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Juliet Grey Confissões de Maria Antonieta Tradução Inês Castro confissoes de maria antonieta***.indd 5 08/Out/2014 16:53

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Juliet Grey

Confissões deMaria Antonieta

TraduçãoInês Castro

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Pour mon mari, Scott, por tornar tudo possível. Bisous!

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A tribulação é o que primeiro nos faz perceber quem somos.

Maria Antonieta para o conde de Mercy ‑Argenteau

A posteridade não deve ligar a «essas fábulas secre‑tas que, por uma questão de malevolência ou mera paixão da má ‑língua, se espalham em vida sobre um príncipe, em que o povo equivocado acredita e que, ao cabo de alguns anos, os historiadores adoptam, enganando ‑se assim a si próprios e enganando as gerações futuras».

Voltaire, Éloge Funèbre, escrito durante o reinado de Luís XV

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m capítulo 1 MAdieu, esplendor

        

5 de Outubro de 1789 – Capturaremos a rainha viva ou morta!A voz de Louison está rouca. Não é de admirar. Há algumas horas que

entoa as palavras de ordem. Mas mostra ‑se tão indiferente ao ardor na parte de trás da garganta como à chuva que lhe fustiga as faces e salpica a sua única saia boa, agora pesada de lama, enquanto calcorreia a estrada de terra que vai do centro de Paris até ao palácio de Versalhes.

– Eu quero uma coxa! – vangloria ‑se a poissarde atrás dela, mais larga e mais corpulenta, brandindo um machado, o avental já manchado de sangue.

Uma voz forte grita:– Eu vou talhar ‑lhe as vísceras num cocar!Louison vira ‑se, à espera de ver outra peixeira, ou talvez uma das pros‑

titutas do Palais Royal que se tinham juntado à sua marcha empapada de água, já com seis mil pessoas. Pela primeira vez, repara na maçã ‑de ‑adão e numa leve sugestão de barba no rosto da sua confederada. Agora entende por que razão a poissarde conseguiu empunhar um chuço como se fosse um simples bastão durante tantos quilómetros.

– Desculpai, monsieur – diz, dando ‑lhe uma cotovelada. – Votre perru‑que está torta.

Com ar embaraçado, o homem ajusta a peruca em mau estado. Parece que nunca viu um pente. Louison tê ‑la ‑ia usado como adereço para escul‑pir Medusa. Seja quem for o homem disfarçado, se não o examinarmos muito de perto, assemelha ‑se a qualquer outra pessoa do exército enla‑meado que marcha sobre Versalhes.

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O homem agarra Louison pelo pulso, surpreendendo ‑a, e, em seguida, leva um dedo aos lábios.

– Há muitos de nós aqui – diz. A pronúncia é educada, como a de um homem culto.

– Eu quero o coração da meretriz austríaca! – guincha uma mulher das profundezas da multidão, a voz encorajada pelo álcool.

Quatro léguas de barriga vazia à chuva fria e implacável exige fortaleci‑mento; muitos, na turba desorganizada, pararam em todas as tabernas ao longo do percurso. Por esta altura, os seus aventais e tamancos de madeira estão cheios de lama, tão espessa como comida para porcos. Atentando nas faces e narizes de um vermelho ‑cereja, é evidente que as suas entranhas estão tão cheias de aguardente como os seus espíritos estão imbuídos de ódio.

Agora que descobriu um leão entre os cordeiros, Louison olha de relance em volta para ver quem mais engloba este inusitado exército de cidadãos. Espanta ‑se com a presença de muitas mulheres com cabelos empoados, à moda, vestidas todas de branco como a rainha se vestira quando ela, Louison, estava prestes a entrar na idade adulta. Como uma rapariguinha, sonhara envergar aqueles vestidos leves e fluidos e frequentar fêtes cham‑pêtres nos relvados verdejantes de Versalhes. Estas damas que cantam com tanta alegria enquanto marcham, apesar da chuva, apesar da lama que trans‑forma os seus vestidos imaculadas em trapos encharcados, não são mulhe‑res do mercado; Louison imagina que sejam o género de mulheres que poderiam folgar no palácio.

Os tambores na vanguarda iniciam um novo rufar, este mais urgente e enérgico do que o ritmo lento e constante que acompanhou a marcha nas últimas seis horas.

– Devemos estar a aproximar ‑nos da vila – grita alguém.Milhares de armas que iniciaram as suas vidas como utensílios agrícolas,

forquilhas, gadanhas e enxadões, são lançados no ar quando a notícia vai percorrendo o seu caminho até à retaguarda da turba. À frente dos tam‑bores, disparam ‑se os quatro canhões da vanguarda; a explosão surda das armas de seis quilos reverbera através do ar já outonal. Dezenas de mos‑quetes cospem fogo, como se em resposta.

– Já vejo os portões! – soa um grito e Louison treme involuntariamente. A palma da mão fecha ‑se com mais força no cabo do seu cinzel, a ferra‑menta do seu ofício.

– Estou com medo – murmura para o homem que caminha a seu lado.

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O corpo do homem cheira mais a almíscar ‑de ‑civeta e pimenta do que a suor, as tripas de peixe e sangue de galinha besuntados de forma tão habilidosa no seu avental de musselina que poderiam lá ter sido pintados. A peruca escorrida está agora no seu lugar, presa com um casquete vermelho triangular, um barrete da liberdade, como lhes estão a chamar, emprestado por uma das poissardes bêbedas que o confundiu com uma das suas colegas.

– Pensai na górgone e não tereis nada a temer – tranquiliza ‑a.A jovem escultora pergunta a si mesma em voz alta se a fome será a sua

maior némesis neste momento, mas o seu companheiro relembra ‑lhe com rapidez que só existe uma razão para a sua barriga estar vazia. Louison sacode as saias molhadas e ganha fôlego. Revigorada, retoma o seu grito de guerra.

– Capturaremos a rainha, viva ou morta!

%

Ganhei o hábito de andar à chuva. A neblina fina parecem lágrimas a cair. Hoje não há visitantes nos jardins do palácio e o vazio empresta aos vas‑tos canteiros um aspecto assustador. Vou para onde os meus escarpins me levam. Dentro da minha cabeça, um solista toca um nocturno no seu vio‑loncelo. Não tenho damas de companhia quando entro nos jardins do Tria‑non e nenhum guarda me segue de perto. Ao longo do meu caminho, as folhas agarram ‑se à terra, brilhando molhadas e douradas, aí coladas pela chuva suave.

Apanho as saias e subo o afloramento rochoso que leva à gruta, atraída pelo som de água a correr por cima de um penhasco coberto de fetos. E aí afundo ‑me no chão cor de granito. Fito a água durante alguns minu‑tos, enfiando as mãos pelas aberturas do meu vestido de seda cinza para aquecê ‑las nos bolsos. Fecho os dedos à volta do relógio do meu pai, apre‑ciando o seu peso na minha mão. Este relógio na sua corrente fina é tudo o que me resta de Francisco de Lorena, o único pertence que me autori‑zaram a trazer para este lado da fronteira quando saí da Áustria para sem‑pre para me tornar dauphine de França. Retiro ‑o do meu bolso e vejo as horas: duas horas e nove minutos. Uma nuvem em tons de ardósia passa a rolar. Em dias mais ensolarados, costumava repousar neste mesmo lugar com o conde von Fersen. Falávamos de tudo e mais alguma coisa, aliviando os nossos corações. Veio ter comigo a semana passada para me contar que

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tinha arranjado uma casa na vila, aqui em Versalhes, para estar mais perto de mim, todos os dias. Nem consigo imaginar o que faria sem ele. A vida já tem sido insuportável o suficiente nestes últimos meses. Já houve demasiadas despedidas: mon cher coeur Gabriela Polignac, banida de França. Em Julho, depois de os parisienses terem invadido a Bastilha, clamaram pelo seu san‑gue; que mais poderia fazer o meu marido, senão dizer à família dela para fugir? O comte d’Artois também e a família. Eu choro por Gabriela, mas é difícil imaginar o que deve ter custado ao meu marido exilar o irmão mais novo, tão detestado pela populaça, para apaziguar a ânsia de violência e melodrama do povo. O meu querido abbé Vermond, que fora meu profes‑sor desde a infância e me acompanhara de Viena; meu leitor e meu confi‑dente há quinze anos. Em meados de Julho, também ele emalara à pressa os seus pertences e apanhara uma das carruagens para a fronteira.

O Outono caiu sobre Versalhes, graças à Revolução. Os companhei‑ros do meu passado, como Gabriela e Vermond, tornaram ‑se suas vítimas em virtude do seu exílio. A maior parte do meu amado cercle do Trianon, como a princesse de Lamballe, fugiu para sua segurança. Dias de verde e do azul mais brilhante são agora cinzentos e castanhos. Olhando para a cas‑cata, vejo o rosto de um inocente, levado por Deus mesmo quando a crise estava a começar. O macio cabelo castanho do primeiro delfim Luís José encaracola ‑se ‑lhe sobre os ombros, os olhos emotivos são ainda tão gran‑des e azuis. Na água que corre ouço a sua voz, um apelo tranquilizador: Sois courageuse. Não desespere, maman.

Je te promets, mon petit, prometo, sussurro. Começo por fim a sentir a humidade nos meus ossos e pergunto a mim mesma quanto tempo terei estado aqui sentada. Quando tiro outra vez o relógio de bolso do papá, ouço um grito distante de chamamento e olho na direcção do som. Um dos pajens do palácio, um rapaz alto envergando o azul real, corre direito a mim.

– Votre Majesté! – Aponta freneticamente na direcção do château e, para lá dele, da vila. – Solicita ‑se que regresseis de imediato ao palácio. Milha‑res de mulheres marcham em direcção a Versalhes, fizeram o caminho todo desde Paris. Alguns dizem que estão armadas!

O meu primeiro pensamento vai para Luís e as crianças.– Onde está Sua Majestade?– Ainda a caçar em Meudon, Majesté – responde ele sem fôlego. – Vários

mensageiros já partiram a cavalo para o ir buscar. Por favor, tendes de vir… já.

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Parece que está prestes a chorar. Não deve ter mais de doze anos, por mais alto que seja. Dou ‑lhe a mão e pergunto ‑lhe quem o mandou procurar ‑me.

– Monsieur o ministro da Guerra, o comte de La Tour du Pin. Está muito agitado, Majesté.

Tento acalmar o rapaz enquanto regressamos ao château, indagando como se chama e fazendo ‑lhe perguntas sobre a família. É um pouco mais de quilómetro e meio até ao palácio desde os portões do Petit Trianon e Daniel e eu temos de voltar a pé. Na sua pressa para me encontrar, o pajem não pensou em requisitar uma carruagem em meu nome.

Vou dar com uma cena de quase caos. Desde que a assustadora notí‑cia chegou a Versalhes, os Aposentos do Estado têm ‑se apinhado de gente com o passar das horas. Com tal multidão, poder ‑se ‑ia ter pensado que havia um baile prestes a começar na Galerie des Glaces. O Oeil de Boeuf está repleto de ministros e cortesãos, oferecendo tantas opiniões quanto o número de almas presentes.

– Messieurs, não podemos tomar nenhuma decisão antes que Sua Majes‑tade regresse de Meudon – digo ‑lhes. Embora tudo em mim pareça febril, sinto ‑me estranhamente calma. – Não há nada a fazer senão aguardar –informo os ministros.

O antigo ministro das Finanças, Jacques Necker, que foi exonerado em Julho depois de discordar do rei em relação à forma de tratar os rebeldes, voltou, só para altercar, ao que parece, com o comte de Saint ‑Priest, que tinha sido demitido ao abrigo da mesma suspeita liberal. O comte de La Tour du Pin grita para se fazer ouvir acima das vozes de ambos.

As centenas de cortesãos que permaneceram em Versalhes após a purga de Julho estão em pânico. E, no entanto, mesmo que o medo manche a seda cinza ‑claro e cor de salmão das suas vestes, a sua mórbida curiosidade leva a melhor. Correm para as janelas altas com pinázios do Salon d’Hercule, na esperança de avistar a aproximação da multidão.

Com tanta elegância quanto consigo reunir, retiro ‑me para os meus aposentos privados, escondidos atrás da enfiada dos Aposentos do Estado.

– Certificai ‑vos de que temos muita lenha – digo a madame Campan.Lança ‑me um olhar, percebendo de imediato o que me vai na mente.

Abandonando o seu livro sobre a mesinha de apoio de mármore, vem ter comigo a uma cómoda alta esculpida. Tirando um molho de chaves do bolso, abro a fechadura. Juntas, retiramos quatro cofres pesados e carregamo ‑los para a lareira.

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– Queimai tudo o que estiver dentro deles, Henriqueta – ordeno com calma.

As minhas recordações reduzem ‑se a cinzas quando o fumo se ergue da combustão. Enquanto as chamas brilhantes incineram anos de preciosa correspondência com a minha mãe e os meus irmãos, sento ‑me para redi‑gir uma carta final para a minha querida duquesa no exílio.

Mergulho a minha pena e escrevo em traços fluidos e regulares, embora a minha letra não seja muito melhor do que quando era criança e sofria infin‑dáveis correcções da minha governanta indulgente. Recordando as pala‑vras que imaginei que o meu filho proferiu esta manhã, da cascata, informo Gabriela de Polignac da nossa situação, acrescentando: Podereis ter a certeza, contudo, que a adversidade não diminuiu a minha força nem a minha coragem. Isso nunca perderei. As dificuldades ensinar ‑me ‑ão prudência; e é em momentos como estes que se aprende a conhecer as pessoas e se consegue por fim discernir a diferença entre aquelas que nos são e não são afeiçoadas.

Só Deus sabe quando, ou se, esta missiva irá alcançá ‑la.Volto para o Oeil de Boeuf onde o comte de La Tour du Pin insiste com

veemência que o melhor procedimento a tomar é enviar o regimento de Flandres de soldados mercenários para cortar a estrada para Paris.

– Qual será o interesse disso? – argumenta Necker, que foi muitas vezes acusado de ser um homem do povo. – Quando as comportas já estão aber‑tas e milhares de cidadãos furiosos estão a caminho há horas?

Relembro mais uma vez ao comte que não pode tomar tal iniciativa na ausência do rei. De La Tour du Pin fita ‑me, as bochechas pesadas a tremer num esforço para conter a sua ira.

– E assim andamos de um lado para o outro a torcer as mãos como don‑zelas indefesas? Sacre Dieu! Mais valia alinharmo ‑nos como aves aquáti‑cas à espera que o bacamarte do caçador nos abatesse um a um. Santo Deus! – Gesticula para o grand salon, apontando o braço para o Salão dos Espelhos onde os semblantes ansiosos da nobreza de França se reflectem multíplices. – Todos esses pavões usam uma espada decorativa que pode‑ria muito bem ter sido fornecida pelo vosso Intendant des Menus Plaisirs. Pouco mais são do que adereços de palco incrustados de jóias, não mais afiadas, tenho a certeza, do que uma faca de manteiga. E arriscarei dizer que, entre os que já participaram numa batalha, poucos se recordarão de como brandir a sua arma contra um adversário. Se estivéssemos numa mesa de jogo, Majesté, preferia apostar o meu dinheiro numa peixeira furiosa

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de Les Halles de Paris do que no marquis de Noirmoutiers ou em qual‑quer um do seu género.

Embora, na ausência de Luís, o conde não tenha autoridade para des‑pachar um regimento, pode tomar medidas para nos proteger dentro dos limites das muralhas do palácio. Ordena que se fechem os grandes portões de ferro do Pátio dos Ministros. O acontecimento acarreta mau agouro sig‑nificativo. Nunca antes o Château de Versalhes foi cerrado ao público. Com eficiência apressada, La Tour du Pin despacha um destacamento de guar‑das para fechar as pesadas portas que separam as grandiosas câmaras dos aposentos oficiais, portais que não se encerram desde o tempo do Rei ‑Sol.

– Barriquem todas as passagens! – grita.Os membros da guarda real encolhem os ombros e perguntam:– Com quê?Logo, dezenas dos nossos guardas de cabeleiras postiças e casacos azuis

com guarnições brancas começam a empilhar mobília dourada e forrada a brocado. Enquanto cadeirões são empoleirados de forma precária em cima de mesas e aparadores pesados arrastados para bloquear portas, o comte de La Tour du Pin ruge:

– Não nos deixaremos capturar aqui, massacrar talvez, sem nos defen‑dermos!

Por entre o aglomerado de uniformes azuis que içam mobília de um lado para o outro, encontra ‑se uma figura alta de casaco verde ‑garrafa, o cabelo castanho ‑claro pouco empoado.

– Axel – murmuro entredentes, a pensar como pude não ter, até agora, consciência da sua presença.

Não posso cumprimentá ‑lo sem chamar a atenção para o acto em si. Mas conhecendo ‑nos como conhecemos, o mero facto de ser o único cor‑tesão, e nem sequer é francês, que está disposto a ajudar os soldados nos seus esforços para nos defender, é suficiente para demonstrar a profundi‑dade dos seus sentimentos, não apenas por mim, mas também por Luís. Rezo para que se vire para poder surpreender ‑lhe o olhar e transmitir o conteúdo do meu coração, mas Axel está concentrado na sua tarefa. Equili‑bra um cadeirão estofado em brocado de um verde ‑mar sobre uma cómoda embutida, que já se encontra em cima de uma mesa e ordena a um trio de guardas que o ajudem a empurrar o conjunto contra as portas fechadas.

Estou preocupada que os filhos da França se assustem com a confusão, por isso apresso ‑me para a minha biblioteca, retirando ‑me para os meus

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aposentos privados através de uma passagem habilmente disfarçada pelo revestimento de damasco da parede. Vou encontrar o delfim Luís Carlos de quatro anos estendido ao comprido no tapete, feliz, a brincar com a irmã mais velha, Madame Royale, sob o olhar atento da nova governanta, a mar‑quise de Tourzel. O meu filho alcunhou ‑a de Madame Sévère.

Luísa de Tourzel ergue ‑se quando entro na sala.– Maman!O delfim levanta os olhos e sorri ‑me, a apertar uma bola de madeira

amarela na mão fechada e gordinha. Mousseline franze o sobrolho e, agora que estou na sala, vira costas, de propósito, ao irmão. Com quase onze anos, a minha filha torna claro que preferiria não estar ali enfiada com um menino pequeno.

Detectando a manifestação de preocupação no meu olhar, a marquesa aproxima ‑se e pego ‑lhe nas mãos, puxando ‑a para perto de mim, o sufi‑ciente para lhe sussurrar:

– Ninguém sabe o que vai suceder, mas a rotina das crianças não deve ser interrompida, a menos que, claro…

Ouvimos um raspar na porta. Madame Campan abre ‑a e permite a entrada de um lacaio que pára, ofegante, na soleira. Avistando as crianças reais, sus‑surra com premência:

– Votre Majesté, o rei voltou!Cinjo o meu filho e a minha filha nos braços e comprimo os lábios nas

suas doces testas. Madame Campan e madame Tourzel fazem ‑me uma reve‑rência quando me dirijo para a porta, colocando um dedo aos lábios para lhes recordar que não devem alarmar as crianças sem necessidade. Mas por quanto mais tempo, pergunto a mim mesma, conseguirei protegê ‑las dos acontecimentos que ameaçam a nossa porta?

Deslizo através dos aposentos oficiais, entro no Salon de Mars e vejo Luís, ainda com o seu chapéu alto, com o fato de caça de veludo de uma tonali‑dade verde ‑azeitona salpicado de lama. Os seus ministros aglomeram ‑se em redor como líquenes coloridos numa parede de pedra. Descortino a cabeça empoada e sobrancelhas escuras do orador mais ruidoso, Jacques Necker, que se esforça para ser ouvido acima das vozes alteadas. A câmara do conselho homenageia agora o seu homónimo celestial; tornou ‑se uma sala de guerra.

– Deveis ficar aqui, Sire. – Necker fulmina com o olhar o comte de Saint‑‑Priest, Secrétaire d’État da casa real. – Pensai no que a turba pensaria se fugísseis! – insiste.

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O que terão estado a discutir na minha ausência?– Não fui eu que sugeri que Sua Majestade abandonasse o trono – retor‑

que Saint ‑Priest inflamado. – Disse apenas que, para sua segurança, a rai‑nha e os filhos da França deviam ser levados sob escolta para Rambouillet. Se tivésseis escutado, teríeis ouvido a minha sugestão de que o rei caval‑gasse com a sua guarda pessoal de oitocentos homens e os duzentos sol‑dados dos Chasseurs des Évêchés ao encontro dos parisienses. Uma força de mil homens é confrontação, senhores, não retirada!

Não seria um longo percurso até à Île de France; Rambouillet não fica longe. Ainda assim, preocupo ‑me com a viagem. Há seis anos, Luís com‑prou o château, uma das primeiras fortalezas medievais, por causa da sua localização no perímetro de uma viçosa floresta de caça. Aí estaríamos segu‑ras, eu e as crianças, pelo menos por enquanto.

É evidente que o comte de La Tour du Pin concorda com Saint ‑Priest; contudo, sendo ministro da Guerra, vê mais longe, como se tudo fosse um enorme jogo de xadrez.

– Mas diz ‑se que há cerca de seis mil pessoas na marcha. Quando um milhar de homens sabe que vai ser excedido em número, só temos duas alternativas: atacar com o elemento da surpresa e abrir fogo sobre elas e ter outro plano, caso o primeiro falhe.

– Não ordenarei que se derrame sangue de nenhum francês, sobretudo por minha causa – declara Luís sem rodeios. – E contam ‑me que se trata de mulheres descontentes. Em circunstância alguma darei ordem para dis‑parar contra mulheres!

O ministro da Guerra inclina a cabeça.– Com vossa permissão, Majesté, são mulheres muito iradas. Ora, se por

qualquer infortúnio, os rebeldes não retrocederem, nem acatarem a razão, então, como estareis protegido por forte guarda, tereis tempo suficiente para retirar para Rambouillet. Daí, a família real pode partir para a Nor‑mandia, distanciando ‑se mais dos distúrbios.

Dispenso um olhar implorante aos retratos de Luís XV e da minha falecida mãe, a imperatriz Maria Teresa de Áustria, pendurados em pare‑des opostas do vasto salão, fitando ‑se um ao outro de um mar de damasco vermelho ‑sangue. O que fariam no nosso lugar: Luís o monarca que hesi‑taria e delegaria e a minha autocrática mamã, sempre tão segura, tão deci‑dida em relação a tudo?

– Não quero comprometer ninguém – insiste Luís.

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Referir ‑se ‑á à nossa segurança, aos conselhos contraditórios dos minis‑tros, ou à boa vontade do povo? Na sucessão de aposentos oficiais, cente‑nas de cortesãos murmuram entre si. Marquesas e duquesas escondem ‑se atrás dos seus leques de cabo de marfim, abertos e a agitarem ‑se com ner‑vosismo. Ninguém ousa dirigir ‑se ‑me.

Os homens continuam a discutir o assunto quando batem as quatro. Ao som do carrilhão, viro a cabeça para olhar pela janela para os canteiros onde as formas em topiaria se recortam em silhueta no crepúsculo intru‑sivo. O que trará o fim do dia? Um formigueiro insinua ‑se no fundo das minhas costas e estremeço.

De repente, a voz de Luís ergue ‑se acima das dos seus ministros que discutem.

– Messieurs, não tomarei nenhuma decisão a menos que Sua Majestade concorde.

O Salão de Marte emudece de súbito, o rebuliço a diminuir para silên‑cio num instante. Todas as cabeças se viram como se fossem uma só.

Neste momento, tenho apenas um pensamento. Olho através da sala para o meu marido, o meu olhar encontra o dele, embora, com a sua mio‑pia, sem dúvida que parecerei apenas uma mancha de um cinza ‑prateado.

– Não desejo que o rei incorra num risco que eu não possa partilhar – digo.

– Então por agora ficaremos – afirma Luís, peremptório. – E permane‑ceremos juntos.

O comte de La Tour du Pin emite um bramido de exasperação.Em todas as salas, os relógios de mármore e ouro batem e fazem tique‑

taque à medida que as horas passam, inexoravelmente. Por volta das cinco, recebemos a notícia de que a turba, revigorada com aguardente, tinha parado na Assembleia Nacional, a entidade formada pelo Terceiro Estado em Junho. Apelidam ‑se o governo do povo, mas até ao momento tudo o que apregoam é ódio e intolerância e tudo o que parecem desejar é san‑gue. Nenhum deles sabe como governar; nenhum concebeu uma solu‑ção aceitável para os males da nação e, contudo, abominam a monarquia, culpando ‑a e a nós por todos os seus infortúnios.

Chegam notícias do esforço da turba para se reunir com a Assembleia. É evidente que fomos mal informados. Existem também homens entre a gentalha, incluindo um professor de anatomia da Universidade de Paris, um docteur Guillotin. Nem todos os participantes na marcha são despojados

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e pobres. Alguém os incitou a este acto de revolta; todos os passos dados por uma peixeira de tamancos de madeira são partilhados por um intelec‑tual de sapatos de fivela.

– Que mais desejam? – pergunta Luís ao mensageiro da Assembleia Nacional. – Agora têm liberdade de imprensa. A Igreja foi forçada a abrir mão de rendas e receitas lucrativas. As regalias da nobreza foram abolidas, tudo nos últimos três meses. E agora este novo rebuliço sobre os Direitos do Homem… que mais querem? – repete, confundido.

É incompreensível. Está tudo a acontecer demasiado depressa. Porém, para os revoltosos, o mundo não muda com rapidez suficiente.

– Têm fome, Vossa Majestade – responde o mensageiro. – Acreditam que a Assembleia contém inimigos do povo que são a causa desta fome. Dizem que homens perversos estão a dar dinheiro e títulos aos moleiros para eles não moerem o grão. Quando o presidente da Assembleia lhes exigiu nomes específicos, disseram ‑lhe que o arcebispo de Paris era um deles. Nessa altura, o deputado de Arras, monsieur Robespierre, exortou as mulheres a subir para os bancos e a clamar por pão. – O mensageiro lança um olhar desesperado na minha direcção. – Não é bom para a rai‑nha, Sire. Uma das peixeiras puxou de um pedaço de pão preto do aven‑tal sujo e anunciou a toda a gente que… – faz uma pausa e inala uma golfada de ar.

– Continuez, s’il vous plaît, monsieur – digo baixinho.Os olhos dele dardejam ansiosos pela sala.– Disse que queria fazer com que l’Autrichienne o engolisse antes de lhe

torcer o pescoço.A sala silencia outra vez, mas apenas durante um instante. Depois a con‑

fusão principia de novo, todos os cortesãos cospem a sua indignação e todos os ministros exprimem a sua opinião a plenos pulmões. Mas o barulho é abafado pelo clamor junto aos portões.

Lá fora a escuridão cai e uma bruma pesada cobre o céu. Um membro da guarda real informa ‑nos que centenas, se não milhares, de mulheres se comprimem contra as barras de ferro, exigindo entrar. Não obstante os seus gritos, sei que o que na realidade anseiam é o meu sangue. Seria tola se não as temesse.

– Não posso ignorá ‑los – insiste Luís. – Um rei é o pai do seu povo e até mesmos os revoltosos são meus filhos. Se são apenas mulheres do mercado descontentes, não vejo razão manifesta para pânico.

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Concorda em encontrar ‑se com uma delegação de cinco deles, esco‑lhidos entre a turba. Serão escoltados ao Oeil de Boeuf por deputados da Assembleia. Rezo para que nenhum esconda uma arma que não seja detec‑tada com antecedência pela nossa guarda pessoal.

No entanto, quando a delegação chega, aflijo ‑me que talvez houvesse mais a recear dos deputados. O homem de Arras, apresentado a Luís como Maximilien François Marie Isidore de Robespierre, parece avesso a sorrisos. O seu rosto é tão insolente como o de uma ratazana e o seu porte e maneira de vestir mais exigentes do que os de muitos cortesãos. As faixas de renda branca no pescoço e punhos estão imaculadas, bem como as meias, e as five‑las dos sapatos foram tão polidas que brilham à luz das velas. Quando atra‑vessa o grande salão, os olhos escuros de Robespierre dardejam, ávidos, se não invejosos, pela Galerie des Glaces, como se para tomar nota dos ador‑nos magníficos da monarquia que tanto despreza. E, contudo, veste ‑se como um marquês. É o suficiente para me convencer que não se pode confiar nele.

Apressando ‑se ao lado de monsieur Robespierre, vem um dos deputa‑dos mais moderados, monsieur Mounier, que perde um instante a fazer ‑me uma vénia quando o homem de Arras está a olhar para outro lado, muito provavelmente para o seu reflexo na miríade de espelhos.

– Robespierre está melindrado, Vossa Majestade – sussurra alto Mou‑nier –, porque chegou esta tarde à Assembleia a notícia de que o rei re cusou ratificar a Declaração dos Direitos do Homem. – Fala ao mesmo tempo que avança com rapidez pelo parquet, esforçando ‑se por acompanhar o passo do resto da delegação, embora fique para trás para comunicar esta revira‑volta dos acontecimentos. – No fim de contas, a Assembleia ratificou ‑a a vinte e seis de Agosto e estão à espera há mais de um mês do imprimatur de Sua Majestade. A sua paciência atingiu o limite. Mas creio que se poderá evitar a violência se se conseguir persuadir o rei a assiná ‑la de imediato.

Empalideço. Li esse documento e relembro com clareza o que o povo exige: soberania inerente não à monarquia, mas à «nação», seja lá o que isso significa? Cidadãos decidindo de moto próprio se pagam ou não impostos?

– Hoje?– Tendes de convencer o rei, Majesté. Poderá ser a única forma.– Monsieur, nunca tentaria persuadir o meu marido a fazer uma coisa

que vai contra a nossa convicção sagrada. Luís XVI governa por direito divino. Os membros da vossa Assembleia Nacional não são mais do que usurpadores que se ungiram e se o «princípio da soberania», segundo os

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Direitos do Homem, pertence a todos os homens e mulheres, então não tereis senão anarquia. Quem portanto reina? Dir ‑lhe ‑ei, monsieur Mou‑nier: o Caos.

Chegamos ao fim da Galeria dos Espelhos e dobramos a esquina para o Oeil de Boeuf onde Luís, rodeado por guardas, permite que as mulhe‑res do mercado digam o que pensam. Ouço ‑o fazer perguntas sobre o ofí‑cio de cada uma delas, sobre os maridos e filhos. Fala ‑lhes com gentileza, sem superioridade paternalista. Pelo contrário, oferece solicitude paternal. Há preocupação genuína nos seus olhos de um azul ‑pálido. Uma jovem bonita com um avental de couro manchado de lama, os caracóis castanhos a derramarem ‑se de um tricolore atado à cabeça como um lenço, diz ‑lhe que se chama Louison Chabry.

– Trabalho em escultura – diz, mostrando que é falso o boato de que fomos atacados por milhares de poissardes. – Temos fome – acrescenta, apertando o cinzel.

Miro o objecto com cautela, com receio que a jovem se possa revelar uma louca que a qualquer momento possa atacar o rei. Os meus receios não são assim tão infundados; Luís XV quase foi assassinado por um homem transtornado de espírito, ali mesmo na Cour Royale.

– Os moleiros não estão a moer – afirma a jovem. – Não temos pão. Não como há dois dias.

O olhar de mademoiselle Chabry dardeja pelo Oeil de Boeuf, interiori‑zando a grandiosidade do salão, as grandes pilastras de mármore, a invul‑gar janela em olho ‑de ‑boi que dá o nome à antecâmara, o enorme lustre formado a partir de milhares de cristais reluzentes.

– A vossa cabeça, Sire – murmura. – O mesmo perfil que vejo em todas as moedas!

É evidente que se sente subjugada na presença do monarca, pela sua majestade e pelo esplendor de Versalhes. Revira os olhos ao mesmo tempo que se afunda nos joelhos e, um instante depois, jaz no chão, apoiada pelas suas irmãs de insurreição.

É o rei que pede sais de cheiro. Enquanto os cortesãos olham em volta sem saber o que fazer, ninguém a querer ser o primeiro a oferecer um frasquinho de sais à jovem escultora, o burburinho de vozes alteadas sobe a partir do pátio. Um grito trespassa o ar de forma tão clara que provoca a mesma sensação que a adaga de Damiens deve ter provocado no cora‑ção de Luís XV.

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– Traremos a cabeça da rainha espetada num pique!Todos os olhos se desviam da mademoiselle caída para mim. Endireito‑

‑me mais e mantenho a cabeça bem erguida. Não quero que estas mulhe‑res do mercado vejam que estou com medo. Não me vêem morder o lábio inferior. Luís suspira com o peso da França inteira sobre os ombros largos e volta a virar ‑se para a mulher tombada no chão.

– Viestes para fazer mal à minha mulher? – pergunta de forma incisiva. Não ouço a resposta dela.

Mas ouço Luís prometer à delegação de mulheres que receberão pão, rece‑berão todas pão, dos armazéns do palácio. Temos bastante, diz ‑lhes. Que não se diga que o rei de França não compreende o sofrimento dos seus súbditos.

Um dos ajudantes ‑de ‑campo do marquês de Lafayette abre caminho à força através da assistência. Durante a revolução das colónias americanas contra os ingleses, o marquês ruivo fora general no Exército Continental e servira sob as ordens de George Washington, o homem que acabou de ser eleito primeiro presidente da nova nação. Lamentavelmente, Lafayette regressou com o ardor da rebelião ainda a latejar ‑lhe no sangue. Depois de a Bastilha ter sido tomada de assalto em Julho, respondeu à chamada, não para ajudar a coroa, mas para ajudar os nossos inimigos, aceitando a nomeação de comandante ‑chefe da Garde Nationale, as milícias forma‑das pelos cidadãos.

Às cotoveladas, o homem chega ao rei.– Uma palavra, Majesté! – reclama.Luís ergue a mão, mas o oficial às ordens insiste:– Sire, não pode esperar.Anuncia que o oficial que comanda a Garde Nationale de Paris marcha

sobre Versalhes com trinta mil homens armados, incluindo os da primitiva Guarda Nacional, soldados outrora leais à coroa.

Enquanto o comte de La Tour du Pin exige a retirada imediata das mulhe‑res do mercado e dos deputados da Assembleia, Saint ‑Priest reitera a sua recomendação de que a família real se retire para Rambouillet. Maximilien Robespierre e eu cruzamo ‑nos quando ele sai da antecâmara e trocamos olhares. Os olhos dele são negros e frios, como os de um peixe. Dão ‑me um encontrão e alguém comprime um papel na minha mão, mas não posso, não ouso, lê ‑lo no meio de uma multidão.

O rei sai do Oeil de Boeuf, deixando atrás de si um mar de cortesãos con‑fundidos e dirigimo ‑nos os dois com os ministros para os seus aposentos

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privados. Na quietude da biblioteca de Luís, Saint ‑Priest atira ‑se aos pés do seu soberano e, de forma arrebatada, insiste numa decisão.

– Se fordes levado para Paris amanhã, Majesté, perdereis a coroa!O relógio em cima da lareira bate as oito. Pela segunda vez, hoje, o meu

marido fita ‑me à espera de um conselho antes de se comprometer com uma linha de acção.

Nem pensar em deixá ‑lo, sobretudo quando o perigo se encontra ainda mais próximo.

– Vamos agora – digo.Beijo ‑lhe a face e viro ‑me, correndo lá para baixo para os aposentos

das crianças onde dou ordens a madame de Tourzel e a uma das suas sous‑‑gouvernantes para emalar o máximo de coisas que conseguirem.

– Vite, vite! Partimos dentro de um quarto de hora!Quando o relógio retine de novo, a família, incluindo a irmã do rei,

a princesse Isabel, está reunida no vestíbulo por baixo do Salon d’Hercule ao fundo da grande escadaria de mármore. O meu filho e filha estão envol‑tos em capas de lã de um azul ‑escuro e agarram ‑se às saias da sua gentil tia. O lábio inferior de madame Isabel treme de medo. A pensar primeiro na segurança dos meus filhos, guio ‑os lá para fora para a noite. Mal pisamos a Cour de Marbre, ouvem ‑se apupos. A Place d’Armes, aos portões, está repleta de mulheres do mercado. Erguem as suas armas no ar, elevando alto gadanhas e piques. Sinto ‑me grata por a visão do rei ser tão fraca que não consegue ver estes utensílios que se levantam contra nós.

Apressamo ‑nos pela orla dos edifícios como ratos, em direcção aos está‑bulos reais onde as nossas carruagens nos aguardam.

– Um rei fugitivo, um rei fugitivo – resmoneia Luís entredentes, como se a expressão fosse a mais detestável que já lhe tivesse passado pelos lábios.

Mas, mal as portas para os estábulos se abrem para o lado, a turba grita a uma só voz histérica e furiosa:

– O rei vai partir!Precipitam ‑se em direcção às nossas carruagens e lançam os corpos com

violência para cima dos veículos, cortando os arreios e levando os cavalos aterrorizados a relinchar. Estamos encurralados. Saint ‑Priest e o comte de La Tour du Pin, que vieram ver ‑nos partir, oferecem as suas carruagens como último recurso. Estão aparelhadas para lá dos portões da Orange‑rie. Se conseguirmos lá chegar sem impedimento, podemos ter esperança numa saída mais discreta de Versalhes. Mas a turba avança agora na nossa

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direcção. O regimento de mercenários da Flandres, a única coisa que se ergue entre nós e este mar de vitríolo humano, faz o que pode para manter esta multidão em suspenso sem disparar uma única salva, pois Luís con‑tinua a proibir qualquer ataque contra os seus súbditos. Não há nada que possamos fazer senão retroceder.

De volta aos aposentos oficiais, o meu coração bate por baixo do espar‑tilho, mas não deixo que nenhuma emoção me traia. Tenho de ser forte por todos. Já de si têm medo suficiente. Todas as velas estão acesas, como se para afastar os demónios da noite criando um dia perpétuo. Alguns cor‑tesãos andam de um lado para o outro na Galerie des Glaces, os saltos ver‑melhos a ecoar no parquet reluzente. Outros estão sentados na Sala de Jogo, a jogar jogo atrás de jogo de piquet ou écarté, deitando as suas cartas e mar‑cadores sobre o repes verde com estranha deliberação, como se ao prolon‑gar o jogo travassem o que o destino nos tem reservado.

Às onze, Luís e eu recebemos alguns cortesãos bem como um punhado de oficiais, entre eles o conde von Fersen. O queixo de Axel projecta ‑se para a frente, furioso, e os seus olhos, cuja cor muda tanto, estão de um cinzento de aço esta noite, comunicando muito, por pouco que fale.

– Dai ‑me a ordem, Vossa Majestade, que nos autorize a levar cavalos do estábulo para podermos defender a família real se for atacada – insiste.

Olho para o meu marido, mas ele está imerso em conversa com o depu‑tado Mounier, que ainda o pressiona a assinar a Declaração dos Direitos do Homem.

– Vou consentir em dar essa ordem numa condição – digo a Axel. – Se a vida de Sua Majestade estiver em perigo, devereis usá ‑la de imediato. Mas, se for apenas eu que estiver em risco, não a usareis. – O conde von Fersen lança ‑me um olhar inexorável e as lágrimas brotam ‑me dos olhos. – São essas as minhas ordens – repito.

Eu já tinha informado a marquise de Tourzel que levasse o delfim e Madame Royale para os aposentos privados do rei, caso sentisse a mais leve razão para alarme.

– Mas onde ireis passar a noite, querida irmã? – Os olhos escuros de madame Isabel estão avermelhados do choro. A sua dame d’honneur, a mar‑quise de Bombelles, parece não conseguir consolá ‑la. – Não ficareis mais segura com o rei?

Sei o que estas mulheres do mercado querem. Por esta altura já li o bilhete anónimo que me passaram no Oeil de Boeuf. sereis assassinada

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às seis da manhã. Mas as poissardes e os seus confederados ainda confiam em Luís. Sinto o peito constringir ‑se dentro do espartilho.

– Sei que vieram de Paris exigir a minha cabeça – digo a madame Isa‑bel. – Mas aprendi com a minha mãe a não recear a morte e vou aguardá‑‑la com firmeza. Prefiro expor ‑me ao perigo, se o houver, e proteger Sua Majestade e os filhos da França. Dormirei sozinha esta noite.

Contudo, o sono ainda vem longe. Com os olhos cheios de lágrimas, Luís concorda com relutância em assinar a Declaração dos Direitos do Homem e o deputado Mounier observa cada traço da pena como um abutre a mirar carne putrefacta. Nunca vi o meu marido com ar mais derrotado. Atrás da sua cadeira, passo os braços pelos seus ombros e comprimo os lábios no topo da sua cabeça. Embora o seu rosto não apresente qualquer transpira‑ção, o seu couro cabeludo está húmido, peganhento de medo.

Pouco tempo depois de os relógios baterem a meia ‑noite, o marquês de Lafayette, salpicado de lama, chega ao palácio, tão exausto de cavalgar o mais depressa possível de Paris que entra a coxear no Salão de Marte. Tem o rosto chupado, sem a sua habitual vermelhidão, e faz um esforço para permanecer de pé. Com um movimento dramático do braço, digno do grande Clairval, anuncia a Luís que deixou os seus homens na Place d’Armes.

– Sire, pensei que era melhor morrer aqui aos pés de Vossa Majestade do que perecer inutilmente à luz vergonhosa das tochas na Place de Grève.

– Estais de novo a virar a casaca, monsieur le général? – pergunto ao coman‑dante da Garde Nationale. – Abandonastes as vossas milícias de cidadãos e voltastes a oferecer a vossa ajuda ao vosso rei?

Lafayette abana a cabeça.– Eles querem ser ouvidos – diz a Luís. – Querem saber se atentastes

nas suas preocupações e se serão tomadas medidas.O meu marido estica as mãos.– Pediram pão e já lho prometi dos nossos armazéns. Parece impru‑

dente distribuí ‑lo a meio da noite húmida. Ao nascer do dia haverá pão em grande quantidade. Podereis tranquilizá ‑los. – Fita o general de forma imploradora. – Sempre fui um homem de palavra. Um homem de honra. – Baixa a voz até a um sussurro que poderia mesmo assim ser ouvido no palco da Comédie ‑Française. – Mas eles têm de prometer não pensar em fazer mal à rainha.

– Dizei ‑lhe pode ficar sossegada e ir dormir – diz Lafayette ao rei.

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Convenceu Luís a confiar ‑lhe a segurança do palácio. A Guarda Nacio‑nal retomará os postos que abandonou há um mês. Será sensato?

Luís retira ‑se também para passar a noite. Não imagino como conse‑guirá dormir. Não quero pôr as minhas damas em perigo, por isso, às duas da manhã, exorto ‑as a deixarem ‑me. A minha primeira camareira, madame Thibaut e a irmã de madame Campan, madame Auguié, estão de serviço esta noite, junto com as suas criadas. Mas não querem ir ‑se embora mesmo depois de eu insistir que vão para a sala onde as minhas outras damas se juntaram. Madame Auguié chora. Olha para madame Thibaut para se enco‑rajar e recorda ‑me que há trinta mil soldados e dez mil bandidos, com qua‑renta canhões reunidos aos nossos portões.

– Noutros tempos teriam protegido Vossa Majestade. Agora o mundo virou ‑se de pernas para o ar e somos só nós as quatro – soluça, indicando madame Thibaut e as criadas. – Somos agora a vossa única sauvegarde. Seria errado da nossa parte desertar ‑vos.

Chegamos a um compromisso. Não colocarei as suas vidas em risco permitindo ‑lhes que durmam no meu quarto. E assim elas arrastam quatro cadeirões para a minha porta e preparam ‑se para passar a noite nesses fau‑teuils. O som abafado do rufar de tambores com peles encharcadas rever‑bera vindo da Place d’Armes onde as mulheres do mercado e os soldados estão acampados, um apelo rouco e assustador ao protesto, que durou sem cessar toda a noite. Creio que, afinal, não conseguirei dormir.

Deito ‑me no colchão de penas a fitar a parte inferior do dossel de bro‑cado rosa e dourado. Sem qualquer ideia de quanto tempo se passou, sento‑‑me de repente muito direita, com os olhos a piscar, o coração a latejar. Por baixo das minhas janelas, parece haver um alvoroço que vem da zona da Orangerie. O relógio bate uma vez e olho para ele. Cinco e meia. Des‑calça, corro para as portas do quarto, apertando ao peito a cambraia fina da minha camisa de dormir. Madame Thibaut dá um salto do cadeirão e depois arranja com rapidez as saias e afunda ‑se numa reverência.

– Ouvistes aquilo? – pergunto ‑lhe. As outras mulheres estão agora bem despertas.

– Alguns dos manifestantes devem ter ido para os canteiros – responde ela. – Sem sítio nenhum onde dormirem, talvez tenham procurado refú‑gio nos jardins.

O regimento da Guarda Nacional, recém ‑reintegrado em funções, tinha sido designado para patrulhar os portões e entradas para os parques. Mas

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poderemos confiar neles, apesar das garantias do general? Teria Lafayette sido ingénuo, enganado ou um absoluto mentiroso?

– Creio que é seguro voltar para a cama, Majesté – diz madame Thibaut. – Em qualquer dos casos, os homens dos gardes du corps estão destacados no vestíbulo. Tentai dormir, madame – acrescenta com suavidade, fechando as pesadas portas de madeira.

Quando o relógio bate as seis, ouço pancadas terríveis. As minhas damas abrem de rompante as portas da minha alcova. Têm os rostos sem pinta de sangue. Madame Auguié está histérica.

– Levantai ‑vos, Majestade! Vêm a subir a escadaria de mármore, cen‑tenas deles, armados com piques, mosquetes, vassouras e facas. Vêm pela Galerie des Glaces, direitos ao vosso quarto de dormir.

As duas criadas gritam por socorro e agitam freneticamente os braços para, em simultâneo, atrasar a debandada e convocar a guarda pessoal real.

– Parece que alguém lhes deu um mapa do palácio – acrescenta madame Thibaut. – De que outra forma saberiam o sítio exacto onde dormis?

Frases fragmentadas chegam ‑nos aos ouvidos: «Matem! Matem!»; «Nada de misericórdia!»; «… talhar um cocarde das suas vísceras!»

– Não há tempo para vos vestir, madame! – urge madame Auguié. – Vite, vite… tendes de fugir para os petits appartements de Sua Majestade.

Abrem as portas do meu guarda ‑roupa e puxam a primeira anágua que encontram, bem como um lévite, um vestido solto de uma seda às riscas amarelo ‑pálido e creme. Não há tempo para procurar um espartilho. De uma gaveta, retiro um par de meias brancas e um pequeno xaile, mas não posso parar para os envergar. Madame Thibaut puxa um chapéu de veludo preto com uma pluma branca da prateleira de cima do guarda ‑roupa e enfia ‑os na minha outra mão, ao mesmo tempo que madame Auguié grita «Sapatos!» e me dá o primeiro par de sapatos de salto de cetim preto que encontra.

O barulho da turba que se aproxima aumenta, os passos retumbantes ampliados por gritos guturais, berros de fazer gelar o sangue e os sons de madeira a lascar ‑se, vidro e porcelana a estilhaçarem ‑se.

Digo comigo própria que tenho de manter a presença de espírito, embora o meu quarto de dormir ameace tornar ‑se uma mancha vaga de rosa e dou‑rado. As minhas mãos estão cheias de acessórios e por isso uso o ombro para pressionar o painel secreto ao lado da minha cama, empurrando o meu peso contra ele, ao mesmo tempo que tacteio à procura da tranqueta escondida que soltará a porta.

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«Temos de arrancar o coração da cadela!», «Onde está ela?» Ouço, as vozes a aproximarem ‑se. As minhas damas estão agora coladas a mim e desaparecemos atrás da porta para a passagem que liga o quarto de dormir da rainha aos aposentos de Luís. Que golpe de brilhantismo do comte de Mercy ter sugerido a sua construção há todos esses anos! Quem poderia ter previsto que a passagem secreta destinada a facilitar a cria‑ção de vida, a vida dos filhos da França, desempenharia um dia o papel de salvar a minha?

Chego por fim à pesada porta para o Oeil de Boeuf, mas encontro ‑a trancada. A minha respiração é ofegante e o coração martela por baixo do meu peito. Os intrusos chegaram ao meu quarto. Consigo ouvi ‑los atra‑vés da parede. Tenho de encontrar Luís… e a segurança. Corro pelo cor‑redor até aos seus aposentos e, deixando cair as minhas roupas numa pilha no chão, começo a bater na primeira porta com que me deparo, malhando na madeira com ambos os punhos.

– Salvai ‑me, mes amis!Da direcção dos Aposentos do Estado, ouço os gritos dos revoltosos e o

estrépito de um machado a rachar madeira. Estão a derrubar a porta para o Oeil de Boeuf. Foi a Providência que me salvou. Se a porta não estivesse trancada do lado do corredor, eu estaria agora na antecâmara, desfeita em tiras por uma turba que uiva pelo meu sangue, pelas minhas vísceras, pela minha cabeça.

Por fim, após o que parece uma eternidade, a porta para o quarto de dormir de Luís abre ‑se e um rosto minúsculo espreita cá para fora. Per‑tence a um pajem assustado, que se desculpa por não ter ouvido as minhas súplicas frenéticas para entrar.

– O barulho tem sido tão grande, Majesté. – Treme.Esquadrinho a sala. Madame Isabel já lá está, bem como madame de Tour‑

zel. Mas onde… onde estão os meus filhos? Por fim, avisto ‑os. Madame Royale está de pé em cima de uma cadeira, a olhar pela janela. O delfim agarra ‑se às suas saias. Abraço ‑os aos dois, apertando ‑os contra mim. Então o delfim diz:

– Papa?E percebo que há alguma coisa horrivelmente errada. Onde está o rei?– Foi procurar ‑vos, ma soeur – diz madame Isabel. Tem o rosto branco

como pergaminho. – Devem ter ‑se desencontrado no corredor.Deus misericordioso! Estaria Luís na antecâmara quando a turba…?

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As minhas damas exortam ‑me a acabar de me vestir enquanto continuo a perguntar ao ar vazio:

– Onde está o meu marido?Percebendo que a porta continua aberta, corro a dar ‑lhe um puxão para

a fechar e ouço uma voz familiar gritar em voz rouca:– Attends! Espera, ma chère!Caio a chorar nos braços de Luís, nunca tão feliz por o ver como neste

momento. Mas é impossível não pensar também no futuro. Engasgando‑‑me com os soluços descontrolados, digo ‑lhe:

– Matarão o nosso filho.

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