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Confissões Na Bahia

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Ronaldo Vainfas -

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  • Confisses

    na Bahia

    Ronaldo Vainfas

  • INTRODUOI

    No tempo em que o visitador da Inquisio chegou ao Brasil, o Santo Ofcio Portugus contava j com mais de meio sculo de existncia. O visitador e sua comitiva chegaram ao nordeste em 1591 e a Inquisio fora criada em Portugal no ano de 1536. Muita gente, talvez milhares, j havia sido penitenciada no Reino pelos tribunais de Lisboa, vora e Coimbra, ou mesmo pelo longnquo tribunal de Goa, na ndia, ao qual competia os negcios do Santo Ofcio no Oriente, inclusive a costa oriental da frica at o Cabo da Boa Esperana, o ex-cabo das Tormentas.

    Entre o vasto rol de sentenciados, no resta dvida de que, nos primeiros cinquenta anos de Inquisio Portuguesa, a imensa maioria era composta de cristos novos, descendentes dos judeus obrigados converso ao catolicismo no reinado de D.Manuel, em 1497. Parte destes residia j em Portugal havia sculos, mas outra boa parte vinha fugida da Espanha, vtima de igual medida de expulso ou converso decretada pelos Reis Catlicos, Fernando de Arago e Isabel de Castela, no ano de 1492. Gozariam de alguma imunidade os cristos novos portugueses durante o reinado de D. Manuel,o Venturoso, mas ascendendo D. Joo III ao trono, em 1521, seu destino se tornaria cada vez mais sombrio, culminando, aps inmeros percalos, com a instalao do Santo Ofcio. Cum ad nihil magis, assim se chamou a primeira Bula a instituir, sob o pontificado de Paulo III, o Tribunal da Inquisio em Portugal.

    O Brasil esteve, porm, relativamente a salvo do furor persecutrio inquisitorial da segunda metade do sculo XVI e, no por acaso, muitas famlias crists novas migraram para o Brasil exatamente aps 1550, atuando decisivamente para a ocupao do litoral braslico. A bem da verdade, os cristos novos estiveram presentes desde o incio da explorao econmica da Terra de Santa Cruz, bastando lembrar o arrendamento do comrcio de pau-brasil, a preciosa madeira vermelha, a um consrcio liderado pelo cristo novo Ferno de Noronha ou Loronha. Mas a corrente migratria data mesmo do meado do sculo, estimulada, de um lado, pela instalao do Santo Ofcio no Reino, e de outro, pela explorao do acar e o povoamento litorneo iniciados no reinado de D.Joo III, o Colonizador. Bahia e a Pernambuco, principalmente, dirigiram-se os cristos novos, havendo deles artesos, lavradores, mercadores e senhores de engenho, estabelecidos nas mais prsperas capitanias da Amrica Portuguesa. Os documentos da Visitao do Santo Ofcio demonstram farta a

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  • importante presena de cristos novos no nordeste aucareiro e, no por acaso, vale dizer, foi ali que se concentrou a ao inquisitorial do visitador.

    A visitao encabeada pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendona foi, portanto, o grande momento inaugural da ao inquisitorial no Brasil. Antes disso, somente alguns casos singulares de prises e processos instrudos no tempo em que o poder inquisitorial competia ao Ordinrio _ o titular do Bispado da Bahia criado em 1551 _ ou mesmo antes. Em 1546, clrigos e seculares prenderam o donatrio de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, e o remeteram a ferros para Portugal, onde seria procesado por culpas de blasfmias pelo Tribunal de Lisboa. Anos depois seria a vez de Joo de Cointa, o senhor de Bols, francs que viera com os huguenotes de Bois le Comte para o Rio de Janeiro, bandeando-se depois para o lado portugus. De nada lhe valeria a desero e o suposto auxlio para a tomada do forte Coligny, pois acabaria preso por blasfmias e heterodoxias, remetido ao Reino e condenado pela Inquisio ao degredo nas partes da ndia. E outros casos se poderiam citar, casos esparsos e mal documentados, incluindo visitas episcopais na prpria Bahia. Mas nenhum deles relacionado a judaizantes, nome que se dava aos cristos novos que apostasiavam, isto , retornavam ao judaismo, apesar de catlicos batizados, conservando ritos e crenas judaicas em segredo.

    A vez deles chegaria em 1591, iniciada a Primeira Visitao do Santo Ofcio. Mas que se no pense que a visitao ao Brasil possua o objetivo fundamental ou exclusivo de perseguir os cristos novos abrigados no trpico. Em primeiro lugar porque, como nos mostram os especialistas no estudo do Santo Ofcio Portugus, a dcada de 1590 marcou uma viragem na estratgia das visitaes daquela Inquisio que, se at ento se concentrara na metrpole, doravante se lanaria para o ultramar. Tanto que no mesmo ano em que Heitor Furtado de Mendona partiu para o nordeste do Brasil, outro visitador, Jernimo Teixeira, percorreria os Aores e a Madeira, e pouco depois, em 1596, seria o padre Jorge Pereira a visitar Angola por comisso do Inquisidor-Geral. No ocioso, alis, to-somente registrar uma coincidncia: recm consumada a Unio Ibrica, ficando Portugal sob o domnio dos Habsburgo hispnicos (1588), a Inquisio lusitana passaria a atuar no ultramar atlntico do antigo rival, sendo ningum menos que o Cardeal Arquiduque Alberto de ustria, Vice-Rei de Portugal, o Inquisidor-Geral do reino portugus. Ensaiava-se no Brasil o que a Inquisio Espanhola executava na Amrica h mais de trinta anos, na qual inclusive instalara tribunais do Santo Ofcio.

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  • Por outro lado, no tempo da Primeira Visitao do Santo Ofcio ao Brasil, a Inquisio no era mais a mesma. Havia ampliado deveras o leque das heresias, passamdo a perseguir outros erros, alm da heresia judaizante, sem dvida a principal. Mas no rastro do Conclio de Trento (1545-1563), marco institucional da Contra Reforma, as Inquisies passaram a se preocupar com o perigo protestante e a defender a pureza de dogmas e leis da Igreja de Roma: perseguir os que duvidavam da virgindade de Maria, os que afirmavam no haver pecado na fornicao, os que negavam existir o Purgatrio, os que questionavam os sacramentos, os bgamos. Animados por uma poltica de preveno contra o avano da heresia luterana, os inquisidores acabariam movendo fortssima campanha moralizante, processo controlador e adestrador de condutas individuais. No limite trariam os inquisidores para o seu foro delitos sexuais como a sodomia, a bestialidade e outros contatos sexuais assimilados a heresias, atos at ento adscritos Justia secular. Some-se a isto a tradicional perseguio feitiaria, coisa que em Portugal nunca foi forte, e aos mouriscos que secretamente seguiam o Islo, embora catlicos batizados, e tem-se o novo e vasto quadro das transgresses em matria de f sob a guarda da Inquisio Portguesa no final do sculo XVI.

    O judaismo secreto dos cristos novos _ criptojudaismo, portanto _, continuou a ser a obsesso maior dos inquisidores portugueses, disso no resta dvida, e assim seria at a metade do sculo XVIII. No caso do Brasil seria mesmo com a Primeira Visitao que os cristos novos da Colnia passariam a conhecer a desdita dos inquritos e prises de que se julgavam at ento livres, por no haver na Colnia um tribunal inquisitorial especfico. Mas neste fim do sculo XVI, convm repetir, o campo semntico e penal da heresia se havia ampliado consideravelmente, no mbito da Inquisio Portuguesa, do que d conta a obra que ora se publica.

    O leitor do volume deparar-se-, portanto, com variadssima gama de experincias individuais ou coletivas enquadradas ou enquadrveis no territrio da heresia. Um primeiro grande testemunho da vida cotidiana na Colnia imiscuda nos relatos de centenas de indivduos que confessaram seus erros, reais ou imaginados, ao atento visitador. Mas o leitor no encontrar neste volume a visitao completa, e nem poderia. Heitor Furtado de Mendona visitou a Bahia, cidade e recncavo, entre julho de 1591 e setembro de 1593, e Pernambuco, Itamarac e Paraba, entre setembro de 1593 e fevereiro de 1595, do que resultaram quatro livros de denunciaes, trs de confisses e dois de ratificaes, todos eles depositados, em manuscrito, no Arquivo

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  • Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Pois bem, dos nove livros produzidos pela visitao, sem falar nos processos, somente quatro foram encontrados e publicados no passado: um livro das denunciaes da Bahia, outro das confisses da Bahia, um livro muito curto das confisses de Pernambuco e adjacncias, e outro mais alentado das denunciaes nesta ltima regio. O conjunto do material, portanto, ate hoje no veio luz na ntegra.

    Por outro lado, julgamos factvel publicar somente um dos livros da visitao, texto suficientemente rico para termos um retrato do Brasil quinhentista. E dentre o que h disponvel, escolhemos um dos que hoje mais raro e instigante: o das Confisses da Bahia. Ao contrrio dos livros da visitao a Pernambuco e arredores, os livros da Bahia s foram publicados, com pequena e precria tiragem, nas dcadas de 1920 e 1930. o caso das Confisses da Bahia, publicadas pela primeira vez em 1922, com tiragem modesta de 250 exemplares, na srie Eduardo Prado, e reeditadas pela Sociedade Capistrano de Abreu em 1935: mil exemplares em papel comum e 150 em papel especial sob a responsabilidade de F.Briguiet e Co. ditores. Trata-se, pois, de livro esgotado e rarssimo, cuja reedio h muito se aguarda.

    nas antigas edies, cotejadas com partes do original manuscrito que logramos reproduzir em andanas e pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que se vai basear esta nova edio das Confisses. Iremos nos valer, e muito, do prefcio original de Capistrano de Abreu, esclarecedor de inmeros pontos relativos ao traslado, ele que nos brindou h dcadas com a primeira cpia deste livro, auxiliado por Antnio Baio, antigo diretor da Torre do Tombo, e pelo incansvel Joo Lcio de Azevedo, expert no assunto. Mas os tempos so outros e algumas modificaes se fizeram necessrias para tornar este livro palatvel e interessante para quem, na virada do milnio, vai ler um livro quinhentista sobre os comeos do Brasil.

    Em primeiro lugar assumimos a modernizao ortogrfica e a introduo da pontuao no texto, sem contudo prejudicar seu estilo arcaico, as frmulas cadas em desuso; sem remover at mesmo alguns hoje considerados erros gramaticais, mas que talvez no o fossem na altura em que o livro foi escrito. Afinal, segundo Wilson Martins, data de 1536 _ por coincidncia o ano da criao do Santo Ofcio _ a primeira Gramtica da linguagem portuguesa, de Ferno de Oliveira, obra que, se foi incipiente no gnero, continha bom conselho: E no desconfiemos da nossa lngua, porque os homens fazem a lngua e no a lngua os homens.

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  • A gramtica portuguesa era incipiente em 1591, assim como tambm o era a ortografia. No mesmo texto do mesmo escrivo o artigo definido o, por exemplo, aparece grafado ora como o grafamos hoje, ora com o h mudo, do que resulta ho _ e assim vale para o , que no raro aparece como he, e quando vem sem o h mudo, tambm dispensa o acento e se grafa e, sem se diferenciar do e conectivo. No h, nem , diria Vieira do amor, no sculo XVII, e diramos ns da ortografia portuguesa nos quinhentos. Um mar infinito de arcasmos e imprecises de que aqui s demos um modestssimo exemplo. Modernizar a ortografia e introduzir a necessria pontuao _ atos de que se escusou, compreensivelmente, mestre Capistrano _ so procedimentos que podero chocar o purismo acadmico e prejudicar os estudiosos da lngua e da filologia. Mas isto _ estou convencido - salvar o texto e viabilizar a leitura de um livro antigo que muito nos conta sobre a aurora do Brasil. Renncias, escolhas.

    Em segundo lugar, embora o assunto permanea o mesmo, julgamos necessrio homogeneizar a onomstica, adotando a frmula mais atual, quer das pessoas, quer dos lugares. No caso das pessoas, trasladar o livro tal qual o escreveu o notrio do Santo Ofcio levaria o leitor a verdadeiro desconcerto, para dizer o mnimo. Isto porque, como j dissemos, no havia regra ortogrfica no sculo XVI, de sorte que, numa s confisso, o mesmo Jos pode ser grafado como Joseph ou Josephe; a mesma Beatriz pode aparecer como Breatiz, Breatriz ou Breatis; o mesmo sobrenome Pacheco pode surgir como Pachequo ou Pachecu. J as regras de abreviatura levariam a grandes enganos se conservssemos a grafia original : o sobrenome Rodrigues ficaria oculto sob a abreviatura Riz ou Rois e o prprio Cristo viraria Xpo em algumas passagens.

    Quanto toponomstica, idntico procedimento foi adotado, sempre que possvel, procurando-se dar a mxima inteligibilidade ao texto. No caso dos topnimos braslicos esta foi uma necessidade imperiosa, pois nosso caro Manoel Francisco, o notrio da visitao, apesar de que, segundo Capistrano, bem poderia proclamar-se fenomenal em fontica, perpetrou invenes extraordinrias e variveis em termos de grafia. Quero crer que, neste pormenor, somou-se, ao desregramento da ortografia portuguesa no final do sculo XVI, o desconhecimento completo da lngua geral (o tupi ordenado por Anchieta) _ assunto que, por si mesmo, j pertence ao domnio de uma histria antropolgica. A soluo aqui adotada foi, de todo modo, grafar

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  • Paraguau, ao invs de Peragasu ou Peraguassu; grafar Sergipe no lugar de Ceregipe ou Cerezipe; grafar Pernambuco e no Perno Buco.

    Terceira advertncia, e neste ponto sigo de perto o procedimento adotado por Capistrano: evitei, como ele, as frmulas tabelioas que introduzem em duas ou trs linhas, as confisses dos colonos assustados com a Inquisio. Refiro-me ao intrito Aos vinte dias do ms de..., intrito suprimido nesta edio, como na antiga, sem que o seja a informao essencial da data da confisso. Mantive-o no traslado da primeira confisso do livro, a do Padre Frutuoso lvares, para que o leitor tenha conhecimento de como era o cabealho da pea processual.

    Seja como for, muitos esclarecimentos histricos, conceituais, gramaticais ou ortogrficos far-se-o ainda necessrios ao longo do texto, de sorte que evitarei alongar-me em demasia sobre isto nesta Introduo. Valeu-me muitsimo, inmeras vezes, a consulta sistemtica ao Dicionrio da Lngua Portuguesa (edio de 1813), recopilado por Antnio de Moraes Silva dicionarista do sculo das Luzes que tambm enfrentou problemas com a Inquisio. Mais adiante voltarei muito brevemente ao assunto, tratando de certos clichs inquisitoriais ou convenes vocabulares da histria colonial quinhentista, mas a maior parte das observaes vir oportunamente nas notas.

    Muitas notas seriam necessrias ao esclarecimento do texto, escreveu Capistrano no prefcio original, embora ele mesmo no as tenha feito no livro das Confisses, salvo pontualmente. Seguirei seu conselho, de todo modo, e as farei adiante, na medida das minhas possibilidades, porque so elas realmente imprescindveis.

    IIHeitor Furtado de Mendona, nosso primeiro visitador, devia ser homem

    entre trinta e quarenta anos, segundo Capistrano, quando recebeu a comisso inquisitorial. Licenciado, fora Desembargador real e Capelo del rei, e exercia, ento, o cargo de Deputado do Santo Ofcio. Homem de foro nobre, passara por dezesseis investigaes de limpeza de sangue para habilitar-se ao cargo inquisitorial, procedimento comum no Santo Ofcio, zeloso de que seus funcionrios no tivessem a mais tnue ndoa de sangue infecto de judeu, mouro negro, ndio, etc., como ento se dizia. Sua competncia nas letras e s conscincia para a funo de visitador foi atestada pelo prprio Cardeal Alberto, Inquisidor-Geral que o nomeou para visitar o

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  • Bispado do Brasil, inclusive as capitanias do sul, e os Bispados de So Tom e Cabo Verde, nas ilhas da costa africana.

    Desembarcou na Bahia em 9 de junho de 1591, aps breve escala em Pernambuco, viajando na companhia de D. Francisco de Souza, Governador Geral recm-nomeado. Chegou mui enfermo, nas palavras de frei Vicente do Salvador, e se foi curar no colgio dos Padres da Companhia, palco do que seria, afinal, a visitao do Santo Ofcio da Inquisio. Na comitiva do visitador vieram tambm o j citado notrio Manoel Francisco _ fenomenal em fontica _ e o meirinho Francisco Gouvea, ajudante-de-ordens do visitador. Delegao pequena, como se v, mas que contou com o auxlio de autoridades eclesisticas e missionrios locais, mormente a dos jesutas. Em vrias sesses de interrogatrio estiveram presentes o Bispo Antnio Barreiros, o Provincial dos jesutas, Padre Maral Beliarte, e o Reitor do colgio inaciano da Bahia, Padre Ferno Cardim, autor do que seria o Tratado da Terra e da Gente do Brasil. As sentenas lavradas na prpria Bahia pela visitao - nos vrios casos em que Heitor Furtado resolveu processar _, foram assinadas por todos estes dignitrios.

    No dia 16 de junho, o visitador se apresentou ao Bispo, que lhe beijou os ps e prometeu solenemente ajudar a visitao no que fosse necessrio. Na semana seguinte, dia 22 de julho, foi a vez do Pao do Conselho e Cmara de Salvador prestar-lhe as devidas homenagens, recebido o visitador pelos mui nobres senhores, juzes e vereadores da Bahia. E no dia 22 de julho iniciou-se a visitao, preludiada por grande pompa e cerimonial, presentes o Bispo e seu cabido, os funcionrios do Governo e Justia, vigrios, clrigos e membros das confraria, sem falar do povo acotovelado nas ruas de Salvador para acompanhar o cortejo do Santo Ofcio. Heitor Furtado veio debaixo de um plio de tela de ouro e, adentrando a S, ouviu renovados votos de louvor sua pessoa e ao Santo Ofcio. Dirigiu-se ento capela maior, aps a leitura da constituio de Pio V em favor da Inquisio, onde estava posto um altar ricamente adornado com uma cruz de prata arvorada, e quatro castiais grandes, tambm de prata, com velas acesas, alm de dois missais abertos em cima de almofadas de damasco, nos quais missais jaziam duas cruzes de prata. Em meio a todo este luxo, o visitador rumou para o topo do altar, sentou-se numa cadeira de veludo trazida incontinenti pelo capelo, e recebeu o juramento do governador, juzes, vereadores e mais funcionrios, todos ajoelhados perante o Santo Ofcio.

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  • Publicou-se, ento, o Edital da F e Monitrio da Inquisio, documentos que o leitor encontrar mencionados vrias vezes nas confisses deste livro. Pelo Edital, os fiis eram convocados a confessar e delatar as culpas atinentes ao Santo Ofcio, sob pena de excomunho maior. Que ningum fosse poupado, qualquer que fosse o grau, estado e preeminncia dos indivduos, devendo todos confessar ou acusar as heresias e apostasias de que cuidava a Inquisio Em tese, v-se que a pretenso do Santo Ofcio era mesmo a de colocar-se acima de todos, verticalizando em seu nico benefcio as relaes sociais, diluindo as hierarquias, dissolvendo as solidariedades de todo tipo. Na prtica, porm, como se viu no sem-nmero de rituais e protocolos da instalao da visitao, mancomunava-se o visitador com os homens bons do lugar.

    Saber o que era afinal matria a ser delatada ou confessada ao Santo Ofcio era algo que o Monitrio informava com razovel detalhe. improvvel alis que, ao contrrio do que diz Capistrano de Abreu, se tenha utilizado o Monitrio de 1536, elaborado por D.Diogo da Silva, primeiro Inquisidor-Geral de Portugal. Foi aquele o primeiro Monitrio da Inquisio, basicamente preocupado em detalhar os indcios de prticas judaizantes, embora tambm aludisse a outros erros de f, como a feitiaria, o luteranismo e o islamismo. As culpas relatadas na Visitao so, com efeito, mais variadas, incluindo, por exemplo, a sodomia, delito que somente a partir de 1553 comeou a ser transeferida ao foro inquisitorial, aps um sem-nmero de provises reais, breves e bulas pontifcias, reconhecendo o que j era fato desde 1547. O Monitrio utilizado foi, provelmente, o baseado no Regimento de 1552 ou no Edital da F de 1571, elaborados ao tempo em que o Cardeal D.Henrique, irmo de D.Joo III e tio-av de D.Sebastio, era o Inquisidor-mor do Santo Ofcio portugus. Monitrio muito calcado, verdade, no de 1536, porm acrescido das culpas que, neste intermezzo, passaram jurisdio inquisitorial. deles que a populao colonial iria falar na mesa do Santo Ofcio, alguns sabedores de que haviam realmente transgredido os preceitos da f, outros que s atravs do Monitrio vieram a constatar no serem to bons cristos como pensavam. Nofitos, por assim dizer, em matria de heresias.

    No Monitrio da Visitao quinhentista, assim como no conjunto dos Monitrios da Inquisio at meados do sculo XVIII, o grande destaque cabia aos indcios de prticas judaizantes presumidamente usadas pelos cristos novos: 1) guardar o sbado, vestindo-se com roupas e jias de festa, limpando a casa na sexta-feira e acendendo candeeiros limpos com mechas novas, mantendo-os acesos por toda a noite; 2) abster-se de comer toucinho, lebre, coelho, aves afogadas, polvo, enguia, arraia,

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  • congro, pescados sem escamas em geral; 3) degolar animais, mormente aves, ao modo judaico, atravessando-lhes a garganta, testando primeiro o cutelo na unha do dedo da mo e cobrindo o sangue derramado com terra; 4) conservar os jejuns judaicos, a exemplo do jejum maior dos judeus, em setembro, dia em que os judeus jejuavam at sairem as estrelas no cu, quando ento comiam e pediam perdo uns aos outros, alm do jejum da Rainha Esther e o das segundas e quintas-feiras de cada semana; 5) celebrar festas judaicas como a Pscoa do po zimo (Pessach), a das Cabanas e outras; 6) rezar oraes judaicas, a exemplo dos Salmos penitenciais sem dizer Gloria Patri et Filio et Spiritu Sancto, e outras em que oravam contra a parede, abaixando e levantando a cabea e usando correias atadas nos braos ou postas sobre a cabea; 7) utilizar ritos funerrios judaicos, a exemplo de comer em mesas baixas pescado, ovos e azeitonas quando morre gente na casa de judeus, amortalhar os defuntos com camisa comprida, enterr-los em terra virgem, cortar-lhes as unhas para guard-las, pondo-lhes na boca uma prola ou mesmo moeda de ouro ou prata, dizendo-lhes que para pagar a primeira pousada, mandar lanar fora a gua dos potes e vasos da casa quando algum morre na casa; 8) lanar ferros, po ou vinho nos cntaros da casa, no dia de So Joo Batista e do Natal, dizendo que aquela gua se torna sangue; 9) abenoar os filhos pondo-lhes a mo na cabea, abaixando-a pelo rosto sem fazer o sinal da cruz; 10) circuncidar os recm-nascidos, dar-lhes secretamente nomes judeus ou, batizando-os na igreja, rapar o leo e a crisma neles postos.

    Vrios destes indcios no passavam de esteretipos que marcavam a figura dos judeus havia tempos. Outros, porm, eram resduos fragmentrios da religiosidade dos judeus ibricos (os sefaradim), eventualmente praticados pelos cristos novos. O leitor encontarar neste livro alguns relatos em que os confitentes admitiam fazer certos ritos previstos no Monitrio, embora seja duvidoso que, ao pratic-los, estivessem a manter o judasmo secreto de que suspeitava o visitador. Tem-se mesmo a impresso, em vrios casos e relatos, de tratar-se, antes, da reiterao de certos usos conservados pela tradio familiar, sem maior conexo com a vivncia do judasmo que deles se suspeitava. Noutros casos talvez mentissem, ao negar seu judasmo, por serem de fato criptojudeus. Ser o leitor, no entanto, a refletir sobre estas narrativas de indivduos sobremodo assustados, no que auxiliaremos informando, em nota, sempre que possvel, o destino que lhes reservou o visitador aps ouvi-los.

    Nos demais tens de culpas inquisitoriais o Monitrio era, em regra, mais superficial, aludindo ao luteranismo (nome genrico que se dava ao protestantismo) a

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  • alguns indcios de islamismo (ento chamado de seita de Mafamede , isto , Maom), a opinies herticas em geral, descrena no Santssimo Sacramento, negao dos Artigos da F catlica e do poder pontifcio, ao questionamento da confisso sacramental, duvida sobre a pureza da Virgem antes, durante e depois do parto, bigamia, invocao do diabo na prtica de feitiarias, leitura de livros proibidos pela Igreja, segundo o Index Librorum Prohibitorum, ao questionamento sobre se a fornicao era pecado, sodomia, bestialidade.

    O leitor encontrar a mais variada gama de relatos, ora diretamente estimulados pelo rol de culpas do Monitrio, ora provocados pelo medo de que simples pecados pudessem ser crimes do foro inquisitorial, dado ser o Monitrio muito vago em certas definies das culpas que lhe interessavam. No raro aparecem relatos em que se percebe no confitente uma atitude tpica do pecador diante de confessores sacramentais, narrando pecadilhos que nada tinham a ver com a Inquisio. Talvez o confessassem por medo, s vezes para mostrar colaborao e ocultar as verdadeiras culpas, no raro por ingenuidade misturada ao pnico.

    O visitador, por sua vez, contribua para esta confuso entre as confisses que ouvia na mesa inquisitorial e o sacramento da confisso auricular: mandava indivduos se confessarem na sacramental aps ouvi-los em juzo e perguntava sobre confisses feitas a confessores na Quaresma. Mas o certo que as confisses da visitao inquisitorial eram completamente distintas da confisso sacramental que se fazia em confessionrio. Nas ltimas tratava-se de um sacramento nas quais o fiel narrava seus pecados e recebia a absolvio em troca de penitncias espirituais; nas primeiras tratava-se de contar erros de f, enganos conscientes de doutrina ou de comportamento que configuravam crimes, delitos passveis de pena secular, inclusive a morte na fogueira. A confisso sacramental, numa palavra, tratava de pecados; a confisso inquisitorial, equivalente a uma prova judiciria, tratava de heresias.

    O leitor tambm encontrar no livro confisses que mais parecem denncias, pois, a despeito dos prprios erros, o confitente se esmera em acusar outros indivduos de culpas semelhantes ou de cumplicidade, quando no transfere a outrem a iniciativa ou responsabilidade pelas suas faltas. E tambm neste ponto o visitador soube orquestrar os relatos, perguntando sobre cmplices, sobre quem ensinara o confitente a errar ou a quem repassara a errnea opinio ou conduta heretical. Tudo isto fazia parte dos estilos do Tribunal de que se valeu a nossa visitao.

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  • Salta vista, de todo modo, o nervosismo, s vezes pnico, dos que aparecem confessando neste livro, coisa que a o registro frio do notrio no consegue ocultar do leitor sensvel. Pnico tanto mais eloquente quanto menos ameadores seriam os resultados dessas confisses, a imensa maioria feita no chamado perodo da graa, tempo em que as confisses, desde que completas e verdadeiras, isentavam o culpado dos piores castigos que a Inquisio soa dar: confiscos, penas seculares, morte na fogueira.

    Heitor Furtado deu trinta dias de graa os moradores de Salvador e arredores em 28 de julho de 1591, e depois os mesmos trinta dias para a gente do recncavo, em 11 de fevereiro de 1592. Nem por isso, vale dizer, ficaram os fiis sossegados, a julgar pelos relatos que fizeram. E no resta dvida de que tinham razo para temer, pois no poucos dos confitentes no perodo da graa acabariam presos, processados e penitenciados, o que tambm em nota procuraremos informar. Alguns caram na teia do visitador porque contaram menos do que deviam e foram denunciados; outros porque mentiram deliberadamente ou perjuraram. Mas muito difcil ajuizar sobre cada uma dessas situaes, pois era mesmo ao arbtrio e juzo do visitador que, em ltima instncia, estavam todos sujeitos.

    No demais lembrar, a propsito, que Heitor Furtado de Mendona andou extrapolando as instrues que recebera do Cardeal Alberto, as quais lhe investiam do poder de, sobretudo, instruir os processos cabveis, remetendo os suspeitos para Lisboa, e s despachando os casos mais simples. Mandou prender suspeitos sem licena do Conselho Geral do Santo Ofcio, orgo mximo da Inquisio Portuguesa; processou na colnia rus que deveriam ser julgados na metrpole; enviou a ferros para Lisboa rus com processos mal instrudos; absolveu indivduos com grave presuno de culpa, segundo os inquisidores de Lisboa; sentenciou gente que o Conselho considerava inocente; realizou, enfim, verdadeiros autos de f pblicos, sem ter autorizao para tanto, embora no tenha condenado ningum fogueira de moto prprio.

    Perturbou bastante o nosso primeiro visitador a enormidade de confisses e denncias que ouviu, no s na Bahia como no conjunto das capitanias que percorreu. Casos de cristos novos judaizantes, coisa j por ele esperada, e uma pliade de blasfemos, defensores do direito fornicao, detratores do clero, sodomitas, bgamos,

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  • e sobretudo _ e isto sim o pegou desprevenido _, uma tropa de mamelucos praticantes de gentilidades e uma autntica heresia indgena, chamada na Bahia de Santidade. Seita que prognosticava a morte dos brancos e ou a escravizao dos portugueses pelos ndios. Seita em tudo surpreendente, na qual o lder se intitulava de Papa e nomeava bispos e santos ndios, embora o fundamental do culto residisse na adorao de um dolo de pedra e na embriaguez com tabaco, a erva santa. Seita para ele desconcertante porque, no obstante hostilizasse os brancos, os jesuitas e a escravido, fora incrivelmente protegida por um senhor escravocrata do Recncavo, Ferno Cabral de Tade, que chegou a abrig-la nas suas terras de Jaguaripe. O processo que o visitador moveu contra este homem ultrapassa no manuscrito, a casa de 200 flios, pea comparvel ao livro das confisses que ora se publica, e sem dvida foi este caso que fez Heitor Furtado tardar na Bahia mais tempo que devia.

    Por isso e por tudo, o visitador foi diversas vezes advertido pelo Cardeal Alberto mas, parecendo contagiado pela prepotncia dos senhores da terra, dos quais se tornou por alguns anos o primus inter pares, fez ouvidos moucos s advertncias. Acabaria, por isso, e pelas despesas que fez alm dos recursos de que dispunha, recambiado para o reino sem visitar as capitanias do sul e os bispados de So Tom e Cabo Verde, conforme o previsto em 1591.

    Sua passagem pelo nordeste braslico deixou, no entanto, marcas profundas. Contribuiu para dissolver as sociabilidades entre cristos velhos e novos, s vezes unidos pelo casamento, e no mais agregados pelo destino comum de viver nas fronteiras da Europa, como diria Srgio Buarque, espremidos entre a pirataria de ingleses e franceses no mar, e a resistncia indgena no serto. Contribuiu a visitao para desfazer amizades, solidariedades vicinais, amores, chegando mesmo a destruir famlias e grupos de convvio.

    Vergou-se, no entanto, a certas peculiaridades do viver em colnias, ao teatro dos vcios, como diria Vilhena, descrevendo a Bahia quase duzentos anos depois. Poupou os potentados locais, os raros incriminados, com exceo de alguns cristos novos. Poupou Ferno Cabral, o protetor da heresia indgena, de pena mais gravosa, considerando sua fidalquia e foro nobre como atenuante da culpa, ele que, entre outros feitos, lanara viva na fornalha de seu engenho uma escrava grvida do gentio do Brasil. Sentenciou diversos mamelucos a no retornarem mais ao serto, para depois determinar, como norma geral, que pudessem eles adentrar os matos no caso de terem de combater alguma santidade nativa, buscar metais preciosos, dar reforo de guerra, descobrir minas de salitre e enxofre. Heitor Furtado de Mendona vergou-se, no resta dvida, ao sentido da colonizao de que fala Caio Prado Jr.

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  • O leitor encontrar neste livro, portanto, no apenas o modus faciendi inquisitorial no ultramar, mas o prprio cotidiano do Brasil no primeiro sculo. A prepotncia dos senhores, a revolta dos ndios, chamados na poca de negros da terra, brasis, negros brasis, gentios. A palavra negro, mostra-nos alis as confisses, refere-se antes de tudo ao ndio, salvo quando especificado na expresso negro da Guin, termo genrico para aludir ao africano. Encontrar o leitor a ambivalncia e a intrepidez dos mamelucos, originalmente grafados e chamados de mamalucos, filhos de portugus e ndia, homens cujos riscos na pele indicavam sua vivncia indgena, a bravura de guerreiros que aprisionavam inimigos devorados no repasto antropofgico. Homens que ora guerreavam contra os lusos, pintados e nus, ora os auxiliavam na captura de escravos, e nisto tratavam com outros ndios, aos quais davam armas, plvora, ferros. Eram os chamados resgates ou descimento dos gentios que faziam do serto. Serto que, por sinal, nada tem a ver com a zona rida e seca do nordeste: serto era a floresta, a selva; era o interior onde se refugiavam os ndios, qui as riquezas to cobiadas pelos portugueses. Encontrar os degredados, palavra que ento se grafava degradados, e nisso se era fiel ao timo, derivada de degradar, baixar de grau.

    Entre o serto e o litoral, a floresta e o mar, o leitor encontrar por estes caminhos os colonos do primeiro sculo, brancos, ndios, mamelucos, africanos. Encontra-los-, porm, diversos deles, em espaos mais longnquos e remotos: em Portugal, na ndia, na frica e disto extrair a lio de que o Brasil no pode ser entendido, na poca, fora dos quadros do imprio colonial portugus. Encontra-los- tambm nas ndias de Castela, bem como castelhanos no Brasil, no esquecendo que era tempo de Unio Ibrica. Encontra-los- mesmo na Inglaterra e Frana, capturados pelos piratas na costa do Brasil, no meio do Atlntico, na altura das Canrias e at mesmo nas proximidades do reino. Um ir-e-vir permanente, eis o destino dos que viveram naquele tempo.

    Por outro lado, retornando dos oceanos e finisterras terra braslica, o leitor seguir de perto, e muito, a vida cotidiana da colnia: os mexericos, amores, adultrios, improprrios, magias, bebidas afrodisacas, nos modos de morar e dormir, redes e esteiras, casas devassadas, frestas na porta, ruas desalinhadas com seus peculiares pontos de referncia no lugar de nomes: atrs da Misericridia (da Santa Casa), rua de So Francisco ou junto de So Bento (aluso aos mosteiros),rua de Bastio de Faria (onde morava um principal da cidade de Salvador). Encontrar, enfim,

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  • um tipo diferente de memria individual, memria capaz de registrar com algum detalhe fatos de vinte ou trinta anos passados, porm imprecisa na indicao da prpria idade pessoal: trinta anos pouco mais ou menos, eis um exemplo comum de as pessoas aludirem prpria idade numa poca em que no se usavam documentos individuais de identificao. O leitor conviver, enfim, com palavras muito familiares, por vezes chulas at hoje, e outras muito estranhas, meio portuguesas, meio galegas, s vezes castelhanas, muitas vezes tupis _ sem falar nas que hoje significam algo bem distinto do que no tempo da visitao.

    Este livro de confisses tambm, por tudo isso, um livro de viagem. Viagem a mltiplos lugares, viagem no tempo _ tempo de visitao inquisitorial que tambm uma visitao ao Brasil antigo, melhor dizendo, arcaico. Os relatos contidos no livro podero por vezes causar uma sensao de estranheza quanto ao modo de viver, de falar, de pensar. Mas o aparentemente estranho verdadeiramente nosso, na forjadura de nosso primeiro sculo. Incluir as confisses da Bahia, triste Bahia, na coleo Retratos do Brasil , assim, mais do que justo. Pois as confisses so tambm retratos do que foramos, retratos to fiis quanto podem ser os documentos e os monumentos.

    BIBLIOGRAFIA

    - Abreu, Capistrano de. Um visitador do Santo Ofcio cidade de Salvador e ao Recncavo da Bahia de Todos os Santos. Rio de Janeiro, Jornal do Comrcio, 1922.- Arajo, Emanuel. O teatro dos vcios: transgresso e transigncia na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro, Jos Olympio/Edunb, 1993.- Bethencourt, Francisco. Histria das Inquisies: Portugal, Espanha, Itlia. Lisboa, Crculo dos Leitores, 1994.- Calasans, Jos. Ferno Cabral de Tade e a Santidade de Jaguaripe. Salvador, s/ed., 1952.- Holanda, Srgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. So Paulo, Companhia das Letras, 1995.

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    CRONOLOGIA

    1492 - Colombo desembarca nas Antilhas e descobre a Amrica. Os judeus no convertidos ao catolicismo so expulsos de Castela e Arago e dezenas de milhares se dirigem para Portugal.

    1497 - D. Manuel I (1495-1521) determina a converso forada ou de todos os judeus de Portugal.

    1498 - Vasco da Gama chega a Calicut, na ndia.

    1499 - Os cristos novos so impedidos de deixar Portugal sem licena rgia.

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  • 1500 - Pedro lvares Cabral desembarca em Porto Seguro na escala para a ndia. Primeiro contato entre portugueses e tupinambs.

    1501 - Arrendamento do comrcio do pau-brasil ao cristo novo Fernando de Noronha.

    1517 - Na Alemanha, Martim Lutero afixa suas 97 teses na Catedral de Wittemberg, deflagrando o incio da Reforma Protestante.

    1521 - Morte de D.Manoel e ascenso de D. Joo III (1495-1557) ao trono portugus

    1532 - Martim Afonso de Sousa funda So Vicente, a primeira vila da Amrica Portuguesa, e introduz o plantio das primeiras mudas de cana-de-acar

    1534 - D. Joo III institui o regime de capitanias hereditrias para o povoamento e explorao econmica do litoral do Brasil. Na Espanha, Incio de Loyola funda a Companhia de Jesus, autorizada pelo Papa Paulo III atravs da Bula Regimini Militantis Eclesiae.

    1536 - Paulo III concede a autorizao pontifcia para a criao da Inquisio Portuguesa atravs da Bula Cum ad nihil magis.

    1545 - Inicia-se o Conclio de Trento, marco da reao papal reforma protestante, conhecida como Contra Reforma.

    1546 - Pero do Campo Tourinho, donatrio de Porto Seguro, preso por clrigos e seculares no Brasil e enviado a ferros para a Inquisio de Lisboa, sob acusaes de blasfmia.

    1547 - Aps uma srie de percalos, incluindo a revogao da Bula de 1536, Paulo III confirma a autorizao para o funcionamento da Inquisio Portuguesa atravs da Bula Medidatio Cordis.

    1549 - Tom de Sousa desembarca na Bahia como primeiro Governador-geral do Brasil e com ele chegam os primeiros missionrios jesutas, frente dos quais Manoel da Nbrega. Fundada a cidade de Salvador.

    1551 - Funda-se o Bispado da Bahia, sendo nomeado para o cargo Pero Fernandes Sardinha. Faleceu o primeiro bispo no litoral de Alagoas, capturado e devorado pelos ndios aps o naufrgio da nau N.Senhora da Ajuda.

    1552 - Publicado o primeiro Regimento da Inquisio Portuguesa.

    1553 - Duarte da Costa nomeado para o Governo-geral do Brasil.

    1555 - Henrique II, rei de Frana, envia Nicolau Durand de Villegaignon baa da Guanabara, numa expedio de cerca de 600 pessoas, majoritariamente calvinistas (huguenotes). Funda-se a Frana Antrtica no Rio de Janeiro

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  • 1557 - Morre D. Joo III e, na menoridade de seu neto e herdeiro, D. Sebastio, Portugal governado pela Regente D. Catarina de Arago e, depois, pelo Regente Cardeal D. Henrique, Inquisidor-mor de Portugal.

    1558 - Mem de S substitui Duarte da Costa no Governo-Geral do Brasil. Combate e derrota os franceses e seus aliados indgenas. Falece no cargo, em 1572

    1560 - Joo de Cointa, o senhor de Bols, francs que se passou para o lado portugus no cerco ao forte Coligny, no Rio de Janeiro, preso e enviado para a Inquisio de Lisboa sob acusao de vrias heresias. Condenado ao degredo na ndia. Na ndia, criado o Tribunal do Santo Ofcio de Goa.

    1568 - D. Sebastio ascende ao trono portugus.

    1578 - Morre o rei D. Sebastio na batalha de Alccer-Quibir contra o xarifado dos sadidas, no Marrocos, sem deixar herdeiros. Ascende ao trono o Cardeal D. Henrique.

    1580 - Com a morte do Cardeal D. Henrique, Felipe II de Espanha assume o trono portugus como Felipe I. D-se a Unio Ibrica, que perdurar at 1640.

    1588 - A Invencvel Armada espanhola derrotada pelos ingleses no Mar do Norte.

    1591 - O Conselho Geral do Santo Ofcio, chefiado pelo Inquisidor Geral, Cardeal Alberto de ustria, Vice-Rei de Portugal, emvia a visitao ao Brasil, confiada a Heitor Furtado de Mendona. Outra visitao do Santo Ofcio enviada aos Aores a Madeira, confiando-se-a a Jernimo Teixeira.

    1593 - Encerra-se a etapa baiana da visitao do Santo Ofcio ao Brasil. Heitor Furtado de Mendona passa a visitar as capitanias de Pernambuco, Paraba e Itamarac.

    1595 - Encerrada a Visitao do Santo Ofcio ao Brasil.

    1596 - Enviada uma visitao do Santo Ofcio para Angola, confiada ao Padre Jorge Pereira.

    1597 - Morre Jos de Anchieta.

    Confisses da Bahia(1591-1592)

    Na Bahia de Todos os Santos

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  • Incio do perodo de 30 dias da graa que o visitador concedeu cidade e a todos os moradores, estantes e vizinhos at uma lgua em seu redor, a partir de 29 de julho de 1591, E se publicou na S de Salvador o dito da dita graa e o alvar de Sua Magestade, perdoando as fazendas e as pessoas que , no dito tempo, fizerem inteira e verdadeira confisso de suas culpas.

    Confisses da Cidade

    1 - Confisso de Frutuoso lvares, vigario de Matoim, no tempo da graa, em 29 de julho de 1591

    Aos vinte e nove dias do ms de julho de mil novecentos e noventa e um anos, nas casas de morada do senhor Visitador Heitor Furtado de Mendona, perante ele apareceu em esta mesa o Padre Frutuoso lvares, vigrio de Nossa Senhora da Piedade de Matoim, dizendo que tinha que confessar nesta mesa, sem ser chamado.

    Pelo que lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos em que ps sua mo direita, sob cargo do qual prometeu dizer verdade.

    E, confessando-se, disse que de quinze anos a esta parte que h que est nesta Capitania da Bahia de Todos os Santos, cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos1 com algumas quarenta pessoas pouco mais ou menos, abraando, beijando, a saber, com Cristovo de Aguiar, mancebo de dezoito anos, ento que era ora a dous ou trs anos, filho de Pero dAguiar, morador na dita sua freguesia, teve tocamentos com as mos em suas naturas ajuntando a uma com a outra e havendo poluo2 da parte do dito mancebo duas vezes

    E assim tambm tocou no membro desonesto a Antnio, moo de dezessete anos, criado ou sobrinho de um mercador que mora nesta cidade que chamam Fuo3 de Siqueira e com este moo no houve poluo, haver um ms ou pouco mais ou menos.

    E assim tambm teve congresso por diante ajuntando os membros desonestos um com outro sem haver poluo com um mancebo castelhano que chamam Medina, de idade de dezoito anos, morador que era na ilha de Mar, sendo feitor do mestre de capela desta cidade, e por outra vez com este mesmo teve abraos e beijos e tocamentos nos rostos, e isto com este castelhano foi h trs ou quatro anos.

    E assim com outros muitos moos e mancebos que no conhece nem sabe os nomes, nem onde ora estejam, teve tocamentos desonestos e torpes em suas naturas e abraos, e beijando, e tendo ajuntamento por diante e dormindo com alguns algumas 1 - A palavra desonestidade mantinha, na poca, forte conotao de indecncia ou sensualidade, de sorte que tocamentos desonestos significavam tocamentos sensuais, indecentes. O mesmo vale para a expresso membro desonesto, recorrente nas confisses de sodomia, termo alusivo ao pnis.2 - Poluo ou cumprimento era clich inquisitorial e eclesistico que significava ejaculao ou orgasmo sexual. Para as mulheres usava-se muito o termo deleitao.3 - Fuo a forma arcaica de fulano.

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  • vezes na cama, e tendo cometimentos alguns pelo vaso traseiro4 com alguns deles, sendo ele o agente5, e consentindo que eles o cometessem a ele pelo seu vaso traseiro, sendo ele o paciente, lanando-se de barriga para baixo e pondo em cima de si os moos e lanando tambm os moos com a barriga para baixo, pondo-se ele confessante em cima deles, cometendo com seu membro os vasos traseiros deles e fazendo da sua parte por efetuar, posto que6 nunca efetuou o pecado de sodomia penetrando.

    E, em especial, lhe lembra que cometeu isto desta maneira algumas dez vezes nesta cidade onde ele ora vigrio com um moo que chamam Gernimo, que ento podia ser de idade de doze ou treze ano, e isto poder haver como dois ou trs anos, o qual moo irmo do cnego Manuel Viegas, que ora estudante nesta cidade.

    E assim tambm lhe aconteceu isto com outros muitos moos e mancebos a que no sabe os nomes, nem onde esto, nem suas confrontaes que acaso iam ter com ele.

    E declarou que na visitao que fez o provisor o ano passado, houve quem foi denunciar dele, acusando-o desta matria, e que no se procedeu contra ele por no haver prova bastante.

    E sendo perguntado, respondeu que nenhuma pessoa lhe viu cometer as ditas culpas de que se confessa.

    E perguntado se dizia ele a estas pessoas com quem pecava que cometer aquelas torpezas no era pecado, respondeu que no, mas que alguns deles entendiam ser pecado, e alguns, por serem pequenos, o no entenderiam, mas que ele confessante sabe muito bem quo grandes pecados sejam estes que tem cometido, e deles est muito arrependido e pede perdo, e do costume disse nada.

    E foi admoestado que se afaste da conversao destas pessoas e de qualquer outra que lhe possa causar dano em sua alma, sendo certo que fazendo o contrrio ser gravemente castigado, e lhe foi mandado que torne a esta mesa no ms que vem, e assinou aqui com o senhor visitador.

    E pelo dito juramento declarou que cristo velho de todos os costados e natural de Braga, filho de Janaluarez, picheleiro7, e de Maria Gonalves, j defuntos.

    E que na dita cidade de Braga, h vinte e tantos anos, cometeu ele e consumou o pecado de sodomia uma vez com um Francisco Dias, estudante, filho de Aires Dias, serralheiro, metendo seu membro desonesto pelo vaso traseiro, dormindo com ele por detrs como um homem dorme por diante com uma mulher pelo vaso natural.

    4 - Vaso traseiro, na linguagem inquisitorial: nus.5 - No jargo inquisitorial e eclesistico, agente era o que penetrava o parceiro (a) e paciente era o penetrado (a). a forma arcaica de designar ativo/passivo no mesmo contexto.6 - Posto que no tinha valor explicativo, na poca, mas adversativo: ainda que, apesar de que.7 - Arteso que fazia vasos de estanho e de folha (lata) de Flandres.

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  • E assim cometeu os tocamentos desonestos com outras pessoas pelo qual foi denunciado pelo Ordinrio8 na dita cidade e foi degredado para as gals e, sem cumprir o dito degredo, foi ao Cabo Verde onde tambm foi acusado por tocamentos torpes que teve com dois mancebos e por apresentar uma demissria falsa, pelo que foi enviado preso para Lisboa, onde pelas ditas culpas foi sentenciado e condenado em degredo para sempre nestas partes do Brasil.

    E estando nesta cidade foi tambm acusado pelo mesmo pecado que cometeu com Diogo Martins, que ora casado com a padeira Pinheira, moradora nesta cidade junto de Nossa Senhora de Ajuda, de que saiu absoluto por no haver culpa.

    E outrossim, foi acusado nesta cidade por quatro ou cinco testemunhas com quem teve os ditos tocamentos desonestos, Antnio lvares, Manuel lvares, seu irmo, os quais ora so mestres de acar, e os mais que no conhece, nem sabe deles, e deste caso saiu condenado pela cuniaria que pagou e em suspensao das ordens por certo tempo que j lhe levantada.

    E por no dizer mais o Senhor visitador o admoestou muito que, pois era sacerdote e pastor de almas, e to velho, pois disse que de sessenta e cinco anos pouco mais ou menos, e tem passado tantos atos torpes em ofensa de Deus Nosso Senhor, e ainda h um s ms que os deixou de cometer, que se afaste deles e das ruins ocasies, e torne a esta mesa no dito tempo que lhe est mandado, e ele disse que assim o faria e assinou aqui. Manuel Francisco, Notrio do Santo Ofcio o escrevi _ Heitor Furtado de Mendona - Frutuoso lvares.

    2 - Confisso de Nicolau Faleiro de Vasconcelos, cristo velho, na qual diz contra sua mulher dona Ana (Alcoforado), crist nova, no tempo da graa, em 29 de julho de 1591.

    Disse que haver ano e meio pouco mais ou menos que, falecendo-lhe em sua casa seu escravo, sua mulher dele denunciante lhe disse que era bom vazar fora a gua dos cntaros, e que ele lhe respondeu que isso eram agouros, que no cresse neles, e no lembrado se a deitaram ento fora.

    E que, depois disso, haver obra de sete ou oito meses que lhe faleceu em casa outro seu escravo e ento, vindo ele de fora, perguntara dita sua mulher se lanara j fora a gua dos cntaros, e ela lhe respondeu que sim, e ele confessante nesta segunda vez consentiu e aprovou o dito derramamento da gua dos cntaros, porm que ele no entendeu ser isto cerimnia dos judeus, nem o consentiu com essa inteno, nem sabe com que inteno lanava fora a dita gua a dita sua mulher.

    8 - Ordinrio: Bispo.

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  • E declarou que ele se chama como dito tem e cristo velho de todas as partes, natural da capitania dos Ilhus neste Brasil, de idade de trinta e sete anos pouco mais ou menos, morador em Matoim, casado com a dita sua mulher que se chama dona Ana, que dizem ser crist nova da parte de sua me, de idade de vinte e seis anos pouco mais ou menos, filha de Antnio Alcoforado, defunto, cristo velho segundo dizem, e filha de Isabel Antunes, defunta, crist nova, a qual Isabel Antunes foi filha de Heitor Antunes, mercador e morador que foi de Matoim, o qual ouviu dizer que tinha um Alvar dos Macabeus9.

    E por no dizer mais, o dito senhor visitador lhe disse que no parece credvel que, sendo to conhecida a cerimnia de botar a gua fora, e sendo ele de to bom entendimento, consentise nela seno com a inteno da lei de Moiss, que portanto admoesta com muita caridade que confesse a verdade de sua culpa e a inteno que teve em consentir na dita cerimnia de lei de Moiss, porque fazendo-o assim esta em tempo de graa, receber larga misericrdia.

    E ele respondeu que tem dito a verdade, que ele no sabia ser aquilo cerimnia de judeus, mas que ontem (28 de julho), ouviu na s publicar o dito da f e ouviu ler nela esta cerimnia, e por isso a entendeu e se soube, e vem agora a acusar-se nesta mesa e pedir nela misericrdia.

    E mais no disse e do costume10 disse o que dito tem, e que est bem casado e amigo com a dita sua mulher, e foi-lhe mandado ter segredo sob cargo de juramento que recebeu, e ele assim o prometeu, e foi-lhe mandado que tornasse a esta mesa por todo esse ms de agosto que vem.

    E declarou, sendo perguntado, que a dita sua mulher dona Ana nunca lhe disse, nem fez coisa em que entendesse dela m inteno contra nossa santa f catlica, rezando a nossa senhora e fazendo romarias e devoo, e jejuando s vesperas de Nossa Senhora e fazendo esmolas e obras de que teme a Deus, e a tem por muito boa crist e venturosa.

    E assinou aqui com ele o senhor visitador e declarou mais que a dita sua mulher e as primas e tias delas so casadas com homens fidalgos e principais e cristos velhos e que, por elas serem virtuosas, casaram to bem.

    3 - Confisso de Ferno Gomes, cristo novo, no tempo da graa, em 30 de julho de 1591

    Disse ele que cristo novo de pai e de me, natural da Vila real, filho de Lanarote Gomes, alfaiate, e de sua mulher Leonor, defuntos, casado com Guiomar Lopes Dias, de idade de sessenta anos pouco mais ou menos, morador nesta cidade detrs da S.

    9 - Ttulo de um dos livros sagrados dos judeus que conta a histria dos sete vares deste nome.10 - Quando os inquisidores perguntavam do costume, queriam saber o tipo de relao que o denunciante ou confitente mantinha com o acusado ou cmplice, isto , se eram amigos ou inimigos, se havia pendncia de dvida entre eles, etc.

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  • Que haver dois anos e meio pouco mais ou menos que dentro na igreja de Nossa Senhora da Ajuda desta cidade, para a qual ele costumava a tirar esmola, e vindo ele dita igreja, onde por suas ocupaes havia alguns dias que ele no tinha vindo tirar a dita esmola e administrar o servio da dita nossa senhora, e achando que no dito tempo da sua falta no se havia tirado a dita esmola, nem se tinha procurado tanto o servio do altar da dita senhora, ele confessante disse perante algumas pessoas que lhe no lembram estas palavras, coitado do servio de Nossa Senhora se eu no fosse, e que destas palavras pedia perdo dentro neste tempo de graa, e que declarava que algumas pessoas lhe dizem que ele confessante no disse tal palavra.

    E outrossim, confessando-se, disse que haver nove anos pouco mais ou menos que, nesta cidade, em casa de Besuarte de Andrade, levando-lhe ele uma obra, vindo a falar sobre ela, ele confessante disse eu sou alfaiate que no furto e neste caso no devo nada a nenhum homem, nem mulher, nem minha alma, nem a Deus, e que estas so as palavras que ele disse e que delas pedia perdo neste tempo da graa.

    E declarou que ele ouviu depois dizer que ele que dissera que no, digo, que logo o dito Besuarte de Andrade lhe disse logo no sois vs to cristo velho que digais que no deveis nada a Deus, mas que ele confessante, quando disse que no devia nada a Deus era com inteno de no furtar em seu ofcio.

    E mais no disse e lhe foi mandado que muito resguardo em suas palavras e diga sempre palavras de bom e verdadeiro cristo.

    4 - Confisso de Baltazar Martins Florena, cristo velho, de se casar duas vezes. No tempo da graa, em 31 de julho de 1591.

    Disse chamar-se do dito nome e ser cristo velho, natural das Florenas, termo da vila de Calheta, na ilha da Madeira, filho de Gaspar Martins Preto e de Violante de Florena dAbreu, defuntos, mestre de acar11, de idade de quarenta e dois anos, morador em Cotegipe nesta capitania.

    E confessando-se, disse que haver vinte e seis anos que ele recebeu por sua mulher, na cidade do Funchal da ilha da Madeira, Isabel Nunes de Grados, natural da dita cidade, filha de Francisco Pinto de S, defunto, dentro da S da dita cidade, e os recebeu o cura que ento era na dita S, cujo nome lhe no lembra, e ele confessante, disse as palavras do matrimnio que recebia a dita Isabel Nunes por sua mulher como manda a Santa Igreja, e outrossim, dizendo ela que recebia a ele por marido como manda a Santa Madre Igreja, e foram padrinhos e madrinhas que os acompanharam no dito recebimento Manuel Florena, cidado12, e Gonalo Rodrigues Jardim, cidado,

    11 - Mestre de acar era um trabalhador especializado, via de regra assalariado, nos engenhos coloniais.12 - Cidado era palavra usada para designar indivduos que tinham assento na Cmara Municipal (Senado da Cmara ou Conselho Municipal) das cidades ou ocupavam cargos na administrao das municipalidades.

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  • moradores na dita cidade, e assim madrinhas e outras testemunhas foram presentes, cujos nomes lhe no lembra.

    E depois de assim serem recebidos, fizeram vida marital de umas portas adentro por espao de seis meses, e sendo passados os ditos seis meses, veio a notcia, dele confessante, que a dita Isabel Nunes era casada com palavras de presente em face da igreja, na cidade de Tnger, com um Bento da Veiga.

    E que, sendo assim casados, o dito Bento da Veiga viera ilha da Madeira, e depois viera a tambm ter a dita Isabel Nunes e ambos na dita cidade do Funchal andaram em demanda perante o bispo, e ela fez prender o dito Bento da Veiga e, enfim, se deu sentena por ela em que se mandava ao dito Bento da Veiga fazer vida com ela, de que o dito Bento da Veiga apelou e depois no sabe ele confessante que fim houve a apelao.

    Viu ele confessante estar na dita cidade o dito Bento da Veiga com uma outra mulher que se chamava fulana Ferreira como casados, de uma porta adentro, e por tais eram tidos.

    E sem ele confessante saber que o dito Bento da Veiga tinha passado o dito casamento com a dita Isabel Nunes, ele confessante se havia casado com ela como dito tem.

    E vindo o sobredito sua notcia e, outrossim, vindo sua notcia que, alm do parentesco do quarto grau13 em que estavam, de sua av dela Isabel Nunes Florena ser prima como irm de Manuel de Florena, av dele confessante, do qual j tinham dispensao do nncio, tinham mais outro impedimento de parentesco no quarto grau por parte do av dela Aires Preto de S, primo com irmo de Constana Anes Preta, avs dele confessante, ele confessante se veio para estas partes do Brasil e deixou a sua mulher Isabel Nunes.

    E depois dele confessante estar nestas partes do Brasil seis ou sete anos, veio sua notcia que a dita sua mulher fazia mal de si14, e sabendo ele bem que ela estava viva, ele se casou nesta vila velha, digo, em Vila Velha desta capitania com Susana Borges Pereira, filha de Ferno Borges Pacheco, comendador da Facha, em Ponte de Lima de Santo Estevo, em Portugal, j defunto, e a recebeu na igreja de Vila Velha com ele o vigrio que ento era, Maral Rodrigues, na forma que se costumam receber, dizendo as palavras de presente como se ele no tivera a dita sua primeira mulher ainda viva, e neste segundo casamento foram padrinhos e madrinhas Ferno Cabral de Tade e Bastio de Faria, Maria Barbosa, defunta, mulher que foi de Francisco de barbudo, e sua irem Violante Barbosa, mulher de Francisco Rodrigues Dourens, todos moradores nesta capitania, e outras muitas testemunhas foram presentes neste segundo casamento, como Francisco dArajo e Francisco de Barbudo, moradores nesta cidade, e outros, e depois de assim estar recebido, esteve com ela como casados alguns seis ou sete anos, havendo dela filhos.

    13 - A Igreja proibia o matrimnio entre parentes at o quarto grau de consaguinidade.14 - Fazer mal de si equivalia a cometer adultrio ou manter relaes sexuais ilcitas.

    23

  • E sabendo-se isto na dita ilha da Madeira, a dita sua primeira mulher, Isabel Nunes, enviou a esta cidade um precatrio do bispo pelo qual ele foi mandado sentenciado em dois anos de degredo para gals, e que fizesse vida com a primeira mulher, ele confessante, antes de cumprir isto, fugiu da cadeia.

    E andando ausente, da a dois anos, lhe foi dito que a dita sua primeira mulher era falecida, pelo que se tornou a esta cidade e sem fazer, antes de vir, mais diligncia sobre a dita morte, se tornou receber de novo com a dita Susana Borges Pereira, com a qual tornou a estar de umas portas adentro, fazendo vida marital, e os tornou a receber o cura que ento era da igreja de Cape, desta capitania, sendo o padrinho Diogo Correa de Sande, j defunto, e outras testemunhas que lhe no lembram, e declarou que este segundo recebimento da dita Susana Borges fez com licena do bispo desta cidade por lhe constar por testemunhas que a dita primeira mulher era j morta.

    E depois de assim estar recebido de novo com a dita Susana Borges, foi denunciado dele na visitao que fez o vigrio geral o ano passado, dizendo-se que, ainda ao tempo do derradeiro casamento, era viva a dita sua primeira mulher na ilha da Madeira, e por este caso est ora apartado da dita Susana Borges, e se livra perante o bispo nesta cidade, solto sobre fiana.

    E que toda a culpa que ele confessante neste caso tem cometida, pede perdo e misericrdia, pois se veio confessar neste tempo da graa, e que da culpa que tem est muito arrependido. E foi-lhe mandado que tivesse segredo sob cargo de juramento que recebeu, e do costume no disse mais do que tem dito. margem dos originais l-se: J sentenciado pelo Bispo e degredado.

    5 - Confisso de Pero Teixeira, cristo novo, no tempo da graa, em 2 de agosto de 1591

    Disse ser cristo novo, filho de Jorge Rodrigues Navarro e de Catarina Arana, moradores nazinhagua (sic), natural da Touguia, em Portugal, sapateiro, mercador, de idade de dezoito anos pouco mais ou menos, morador nesta cidade.

    E confessando, disse que haver dois meses que o bispo desta cidade o mandou prender e, depois de o ter preso trs ou quatro dias, o mandou soltar e ir perante si, e o repreendeu de palavra e lhe mandou dar quatro cruzados de esmola confraria do Santssimo Sacramento, dizendo que algumas testemunhas disseram que ele confessante tinha dito, havia dois ou trs anos, que uma bula que estava em uma igreja com os selos pendentes parecia carta de ditos com chocalhos pendurados, porm que ele confessante no lembrado formalmente que tais palavras dissesse, mas que como ele era moo as poderia dizer, simplesmente.

    Pelo que, caso as tenha dito, confessa sua culpa e, pois tempo de graa, pede perdo e misericrdia.

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  • 6 - Confisso de Ferno Cabral de Tade15, cristo velho, no tempo da graa, em 2 de agosto de 1591

    Disse ser cristo velho, natural da cidade de Silves no reino do Algarve, filho de Diogo Fernandes Cabral e de sua mulher Dona Ana d Almada, defuntos, casado com Dona Margarida da Costa, de idade de cinquenta anos, morador na sua fazenda de Jaguaripe nesta capitania.

    E confessando, disse que haver seis anos pouco mais ou menos que se levantou um gentio no serto com uma nova seita que chamavam Santidade, havendo um que se chamava papa e uma gentia que se chamava me de Deus, e o sacristo, e tinham um dolo a que chamavam Maria16 que era uma figura de pedra que nem demonstrava ser uma figura de homem nem de mulher, nem de outro animal, ao qual adoravam e rezavam certas coisas per contas e penduravam na casa que chamavam igreja umas tboas com uns riscos que diziam que eram contas bentas e assim, ao seu modo, contrafaziam o culto divino dos cristos.

    E estando este gentio assim alevantado, ele confessante mandou gente de armas17 para o fazerem vir do serto com a qual gente se veio grande parte do gentio, ficando l o que chamavam o Papa, e ele, confessante, consentiu que o dito gentio se apresentasse em uma em uma sua aldeia dentro da dita sua fazenda, onde morador, e nela se apresentou o gentio e fez casa a que se chamavam igreja, onde puseram o dolo e faziam suas cerimnias como atrs fica dito.

    E uma vez foi ele confessante dita chamada igreja e entrou dentro, amimando e honrando aqueles gentios e tratando-os bem, porque no entendessem que lhes havia de fazer mal, e que isto consentiu por espao de trs meses pouco mais ou menos, at que, por mandado do governador Manuel Teles Barreto18, ele confessante mandou derrubar a dita chamada igreja e entregou ao dito governador o dito dolo e a dita gentia que chamavam me de Deus, com seu marido e com todos os mais escravos que na dita companhia desceram.

    E que sua notcia veio que algumas pessoas dizem que ele confessante, quando entrou na dita chamada igreja, fizera reverncia e tirara o chapu ao dito dolo, porm que ele confessante em sua memria no se afirma que tal fizesse, mas em que 15 - Preso e processado pelo visitador na prpria Bahia. Consideradas gravssimas suas culpas, atenuadas porm pelo seu foro nobre, bom sangue, condio de fidalgo e presuno de que seus erros eram exteriores, no implicando em desvio interior de f. Abjurou de leve suspeita na f na mesa da visitao, ouviu sua sentena de pblico na igreja, recebeu penitncias espirituais, pagou 1000 cruzados para o Santo Ofcio e foi degredado por dois anos para fora da Bahia. ANTT, IL, proc.17065. A pena pecuniria foi elevada, equivalendo ao preo de 20 escravos aricanos na poca.16 - Ferno Cabral mentiu nesta e noutras partes da confisso. O nome do dolo era Tupanasu, que significa Deus Grande17 - Vale cotejar com outras confisses, sobretudo como a de nmero 120, feita por Domingos Fernandes Nobre, o Tomacana, mameluco que chefiou a tal gente de armas mandada por Ferno Cabral ao serto.18 - Foi Governador Geral do Brasil entre 1583 e 1587.

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  • caso se ache que o fez pede perdo disso, e assim o pede de toda a mais culpa que neste caso cometeu como dito tem

    E outrossim, confessando, disse que uma noite, estando uma sua negra inchada de comer terra e quase para morrer, por fazer medo e terror aos outros que no comessem terra, disse a dois negros seus que a botassem na fornalha e, depois dele recolhido, os ditos negros a lanaram na fornalha onde se queimou.

    E por no dizer mais, foi perguntado que inteno teve de trazer e conservar em sua fazenda aquele gentio e aquela seita de idolatria, respondeu que sua inteno era tir-la e traz-la do serto para a extinguir, como de fato extinguiu a parte que veio dita sua aldeia.

    E sendo mais perguntado, disse que j na dita fazenda no h rastro deste modo de idolatria, e tudo se apagou como dito tem.

    E que quando disse aos escravos que queimassem a dita negra, a sua inteno era por lhe pr medo, a ela e aos outros, e no querer que a queimasse, e quando no dia seguinte o soube, lhe pesou muito.

    E disse mais, que para ajuda e prova da sua boa inteno acerca do dito negcio do gentio, apresentava ele, dito senhor visitador, uma certido do governador Manuel Teles Barreto, em que se reconta o caso, e o pediu a ele, senhor visitador a mandasse trasladar.

    E foi-lhe mandado ter segredo, o qual prometeu ter pelo juramento que recebeu e assinou com o senhor visitador, pedindo-lhe usasse com ele de misericrdia, pois vinha acusar e confessar dentro deste tempo de graa.

    7 - Confisso de Jorge Martins19, cristo velho, no tempo da graa, em 3 de agosto de 1591

    Disse ser cristo velho, cavaleiro da casa del Rei nosso senhor, natural da vila de Guimares, em Portugal, filho de Baltasar Martins e de sua mulher Leonor Vaz, defuntos, casado com Catarina Faia, de idade de setenta e cinco anos, morador na vila de So Jorge, capitania dos Ilhus.

    E confessando-se, disse que haver sessenta anos pouco mais ou menos que, na dita vila de Guimares, estava um mestre que ensinava moos gramtica que se chamava frei lvaro de Mono, que fora frade da ordem de So Francisco e se sara da ordem, mas que trazia vestido sempre o hbito da dita ordem, letrado e pregador, de idade de quarenta anos ento pouco mais ou menos, em cuja escola ele confessante aprendia gramtica.

    E que no se lembra mais se uma, se muitas vezes, que o dito mestre ensinou a todos os discpulos na escola que, quando se benzessem, disessem desta maneira In nomine, patris, descendo s a mo da testa at abaixo do peito, dizendo aquela dianteira do rosto at abaixo do peito, representava a pessoa do padre, ento et filli, pondo a mo no ombro direito, dizendo que representava o filho estar destra do 19 - Processado pelo visitador, apesar de confessar largamente na graa. Foi somente repreendido na mesa. ANTT, IL, proc.2551.

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  • padre, ento et spiritus sancti, pondo a mo no ombro esquerdo representava o esprito santo, e na boca, pondo uma cruz com os dedos, unus Deus, e alegava que no credo dizemos filium ejus, et qui sedet ad dexteram patris, e que David, no seu salmo diz dixit dominus domino meo sede adexteris meis, e no smbolo de Atanaseu, sedet ad dexteram dei patris, e noutros versos da igreja , qui sedes adexteram patris miserere nobis.

    E assim lhe ensinava o dito frade seu mestre que, quando se benzessem, haviam de nomear o filho destra, no ombro direito e no abaixo do peito, como Gensio Alfonso em um seu livro ensina, dizendo que o dito Gensio Alfonso no era santo, nem se lhe havia de dar mais crdito que s sobreditas autoridades, e que ainda que o outro modo de benzer de que os cristos todos usam, nomeando o padre na testa e o filho no peito bom, contudo melhor era este outro modo que ele ensinava, nomeando o filho destra.

    E depois que ouviu esta doutrina, ele confessante sempre usou do dito modo de benzer, nomeando o filho no ombro direito, at que haver quatro ou cinco anos, segundo sua lembrana, que, ouvindo uma pregao na vila dos Ilhus de um padre da Companhia de Jesus, lhe ouviu dizer nela que Deus no tinha mo direita nem esquerda, e ouvindo ele isto foi ao mosteiro falar com o dito pregador e outros padres e lhes declarou este escrpulo, e eles lhe ensinaram que deixasse o dito modo de benzer e que se benzesse da maneira que os cristos todos se benzem, nomeando o padre na testa e o filho no peito, e depois dos ditos padres dizerem isto ele o fez assim sempre.

    Pelo que, se tem cometido culpa todo aquele tempo em se benzer daquela maneira que o dito frade seu mestre lhe ensinou, pede perdo disso, e que se use com ele de misericrdia, dando-se-lhe penitncia saldvel, conforme a este tempo que de graa.

    E, sendo perguntado, respondeu que no sabe de certeza se o dito frade vivo ou morto, e que se lembra que era tido em boa conta, e no sabe de que nao era, e do costume disse nada.

    8 - Confisso de Maria Lopes, crist nova, no tempo da graa, em 3 de agosto de 1591

    Disse ser crist nova, natural de Monssaraz, termo dvora em Portugal, filha de Ferno Lopes, alfaiate do duque de Bragana, e de sua mulher Branca Rodrigues, defuntos, viva, mulher que foi de Afonso Mendes, cirurgio del Rei, de idade de sessenta e cinco anos, moradora nesta cidade.

    E confessando-se, disse que em todo o tempo que teve casa at agora, quando mandava matar alguma galinha, para rechear ou para mandar de presente, a mandava degolar e, degolada, pendurar a escorrer o sangue por ficar mais formosa e

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  • enxuta do sangue, e que sempre, quando em sua casa se cozinha, digo se assa, quarto traseiro de carneiro ou porco, lhe manda tirar a landoa20 por que se assa melhor e fica mais tenro, e no se ajunta na landoa o sangue evacuado, e assim mais, quando a carne de porco magra, alguma vez a manda cozinhar lanando-lhe dentro azeite ou gros na panela com ela, e isto mesmo mandou fazer alguma vez carne de vaca quando era magra.

    E outrossim, disse que tinha nojo e asco s galinhas e qualquer outra ave que morria de doena.

    Disse mais, que quando morreu seu filho Manuel Afonso, cnego da s desta cidade, estando ela confessante no nojo21 e pranto pela morte do dito seu filho que ainda estava morto em casa, pediu um pcaro de gua e que Dona Leonor, mulher de Simo da Gama, defunto, moradora nesta cidade que presente estava, disse s outras mulheres que a estavam que aquela gua vinha de fora.

    Outrossim, disse que haver doze ou quinze anos que, saindo ela do confessionrio de se confessar no Colgio de Jesus, lhe disse Isabel Correa, que ora viva, mulher que foi de Francisco lvares Ferreira, moradora nesta cidade, que se confessava de muitas mentiras e malcias e pecados que nela havia, e depois disto veio notcia dela confessante que a dita Isabel Correa, trocando-lhe suas palavras, dizia que ela lhe dissera que ia confessar que tudo eram mentiras, porm que ela confessante no disse seno como dito tem.

    E assim, disse mais, que haver cinco anos, em dias das cadeias de So Pedro, no qual dia se costuma guardar nesta cidade, por estar esperando por um seu filho casado de pouco que vinha com sua mulher, ela confessante mandou caiar a casa tendo as portas abertas, sem m inteno de desprezo, mas por lhe vir nova que vinha o dito filho, por no acharem a casa suja.

    Outrossim, disse que haver ano e meio que, estando para comer com a mesa posta, chamando por um seu sobrinho por nome de Matias Rodrigues, que andava sempre com as contas na mo, ela confessante lhe disse, por algumas vezes, que no andasse sempre com as contas na mo que tempo havia de rezar e tempo de comer.

    E que todas as ditas coisas tem feito e dito sem malcia e m inteno, e sem saber que eram cerimnias de judeus, pelo que se algumas pessoas que dela sabem isto tm recebido escndalo, e tem cometido (ela) culpa no sobredito da maneira que diz, pede perdo e misericrdia e penitncia saldvel.

    E por no dizer mais, dizendo que lhe no lembrava mais nada, e que lembrando-lhe o viria confessar, foi-lhe dito pelo senhor visitador que algumas das ditas coisas eram conhecidas muito notoriamente serem cerimnias da lei de Moiss e,

    20 - O nico significado de landoa que encontramos para a poca fruto do carvalho ou azinheira, que servia para dar de comer aos porcos. Talvez landoa significasse, por associao, gordura das carnes. Gordura retirada no preparo das carnes cozidas e assadas.21 - Nojo significava tambm luto, neste contexto, de sorte que o luto pela morte de um parente ou morador da casa implicava a repugnncia pelo cadver ou pela morte de um ente querido.

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  • assim, o mandar trabalhar no dia santo, e dizerem dela que dizia confessar mentiras, e mandar tambm ao dito seu sobrinho que no rezasse sempre com as contas na mo, so coisas que mostram no ser ela boa crist, maiormente sendo ela mulher de to bom entendimento como , e que no de crer que ela no soubesse que fazer as ditas coisas do quarto de carneiro, tirando-lhe a landoa e de cozinhar a carne com azeite e gros eram cerimnias dos judeus, e que, portanto, com muita caridade admoesta que declare e confesse a verdade de suas culpas e a inteno que teve em fazer as ditas coisas porque, fazendo-o assim, est em tempo de graa no qual merecer larga misericrdia da Santa Madre Igreja.

    E respondeu que ela nas ditas coisas que tem declarado nunca teve inteno judaica, nem inteno do desprezo do dia santo, nem de ofender a Deus, mas que boa crist, e por mais no dizer lhe foi mandado que tenha segredo e assim o prometeu pelo juramento que tinha recebido.

    E do costume disse que houve grandes diferenas com a dita dona Leonor, e no se querem bem, e que a dita Isabel Correa e ela se no querem bem, declarou que disse que, em algum tempo, ela e as sobreditas estiveram muito mal e em dios, porm que ora j se tratam e conversam.

    E por saber assinar, assinou com o senhor visitador e declarou que, sendo perguntada pelo senhor visitador que mal entendeu ela da inteno de dona Leonor em dizer que o pcaro dgua lhe vinha de fora, respondeu que entendeu que a dita dona Leonor, por lhe no ter boa vontade, quiz dar sinal que no havia gua em casa, querendo dar a entender que ela confessante guardara a cerimnia dos judeus de lanar toda a gua fora quando algum morre em casa, mas que ela confessante no fez tal, nem sabe se gua lhe veio de fora, se de casa.

    9 - Confisso de Jernimo de Barros, cristo velho, no tempo da graa, em 4 de agosto de 1591

    Disse ser cristo velho, natural desta cidade, de idade de trinta anos, filho de Gaspar de Barros, j defunto, e de Catarina Loba, que ora casada segunda vez com Andr Monteiro, morador nesta cidade.

    E confessando-se, disse que haver trs anos pouco mais ou menos que o dito seu padrasto vendeu um pedao de terra, em Pass, a um Manuel Ferreira, morador em Pass, o qual comprador fez na dita terra lavoura de milho e algodo e sete tarefas de lenha.

    E que, porquanto o dito seu padrasto no tinha ainda feito partilhas com ele e com suas irms, da dita terra, um cunhado dele confessante por nome Pero Dias, lavrador em cuja casa ele agora morador, lhe disse que se fosse desforar, arrancando e danando toda a dita lavoura e obra do dito Manuel Ferreira.

    Pelo que, ele confessante, levou consigo a Bastio, negro de Guin e a Gonalo, Antnio Arda, Antnio Molec, Simo Egico, Pedro Ongico, Rodrigo Angola, Loureno Ongico, Joane Ongico, Duarte Angola, Cristovo Angola, todos negros da

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  • Guin, Francisco da Terra e Manuel da Terra, todos ao presente vivos, escravos cativos do dito seu cunhado Pero Dias, e outrossim um negro por nome Antnio de Guin, cativo tambm do dito seu cunhado, que haver quatro meses que o mataram.22

    E ele confessante, com todos os sobreditos, puseram o fogo nas ditas tarefas de lenha e arrancaram e destruiram toda a dita lavoura.

    E depois disto feito, o dito Manuel Ferreira tirou uma carta de excomunho, a qual se publicou, e nunca ele confessante nem os ditos ajudadores sairam dita excomunho, e do dito tempo at agora passaram j duas quaresmas, e nas confisses que ele confessante fez pela obrigao da Igreja, nunca confessou este pecado de ter feito o dito dano e o calou sempre, entendendo muito bem e remordendo-lhe a conscincia que o no calasse, e nunca declarou a dita excomunho e se deixou andar excomungado todo este tempo, que h mais de dois anos, e que desta culpa pede perdo e remdio saldvel, usando-se com ele de misericrdia.

    10- Confisso de Catarina Mendes, crist nova, no tempo de graa, em 5 de agosto de 1591

    Disse chamar-se do dito nome e ser crist nova, natural de Lisboa, filha de Ferno Lopes, alfaiate do duque de Bragana, e de sua mulher Branca Rodrigues, defuntos, casada com Antnio Serro, moradores nesta cidade, de idade de cinquenta e um anos.

    E confessando-se, disse que haver vinte e quatro anos que sendo ela j casada, indo visitar Luisa Correa, mulher de Pero Teixeira, j defunto, moradora em Toque Toque desta capitania, estando tambm presente Paula Serro, mulher que foi de Francisco de Medeiros, sogra do mestre da capela, e uma mourisca que veio degredada a esta terra a que no sabe o nome, e que j defunta, ela confessante perante eles disse que um agnus dei23 que tinha ao pescoo, gabando-lho muito, dizendo ela que um padre de So Francisco lho dera em muita estima e lhe disse que quando o Papa os benzia que era com grande aparato, com os cardeais revestidos de pontifical, e querendo ela confessante encarecer a muita estima em que o tinha, disse que o tinha em tanta venerao como a uma hstia.

    Ao que lhe replicou uma morisca sobredita que no dizia bem, e contudo ela confesante tornou a ratificar o seu dito e nele ficou, e que dissera as ditas palavras e as ratificara, simplesmente, de que ficou depois muito arrependida.

    E a dita mourisca a foi acusar perante o bispo passado, o qual lhe deu sentena no caso e que, segundo sua lembrana lhe saiu absoluta, e contudo ela vem 22 - Como dissemos na Introduo, era usual diferenciar-se o ndio do africano reservando-se ao primeiro as designaes negro da terra, negro brasil, brasil, gentio, e ao segundo a expresso negro da Guin. Nesta confisso encontramos uma rara especificao quanto aos africanos, apondo-lhes como sobrenome o lugar de origem na frica (Angola, Congo, Guin) ou a etnia presumida (Arda, por exemplo). Os cativos ndios aparecem como da Terra, guisa de sobrenome.23 - Significa literralmente cordeiro de Deus. Medalho de cera benzido pelo Papa e usado ao pescoo como proteo contra males e perigos.

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  • pedir perdo Santa Madre Igreja e que se use com ela de misericrdia neste tempo de graa.

    Sabia ler e no escreve, pelo que a seu rogo assinou o notrio.

    11 - Confisso de Catarina Fernandes, crist velha, no tempo da Graa, em 9 de agosto de 1591

    Disse ser crist velha, natural de Estremoz, que veio a esta cidade degredada por cinco anos por ser culpada na morte de um homem a que matou o pai de uma sua filha, e ser filha de Pero Fernandes, almocreve, e de sua mulher Maria Lopes, casada com Gaspar Rodrigues, homem do mar, marinheiro, costureira, moradora no Monte Calvrio, junto desta cidade, de idade de trinta anos.

    E confessando-se, disse que haver ano e meio em que em dia de Nossa Senhora da Conceio, pela manh, morando ela em Piraj desta capitania, se confessou ao capelo do engenho Pantaleo Gonalves, e dele recebeu o Santssimo Sacramento.

    E depois, indo para sua casa, lhe lembrou seu marido que ela antes de ir para a igreja tinha comido uma talada de anans, e ela, vendo tambm as cascas no cho, lhe lembrou ento que tinha comido uma talada de anans antes de ir comungar, e ento teve grande arrependimento e se tornou a confessar a um padre da companhia, o qual lhe deu em penitncia que trouxesse um cilcio24 quinze dias e rezasse cinco vezes o rosrio e outras tantas a coroa de Nossa Senhora, e jejuasse trs sbados a po e gua, a qual penitncia ela cumpriu, e que ora pedia misericrdia nesta mesa, conforme a este tempo de graa.

    E por no dizer mais, foi perguntada pelo senhor visitador se cr que no Sacramento da Eucaristia, consagrada a hstia, est o verdadeiro corpo de Cristo Nosso Senhor, e que a Igreja Santa condena por hereges os que o negam, e se quando tomou o Santssimo Sacramento tendo comido sabia que estava nele o corpo de Cristo Nosso Senhor, ou se duvidou disso, e respondeu que ela cr que no Sacramento da Eucaristia est o verdadeiro corpo de Cristo, e que tem por herege quem o negar, e que quando ela o recebeu no duvidou nada, mas antes o recebeu para salvao de sua alma.

    E sendo mais perguntada, respondeu que quando se confessou e comungou no dito dia de Nossa Senhora, no lhe lembrou que tinha comido e que no tinha comido mais que uma talada de anans, e que com a clera e agastamento que levava contra seu marido, com quem pelejara, lhe no alembrou.

    E que nunca esteve em terra de Luteranos, nem tratou com eles, e que sabia muito bem que se h de comungar em jejum, e que a isso estava obrigada e que est prestes para receber penitncia.

    Por no saber escrever, assinou o notrio, a seu rogo.

    24 - Pequena tnica, cinto ou cordo de crina, de l spera, s vezes com farpas de madeira, que se vestia diretamente sobre a pele para penitncia de pecados.

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  • 12- Confisso de Ferno Ribeiro, ndio do Brasil, no tempo da graa, em 12 de agosto de 1591

    Por querer confessar sua culpa nesta mesa e ele ser do gentio desta Bahia que no sabe a lngua portuguesa, foi presente o Padre Francisco de Lemos, religioso da Companhia de Jesus, por seu intrprete25 e declarador que sabe a sua lngua, e lhes foi dado juramento dos Santos Evangelhos em que puseram as mos direitas, sob cargo do qual prometeram dizer verdade etc.

    Pelo dito intrprete, disse que cristo h seis ou sete anos, filho de gentios pagos, morador na aldeia de So Joo, de idade de cinquenta anos.

    E confessando-se, disse que haver dois anos que, dizendo-lhe outro gentio por nome Simo que os cristos que comungam tinham de costume usar de caridade, dando esmolas e favores aos prximos, e que tm eles entre si que os que comungam so os homens mais virtuosos, ento ele confessante respondeu ao dito Simo que naquele Sacramento de comunho estava a morte, e que quem comungava recebia a morte26, e isto disse a uma s vez, e depois de o ter dito ficou muito arrependido e lhe pesou muito o Diabo lhe fazer dizer to ruim palavra.

    E que, sabendo isto, o padre superior da dita aldeia, Joo lvares, da Companhia de Jesus, que tem cuidado de os doutrinar e instruir na f, o prendeu e penitenciou na igreja, pedindo perdo a todos e tomando disciplina27, ao que ele confessante satisfez e ora dentro, neste tempo de graa, vem pedir perdo Santa Madre Igreja, e que se use com ele de misericrdia.

    E sendo mais perguntado, respondeu que ele cr que na hstia consagrada est o verdadeiro corpo de Cristo e vida e sade das almas, e que os homens morrem neste mundo e suas almas vo ou glria ou ao inferno, segundo seus feitos merecem, e que isto lhe ensina o dito padre.

    13 - Confisso de Clara Fernandes, meia crist nova, no tempo da graa, em 14 de agosto de 1591

    Disse ser crist nova meia, natural de Castelo Branco, em Portugal, filha de Antnio Rodrigues Paneiro, cristo novo, e de sua mulher Gracia Dias, j defuntos, ela era crist velha, viva, mulher que foi de Manuel Fernandes, carcereiro, cristo

    25 - Quando ouvia confisses ou denunciaes de ndios ou africanos, era comum recorrer-se a intrpretes, diferena da confisso sacramental, exclusivamente espiritual, auricular, cujo teor somente o confessor poderia ouvir, sem intermedirios (razo pela qual os missionrios tinham que aprender a lngua dos povos catequisados e se valer de manuais de confisso elaborados nas lnguas nativas).26 - Trata-se de uma crena indgena relativamente difundida aps a chegada dos jesutas, sobretudo em funo das epidemias que assolaram tais populaes, em especial a da varola (peste das bexigas). Os sacramentos ministrados pelos padres, estando por vezes o ndio moribundo, eram associados morte.27 - Neste contexto, disciplina sinnimo de castigo.

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  • velho, estalajadeira que d de comer em sua casa, de idade de quarenta anos, moradora nesta cidade.

    E confessando-se dentro, neste tempo da graa, disse que ela veste alguns sbados camisa28 lavada, quando tem a do corpo suja, por respeito do servio de estalajadeira, e assim a veste lavada todos os mais dias da semana em que se lhe oferece t-la, por limpeza do dito ofcio, e que isto faz sem ter inteno alguma ruim, somente por limpeza, e no por cerimnia nem guarda dos sbados.

    E disse que Isabel Rodrigues, a boca torta, lhe deve mil e oitocentos ris que lhe emprestou sobre um cnhecimento que lhe fez, e ora lhe nega a dvida e trazem demanda, e sua inimiga e lhe alevanta falsos testemunhos, infamando-a, dizendo que ela era uma judia e que ajunta panelas de toda semana e as quebra ao sbado, e que tem um crucifixo e o aoita, e tudo isso ela confessante nega e diz serem falsidades que lhe alevanta a dita sua inimiga, e por isso no pede disto perdo nem o confessa; por culpa somente confessa vestir alguns sbados camisa lavada como dito tem, sem ruim inteno, e se nisso tem culpa pede misericrdia.

    E por no dizer mais e ser perguntada, respondeu que no conhece parente algum seu que fosse preso ou penitenciado pelo Santo Ofcio, e foi admoestada pelo senhor visitador que faa confisso verdadeira de suas culpas, pois est em tempo da graa para a merecer e alcanar, respondeu que no tinha mais que dizer do que dito tem.Por no saber escrever, o notrio assinou a seu rogo.

    14 - Confisso de Maria Lopes, crist nova, no tempo da graa, em 16 de agosto de 1591

    Apareceu, sem ser chamada, dentro, no tempo da graa, Maria Lopes, viva, mulher que foi de mestre Afonso Mendes, e a qual j fez confisso neste livro, folhas 10 (supra 39), e pelo juramento dos Santos Evangelhos em que tornou a por sua mo direita, declarou que lhe lembrara mais, que haver dez anos, estando ela em prtica com certas pessoas que lhe no lembra, uma delas veio a falar em mestre Roque, cristo novo dvora, que, estando preso na Inquisio, se degolou ou matou por sua mo, e a isto respondeu ela confessante que lhe parecia que aquela morte fora para ele mais honrada, e que da culpa que nisto tem em dizer esta palavra, simplesmente, pede perdo e misericrdia.

    E sendo perguntada, respondeu que a sua inteno era entender que se o dito mestre fora queimado teria morte mais desonrada, e que no teve inteno nem malcia, e que no sabe que algum parente seu fosse penitenciado ou preso pelo Santo Ofcio.

    15 - Confisso de Jernimo Parada, estudante, cristo velho, na graa, em 17 de agosto de 1591

    28 - Camisa: espcie de vestidura com mangas, fechada em roda, que se vestia por baixo das roupas e era usada por homens e mulheres.

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  • Disse ser cristo velho, natural desta Bahia, filho de Domingos Lopes, carpinteiro da Ribeira, e de sua mulher Leonor Viegas, morador nesta cidade, de idade de dezessete anos.

    E confessando-se, disse que h dois ou trs anos, em dia de Pscoa tarde, foi ele confessante a casa de Frutuoso lvares, clrigo de missa, homem velho que tem j a b