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SEMINÁRIO DE SANTO AGOSTINHO ANOTAÇÕES DE UM SEMINÁRIO DE LEITURA DE CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINH O (1976) POR QUE FILOSOFIA NA LEITURA TEOLÓGICA A leitura é de um texto teológico: As Confissões de Santo Agostinho. Mas nem sempre a leitura de um texto teológico é uma leitura teológica. Ela só se torna teológica se lemos o texto teologicamente. Somente que é questionável se a teologia é um ponto de vista; e, se é um ponto de vista, se o é como o são as ciências humanas, p. ex., sociologia, história, psicologia, antropologia etc. Segundo a estruturação usual, operativa, da ação do saber organizado chamada teologia, a teologia é uma ciência e uma ciência positiva. Ciência, enquanto empenho de busca do saber que se organiza logicamente como um sistema do saber verdadeiro, isto é, certo. Positiva, enquanto essa busca já parte colocada na abertura de um horizonte prejacente, que lhe dita o âmbito da possibilidade do princípio, meio e fim do seu saber. A abertura do horizonte prejacente se chama: pressuposição, isto é, o positivo, dado de antemão, que tudo sustenta, o fundamento. É, pois, a terra donde brota a árvore de uma ciência. O fundamento, o propósito da teologia é a fé. O texto de Santo Agostinho é, pois, o fruto sazonado da floração do saber, cujo sabor, a sapiência, tem a sua raiz na fé. A leitura teológica do texto de Santo Agostinho se propõe colher e acolher esse fruto saboroso da fé, a partir e dentro de um recolhimento no saber, que vem do húmus da fé. Mas, se é assim, o que pretende a filosofia em participando do seminário, cujo recolhimento fundamental é a fé? O que busca a filosofia na leitura da fé? Nada. Pois a filosofia é a afeição do abismo do Nada, onde toda e qualquer fundamentação, todo e qualquer propósito é a questão do abismo do Nada. Em falando do princípio da razão suficiente, o móvel da filosofia que diz Nihil est sine ratione, pergunta Novalis (Friedrich Leopold von Hardenberg, nas 2.5.1772 – fal. 25.3.1801) num fragmento (Minor II, p. 171) intitulado Wasmuth III, n. 381: Não contém o supremo princípio o supremo paradoxo na destinação da sua tarefa? Ser uma posição, que jamais permite a paz, que sempre atrai e repele, que sempre de novo se torna incompreensível, sejam quantas forem as vezes que o tenhamos entendido; que sem cessar a-corda a nossa atividade, sem jamais cansá-la, sem jamais se tornar acomodada? Segundo um antigo mito, Deus é para o espírito algo semelhante a esse princípio.

Confissões de Santo Agostinho (1976)

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A leitura é de um texto teológico: As Confissões de Santo Agostinho.Mas nem sempre a leitura de um texto teológico é uma leitura teológica. Ela só se torna teológica se lemos o texto teologicamente.

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  • SEMINRIO DE SANTO AGOSTINHO

    ANOTAES DE UM SEMINRIO DE LEITURA DE

    CONFISSES DE SANTO AGOSTINH O (1976)

    POR QUE FILOSOFIA NA LEITURA TEOLGICA

    A leitura de um texto teolgico: As Confisses de Santo Agostinho.

    Mas nem sempre a leitura de um texto teolgico uma leitura teolgica. Ela s se torna teolgica se lemos o texto teologicamente.

    Somente que questionvel se a teologia um ponto de vista; e, se um ponto de vista, se o como o so as cincias humanas, p. ex., sociologia, histria, psicologia, antropologia etc.

    Segundo a estruturao usual, operativa, da ao do saber organizado chamada teologia, a teologia uma cincia e uma cincia positiva. Cincia, enquanto empenho de busca do saber que se organiza logicamente como um sistema do saber verdadeiro, isto , certo. Positiva, enquanto essa busca j parte colocada na abertura de um horizonte prejacente, que lhe dita o mbito da possibilidade do princpio, meio e fim do seu saber.

    A abertura do horizonte prejacente se chama: pressuposio, isto , o positivo, dado de antemo, que tudo sustenta, o fundamento. , pois, a terra donde brota a rvore de uma cincia.

    O fundamento, o propsito da teologia a f.

    O texto de Santo Agostinho , pois, o fruto sazonado da florao do saber, cujo sabor, a sapincia, tem a sua raiz na f. A leitura teolgica do texto de Santo Agostinho se prope colher e acolher esse fruto saboroso da f, a partir e dentro de um recolhimento no saber, que vem do hmus da f.

    Mas, se assim, o que pretende a filosofia em participando do seminrio, cujo recolhimento fundamental a f? O que busca a filosofia na leitura da f?

    Nada. Pois a filosofia a afeio do abismo do Nada, onde toda e qualquer fundamentao, todo e qualquer propsito a questo do abismo do Nada.

    Em falando do princpio da razo suficiente, o mvel da filosofia que diz Nihil est sine ratione, pergunta Novalis (Friedrich Leopold von Hardenberg, nas 2.5.1772 fal. 25.3.1801) num fragmento (Minor II, p. 171) intitulado Wasmuth III, n. 381:

    No contm o supremo princpio o supremo paradoxo na destinao da sua tarefa? Ser uma posio, que jamais permite a paz, que sempre atrai e repele, que sempre de novo se torna incompreensvel, sejam quantas forem as vezes que o tenhamos entendido; que sem cessar a-corda a nossa atividade, sem jamais cans-la, sem jamais se tornar acomodada? Segundo um antigo mito, Deus para o esprito algo semelhante a esse princpio.

  • O fundamento da filosofia a afeio dessa posio ambgua sem fundo, dessa destinao de uma tarefa impossvel no toque do abismo do Nada.

    O fundamento da teologia a posio da f. Mas, em assim se posicionando, a teologia como cincia positiva corre sempre o risco de se fundamentar na f como na f de uma certeza do autoasseguramento da busca, confundindo o Dom da graa de uma conquista com o produto do empenho no esquecimento da sua fundamentao no Nada da f. Em vez de fluir na obedincia da f, na radical cordialidade da pobreza de si, a teologia pode cair facilmente no dogmatismo de uma posio como de um ponto de vista do homem, e assim decair em filosofemas mal pensados, opacos e ingnuos.

    A filosofia como a paixo do abismo do Nada, que sempre de novo incansavelmente quer questionar a fundamentao de toda e qualquer posio, est a servio da teologia como liquidao radical e rigorosa desses filosofemas, que na realidade no pertencem propriamente teologia, mas sim filosofia, esquecida do seu primeiro amor. A filosofia tem assim apenas uma funo corretiva em relao teologia, no uma funo corretiva da f, mas sim das filosofias mal posicionadas no empenho teolgico de uma busca encarnada, cada vez mais cordial da graa da f.

    Mas ento, o que da teologia? O que resta da teologia, se a purificamos dos filosofemas? Resta o discurso da f, a teologia!

    No entanto, no existe o discurso enquanto discurso: o discurso sempre o percurso de uma dimenso. Por isso, se eu purifico o discurso da f de filosofemas, no lhe elimino a possibilidade do discurso, pois cada dimenso tem o seu discurso e a sua autocompreenso do que a dimenso e seu discurso!

    Mas, uma vez livre dos filosofemas, o discurso da f jamais se constitui como um gnero chamado teologia. H cada vez este discurso da f, esta teologia singular. A haecceidade de cada teologia, porm, deve ser cada vez de novo, pela primeira vez, processada atravs da liquidao dos filosofemas.

    Num tal movimento, desaparece a pergunta usual pela diferena ou pela identidade da teologia e da filosofia, pois no existe o gnero teologia nem o gnero filosofia. A pergunta se transforma numa questo de encaminhamento historial de cada discurso da f, desta singular teologia, cada vez pela primeira vez, no processamento que liberta cada causa na sua identidade. Mas, tambm, nesse processamento que vem claridade o que afinal a filosofia, que deixa de ser uma disciplina do saber, para se desvelar como o prprio movimento desse processamento na sua vitalidade.

    Mas, ento, o que afinal a teologia, discurso da f? A resposta s possvel no processamento desta leitura do texto de Santo Agostinho. Pois a teologia no existe em si como uma ideia genrica e geral, mas sim na perfeio da concreo numa obra.

    Mas como entender melhor a liquidao dos filosofemas que ocorrem no discurso teolgico, no discurso da f?

  • No assim que existam na teologia filosofemas, os quais devem ser liquidados para se deixar a teologia limpa de poluies filosficas. Isto poderia ser feito se a teologia fosse um aglomerado de doutrinas, teorias e hipteses de diferentes disciplinas. Uma teologia no teologia, mas sim uma compilao confusa e superficial, vaidosa e v.

    O discurso da f, a teologia como a teologia das Confisses como um bloco grantico de coerncia, integrao, vitalidade e criatividade. um todo singular uni-verso, um tudo. O princpio da f que faz saltar o fundo e todo o corpo da obra, na permanncia gentica inesgotvel, e a prpria obra so o uno e o mesmo num contnuo e renovado movimento da dynamis da en-rgeia crente.

    Onde esto pois os filosofemas? Com facilidade somos tentados a dizer: Na representao do leitor.

    No entanto, tal afirmao implica todo um mundo de representaes das representaes: leitor como sujeito; autor como causa; texto como efeito; vivncias; representaes como ato psquico; teoria de imagens; Santo Agostinho como um autor do passado; a temporalidade; a histria como realidade; o livro como realidade; eu mesmo que leio como realidade; os filosofemas dentro da minha cabea; a teologia nasciva ali prejacente no texto como uma realidade etc. etc.

    Tudo so redes de representaes em constelaes de diferentes nveis de relacionamento.

    Quer isto significar que a obra da teologia de Santo Agostinho, livre de filosofemas, autntica na sua gnese como discurso teolgico, no passa de representao de um filosofema?

    Mas, ento, tudo, absolutamente tudo, no passa de filosofemas? De tal modo que o prprio filosofema no passa de filosofema? O que pois tudo isso, toda essa questo que em se perguntando o que , no sabe nem entende o que pergunta, para que e por que pergunta?

    No entanto, o af, a paixo que assim pergunta, sem por que, sem para que, atnita, num susto, no mais filosofema, mas sim o abrir-se da existncia questionante no toque por e para a afeio do sentido do ser. De repente percebemos que todos os filosofemas so como que gritos e clamores dessa existncia questionante na sua articulao. Os filosofemas se desvelam assim como o discurso da paixo da filosofia.

    Colocar a questo do abismo do Nada e dali liquidar os filosofemas no significa, portanto, eliminar os filosofemas em funo de uma posio teolgica que sobre e permanea como se fosse um pedao da realidade autntica, isenta das poluies e gangas dos filosofemas. Antes, significa reconduzir os filosofemas sua origem, donde vem o seu sentido como clamores de um empenho impossvel, no qual o querer de um saber de autofundamentao absoluta na certeza da posse da realidade se descobre suspenso no seu prprio mdium, no podendo ser a no ser o ser do seu poder e nada mais.

  • Esse sucumbir dos filosofemas na finitude da prpria in-finitude, longe de estancar a paixo da pergunta, acorda pelo contrrio sempre de novo o rigor e a acribia do questionamento por e para aquilo que ela representa transcender o limite do seu poder.

    O abismo do Nada, porm, no se abre na direo daquilo por que e para o qual se pergunta, na transcendncia, mas por assim dizer emerge aos poucos no fundo do bojo dessa pergunta incessante e jamais abandonada, como a noite escura que silencia invade todas as articulaes e todos os recantos do corpo de filosofemas, despertando no querer da filosofia uma nova disposio de boa vontade, a reverncia de um no-saber, cujo saber pode se afeioar sem por que e sem para que do gosto simples da lgica de Deus.

    Se assim acontecer filosofia, possamos talvez olhar para as flores do campo, nessa devoo do Pensamento e admitir que tanto as flores como As Confisses de Santo Agostinho, tanto os sapatos da camponesa de Van Gogh como I Fioretti de S. Francisco de Assis, tanto a Bblia como a Me-Coragem e seus filhos, de Brecht, tanto o sorriso da criana como a blasfmia do desesperado, tanto o frio da morte como o calor da ternura, cada vez pela primeira e ltima vez, unicamente todo universo, discurso da F, a teologia.

    Mas essa admisso jamais uma tese! Pois se operaria um filosofema, mas sim acontecimento que salta de um longo e paciente trabalho de questionamento radical de filosofemas.

    CONFESSIONES I

    Usualmente lemos As Confisses no nvel ntico.

    Chamamos de nvel ntico a orientao da existncia, na qual a existncia se interpreta a si e tudo quanto no ela a partir do ente j constitudo como concretizaes de um determinado sentido de ser que lhe serve de horizonte e fundamento de seu existir.

    Hoje, costumamos denominar tal orientao ntica de intencionalidade objetiva, porque o ente concretizado se nos apresenta como objeto.

    Costumamos perguntar, a quem pertence essa intencionalidade objetiva. E respondemos dizendo: ao sujeito. No entanto, o sujeito assim concebido no passa de um objeto. Isto significa que tanto os objetos que no so sujeito como os sujeitos so produtos, so entes da intencionalidade objetiva.

    Intencionalidade objetiva no portanto nem objeto nem sujeito. antes o que determina e possibilita que tanto os objetos no-sujeito como objetos-sujeito sejam entes de um determinado sentido do ser que constitui a existncia como intencionalidade objetiva.

    A existncia como intencionalidade objetiva chama-se tambm subjetividade. A subjetividade determina hoje o ser do homem.

  • No estamos ainda no ponto para poder dizer em que consiste o ser da subjetividade. No entanto, com muito cuidado e hesitao podemos adiantar que o ser da subjetividade se nos apresenta hoje como a egoidade.

    O que indica o termo egoidade? Indica um modo de ser no qual tudo quanto , para poder ser, deve estar relacionado com o eu, como potencial do projeto de manuteno e aumento do poder e asseguramento do eu. O eu aqui no deve ser entendido como o indivduo nem como grupo de indivduos, nem como algo no indivduo. Pois tanto o indivduo como o grupo de indivduos, chamado sociedade, e tudo que esse indivduo faz ou no faz, so, por assim dizer articulaes da afirmao e do autoasseguramento da egoidade, so portanto projetos da egoidade. O que, pois, chamamos de objeto, inclusive o objeto chamado sujeito, articulao do projeto de um vigor que hoje determina o que deve e pode ser, o vigor que o sentido do ser dominante na atuao da atualidade.

    Quando hoje falamos do nvel ntico de interpretao, o ntico em concreto coincide com esse determinado sentido do ser da egoidade. Por isso, o ente simplesmente objeto da egoidade. Nessa objetivao, o que se anuncia como o subiectum, isto , como o sentido fundamental do ser, suposto, subjacente o vigor da egoidade.

    Por isso, quando lemos em As Confisses os termos substantivos como, p. ex., homem, Deus, eu, tu, ou os termos verbais como louvar, invocar, saber, compreender, crer, aceitar, dar, receber, pregar etc. imediatamente os colocamos na perspectiva da intencionalidade objetiva e s os podemos compreender como algo, cujo ser o subiectum do eu ou como ao, expresso, concretizao, atualizao ou realizao do eu. Assim, Deus maxi-eu, o homem um mini-eu, o criador um super-eu, cuja ao super-produo, a criatura um infra-eu, cuja ao tambm produo, participada; louvar, invocar, saber, compreender, crer, excitar, dar, receber, pregar etc. so atuaes desses eus. Numa tal perspectiva, As Confisses de Santo Agostinho so a expresso das aes de um sujeito-eu, chamado Agostinho. Aes essas que se concretizam como vivncias, anelos, desejos, vontades e inteleces desse mesmo sujeito-eu num relacionamento chamado dilogo, com aes de um outro sujeito-eu, denominado Deus.

    A intencionalidade objetiva do modo de ser da egoidade domina e controla tudo em seus mnimos detalhes. Essa denominao vem fala no uso do verbo ser, que impregna toda a sua linguagem. O tempo e a pessoa, que caracterizam o uso do verbo ser do ser da egoidade, so o presente atuante e a terceira pessoa do singular: .

    Certamente, a egoidade fala frequentes vezes, sim com demasiada insistncia do eu e tu, fala enfaticamente sou e s, mas tanto eu como tu, tanto sou como s so apenas ressonncias e modalidades do : tu algo, chamado sujeito-eu; eu algo chamado sujeito-eu; sou a expresso do algo chamado sujeito-eu; s a indicao do algo chamado sujeito-tu, que uma modalidade do sujeito-eu. O o verbo da egoidade! Com outras palavras o sou e o s somente vm fala pela mediao do da egoidade.

  • Que o verbo ser seja dominantemente usado como da egoidade pressupe uma transformao fundamental na compreenso do ser em suas manifestaes entitativas na sua totalidade. Isto condiciona tambm a nossa compreenso de coisa como objeto. Para ns, coisa e objeto so sinnimos.

    Para Agostinho, no entanto, o ente como ntico no o objeto, mas sim coisa compreendida como substncia. A referncia do objeto sempre o sujeito eu da egoidade. A coisa-substncia, como Agostinho a entende, parece no se referir ao sujeito eu da egoidade, antes pelo contrrio, o prprio eu compreendido como coisa-substncia. O sentido do ser que determina o ente como objeto diferente do sentido de ser que determina o ente como coisa-substncia.

    Se chamamos de ontolgica a orientao da abertura da mira que em cada empostao ntica ausculta o sentido determinante do ser que comanda o mbito e a possibilidade de o ente ser, podemos dizer: a abertura ontolgica da orientao ntica da egoidade, cujo ente objeto, diferente da abertura ontolgica da orientao ntica de As Confisses, cujo ente coisa-substncia.

    No nvel ntico As Confisses colocam Deus, homem, criador, criatura, louvar, invocar, saber etc. como entes ou propriedades ou acidentes do ente. No entanto, esse ente jamais objeto da egoidade, mas uma substncia, cujo ser tem seu modo de ser todo especial. Com outras palavras, o ntico de Agostinho diferente do ntico da nossa modernidade, porque o ontolgico que comanda o ntico agostiniano diferente do ontolgico que comanda o nosso ntico da egoidade.

    uma das tarefas fundamentais da leitura de As Confisses fazer aparecer essa diferena ontolgica entre o ente-objeto e o ente-substncia.

    Entrementes, a dificuldade dessa diferenciao agravada pelo fato de a abertura ontolgica no constituir algo como um ente de fundo de ente ntico, quer seja este ente objeto ou substncia. Representar o ontolgico como uma modalidade do ente produto do ontolgico da egoidade! Alm disso, o ntico-ontolgico chamado objeto da egoidade e o ntico-ontolgico da substncia no so duas entidades uma ao lado da outra no percurso linear da histria. Pois uma tal representao do ntico-ontolgico e da histria , por sua vez, tambm, produto do ontolgico da egoidade.

    Isso significa que a diferena ontolgica entre o ntico-objeto e o ntico-substncia, a diferena ontolgica entre o nosso ocular e a realidade de As Confisses o produto de nosso ontolgico da egoidade, do nosso ocular? Sim. Isso significa, portanto, que sempre de novo encontramos s a ns mesmos, e nada mais, de tal sorte que jamais conseguiremos acolher As Confisses naquilo que elas so e dizem?

    Admitir sem mais nem menos essa impossibilidade de encontrar a no ser a ns mesmos na leitura de As Confisses precipitao da empostao ontolgica da egoidade. Pois quem nos d a evidncia de que ns somos s ns mesmos e nada mais? Quem nos d a competncia de posicionarmos sem questionamento a afirmao de que para alm ou aqum de ns mesmos

  • nada e nada mais? Mas, se h algo diferente de ns, se h um aqum ou no alm, se h um anterior a ns, como atingi-lo, se tudo quanto buscamos j objeto da nossa possibilidade? Essa questo se agrava ainda mais, se considerarmos que a nossa prpria possibilidade ntica, se possibilidade, deve estar sendo possibilitada pela abertura ontolgica que de alguma forma anterior nossa possibilidade ntica de ser. Isso significa que nem sequer podemos captar o ontolgico que possibilita a nossa empostao ntica, nem sequer conseguimos captar o fundo de ns mesmos?

    Vamos agravar ainda mais essa questo. Perguntamos: o que isto, a abertura do sentido do ser, o ontolgico que possibilita o posicionamento de um determinado sentido do ser como do objeto da egoidade? Essa pergunta, que busca da possibilidade da nossa possibilidade, atinge essa prpria pergunta, pois essa pergunta j opera na compreenso do ser do ente como do objeto da egoidade. Buscamos, pois, o que possibilita essa nossa busca como anterior a ela. Ora, essa busca uma busca ontolgica. Em o sendo, ela se caracteriza, a partir do seu fundamento, como posicionamento do sentido do ser como do objeto. Tudo quanto , portanto, objeto; e tudo quanto e pode ser objeto, e somente enquanto tal, ser.

    Como entender isto que constitui o primeiro toque da abertura ontolgica, cujo ntico objeto; como, pois, atingir a raiz do deslanche do posicionamento ntico do ente como do objeto, se tudo quanto , objeto, e tudo quanto e pode ser, o somente enquanto objeto da egoidade, a prpria egoidade inclusive?

    Isto tudo nos faz concluir que o primeiro toque da abertura ontolgica da egoidade, a possibilidade da possibilidade do ser da existncia, chamado egoidade, e de tudo quanto se refere a ele, no mais pode ser, no em absoluto algo anterior, posterior dentro ou fora, alm ou aqum, diferente da existncia do ser da egoidade. pois nada?

    Mas, em assim perguntando ou mesmo apenas assim suspeitando, j colocamos o nada como um ente-objeto do ser da egoidade!

    Portanto, toda e qualquer tentativa de no somente captar, mas j de buscar a anterioridade da possibilidade da nossa nica e total possibilidade se esvai no nada, que, por sua vez, se trai como a posio absolutamente abstrata e vazia do sentido do ser que domina e impera a nossa busca.

    A nossa tentativa , pois, v? v, enquanto no nos recolhermos com rigor e cuidado naquilo que se anuncia nessa v tentativa.

    Mas o que isto que se anuncia numa tal tentativa? A impossibilidade de o ser da nossa busca no ser a no ser o ser do seu ser.

    Quer ento dizer que a busca no tem sada, transcendncia? No!

    Mas isto no uma total parada da possibilidade de pensar? Sim, se entendermos o pensar como o posicionamento do ente como do objeto da egoidade.

  • Mas o que isto que ainda se move nessa parada? O que h de mais do que essa pura parada?

    O prprio peso nitidamente grave da prpria parada. Mas esse peso e essa parada no so nenhum ente, no so a inrcia da ao de um ente-objeto, de algo, mas apenas a ntida presena da pura facticidade do ser da busca na totalidade do ser da egoidade.

    Mas o que esse ser da busca como a pura facticidade? A pura abertura da facticidade da ek-sistncia.

    necessrio, na demora tenaz e paciente, no rigor e na cura diligente, recolher-se na ausculta dessa facticidade da ek-sistncia, para que ela deixe de se entificar como um objeto vazio, algo como um espao escancarado de nada e para que ela se desvele no seu vigor como o tinir do silncio de uma pura espera.

    essa pureza da espera que As Confisses evocam, quando pedem: Da mihi, Domine, scire et intelligere.

    A tentao nesse nvel da radicalidade de pensar de deixar-se cair na entificao abstrata de objeto da egoidade e se contentar em dizendo que aqui nada mais h para pensar. Com isso, em vez de se erguer pela raiz todo o peso do ser da egoidade na sua totalidade, no tinir do silncio da pura espera, deixamo-nos decair para dentro do mbito da dominao do ser da egoidade e representar a pura espera como um algo-objeto vazio, vago, parado e escancarado.

    necessrio, pois, trabalhar incessante e intensamente na busca para se manter no toque do recolhimento da vibrao dessa espera que denominamos a pura facticidade da ek-sistncia.

    Como , porm, esse trabalho? algo como manter-se na suspenso de um pairar. A guia que paira sobre o abismo aparentemente est parada pondo de espao infinito. No entanto, em cada in-stante desse pairar, est retomando sempre de novo todos os estdios do percurso que constituem o seu vo. Assim tambm a nossa busca. Para que seja atingida pelo toque da compreenso do que a pura abertura, deve percorrer sempre de novo a questo do ser, que constitui o posicionamento ntico do ente como do objeto, mantendo sob a mira no o ente-objeto, mas o aumento do aparecimento do peso da impossibilidade de o ser da egoidade no poder ser a no ser o ser do seu ser.

    Na medida em que nos mantivermos recolhidos ou melhor na medida em que formos mantidos recolhidos e colhidos no movimento da busca, nesse ponto crucial do limite da nossa possibilidade, emergir, no prprio seio da nossa possibilidade impossvel, a quietude viva e atenta, a disposio do ser, que a dimenso aberta de uma radical outra possibilidade, onde nos vem de encontro a diferena ontolgica constitutiva da posio ntica da coisa como da substncia. De repente, comearemos talvez a suspeitar em termos como Deus, homem, eu, tu, louvar, invocar, saber, excitar, pregar, crer etc. uma

  • compreenso do ser mais ricamente diferenciada, mais movimentada, mais profunda da estruturao desses termos diferenciados luz clara da pura espera na escurido do no saber, uma busca apaixonada e apaixonante do ontolgico que constitui o ser da substncia. E essa busca do ontolgico constitutivo do ser da posio ntica, que faz aparecer o ente como substncia, se nos revelar como o mesmo movimento da nossa busca do ontolgico constitutivo do ser da egoidade, mas agora numa nova dimenso, na identidade da diferena e na diferena da identidade. E, de novo e sempre, essa nova e mesma busca nos conduzir ao tinir do silncio da impossibilidade como a disposio da pura espera, na espera sempre repetida, cada vez abissal e inesgotvel da uma busca, cativa e livre para e por a questo radical do ser: Quem s tu, quem sou eu?

    CONFESSIONES II

    O movimento de estruturao da questo radical do ser Quem s tu, quem sou eu? na nossa leitura percorre sempre de novo simultnea e dialeticamente duas dimenses: a busca do ser do ontolgico que posiciona o ente como objeto da egoidade e a busca do ser do ontolgico que coloca o ente como substncia, isto , a questo do ser da subjetividade e a questo do ser da substancialidade.

    O duplo percurso simultneo nessas duas dimenses est sempre a servio do aumento da pura espera da ek-sistncia, que nos dispe ao recolhimento e acolhida do sentido de ser radical, inesgotvel, sempre novo, cada vez pela primeira vez e sempre mais abscndito no seu retraimento, do Tu e do Eu.

    Mas, na medida em que aumenta a afeio do crescimento do sentido do ser do Tu e do Eu, clareia-se o sentido do ser que constitui a determinao ntica do objeto e da substncia, o ser da subjetividade e o ser da substancialidade.

    O movimento dessa estruturao aparece na estruturao do prprio texto de As Confisses, livro I, pargrafo 1, que, por assim dizer, nos d logo de incio como que uma Ouverture da estruturao do movimento que se repete em todos os outros trechos.

    Esquematizemos essa estruturao: Tu s: Magnus es, Domine numerus. Ele : Et laudare tu vult homo creaturae tuae.

    a) Tu es: Tu excitas requiescat in te.

    b) Eu : Da mihi, Domine, scire et intelligere

    Ele : ... utrum sit prius laudabunt eum. Eu sou: Quaeram te praedicatoris tui.

    O texto em questo comea, falando de mim: Quaeram te...

    Entre esses extremos, entre a fala a ti e a falta de mim, o texto fala sobre ele, sobre o homem: Et laudare te vult homo. Essa fala sobre ele, no entanto, no

  • seu processar se movimenta de novo num jogo entre a fala a ti Tu excitas... e a fala de mim Da mihi, Domine.

    O que insinua essa estrutura? A fala a ti e a fala de mim no uma fala sobre o tu e sobre o eu. Se o fosse, seria fala sobre ele. A fala a ti e a fala de mim uma fala por e para a afeio de e a partir de. A fala a ti e a fala de mim esto intimamente ligadas, de tal sorte que um e o mesmo no seu ser. No entanto, o ser da sua estruturao e seu relacionamento no aparecer na fala sobre ele, isto , na fala sobre o tu e sobre o eu.

    Mas a fala sobre ele a fala que domina o nosso ser, por conseguinte o nosso compreender. A fala a ti e a fala de mim sofre uma entificao objetivante, de sorte que, se aparece, s aparece, s se mostra sob a mediao da fala sobre ele.

    No entanto, a fala sobre ele, enquanto fala sobre tu e sobre eu, a busca impossvel do sentido do ser que toca e determina o posicionamento objetivante dessa busca. , pois, no fundo, a busca de ti na busca de mim e busca de mim na busca de ti. Essa estrutura do texto introdutrio indica exemplarmente o movimento que fazem todos os textos de As Confisses, ao aparentemente falarem sobre tu, sobre eu e sobre ele: Deus, Homem e suas aes. Eles evocam, na fala sobre ele, o movimento da busca da radical-outra possibilidade do sentido do ser, que constitui o ser do homem como evocao, invocao e vocao de Ti, a partir do qual recebe o ser da sua egoidade.

    Temos assim o seguinte esquema do movimento dos textos de As Confisses:

    (Entra ilustrao)

    Tu

    Tu

    Ele

    Eu

    Eu

    Desse movimento da fala sobre ele a servio da fala de ti e da fala de mim, a fala sobre ele, que a fala sobre ele, que a fala do ser da subjetividade objetividade, vem a si como pura espera da ek-sistncia. E, a partir dessa espera, a fala sobre ele, objetividade, se transforma na fala da substncia, emerge aos poucos em concreto da fala a ti e da fala a mim e, nessa concreo, emerge o ser do retraimento do Mistrio de Ti.

    Se de fato acontece de alguma maneira tal emergncia do sentido radical do ser, isso s podemos dizer, em caminhando em nossa leitura sob a mira atenta da pre-tenso do movimento, insinuado no texto introdutrio de As Confisses.

    A seguir vamos comentar os textos, sem uma sistematizao rigorosa na exposio de seus passos. Os comentrios s servem para iniciar, sempre de

  • novo, o movimento, no qual com o tempo possamos talvez ver em concreto a coisa ela mesma do movimento, insinuado na estrutura do texto inicial de As Confisses.

    CONFESSIONES III

    Magnus es, domine non est numerus.

    Na gramtica do uso das palavras que formam essa sentena a fala no uma pro-posio.

    A proposio diz que um algo chamado objeto algum ente-objeto no ou do objeto:

    Dominus est magnus. Virtus tua est magna. Numerus non est sapientiae tuae.

    A fala Magnus es, domine, no entanto, no uma proposio. Pois ela uma exclamao.

    O uso do sentido do ser que determina a exclamao no coincide com o uso do sentido do ser que determina a proposio. Que no haja essa coincidncia, percebemos pelo fato de a exclamao usar a proposio para trazer fala a admirao da exclamao.

    O que determina o sentido dos termos o seu uso. E o que determina o uso o sentido do ser que constitui a possibilidade da existncia.

    Por isso, os termos como magnus, es, dominus, laudabilis, valde etc., na exclamao, tm um sentido diferente do da proposio.

    No entanto, o que de imediato ouvimos, ao lermos o texto, a proposio. E o sentido dos termos ns o fixamos sob o domnio do uso do ser da proposio: .

    O que dizemos, quando ouvimos na exclamao magnus es, domine a proposio dominus est magnus? Dizemos que dominus magnus. O que dizemos ao propormos que dominus magnus? Dizemos que algo ; que esse algo que , algo que tem a atribuio dominus; que essa atribuio chamada dominus algo no algo ou algo do algo, que esse algo que , e tem a atribuio de um algo no ou do algo, chamado qualidade e dominus, tem outra atribuio de algo no ou do algo chamado magnus etc.

    Mas o que dizemos em tudo isso, quando dizemos que ? Dizemos que tudo isso se d de fato; que tudo isso se d de fato, certo, isto , que o nosso saber sobre todos esses fatos tem a segurana da certeza. E fundamentando-nos na segurana dessa certeza que louvamos ao Senhor? Dominus est magnus, propter quod laudabilis valde...

    Que funo tem, pois, o verbo da proposio? Tem a funo de fixar o ser como algo, merc da busca da segurana da certeza. Mas donde tal uso do verbo ser busca a segurana da certeza do seu uso? Donde sabemos que

  • dominus ? Que dominus ente no sentido de algo? Que magnus algo no algo ou algo do algo? Donde sabemos que laudabilis valde tudo quanto magnus? O sentido do ser que determina o que a magnitude do magnus, a dominncia do dominus, a laudabilidade do laudabilis, a grandeza do valde, donde vem? quem o d?

    A fixao na segurana da certeza do , ela que d o sentido de todos esses termos, dela que vem o contedo desses termos? Ou no assim que a fixao na segurana da certeza j pressupe como dado o sentido vivo de todos esses termos? Se j dado, como entender essa doao, esse dar-se e consequentemente a recepo, o receber o acolher de tal dado?

    Poder-se-ia talvez cortar pela raiz todos esses questionamentos abstratos, dizendo que aqui no se trata de uma proposio, mas sim de uma exclamao. A exclamao sem por qu; exclama por exclamar; no cuida se perguntam por ela; apenas exclama, e nada mais.

    Entretanto... no facilitemos! Ao dizermos tudo isso to existencialmente, j no sabemos de antemo o que a exclamao? No estamos compreendendo esse exclamar por exclamar como um ato irracional do sujeito-eu homem? No estamos dizendo ou j no dissemos que o homem algo; que exclamao algo chamado ato, um fazer do algo-sujeito chamado homem? Com isso, aprisionamos a exclamao na perspectiva da proposio que j diz de antemo o que e deve ser a exclamao.

    No entanto, ouvimos a exclamao: Magnus es, Domine! Et laudabilis valde! Magna! virtus tua! Et sapientiae tuae non est numerus!

    O que ouvimos!? Apenas o exclamar por exclamar, o nada irracional de uma vaga representao de algo que um algo ou um algo chamado homem, a sua proferio?

    No, ouvimos muito mais; ou melhor, ouvimos um mais, diferente. Ouvimos um mais, diferente, antes de toda e qualquer objetivao da exclamao como algo. Ouvimos o que possibilita a exclamao ser exclamao. E, o ouvimos, no como algo abstrato, confuso, mas sim como a plenitude da presena, que ressoa em si para dentro de si, abrindo todo um mundo de evocaes. Esse mundo de evocaes no um algo, mas sim a emergncia, a florao de coisas-substncias como de concrees de essncias, que por sua vez no so algos, mas como que sonncias de uma longnqua vastido livre da transparncia ntida do ser na sua diafania.

    Magnus es! Domine! Et laudabilis valde! Magna! virtus tua! Et sapientiae tuae Non est numerus!

    Cada palavra entoa o mesmo em repeties: a ex-clamao, o clamor, o

  • clangor do eco longnquo de uma vastido aberta do ser: da Grandeza. Aqui o relacionamento de uma palavra com a outra algo como mtua-induo de repercusso, de percusso em percusso. Aqui entoar e ouvir so o mesmo: a dis-posio de uma correspondncia ao toque e emergncia do clangor da grandeza que nasce, cresce, aumenta e toma corpo como a interioridade cada vez mais profunda da audio.

    Essa disposio de correspondncia ao e no toque e na emergncia do clangor da Grandeza na medida em que cresce, aumenta e toma corpo como o tinir do ser da audio na audio do ser sou louvor.

    O ser do eu, nesse sou louvor, no o do sujeito-eu que se dirige a um outro eu fora dele chamado tu, por meio do algo chamado ao do louvor. No mais o eu que sou e tenho o louvor ou fao o louvor. o louvor que me tem e me faz ser, de tal modo que sou louvor: a dis-posio da ek-sistncia.

    Com outras palavras, eu sou a intensidade tnica do ser da disposio no seu abismar-se por e para a nitidez e para a pureza do clangor da Grandeza, em cuja nitidez a abertura da pura facticidade da ek-sistncia se abre sempre mais para a interioridade plena e profunda dela mesma. Esse aprofundamento se abisma sempre novo e de novo na afeio do retraimento do sentido do ser da Grandeza, que no seu retrair-se sempre mais abissal provoca o ser da ek-sistncia na evocao do que o ser do eu sou como o tinir da devoo total e radical da abertura por e para a absoluta-outra possibilidade, a que desajeitadamente denominados: Tu, Domine! Essa concreo absoluta da exclamao o louvor: Magnus es, Domine, et laudabilis valde!

    CONFESSIONES IV

    Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae...

    Podemos ler este texto como uma proposio que diz: Homo vult laudare te. Homo est aliqua portio creaturae tuae.

    No entanto, o texto fala diferente: Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae...

    O que ouvimos de diferente? O que ouvimos de mais nessa fala que seja diferente daquela pro-posicional? Ouvimos: a exclamao! A exclamao preservando as proposies Homo vult laudare te e Homo est aliqua portio creaturae tuae, as toca, as informa, as transforma, fazendo-as vibrar como toadas do louvor: do ser da exclamao: Et laudare Te! Vult! Homo! Aliqua portio creaturae tuae!

    Ouamos sempre novos e de novo o clangor da exclamao que vem do toque do louvor, e deixemos que se ponham as questes do ser que nos incomodam e nos dificultam a compreenso do ser que nos domina como o do ser da egoidade ou da subjetividade.

    Et laudare te vult Homo no diz Homo vult laudare te. A exclamao diz: Et laudare te vult: Homo. Ou diferenciando melhor esse dizer: Et: laudare: te: vult: Homo.

  • Dois pontos (:) aqui correspondem ao verbo , est, mas no indicam mais a entificao objetivante e objetiva do ser na fixao do algo para poder assegur-lo a servio do nosso saber. Antes acena para a liberao da questo do ser que surge como co-locao de uma pergunta inquietante pelo sentido radical do ser, no qual a identidade so as diferenas do mesmo na identidade das diferenas do clangor do ser da exclamao, ao toque do louvor.

    Et: laudare te: vult: Homo! Homo, o que ? Um algo, um sujeito-eu, do qual parte o vult da ao laudare te?

    Mas quem o sujeito dessa pergunta? Dessa pergunta que j est determinada, no mbito e na possibilidade das suas respostas, pelo sentido do ser usado na formulao Homo, o que ? sujeito, o Homo? Mas Homo aqui objeto, produto da pergunta do sujeito. E o sujeito tambm objeto, enquanto nele j se aninhou a determinao do sentido de ser como de algo, produto da entificao objetivante e objetiva da subjetividade...

    O que , quem esse enigmtico ser sub-jacente, anterior a toda e qualquer posio do Homo?

    Resposta do texto: (Et laudare te) vult: Homo!

    Vult: Homo?! Vult Homo?! Isto significa que vult sujeito do Homo? Que o ser subjacente determinao do que o Homo?

    O homem , recebe e tem o seu ser s enquanto e na medida em que vult?

    O homem no simplesmente! somente na medida em que se perfaz na responsabilidade de ser, na cura e na diligncia da questo do ser, no querer do seu ser?!

    Isto quer dizer: no um dado pacfico, banal e bvio que o homem seja, no um fato natural que o homem seja isto ou aquilo, que o homem aja ou no aja, que o homem sinta ou no sinta, que o homem pense ou no pense, que esteja acordado ou dormindo, portanto, que o homem queira ou no queira: vult: Homo!

    Vult: Homo!? Que o homem queria estonteante, admirvel, misterioso, pois a estruturao do ser do homem vult!

    Essa admirao pelo Homo vult: vult Homo! Na sua exclamao cresce e se transforma num clamor atnito de exclamao absoluta quando se ouve que laudare te: vult!

    De repente, surge nitidamente qual um toque jovial do clangor dessa atnita exclamao a partcula conjuntiva et: Et!... laudare te vult, Homo!

    Assim, o insignificante Et se nos desvela como a passagem entre o clangor da exclamao do louvor do texto anterior e a toada da exclamao do novo texto em questo. Mas a pesagem aqui no mais uma linha divisria de um abstrato trao de unio, mas sim a en-toao da re-petio do mesmo na novidade concreta e diferente de uma outra variao. Mas, em introduzindo a

  • repetio do novo, o Et entoa agora tanto o texto anterior como o posterior para dentro de um clangor cada vez mais claro no seu abscndito retraimento de um abismo, que acena e atrai, clama sempre mais cada novo texto para a evocao de uma ausculta cada vez mais atenta e rigorosa, a partir daquilo que se anuncia como o toque do Mistrio do Tu: Et!... laudare te: vult!

    Laudare Te: vult: Homo! Mas o que h de to estranho, estonteate no querer do homem? Do querer do homem louvar-te?

    Aqui comea a se insinuar a questo essencial de As Confisses, que atravessa como questo, como o fio condutor da busca, todos os captulos do livro.

    estranho, estonteante que o homem seja. Pois o ser do homem querer. Querer que a questo do ser, a busca daquilo que no se , para e por ser. Essa busca somente e enquanto, na medida em que se quer. O que , pois, querer? a questo, isto , o dever ser, o dever poder ser o que no se , para e por ser. Querer , pois, a busca do ser do querer, que no se . Mas esse no ser no est ali como algo dado, a que se pode buscar para ser, mas deve ser buscado, isto , deve ser querido para e por ser. Donde vem o ser do querer que no se simplesmente, mas que de tal modo que o seu prprio no ser deve ser querido, isto , buscado como a afeio, como o toque do deslanche do ser dessa prpria busca?

    Que a essncia do homem seja querer desta maneira, que seja de tal modo que ele nem sequer pode ser simplesmente o seu prprio no poder ser a no ser assim, a ponto de dever ser o seu no ser, esse ser no natural do homem, o seu ser simplesmente?

    O vult: homo! quer, pois, significar que o homem deve ser o que j ?

    Esse j , o ntimo mais ntimo da interioridade do querer que constitui o ser do homem, a possibilidade do louvar-te, o Tu do ser do louvor, o retrair-se sempre mais ab-ismo da evocao da radical outra possibilidade, que a identidade profunda, a dia-fanncia, isto , a diferena da interioridade do ser do homem: Tu.

    Como, porm, entender esse j que deve ser? Como ser simplesmente sem o ser, sem poder s-lo, por no poder ser a no ser querendo dever poder ser o seu prprio ser?

    Com outras palavras, como que o homem, j que a sua essncia vult, pode se libertar para o ser da sua prpria essncia, sendo simplesmente aquilo que ele j sempre, antes de o ser, o louvor?

    Como pode, pois, o homem laudare-te?: Et laudare te vult? Homo!?!

    Esta, porm, a sorte do homem, a sua poro, o seu quinho, o de ser assim no para-doxo de querer, que quer o ser do seu querer, para e por ser, para ser simplesmente, por no poder ser a no ser devendo querer o ser e no ser do seu prprio ser que j ! ...: Et laudare-te vult, homo, aliqua portio creaturae tuae!

  • Homo, aliqua portio creaturae tuae.

    Usualmente dizemos tambm ns que o homem uma portio creaturae. E entendemos portio creaturae como uma parte da creaturae. O homem um ente entre outros entes, criados por Deus Criador. O homem , porm, dizemos ns, dentre as criaturas aquela criatura especial, produzida imagem e semelhana de Deus, desse Deus onipotente, onisciente, bom, infinito, Criador do universo. Ele criou tudo do nada, o produziu como causa produz o seu efeito.

    Se assim entendermos o aliqua portio creaturae tuae, o texto nada diz de estranho, embora seja muito estranho que no achemos estranho o modo de ser do Criador e da criatura de tal interpretao.

    No texto, aliqua portio creaturae tuae um aposto. Aposto que diz o mesmo que o anterior: Et laudare te vult Homo.

    Por isso, aliqua portio creaturae tuae deve ser interpretado tuae se a ouvirmos na toada da exclamao anterior?

    Ela nos diz que o sentido do que criatura e do que aliqua portio deve ser compreendido a partir e dentro da questo do ser que se movimenta como a busca do ser da exclamao do louvor: Et laudare te vult homo!

    O que , pois, a criatura luz do que nos diz o texto anterior Et laudare te vult: homo?

    a criao. Mas criao, no como o ato de produo de um sujeito super-causa que traz ao ser um efeito chamado o conjunto de entes objetos chamados criaturas, dos quais o homem um ente objeto, mas criao como o con-creto do movimento de desvelamento do ser do Tu, que na estruturao da questo do ser do homem vem fala, como abrir-se de todo um mundo de substncias. Mundo de substncias, que no desvelamento e no recolhimento da questo do ser do homem, como do laudare te vult homo, se constituem como repeties da exclamao de louvor que perfaz a essncia do homem.

    Aqui a palavra criatura deve ser ouvida no sentido que insinua a sua terminao -tura. Na estruturao do ser, essa terminao no indica um ente da perspectiva ntica, mas sim a prpria abertura ontolgica das concrees nticas na sua totalidade. Indica, pois, o dar-se da possibilidade, a partir e dentro da qual se do as concrees nticas.

    Criatura significa, portanto, a possibilidade de todos serem entes criados na sua totalidade, isto , obras substanciais da substncia, isto , da sub-estncia fundamental da criatividade. Criatividade, porm, no se deve entender aqui como produtividade, portanto, como causalidade da efetivao, mas sim como o qu da afeio do ser no vigor do seu retraimento (sub-estncia hipokeimenon), que, na provocao e na evocao da radical outra possibilidade, chama todas as coisas ao ser. Ser ontolgico, ser o lugar do toque da afeio do ser, ser o tinir audiente da pura espera da ek-sistncia como o clangor da exclamao do louvor, ser pois essencialmente criatura, a

  • poro, o quinho, a parte devida, aquilo que lhe cabe propriamente, a sorte do homem: aliqua portio creaturae tuae!

    A pertinncia do homem ao ser-criatura pro-porciona como o registro central do desvelamento do mundo dos entes-criaturas na sua totalidade, tornando-o responsvel pelo desvelamento o velamento do sentido do ser, tornando-o responsvel pela verdade do ser do mundo: homo, portio creaturae.

    Agora, a palavra aliqua nos aparece no mais como uma indicao de um certo este ou aquele ente entre outros entes certos do mundo dos objetos, mas sim como aceno de uma presena, que se torna indefinvel, como que vagamente espalhada na totalidade dos entes, se a lermos a partir da fixao ntica do ser dos objetos. A indeterminao da palavra aliqua, porm, aqui no indeterminao, antes pelo contrrio a determinao do ontolgico, que fala da abertura da possibilidade dos entes-criatura na sua totalidade; fala portanto daquele lugar, daquele certo lugar, daquele qu diferente (aliquis, aliquid um outro quem, ou outro qu) no modo de ser, que constitui a possibilidade de todos os outros entes na sua totalidade.

    CONFESSIONES V

    Mas, se ao homem, na sua proporo essencial, lhe cabe ser poro do vigor criativo da radical-outra possibilidade possibilidade essa que, como o Tu do louvor, chama todos os entes na sua totalidade no ser, possibilidade do ente criativo, possibilidade de o ente ser criatura como a exclamao do louvor , ento no bvio que o homem queira louvar-te naturalmente? O que h de estranho em tudo isso?! Antes, pelo contrrio, no seria muito mais estranho que, tal ente, cujo ser ntico consiste em ser ontolgico do querer louvar-te, no queira louvar-te?

    E, no entanto, o texto parece se admirar atnito acerca de uma realidade que , embora impossvel: Et tamen laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae!

    Por que o texto no diz logicamente: Ergo, laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae?

    Intrigados com essa inconsequncia, leiamos atentos todo o trecho do texto:

    Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae, et homo circunferens mortalitatem suam, circunferens testimonium peccati sui et testimonium, quia superbis resistis. Et tamen te vult homo, aliqua portio creaturae tuae.

    A resposta nossa pergunta anterior parece ser evidente: o texto no pode dizer ergo, mas deve dizer et tamen, laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae, porque esse homo, alm de ser aquele aliqua portio creaturae, tambm, isto , et, circunferens mortalitatem suam, circunferens testimonium peccati sui et testimonium, quia superbis resistis.

    Logo, o aposto aliqua portio creaturae tuae no deve ser entendido como a sorte positiva da participao no vigor da criatividade, mas sim como a sorte negativa de se ser apenas uma parcelazinha insignificante de todo imenso e

  • vasto chamado criao, de se ser apenas um ente entre outros entes da criao.

    Certamente, essa concluso vem de uma interpretao vlida e mais em uso, segundo o uso das nossas representaes do ser.

    Na perspectiva de tal interpretao, a partcula conjuntiva et do et homo circunferens mortalitatem suam etc. no liga propriamente o homo: circunferens mortalitatem suam, mas sim apenas o aliqua portio creaturae com o circunferens mortalitatem suam, interpretando, j de antemo, tanto o primeiro como o segundo apenas como adjetivos, como qualidades do sujeito-homo.

    Afeioados pelo movimento do pensar essencial que perpassa todos os outros captulos de As Confisses como a questo do ser do homem, tentemos colocar a abordagem da nossa interpretao de modo diferente.

    A justia dessa abordagem no pode ser provada pelas letras do texto. Ela somente pode ser ouvida, na medida em que, na leitura, o nosso ouvido se afeioa sempre mais voz da exclamao do pensamento agostiniano.

    O critrio da maior ou menor justia da interpretao se ela consegue ligar as variaes do texto com maior ou menor diferenciao, concreo, coerncia e profundidade, acerca de uma aproximao cada vez oculta, penetrante interioridade do uno e mesmo pensamento, que se oculta sempre de novo nossa tentativa de interpretao, desvelando-se nesse ocultar-se como a presena de um longnquo envio, que nos atinge, em crescendo, nos agravando o aumento coerente do corpo da nossa busca, em questo.

    Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae, et homo circunferens mortalitatem suam...

    A interpretao usual l: Et laudare te vult homo Qui est aliqua portio creaturae tuae et circunferens mortalitatem suam.

    Ns lemos: Et laudare te! Vult! Hoc est: Homo! Quatenus laudare te; vult!, homo est aliqua portio creaturae tuae.

    Essa afirmao no declarao de uma posio que j sabe o que o homem. antes exclamao atnita e audiente de uma questo, que comea a deixar de saber o que sabia antes sobre o ser do homem.

    A exclamao nos diz: Como isso?! A essncia do homem vult!?, a questo do ser, a busca do que no se , para e por ser? A essncia do homem consiste em dever ser o que j ? Como pode dever ser o que j , se o ser desse dever ser j ? O que isto que o toca antes de toda e qualquer anterioridade de si? O laudare te no justamente a formulao que esconde em si todo o enigmtico e paradoxal movimento dessa questo, que acena para a anterioridade que mais anterior do que toda e qualquer anterioridade do ser do homem?

  • Se assim, laudare te, vult, homo, repetem sempre de novo uma mesma questo do ser. Nesse caso, cada uma dessas formulaes so substantivos, isto , concrees de uma sub-stncia, de uma subjacncia que no um ente de fundo, mas sim o vigor sempre oculto e sempre mais retrado do Mistrio do ser que como mistrio quer vir fala na questo que se repete nessas formulaes.

    Se assim, o aposto aliqua portio creaturae tuae no um adjetivo qualificativo e determinado do sujeito homem, mas sim a repetio substantiva da mesma questo que move os termos: laudare te, vult, homo.

    Leiamos o resto do texto no embalo dessa colocao... Homo, aliqua portio creaturae tuae / et homo circunferens mortalitatem suam... Et tamen laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae.

    No nos diz o texto claramente que o que segue ao homo, aliqua portio creaturae tuae, introduzido por um et, isto , et circunferens mortalitatem suam, no um adjetivo qualificativo e determinado do sujeito homo como o , segundo a interpretao usual, o aposto aliqua portio creaturae tuae, mas sim a repetio da questo que move a formulao homo Et laudare te: vult?

    Mas recordemos. Homo aqui no um ente-objeto, mas sim o concreto do movimento da questo essencial do ser, cuja substncia o Mistrio do ser. Isto significa que et homo circunferens mortalitatem suam uma re-colocao da mesma questo do ser, colocada no trecho anterior! Mas, em se colocando a questo, o et homo circunferens mortalitatem suam tenta agravar a questo j colocada anteriormente, de tal sorte que aumenta mais a perplexidade da exclamao da busca, tornando a questo do ser cada vez mais enigmtica na sua impossibilidade de pens-la, no paradoxo da sua lgica, a ponto de o trecho terminar no clamor de admirao: Et tamen! Laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae: homo circunferens mortalitatem suam!

    Com outras palavras, o et que aparentemente liga o texto aliqua portio creaturae tuae com o texto circunferens mortalitatem suam, como se fossem duas qualidades negativas equivalentes do homem, na realidade os confronta como diferenas opostas, que na sua diferena aprofundam e agravam a sempre mesma questo do ser do homem como laudare te vult homo, explicitando mais e mais nitidamente a pergunta crucial que aflige a colocao: laudare te vult homo!?

    Qual , pois, a pergunta que aflige a colocao do texto anterior?

    a pergunta: Como pode o homem ser, sem jamais poder ser a no ser devendo poder ser o seu ser? Como possvel que se d esse poder no poder ser a no ser devendo poder ser o seu ser e, por conseguinte, tambm, o seu no ser?

    na ausculta bem recolhida na audincia dessa pergunta que emerge aos poucos o tinir do silncio da pura espera, a que se afeioa o envio e o toque do Mistrio do ser como o ser do louvor, no clangor e na claridade do desvelamento do abismo do retraimento: TU.

  • A questo do ser, a busca, recebe o seu princpio e sua consumao nessa acolhida bem recolhida do toque no envio do Mistrio do ser.

    Esse ponto do toque um in-stante, cuja permanncia exige sempre de novo pela primeira e ltima vez o empenho de busca do querer.

    A busca inquieta e sempre mais radical da questo do ser excitada por esse toque no envio do Mistrio do ser.

    O querer que o ser do homem, a questo do ser, no entanto, no permanece na dinmica recolhida da serenidade inocente no ponto do toque, onde se na inocncia da simplicidade do ser, onde se inocentemente, puramente a prpria impossibilidade de ser a no ser o ser da busca inquieta.

    Essa impossibilidade, esquecida de que a prpria inquietao da impossibilidade j inocentemente como o toque no envio do Mistrio do ser, a soberba, isto , a inflao do querer, que, ao se transcender sempre de novo na busca de fundamento de si, se pe irremediavelmente a si mesmo como o sentido do ser.

    Homo, o vult, cujo vigor portio creaturae tuae, por ser laudare te vult a poro do vigor da criao jovial, mas justamente em o sendo, j est sempre fora daquilo que de graa, e de tal sorte que nem sequer consegue ser inocentemente esse prprio estar fora da essncia de si mesmo, da portio creaturae tuae.

    Essa radical finitude o apangio da liberdade do homem para o laudare te vult, mas ao mesmo tempo o agitar-se da mortalidade, o testemunho do pecado, da soberba da inflao.

    Mas por que inflao? Porque da impossibilidade de serena e inocentemente poder ser finitude da impossibilidade, a mortalidade, que surge no querer do louvor o querer da cobia, na busca precipitada, frentica, vida e des-obediente de tudo em tudo, na transcendncia de si, no anelo desmedido do atingir e de possuir o ser como um suprapoder universal de segurana, realizao e bem. No entanto, o ponto crucial do vigor est justamente em acolher esse pouco do toque no envio do Mistrio do ser, que se anuncia na acolhida humilde da inocncia que se d na impossibilidade de ser da nossa mortalidade.

    Esse vigor do pouco, que a herana da nossa origem, da portio creaturae na jovialidade da inocncia e da graa do ser: o divino. Mas, enquanto o querer se d inflao, Deus superbis resistit. O homem, cuja essncia o recolhimento na sorte que lhe cabe como a herana da sua origem, no toque do Mistrio do ser, e isto justamente na finitude da impossibilidade, na mortalidade e no pecado homo, aliqua portio creaturae tuae se agita inquieto, carrega e lana ao seu arredor a sua finitude, a sua mortalidade circunferens mortalitatem suam et testimonium peccati sui , na busca desmedida, injusta, inflacionria da posse do ser. Mas justamente essa soberba e esse gigantismo que cria dentro de si na interioridade do vigor inocente do querer da busca do, por e para o louvor, a resistncia e a

  • impossibilidade de ser a jovialidade do abismo do Mistrio do ser: o divino: homo, aliqua portio creaturae tuae! Et testimonium, quis superbis resistis!

    Tudo isso, essa paradoxal ambigidade da finitude do querer, que em sendo o dever de acolhida do vigor da inocncia e da jovialidade de ser, na e pela afeio dessa mesma inocncia cordial de ser, no entanto, a enigmtica e admirvel questo do ser do homem. Por isso o texto exclama atnito na admirao: Et tamen: laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae!

    CONFESSIONRES VI

    A exclamao que nasce do toque do envio do Mistrio do ser magnus es, domine, et laudabilis valde! repercute em repetidas colocaes da questo do ser, como da busca sempre mais radical do sentido do louvor a ti.

    O sentido do ser, assim buscado, se estrutura como a ambgua oscilao do ser do homem, era como ek-sistncia da pura espera na percusso do louvor laudare te vult, homo , era como a inquieta desmedida do querer que quer o querer do seu querer, no esquecimento do silncio recolhido da finitude nasciva da aliqua portio creaturae tuae: ...vult homo, circunferens mortalitatem suam.

    Mas essa ambiguidade se agrava ainda mais, tornando sempre mais abscndita a questo do ser, quando percebe-se na prpria desmedida do querer, no esquecimento do ser, o eco longnquo do toque do Mistrio do ser na transparncia nova de uma ausncia presente. Pois por que a desmedida do querer, a no ser porque j est afeioada inocncia e graa do toque originrio do louvor? A prpria precipitao, a pressa, a inflao da busca, a cobia, no esto j movidas, aliciadas pelo gesto do Mistrio do ser no seu retraimento?

    Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, dones requiescat in te!

    Tu excitas, ut laudare te delectet: Excitat vem de latim ex-citare.

    Citare colocar algo num movimento rpido de deslanche. Citare, porm, contm tambm o sentido do ciere (civo, civi, citum), do qual se deriva.

    Ciere significa e-vocar (no sentido literal), dar o tempo para o movimento, con-vocar, a-viar, encaminhar.

    A partcula ex significa para fora. Mas esse fora no um espao aberto j existente em si, de antemo. antes o prprio movimento de e-mergncia, na qual a interioridade se abre, no para um espao fora dela, mas para a concreo na consumao dela mesma. No ex a interioridade vem a si mesma, sua essncia.

    Tu excitas significa, portanto: o toque, pelo e para o qual, se a-via a emergncia de uma concreo, onde o prprio crescimento da concreo vem a si como interioridade essencial do seu ser, a ponto de se assentar na sub-

  • stncia radical da sua origem como no in-stante (ex-cito) sempre novo e sempre arcaico do envio fontal do ser, que em se retraindo sempre novo e sempre de novo, na liberdade da doao, se abisma no des-velamento do Mistrio do Tu, como contnua e-vocao do vigor cordial de ser.

    O gosto que nasce do toque dessa transcendncia imanente, isto , por e para a sada que se ab-isma sempre mais na interioridade da e-vocao do Mistrio do ser na afeio a Ti, no retraimento do Tu, o saber, isto , o saber do ser do louvor: ut laudare te delectet.

    Vir a si como ao ser do louvor a Ti ao toque do saber de retraimento do Tu, e nesse vir a si acolher sempre de novo pela primeira e ltima vez e ser, e nessa acolhida se constituir como ente em si, por e para a graa da sub-estncia cordial do des-velamento do Tu, ser per-feito, perfazer-se, ser feito ad Te. Isto ser aliqua portio creaturae tuae, e ens creatum: quia fecisti nos ad te.

    Na formulao desse texto aparece a preciso do discurso agostiniano que fala a partir do toque do ser do louvor.

    Ns, sob o domnio da subjetividade, diramos: Tu excitas nos, ut laudare te nos delectet...

    O texto diz: Tu excitas, ut laudare te delectet! Por que falta nesse discurso agostiniano o bocejo para excitas o delectet?

    Porque o ns, a nossa egoidade, obra do envio da sub-estncia do Mistrio do Tu, na afeio do ser criatura como o concrescimento da per-feio no louvor a Ti, o sujeito, o homem, no se d a no ser na prioridade ontolgica do ad Te. No o homem que e ento busca. o louvor que perfaz a subsistncia, a sub-jectidade, o em si do homem.

    Isto significa que o ser do homem : em ek-sistindo ad Te? Isto significa que o ser do homem merc do in-stante do toque da doao do Tu, isto , por e para a doao do Tu no retraimento gratuito e-vocativo do ser?

    Quer dizer que o assentar-se no ser, a subsistncia, o pouso e o repouso do ser do homem, consiste nesse toque da gratuidade da doao do ser, nesse hlito acerca do Nada? Sim.

    Se assim, enquanto a nossa pousada no habitar nosso in-stante de vigor do hlito acerca do Nada, enquanto no morar nessa pura espera de Ti na cordial pobreza da acolhida da nasciva finitude, jamais ser repouso, mas sim cor inquietum: da v busca daquilo que no ela mesma...: et inquietum est cor nostrus, donec requiescat in te.

    Mas o cor inquietum cor e inquietum na busca daquilo que no sua pousada, justamente porque o habitat sub-stancial do ser precisamente, apenas ad Te, a saber, ao saber do: ut laudare de delectet: Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrus, donec requiescat in te.

  • Mas, ento, por que o homem no simplesmente apenas a afeio cordial da jovialidade do Nada, da gratuidade do toque do ser louvor a Ti?

    Costumamos responder a essa pergunta com facilidade: que o ser do homem finito, e, por isso, o homem no pode dar-se a competncia de dar-se a si mesmo a afeio por e para o toque do ser louvor a Ti. S Deus, o infinito, pode se dar o seu ser, a jovialidade de ser.

    No entanto, a questo surge justamente porque o ser do homem finitude! Pois a finitude enquanto laudare te: vult: homo no significa propriamente que o homem por ser finito incompleto e por isso carente, privado do ser completo e infinito de Deus. Antes, significa que o homem no seu ser de tal modo que nem sequer pode-se dar a possibilidade de no poder-se dar a possibilidade de no ser. Isto equivale a dizer que o ser do homem recebe tudo, no seu ser, mesmo a possibilidade de receber a possibilidade do receber. Logo, a finitude nada, e enquanto nada tudo recebe e, se tudo recebe, recebe tambm o seu ser-louvor e a possibilidade do ser ser-louvor. De tal sorte que, deveria ser por si e em si a afeio cordial do gosto de ser louvor a Ti: Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te!

    Como ento possvel exclama admirado o texto que laudare te vult homo? Como possvel que cor nostrum seja inquietum? Como possvel que o homem possa ser at que descanse em Ti, se sempre j , em tudo, at mesmo no seu no ser, in-stante do toque do envio gratuito de ser?

    Mas nesse clamor da admirao, que entoa o louvor na questo do ser, soa tambm a inquietao do corao dessa nossa questo. Inquietao da busca, que na inquietao abre o corao cordialidade da busca, no clamor do pedido: Da mihi, domine, scire et intelligere!

    Perguntamos acima: por que o homem no simplesmente apenas a afeio cordial da jovialidade do Nada, da gratuidade do toque de ser louvor a Ti! Costumamos responder: porque o homem finito.

    O texto de Agostinho fala tambm da finitude como do ser do homem. No entanto, em vez de ser uma resposta, o agravamento, a radicalizao da questo do ser, que na sua finitude comea a saber cada vez mais que nada sabe de si, o nosso saber do seu no saber comea a saborear cada vez mais, em sendo, a sua prpria finitude. Mas esse sabor da finitude no tem o sabor amargo e ressentido da privao do saber, que por direito lhe caberia, mas sim o saber cordial da disposio de acolhida na busca, a boa vontade flor da pele, a disposio que no cabe na sua pele de alegria da pura espera! Da mihi, domine, scire et intelligere.

    Assim, a partir da jovialidade de dever ser a no ser apenas o clangor do louvor a Ti, a partir do louvor, comea a via-gem de uma longa aventura de busca, de busca inquieta na cordialidade da inquietude da busca acerca do toque misterioso dessa prpria busca, da questo do ser.

    Mas necessria uma tal busca? Uma tal busca no intil? Se o que se busca j o somos?

  • Se tivermos auscultado bem o que at agora ouvimos, surge bem no fundo de nossa audio uma suspeita obediente: ser que o livro de As Confisses, cujo ser o a-via busca inquieta do scire et intelligere, no apenas o clamor do ser do louvor, que sempre de novo recolocava e re-pete a questo do ser, para pro-nunciar sempre novo e de novo que o ser do homem como laudare et: vult: homo, como aliqua portio creaturae tuae, isto , como a finitude, o alegre e gratuito gosto de liberdade do ser o que j somos, mesmo justamente na impossibilidade de ser sempre o que j somos, por que somos e no somos por e para a graa cordial da Gratuidade da Liberdade do Mistrio do ser?

    O pouco saber, que a sorte essencial dessa busca, a herana cordial da finitude, que como vult, como o empenho do cor inquietum j foi afeioado pela alegria da busca livre, intil e impossvel, porque fomos amados primeiro:

    Zu wissen wenig, aber der freudo viel Ist Sterblichen gegeben (Hlderlin, IV, 240)

    Pouco saber, mas muita jovialidade dada aos mortais.

    CONFESSIONES VII

    Da mihi, domine, scire et intelligere, utrum sit...

    A estrutura desse texto corresponde estrutura do texto acima: Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae, et homo circunferens mortalitatem suam... na seguinte esquematizao:

    Da mihi, domine Et: laudare te. Scire et intelligere vult/homo/aliqua portio creaturae tuae. utrum sit... Et: homo/circunferens mortalitatem suam...

    Comentrio do esquema:

    No vocativo da mihi, domine, repercute a percusso do toque do ser do louvor a Ti que tambm a percusso que toca a exclamao Et!: laudare te!

    Scire et intelligere correspondem ao vult, ao saber, questo do ser, que perfaz o ser do homem, enquanto portio, isto , a propriedade, a herana da pertinncia a uma nascena do ser, que deve ser a abertura por e para o toque do ser a Ti, por ser antes ser de Ti, a criatura.

    Mas esse sabor que ao sabor do gosto jovial de ser criatura, a Ti de Ti, no pode, a partir de si, recolher-se na permanncia da jovialidade inocente de apenas ser criatura, de apenas ser finitude, de ser mortalidade, isto , de ser o recolhimento ob-audiente e cordial dessa prpria impossibilidade. Esse no poder a partir de si o prprio no poder ser a partir de si o cor inquietum da questo do ser, que em lugar de pousar na dynamis da serenidade plena da pura espera, agora circunferens mortalitatem suam. Esse cor inquietum da questo do ser, no entanto, est afeito, porque j a afeio do toque de Ti,

  • por e para a afeio do ser louvor a Ti. Por isso pede de boa vontade: Da mihi, domine!

    Mas o seu saber ao saber do louvor a Ti, por dever ser merc da gratuidade de Ti, no pode ser simplesmente como algo que . Deve sempre de novo ser colhido pela mortalidade, pela impossibilidade de no poder ser a no ser se recolhendo na inquietao afeita do no poder jovialmente ser sem por qu, ser apenas ek-sistncia da impossibilidade.

    Assim, deve sempre de novo, pela primeira e ltima vez, querer saber scire et intelligere e donde do por qu da questo do ser; deve, em querendo laudare te, por e para ser apenas ek-sistir, por e para poder ek-sistir por ek-sistir, questionar, intensa e cordialmente em re-peties, utrum sit; e assim deixar ser o aumento, a concreo da impossibilidade de ser como a ek-sistncia da pura facticidade da espera de Ti. Por isso, o texto comea a indagar: utrum sit prius invocare te an laudare te et scire te prius sit an invocare te.

    Scire et intelligere, utrum sit, questionar de boa vontade no e de ser inquietum o ser da questo do ser, , como dissemos acima, deixar ser o aumento, a concreo da impossibilidade de ser como a ek-sistncia da pura facticidade da espera de Ti, isto , de ser aliqua portio creaturae tuae.

    Esse aumento do ser no questionar, no scire et intelligere, utrum sit, vem fala, e nosso vir fala toma corpo, como o ntico con-creto do ontolgico do louvor a Ti.

    Assim, nessa busca do utrum sit, a prpria busca se per-faz como o sujeito, como o eu do louvor a Ti, no como o eu do est, mas sim como o mihi do ser a Te e ad Te, como a obra per-feita da invocao na evocao do ser do Mistrio do Tu.

    Por isso, a questo do ser, que se afeioa sempre de novo em re-peties do ontolgico do louvor a Ti, ao mesmo tempo a concreo dessa mesma questo do ser como o ntico, isto , como o vir fala, como o tomar corpo do ontolgico do louvor a Ti, como o tomar corpo do homem.

    Esse jogo con-creto e ambivalente da questo do ser, cada oscilao hermenutica do ontolgico-ntico e ntico-ontolgico, no entanto, est a servio e merc do des-velamento do sentido radical do ser como do Mistrio, que se vela, se retrai como o abismo insondvel do ocultamento da Liberdade do Tu; que em se retraindo no recanto do seu pudor, se envia como o ontolgico, como o ser do louvor a Ti.

    Mas esse envio acena da cercania da intimidade do abismo do Mistrio cercania donde advm a claridade abscndita da percusso do toque do ser, como o silncio ab-soluto do tinir da exclamao:

    Magnus es, domine, et laudabilis valde! Da mihi, domine, scire et intelligere!

    Portanto, scire et intelligere deve ser ouvido, a partir do Magnus es, domine, et laudabilis valde, mas de acordo com a toada Da mihi, domine, na qual o mihi oscila no acordo ambguo da concreo do ontolgico-ntico e ntico-

  • ontolgico das duas tnicas constitutivas do louvor a Ti, a saber, homo, aliqua portio creaturae tuae e homo, circunferens mortalitatem suam, i. ; cor inquietum.

    Na audincia da oscilao do sentido do ser nesse acordo, devemos sempre de novo perguntar: como isto? utrum sit?, colocando-nos, assim como o vir fala do ser que no pode colocar a pergunta da anterioridade de si mesmo, como a sonncia da tnica homo, circunferens mortalitatem suam.

    Mas, em assim nos pondo como a colocao da impossibilidade do scire et intelligere a no ser respondendo, utrum sit?, tentemos ouvir, nesse empenho de pr-nos sempre novos e de novo em re-peties na impossibilidade da nossa pergunta, a tnica fundamental do homo, aliqua portio creaturae tuae, que repercute o eco do louvor a Ti, na percusso longnqua da cercania do Magnus es, domine, et laudabilis a ao da intencionalidade.

    Em agindo como intencionalidade, tendemos, vamos, avanamos sobre o ser.

    Avanamos sobre o ser, para coloc-lo a servio do interesse do que podemos. O que podemos? No sabemos. No sabemos, porque no podemos intender sobre o ser do nosso poder, para coloc-lo a servio do interesse do nosso poder.

    Mas por que no podemos intender sobre o ser do nosso poder? Porque, para isso, deveramos estar fora do interesse do nosso poder, para intender sobre ele.

    Mas no o fazemos continuamente? Sim. Mas, em colocando-nos sempre de novo fora do interesse do nosso poder, para intender sobre ele, colocamo-nos sempre mais no interesse do nosso poder do no poder a no ser saber e compreender, em intendendo sobre o ser.

    Com outras palavras, o inter-esse de nosso poder como dever sempre intender sobre o ser para poder saber e compreender nos tem inteiramente sob o seu poder. Esse poder, que nos tem sob a sua dominao, determina o modo de ser do nosso saber e corresponder como objetividade. O subiectum, o que est ali posto de antemo como a subjacncia do nosso saber e compreender, o modo de ser da objetividade, isto , o no poder ser saber e compreender a no ser como a intencionalidade, como a in-tenso sobre o ser.

    essa in-tenso sobre o ser que determina o sentido do ser como algo chamado objeto. Por isso, quando perguntamos o que ? se ? como ? j sabemos e compreendemos de sada que, o ser objeto, que o ser algo. Quer isto dizer que, no perguntamos? Que apenas afirmamos a in-sistncia na posio do que podemos? Que estamos esquecidos do que no podemos a partir do fundo da nossa posio?

    Da mihi, domine, scire et intelligere, utrum sit...

    Ouamos bem a fala do texto. Ela no afirmao. antes uma splica, que pede cincia e inteligncia, para perguntar.

  • E pergunta acerca de qu? Pergunta precisamente acerca da questo do fundo da anterioridade do ser do homem: ...utrum sit prius invocare te an laudare te et scire te prius sit an invocare te?

    Mas e essa pergunta, no pergunta ela tambm como ns, na afirmao da posio intencional objetiva, utrum sit?

    Essa suspeita j , porm, uma proposio da in-teno objetiva do nosso poder. A proposio j afirma como algo, como objeto, o sujeito-autor Agostinho, a sua poca, o seu saber e compreender ao escrever esse texto, a sua pr-compreenso do sentido do ser, j afirma como algo, como objeto, o seu pensar, j afirma que saber e compreender, a presumvel outra pr-compreenso do ser tambm uma intencionalidade objetiva etc.

    Sabemos ns o que o ser de tudo isso? Sabemos ns o que autor, o que saber e compreender, o que o texto, a sua pr-compreenso do ser, sabemos ns o que esse que e esse da nossa pergunta o que ??

    No podemos, pois, saber nem compreender nada mais a no ser o que nos prope a in-tenso objetiva? A no ser que o ser algo, objeto?

    Da mihi, domine, scire et intelligere, utrum sit...

    Ouamos bem essa fala. Se nos recolhermos bem na impossibilidade da nossa inteno objetiva de no poder a no ser objetivar o ser como algo, e se deixarmos ser essa impossibilidade, sem nos debatermos afoitamente para sair do impasse, comearemos a ouvir no seio dessa prpria impossibilidade o silncio, que repercute um saber e compreender diferente.

    Tentemos dizer o que ouvimos, sem nos deixar intimidar pela poluio do contnuo posicionamento de algo, da nossa inteno objetiva.

    Scire et intelligere. Por que scire et intelligere? Que scire? Que intelligere? Que scire et intelligere?

    Que scire et intelligere ouvimos da splica Da mihi, domine. Ouvir da splica ouvir na sonncia do tom que vem da splica. Como tona a splica/ Da mihi, domine: scire et intelligere. Da mihi, domine e scire et intelligere soam no mesmo? Sim. Soam no mesmo vocativo domine!

    Quer isto dizer que a essncia do scire et intelligere tem muito mais a ver com louvor e invocao, vocao e provocao, evocao e convocao do que propriamente com saber e compreender, com in-tender e objetivar?

    Se assim, que scire? Scire acolhida. Mas acolhida, cujo colhimento est recolhido no aumento de uma interioridade, que cresce, toma corpo como afirmao da confiana, cuja finana tornar-se cada vez mais prpria percusso da evocao. Scire, portanto, o aumento da interioridade de ser, a propriedade da evocao. Tem, pois, a mesma acepo do verbo scire em 2Tm 1,12: scic enim cui credidi!

  • Intelligere diz inter-legere. Legere, ler colher. Mas no colher algo ou objeto. Antes, colher na sonncia dos verbos a-colher, encolher, re-colher, quando dizemos: acolhida, acolhimento, encolha, encolhimento, recolhimento. Legere, ler, isto , colher do verbo interllegere significa: o retrair-se para dentro de si. Mas esse retrair-se para dentro de si no um movimento de entrada ou de retirada para dentro de um espao interior. Pois o retrair-se do colher consiste justamente em o prprio movimento do retraimento constituir-se como o interior, vir a si como interioridade de si mesmo. Portanto, legere, ler, colher uma abertura. Mas abertura que o abrir-se sempre mais ao ab-ismo da interioridade do vigor, que possibilita a transcendncia do prprio abrir-se imanncia de si mesmo. O colher do inter-legere a transcendncia da intensificao na im-portncia de ser. Esse movimento de transcendncia no um movimento que parte de um ponto inicial para tender a um ponto final, onde descansa na parada da inrcia. , antes, um movimento de re-tomada, de re-petio, na qual o sentido do ser na sua totalidade buscado sempre novo e de novo, na ausculta, na acolhida obediente evocao do retraimento do sentido do ser, que ao sempre de novo se retrair do poder de nossa apreenso, disposio da colhida da pura espera, isto , boa vontade da apreenso, liberdade de aprender.

    Essa boa vontade, que sempre de novo na questo do ser est no ponto de salto da passagem entre um determinado sentido do ser na sua totalidade e a radical-outra possibilidade do sentido do ser na sua totalidade, na pura espera da ob-audincia, na ab-soluta impossibilidade de en-tender, essa boa vontade enquanto o ponto de salto o inter do verbo intelligere. O inter do intelligere o tinir de acolhida na vibrao flor da pele da questo do ser.

    Scire et intelligere, portanto, dizem o mesmo: a preciso da ob-audincia ao ser da prpria ob-audincia evocao do Mistrio do ser. Somente que scire tematiza a firmeza dessa preciso, ao passo que intelligere tematiza a limpidez da acolhida dessa mesma preciso.

    , pois, a boa vontade da preciso dessa apreenso que pergunta utrum sit. Que pergunta? Pergunta, utrum sit prius invocare te an laudare te; et scire prius sit an invocare te.

    uma pergunta, questo da busca, que nada en-tende de antemo. Que vem fala nessa pergunta? A questo do ser na clareira da sua distino.

    Que aparece na clareira da distino da questo do ser? A distino entre os conceitos invocare, laudare e scire? No precisamente. Por que no precisamente? Porque invocare, laudare e scire como conceitos, por serem produtos da inteno objetiva, no con-tm suficiente distino para apreender o invocare te, laudare te e scire te, como concrees de uma mesma distino, da distino que o peso da dignidade do prius: te.

    Com outras palavras, utrum sit prius no intende serenar a questo numa resposta sobre a prioridade das aes, invocare, laudare e scire. Antes, pelo contrrio, a fala na qual aparece com nitidez a radicalizao da questo do ser, cuja gravidade pesa cada vez mais para dentro de si, como a nica questo digna de ser acolhida e repetida.

  • No recolhimento do silncio da ausculta sob o peso sub-stancial da questo assim agravada do ser, a audio da boa vontade de scire et intelligere tenta a afeio impossvel: tenta mirar a disposio da pura espera ob-audiente, que a essncia do prprio mirar, orientando todo o vigor de acolhida do silncio de recolhimento dessa pura espera, a-cerca da oscilao de estruturao dessa mesma espera. Pois a pura espera no uma abertura escancarada de igualdade, sem a vibrao da diferenciao do vigor da vida. antes uma contnua e bem diferenciada identidade da oscilao, em cujo balano se d o des-velamente do sentido do ser, isto , o movimento, que em desvelando vela e em velando desvela o sentido do ser no seu retraimento cada vez mais pro-fundo.

    ... utrum sit prius invocare te an laudare te et scire te prius sit an invocare te?

    Na orientao da mira da boa vontade do scire et intelligere, o invocare te, o laudare te e o scire te no significam trs aes do homem, mas sim trs momentos na oscilao da estruturao do ser do homem, da questo do sentido do ser.

    Mas, se a questo do ser como o ser do homem a preciso ab-soluta da pura espera, que significa o prius? o invocare? o laudare? o scire?

    Se, porm, a facticidade da pura espera no a abertura escancarada na indiferena da igualdade, na determinao do sentido do ser como algo abstrato, se contnua e bem diferenciada identidade da oscilao do ser, ento ela deve-se dar na diferenciao de momentos da estruturao. O invocare, o laudare e o scire so, pois, momentos na estruturao do ser da pura espera.

    Mas como se relacionam o invocare, o laudare, o scire nessa estruturao? A identidade bem diferenciada da oscilao do vigor da questo do ser ek-sistncia, a colhida, a pura espera.

    A acolhida, a pura espera no ao, no in-tenso. No , porm, passividade indiferente de algo vazio. o tinir da pura espera. Nesse tinir h um qu, o qual podemos denominar de transcendncia. Transcendncia que a dis-posio do ponto de salto, que a abertura do recolhimento de todo o corpo da ek-sistncia, a dis-posio da a-colhida flor da pele da ek-sistncia, a dynamis do fiel e-vocao do toque. a in-vocao, o in-vocare.

    Mas essa invocao : o tinir da pura espera, : flor da pele de todo o corpo da ek-sistncia. , pois, o limite da contenso no crescimento da intensificao da pura espera, o silncio ab-soluto na firmeza da preciso da acolhida.

    A firmeza da preciso de acolhida o scire, a sciencia. O invocare, a invocao , portanto, o limite de scire, da sciencia.

    Mas o invocare, a invocao, a disposio do fiel da pura espera evocao do toque, donde ?

    Ele no pura espera somente no in-stante do toque, no qual se d laudare, o louvor?

  • Mas o laudare, o louvor, no ele o prprio in-stante do toque? E o instante do toque no se d como a estncia, como a firmeza, como o corpo compacto da concreo da pura espera no crescimento absoluto da sua intensificao?

    Que isto, que possibilita essa re-petio inesgotvel da interao, no convvio e no comrcio de mtua implicao de ser, entre os momentos invocare, laudare o scire?

    Que o princpio, o prius, que faz rodopiar o scire e intellegere na baila jovial e ao mesmo tempo mais e mais inquietante da pergunta utrum sit? Utrum sit prius?

    Aos poucos, do vrtice dessa baila da questo do sentido do ser da ek-sistncia, como que num turbilho espiral, nos foge toda e qualquer possibilidade de scire et intelligere. E, na medida em que se retrai toda e qualquer possibilidade de scire et intelligere, emerge do fundo desse vrtice a noite do silncio como o ab-ismo da pura espera, de cuja profundidade sem fundo nos vem de encontro, qual hlito acerca do Nada, a claridade serena do Mistrio, qual sorriso inocente da Grandeza, que tudo envolve na naturalidade gratuita e familiar da Liberdade do Mistrio.

    De repente, o rodopiar da questo do ser se sente em casa, como na baila da jovialidade de uma busca, que em perguntando incessantemente, sempre de novo, utrum sit prius invocare an laudare et scire prius sit an invocare, re-corda admirado que se esquecera: que sempre j dissera, sem saber, utrum sit prius invocare te an laudare te et scire te prius sit an invocare te!, na alegria simples do saber de Ti!

    CONFESSIONES VIII

    alegria do simples, ao saber do Mistrio na Liberdade do seu recato, que ex-clama: Magnus es, domine, et laudabilis valde! ela que de-vota o scire et intelligere abnegao de si como ao esquecimento do in-tender. ela que a-corda, da re-cordao desse esquecimento, como gratuidade da espera, em ins-sistindo na ek-sistncia da busca: Da mihi, domine, scire et intelligere.

    O saber simples ao saber da inocncia na simplicidade do Mistrio dom da graa. A grandeza da graa, a sua distino recato da Liberdade do Mistrio.

    O recato da liberdade do Mistrio leve como pena, qual um hlito acerca do Nada! Um aceno, uma evocao, um toque.

    A tempestade, isto , a temporalidade da distino dessa grandeza, na dignidade desse recato, da ternura e leveza desse pudor do Mistrio o in-stante. A permanncia do envio da graa apenas in-stante. Mas a instncia do instante no o momento do chronos, antes a re-cordao, sempre de novo re-petida, da leveza do toque desse recato.

    Quem pode suportar uma tal leveza? A impossibilidade de suport-la, porm, a confisso jovial da distino, da dignidade da grandeza desse recato, que na sua doao nada. E Nada no encabula a ningum...

  • No entanto, essa leveza, esse instante do recato, que tempestiva a inquietao da busca, o cor inquietum, a pr sempre de novo a pergunta utrum sit, como a cadncia e decadncia da questo do ser, na tentao e tentativa de ek-sistir na permanncia do instante do Mistrio, que se retrai na graa da sua leveza nossa insistncia.

    Quem pode adequar-se a tal sopro do Nada? Quem pode a tal ponto nada in-tender, a tal ponto que nem sequer saber de no poder intender?

    Quem pode no saber que no sabe, na radical inocncia do esquecimento?

    Mas um tal no saber no ele um equvoco, aliud pro alie, da invocatria, que diz no saber que no sabe, mas sabe muito bem o que no saber?: Sed quis te invocet nesciens te? Aliud enin pro alie potest incovare nesciens.

    Entrementes, se d o invocare te, se d o scire te, o laudare te... Se d o turbilho da questo do ser, que de pergunta em pergunta pergunta sempre de novo a pergunta, o cor inquietum da busca da possibilidade da pergunta; se d a implicao da questo do ser, que est invocada como o prius do princpio.

    Donde vem a transcendncia de laudare te? A transcendncia da questo de laudare te? A transcendncia da questo que busca o ser da questo do laudare te? Donde vem a firmeza da procisso da questo do ser, que em perguntando j est acolhida como o tinir da pura ek-sistncia da pergunta?

    Que princpio evoca o principiar do invocare e scire: te?

    Que esse princpio do princpio, cuja fala na repercusso do Te, em cuja percusso podemos scire et invocare e invocare et scire na vertigem, na possibilidade da pergunta a Ti: Na potius invocares, ut sciaris?

    CONFESSIONES IX

    Tomados que estamos pela circunferncia da mortalidade inquieta da crescente circularidade a-voada do nosso perguntar, ficamos de repente invocados com o texto seguinte:

    Quomodo autem invocabunt, in quem non crediderunt? Aut quomodo credent sine praedicante? Et laudabunt dominum Qui requirunt sum. Quaerentes enim invenient sum et invenientes laudabunt sum.

    Com que ficamos invocados? Ficamos invocados com o tom do texto. O texto no soa mais como uma questo. No pergunta mais, ao menos no, na acribia inquieta da busca impossvel. Antes, fala no tom de uma resposta. Da resposta, que sabe com segurana de uma soluo j dada de antemo. Certamente, o texto pergunta Quomodo autem invocabunt, in quem non crediderunt? Aut quomodo credent sine praedicante? Mas essas perguntas soam como afirmaes. Afirmaes de uma certeza, que diz: Quaerentes enim invenient sum et invenientes laudabunt sum.

  • Essa certeza parece tambm no soar na mesma entonao da alegria simples na graa do esquecimento da pergunta. No soa inocente na naturalidade do toque, na leveza da evocao. Soa, pelo contrrio, como um posicionamento dogmtico doutrinal, que, em lendo a Bblia, foi buscar a segurana e o apaziguamento da questo do ser, na certeza da f, na prioridade de uma resposta, fundamentada no fato de uma pregao histrica.

    De repente, todas as perguntas da questo do ser dos textos anteriores comeam tambm a soar como perguntas retricas, como artefatos literrios do discurso de uma posio, que de antemo sabe a resposta, a partir da pregao do cristianismo.

    Que tem a ver a certeza da f na pregao do cristianismo com a pura espera de ausculta da evocao do Mistrio do ser, na graa da louvao a Ti?

    O ser da certeza da f na pregao factual-histrica do cristianismo no pertence tambm ele ao projeto da determinao do ser da egoidade, da in-tenso objetiva da subjetividade? No precisamente esse determinado sentido do ser que a questo do ser coloca em questo? Como pode, o que colocado em questo, ter a prioridade ontolgica para responder questo crucial e radical acerca do toque originrio e originante do ser do ontolgico dessa mesma questo?

    Ou quer o texto insinuar que, precisamente na imposio factual-histrica da pregao do cristianismo, est o ponto crucial do desvelamento da radical-outra possibilidade do Mistrio do ser, do desvelamento do velamento abissal do Nada, que se ab-nega no retraimento do seu ser, no escndalo da Cruz?!... Pois para quem se perde, a linguagem da cruz loucura, mas para quem se salva, para ns, vigor de Deus.

    E Deus no enlouqueceu a sabedoria do mundo? Pois uma vez que, na sabedoria de Deus, o mundo no conheceu a Deus pela sabedoria, julgou Deus por bem salvar os crentes pela loucura da pregao.

    Porquanto os judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria, ns, porm, pregamos Cristo crucificado, escndalo para os judeus, loucura para os gregos mas vigor e sabedoria de Deus para os chamados, tanto judeus como gregos.

    Porque a loucura de Deus mais sbia do que os homens e a fraqueza de Deus mais forte do que os homens.

    Seno, vede vossa vocao, irmo. Pois no h muitos sbios segundo a carne nem muitos poderosos nem muitos nobres.

    Mas Deus escolheu a loucura do mundo para confundir os sbios e a fraqueza do mundo para confundir os fortes; e a vileza e a abjeo do mundo, o nada, escolheu Deus para destruir o ser (1Cor, 1).

    No me gloriarei de mim mesmo, a no ser de minhas fraquezas. Pois na fraqueza que o vigor atinge a plenitude. Portanto, prefiro gloriar-me das fraquezas para que em mim se encene o vigor do Cristo (2Cor,12, traduo de E.C. Leo).

    CONFESSIONES X

  • No princpio a exclamao.

    Magnus es, domine, et laudabilis valde!

    a ek-sistncia da pura espera. a alegria simples na inocncia do gnero.

    O princpio, porm, consumao: a per-feio da via, que a-via, na questo do ser, a busca cordial do radical-outro sentido do ser do princpio do princpio.

    A via-gem perfeita de tal via se per-faz na mortalidade da busca: na ambigidade do cor inquietum, que a-pesar da cordialidade da busca, se acha sempre inquieto sob o peso da impossibilidade da busca, por e para no poder ser a no ser a partir do in-stante do toque de Ti, da colhida de si no encanto da grandeza da graa, na graa da grandeza, na leveza da evocao do Mistrio de Ti.

    O princpio da consumao a consumao do princpio, que se d como a serenidade do repouso na acolhida da impossibilidade da busca, como a facticidade da pura espera: a ek-sistncia.

    A serenidade de tal gnero a inocncia do ser no esquecimento do esquecimento do ser. O encanto de tal ek-sistncia o louvor a Ti, a abertura da acolhida por e para a leveza e a graa do recato do Mistrio de Ti. O cor inquietum repousa assim na graa da cordialidade do ser.

    Nesse recolhimento da busca no repouso do recato da cordialidade do ser, percute uma radical-outra entoao: a percusso, que verte a cordialidade serena da busca na tempestade de uma radical-outra possibilidade nova do ser.

    Nessa verso tudo , de novo, diferente. A dia-ferncia da nova diferena a provocao da f sob o golpe certeiro da imposio da materialidade factual do absurdo da pregao, que diz: o escndalo da cruz, a loucura, a fraqueza, a vileza, a abjeo, o nada a radical-outra possibilidade do princpio e da consumao.

    De repente, a cordialidade do louvor a Ti soa diferente:

    Magnus es, domine, et laudabilis valde?

    A espera do saber ao saber de Ti soa diferente:

    Da mihi, domine, scire et intelligere!?

    A sorte nasciva do ser do homem como a questo do louvor a Ti soa diferente:

    Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae, et homo circunferens mortalitatem suam, circunferens testimonium peccati sui et testimonium, quia superbis resistis!?

    A admirao atnita diante da impossibilidade do louvor a Ti soa diferente:

  • Et tamen laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae?!

    Agora, tudo soa diferente. Sinistramente diferente, na estranha tonncia de uma nova colocao da questo do nada.

    Tu excitas, ut laudare te delectet!? Quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te!?

    Que , quem esse Tu, esse a Ti, esse de Ti, cujo vigor nada, a loucura, a fraqueza, vileza, a abjeo?

    Louvor cruz como o sentido o mais abi