIOO Nelson não tem andado com o barco?

MÁRIO DAVIDPorque é que perguntas?

TEOTÓNIOEstá aqui um maço de tabaco dele. E jáapanhei algumas beatas...

Mário aproxima-se, curioso.

MÁRIO DAVIDNão. O barco tem estado parado.

Agarra no maço, desconfiado. O outro pescador observa-o.

TEOTÓNIOÓ Mário, tu não tens andado a sair semme dizer nada?

MÁRIO DAVIDClaro que não!

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DE NELSON - DIA

SARA está no quarto do irmão, um quarto cheio de posters demotociclismo. Rebusca furtivamente as suas coisas, tentando nãofazer barulho. Vai olhando para a porta encostada, temerosa.

Não encontra nada nas gavetas da cómoda; nem na mesinha decabeceira.

Ajoelha-se ao lado da cama e mete a mão por baixo do colchão.Vai apalpando até encontrar qualquer coisa. Retira...

...UM ENVELOPE GORDO. Abre-o e descobre que está cheio denotas.

Sara abre os olhos, surpreendida. Tira uma nota de 100 e fechao envelope. Depois hesita. Respira fundo e volta a guardar anota no envelope e a escondê-lo.

Continua a apalpar debaixo do colchão até encontrar o queprocura:

Um pequeno SABONETE de haxixe, embrulhado em papel de prata.

NELSON (O.S.)O que é que estás a fazer?

-62-

Sara vira-se, assustada, e tenta levantar-se. O irmão agarra-apelo braço e fala com agressividade, mas mantendo a voz baixa.

NELSONGrande ladra! Dá cá isso!

SARALarga-me, estás a magoar-me!

Nelson dá-lhe uma estalada e tira-lhe o haxixe.

SARAEstúpido! Bruto!

NELSONSe voltas a mexer nas minhas coisas,nem sabes o que te faço!

SARAEstás com muita sorte por eu não dizeraos pais que tens droga em casa.

NELSONSara...!

SARAÉ o que eu devia fazer. És um egoísta.Tens imensa e nem ofereces umbocadinho.

NELSONNão tens idade para isto ainda.

Sara esfrega a cara dorida.

SARAO que é que andas a fazer, Nelson.Agora és dealer?

NELSONNão inventes...

SARAVá lá, mano. Só uma pedrinha. Para osmeus amigos não me chatearem...

Nelson hesita.

SARASó uma...

-63-

Nelson tira um pequeno canivete do bolso e começa a cortar umapedra de haxe.

NELSONMas que eu nunca mais te veja aqui nomeu quarto, ouviste?

(abana a cabeça)Dealer, eu...

Fica pensativo.


MARIA DEL CARMEN está em frente do espelho, a terminar decolocar um colar de pérolas. MIGUEL arruma a sua carteira.

MARIA DEL CARMENAjuda-me aqui.

O marido coloca-se atrás dela, apertando-lhe o fecho do colar.

MIGUEL ÂNGELOEstás linda.

MARIA DEL CARMENNem sei para quê. Para ir jantar comuma pessoa de que não gosto e outra quenem conheço.

MIGUEL ÂNGELOO Zé é meu sócio. É melhores ires-tehabituando à ideia.

MARIA DEL CARMENMas não sou obrigada a gostar dele,pois não?

MIGUEL ÂNGELOMas devias. Já está...

Afasta-se da mulher, fazendo-a rodar para ver o resultado.

MIGUEL ÂNGELOUma parte do meu sucesso... esse colar,por exemplo... deve-se à minhasociedade com o Zé Baptista. Tens derespeitar isso, pelo menos.

Maria del Carmen vira-se, aborrecida. Começa a escovar ocabelo.

-64-

MARIA DEL CARMENNão te preocupes. Vou tratá-lo como umpríncipe.


ZÉ está sentado numa das mesas da tasca, completamente bêbado.GOMES está de pé ao lado dele.

GOMESEstá na hora de ires para casa, Zé.Daqui a bocado não dás com o caminho.

ZÉEu para casa vou até a dormir. Traz-meoutro copito.

Gomes vira-lhe as costas e cruza-se com o MESTRE MÁRIO, queacaba de entra na tasca.

GOMESVai lá tomar conta do teu homem, Mário,que eu já não tenho pachorra.

MÁRIO DAVIDO que é que ele tem?

GOMESO que é que achas? Uma cardina dasantigas.

MÁRIO DAVIDPorra, pá - para que é que o deixasficar naquele estado?

GOMESO gajo está a pagar em contado, o que éque eu hei de fazer? Não sou paidele...

Afasta-se, aborrecido. Mário dirige-se à mesa de Zé e senta-se.

MÁRIO DAVIDEntão, tio Zé. Como é que vão ascoisas?

ZÉAs coisas vão muito bem... muito bem...

-65-

MÁRIO DAVIDJá bebeste uma pinguita a mais, hem?

ZÉAinda não bebi nem metade do que voubeber. E agora tu vais fazer-mecompanhia.

(fala alto)Gomes! Ó Gomes! São dois copitos.

MÁRIO DAVIDEstás cheio de dinheiro, hem?

Zé parece acordar de repente.

ZÉHum... é...

HUMBERTO chega nesse momento à tasca e repara na conversa dosdois.

MÁRIO DAVIDVendeste alguma coisa?

ZÉNão... quer dizer, sim...

(alto)Então, ó Gomes. Demora muito?

MÁRIO DAVIDAnda daí, não vais beber mais hoje.Vamos para casa.

Humberto chega-se ao pé deles nesse momento

HUMBERTOEstá tudo bem?

Mário olha-o com alguma indiferença.

HUMBERTOEstás bem, Zé?

ZÉO Mário não quer beber comigo. Bebestu? Tu é que és o meu amigão, não éverdade?

Humberto senta-se na mesa com os dois.

HUMBERTOMas só mais um copo, ouviste?

-66-

Mário faz má cara mas não tem o que dizer.

EXT. BECO - NOITE

EXT. POUSADA DE CAMINHA - NOITE

A pousada de Caminha preside sobre a Vila. O restauranteenvidraçado vê-se à distância.

INT. POUSADA DE CAMINHA/RESTAURANTE - NOITE

No interior da Pousada, no Restaurante, decorre o jantar deMIGUEL, MARIA DEL CARMEN, JOSÉ e DENISE. A espanhola está decara fechada mas a brasileira compensa na conversa.

DENISEA primeira vez que eu vi o José foi numparque de diversões, em Fortaleza.Vocês conseguem imaginar esse cara numparque de diversões?

MIGUEL ÂNGELORealmente...

DENISEEu tão pouco. Mas ele lá estava, namontanha russa.

Faz uma festa na cara de José, que sorri.

DENISEO meu garotinho...

Miguel serve vinho a Denise e a Maria del Carmen.

MIGUEL ÂNGELOÉ a prova de que o amor pode surgir emqualquer lugar.

DENISEAté de ponta-cabeça.

Olha para Maria.

DENISEE você, Maria, gosta de parques dediversão?

MARIA DEL CARMENNem por isso.

-67-

DENISEAqui também não tem parques queprestem. Você conhece algum, emEspanha? Se houver um bom o meuamorzinho vai ter de me levar lá.

(para José)Não é, mor?

JOSÉ BAPTISTAClaro, minha flor.

Como Maria não respondeu, Denise vira-se de novo para ela.

DENISEConhece algum, Maria?

MARIA DEL CARMENNão, realmente não.

Miguel repara na frieza da mulher e resolve intervir. Ergue ocopo.

MIGUEL ÂNGELOVamos fazer um brinde, vá!

Todos erguem os copos.

MIGUEL ÂNGELOQue o mundo seja o nosso parque dediversões e a vida uma longa viagem demontanha russa.

JOSÉ BAPTISTABrindo a isso.

Batem os copos num brinde. Maria del Carmen bebe apenas um goloe olha para a janela, para a vista sobre o rio Minho e sobre asua terra, a Galiza.

Denise levanta-se.

DENISECom licença.

Afasta-se da mesa, rebolando ligeiramente as ancas. O vestidovermelho de seda realça as suas curvas generosas.

Miguel não consegue evitar olhar para ela durante um pouco maisde tempo do que seria normal. Depois toma consciência disso eolha para Maria del Carmen, que está a fitá-lo intensamente.

Miguel sorri atrapalhado mas a mulher desvia o olhar,obviamente aborrecida.

-68-


ZÉ, MÁRIO e HUMBERTO continuam à mesa. O Mestre Mário bebeuapenas um café e um bagaço, mas os outros dois pescadoresatacaram no vinho.

Zé levanta o copo para fazer um brinde.

ZÉVamos brindar. Ao meu amigo Humberto,que me deu tantas alegrias.

Humberto bate no copo do velho. Mário olha para o lado.

HUMBERTOViva!

ZÉE ao Nelson. Ao Nelson também, o meuamigo Nelson.

A referência ao filho faz Mário prestar atenção.

MÁRIO DAVIDAo Nelson porquê? Ao que é que o meufilho é aqui chamado?

ZÉOra! Porque ele também aqui devia estara brindar connosco. Então não foiele...

Humberto agarra no braço do velho, interrompendo-o.

HUMBERTOO Nelson não tem idade para estar aquia beber com os velhos.

Mas Mário ficou curioso.

MÁRIO DAVIDFoi ele que quê?

Zé percebe que falou demais.

ZÉNada, nada...

HUMBERTOTu já bebeste foi demais, Zé. Vais édormir, que bem precisas. Anda daí queeu levo-te a casa.

-69-

MÁRIO DAVIDEu levo, deixa estar. Já acabei o meubagaço.

HUMBERTONão tem problema - eu também já tenho aminha conta, e a casa dele fica no meucaminho.

Zé levanta-se, cambaleante.

ZÉNinguém me leva, porra! Não sou nenhumacriança, sei ir para casa sozinho!

Dirige-se ao balcão para pagar. Humberto fica o a olhar para ovelho pescador. Mário, por sua vez, olha é para Humberto.


MIGUEL entra no quarto, e começa a despir-se. MARIA DEL CARMENentra atrás dele, de cara séria. Dirige-se para o WC.

MIGUEL ÂNGELOEstiveste com uma cara toda a noite.Até estava envergonhado.

MARIA DEL CARMEN (O.S.)Em compensação, tu foi só sorrisos.Especialmente para a brasileirinha...

MIGUEL ÂNGELOIsso quer dizer o quê?

Dirige-se para a porta do WC e fica a olhar para a mulher, queestá a tirar as jóias e a desfazer a maquilhagem.

MARIA DEL CARMENQuer dizer isso mesmo. Que tu nãotiraste os olhos da mulher do teu amigoa noite inteira. Nem sei como é que elenão ficou chateado.

MIGUEL ÂNGELOAh, não. Cenas de ciúmes é que não.

Maria vira-se, zangada.

-70-

MARIA DEL CARMENMiguel, por favor! Eu vi como tuolhaste para ela quando se levantou. Sófaltou ires atrás.

Miguel tenta desfazer o clima. Avança para a mulher, tentandobrincar.

MIGUEL ÂNGELOEstás com ciúmes do teu maridinho, é?

MARIA DEL CARMENNão, Miguel. Estou é muito zangadacontigo!

MIGUEL ÂNGELOVá lá, deixa-te...

MARIA DEL CARMEN(interrompendo)

Esta noite era melhor dormires na sala.Ou então durmo eu.

Miguel muda de expressão e fica sério. Depois vira as costasbruscamente e afasta-se zangado. Maria fecha os olhos.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/QUARTO - NOITE

DENISE também fala com JOSÉ BAPTISTA sobre o jantar. Os doisestão deitados e a rapariga está a fazer uma massagem aonamorado, sentada sobre as suas costas, apenas com uma t-shirtsobre o corpo.

DENISEÉ simpático, o seu sócio. É como eutinha imaginado.

JOSÉ BAPTISTAMais para cima...

DENISEJá a mulher dele... Que mala sem alça.Eles são casados faz muito tempo?

JOSÉ BAPTISTAHá uns anos.

(pausa)Isso, aí mesmo.

-71-

DENISEE são bem casados?

José espreita por cima do ombro.

JOSÉ BAPTISTAMas que curiosidade é essa?

DENISENão é nada - é que ela foi tãoantipática esta noite. Mas pode não sernada com a gente, pode ser que ocasamento esteja mal.

JOSÉ BAPTISTAMal? Não... Eles têm o casamento maissólido que eu conheço. Não ponho asmãos no fogo por muitos, mas pelo delesaté punha.

Denise sorri, pensativa.

DENISEÉ mesmo...

EXT. BAIRRO DE PESCADORES - NOITE

ZÉ, cambaleante, chega à porta da sua casa humilde, num bairrode pescadores. A rua está deserta. O velho pescador tira achave e começa a tentar abrir a porta, com dificuldade.

HUMBERTO surge da sombra, olhando em redor.

HUMBERTODeixa estar, tio Zé. Eu ajudo-te.

Tira-lhe a chave das mãos e abre a porta da casa do pescador.Este tem um ar meio assustado.

ZÉEu não disse nada, Humberto...

HUMBERTOEu sei, eu sei.

Humberto empurra-o para dentro de casa e volta a olhar emredor, certificando-se de que ninguém o está a ver.

-72-

INT. CASA DE ZÉ - NOITE

ZÉ está sentado na cama, a descalçar as botas de pescador.HUMBERTO abre-lhe a cama.

ZÉÉ o vinho. Maldito vinho, destapa-me aboca e só digo disparates.

HUMBERTONão te preocupes, meu velho. Está tudobem.

O velho deita-se na cama, ainda vestido, e Humberto tapa-o.

ZÉNão ficaste chateado comigo, pois não?

HUMBERTONão, claro que não. Então eu não sou oteu amigão?

Zé fecha os olhos, com um sorriso satisfeito.

ZÉAinda bem...

Humberto agarra numa ALMOFADA e tapa a cara de Zé com ela,sufocando-o.

HUMBERTOEu ia lá ficar chateado contigo.

O velho pescador resiste, esperneando e esbracejando, mas ooutro homem é incomparavelmente mais forte do que o velhofrágil. Pouco a pouco as tentativas de resistência vão ficandomais fracas até que o pescador fica imóvel. Humberto destapa-lhe então a cara. Coloca-lhe a almofada debaixo da cabeça efecha-lhe os olhos.

HUMBERTOBons sonhos, Zé.

Sai do quarto desligando a luz.

EXT. LICEU - DIA

Mais um dia escolar que começa. Os ESTUDANTES do liceu da vilaentram em pequenos grupos, carregando mochilas.

-73-

EXT. LICEU/TRASEIRA DOS PAVILHÕES - DIA

SARA, JOÃO e MANÉ estão a fumar o primeiro charro da manhã.

MANÉÉ bom, este haxe.

Passa o berlaite a João, que dá uma passa profunda.

JOÃOPois é...

(para Sara)Onde é que arranjaste isto?

SARARoubei ao meu irmão.

JOÃOPorra! Tu és muita maluca...

Sara dá também uma passa e sorri, satisfeita com a aprovaçãodos amigos.

João olha em redor, certificando-se de que não está a servisto.

JOÃOQuerem ver uma coisa que eu arranjei?

Os outros dois olham para ele com curiosidade. João tira umpequeno pacote de prata do bolso e desenrola-o, mostrando umapequena quantidade de pó branco.

SARAO que é isso?

JOÃOCavalo. Heroína...

SARAEi, que fixe.

MANÉEstás doido? Guarda isso! Essa merdanão é haxe, os profes flipam se teapanham com isso aqui.

João volta a enrolar o pacote, com muito cuidado.

JOÃOPodíamos experimentar isto, mais tarde.

-74-

MANÉNem penses. Eu não quero nada comagulhas.

JOÃOQuem falou em agulhas. Podemos fumaruma chinesa.

SARAPorque é que não experimentamos agora?

JOÃOAgora não, é um desperdício, já estamosa fumar chamon. Mais logo...

MANÉEu estou fora, meu.

SARAÉs muita careta! Eu alinho.

Mané levanta-se.

MANÉEntão bom proveito.

Sara dá mais uma passa e puxa a cara de João para perto dela.Encosta a boca na boca dele e sopra-lhe o fumo para dentro. Orapaz fica surpreso, mas agradado.

Sara deita-se para trás e ri sozinha.


MIGUEL ÂNGELO está a colocar a placa com o preço num PORSCHECAYENNE lindo quando TONI ALBERRO entra de carro no parque. Oportuguês acompanha-o com o olhar até ele parar ao lado.

TONICarro lindo...

MIGUEL ÂNGELODemais. Se não o vender depressa, achoque vou ficar com ele.

Toni sai do carro e aperta a mão a Miguel.

TONIPode ser que eu o compre, quem sabe. Seos nossos negócios correrem bem...

-75-

MIGUEL ÂNGELOQuem sabe.

JOSÉ BAPTISTA surge do interior do stand e avança para eles, demão estendida.

TONIEstão prontos?

Cumprimenta o recém-chegado.

MIGUEL ÂNGELOPara o que der e vier.

TONIEntão vamos. A minha mãe está acozinhar desde madrugada, não podemoschegar atrasados.

MIGUEL ÂNGELOEspera.

Tira novamente a placa do carro e mete a mão no interior,retirando a chave da ignição do Porsche. Estende-a a Toni.

MIGUEL ÂNGELOLeva este. Eu depois mando entregar oteu carro...

Toni hesita por um momento, mas depois sorri e agarra na chave.

EXT. BAIRRO DE PESCADORES - DIA

MESTRE MÁRIO bate à porta da casa do seu amigo Zé. Não háresposta e ele volta a bater.

MÁRIO DAVIDTio Zé! Você está aí?

Olha em redor e volta a bater.

MÁRIO DAVIDZé. Sou eu, o Mário.

Vai até à janela e tenta espreitar para dentro da casa.Regressa à porta e experimenta o fecho. A porta abre-se.

MÁRIO DAVIDVou entrar, Zé. O Mário...

-76-

INT. CASA DE ZÉ - DIA

MESTRE MÁRIO entra na casa do velho pescador Zé.

MÁRIO DAVIDEstás em casa, Zé?

Olha em redor. É uma casa de velho pobre, descuidada, malmobilada, com um ar de sujo entranhado. Mário franze o nariz evai entrando. Chega à porta do quarto e espreita.

Vê ZÉ deitado, de olhos fechados, com ar sereno.

MÁRIO DAVIDTamanha foi a carroça...

Dirige-se para o amigo e abana-o com cuidado.

MÁRIO DAVIDAcorda, velhote, preciso de falarcontigo.

A sua expressão muda quando vê que Zé não reage. Volta aabaná-lo, com mais força.

MÁRIO DAVIDZé...?

Coloca-lhe a mão no rosto e retira-a, assustado.

MÁRIO DAVIDPorra, Zé!

EXT. ESPLANADA NO MOLEDO - DIA

EXT. ESPLANADA NO MOLEDO - DIA, MAIS TARDE

INT. SEMANÁRIO "AGORA"/REDACÇÃO - DIA, AO MESMO TEMPO

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/PÁTIO - DIA

No pátio da quinta dos Alberro está montada uma longa mesa,coberta por uma toalha branca imaculada. A mesa está cobertacom um exagero de garrafas de vinho, travessas de queijos,enchidos, pães regionais e pratos diversos confeccionados.

Mais de VINTE PESSOAS, entre velhos, crianças, homens emulheres afadigam-se a atacar os acepipes.

Numa das extremidades da mesa estão a TIA MARICA, ladeada porMIGUEL ÂNGELO e JOSÉ BAPTISTA. Ao lado destes estão,respectivamente, TONI e JUAN ALBERRO. Todos comem com apetite e

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a conversa animada entre Marica e José versa um assunto queambos dominam: a culinária.

MARICADiz-me então que o sangue é a últimacoisa a juntar...?

JOSÉ BAPTISTAExactamente. Quando o arroz de lampreiajá está no ponto, junta-se o sangue eserve-se de imediato.

Marica sorri e olha os filhos.

MARICAEstão a ouvir? É um bom conselho, este.O sangue é a última coisa a juntar...

Toni e Juan sorriem com o comentário.

MARICA(para Miguel)

E o senhor Miguel Ângelo, não gosta decozinha?

MIGUEL ÂNGELOGosto de comer. De cozinhar, nem porisso...

MARICAMas olhe que não é difícil. O segredoda boa cozinha é só um. Sabe qual é?

MIGUEL ÂNGELONão...

MARICAOs ingredientes. Arranje osingredientes da melhor qualidade, equalquer prato fica uma delícia.

Miguel leva uma garfada à boca.

MIGUEL ÂNGELOComo este.

Marica sorri.

MARICAE para arranjar os melhores produtos, épreciso apenas uma coisa.

(pausa)

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Os melhores fornecedores. Concordacomigo, não concorda?

MIGUEL ÂNGELOPlenamente.

MARICADepois, basta respeitar a tradição.Aprender com os mais velhos e respeitara tradição.

Aponta a ponta da faca a Miguel.

MARICAEu acho que você daria um bomcozinheiro, sabe?

MIGUEL ÂNGELOCom uma professora como a D. Marica,não duvido.

A velha senhora sorri. Gostou da resposta.


NELSON, numa potente MOTA NOVA, aproxima-se de uma pequenalancha que pertence a HUMBERTO. O pescador está lá, a trocar omotor por um mais potente.

O jovem desmonta e aproxima-se da beira do cais, falando parabaixo.

NELSONHumberto!

O pescador olha para cima.

HUMBERTOO que é que queres?

NELSONQuando é que voltamos a sair?

Humberto olha para a mota do rapaz.

HUMBERTOPorquê? Já queres trocar de mota?

NELSONNão, mas quero organizar-me. É paraquando?

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HUMBERTOÉ para a semana que vem. Ficadescansado que eu aviso-te.

NELSONNão tens outro remédio, não é?

O pescador olha para ele muito sério.

HUMBERTOOlha que há mais barcos aí além do doteu pai. Não me vais começar a chatear,ou vais?

NELSONNão, meu. Porra, que irritadiço que tués...

Humberto vira-se de novo para o seu serviço e Nelson endireita-se.

NELSONPara a semana, hã... Na boa.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/CAPOEIRA - DIA

MARICA e MIGUEL ÂNGELO estão agora a sós. A senhora procura,entre as aves da capoeira. Agarra finalmente num PATO queexamina. Enquanto isso, os dois vão conversando.

MARICAUma coisa que eu aprendi com o meufalecido, é que não podemos ficarparados. Quem para morre.

MIGUEL ÂNGELONão posso concordar mais.

MARICAOlhar sempre para o futuro, para alémda esquina. É isso que eu quero ensinaraos meus filhos.

(pausa)Já percebi que você tem isso.

Miguel não responde.

MARICANós os dois vamos dar-nos bem,Miguelito. Vai ser uma boa parceria.

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MIGUEL ÂNGELOEspero que sim...

MARICAVai ser. Mas a partir de agora teremosde redobrar de cuidados.

Com o pato ao colo, e acariciando-lhe as penas do pescoço, asenhora dirige-se para fora da capoeira.

MARICAVocê e o seu sócio nunca mais deverãoregressar aqui. Falaremos o menospossível, e usando sempre telemóveisdiferentes.

Olha para Miguel com intensidade.

MARICANão pode confiar em ninguém, Miguel.Nem na família, nem nos amigos, nem noscolaboradores. Especialmente noscolaboradores. A nossa actividade atraimuitas atenções indesejadas.

MIGUEL ÂNGELOEu sei, Dona Marica.

MARICAEu sei que sabe. Mas está preparadopara fazer o que for necessário?

Para sublinhar as suas palavras, Marica torce o pescoço do patocom um movimento brusco, matando-o. Miguel volta a ficar emsilêncio, olhando o pato inerte.

EXT. CASA DE MÁRIO DAVID - DIA

MESTRE MÁRIO está a chegar a casa. NELSON, por sua vez, está apreparar-se para sair na sua mota nova. O pai aproxima-se dele.

MÁRIO DAVIDO que é isso?

NELSONO quê?

MÁRIO DAVIDIsso.

Aponta a motorizada.

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NELSONÉ uma mota.

MÁRIO DAVIDNão te faças esperto, rapaz. Aindavives em minha casa.

NELSONNão há de ser por muito tempo.

Coloca o capacete.

MÁRIO DAVIDDe quem é essa mota?

NELSONÉ de um amigo, porquê?

MÁRIO DAVIDDe um amigo?! Que amigo é esse?

NELSONDesculpa, pai, mas não tens nada a vercom isso.

Liga a mota, fazendo o motor roncar.

MÁRIO DAVIDDe quem é essa mota, Nelson? O que éque se está a passar contigo?

NELSONAdeus...

O rapaz acelera e afasta-se a grande velocidade, fazendo umcavalinho.

MÁRIO DAVIDNelson!

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/ENTRADA - DIA

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/SALA - DIA, AO MESMO TEMPO

MARIA DEL CARMEN está sentada num sofá confortável, a ler.Ouve-se a voz do marido mas ela não levanta a cara do livro.

MIGUEL ÂNGELO (O.S.)Maria? Estás aí?

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Passa mais uma página, sem responder. MIGUEL entra no quarto,com a mão atrás das costas. Senta-se ao lado dela.

MIGUEL ÂNGELOEu sei o que é que faltou ontem ànoite...

Maria olha finalmente para o marido, mas não baixa a guarda.

MARIA DEL CARMENAlém de respeito, o que foi?

Miguel estende-lhe um pequeno EMBRULHO luxuoso.

MIGUEL ÂNGELODesculpa. Tu tens razão, eu não meportei bem ontem.

Maria hesita.

MIGUEL ÂNGELOCom a mulher mais linda da sala ao meulado, não há razão para olhar paraoutra.

A mulher agarra finalmente na embalagem e começa a desembrulhá-la.

MIGUEL ÂNGELOIsso quer dizer que me desculpas?

Tira uma CAIXA DE JÓIAS de dentro do papel. Abre-a e olha parao seu conteúdo, encantada. São DOIS BRINCOS de pérolas.

MARIA DEL CARMENSão lindos...!

Vira-se para o marido e abana a cabeça, com um sorriso triste.

MARIA DEL CARMENDetesto-te!

Miguel avança a boca para ela.

MARIA DEL CARMENOdeio-te...

Os lábios encontram-se e os dois beijam-se apaixonadamente.Deitam-se para trás, no sofá, enrolando-se um no outro.

Os brincos caem e rolam pelo chão.

EXT. PISTA DE MOTOCICLISMO - DIA

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EXT. AEROPORTO DE PEDRAS RUBRAS - DIA

Um avião da TAP faz-se à pista do aeroporto.


NESTOR PRECIADO e MARCOS ROMEU saem do aeroporto, puxando malasde viagem. Olham em redor e vêm MIGUEL ÂNGELO e JOSÉ BAPTISTA,que lhes acenam. Dirigem-se aos dois portugueses, trocandoapertos de mão.

JOSÉ BAPTISTAFizeram boa viagem?

NESTORExcelente. São muito bons, estes vossosaviões.

MIGUEL ÂNGELONão é só isso que é bom cá em Portugal.Os negócios também...

NESTOREspero que sim.

INT. CARRO DA PJ - DIA, AO MESMO TEMPO

Dentro do seu carro à paisana, RAFAEL e ALEXANDRA observamdiscretamente os apertos de mãos de NESTOR, MARCOS, MIGUEL eJOSÉ que, a alguma distância, se trocam no estacionamento doaeroporto.

RAFAELAmigos novos, hem...?

Alexandra ergue uma máquina fotográfica com teleobjectiva eregista o momento para a posteridade.

EXT. CEMITÉRIO - FIM DO DIA

Entretanto, MESTRE MÁRIO e ROSA assistem ao funeral de Zé. Ocaixão já foi introduzido numa urna e ALGUMAS PESSOAS,pescadores na sua maioria, estão a começar a depositar flores àfrente da porta de cimento.

MÁRIO DAVIDPobre Zé...

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ROSAPelo menos morreu sem sofrimento.

MÁRIO DAVIDFoi para compensar o que sofreu emvida.

Um GRUPO DE PESCADORES mais velhos observam Mário e Rosa com arcrítico. Falam em surdina, enquanto olham para os dois. O factonão escapa ao olhar atento de Mário.

ROSAVamos lá...

O casal avança na direcção do túmulo, com um pequeno ramo deflores nas mãos.

Mário coloca as flores junto às outras e murmura.

MÁRIO DAVIDAté à vista.

Endireita-se e olha para o grupinho de pescadores. Um doshomens faz uma expressão de desprezo, cospe para o chão, nadirecção de Mário, e vira-lhe as costas. Os outros doispescadores olham para Mário ainda mais um momento, e depoisseguem o amigo.

Rosa fica espantada.

ROSAO que foi aquilo, Mário?

MÁRIO DAVIDE eu sei?

Os dois ficam a olhar para os velhos que se afastam...

...observados pela fotografia de ZÉ, colada na porta do jazigo.

FIM DO PRIMEIRO TELEFILME

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A CONEXÃO – TELEFILME II

EXT. QUINTA DOS ALBERRO - AMANHECER

O dia nasce na Galiza. Um GALO CANTA na quinta dos Alberro,anunciando a chegada do sol.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/QUARTO - DIA, AO MESMO TEMPO

MARICA ALBERRO já está acordada, acabando de se arranjar.Penteia os cabelos grisalhos frente a um espelho. De repente,ouvimos ao fundo o som de SIRENES de carros da polícia.

MARICAO que se passa?

A senhora dirige-se à janela e espreita.

Do seu PONTO DE VISTA vemos a chegada de vários CARROS dapolícia espanhola, que entram no pátio da propriedade a grandevelocidade e se dispõe em semi-círculo, enquanto que POLÍCIASarmados correm em direcção ao casarão.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/PÁTIO - DIA, AO MESMO TEMPO

De um dos carros da Polícia espanhola sai um polícia alto ebonito. É FILIPE ECHEVARRIA, de 35 anos. Pertence ao GrupoEspecial de Combate ao Crime Organizado e, viremos a perceber,é um homem sério e eficiente. Traz um papel na mão.

FILIPE(fala sempre emcastelhano)

Eu tenho os documentos. Revistem tudo!Tudo!

Avança com os papéis erguidos no ar, numa mão, e uma pistola naoutra.

Os polícias ao seu redor espalham-se em várias direcções,alguns entrando pela casa, outros contornando-a. Continuamos aouvir a voz de Filipe sobre todas as cenas que se seguem.

EXT. ESTRADA DA GALIZA - DIA, AO MESMO TEMPO

Um CAMIÃO FRIGORÍFICO é mandado parar numa BARREIRA DE ESTRADA,por dois carros da POLÍCIA ESPANHOLA.

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FILIPE (V.O.)Quero saber tudo sobre esta gente.Todos os seus bens...

Os polícias abrem a porta traseira do camião.

INT. ESCRITÓRIO DOS ARMAZÉNS ALBERRO - DIA, AO MESMO TEMPO

POLÍCIAS agitando documentos invadem um escritório onde sóestão ainda as EMPREGADAS DA LIMPEZA.

FILIPE (V.O.)...todos os seus documentos...

Os polícias começam a desmontar e carregar COMPUTADORES.

INT. ARMAZÉNS FRIGORÍFICOS - DIA, AO MESMO TEMPO

Outros POLÍCIAS invadem os armazéns frigoríficos da empresa"legal" dos Alberro. Um EMPREGADO olha e começa a fugir, sendoperseguido logo por dois polícias.

FILIPE (V.O.)...todas as suas actividades.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO - DIA, AO MESMO TEMPO

FILIPE sobe os degraus que conduzem à entrada da casa.

FILIPEQuero saber tudo! Hoje não é dia desegredos!

Filipe entra pela porta principal. Um FUNCIONÁRIO estáencostado à parede a ser revistado por um POLÍCIA.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/ENTRADA - DIA, AO MESMO TEMPO

FILIPE avança pelo hall da casa, em direcção às escadas. DONAMARICA vem nesse momento a descê-las, abanando o seu leque.

MARICAPosso saber quem é você? Que circo éeste?

FILIPEFilipe Echevarria, do Grupo Especial.Tenho um mandato de busca às

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instalações, e um mandato de prisãocontra a senhora e os seus filhos.

Marica olha em redor, altaneira.

MARICANão têm mais nada que fazer do queincomodar os cidadãos cumpridores,inspector?

FILIPEHoje não, minha senhora.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO - DIA, MAIS TARDE

GENÉRICO

Segue-se montagem de imagens que ilustram o percurso de umadose de droga, desde a produção até ao consumidor, mas filmadascomo se fosse do POV da droga:

- um camponês andino que se debruça para colher uma planta decoca;

- água em ebulição e uma figura que espreita;

- fogo e uma figura que espreita;

- um homem com ar sul-americano que se debruça para tirar umadose e embalar;

- uma mala que se fecha; ruído de aeroporto; uma luz que passade um lado ao outro, como se fosse o raio-X de uma passadeirade aeroporto;

- a mala abre-se; em fundo vemos uma troca de dinheiro;

- luzes de uma festa; um jovem de ar endinheirado debruça-secom um cartão de crédito na mão; atrás dele duas mulheresbonitas;

- uma das mulheres debruça-se na direcção do POV, com um dosdedos tapando o nariz e "snifa”, terminando a sequência.

Sobre esta sequência de imagens, que tem obviamente umtratamento gráfico muito marcante, surgem as legendas da fichatécnica principal.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/GABINETE DE RAFAEL - DIA

O inspector RAFAEL MARQUES está em ponto de ebulição. Tem umtelefone na mão e fala em "portunhol", compensando a mápronúncia com um volume elevado.

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RAFAELMas como é que vocês fazem uma rusgadessas sem nos avisar sequer? Vocês nãosabem que nós também estamos em cimados Alberro?

ALEXANDRA GOMES observa-o, com o seu ar divertido de sempre.

RAFAELEu ando a trabalhar nisto há meses.Meses! E vocês, com esta trapalhada,podem ter-nos queimado o caso.

Faz um gesto de raiva para Alexandra, ameaçando estrangular otelefone.

RAFAELProblemas de comunicação, problemas decomunicação! Sim, temos de arranjar umasolução para isso.

(pausa)Como?! Ahhh, está bem... se a solução éessa...

Desliga o telefone.

RAFAEL(para Alexandra)

Que incompetentes! Imagina que nãoapanharam nem uma grama de droga. Nemuma grama para amostra. Nem osempregados deles fumam droga.

ALEXANDRAE documentos?

RAFAELRegistos de contabilidade, que estão aanalisar. Com um pouco de sorteencontram umas irregularidades do IVA epassam-lhes uma multa. E nós ficamos aver bonés...

ALEXANDRAOs nuestros hermanos não dão uma para acaixa.

Rafael deixa-se cair no seu lugar, cansado.

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RAFAELE agora vão mandar um gajo qualquerpara ser oficial de ligação connosco.Um basco, ainda por cima.

Alexandra encolhe os ombros.

ALEXANDRATudo piora antes de melhorar.

RAFAELOu de mergulhar...

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/QUARTO - DIA

JOSÉ BAPTISTA deitado com DENISE. O TELEFONE toca e ela atende.

DENISEHallo?

(pausa)Oi, Miguel. Tudo bom?

José vira-se na cama, com ar surpreso.

DENISESim, ele está aqui. Vou passar...

José faz uma cara de interrogação e Denise abana a cabeça. Ohomem atende.

JOSÉ BAPTISTASim, Miguel? O que aconteceu?

(pausa)Vou já para aí.

Desliga o telefone e põe os pés para fora da cama.

DENISEO que houve?

JOSÉ BAPTISTAProblemas. E sérios.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DE NELSON - DIA

SARA entra pé ante pé no quarto do irmão. NELSON está a dormir.A rapariga abana-o devagar, falando em voz baixa.

SARA(sussurrando)

Nelson! Nelson!

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O irmão mexe-se na cama.

SARAAcorda...

NELSONO que foi?

SARAPreciso de dinheiro.

NELSONPede aos pais, porra. Deixa-me dormir.

SARAEu sei que tu estás cheio de papel.

Nelson vira-se, mais desperto.

NELSONO quê?

SARAEu vi o dinheiro todo que tu tens aíescondido.

Nelson agarra-a pelo braço.

NELSONTu não viste nada, percebes?

Sara tenta soltar-se.

SARAVi sim, e vou dizer aos pais se tu nãome deres algum.

Nelson senta-se na cama e empurra-a com força, fazendo-a cair.

NELSONEstúpida!

SARAMãe, soc...

Nelson tapa-lhe a boca com a mão, cortando-lhe o grito. Depoisfala-lhe em tom de ameaça.

NELSONSe tu dizes alguma coisa ao pai, mato-te, ouviste? Ou então faço uma festa eofereço-te aos meus amigos.

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Sacode-lhe a cabeça com força.

NELSONGostavas disso? Ser servida aos meusamigos para fazerem o que quiseremcontigo?

Empurra-a para o chão.

NELSONSe calhar até gostavas.

Vira-lhe as costas e sai do quarto, deixando Sara no chão, achorar em silêncio.

INT. STAND DE AUTOMÓVEIS USADOS - DIA

JOSÉ BAPTISTA e MIGUEL ÂNGELO falam animadamente. JOSÉ ROMÃOouve interessado.

JOSÉ BAPTISTASe os colombianos descobrirem istoestamos tramados.

MIGUEL ÂNGELOSe descobrirem. A questão é não osdeixar descobrir.

JOSÉ BAPTISTAE como é que os podemos impedir?

Miguel olha para Romão.

MIGUEL ÂNGELOÉ melhor ires lá para fora, podeaparecer algum cliente.

José Romão olha o relógio, mas depois levanta-se, forçando umsorriso.

JOSÉ ROMÃOOK.

Ficam a olhar para ele até o homem sair.

MIGUEL ÂNGELOJá tenho o contacto de uma lancharápida. O preço é bom, devíamosavançar.

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JOSÉ BAPTISTAVamos comprá-la agora? E se o negóciofor por água abaixo.

MIGUEL ÂNGELOHá outros, não te preocupes. Eentretanto isso mantém os gajosocupados.

JOSÉ BAPTISTAPorra, pá. Não sei...

MIGUEL ÂNGELOEles não têm outros contactos aqui,ainda não conhecem os Alberro, o maiscerto é nem darem por nada.

JOSÉ BAPTISTAO brasileiro tem conhecidos cá.

MIGUEL ÂNGELOMas a rusga foi em Espanha.

Miguel levanta-se

MIGUEL ÂNGELOVamos fazer assim: vou telefonar aosnossos amigos para irmos ver a lancha.O importante é passar-lhes segurança.Portanto...

Passa o braço pelo ombro do sócio.

MIGUEL ÂNGELO...vê se te acalmas.


MESTRE MÁRIO caminha pelo porto da vila, procurando alguém como olhar.

Vê o mesmo GRUPO DE PESCADORES idosos que estava no funeral deZé. Os homens estão sentados em pequenas cadeiras, apanhando oprimeiro sol da manhã. Um deles, um velho rijo de nomeALEXANDRE, tem uma bengala na mão e está a gravá-la com umcanivete.

Mário dirige-se a eles. Quando se aproxima, UM DOS IDOSOSlevanta-se e cospe para o chão, acintosamente. Depois vira ascostas e afasta-se.

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MÁRIO DAVIDBoas.

O único que responde é ALEXANDRE.

ALEXANDREBoas...

MÁRIO DAVIDO que é que se passa com o mestreAbílio? Eu fiz-lhe algum mal?

O velhote analisa-o pensativo. Depois fecha o canivete elevanta-se, apoiando-se na bengala.

ALEXANDREVamos dar uma volta.

Os restantes velhos observam-nos com desconfiança.

EXT. PORTO DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - DIA, MAIS TARDE

MÁRIO caminha ao lado do velho ALEXANDRE, que coxeia apoiado nasua bengala.

ALEXANDRESabes que o Zé estava comigo no dia emque fiz isto à perna?

MÁRIO DAVIDNão sabia.

ALEXANDREEstava. Andávamos os dois nas campanhasdo bacalhau, para fugir à tropa. O Zéera um bom amigo...

MÁRIO DAVIDEra.

ALEXANDREÉ pena aquele vício. O vinho deu cabodele.

MÁRIO DAVIDMas isso não explica porque é que estãotodos com raiva de mim.

Alexandre para e, com a bengala, faz uma volta lenta no ar,mostrando o porto em redor.

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ALEXANDREIsto está tudo a mudar, Mário. A nossavida mudou tanto. Já ninguém sabe emquem se pode confiar ou não.

MÁRIO DAVIDNão entendo, Mestre Alexandre.

ALEXANDREO rumor que corre aí é que tu tomaste olugar do mestre Narciso.

MÁRIO DAVIDEu?!

ALEXANDREÉ o que consta...

MÁRIO DAVIDO mestre Alexandre acredita mesmo queeu ande a transportar droga?

ALEXANDREEu disse que era um rumor, Mário. Mashá muita gente que acredita. E ainda hámais...

(pausa)Diz-se também que o Zé morreu por causadisso. Por saber demais sobre os teusnegócios.

MÁRIO DAVIDIsso é mentira! Mas... que absurdo!

Aponta para o grupo de velhotes que, à distância, os continuama observar, desconfiados.

ALEXANDRAEu sei, eu sei. Agora, vai lá explicarisso aqueles velhos casmurros.

EXT. MAR ALTO - DIA

INT. STAND DE BARCOS - DIA

Uma LANCHA RÁPIDA, com dois potentes motores inboard, é aestrela do stand.

MIGUEL, com NESTOR ao seu lado, apreciam a embarcação.

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MIGUEL ÂNGELOE então – não é o sonho de qualquerhomem?

NESTORNão sou homem de barcos.

MIGUEL ÂNGELOEu sou. No fundo do coração soumarinheiro.

NESTORComo todos os portugueses, não éverdade?

JOSÉ BAPTISTA e MARCOS ROMEU surgem do outro lado da lancha,olhando-a com admiração.

NESTORVão então comprar esta lancha?

MIGUEL ÂNGELOÉ o elemento que falta para os nossosnegócios.

NESTORÉ só isso que falta mesmo?

Miguel olha-o com interesse. Os outros dois homens vêm juntar-se-lhes.

MARCOSQuando é que vamos conhecer os teussócios galegos?

MIGUEL ÂNGELOEm breve, muito em breve.

MARCOSOs meus amigos dizem que pode haverproblemas nesse capítulo.

MIGUEL ÂNGELOOs teus amigos estão enganados, Marcos.Não há quaisquer problemas, nem vaihaver.

Os sul-americanos olham-no com seriedade.

NESTOREsperemos que não.

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INT. SMART - DIA



RAFAEL está reunido com ALEXANDRA e FILIPE ECHEVARRIA. Opolícia português está agitado como de costume.

RAFAELEssa vossa operação foi um erroabsoluto. Um disparate!

FILIPEConcordo em absoluto.

Rafael fica surpreso. Alexandra também olha para Filipe comcuriosidade.

RAFAELComo?!

FILIPEEu fui contra esta operação desde oinício, mas as minhas chefias quiserammarcar posição. Limitei-me a fazer omelhor possível.

RAFAELE não foi muito, pois não?

FILIPEO que só veio dar-me razão. Nestemomento os Alberro já estão todossoltos, não encontrámos nem uma prova,e ainda nos arriscamos a serprocessados por perseguição e atentadoao bom nome.

Alexandra sorri.

ALEXANDRAAtentado ao bom nome?! Só em Espanha.

Filipe olha também para Alexandra.

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FILIPEÉ a nossa sina.

Olha para as suas pernas, cruzadas de forma elegante.

FILIPESó nos resta apostar na colaboraçãoentre as nossas duas forças.

Rafael intervém.

RAFAELA única colaboração que nós precisamosé vocês não estragarem o nossotrabalho. A Polícia Judiciária apreendetodos os anos mais droga do que todasas polícias europeias juntas, sabia?

Filipe sorri para Alexandra, sem sequer olhar para Rafael.

FILIPEÉ isso que eu venho aprender. Comoconseguir esses resultadosimpressionantes.

ALEXANDRAPode contar connosco, inspector.

Rafael franze o sobrolho, mal humorado.

EXT. PARQUE ARBORIZADO - DIA

EXT. PARQUE ARBORIZADO - NOITE

SARA e JOÃO estão deitados lado a lado, olhando o céu. Arapariga tem um ar de preocupação na cara. O rapaz olha-a deesguelha.

JOÃOArranjaste o dinheiro?

SARAEsquece isso agora, meu.

JOÃOArranjaste ou não?

SARANão...

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JOÃOFoda-se, Sara! Tu disseste que iasarranjar.

SARAO meu irmão armou-se em corte. O gajoestá cada vez mais podre.

João roda e encosta-se à miúda.

JOÃOVamos ter de arranjar outra maneira detu pagares isso...

SARACorta essa, meu.

João mete-lhe uma mão nas pernas, por baixo das saias.

SARAPára, João.

JOÃOQueres mesmo que eu pare?

A rapariga responde, contrariada.

SARANão...

JOÃONão estou a ouvir.

SARANão, não quero que tu pares.

Sara fecha os olhos e o rapaz puxa-lhe a saia para cima.

INT. CLUBE NOCTURNO/SALA PRIVADA - NOITE

Uma LOURA PLASTIFICADA cheira um risco de cocaína desenhado namesa de vidro de uma sala privada.

Está com várias COMPANHEIRAS DE PROFISSÃO, todas agarradas aMIGUEL ÂNGELO, JOSÉ BAPTISTA, NELSON PRECIADO e MARCOS ROMEU. Oambiente é de festa mas discutem-se assuntos sérios.

NESTORComeçamos com 100 quilos. A partir daílogo se vê...

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JOSÉ BAPTISTACem quilos parece-me bem. Não é umrisco excessivo para ninguém...

MIGUEL ÂNGELO(interrompendo)

Eu esperava um pouco mais de ambição.

NESTORAmbição é bom. Mas cautela ainda émelhor. Ontem tinhas um quilo, Miguel.Agora estamos a falar de 100.

José Baptista ergue um copo.

JOSÉ BAPTISTAVamos brindar, Miguel. Ao nossonegócio.

Miguel olha para os dois homens e depois anima-se.

MIGUEL ÂNGELOBrindar com álcool? Mas aonde é que jáse viu isso?

Debruça-se para a frente e cheira uma linha inteira de seguida.Depois endireita-se, abana a cabeça e beija sofregamente aloura que está à sua direita.

Os companheiros aplaudem.

NESTORAssim é que é. Mais coca, Marcos.

O seu associado tira uma embalagem do bolso e começa a espalharmais uma linha na mesa.

Miguel termina o beijo selvagem. José Baptista bate-lhe nascostas.

JOSÉ BAPTISTAEstava a ver que nunca mais aprendias.


MARIA DEL CARMEN chega-se à janela do seu quarto e espreitapara fora, para o escuro da noite que circunda a sua casa e asua vida. A sua expressão é inescrutável.

Depois volta para dentro. Arme um armário e tira lá de dentroum SACO DE VIAGEM de marca cara e abre-o com um movimentodecidido.

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INT. CASA DOS ALVAREZ/SALA - NOITE, AO MESMO TEMPO

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/SALA - NOITE

MESTRE MÁRIO está sentado num cadeirão, na penumbra, olhandopara a porta da casa. No relógio da sala já passa das duas damanhã.

A porta abre-se e entra NELSON, com o capacete na mão, queacende a luz da sala. O rapaz fica surpreendido por ver o paiali.

NELSONPai...?

MÁRIO DAVIDEstava à tua espera. Temos de falar.

NELSONAgora não, pai. Estou estourado,falamos amanhã.

MÁRIO DAVIDNão; falamos agora, neste minutopreciso.

Nelson cruza os braços e fica de pé.

NELSONO que foi desta vez?

Mário levanta-se, enfrentando o filho.

MÁRIO DAVIDIsso quero eu saber. O que é que seestá a passar?

NELSONNão entendo.

Mário aponta o capacete do filho, no seu braço.

MÁRIO DAVIDA tua mota nova - e não me venhas dizerque é de um amigo.

Nelson não responde.

MÁRIO DAVIDDonde é que veio esse dinheiro agora?

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NELSONNão tens nada a ver com isso, pai.Olha, vamos dormir...

Mário corta-lhe o caminho.

MÁRIO DAVIDAinda não!

Nelson para, contrariado.

MÁRIO DAVIDCorrem boatos de que o meu barco anda atransportar droga para os galegos. Oque é que sabes disso?

NELSONSe tu não sabes, como é que eu hei desaber? O barco é teu, não é?

MÁRIO DAVIDDiz-me que não tens nada a ver comisso.

NELSONÓ pai, a conversa já está a cheirarmal.

Faz menção de contornar o pai, mas este agarra-lhe o braço comforça.

MÁRIO DAVIDNão me vires as costas, menino.Enquanto viveres aqui respeitas-me,ouviste?

Nelson sacode-lhe o braço com violência e vira-lhe as costas.

NELSONIsso também se resolve.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DE NELSON - NOITE

EXT. CASA DE HUMBERTO - NOITE

INT. CASA DE HUMBERTO/SALA - NOITE, MAIS TARDE

HUMBERTO está a jogar uma muda de roupa de cama para cima dosofá da sala, com ar chateado.

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HUMBERTOÉ só por uma noite, pá.

NELSONMais mês menos mês...

HUMBERTONão te estiques, pá.

NELSONEstou a brincar, meu. Logo que euarranje um quarto já não te chateiomais.

HUMBERTOAcho bem. É que eu não sou teu pai, pá.

NELSONE ainda bem - já me chega um.

INT. CASA DOS ALVAREZ/SALA DE JANTAR - DIA

MARIA DEL CARMEN está a tomar o pequeno almoço com A MÃE,quando uma EMPREGADA vem trazer-lhe o telefone.

EMPREGADA(em galego)

Menina. É para si.

MARIA DEL CARMENÉ o meu marido?

EMPREGADASim.

MARIA DEL CARMENDiz-lhe que ainda estou a dormir.

A empregada hesita. Eva tira-lhe o telefone da mão.

EVAMiguel? Só um momento... a Maria vai jáatender.

Maria diz que não com a cabeça, mas a mãe empurra-lhe otelefone para as mãos.

EVAAtende, Maria. É o teu marido.

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Zangada, Maria agarra no telefone e levanta-se da mesa,dirigindo-se para uma varanda.

MARIA DEL CARMENMiguel...?

INTERCALA COM:

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/SUITE - DIA, AO MESMO TEMPO

MIGUEL ÂNGELO também está zangado, no outro lado da ligação.

MIGUEL ÂNGELOO que é que se passa, Maria? O queestás aí a fazer?

MARIA DEL CARMENVim passar uns dias com os meus pais,porquê? Não posso?

MIGUEL ÂNGELOSem dizer nada, sem deixar um recado? Oque é que se passa, afinal?

MARIA DEL CARMEN"O que é que se passa", digo eu! Porqueé que não avisaste que ias chegar tardeontem?

MIGUEL ÂNGELONão avisei?! Eu enviei-te um sms, meuamor...

MARIA DEL CARMENNão venhas com "meus amores" agora.Estou farta, Miguel, farta das tuasdesculpas.

MIGUEL ÂNGELOMaria - eu mandei-te uma mensagem.

MARIA DEL CARMENPois eu não recebi mensagem nenhuma.Adeus, Miguel, depois eu telefono-te.

MIGUEL ÂNGELOMaria...

-104-

MARIA DEL CARMENAgora preciso estar só.

Maria desliga o telefone e vira-se. A mãe observa-a com arpreocupado. Maria corre para fora da sala...

INT. CASA DOS ALVAREZ/QUARTO DE MARIA - DIA

... em direcção ao seu quarto. MARIA abre a sua bolsa, pousadanum cadeirão, e retira o TELEMÓVEL. No écrã lá está...

... O ÍCONE de uma mensagem nova.

Maria deixa-se cair na cama e começa a soluçar. Cobre a caracom as mãos. EVA ALVAREZ entra no quarto e senta-se ao ladodela, colocando-lhe o braço por cima do ombro e puxando-a parasi.

EVAPronto, pronto, já passou. Vai ficartudo bem, minha querida.

Maria abraça-se a ela.

EVAVai ficar tudo bem...


INT. QUINTA DOS ALBERRO/ESCRITÓRIO - DIA

MARICA está reunida com os seus dois filhos, TONI e JUAN.

MARICAEu não sou de crendices, vocêsconhecem-me. Mas esta ligação com osportugueses começou com um mau agouro.

TONIFoi coincidência, mãezinha. Se as duascoisas estivessem ligadas a políciaportuguesa estaria também envolvida.

MARICAEu sei, Toni, mas o que eu quero dizeré que temos de dobrar de cuidados apartir de agora.

TONIE dobraremos, mamã. Não te preocupes...

-105-

MARICAO meu papel é preocupar-me. Contigo,com tudo, com todos.

(olha para Juan)E contigo também. O que se passa, Juan?

JUANEu também me preocupo, mamã. Temos umtransporte de haxixe esta semana, mastoda a gente só pensa nos colombianos,na cocaína. Isso preocupa-me.

TONIO haxixe está a ficar cada vez menosrentável. Temos que avançar para acoca, mano. Se não avançarmos outrosavançam.

JUANMesmo assim - para que precisamos dosportugueses? Nós também temos amigos naColômbia. Não necessitamos de mais umintermediário!

Marica sorri.

MARICAEntão não penses nos portugueses comointermediários. Pensa neles como umamortecedor. Um airbag. Se alguma coisacorrer mal, são eles que levam ochoque.

Toni também sorri.

MARICAE se correr bem, temos muito tempo paranos livrar deles depois.

(para Toni)Mas o Juan tem razão numa coisa. Agoratemos de nos concentrar na próximadescarga.

TONIEstá tudo controlado, mãezinha.

Juan encolhe os ombros. Ainda não está muito convencido.

-106-


MESTRE MÁRIO está a falar com um FUNCIONÁRIO do porto. Os doisestão a olhar para a sua traineira.

MÁRIO DAVIDO meu barco só sai daqui comigo dentro.Se eu não estiver, não deixes sair.

GUARDA DO PORTONem com o teu filho?

MÁRIO DAVIDMuito menos com o meu filho.

GUARDA DO PORTOE se ele aparecer aqui, o que é que eufaço? Não me vou pôr a discutir, nempenses nisso. Não sou polícia e já nãotenho idade para confusões.

MÁRIO DAVIDNem precisas. Telefonas-me logo que euvenho a correr. Está entendido?


INT. ESPLANADA - DIA

MIGUEL e DENISE tomam um café juntos.

DENISEDesculpa eu aparecer assim sem avisar.

MIGUEL ÂNGELOOra essa, Denise. É... um prazer.

DENISEAinda bem, Miguel. Eu tenho tão poucosamigos aqui em Portugal. É difícilachar alguém com quem falar... Paracontar meus problemas.

MIGUEL ÂNGELOProblemas...? Posso ajudar de algumamaneira?

DENISETalvez, Miguel. É... o José.

-107-

Miguel encosta-se para trás.

MIGUEL ÂNGELOO que é que se passa? Ele não está atratar-te bem?

DENISENão, não é isso. O José é um gentleman.Me trata maravilhosamente. Mas...

MIGUEL ÂNGELOHá sempre um "mas"...

Denise sorri, um pouco triste.

DENISEÉ... A questão é que eu acho que o Josétem outras mulheres. Tenho a certeza deque ele me trai, Miguel, e eu nãomereço isso.

Miguel desvia o olhar, olhando em redor.

DENISEDesculpa eu colocar você nesta posição,Miguel. Eu sei que o José é seu amigo.Olhe para mim.

Miguel olha para Denise.

DENISEEu não quero que você diga nada quepossa comprometer seu amigo, entendeu?Não estou pedindo para você trair aconfiança do José. Eu só vim falar comvocê porque...

(hesita)...porque o José sempre diz maravilhasde seu casamento.

MIGUEL ÂNGELOMaravilhas?

DENISEEle acha você e a sua mulher o casalperfeito. Qual é o segredo, Miguel? Oque é que eu estou a fazer de errado?

MIGUEL ÂNGELOEu sou a última pessoa para responder aessa pergunta. O meu casamento...

-108-

(pausa)O meu casamento não está assim tãomaravilhoso.

Denise olha-o com mais curiosidade.

DENISEPorquê?

MIGUEL ÂNGELOA Maria saiu de casa por uns tempos.Está com os pais. E temos discutidomuito. Como vês, não somos exemplo paraninguém, muito menos para vocês osdois.

Denise coloca a sua mão sobre a de Miguel.

DENISELamento muito. Não imaginava, Miguel.Não podia imaginar.

Miguel olha para a mão de Denise. Após um momento, retira asua.

MIGUEL ÂNGELONinguém podia.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/CORREDOR - DIA

FILIPE ECHEVARRIA apressa o passo.

FILIPEAlexandra! Alexandra!

A INSPECTORA DA PJ vira-se e sorri para o espanhol.

ALEXANDRAJá por aqui?

Os dois começam a caminhar lado a lado.

FILIPEAlguma novidade no nosso caso?

ALEXANDRANada que não saibas. E em Espanha?

FILIPETudo igual. Queres tomar um café?

Alexandra hesita, mas depois sorri.

-109-

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/BAR - DIA

FILIPE aspira com satisfação o café num copinho de plástico.ALEXANDRA está a mexer o seu.

FILIPEAdoro o café português...

ALEXANDRAEm Portugal há muitas coisas boas.

FILIPEE eu não sei isso?

Olha para ela com uma pontinha de provocação.

ALEXANDRAO que mais, por exemplo?

FILIPEO bacalhau... o Alentejo... o vinho doPorto... as mulheres.

ALEXANDRABom, se é por essa ordem, não precisode me preocupar.

FILIPEPorquê? Ficarias preocupada se eutivesse dito as mulheres primeiro?

ALEXANDRANão.

Os dois olham-se com alguma intensidade por um momento, atéAlexandra mudar o rumo da conversa.

ALEXANDRAVamos colocar escutas nos nossoshomens. Já temos as autorizações dojuiz.

FILIPENão vai adiantar muito. Eles estãosempre a mudar de números.

ALEXANDRAE se eu te disser que nós temos semprecomo saber esses números?

Filipe fica curioso.

-110-

FILIPEComo?

Alexandra olha em redor, para se certificar de que não éouvida.

ALEXANDRATemos uma pessoa lá dentro.

FILIPELá dentro?! Quer dizer...

ALEXANDRAUm informador. Ninguém mais sabe disto,mas temos um informador dentro da rede.

FILIPEJunto dos Alberro ou dos portugueses?

ALEXANDRAÉ nos portugueses.

(pausa)Já os podíamos ter preso mais do queuma vez, mas preferimos deixá-loscrescer até nos levarem à caça grossa.Estivemos a engordar o peru, mas agoraestá a chegar a hora da matança.

FILIPECom os Alberro.

ALEXANDRACom os Alberro.

INT. STAND DE AUTOMÓVEIS USADOS - DIA

JOSÉ ROMÃO está a colocar uma placa com o preço no FordMustang, quando MARIA DEL CARMEN surge. O homem fica um poucosurpreso.

JOSÉ ROMÃOOlá, Maria.

MARIA DEL CARMENOlá. O Miguel, não está?

JOSÉ ROMÃOEle... não falou contigo?

-111-

MARIA DEL CARMENNão... Porquê?

José ri.

JOSÉ ROMÃOVocês desencontraram-se. Ele foi paraEspanha atrás de ti.

MARIA DEL CARMENPara Espanha?

JOSÉ ROMÃOSim. Apareceu aqui apressado, meteu-seno carro e só me disse que ia a casados teus pais.

MARIA DEL CARMENAh, Miguelito...

Sorri, satisfeita.

EXT. CASA DOS ALVAREZ - DIA

MIGUEL caminha ao lado do sogro, D. MANOLO, que está equipadopara jardinagem, com LUVAS e uma TESOURA de podar. Enquantoconversam o velho cavalheiro vai tratando das ROSAS lindíssimasdo jardim.

D. MANOLOToda a gente olha o vosso casamentocomo exemplar, Miguel.

MIGUEL ÂNGELOEu tenho consciência disso, D. Manolo.

D. MANOLOÉ isso que me intriga, Miguel. Como éque vocês estão a deixar estragar umacoisa tão boa?

MIGUEL ÂNGELOÉ o stress, penso eu. Trabalho a mais,preocupações a mais...

D. MANOLOPreocupações?

-112-

MIGUEL ÂNGELOEstou a alargar os meus negócios, D.Manolo. Para os barcos de luxo. Masessa é uma área que não conheço ainda,e isso deixa-me nervoso.

D. MANOLONão é por questões de dinheiro, não?

MIGUEL ÂNGELOTambém, um pouco. Tenho de investirmuito, acabo por ter muito dinheiroimobilizado. Mas nada que o devapreocupar, meu sogro.

D. MANOLOSe eu puder ajudar de alguma forma...Contribuir para esses investimentos.

MIGUEL ÂNGELONão, obrigado, D. Manolo. Não sepreocupe.

D. MANOLOO dinheiro não é a minha preocupação,Miguel. Isso eu posso emprestar. Mas aatenção...

(corta um ramo)Um casamento é como um roseiral. Temosque cuidar dele todos os dias... cortaro que não presta, cuidar do que é bom.

Olha Miguel com seriedade.

D. MANOLOSe não deres atenção à Maria, ela vaifugir-te, rapaz.

EXT. PARQUE ARBORIZADO - DIA

SARA está no parque, nervosa. Olha em redor e levanta-se.

JOÃO aparece, acompanhado de um homem com mau aspecto, QUIM.

SARAOnde é que te meteste? Estou aqui háimenso tempo à tua espera?

JOÃOTem calma, porra!

-113-

SARACalma o caraças. Estou a sentir-mepessimamente. Arranjaste heroína?

João olha para o amigo, que sorri.

JOÃOArranjei ainda melhor do que isso. Esteé o Quim. É ele que me orienta aheroa...

SARAOi...

O outro homem olha-a de cima a baixo. João agarra no queixodela com a mão e vira-lhe a cara de um lado para o outro.

JOÃO(para Quim)

E então, é bonitinha ou não é?

Sara tenta soltar a cara mas João agarra-a com força.

JOÃOVale umas doses ou não?

SARALarga-me, merda!

Sara consegue soltar-se. João dá-lhe uma estalada.

JOÃOOuve cá? Eu tenho cara de Pai Natal,por acaso? Tenho?

Sara esfrega a cara, assustada.

JOÃOSe queres cavalo, vais ter de fazer porisso.


EXT. PORTO DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - NOITE

NELSON e HUMBERTO preparam-se para descer para a "Rosa Linda"quando o GUARDA do porto se aproxima deles.

GUARDANelson! Desculpa...

-114-

NELSONO que foi?

O homem está um pouco atrapalhado.

GUARDAÉ que... o teu pai... ele disse-me paraeu não te deixar sair com o barco.

Humberto olha para o rapaz.

NELSONNão tem problema, eu meto gasóleo.

GUARDANão é por causa do gasóleo, rapaz. Eledisse-me para eu lhe telefonar se tuaparecesses por aqui.

HUMBERTOMas tu não vais fazer uma coisa dessas,pois não?

GUARDAO Mário é meu amigo.

Nelson mete a mão no bolso.

NELSONO Euro ainda é mais teu amigo.

Tira algumas notas e separa duas, que estende ao outro.

NELSONToma lá e cala-te.

O guarda esconde as duas notas.

GUARDAVolta cedo, senão estou tramado.

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/ENTRADA - NOITE

MARIA DEL CARMEN entra em casa, carregada de sacos de comprasde lojas de luxo. Pousa os sacos e olha para a sala. UmaEMPREGADA DOMÉSTICA aparece apressada, para a ajudar.

EMPREGADA DOMÉSTICAEstá cá um senhor à espera do senhorMiguel.

Maria franze a testa.

-115-

MARIA DEL CARMENE tu deixaste-o entrar?

EMPREGADA DOMÉSTICATelefonei primeiro ao patrão.

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/SALA - NOITE

MARIA entra na sala e olha para TONI ALBERRO, que se levantapara a cumprimentar.

MARIA DEL CARMENBoa noite.

TONIBoa noite. Desculpe a intromissão...

Maria estende-lhe a mão.

MARIA DEL CARMENO senhor é...?

TONIToni Alberro. Sou cliente do seuesposo; ele vai vender-me uns carros,se chegarmos a acordo esta noite.

MARIA DEL CARMENEstou a ver. Por favor, sente-se. Tomauma bebida?

TONISe me fizer companhia, aceito.


A traineira "Rosa Linda" está a diminuir de velocidade junto auma bóia.

HUMBERTO está ao leme e NELSON tem vestido um fato de neoprene,de mergulho. Está debruçado sobre a amurada e pesca a bóia,amarrando-lhe um cabo.

NELSONPodes parar. É aqui...

Humberto põe o motor em ponto morto e dirige-se a Nelson.

-116-

NELSONTens a certeza de que não queresmergulhar tu?

HUMBERTOObrigado.

NELSONÉ que está um frio do catano.

HUMBERTOVai lá e cala-te.

Nelson puxa uma máscara de mergulho para o rosto e trepa para aamurada.

NELSONAhhhhhhh..... Coragem.

Mergulha e desaparece na água escura. Humberto olha em redor,perscrutando a noite ao seu redor.

Passados alguns instantes, Nelson surge com uma faca na boca,arrastando um FARDO embrulhado em plástico preto e muito bemamarrado.

Humberto debruça-se para fora e, com esforço, puxa o fardo paracima, ajudado pelo rapaz.

NELSONQuantos são aqui?

HUMBERTODez.

NELSONPorra... e eu já estou gelado.

Mergulha de novo.


MARIA DEL CARMEN está sentada na sala, conversando com TONI.Ambos têm um copo baixo de whisky.

TONIO seu marido tem vários carros que meinteressam. Carros de luxo, para osdirectores das minhas empresas. Vamosver se chegamos hoje a um acordo.

-117-

MARIA DEL CARMENE qual é a sua área de actividade,Toni?

TONIEstou na indústria alimentar. Maisespecificamente, no peixe congelado.

MARIA DEL CARMENAh... interessante...

TONINão precisa de fingir.

(sorri)Não há coisa menos interessante do quepeixe congelado.

Maria bebe um golo.

MARIA DEL CARMENNão sei dizer.

TONIMas é a verdade. E afinal, peixecongelado, carros usados... qual é adiferença, realmente? Não são essas ascoisas que interessam realmente navida.

MARIA DEL CARMENE quais são essas coisas, então?

TONIO amor... a paixão... viverintensamente. O que é que levamosconnosco senão as memórias?

Maria sorri.

MARIA DEL CARMENBrindo a isso - a um pouco de sabedoriagalega.

Toni ergue também o copo e bebe um golo, secando o copo.

MARIA DEL CARMENMais um ?

TONISempre.

-118-

Maria levanta-se e dirige-se para ele. Debruça-se um pouco paralhe tirar o copo da mão, revelando um pouco do peito no decote.Toni não larga imediatamente o copo, prolongando um pouco avisão. Depois solta o copo.

TONIPor favor.

Maria afasta-se, rebolando os quadris e Toni acompanha-a com umolhar apreciativo.


A traineira está atracada a outra bóia. No convés já está umapilha grande de fardos. NELSON prepara-se para mergulhar denovo.

NELSONPara a próxima vais tu, meu.

HUMBERTO ri-se.

HUMBERTOVai sonhando, vai.

NELSONVai-te lixar!

Mergulha de novo. Humberto agarra no TELEMÓVEL e marca umnúmero.

HUMBERTOEstá tudo a andar.

(olha o relógio)Mais uma hora.

(pausa)Tenho de desligar.

Desliga o telemóvel e aproxima-se de novo da amurada, ondeNELSON surge com mais um fardo.


MIGUEL ÂNGELO chega finalmente a casa. Entra na sala onde MARIAcontinua à conversa com TONI.

MIGUEL ÂNGELOJá se conheceram... desculpem o atraso,por favor.

-119-

Maria levanta-se para cumprimentar o marido. Fá-lo com um beijoum pouco exagerado. Toni observa a cena.

MIGUEL ÂNGELOVou ter de sair outra vez...

MARIA DEL CARMENJá percebi...

MIGUEL ÂNGELO(para Toni)

Vou só mudar de roupa.

O outro homem ergue o copo, em sinal de assentimento.


MIGUEL está a vestir um blusão quando MARIA surge por trásdele, abraçando-o.

MARIA DEL CARMENEu vou ficar à tua espera, meu amor.

MIGUEL ÂNGELOSe tiveres sono não esperes. Eu talvezdemore um pouco...

MARIA DEL CARMENDespacha-te que eu tenho um presentepara ti.

Beija-o de novo, provocante.

MIGUEL ÂNGELOA sério, Maria. Não vale a penaesperares. O Toni tem um monte decarros para vender.

Maria faz cara de surpresa.

MARIA DEL CARMENPara vender...?!

Miguel, que já está a arrumar a carteira no blusão, não percebeo tom de estranheza da mulher.

MIGUEL ÂNGELOSim, e vai demorar um pouco a acertar ovalor. O homem é duro a negociar.

Dá um beijo rápido na mulher e vira-lhe as costas. Maria fazuma expressão de desapontamento.

-120-

EXT. MAR ALTO - NOITE

NELSON regressa à superfície com mais um fardo, que ajudaHUMBERTO a içar. O homem junta o fardo à pilha volumosa queentretanto já juntaram.

NELSONQuantos faz, com este?

HUMBERTONove. Só falta um.

NELSONEu acho que não há lá mais nenhum...

HUMBERTONão pode ser.

NELSONA sério.

HUMBERTOPorra, mergulha lá outra vez.

Nelson mergulha e Humberto faz uma contagem rápida dos fardosacumulados.

NELSON (O.S.)Ajuda aí, meu.

Humberto chega-se à amurada e ajuda Nelson a subir para obarco.

HUMBERTOE então?

NELSONEra mesmo o último.

HUMBERTOPorra, não pode ser. Eu já contei,falta um.

NELSONE o que é que queres que eu faça? Secalhar amarraram-no mal, ou deram umgolpe, sei lá.

HUMBERTOOs gajos não fazem isso nunca.

-121-

NELSONPorra, não acreditas em mim? Vai lá tuver, caraças!

Humberto fica preocupado.

HUMBERTONão, não é preciso. Mas... espero queisto não dê merda.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DO CASAL - NOITE

MÁRIO está a dormir quando a mulher, ROSA, o abana comsuavidade.

ROSAMário, acorda.

O homem abre os olhos, meio zonzo.

MÁRIO DAVIDO que foi, mulher?

ROSAEu fui ao quarto da tua filha... elaainda não voltou.

Mário endireita-se na cama e consulta um relógio de cabeceira.São 03h00.

MÁRIO DAVIDTens a certeza?

ROSAFui ao quarto dela agora mesmo. Nemdesfez a cama...

MÁRIO DAVIDEla não disse nada?

ROSANão, saiu depois do lanche e nãoapareceu mais.

Mário começa a vestir-se.

MÁRIO DAVIDIsto já começa a ser demais.

-122-

EXT. UM EMBARCADOURO NO RIO - NOITE

Um pequeno grupo de homens está parado junto de um pontão demadeira, um pequeno desembarcadouro no rio Minho. Entre osrostos escondidos na noite escura vamos distinguindo, pouco apouco, os de MIGUEL ÂNGELO, TONI ALBERRO, JOSÉ ROMÃO eFRANCISCO, entre outros capangas.

TONIA sua esposa, Miguel...

MIGUEL ÂNGELOSim...?

TONIÉ uma mulher magnífica.

Miguel olha o outro homem com ar desconfiado.

TONIDou-lhe os parabéns pela sua escolha...em todos os aspectos.

MIGUEL ÂNGELOVocê é casado, Toni?

TONINão. Ainda não encontrei uma mulherassim...

Miguel fala com seriedade.

MIGUEL ÂNGELOQuando for casado, um dia, vai perceberque há elogios que um marido não gostade ouvir.

Ouve-se um BARULHO DE MOTOR, que vem interromper o diálogo.

TONIMiguel, eu não queria...

MIGUEL ÂNGELO(interrompendo)

Estão a chegar. Com licença.

Afasta-se, deixando Toni, que fica com um sorriso cínico noslábio.

-123-

EXT. UM EMBARCADOURO NO RIO - NOITE, MAIS TARDE

Os HOMENS descarregam os fardos da traineira para um camiãofrigorífico. JOSÉ ROMÃO e FRANCISCO comandam as operações. Umpouco afastados estão HUMBERTO, NELSON, MIGUEL e TONI.

Humberto fala com o chapéu entre as mãos, nervoso.

HUMBERTONa última bóia só estavam nove fardos.Faltava um...

MIGUEL ÂNGELOVocês contaram bem, de certeza?

HUMBERTOO Nelson até mergulhou várias vezespara confirmar.

Toni, que está a ouvir a conversa, tem os olhos postos emNelson, que abana a cabeça, sublinhando um pouco exageradamenteas afirmações do amigo.

Miguel olha para o galego.

MIGUEL ÂNGELOToni...? O que fazemos?

Toni olha para Miguel e faz um gesto com a mão.

TONINão tem problema. Isso por vezesacontece. Já está previsto na nossamargem com os marroquinos.

Nelson abana a cabeça uma vez mais, aliviado.

IMAGEM DE VISÃO NOCTURNA DE VÍDEO

Toda esta cena está a ser filmada, com o tratamento normal dos"night shots" duma câmara de vídeo.

INT. CARRO DA PJ - NOITE, AO MESMO TEMPO

RAFAEL baixa uma câmara de vídeo com a qual está a gravar acena. Fala para ALEXANDRA, que está ao seu lado com unsauscultadores.

RAFAELGravaste essa conversa?

-124-

ALEXANDRAGravei. É interessante...

RAFAELTambém me pareceu.

Espreita pela janela, em direcção a FILIPE, que está fora docarro, segurando um MICROFONE DIRECCIONAL (tipo pistola).

RAFAEL(sussurrando)

Vamos embora. Já temos as imagens quequeremos.

FILIPEOK, que está um frio de rachar.

O polícia espanhol começa a enrolar o cabo do microfone.

Rafael fecha o vidro e fala para a colega.

RAFAELEste nabo nunca mais volta a sairconnosco.

ALEXANDRAÉ menos um a chatear.

EXT. UM EMBARCADOURO NO RIO - NOITE, AO MESMO TEMPO

A porta do camião frigorífico é fechada com estrondo. O veículopõe-se em movimento.

O barco também se solta do embarcadouro, mergulhando nanoite...

...observado por TONI, FRANCISCO e MIGUEL.

MIGUEL ÂNGELOBom - a nossa parte está feita...Depois falamos.

Começa a afastar-se.

TONIMiguel!

O português pára.

MIGUEL ÂNGELOEu não queria ser indelicado no meucomentário. Peço-lhe desculpa.

-125-

Miguel fica um momento imóvel e depois continua a andar, semresponder.

TONI(entre dentes)

Filho da puta...(para Francisco)

Vem - ainda temos trabalho esta noite.

EXT. RUA DA VILA - NOITE

Começa uma MÚSICA PESADA. As cenas seguintes, sem diálogos, sãotodas montadas em cima desta música.

O carro de MESTRE MÁRIO pára perto de um bar da Vila.

Mário desembarca e dirige-se ao porteiro. Os dois falam por ummomento e o porteiro abana a cabeça negativamente.


A traineira entra no porto, em baixa velocidade.

INT. CARRO DE MESTRE MÁRIO - NOITE

O MESTRE MÁRIO conduz devagar pelas ruas da vila, olhando emredor, com ar preocupado.


A traineira já está atracada no seu posto normal. NELSON estácom um balde e um esfregão, a lavar o convés. HUMBERTOdesembarca e afasta-se com um aceno de mãos, sem olhar paraNelson.

O rapaz retribui o aceno com um gesto expressivo, erguendo opunho fechado com o dedo médio esticado. Depois atira oesfregão ao chão e dirige-se ao leme da traineira.

EXT. RUA DE VILA PRAIA - NOITE

O carro de MESTRE MÁRIO pára ao lado de um GRUPO DE JOVENS,entre os quais está MANÉ. O pescador debruça-se pela janela dolugar do passageiro, mas Mané abana a cabeça.

O carro afasta-se.

-126-


A traineira está de novo no mar, amarrada a uma bóia. NELSONsurge à superfície da água, arrastando consigo O FARDO quedesapareceu. Começa a subir por uma escada de corda, arrastandoo fardo com dificuldade. Tem um sorriso de satisfação no rosto.

INT. CARRO DE MESTRE MÁRIO - NOITE

O PESCADOR continua a conduzir, olhando atentamente em redor.Passa agora pelo...

...parque arborizado.

Mestre Mário olha para trás com atenção, e trava bruscamente.Engata a marcha atrás e recua alguns metros.

Do seu POV vemos um vulto deitado no chão, perto de uma árvore.

EXT. PARQUE ARBORIZADO - NOITE

MESTRE MÁRIO sai do carro e corre para o vulto estendido nochão. É SARA, que dorme.

O pai ajoelha-se ao lado dela e afasta-lhe o cabelo do rosto. Aface da filha está riscada de maquilhagem borrada pelaslágrimas.

A MÚSICA termina bruscamente.

MÁRIO DAVIDSara! Sara, estás bem?

Sara abre os olhos, mas parece não reconhecer o pai.

SARAMais não... não.

Está completamente drogada.

Mário abraça-a, com dificuldade em conter as lágrimas.

MÁRIO DAVIDSara...


NELSON salta de dentro da traineira, já atracada, carregando umGRANDE SACO DE LONA preto.

Começa a andar, satisfeita, quando dois vultos surgem no seucaminho. São TONI e FRANCISCO.

-127-

TONINelson...?

Nelson olha em redor, procurando um caminho de fuga, mas outrosDOIS HOMENS surgem atrás dele.

TONIPodemos ver o que tens nesse saco?

Nelson hesita e, depois, tenta a fuga, correndo para a direita.

Francisco intercepta-o e atira-o...

...contra os outros dois homens, que o derrubam e controlam nochão.

NELSONDeixem-me! Porra!

Francisco abre o saco preto e espreita para dentro.

FRANCISCO(em galego)

É o nosso material.

Toni abana a cabeça e aproxima-se de Nelson.

NELSONNão é o que está a pensar. Eu volteipara procurar de novo... e encontrei...

Toni aproxima-se, sorrindo.

TONITu achavas que te ias safar com isto?

Nelson abre os olhos, aflito.

NELSONEu juro! Eu ia devolver!

TONIAgarrem-me esse filho da puta!

Dá um violento pontapé na cara de Nelson. E a esse, seguem-seoutros...

...enquanto a câmara se afasta sobre o rio.

INTERVALO

-128-

EXT/INT. PORTAGEM DA AUTOESTRADA/CAMIÃO- AMANHECER

O CAMIÃO FRIGORÍFICO dos Alberro, que vimos ser carregado dedroga no fim do episódio anterior, chega à portagem de umaauto-estrada em Espanha.

À sua frente está um CARRO NORMAL, não identificado. Parado aliperto está também...

... um CARRO DA POLÍCIA espanhola, com DOIS AGENTES queconversam casualmente...

...e que nos vemos pelo POV do MOTORISTA do camião. O homemestá nervoso, bem como o seu ACOMPANHANTE, um rapaz mais novo.O motorista olha de novo para o carro à sua frente, naportagem.

MOTORISTA(em castelhano)

Que merda. Porque é que este gajo nãose despacha.

A cancela da portagem levanta-se e acende-se a luz verde. Mas ocarro da frente vai-se abaixo. O CONDUTOR DO CARRO parecenervoso, tentando ligar o carro.

Finalmente consegue ligar de novo o motor. Engata a mudança earranca...

...em marcha atrás, chocando violentamente contra a frente docamião.

MOTORISTAPorra! Que foi isto.

O condutor do carro sai de dentro, levando as mãos à cabeça. Omotorista olha para o acompanhante, e depois para os políciasque continuam a conversar.

MOTORISTAO que é que eu faço agora?

ACOMPANHANTE(em castelhano)

Sei lá eu... É melhor ir falar com ele.

O condutor do carro aproxima-se para ver os danos. O motoristasalta do camião.

CONDUTOR(em castelhano)

Ó amigo, desculpe lá. Não sei onde éque tinha a cabeça...

-129-

MOTORISTANão tem problema.

Olha para o pára-choques, que está bastante amachucado. É óbvioque tem problema, mas...

CONDUTOREu pago isto, amigo, não se preocupe...

MOTORISTA(interrompendo)

Não é necessário, está tudo bem.

CONDUTORTudo bem?! Mas veja o que eu lhe fiz.Ai que estupidez a minha...

MOTORISTANão faz mal, eu estou... com pressa.

Nesse momento um carro na fila atrás deles BUZINA.

O motorista olha para os polícias, que finalmente parecemreparar no que se está a passar. Um dos polícias avança nadirecção da cena.

MOTORISTAMerda...

(para o condutor)Deixe-me passar, o seguro da empresacobre isto...

CONDUTORNão, não! Vamos preencher a declaraçãoeuropeia.

POLÍCIA(em castelhano)

Bom dia. Passa-se alguma coisa?

CONDUTORFui eu, senhor guarda. Não sei como,bati... Imagine...

MOTORISTAEu já disse que não há problema.

O motorista está nervoso. Dentro do camião, o acompanhanteainda está mais.

-130-

POLÍCIABom, isto resolve-se. Encostem ali,para não bloquear a fila.

O motorista hesita.

POLÍCIAVamos, por favor.

O carro arranca e vai estacionar mais à frente, na berma.

O motorista regressa ao camião.

ACOMPANHANTEEstamos lixados. Estamos lixados.

MOTORISTAMantém-te calmo!

Põe o camião em movimento e vai parar atrás do carro.

POLÍCIADesça, por favor. Traga os documentos.

O motorista desembarca. Entretanto, o SEGUNDO POLÍCIA dá umavolta ao camião, observado pelo retrovisor...

...pelo acompanhante.

MOTORISTAAqui estão...

Entrega os documentos ao polícia. Nesse momento, o acompanhantedesce também do camião, hesita...

...e salta a vedação, começando a correr pelo campo.

SEGUNDO POLÍCIAAlto! Pára de imediato!

O segundo polícia lança-se também em perseguição, enquanto oprimeiro polícia reage tirando a arma do coldre.

POLÍCIA(para o motorista)

Vire-se e erga as mãos.

MOTORISTASenhor guarda, eu...

POLÍCIAVire-se, já!

-131-

EXT. PORTAGEM DA AUTOESTRADA - DIA, MAIS TARDE

Junto ao camião frigorífico estão mais DOIS CARROS da políciaespanhola, com as luzes do tejadilho ligadas. O MOTORISTA e oACOMPANHANTE estão encostados de barriga ao camião, com as mãosalgemadas atrás das costas.

O POLÍCIA está a retirar do interior da caixa do camião umFARDO DE DROGA, embrulhado. Toda a cena é observada...

...pelo CONDUTOR do carro, que tem um telemóvel colado aoouvido. Fala com um sorriso na boca.

CONDUTORCorreu tudo como planeámos.

INTERCALA COM:

INT. CARRO DE FILIPE ECHEVARRIA - DIA, AO MESMO TEMPO

É FILIPE que está a falar com ele.

FILIPEEles não suspeitaram de nada?

CONDUTORNão, de nada. Eu fiz um teatro que nemimaginas. Os desgraçados vão achar quefoi o dia mais azarado da vida deles.

Filipe sorri.

FILIPEPerfeito. Bom trabalho.

Desliga o telemóvel e põe o carro em movimento.

GENÉRICO

INT. ARMAZÉM FRIGORÍFICO - DIA


Mestre MÁRIO está de pé junto à porta do quarto da filha,nervoso. A porta abre-se e sai ROSA, acompanhada por um MÉDICO.Um relance do olhar do pescador...

...revela SARA deitada na cama, no quarto.

MÁRIO DAVID(para o médico)

-132-

E então, como está ela?

MÉDICOÉ difícil de dizer...

Rosa vem abraçar o marido.

MÉDICOEla está ainda sob o efeito de drogasfortes. Não tem sinais de agulhas, masé coisa pesada...

ROSAAi, meu Deus...

MÉDICOE teve relações sexuais nãoprotegidas... até talvez violentas, épossível.

MÁRIO DAVIDMalditos...

MÉDICOEu acho que deviam fazer queixa napolícia.

ROSANão, nem pensar. Polícia não, quevergonha.

O médico olha para ela.

MÉDICOVocês é que sabem.

(para Mário)Mas uma coisa têm mesmo de fazer. Umexame de sangue ao SIDA. Há... umapossibilidade grande de contágio.

Mário fecha os olhos, chocado com a ideia. Rosa abraça-o commais força.

MÉDICOLamento muito.

INT. ARMAZÉM FRIGORÍFICO - DIA

TONI ALBERRO está sentado num banco de madeira. À sua frenteestá NELSON, com a cara cheia de hematomas. FRANCISCO está depé, ao lado dele.

-133-

TONINão prolongues a tua miséria, rapaz.

NELSONMas eu juro, senhor. Juro que iadevolver...

TONIPorque é que os portugueses são tãocasmurros?

Francisco dá-lhe mais uma estalada violenta.

TONIE suicidas? Nunca entendi esse vossotraço nacional...

NELSONPor favor... foi uma estupidez minha...eu pensei... eu não pensei bem... euestou arrependido, por favor...desculpe, senhor, desculpe a minhaestupidez...

TONIE o teu amigo Humberto, estava nogolpe?

NELSONNão, não! Fui eu sozinho, juro!

Nesse momento a porta abre-se e entra JUAN, que avalia asituação com um olhar rápido.

TONIO que é?

JUANPreciso falar contigo.

INT. CORREDOR/ARMAZÉM FRIGORÍFICO - DIA, MAIS TARDE

TONI e JUAN falam acaloradamente.

TONIApreendido?! O nosso carregamento?

JUANHá meia hora.

-134-

TONIMas... como?

JUANFoi azar. Um acidente com outrocarro... a polícia apareceu... edescobriram a droga.

TONIPorra! São azares a mais. Não sei...não sei se acredito que tenha sido umacidente.

JUANOs nossos homens juram que sim.

Toni esfrega a cabeça, pensativo.

TONIA mamã não vai gostar nada disto.

INT. ARMAZÉM FRIGORÍFICO - DIA, MAIS TARDE

INT. TASCA DE PESCADORES - DIA, AO MESMO TEMPO



MARIA DEL CARMEN, deitada na sua cama, abre os olhos, ensonada.Vê MIGUEL, que está a acabar de se vestir.

MARIA DEL CARMENJá vais sair outra vez?

MIGUEL ÂNGELOTem de ser, desculpa. É o negócio doAlberro.

Maria del Carmen senta-se na cama.

MARIA DEL CARMENPorque é que me estás a mentir, Miguel?

O marido olha para ela, intrigado.

MIGUEL ÂNGELOMentir?!

-135-

MARIA DEL CARMENSim, Miguel, mentir. Tu disseste queias comprar carros a esse Toni, mas eledisse-me que tu lhe ias vender. Como é,afinal?

Miguel abana a cabeça, zangado.

MIGUEL ÂNGELOAgora não tenho tempo para estas cenas.

Maria levanta-se e agarra-lhe o braço, suplicante.

MARIA DEL CARMENO que se passa, Miguel? Por favor, diz-me a verdade.

Miguel sacode-a, com alguma brusquidão.

MIGUEL ÂNGELODepois, Maria. Depois falamos.


RAFAEL está de pé em frente de FILIPE, que está sentado debraços cruzados.

RAFAELEntão, não tens nada a ver com estaapreensão?

FILIPEJá te disse que não.

RAFAELFoi apenas uma coincidência, uma sorteda polícia, um azar dos traficantes...?

FILIPEPois parece que sim, não?

Rafael senta-se no tampo da secretária.

RAFAELNão sei porquê, mas não acredito em ti.

FILIPEIsso aí - já é um problema teu.

-136-

RAFAELTens toda a razão. É um problema meu -e eu, os meus problemas, gosto deresolvê-los logo.

Filipe levanta-se, mais aborrecido.

FILIPERafael - de uma vez por todas, não fuieu que ordenei essa apreensão.

Rafael abana a cabeça. A discussão é interrompida pela chegadade ALEXANDRA.

ALEXANDRANovidades!

(para Filipe)Olá, desculpa, não percebi que estavama falar.

FILIPENão tem problema. Já tínhamosterminado.

Olha Rafael, que abana a cabeça.

RAFAELQuais são as novidades?

ALEXANDRAO puto Nelson desapareceu.

RAFAELÉ estranho... Perderam um quilo dedroga e o puto desaparece a seguir.

ALEXANDRASe calhar anda a roubar os patrões...

Rafael pensa um momento.

RAFAEL(para Filipe)

Podes saber se há novidades no vossolado?

FILIPEVou tratar disso.

Sai da sala, acompanhado pelo olhar dos dois políciasportugueses.

-137-

RAFAELNão confio neste gajo...

Alexandra aproxima-se de Rafael e passa-lhe a mão no rosto.

ALEXANDRAIsso não são ciúmes, não?

Rafael beija-a de leve na boca.

RAFAELPorquê? Deviam ser?

Alexandra ri, mas não responde.

INT. CASA DE HUMBERTO/SALA - DIA

HUMBERTO, de pijama, com ar de acabado de acordar, dirige-se àporta da casa. A campainha TOCA.

HUMBERTOCalma, calma, já vai! Porra, Nelson...

Destranca a porta, que é empurrada com violência, derrubando-o.FRANCISCO e um OUTRO CAPANGA precipitam-se sobre ele,dominando-o, seguidos por TONI e MIGUEL ÂNGELO.

HUMBERTOMas... o que...?

MIGUEL ÂNGELOBom dia, Humberto. Viemos acordar-te?

Toni fecha a porta e os dois capangas arrastam Humberto comviolência.

MIGUEL ÂNGELOPorque é que tu fizeste isto?

HUMBERTOO quê? Não sei do que é que está afalar.

MIGUEL ÂNGELOO Nelson já confessou tudo. Ele disseque tu estavas envolvido, não adiantanegar.

HUMBERTOO Nelson?! Não entendo...

Humberto está visivelmente baralhado.

-138-

TONIÉ melhor confessares, Humberto. É maisfácil para todos.

HUMBERTOEu... não sei o que é que o Nelson fez,mas eu não tenho nada com isso. O que éque...?

(pára, assustado)A droga que desapareceu. É isso? Foi oNelson...?

MIGUEL ÂNGELOE tu...

HUMBERTONão, juro que não! Juro pela minhaalma, não sabia nada disso.

Francisco tira uma FACA do bolso e abre-a com um movimentoexperiente.

HUMBERTOJuro, não fiz nada.

(agita-se)Eu mato o Nelson!

Toni olha para Miguel Ângelo, que acena negativamente.

TONIChega, Francisco. Solta-o.

(para Humberto)Nós acreditamos em ti. Vai-te vestir.

Humberto levanta-se, ainda agitado.

HUMBERTOEu mato o puto! Vou matá-lo...

EXT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/ESCRITÓRIO - DIA

MARIA DEL CARMEN está sentada na secretária do marido, nopequeno escritório da casa, vasculhando os seus papéis.

Consulta extractos bancários, cadernos de notas, etc.

MARIA DEL CARMEN(para si mesma)

Tem de haver alguma coisa. Tem dehaver...

-139-

Continua a remexer no papel, lançando miradas preocupadas paraa porta.

Finalmente desiste. Fica pensativa um momento. Depois agarra notelefone e marca um número.

MARIA DEL CARMENPapá...?

INTERCALA COM:

EXT. CASA DOS ALVAREZ/ROSEIRAL - DIA, AO MESMO TEMPO

D. MANOLO está a cuidar das suas rosas. Interrompeu apenas parafalar com a filha.

D. MANOLOMariazinha, meu amor. Que bom ouvir atua voz...

MARIA DEL CARMENPreciso da tua ajuda, pai.

O homem fica imediatamente preocupado.

D. MANOLOPassa-se algo?

MARIA DEL CARMENNão, provavelmente não. Mas preciso deuma informação. Conheces um tal ToniAlberro? Tem uma empresa de família, decongelados.

D. MANOLONão... acho que não. Porquê?

MARIA DEL CARMENÉ um cliente do Miguel. Preciso desaber mais sobre ele. Sobre a empresa,tudo o que conseguires.

D. MANOLOVou fazer umas perguntas, ver o queconsigo descobrir.

(pausa)Tu estás bem, Maria del Carmen?

-140-

MARIA DEL CARMENNem por isso, pai. Mas obrigado porperguntares.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - DIA

JOSÉ está a falar com MIGUEL, mais nervoso do que nunca. Estãona varanda da casa.

Lá em baixo, no jardim, DENISE apanha sol, deitada numa cadeirade esplanada, de biquíni.

Miguel ouve o sócio, mas não consegue tirar os olhos da mulherdeste.

JOSÉ BAPTISTAComo é que foi possível acontecer umacoisa destas. Duas, aliás. Está tudo acorrer mal.

MIGUEL ÂNGELOTem calma. A apreensão não foi culpanossa. Foi em Espanha, e foi umacidente. E o caso do miúdo está a sertratado.

JOSÉ BAPTISTAEu fico fascinado com a tua calma. Omundo a desfazer-se, e tu na maior.

MIGUEL ÂNGELONão sejas tão dramático, Zé.

JOSÉ BAPTISTADramático?! Os colombianos vêm aí outravez. O que é que achas que vaiacontecer se souberem disto?

Miguel vira-se para o amigo.

MIGUEL ÂNGELOOlha, sabes o que é que te digo?Descontrai um pouco. Agarra na Denise,vão dar um passeio na lancha. Ela deveestar farta de estar aqui sempreenfiada.

JOSÉ BAPTISTANem isso está a correr bem, pá...

Miguel observa-o com uma pergunta no olhar.

-141-

JOSÉ BAPTISTAAcho que ela desconfiou daquela festa,não sei como, não me perguntes. Só seique agora não há nada para ninguém.Estou de castigo...

Miguel dá-lhe uma palmada no ombro.

MIGUEL ÂNGELOPorra, pá, estás mesmo em baixo. Issohá-de passar-lhe também.

O amigo não responde, de olhos fixos na mulher. Miguel olha-atambém - estar longe daquele corpo fabuloso é mesmo um castigo.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/ESCRITÓRIO – DIA

JUAN bate com a mão no tampo da secretária.

JUANEu digo para cancelarmos toda estaoperação, que começou mal e vai acabarpior. E matamos o miúdo.

Está reunido com MARICA e o irmão TONI.

TONIDisparate! É a nossa reputação que estáem jogo. Se cancelamos agora, nestafase, queimamos a conexão com aColômbia. Nunca mais ninguém vai querersequer falar connosco.

JUANReputação, Toni? Quem está a queimar anossa reputação és tu. Só fizestedisparates até agora...

TONIDisparates?! Disparates?! Eu tive culpaem alguma coisa? O que é que tu tinhasfeito diferente, afinal, diz lá?

JUANEra a tua operação, portanto...

MARICA(interrompendo, zangada)

Chega! Chega de discussões!

Os dois filhos calam-se imediatamente.

-142-

Marica levanta-se; é impressionante a autoridade que uma mulheridosa e pequena como ela consegue transmitir. Pára em frente daefígie do falecido e fica a olhar para ele, enquanto pronunciao seu veredicto final.

MARICAAmbos têm razão e ambos estão errados.Temos que pensar para além destaoperação, para além do dia de hoje. Mastemos também de resolver os problemasde agora.

Faz uma pausa, observada atentamente pelos dois filhos.

MARICAToni - infelizmente foste ultrapassadopelas circunstâncias. É um facto. OJuan vai tomar conta da operação apartir de agora.

Toni abre a boca para reclamar, mas as palavras recusam-se asair.

MARICAMas tu continuas dentro, para ajudar oteu irmão em tudo o que ele precisar.

Vira-se para Toni, certificando-se de que ele entendeu. O filhobaixa o olhar e ela concentra-se em Juan.

MARICAJuan - a operação com os colombianosvai continuar. Mas só aguentamos osportugueses até deixarmos de precisardeles.

(pausa)Quanto ao miúdo, tenho um ideia para oaproveitar.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/CORREDOR - DIA, MAIS TARDE

TONI sai do escritório, imediatamente seguido por JUAN, que lhepuxa o braço.

JUANA sorte não dura sempre, não é?

TONISorte? Sabes qual é a nossa sorte?

(pausa)

-143-

É que a mamã é muito mais homem do quetu alguma vez serás.

Sacode a mão do irmão, deixando-o para trás, remoendo de raiva.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DE SARA - DIA

MESTRE MÁRIO espreita à porta do quarto da filha. SARA aindaestá deitada na cama, coberta, com um ar miserável. Mas já estásóbria.

MÁRIO DAVIDPosso entrar?

Sara não responde e o velho pescador vem sentar-se ao ladodela. Agarra-lhe na mão.

MÁRIO DAVIDEstás melhor?

SARAAcho que sim...

Mário faz-lhe uma festa na cara.

MÁRIO DAVIDA minha filhinha. Nem sabes como me doiver-te assim.

Sara sorri e agarra na mão do pai.

SARAO Nelson, ainda não me veio ver...

Mário muda de expressão.

MÁRIO DAVIDNinguém sabe dele.

(hesita)Sara - o teu irmão... ele não teve nadaa ver com o que te aconteceu?

SARANão! Nada...

MÁRIO DAVIDNão foi ele que... te arranjou... essadroga, não?

SARANão, pai, não foi. O Nelson nunca fariaisso.

-144-

MÁRIO DAVIDEntão... quem foi?

Sara olha o pai, séria.

SARAPorque é que queres saber, pai? O que éque adianta?

MÁRIO DAVIDMuito, Sara. Adianta muito.

INT. BAR - DIA

MÁRIO DAVID irrompe por um café-bar da vila, que está quasevazio aquela hora do dia.

JOÃO está lá sentado, com alguns AMIGOS. Quando se apercebe daaproximação do pescador tenta levantar-se...

... mas não consegue evitar que Mário o agarre pelo cabelo e oatire ao chão.

MÁRIO DAVIDSeu filho da puta!

O rapaz tenta defender-se, mas Mário espanca-o com raiva. Osamigos estão surpreendidos com a situação e não reagem deimediato.

MÁRIO DAVIDNunca - mais - te chegues - à Sara -ouviste?

Os amigos de João intervêm finalmente, puxando o pescador decima do rapaz.

MÁRIO DAVIDE reza para que ela não tenha SIDA.

AMIGO#1Tenha calma, senhor Mário.

Mário ainda se debruça sobre João, tentando pontapeá-lo.

MÁRIO DAVIDSe não - mato-te!

Mário sacode os dois rapazes que o estão a agarrar.

MÁRIO DAVIDEstá tudo bem - tudo.

-145-

Os rapazes largam-no e Mário começa a afastar-se, mas aindaempurra a mesa para cima de João, que se encolhe todo.

INT. RESTAURANTE DE HOTEL - DIA

MIGUEL está sentado à mesa de um restaurante de hotel, sozinho.Levanta-se, reconhecendo a chegada de alguém.

É DENISE que se aproxima, deslumbrante. Miguel ajeita-lhe umacadeira.

MIGUEL ÂNGELOObrigado por teres vindo.

DENISEComo podia recusar?

Miguel volta a sentar-se.

DENISEPorque é que você quer falar comigo,Miguel?

MIGUEL ÂNGELOEstou preocupado com o José.

(pausa)Nós estamos numa fase muito delicadados nossos negócios, e ele estádesequilibrado.

Coloca a mão em cima da da rapariga.

MIGUEL ÂNGELOVou precisar da tua ajuda, Denise.

A mulher sorri.

DENISENós estamos aqui para falar do José, oupara falar de nós dois?

Inclina-se para Miguel.

DENISEMelhor ainda - nós estamos aqui parafalar... ou para fazer?

-146-

INT. QUARTO DE HOTEL - DIA, MAIS TARDE

A porta do quarto abre-se num repente e MIGUEL e DENISE entram,já enrolados um no outro. Os dois beijam-se com sofreguidão,enquanto fecham a porta atrás de si.

Começam a despir-se uma ao outro, sem pararem de se beijar,enquanto procuram encontrar o caminho para a cama aos apalpões,derrubando cadeira, candeeiro pelo caminho.

Caem em cima da cama, absolutamente loucos de tesão.

INT. QUARTO DE HOTEL - DIA, MAIS TARDE

INT. PORTO DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - NOITE

INT. ARMAZÉM FRIGORÍFICO - NOITE


MARIA DEL CARMEN está ao telefone.

MARIA DEL CARMENNão... podes falar.

INTERCALA COM:

INT. CASA DOS ALVAREZ/SALA - DIA, AO MESMO TEMPO

É D. MANOLO, o pai, que fala com ela.

D. MANOLOÉ bom que o Miguel não ouça isto...para já.

MARIA DEL CARMENEle não está.

D. MANOLOTens razão para estar preocupada,Maria. Essa família Alberro, eles sãorealmente comerciantes de peixe.

INTERCALA COM:

INT. CASA DE MIGUEL ÂNGELO/SUITE

MARIA ouve com atenção.

-147-

MARIA DEL CARMENSim...

D. MANOLOMas são também uma das principais redesde tráfico de droga aqui da Galiza, comconexões para Espanha e a Europa.

Maria fecha os olhos.

D. MANOLOMaria - ouviste?

MARIA DEL CARMENOuvi sim, pai.

D. MANOLOSão companhias muito perigosas. Diz aoteu marido para se afastar deles o maisdepressa possível.

MARIA DEL CARMENReceio que já seja tarde.


RAFAEL também está a atender um telefonema. ALEXANDRA está aoseu lado.

RAFAELOnde é que te meteste?

(para Alexandra)É ele.

Alexandra coloca o telefone em altavoz. E ficamos a saber,finalmente, que...

INTERCALA COM:

EXT. RUA DA GALIZA - DIA, AO MESMO TEMPO

... ele, o informador dos polícias, é JOSÉ ROMÃO, o vendedor dostand.

RAFAELOnde é que te meteste ontem?

JOSÉ ROMÃONem queiras saber. As coisas estão umaconfusão...

-148-

RAFAELA droga... o Nelson roubou a droga, nãofoi?

Romão olha para um lado e para o outro, desconfiado.

JOSÉ ROMÃOFoi...

INTERCALA COM:


RAFAEL olha ALEXANDRA, intrigado.

RAFAELFoda-se...

JOSÉ ROMÃOA quem o dizes. Eu... acho que o vãomatar, pá. O que é que faço?

Com uma frieza inusitada, Alexandra passa o dedo indicadoresticado pelo próprio pescoço, num gesto significativo.

RAFAELNão faças nada.

JOSÉ ROMÃOMas...

RAFAELFinge que não sabes de nada e não tepreocupes mais. Eu trato de tudo.

JOSÉ ROMÃOTens a certeza, pá?

RAFAELFaz só o que eu te disse. Ou quem perdeés tu.

Rafael desliga o telefone e olha para Alexandra.

RAFAELE esta...?

ALEXANDRAFilho da mãe. Quem é que o mandoumeter-se?

-149-

RAFAELIsto veio na pior altura.

(pausa)Mas não vamos estragar tudo por causade um merdas qualquer. Não - há muitodinheiro em jogo.

Alexandra abana a cabeça, confirmando.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/ESCRITÓRIO - DIA

É precisamente desse dinheiro que MIGUEL ÂNGELO e JOSÉ BAPTISTAfalam com NESTOR e MARCOS.

NESTORQuinze milhões de euros, quando forvendida na rua. O que é que vocêsquerem mais?

MIGUEL ÂNGELOEstávamos à espera de uma quantidade umpouco maior, para ser sincero.

NESTORPara uma primeira transacção, até émais do que normalmente nós faríamos.Mas a família Alberro tem uma boareputação, por isso vamos abrir umaexcepção.

José Baptista intervém, nervoso.

JOSÉ BAPTISTAE a nossa reputação? Não conta paranada?

NESTORSe não contasse, nem estaríamos aqui afalar.

Sorri, com algum cinismo.

INT. QUINTA DOS ALBERRO/ESCRITÓRIO - DIA

INT. SEMANÁRIO "AGORA"/GABINETE - DIA

-150-


FILIPE e RAFAEL falam de pé, num corredor movimentado.

FILIPETens mesmo a certeza de que a cocaínajá vem a caminho?

RAFAELAbsoluta. Só não conhecemos ainda ospormenores da operação... mas vamosconhecer.

FILIPEVou contactar as minhas chefias paramontarmos uma operação conjunta.

RAFAELNão é preciso. Portugal trata de tudo.

FILIPESe a operação é assim tão grande, vamosprender os Alberro. Não quero esperarmais.

Rafael olha-o por um momento tenso e depois...

RAFAELAnda cá!

...puxa o braço de Filipe e arrasta-o para...

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/SALA PRIVADA - DIA

... uma sala privada, onde a discussão sobe de tom.

RAFAELOuve cá, meu menino - esta operação éda polícia portuguesa, tu estás aqui sóà boleia. Eu digo quando prendemos,quando soltamos, quando fazemos equando desfazemos. Ninguém vai estragaro nosso trabalho só para conseguir umapromoção. Estamos entendidos?

FILIPE não se deixa impressionar pelo assomo de autoridade deRAFAEL.

FILIPEJá terminaste? Então ouve isto: eu vouavaliar a informação, eu vou informar

-151-

as minhas chefias e eu vou decidir seavançamos ou não para prisões emEspanha. E se tu não conseguires vivercom isso, podes ir tomar no cu.

(pausa)Estamos entendidos?

Rafael olha-o com raiva e vira-lhe as costas, batendo a portada sala.

INT. SEMANÁRIO "AGORA"/REDACÇÃO - NOITE

INT. QUINTA DOS ALBERRO/SALÃO DE JANTAR - NOITE

Uma grande reunião está a decorrer no pouso dos Alberro. Àvolta da enorme mesa de refeições da sala de jantar estãoMARICA, à cabeceira, TONI e JUAN, ao seu lado, NESTOR e MARCOS,no meio, e JOSÉ BAPTISTA e MIGUEL, no fim. EMILIO está sentadonuma cadeira ligeiramente atrás de Marica, com uma pasta dedocumentos no colo. FRANCISCO está de pé junto à porta.

NESTOREstamos então todos de acordo quantoaos moldes da transacção?

MARICAPela nossa parte, absolutamente.

MIGUEL ÂNGELONós também.

O colombiano abre os braços.

NESTOREntão, devíamos abrir uma garrafa, parabrindar ao sucesso.

Juan olha a mãe, que faz um ligeiríssimo aceno de cabeça.

JUANSó há um último aspecto a discutir, comos nossos sócios portugueses.

Todos os olhos se concentram em Miguel e José.

MIGUEL ÂNGELOSim...?

JUANTemos duas condições para vocêscontinuarem neste negócio.

-152-

JOSÉ BAPTISTACondições...?!

JUANDuas. Primeiro, terão de entrar commais um milhão de euros. E segundo,queremos uma garantia viva enquanto atransacção decorre.

MIGUEL ÂNGELOUma garantia viva? O que é que queresdizer com isso?

JUANAs vossas mulheres serão nossasconvidadas no dia da troca. Teremostodo o prazer em recebê-las aqui naquinta.

MIGUEL ÂNGELONem pensem nisso!

JOSÉ BAPTISTAEstão loucos, ou quê?

Miguel levanta-se.

MIGUEL ÂNGELOAs condições já estão acertadas. D.Marica...

Marica intervém.

MARICASente-se, por favor, Miguel. Lembra-sedo que eu lhe perguntei, em tempos?

(pausa)Está disposto a fazer o que fornecessário, Miguel?

Miguel senta-se.

MARICAAs condições são estas, senhores. Sequiserem estar no negócio, aceitam. Senão, continua sem vocês.

MIGUEL ÂNGELOIsto é inaceitável!

(olha Nestor)

-153-

A conexão é nossa, eles não podem fazeristo.

NESTORAcho que já fizeram.

Miguel percebe que lhe puxaram o tapete. Olha José Baptista,enquanto a sala aguarda a sua posição. Depois...

MIGUEL ÂNGELOQuanto ao dinheiro, não há problema.Investimos mais, ganhamos mais.

(pausa)Quanto às nossas mulheres, vocês podemvigiá-las, mas não aqui - no Solar doJosé. Passamos todos lá um simpáticofim de semana em família.

Marica olha Juan e Toni.

MARICAÉ justo. Vamos lá brindar.

Francisco aproxima-se com uma garrafa de cava e alguns copos.

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/ENTRADA - NOITE, MAIS TARDE

JOSÉ e MIGUEL saem do edifício, acompanhados por um CAPANGA.Este pára à porta enquanto os dois se dirigem ao carro deMiguel. José vai nervoso.

JOSÉ BAPTISTAEstamos fodidos! Estamos fodidos! Oscolombianos roeram-nos a corda.

Miguel abre a porta do carro.

MIGUEL ÂNGELOTalvez ainda não. Tens o passaporte emdia?

José olha-o, surpreendido.

JOSÉ BAPTISTATenho, porquê?

Miguel entra para o carro.

MIGUEL ÂNGELOPassa a andar sempre com ele.

-154-

EXT. PORTO DE VILA PRAIA DE ÂNCORA - AMANHECER

BARCOS de pesca saem para a faina, sobrevoados por gaivotasfamintas.

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/COZINHA - DIA

NELSON espreita à porta da cozinha, onde a mãe descascabatatas.

NELSONMãe...

ROSA vira-se, surpreendida. Larga a faca e corre para o filho.

ROSANelson!

Abraça-o com força.

ROSAEstava tão preocupada contigo, filho.

NELSONEu sei, desculpa.

Rosa passa-lhe a mão na cara.

ROSAO meu Nelson...

NELSONA Sara... eu soube o que lhe aconteceu.

ROSAAgora já está melhor.

NELSONPosso vê-la?

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DE SARA - DIA

NELSON está sentado ao lado de SARA, agarrando-lhe na mão.

NELSONEsse João - juro-te que vai pagar.Apanho-o aí numa esquina...

-155-

SARAEsquece, Nelson. Esquece que eu tambémquero esquecer. Já passou, ainda estouaqui, isso é que interessa.

NELSONDesculpa.

Sara não diz nada.

NELSONDesculpa não ter estado cá... e o queeu te disse da última vez. Eu...

SARA...nunca farias isso. Eu sei, Nelson.

NELSONA minha vida... está uma confusão. Nãosei o que fazer.

SARAE alguém sabe?


MIGUEL está a apertar os sapatos, observado pela mulher, MARIADEL CARMEN.

MIGUEL ÂNGELOConsegui fechar o negócio com o Toni.

MARIA DEL CARMENE já te decidiste se vais comprar ouvender-lhe?

MIGUEL ÂNGELONão sejas cínica, Maria. Este negóciovai ser bom para nós. Podemos viajar osdois - vamos a Veneza, não querias láir?

MARIA DEL CARMENVeneza? Miguel, Miguelito...

MIGUEL ÂNGELOVamos ter mais tempo para os dois.Prometo. E para a tua família - já nãoestou com os teus pais à imenso tempo.

-156-

MARIA DEL CARMENQue novidade...

Maria levanta-se e dirige-se para a casa de banho.

MIGUEL ÂNGELOPodíamos combinar um jantar com eles.Amanhã...

MARIA DEL CARMENPorquê? Queres pedir-lhes alguma coisa?

Miguel tenta ser charmoso.

MIGUEL ÂNGELOEles já me deram tudo o que eu queriadeles...

Maria sorri, sem humor, e fecha-lhe a porta na cara.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/QUARTO - DIA

JOSÉ BAPTISTA parece estar um pouco melhor com DENISE. Os doisestão despidos, enfiados debaixo dos lençóis. Ela está aninhadano peito dele, que fuma um cigarro.

JOSÉ BAPTISTAHá quanto tempo não vais ao Brasil?

DENISETempo demais.

JOSÉ BAPTISTADa próxima vez vou contigo. Vouconhecer a tua família.

Denise anima-se.

DENISEQuando, meu amor?

JOSÉ BAPTISTAEm breve, se tudo correr bem.Entretanto...

(hesita)Podíamos fazer outra tentativa com oMiguel e a Maria.

DENISEQuer dizer o quê?

-157-

JOSÉ BAPTISTAConvidá-los a passar o fim de semanaaqui, com mais uns amigos. Era umamaneira de nos aproximar-mos deles.

DENISEE porque iríamos querer isso, meexplica?

JOSÉ BAPTISTAPor favor, Denise - o homem é meusócio.

Denise volta a deitar a cabeça no peito dele.

DENISEVocê é que sabe, meu amor.


MESTRE MÁRIO está a desmontar o motor do seu barco, com umMECÂNICO, quando NELSON se aproxima.

NELSONOlá, pai.

O pescador olha para o filho, sem um sorriso.

MÁRIO DAVIDNão és bem vindo aqui, Nelson.

NELSONIsso não interessa agora. Preciso falarcontigo.

MÁRIO DAVIDNão tenho nada a dizer-te, e comotambém não quero ouvir as tuasmentiras...

NELSONEu meti-me num sarilho a sério, pai.

Isso faz com que o pai o volte a olhar, assim como o mecânico.

NELSONHá uma pessoa que quer falar contigo.Por favor...

Mário hesita, mas depois limpa as mãos num pano.

-158-


A tasca está quase vazia, à excepção do GOMES, que lê um jornaldesportivo ao balcão, e de um VELHOTE que dorme num canto.

NELSON está sentado com MÁRIO e com HUMBERTO. É este último quefala.

HUMBERTOA verdade é essa, Mário. Não vou pedirdesculpa, fizemos o que achámos quedevíamos fazer para sair desta miséria.

MÁRIO DAVIDE agora estão ainda pior.

HUMBERTOEstamos, não - o Nelson está. Eu nãotive nada a ver com isto, eu safo-me;agora o teu filho...

NELSONEles vão matar-me, pai. Eu sei que vão,se tu não ajudares.

Mário olha em redor.

MÁRIO DAVIDNão podes fugir? Ir para outro lado?

NELSONE vocês? A mãe e a Sara? Eles sabemquem é a minha família...

MÁRIO DAVIDVamos à polícia, eu conheço...


Enlouqueceste, pá? À polícia?! Edizemos o quê: olha, andámos aí atransportar droga num barco, mas agorajá não queremos mais, com quem é quefalamos?

MÁRIO DAVIDTem de haver uma solução. Outrasolução!

-159-

NELSONNão, pai. Temos de fazer o que elesquerem. Temos de ir buscar essecarregamento à ilha.

HUMBERTOE tu tens de ir, Mário. Eles só confiamem nós se tu também fores.

Mário olha-o, penetrante.

MÁRIO DAVIDE eu, como é que sei se posso confiarem vocês?


EXT. POLÍCIA JUDICIÁRIA - DIA

INT. CARRO DE FILIPE ECHEVARRIA - DIA, MAIS TARDE

INT. CASA DOS ALVAREZ - NOITE

MIGUEL ÂNGELO e D. MANOLO estão a acender um charuto junto àvaranda da sala, enquanto as suas MULHERES conversam na outraextremidade.

MIGUEL ÂNGELOExcelente charuto...

D. MANOLOÉ a vantagem de ter amigos cubanos.

MIGUEL ÂNGELOE dinheiro. Isso também é umavantagem...

O sogro olha para ele e ficam em silêncio um momento.

D. MANOLOO que é que tu precisas, Miguel?Estiveste a noite toda com alguma coisaatravessada.

MIGUEL ÂNGELONem sei como lhe pedir isto, D. Manolo.

-160-

D. MANOLOTu já me pediste a coisa maisimportante que eu tinha para te dar.

Olha para Maria del Carmen, na outra ponta da sala. A filhasorri-lhe.

D. MANOLOTudo o resto devia ser fácil.

MIGUEL ÂNGELOMas não é. Eu tenho o meu orgulho.

D. MANOLOSei bem que sim.

MIGUEL ÂNGELOE detesto pedir-lhe dinheiro para osmeus negócios, mas estou numa fase deinvestimentos.

D. MANOLOÉ muito?

MIGUEL ÂNGELOUm milhão...

D. Manolo pondera, fixando o olhar no fumo que expele.

D. MANOLOIsto tem alguma coisa a ver com osAlberro?

Miguel não consegue evitar lançar um olhar para a mulher.

MIGUEL ÂNGELOOs Alberro? Como é que...?

D. MANOLOA Maria contou-me. Tem a ver com eles,não tem?

Miguel enfrenta o olhar do sogro.

MIGUEL ÂNGELOTem. E eu preciso mesmo desse dinheiro.

D. MANOLOVais tê-lo, não te preocupes.

(pausa)

-161-

Mas com uma condição. Vais assinar umpedido de divórcio da minha filha.Amanhã.

Miguel olha o velho com desprezo.

MIGUEL ÂNGELOSeu velho filho da puta... Está felizcom esta situação, não está?

D. Manolo não lhe responde e limita-se a soprar-lhe umabaforada de fumo para a cara, antes de se afastar.

EXT. VILA PRAIA DE ÂNCORA/PRAÇA - DIA

EXT. QUINTA DOS ALBERRO/CAPOEIRA - DIA

Manhã cedo. A tia MARICA recolhe ovos numa cesta de vime,acompanhada por EMILIO.

MARICAO meu Toni preocupa-me, Emilio. Receioque ele queira deixar o negócio dafamília para trabalhar por contaprópria.

Recolhe mais um ovo, que observa com ar experiente antes decolocar no cesto.

MARICAEle levou muito a mal a decisão que eutomei. Mas está tomada, e assim é avida.

EMILIOA D. Marica conhece o ditado: "Nunca secolocam os ovos todos no mesmo cesto".Se ele sair, até pode ser bom para nós.Ficamos com mais uma rede dedistribuição.

MARICAOu com mais um concorrente. O Toni temo feitio do pai, Deus o tenha emdescanso.

Agarra outro ovo, que observa desconfiada e agita junto aoouvido.

-162-

EMILIOPreocupa-me mais a questão dosportugueses, D. Marica.

MARICATambém a mim, também a mim. Eles vãoter de morrer, mais tarde ou mais cedo.

Emilio fica pensativo.

EMILIOEntão que seja mais cedo. O risco émuito grande.

MARICAUma coisa de cada vez, meu amigo.Primeiro, fazemos o jantar. Depois,despejamos o lixo.

Deita fora o ovo estragado.

EXT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - DIA

O carro de MIGUEL estaciona ao pé do Solar do sócio. Miguelretira uma MALA da bagageira e segue a mulher em direcção aointerior do solar.

MARIA vai com cara de zangada.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - DIA

JOSÉ BAPTISTA vem receber MIGUEL e MARIA à porta. Tenta sersolícito e simpático, mas choca com a frieza de Maria delCarmen.

JOSÉ BAPTISTAOlá, Maria. Quem bom ver-te...

MARIA DEL CARMENOlá.

Dá-lhe um beijo rápido.

MARIA DEL CARMENOnde é o nosso quarto, por favor?

JOSÉ BAPTISTAEu levo-vos lá. Mas não querem tomar umcopo, primeiro?

-163-

Coloca a mão no braço de Maria e olha para Miguel com arinterrogativo. O sócio abana a cabeça, sem resposta.

MARIA DEL CARMENPreferia não.

JOSÉ BAPTISTAEntão vamos. Vão adorar - coloquei-vosno melhor quarto da casa.

Miguel dá um passo para os acompanhar.

MARIA DEL CARMENNão é preciso vires, Miguel. Oempregado leva as malas.

Maria e José Baptista afastam-se. Miguel hesita um momento e,depois, sai para o jardim.

EXT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - DIA

EXT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/JARDIM - DIA, MAIS TARDE

MIGUEL caminha pelo jardim, de cabeça baixa. DENISE sai de trásde uma vedação arborizada e avança para ele.

Os dois param a um passo um do outro e depois...

...beijam-se com ardor.

EXT. VILA PRAIA DE ÂNCORA/PRAÇA - NOITE

INT. CASA DE MÁRIO DAVID/QUARTO DE SARA - NOITE

O MESTRE MÁRIO está sentado ao lado de SARA, que está vestidajá com roupa do dia a dia. Tem melhor aspecto do que antes.

MÁRIO DAVIDTenho uma boa notícia para ti, Sara.

(pausa)O exame da SIDA deu negativo. Tivestemuita sorte, filha.

A miúda agarra na mão do pai e fecha os olhos, aliviada. O paileva-lhe a mão à boca, beijando-a.

SARAObrigada, pai. Obrigado por tudo. Eu...eu fui muito estúpida.

-164-

MÁRIO DAVIDO que passou, passou. O futuro é queconta, agora.

SARAVais sair, esta noite?

MÁRIO DAVIDVamos pescar.

SARAQuem é que vai contigo?

MÁRIO DAVIDO Nelson e o Humberto.

Sara muda de expressão e baixa o olhar.

SARAAhhh...

MÁRIO DAVIDSara. Aconteça o que acontecer, lembra-te sempre: tudo o que eu faço; tudo oque fiz; tudo o que vou fazer - é poramor, por ti e pelo teu irmão.

SARAEu sei....

Mário faz-lhe uma festa nos cabelos e levanta-se, em direcção àporta.

SARAToma cuidado, pai.

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/GABINETE DE RAFAEL - NOITE

RAFAEL está com FILIPE e ALEXANDRA. Estão debruçados sobre ummapa da região. O inspector aponta uma ILHOTA no mapa.

RAFAELÉ aqui, na ilha de Ínsua. Às 24h00.

FILIPEAvançamos ao mesmo tempo?

RAFAELAo mesmo tempo. É uma operaçãoconjunta.

-165-

FILIPEE também cercamos a quinta dos Alberro.Não há problema quanto a isso?

RAFAELNenhum. São todos vossos.

ALEXANDRA(cínica)

Um presente da polícia portuguesa.

FILIPEEntão... boa sorte.

Rafael estende-lhe a mão.

RAFAELSem ressentimentos?

FILIPESem ressentimentos.

Os dois apertam a mão, olhos nos olhos. Depois Filipe sorripara Alexandra e sai.

Rafael muda instantaneamente de atitude.

RAFAELPobre coitado. Vou rir muito a imaginara cara dele.

Alexandra puxa-lhe a cara e beija-o.

ALEXANDRASeu mauzinho...

INT. POLÍCIA JUDICIÁRIA/RECEPÇÃO - NOITE

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/SALÃO - NOITE

MARIA DEL CARMEN, de casaco e bolsa no braço, entra no salão.Dá de caras com TONI ALBERRO.

TONIOlá. Que surpresa.

Maria fica surpreendida mas tenta manter a pose.

MARIA DEL CARMENPor aqui?

-166-

TONIO José convidou-me para vir conhecer oseu Solar. Um lugar bem romântico, porsinal, não concorda?

MARIA DEL CARMENPara dizer a verdade, não.

(olha em redor)Não viu o meu marido?

TONITenho mais prática a fugir de maridosdo que a encontrá-los...

Maria del Carmen descontrai e abre um sorriso.

MARIA DEL CARMENNão tinha percebido que você temsentido de humor.

TONIHá muita coisa que não sabe de mim,Maria. Posso tratá-la por Maria?

Miguel Ângelo surge nesse momento e pára, espantado por ver amulher com Toni. Tenta disfarçar o desagrado.

MARIA DEL CARMENMiguel...

MIGUEL ÂNGELOVejo que já se encontraram. O Toni veioacompanhar-nos esta noite.

MARIA DEL CARMENQue bom... infelizmente, eu não vouficar.

Toni olha para Miguel.

MIGUEL ÂNGELONão vais ficar...?

MARIA DEL CARMENNão me ouviste? Estava só à tua procurapara te avisar.

Miguel olha-a com seriedade.

MIGUEL ÂNGELOVem comigo, Maria. Temos que falar.

-167-


MIGUEL está com MARIA DEL CARMEN. Os dois discutem.

MARIA DEL CARMENEu já te disse que não fico.

MIGUEL ÂNGELOE eu estou a dizer-te que tens deficar! Tenho de fechar o negócio com oToni, não preciso de merdas esta noite.

MARIA DEL CARMENIsso digo eu, Miguel. Porque é que nãodizes a verdade, uma vez na vida?

MIGUEL ÂNGELOChega...

MARIA DEL CARMENEu sei dos teus negócios e dos negóciosdeste Toni. Não adianta esconder,Miguel.

MIGUEL ÂNGELONão sei do que estás...

MARIA DEL CARMENDe droga! De tráfico de droga. Eu jásei de tudo.

Miguel vira as costas.

MIGUEL ÂNGELOEntão, se sabes de tudo, não compliquesainda mais as coisas. Esta noite não,por favor.

Maria baixa o olhar.

MARIA DEL CARMENE sei do pedido de divórcio que tuassinaste para o meu pai.

MIGUEL ÂNGELOEle obrigou-me, Maria. Tenta entender.As coisas... não correram exactamentecomo eu esperava. Mas até ao fim danoite vai ficar tudo bem.

Avança para Maria, tentando segurar-lhe o queixo.

-168-

MIGUEL ÂNGELOEu prometo que daqui para diante vaiser tudo diferente.

A mulher afasta a cara da mão dele.

MIGUEL ÂNGELOFica acordada. E deseja-me sorte.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA/CORREDOR - NOITE

MIGUEL sai do quarto e procura...

...UMA PISTOLA que tem presa nas calças. Verifica a suacondição e volta a guardá-la.

EXT. VILA PRAIA DE ÂNCORA/PRAÇA - NOITE


Na traineira estão NELSON, HUMBERTO e MESTRE MÁRIO ao leme.

A embarcação afasta-se do cais e mergulha na noite.

EXT. POLÍCIA JUDICIÁRIA - NOITE

Um grupo grande de INSPECTORES DA PJ embarcam em váriasviaturas. RAFAEL e ALEXANDRA embarcam no carro em que sempre osvimos.

INT. STAND DE AUTOMÓVEIS USADOS - NOITE

MIGUEL e JUAN colocam duas MALAS em cima da mesa do escritório.FRANCISCO e ROMÃO também estão na sala.

Os homens abrem as malas em simultâneo. Ambas estão cheias denotas até cima. Os homens voltam a fechá-las.

EXT. ILHA DE ÍNSUA - NOITE

A traineira de MESTRE MÁRIO chega à ilha e fundeia em águabaixa. NELSON e HUMBERTO desembarcam e são recebidos por umsinal de lanterna. Um MONTE DE FARDOS de plástico preto esperapor eles, guardados por DOIS CAPANGAS armados.

-169-

EXT. RUA - NOITE

O carro de FILIPE estaciona perto de um outro carro dematrícula portuguesa, onde TRÊS HOMENS esperam. Fazem sinal deluzes um ao outro.


HUMBERTO e NELSON carregam os fardos para a traineira, debaixodo olhar sério dos CAPANGAS e preocupado de MÁRIO DAVID.

EXT. COLUNA DE CARROS DA PJ - NOITE

O carro de RAFAEL e ALEXANDRA afasta-se da coluna dos outroscarros, virando para uma outra rua e deixando os restantescarros afastar-se.

Dentro do carro os dois inspectores verificam as suas ARMAS.

EXT. PORTO DE VILA PRAIA/OUTRO CAIS - NOITE

O carro de MIGUEL, com JUAN, FRANCISCO e ROMÃO, estaciona pertoda LANCHA RÁPIDA. Os quatro homens desembarcam, carregando asduas malas.

De repente Romão agride Francisco com um violentíssimo golpe nacabeça. O bandido cai sobre os joelhos e tenta reagir, masRomão dá-lhe um novo golpe.

Juan, que vê o que está a acontecer, vira-se para Miguel edepara-se...

...com a pistola deste já apontada para si.

MIGUEL ÂNGELOPousa a mala e levanta as mãos,devagar.

JUANEstás louco, Miguel. Estás a assinar atua sentença de morte.

MIGUEL ÂNGELOLevanta-as, ou assino a tua já.

Juan levanta as mãos e Romão, que tinha estado a imobilizarFrancisco, revista-o rapidamente, retirando-lhe o REVÓLVER.

JUANAinda podemos negociar.

Romão algema-o e Miguel guarda a sua pistola nas calças.

-170-

MIGUEL ÂNGELONão há nada a negociar.

JUANEu acho que há. A tua mulher...

Miguel vai agarrar na mala de Juan, mas nesse momento Romãoaponta-lhe a sua arma.

ROMÃOCalma, Miguel. Agora é a tua vez...

MIGUEL ÂNGELOZé, o que se passa?

ROMÃOLevanta os braços, por favor.

Miguel levanta os braços e Juan ri.

JUANVocês são loucos, os portugueses.

MIGUEL ÂNGELO(para Romão)

Para com isso, Zé. Sabes bem que não tesafas sozinho.

RAFAEL (O.S.)Quem disse que ele está sozinho?

RAFAEL e ALEXANDRA saem da escuridão.

JUANE estes, quem são?

Miguel está tão espantado como ele. Os dois inspectoresaproximam-se de Romão.

MIGUEL ÂNGELOZé...?

RAFAELBom trabalho.

(para Miguel)Nós só queremos essas malas. Se vocêsnão tiverem objecções, é claro.

ALEXANDRADepois seguimos cada um para seu lado.

-171-

JUANVocês estão todos a cometer um erroterrível. Não têm ideia...

O inspector avança para ele, ameaçador.

RAFAELTu é que não tens ideia do que é cairdentro de água com as mãos amarradasatrás das costas. Queres experimentar?

Entretanto, Romão aproxima-se de Miguel para o algemar.

ROMÃODesculpa, Miguel, mas tem de ser.

Alexandra agarra numa das malas e...

...FILIPE surge de arma em punho, acompanhado pelos outros TRÊSHOMENS, também armados. Um deles tem um CRACHÁ da PJ na mão.

INSPECTOR PJPolícia Judiciária! Estão todos presos.

Os homens olham uns para os outros; a surpresa é geral. EMIGUEL é o primeiro a reagir. Roda e puxa Romão, protegendo-secom ele. Agarra na mala...

FILIPEAlto!

... e recua para o barco.

Rafael aproveita a distracção para empurrar Juan para cima doshomens e sacar da sua arma.

O inspector da PJ dispara o primeiro tiro...

... e acerta em Romão, não conseguindo impedir que Miguel saltepara dentro da lancha rápida.

Rafael dispara de volta, obrigando os inspectores a abrigar-se.

Segue-se uma troca de tiros, enquanto Miguel, encolhido, soltaas amarras da lancha e põe o motor a funcionar.

Filipe tenta fazer pontaria contra Miguel, mas os tiros não odeixam.

Juan deita a correr, com as mãos atrás das costas, mas um dosinspectores da PJ persegue-o e derruba-o. O outro dosinspectores consegue ter uma linha de mira e dispara...

... acertando numa perna de Alexandra.

RAFAELAlexandra!

-172-

Imediatamente o inspector levanta as mãos e larga a arma. Correpara Alexandra e ajoelha-se ao lado dela.

Nesse preciso momento, Miguel consegue pôr o barco em movimentoe arranca em grande velocidade pelo rio acima.

Filipe sai do seu abrigo e dispara contra ele, sem sucesso.

FILIPEMerda!

Agarra num walkie-talkie e fala.

FILIPEAvancem. Nós aqui terminámos!


Os fardos já foram todos transportados para a traineira eMESTRE MÁRIO, HUMBERTO, NELSON, MARCOS e os dois CAPANGAS estãoà espera.

De repente surgem da escuridão dois GRUPOS de operacionaisportugueses e espanhóis, armados até aos dentes.

OPERACIONALTodos para o chão. Já!

Os capangas jogam as armas para o chão. Mestre Mário ajoelha-se, com as mãos na cabeça e os olhos no chão.


FILIPE entra no seu carro e arranca a grande velocidade.

EXT. RIO/LANCHA RÁPIDA - NOITE

MIGUEL sobe o rio a grande velocidade na lancha rápida. Tem amala prateada ao seu lado e está a marcar um número detelefone.

INT. CARRO DE FILIPE ECHEVARRIA - NOITE

FILIPE fala para o seu walkie-talkie enquanto conduz.

FILIPEVão para o Solar. Para o Solar.

-173-

EXT. RIO/LANCHA RÁPIDA - NOITE

MIGUEL atira a lancha para uma pequena praia de rio. Salta dobarco com a mala e o telemóvel.

MIGUEL ÂNGELOAtende! Por favor, atende!

Atrás de uns arbustos, num caminho de terra, está um JEEP DELUXO. Miguel abre a porta e joga a mala para o seu interior.

EXT. VILA PRAIA DE ÂNCORA/RUA - NOITE

FILIPE acelera em grande velocidade...

EXT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - NOITE

... a mesma velocidade com que o JEEP DE MIGUEL trava em frentedo Solar.

O homem salta de dentro do carro e corre para a entrada docasarão.

INT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - NOITE

MIGUEL corre para a escadaria que leva ao primeiro andar. UmBANDIDO GALEGO surge no seu caminho, com a mão dentro docasaco.

Miguel levanta a sua pistola e, com uma frieza e precisãoinusitada, acerta-lhe um tiro no peito, derrubando-o.

O estrondo do tiro ecoa pelo Solar, enquanto Miguel galga asescadas de dois em dois degraus.

Quando chega ao cimo, uma porta abre-se. JOSÉ BAPTISTA surge àporta.

JOSÉ BAPTISTAMiguel, o que...?

Cala-se quando vê a arma na mão do sócio. DENISE surge atrásdele. Quando vê o recém-chegado empurra o namorado e corre paraele.

DENISEMiguel! Miguel!

Miguel empurra-a da frente.

MIGUEL ÂNGELOAgora não!

-174-

Denise fica boquiaberta. Miguel dirige-se para uma porta e, comum pontapé, abre-a. Para na entrada com a arma apontada para ointerior do quarto.

TONI (O.S.)Estás à minha procura?

Miguel vira-se de repente e vê TONI, em tronco nu, com uma armaapontada para ele. Atrás do galego está MARIA DEL CARMEN,despida, tentando tapar o corpo com o lençol da cama.

É esta visão que imobiliza finalmente Miguel.

MIGUEL ÂNGELOMaria...?

Não consegue dizer mais nada porque Toni dispara, acertando-lheno peito e projectando-o para trás. Antes que o galego consigadisparar de novo é, por sua vez, atingido por um disparo...

... de José Baptista.

Maria corre para o marido e ajoelha-se ao lado do seu corpoensanguentado.

MARIA DEL CARMENMiguel! Não, Miguel...

MIGUEL ÂNGELOPorquê...?

A ferida no olhar de Miguel é maior do que qualquer balapoderia fazer.

EXT. SOLAR DE JOSÉ BAPTISTA - NOITE

O CARRO de FILIPE, seguido por vários outros carros da polícia,invade o pátio do solar.

FILIPE é o primeiro a desembarcar.

CORTA PARA:

MONTAGEM DE CENAS/GENÉRICO FINAL - AMANHECER

Intercaladas com as legendas do GENÉRICO FINAL vemos umamontagem de cenas que "fecham" a narrativa.

- MARICA ALBERRO, algemada, é transportada para fora da suacasa.

- RAFAEL MARQUES é tirado de um carro, com as mãos algemadas.Vários JORNALISTAS tiram-lhe fotografias.

-175-

- O corpo de MIGUEL, coberto com um lençol branco, étransportado numa maca por dois enfermeiros.

- E, finalmente, MESTRE MÁRIO e NELSON são empurrados paradentro de um jeep da Polícia Marítima. O homem mais novo chora,em contraste com o ar estóico e orgulhoso do seu pai.

FIM DO SEGUNDO TELEFILME

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