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CONFISSÕES SANTO AGOSTINHO Digitação: Lucia Maria Csernik 2007 LIVRO PRIMEIRO

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CONFISSES SANTO AGOSTINHO

Digitao: Lucia Maria Csernik 2007

LIVRO PRIMEIRO

CAPTULO I

Louvor e Invocao

s grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande teu poder, e incomensurvel tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criao quer louvar-te, e precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em si o testemunho do pecado e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o homem, partcula de tua criao, deseja louvar-te. Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso corao est inquieto enquanto no encontrar em ti descanso.

Concede, Senhor, que eu bem saiba se mais importante invocar-te e louvar-te, ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas algum te invocar antes de te conhecer? Porque, te ignorando, facilmente estar em perigo de invocar outrem. Porque, porventura, deves antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas como invocaro aquele em que no crem? Ou como havero de crer que algum lhos pregue?

Com certeza, louvaro ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam o encontram e os que o encontram ho de louv-lo.

Que eu, Senhor, te procure invocando-te, e te invoque crendo em ti, pois me pregaram teu nome. invoca-te, Senhor, a f que tu me deste, a f que me inspiraste pela humanidade de teu Filho e o ministrio de teu pregador.

CAPTULO II

Deus est no homem, e este em Deus

E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invoc-lo o faria certamente dentro de mim? E que lugar h em mim para receber o meu Deus, por onde Deus desa a mim, o Deus que fez o cu e a terra? Senhor, haver em mim algum espao que te possa conter? Acaso te contm o cu e a terra, que tu criaste, e dentro dos quais tambm criaste a mim? Ser, talvez, pelo fato de nada do que existe sem Ti, que todas as coisas te contm? E, assim, se existo, que motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, j que no existiria se em mim no habitsseis?

Ainda no estive no inferno, mas tambm ali ests presente, pois, se descer ao inferno, ali estars.

Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se no estivesses em mim; talvez seria melhor dizer que eu no existiria de modo algum se no estivesse em ti, de quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim , Senhor, assim . Como, pois, posso chamar-te se j estou em ti, ou de onde hs de vir a mim, ou a que parte do cu ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a mim o meu Deus, ele que disse: Eu encho o cu e a terra?

CAPTULO III

Onde est Deus?

Porventura o cu e a terra te contm, porque os enches? Ou ser melhor dizer que os enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, j que eles no te podem conter? E onde estenders isso que sobra de ti, depois de cheios o cu e a terra? Mas ser necessrio que sejas contido em algum lugar, tu que contns todas as coisas, visto que as que enches as ocupas contendo-as? Porque no so os vasos cheios de ti que te tornam estvel, j que, quando se quebrarem, tu no te derramars; e quando te derramas sobre ns, isso no o fazes porque cais, mas porque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes.

No entanto, todas as coisas que enches, enche-as todas com todo o teu ser; ou talvez, por no te poderem conter totalmente todas as coisas, contm apenas parte de ti? E essa parte de ti as contm todas ao mesmo tempo, ou cada uma a sua, as maiores a maior parte, e as menores a

menor parte? Mas haver em ti partes maiores e partes menores? Acaso no ests todo em todas as partes, sem que haja coisa alguma que te contenha totalmente?

CAPTULO IV

As perfeies de Deus

Que s, portanto, meu Deus? Que s, repito, seno o Senhor Deus? Deus sumo, excelente, poderosssimo, onipotentssimo, misericordiosssimo e justssimo.

Tao oculto e to presente, formosssimo e fortssimo, estvel e incompreensvel; imutvel, mudando todas as coisas; nunca novo e nunca velho; renovador de todas as coisas, conduzindo runa os soberbos sem que eles o saibam; sempre agindo e sempre repouso; sempre sustentando, enchendo e protegendo; sempre criando, nutrindo e aperfeioando, sempre buscando, ainda que nada te falte.

Amas sem paixo; tens zelos, e ests tranqilo; te arrependes, e no tens dor; te iras, e continuas calmo; mudas de obra, mas no de resoluo; recebes o que encontras, e nunca perdeste nada; no s avaro, e exiges lucro. A ti oferecemos tudo, para que sejas nosso devedor; porm, quem ter algo que no seja teu, pois, pagas dvidas que a ningum deves, e perdoas dvidas sem que nada percas com isso?

E que o que at aqui dissemos, meu Deus, minha vida, minha doura santa, ou que poder algum dizer quando fala de ti? Mas ai dos que nada dizem de ti, pois, embora seu muito falar, no passam de mudos charlates.

CAPTULO V

Splica

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu corao e que o embriagasses, para que eu me esquea de minhas maldades e me abrace contigo, meu nico bem! Que s para mim? Tem piedade de mim, para que eu possa falar. E que sou eu para ti, para que me ordenes amar-te e, se no o fizer, irar-te contra mim, ameaando-me com terrveis castigos? Acaso pequeno o castigo de no te amar? Ai de mim! Dize-me por tuas misericrdias, meu Senhor e meu Deus, que s para mim? Dize a minha alma: Eu sou a tua salvao. Que eu oua e siga essa voz e te alcance. No queiras esconder-me teu rosto. Morra eu para que possa v-lo para no morrer eternamente.

Estreita a casa de minha alma para que venhas at ela: que seja por ti dilatada. Est em runas; restaura-a. H nela ndoas que ofendem o teu olhar: confesso-o, pois eu o sei; porm, quem haver de purific-la? A quem clamarei seno a ti? Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso no confessei diante de ti meus delitos contra mim, meu Deus? E no me perdoaste a impiedade de meu corao? No quero contender em juzos contigo, que s a verdade, e no quero enganar-me a mim mesmo, para que no se engane a si mesma minha iniqidade. No quero contender em juzos contigo, porque, se ds ateno s iniqidades, Senhor, quem, Senhor, subsistir?

CAPTULO VI

Os primeiros anos

Permita, porm, que eu fale em presena de tua misericrdia, a mim, terra e cinza; deixa que eu fale, porque tua misericrdia que falo, e no ao homem, que de mim escarnece. Talvez tambm tu te rias de mim, mas, voltado para mim, ters compaixo.

E que pretendo dizer-te, Senhor, seno que ignoro de onde vim para aqui, para esta no sei se posso chamar vida mortal ou morte vital? No o sei. Mas receberam-me os consolos de tuas misericrdias, conforme o que ouvi de meus pais carnais, de quem e em quem me formaste no tempo, pois eu de mim nada recordo. Receberam-me os consolos do leite humano, do qual nem minha me, nem minhas amas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas

aquele alimento da infncia, de acordo com o seu desgnio, e segundo os tesouros dispostos por ti at no mais ntimo das coisas.

Tambm por tua causa que eu no queria mais do que me davas; por tua causa que minhas amas queriam dar-me o que tu lhes davas, pois elas, movidas de sadio afeto, queriam dar-me aquilo que abundavam graas a ti, j que era um bem para elas ou delas receber aquele bem, embora realmente no fosse delas, meros instrumentos, porque de ti procedem, com certeza, todos os bens, Deus, e de ti, Deus meu, depende toda minha salvao.

Tudo isto vim a saber mais tarde, quando me falaste por meio dos mesmos bens que me concedias interior e exteriormente. Porque ento as nicas coisas que fazia era sugar o leite, aquietar-me com os afagos e chorar as dores de minha carne.

Depois tambm comecei a rir, primeiro dormindo, depois acordado. Isto disseram de mim, e o creio, porque o mesmo acontece com outros meninos, pois eu no tenho a menor lembrana dessas coisas.

Pouco a pouco comecei a me dar conta de onde estava, e a querer dar a conhecer meus desejos a quem os podia satisfazer, embora realmente no o pudessem, porque meus desejos estavam dentro, e eles fora; e por nenhum sentido podiam entrar em minha alma. assim, agitava os braos e dava gritos e sinais semelhantes a meus desejos, os poucos que podia e como podia, embora no fossem de fato sua expresso. Mas, se no era atendido, ou porque no me entendessem, ou porque o que desejava me fosse prejudicial, eu me indignava com os adultos, porque no me obedeciam, e sendo livres, por no quererem me servir; e deles me vingava chorando. Assim so as crianas que pude observar; e que eu tambm fosse assim, mais me ensinaram elas, sem o saber, do que os que me criaram, sabendo-o.

Minha infncia morreu h muito tempo, mas eu continuo vivo. Mas, dize-me, Senhor, tu que sempre vives, e em quem nada falece porque existias antes do comeo dos sculos, e antes de tudo o que h de anterior, e s Deus e Senhor de todas as coisas; e esse encontram em ti as causas de tudo o que instvel, e em ti permanecem os princpios imutveis de tudo o que se transforma, e vivem as razes eternas de tudo o que transitrio dize-me a mim, eu to suplico, meu Deus, diz-me, misericordioso, a mim que sou miservel, dize-me: porventura a minha infncia sucedeu a outra idade minha, j morta? Ser esta aquela que vivi no ventre de minha me? Porque tambm desta me revelaram algumas coisas, e eu mesmo j vi mulheres grvidas.

E antes desse tempo, minha doura e meu Deus, que era eu? Fui algum, ou era parte de alguma coisa? Dize-mo, porque no tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha me, nem a experincia dos outros, nem minha memria. Acaso te ris de mim, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e te confesse pelo que conheci de ti?

Eu te confesso, Senhor dos cus e da terra, louvando-te por meus princpios e por minha infncia, de que no tenho memria, mas que, por tua graa, o homem pode conjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. Ento eu j existia, j vivia de verdade; e, j no fim da infncia procurava sinais com que pudesse exprimir aos outros as coisas que sentia. Com efeito, de onde poderia vir semelhante criatura, seno de ti, Senhor? Acaso algum pode ser artfice de si mesmo? Porventura existir algum outro manancial por onde corra at nos o ser e a vida, diferente da que nos dais, Senhor, tu em quem ser e vida no so coisas distintas, porque s o Sumo Ser e a Suprema Vida? Com efeito, s sumo, e no te mudas, nem caminha para ti o dia de hoje, apesar de caminhar por ti, apesar de estarem em ti com certeza todas estas coisas, que no teriam caminho por onde passar se no as contivesses. E porque teus anos no fenecem, teus anos so um perptuo hoje. Oh! Quantos dias nossos e de nossos pais j passaram por este teu hoje, e dele receberam sua durao, e de alguma maneira existiram, e quantos passaro ainda, e recebero seu modo, e seu ser? Mas tu s sempre o mesmo, e todas as coisas de amanh e do futuro, e todas as coisas de ontem e do passado, nesse hoje as fazes, nesse hoje as fizeste.

Que importa que algum no entenda essas coisas? Que este algum se ria, e diga: que isto? Que se ria assim, e que prefira encontrar-te sem indagao do que, indagando, no te encontrar.

CAPTULO VII

Os pecados da primeira infncia

Escuta-me, meu Deus! Ai dos pecados dos homens! E quem isto te diz um homem, e tu te compadeces dele porque o criaste, e no foste autor do pecado que nele existe.

Quem me poder lembrar o pecado da infncia, j que ningum est diante de ti limpo de pecado, nem mesmo a criana cuja vida conta um s dia sobre a terra? Quem mo recordar? Acaso alguma criana pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que no recordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, no pelo seio materno, mas pelo alimento prprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado. Logo, era ento digno de repreenso o meu proceder; mas como no podia entender a censura, nem o costume nem a razo permitiam que eu fosse repreendido. Prova est que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de ns essa sofreguido; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de bom.

Acaso, mesmo para aquela idade, era bom pedir chorando o que no se me podia dar sem dano, indignar-me acremente com as pessoas livres que no se submetiam, assim como as pessoas respeitveis, e at com meus prprios pais, e com muitos outros que, mais sensatos, no davam ateno aos sinais de meus caprichos, enquanto eu me esforava por agredi-los com meus golpes, quanto podia, por no obedecerem s minhas ordens, que me teriam sido danosas? Daqui se segue que o que inocente nas crianas a debilidade dos membros infantis, e no a alma.

Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda no falava, e j olhava plido e com rosto amargurado para o irmozinho colao. Quem no ter testemunhado isso? Dizem que as mes e as amas tentam esconjurar este defeito com no sei que prticas. Mas se poder considerar inocncia o no suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem est to necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se tolerar indulgentemente essas faltas, no porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que desapaream com os anos. Por isso, sendo tais coisas perdoveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemos suportar.

Assim, pois, meu Senhor e meu Deus, tu que me deste a vida e corpo, o qual dotaste, como vemos, de sentidos e proviste de membros, adornando-o de beleza e de instintos naturais, com os quais pudesse defender sua integridade e conservao, tu me mandas que te louve por esses dons e te confesse e cante teu nome altssimo. Serias Deus onipotente e bom ainda que s tivesses criado apenas estas coisas, que nenhum outro pode fazer seno tu, Unidade, origem de todas as variedades, Beleza, que ds forma a todas as coisas, e com tua lei as ordenas!

Tenho vergonha, Senhor, de ter de somar vida terrena que vivo aquela idade que no recordo ter vivido, na qual acredito pelo testemunho de outros, por v-lo assim em outras crianas, embora essa conjectura merea toda a f. As trevas em que est envolto meu esquecimento a seu respeito assemelham-se vida que vivi no ventre de minha me.

Assim, se fui concebido em iniqidade, e se em pecado me alimentou minha me, onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fui inocente? Mas eis que silencio sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se dele j no conservo nenhuma lembrana?

CAPTULO VIII

As primeiras palavras

Acaso no foi caminhando da infncia at aqui que cheguei puercia? Ou melhor, esta veio a mim e suplantou infncia sem que esta fosse embora, pois, para onde poderia ir? Contudo deixou de existir, porque eu j no era um bebezinho que no falava, mas um menino que aprendia a falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, s mais tarde que vim a perceber. No mo ensinaram os mais velhos apresentando-me as palavras com certa ordem e mtodo, como logo depois fizeram com as letras; mas foi por mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus, quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vrios movimentos do corpo, a fim de que atendessem meus desejos; e tambm ao ver que no podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos aqueles a quem me dirigia. Assim, pois, quando chamavam alguma coisa pelo nome, eu a retinha na memria e, ao se

pronunciar de novo a tal palavra, moviam o corpo na direo do objeto, eu entendia e notava que aquele objeto era o denominado com a palavra que pronunciavam, porque assim o chamavam quando o desejavam mostrar.

Que esta fosse sua inteno, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que so como uma linguagem universal, feita com a expresso rosto, a atitude dos membros e o tom da voz, que indicam os afetos da alma para pedir, reter, rejeitar ou evitar alguma coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas em vrias frases e ouvidas repetidas vezes, ia eu aos poucos notando o significado e, domada a dificuldade de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontades por meio delas.

Foi assim que comecei a comunicar meus desejos s pessoas entre as quais vivia, e entrei a fazer parte do tempestuoso mundo da sociedade, dependendo da autoridade de meus pais e obedecendo s pessoas mais velhas.

CAPTULO IX

Estudos e jogos

meu Deus, meu Deus! Que de misrias e enganos no experimentei ento, quando se me propunha, em criana, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes da lngua, fiel instrumento para obter honras humanas e satisfazer a cobia! Mudaram-me escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu, miservel, desconhecia o que havia de til. Contudo, se era preguioso para aprend-las, era fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse gnero de vida antes de ns, nos traaram caminhos to dolorosos pelos quais ramos obrigados a caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Ado.

Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te sentir, quanto possvel, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxlio, embora sem a percepo dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refgio e amparo e, para te invocar, desatei os ns de minha lngua; e, embora pequeno, te rogava j com grande fervor para que no me aoitassem na escola. E quando no me escutavas, o que servia para meu proveito os mestres, assim como meus prprios pais, que certamente no desejavam o meu mal, riam-se daquele castigo, que ento era para mim grave suplcio.

Porventura, Senhor, haver alguma alma to grande, unida a ti com to ardente afeto, pois isto tambm pode ser produzido pela estultice repito, uma alma que alcance tal grandeza de nimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martrio para fugir dos quais se te dirigem splicas de todas as partes do mundo? Haver uma alma que assim os despreze rindo-se dos que tm deles tanto horror como se riam nossos pais dos tormentos que ramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, no os temamos menos, nem te rogvamos com menor fervor para que nos livrasses deles.

Contudo, pecvamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos era exigido; e no era por falta de memria ou de inteligncia, que para aquela idade, Senhor, me deste de modo suficiente, seno porque eu gostava de brincar, embora os que nos castigavam no fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negcios, enquanto que os dos meninos eram por eles castigados, sem que ningum se compadecesse de uns e de outros, ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebia porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais, adulto haveria de jogar menos inocentemente?

Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questincula era vencido por algum colega seu, no era mais atormentado pela clera e pela inveja do que eu, quando uma partida de bola era vencido por meu companheiro?

CAPTULO X

Amor ao jogo

Contudo, Senhor meu, ordenador e criador da natureza, mas do pecado somente ordenador, eu pecava; pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres, uma vez que podia no futuro fazer bom uso das letras que desejavam me ensinar, qualquer que fosse sua inteno.

E no era desobediente para me ocupar de coisas melhores, mas por amor ao jogo; buscava nos combates orgulhosas vitrias; deleitava-me com histrias frvolas, com as quais incentivava sempre mais minha curiosidade. Igualmente curiosos, meus olhos se abriam sempre mais para os jogos e espetculos dos adultos, jogos que do tao grande dignidade a quem os oferece, que quase todos desejam as mesmas dignidades para seus filhos. Contudo, gostam de os castigar se com tais espetculos fogem dos estudos, por meio dos quais desejam que eles venham um dia a oferecer espetculos semelhantes. Senhor, olha misericordiosamente para essas coisas, e livra-nos delas a ns que j te invocamos; mas livra tambm aos que ainda no te invocam, a fim de que te invoquem, e sejam igualmente libertados.

CAPTULO XI

O batismo diferido

Ainda menino, ouvi falar da vida eterna, que nos est prometida pela humildade de Jesus, nosso Senhor, que desceu at nossa soberba; e fui marcado com o sinal da cruz, sendo-me dado saborear de seu sal logo que sa do ventre de minha me, que sempre esperou muito em ti.

Tu viste, Senhor, que numa ocasio, ainda menino, atacou-me repentinamente um dor de estmago que me abrasava, e que me aproximou da morte. Tu viste tambm, meu Deus, pois j me tinhas sob tua guarda, com que fervor de esprito e com que f pedi piedade de minha me, e da me de todos ns, tua Igreja, o batismo de teu Cristo, meu Deus e Senhor. Perturbou-se minha me carnal, pois que me criava com mais amor em seu casto corao em tua f para a vida eterna e, solcita, j havia cuidado de que me iniciasse e purificasse com os sacramentos da salvao, confessando-te, meu Senhor Jesus, em remisso de meus pecados, quando, de repente, comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se minha purificao, considerando que seria impossvel, se eu vivesse, que no me tornasse a manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do batismo muito maior e mais perigosa.

Nesta poca eu j tinha f verdadeira, juntamente com minha me e com todos da casa, exceo de meu pai, que, porm, no pde vencer em mim a ascendncia da piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele no acreditava; minha me, solcita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai para mim do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque nele te servia a ti e a tuas ordens.

Mas, meu Deus, suplico-te que me mostres, se te apraz, por que motivo se diferiu ento meu batismo; se foi ou no para meu bem que me soltaram as rdeas do pecado. Por que razo ainda hoje se diz de uns e de outros, como ouvimos em muitos lugares: Deixe que faa o que quiser, porque ainda no est batizado embora no digamos da sade do corpo: Deixe que receba ainda mais feridas, porque ainda no est curado?

Quanto melhor teria sido para mim receber logo a sade, e que meus cuidados e os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteo a sade da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porm, como minha me, sem dvida, j previa quantas e quo grandes ondas de tentaes me ameaariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como terra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me j como imagem tua.

CAPTULO XII dio ao estudo

Nesta minha infncia, na qual eu tinha menos que temer por mim do que em minha adolescncia, eu no gostava dos estudos, e odiava que a eles me obrigassem. Contudo, era coagido, e me faziam grande bem. Quem no procedia bem era eu, que no estudava a no ser constrangido, pois ningum faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.

Tampouco os que obrigavam a estudar agiam corretamente; antes, todo o bem que eu recebia vinha de ti, meu Deus, porque eles no tinham outro fim ao me obrigarem a estudar seno saciar o apetite de abundante misria e de gloria ignominiosa. Mas tu, Senhor, que tens contados os cabelos de nossa cabea, usavas do erro de todos os que me coagiam a estudar para minha utilidade; e usavas da minha falta de vontade de estudar para meu castigo, de que certamente eu j era digno, sendo ainda to pequeno, e tao grande pecador.

Assim, convertias em bem o mal que eles me faziam, e dos meus pecados, me davas justa retribuio, porque teu desgnio, e assim acontece, que toda alma desordenada seja castigo de si mesma.

CAPTULO XIII

Gosto pelo latim

Porque odiava eu as letras gregas, que me ensinavam quando eu era criana? No o sei, e nem agora o posso explicar. Em compensao, as letras latinas me apaixonavam, no as ensinadas pelos professores primrios, mas a que explicada pelos chamados gramticos, porque aquelas primeiras, com as quais se aprende a ler, a escrever e a contar, no me foram menos pesadas e insuportveis que as gregas. Mas donde podia proceder essa averso, seno do pecado e da vaidade da vida, porque eu era carne e vento que caminha e no volta?

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda fao, chegar e ler tudo o que h escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais teis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Enias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilssimo, suportava a minha prpria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, meu Deus, minha vida!

Na verdade, que pode haver de mais miservel do que um infeliz que no se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Enias, no chora sua prpria morte por falta de amor a ti, Deus, luz de meu corao, po interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? No te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: Muito bem! Muito bem! porque a amizade deste mundo adultrio contra ti; e se aclamam a algum dizendo: Muito bem! Muito bem! para que este no se envergonhe de ser assim. Eu no chorava estas faltas, chorava a morte de Dido que se suicidou com a espada, eu procurava as ltimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atrada pela terra. Se ento me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por no ler aquilo que me comovia at a dor. No obstante, semelhante loucura considerada como coisa mais nobre e proveitosa que as letras pelas quais aprendemos a ler e a escrever.

Mas agora, meu Deus, grite em minha alma tua verdade, e diga: No assim, no assim, antes, aquela primeira instruo absolutamente superior; pois eu preferiria esquecer todas as aventuras de Enias, e outras histrias semelhantes, do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramticos pendem cortinas s portas; porm, servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro.

No gritem contra mim aqueles mestres a quem j no temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha alma, e aborreo dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. No gritem contra mim os comerciantes da gramtica, pois, se eu os interrogar sobre se verdade que Enias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os nscios respondero que no sabem, e os sbios negaro o fato. Porm, se lhes perguntar como se escreve o nome de Enias, todos os que estudaram me respondero a mesma coisa, de acordo com a conveno com que os homens fixaram o valor das letras do alfabeto.

Do mesmo modo, se lhes perguntar o que seria mais prejudicial para a vida humana: esquecer o ler e o escrever, ou todas as fices dos poetas, quem no v o que logo responderia aquele que no estivesse de tudo esquecido de ti? Pequei, pois, em minha infncia, ao preferir vos aos proveitosos, ou para dizer melhor, ao amar queles e ao odiar a estes; era para mim

uma cantiga odiosa aquele um e um, dois; dois e dois, quatro; enquanto considerava espetculo encantador a histria do cavalo de madeira cheio de guerreiros e o incndio de Tria, e at a sombra de Creuza.

CAPTULO XIV

Averso ao grego

Por que ento aborrecia eu a literatura grega na qual se cantam tais coisas? Porque tambm Homero mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcssimo na sua frivolidade, embora para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo ocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estud-lo, como a mim com relao a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente uma lngua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as douras das fbulas gregas.

Eu ainda no conhecia nenhuma palavra daquela lngua, e j me obrigavam com veemncia, com crueldades e terrveis castigos, a aprend-la. Na verdade, eu, ainda criana, tambm no conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de ateno, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi, sem a presso dos castigos, impelido unicamente por meu corao desejoso de dar luz seus sentimentos, e o nico caminho para isso era aprender algumas palavras, no dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eu depositando quanto sentia.

Por aqui se evidencia claramente que, para instruir, tem mais eficcia e curiosidade livre do que a necessidade inspirada pelo medo. Contudo, os excessos da curiosidade encontram nessa violncia um freio segundo tuas leis, Deus; que desde as palmatrias dos mestres at os tormentos dos mrtires sabem dosar suas salutares amarguras, que nos reconduzem a ti do seio do pernicioso deleite que de ti nos apartara.

CAPTULO XV

Orao

Ouvi, Senhor, minha orao, para que no desfalea minha alma sob a tua lei, nem me canse em confessar tuas misericrdias, com as quais me arrancaste de meus perversos caminhos; que tua doura sobrepuje todas as douras que segui, e assim te ame fortissimamente, e abrace tua mo com toda minha alma, e me livres de toda a tentao at o fim dos meus dias. Pois , Senhor, meu rei e meu Deus, e a ti consagro quanto falo, escrevo, leio e conto, pois quando aprendia aquelas futilidades, tu eras o que me davas a verdadeira disciplina, e j me perdoaste os pecados de deleite cometidos naquelas vaidades. Muitas palavras teis aprendi nelas, verdade; porm, estas tambm se podem aprender em estudos srios, e este o caminho seguro pelo qual deveriam encaminhar as crianas.

CAPTULO XVI

O mal da mitologia

Ai de ti, torrente dos hbitos humanos! Quem h que te resista? Quando te secars? At quando irs arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso no foi em ti que li a fbula de Jpiter que trovejae adultera? verdade que no podia fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitao de um verdadeiro adultrio com o encantamento de um falso trovo. Contudo, qual o professor de pnula capaz de ouvir com pacincia a um homem nascido do mesmo p que clama e diz: Homero imaginava essas fices e atribua aos deuses os vcios humanos; porm, eu preferiria que atribusse a ns as qualidades divinas. Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades divinas a homens

corrompidos, para que os vcios no fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses celestes, e no a homens corrompidos.

E contudo, torrente infernal, em ti se precipitam os filhos dos homens, com o dinheiro gasto para aprender tais coisas. E consideram acontecimento importante represent-lo, publicamente no Foro, vista das leis que concedem aos mestres um prmio, alm de seus salrios particulares.

E ferindo os rochedos de tuas margens, gritas dizendo: Aqui se aprendem as palavras; aqui se adquire a eloqncia, tao necessria para persuadir e explicar os pensamentos; no poderamos pois aprender as palavras: chuva de ouro, regao, templo celeste, logro e outras mais, escritas em determinada passagem, se Terncio no nos apresentasse um jovem perdido que se prope a imitar a luxria de Jpiter? Contemplava ele uma pintura mural na qual se representava o mesmo Jpiter no momento em que, segundo dizem, descia como chuva de ouro sobre o regao de Dnae, para lograr assim pobre mulher.

E vede como se excitava luxria a vista de to celestial mestre:

- Mas que deus fez isto? diz. - Nada menos que aquele que faz retumbar a abbada do cu com enorme trovo! - E eu, homenzinho, no haveria de fazer o mesmo? - Fi-lo, sim, e com muito gosto. De modo algum se aprendem com semelhante torpeza aquelas palavras; antes, essas palavras levam mais atrevidamente a cometer a mesma devassido. No incrimino as palavras, que so como vasos seletos e preciosos, mas condeno o vinho do erro que mestres brios nos davam a beber nelas e, se no o bebssemos, ramos aoitados, sem que pudssemos apelar para juiz mais sbrio.

E, no obstante, meu Deus, cuja presena me protege desta lembrana, confesso que aprendi estas coisas com gosto e que, miservel, nelas me comprazi, sendo por isso chamado menino de grandes esperanas.

CAPTULO XVII

xitos escolares

Permite-me, Senhor, que diga tambm algo de meu talento, ddiva tua, e dos desatinos em que o empregava. Propunha-se-me como desafio coisa mui preocupante para minha alma, tanto pelo louvor ou descrdito, como por medo dos aoites que repetisse as palavras de Juno, irada e ressentida por no podem afastar da Itlia ao rei dos troianos, embora jamais tenha sabido que tivessem sido pronunciadas por Juno. Mas obrigavam-nos a errar seguindo os passos das fices poticas, e a repetir em prosa o que o poeta havia dito em verso. Era mais elogiado aquele que, conforme a dignidade da pessoa representada, soubesse pintar com mais vivacidade e semelhana, e revestir com palavras mais apropriadas seus afetos de ira ou de dor.

Mas qual o proveito disso vida verdadeira, meu Deus de que me servia ser aplaudido por minha declamao mais que todos os meus coetneos e condiscpulos? No era tudo aquilo fumo e vento? Acaso no havia outra coisa em que exercitar meu talento e minha lngua? Teus louvores, Senhor, teus louvores, consignados nas Escrituras, poderiam soerguer a frgil planta de meu corao, e eu no teria sido arrebatado pela vaidade de vs quimeras, presa imunda das aves. Com efeito, h diversas maneiras de oferecer sacrifcio aos anjos rebeldes.

CAPTULO XVIII

Leis gramaticais, lei de Deus

Mas, por que admirar-se que eu me deixasse arrastar pelas vaidades e me afastar de ti, meu Deus, se me propunham como exemplos para imitar a uns homens que se, ao contar alguma boa ao, deslizassem nalgum barbarismo ou solecismo cobriam-me de crticas e, pelo contrrio, que eram elogiados por narrar suas torpezas com palavras castias e apropriadas, de modo eloqente e elegante, e que os inchavam de vaidade?

Tu vs, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericrdia e verdade. Mas te calars para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso abismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de corao: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe est de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque no com os ps carnais, nem cobrindo distncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisveis, ou viajou a p para alcanar aquela regio longnqua onde dissipou o que lhes havia dado, Pai, meigo ao lhe entregar a substncia, e mais carinhoso ainda ao receb-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixes da luxria, o mesmo que viver em paixes tenebrosas, viver longe de teu rosto.

Olha, meu Senhor e meu Deus, v paciente, como costumas ver, de que modo diligente os filhos dos homens observam as regras de ortografia recebidas dos primeiros mestres, e desprezam as leis eternas de salvao perptua recebidas de ti; de tal modo que, se alguns dos que sabem ou ensinam as regras antigas dos sons pronunciasse a palavra homo, sem aspirar a primeira letra, desagradaria mais aos homens do que se, contra teus preceitos, odiasse a outro homem, sendo este homem.

Como se o homem pudesse ter inimigo mais pernicioso que o dio com que se irrita contra si mesmo, ou como se pudesse causar a outrem maior dano, perseguindo-o, do que causa a seu prprio corao odiando! Com certeza, no nos mais ntima a cincia das letras do que a conscincia, que manda no fazer a outrem o que no queremos que no nos faam.

Oh! Como s misericordioso, tu, que habitando silencioso nos cus, Deus grande e nico, espalhas com lei infatigvel cegueiras vingadoras sobre as paixes ilcitas! Quando o homem, aspirando fama de eloqente, ataca a seu inimigo com dio feroz diante do juiz, rodeado de grande multido de homens, toma todo o cuidado para que, por um lapsus linguae, no se lhe escape um inter ominibus, sem aspirar o h, sem cuidar que com o furor de seu dio se tire um homem de entre os homens.

CAPTULO XIX

Mau perdedor

beira de tal lodaal jazia eu, pobre criana, sendo esta a arena em que me exercitava, temendo mais cometer um barbarismo de linguagem do que cuidando de no invejar, se o cometia, aqueles que o tinham evitado.

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misrias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois no via o abismo pois no via

o abismo de torpeza em que tudo isso me lanara, longe dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu at desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetculos frvolos e o desejo inquieto de os imitar. Tambm cometia furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora impelido pela gula, ora para ter de dar aos meninos para brincar com eles, folguedos que os deleitavam tanto quanto a mim, e que eles me faziam pagar. No jogo, frequentemente, conseguia vitrias fraudulentas, vencido pelo desejo de me sobressair. Contudo, nada havia que eu quisesse mais evitar e que eu repreendesse mais atrozmente se o descobrisse em outros, que o mesmo eu fazia aos demais. Se acaso eu era o prejudicado, e o acusado ficava furioso, eu no cedia. Ser esta a inocncia infantil? No, Senhor, no o , eu to confesso, meu Deus. Porque essas mesmas coisas que se fazem com os criados e mestres por causa de nozes, bolas e passarinhos, se avultam na maioridade com os magistrados e reis por causa de dinheiro, palcios e servos, do mesmo modo que palmatria sucedem-se maiores castigos.

Assim, quando tu, nosso rei, disseste: Delas o reino do cus quiseste sem dvida louvar na pequenez de sua estatura um smbolo de humildade.

CAPTULO XX

Ao de graas

Contudo, Senhor, graas te sejam dadas, excelso e timo criador e ordenador do universo, nosso Deus, mesmo que te limitasses a me fazer apenas menino. Porque ento, eu j existia, vivia, sentia, cuidava da minha integridade, eco de tua profunda unidade, fonte de minha existncia.

Guardava tambm, com o secreto instinto, a integridade dos meus outros sentidos, e deleitava-me com a verdade nos pequenos pensamentos que formava sobre coisas pequenas. No queria ser enganado, tinha boa memria, e me ia instruindo com a conversao. Alegrava-me com a amizade, fugia dor, ao desprezo, ignorncia. E no seria isto, em tal criatura, digno de admirao e de louvor? Pois todas essas coisas so dons do meu Deus, que eu no dei a mim mesmo. E todos so bons, e tudo isso constitui o meu eu.

O que me criou, portanto, bom, e ele prprio o meu bem; a ele louvo por todos estes bens que integravam meu ser de criana. Eu pecava em buscar em mim prprio e nas demais criaturas, e no nele, os deleites, grandezas e verdades; por isso caia logo em dores, confuses e erros.

Graas a ti, minha doura, minha esperana e meu Deus, graas a ti por teus dons; que eles fiquem em ti conservados. Assim me guardars tambm a mim, e aumentaro e aperfeioaro os dons que me deste, e eu estarei contigo, porque tambm me deste a existncia.

LIVRO SEGUNDO

CAPTULO I

A adolescncia

Quero recordar minhas torpezas passadas e as degradaes carnais de minha alma, noporque as ame, mas por te amar, meu Deus. por amor de teu amor que o fao, percorrendo com a memria amargurada, aqueles meus perversos caminhos, para que tu me sejas doce, doura sem engano, ditosa e eterna doura. Resgata-me da disperso em que me dissipei quando, afastando-me de tua unidade, me desvaneci em muitas coisas.

Tempo houve de minha adolescncia em que ardi em desejos de me fartar dos prazeres mais baixos, e ousei a bestialidade de vrios e sombrios amores, e se murchou minha beleza, e me transformei em podrido diante de teus olhos, para agradar a mim mesmo e desejar agradar aos olhos dos homens.

CAPTULO II

As primeiras paixes

E que me deleitava, seno amar e ser amada? Mas eu no era moderado, indo de alma para alma de acordo com os sinais luminosos da amizade, pois, da lodosa concupiscncia de minha carne e do fervilhar da puberdade levantava-se como que uma nvoa que obscurecia e ofuscava meu corao, a ponto de no discernir a serena amizade da tenebrosa libido. Uma e outra, confusamente, me abrasavam; arrastavam minha fraca idade pelo declive ngreme de meus apetites, afogando-me em um mar de torpezas. Tua ira se acumulava sobre mim, e eu no o sabia. Ensurdeci com o rudo da cadeia de minha mortalidade, e cada vez mais me afastava de ti, e tu o consentias; e me agitava, e me dissipava, e me derramava e fervia em minha devassido, e tu te calavas alegria que to tarde encontrei! tu te calavas ento, e eu ia cada vez mais para longe de ti, sempre atrs de estreis sementes de dores, com vil soberba e inquieto cansao.

Oh! Se algum refreasse aquela minha misria, para que fizesse bom uso da fugaz beleza das criaturas inferiores; limitasse suas delicias, a fim de que as vagas daquela minha idade rompessem na praia do matrimonio, j que de outro modo no podia haver paz contendo-se nos limites da gerao, como prescreve tua lei, Senhor, tu que crias o grmen transmissor de nossa vida mortal, e que com mo bondosa podes suavizar a agudeza dos espinhos, que mantiveste fora do paraso! Porque tua onipotncia est perto de ns, mesmo quando vagueamos longe de ti.

Pelo menos eu deveria atender com mais diligencia voz de tuas nuvens: Tambm eles sofrero as tribulaes da carne; mas eu quisera poupar-vos; e bom ao homem no tocar em mulher; o que est sem mulher pensa nas coisas de Deus, de como o h de agradar; mas o que est ligado pelo matrimonio pensa nas coisas do mundo, e em como h de agradar mulher. Estas so as palavras que eu deveria ter ouvido mais atentamente; e, eunuco pelo amor ao reino de Deus, teria suspirado mais feliz por teus abraos.

Mas eu, miservel, tornei-me em torrente, seguindo o mpeto de minha paixo, te abandonei e transgredi a todos os teus preceitos, sem porm, escapar de teus castigos. E quem o poderia dentre os mortais? Sempre estavas ao meu lado, irritando-se misericordiosamente comigo, e aspergindo com amarssimos desgostos todos os meus gozos ilcitos, para que eu buscasse a alegria sem te ofender e, quando a achasse, de modo algum fosse fora de ti, Senhor. Fora de ti, que impes a dor em mandamento, e feres para sarar, e nos tiras a vida para que no morramos sem ti.

Mas onde estava eu? Oh! Quo longe, exilado das delicias de tua casa naqueles meus dezesseis anos de idade carnal, quando esta empunhou seu cetro sobre mim, e eu me rendi totalmente a ela, fria da concupiscncia que a degradao humana legtima, porm, ilcita, de acordo com as tuas leis.

Nem mesmo os meus cogitaram em me sustentar na queda, pelo casamento, ao ver-me cair; cuidavam apenas que eu aprendesse a compor discursos magnficos e a persuadir com a palavra.

CAPTULO III

Cegueira do pai, cuidados da me

Nesse mesmo ano tive de interromper meus estudos, quando voltei de Madaura, cidade vizinha, onde fora estudar literatura e oratria, enquanto se faziam os preparativos necessrios para minha viagem mais longa a Cartago, levado mais pela ambio de meu pai que pelos seus parcos bens, pois, era mui modesto cidado de Tagaste.

Mas, a quem conto eu estes fatos? Certamente, no a ti, meu Deus, mas em tua presena conto estas coisas aos da minha estirpe, ao gnero humano, ainda que estas pginas chegassem s mos de poucos. E para que ento? Para que eu, e quem me ler, pensemos na profundeza do abismo de onde temos de clamar por ti? E que h de mais prximo a teus ouvidos que o corao contrito e a vida que procede da f?

Quem ento no cumulava a meu pai de louvores, pois excedendo at seus deveres familiares, gastava com o filho o necessrio para to longa viagem por causa de seus estudos? Porque muitos cidados, muito mais ricos do que ele, no mostravam para com os filhos igual cuidado.

Contudo, este mesmo pai no se importava de saber se eu crescia para ti, ou que fosse casto, contanto que fosse deserto; mas antes eu era deserto, por carecer de teu cultivo, Deus, nico, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu corao.

Porm, no meu dcimo-sexto ano foi necessria uma interrupo em meus estudos por falta de recursos familiares e, livre da escola, passei a viver com meus pais. Avassalaram ento minha cabea os espinhos de minhas paixes, sem que houvesse mos que os arrancassem. Pelo contrrio, meu pai, certo dia, percebendo ao banho sinais de minha puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescncia, como se j se alegrasse pensando nos netos, foi cont-lo alegre minha me. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e em teu lugar ama tua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e mal inclinada vontade para as coisas baixas.

Mas, nessa poca, j tinhas comeado a levantar, no corao de minha me, teu templo e os alicerces de tua santa morada; meu pai no era mais que catecmeno, recente ainda. Por isso minha me perturbou-se com santo temor. Embora eu ainda no fosse batizado, temia que eu seguisse as sendas tortuosas por onde andam os que te voltam as costas, e no o rosto.

Ai de mim! Como me atrevo a dizer que te calavas quando me afastava de ti? Seria verdade que ento te calavas comigo? E de quem eram, seno tuas, aquelas palavras que pela boca de minha me, tua serva fiel, sussurraste em meus ouvidos, embora nenhuma delas penetrasse no meu corao, para que a cumprisse?

Lembro bem que um dia me admoestou em segredo, com grande solicitude, que me abstivesse da luxria e, sobretudo, que no cometesse adultrio com a mulher de ningum. Porm, esses conselhos pareciam-me prprios de mulheres, e eu me envergonharia de segui-los. Mas, na realidade, eram teus, embora eu no o soubesse, e por isso julgava que te calavas, e que era ela quem me falava; e eu te desprezava em tua serva, eu, seu filho, filho de tua serva e servo teu, a ti que no cessavas de me falar pela sua boca.

Mas eu no o sabia, e me precipitava com tanta cegueira, que me envergonhava entre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Os ouvia jactar-se de suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram; assim eu gostava de fazer o mal, no s pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que h de mais digno de vituprio do que o vicio? E, contudo, para no ser escarnecido, tornava-me mais viciado e, quando no houvesse cometido pecado que me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que no cometera, para que no parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais casto.

Eis com que companheiros andava eu pelas graas de Babilnia, revolvendo-me na lama, como em cinamomo e ungentos preciosos. E, para que todo esse lodo me pegasse bem firme, subjugava-me o inimigo invisvel, e me seduzia, por ser eu presa fcil da seduo.

Nem ento minha me carnal, que j fugira do meio da Babilnia, mas que em outras coisas caminhava mais devagar, cuidou como fizera ao aconselhar-me a castidade de conter com os laos do matrimonio aquilo de que seu marido lhe falara a meu respeito. J percebera ela que me era pestilencial, e que mais adiante me seria perigoso j que essa paixo no podia ser cortada pela raiz. No pensou nisso, digo, por temer que o vnculo matrimonial frustrasse a esperana que sobre mim acalentava; no a esperana da vida futura, que ela j tinha posto em ti,

mas a esperana das letras que ambos, meu pai e minha me, desejavam ardentemente; meu pai, porque no pensava quase nada de ti, mas apenas ambies vs a meu respeito; minha me, porque considerava que tais tradicionais estudos das letras no s no me seriam de estorvo, sendo de no pouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me possvel pela lembrana, o carter de meus pais.

Por isso, soltavam-me as rdeas para o jogo mais do que o permite uma moderada severidade, deixando-me cair na dissoluo de vrias paixes; e de todas surgia uma obscuridade que me toldava, meu Deus, a luz da tua verdade; e, por assim dizer, de meu corpo, brotava minha iniqidade.

CAPTULO IV

O furto das pras

certo, Senhor, que tua lei pune o furto, lei to arraigada no corao dos homens que nem a prpria iniqidade pode apagar. Que ladro h que suporte com pacincia que o roubem? Nem

o rico tolera isto a quem o faz forado pela indigncia. Tambm eu quis roubar, e roubei no forado pela necessidade, mas por penria, fastio de justia e abundncia de maldade, pois roubei o que tinha em abundncia, e muito melhor. Nem me atraa ao furto o gozo de seu resultado, mas atraa-me o furto em si, o pecado. Nas imediaes de nossa vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nem pelo aspecto, nem pelo sabor tinham algo de tentador. Alta noite pois at ento ficaramos jogando nas eiras, de acordo com nosso mau costume dirigimo-nos ao local, eu e alguns jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. E levamos grande quantidade deles, no para sabore-los, mas para jog-los aos porcos, embora comssemos alguns; nosso deleite era fazer o que nos agradava justamente pelo fato de ser coisa proibida.

A est meu corao, Senhor, meu corao que olhaste com misericrdia quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu corao te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, no tendo minha maldade outra razo que a prpria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte, amei meu pecado; no o objeto que mefazia cair, mas minha prpria queda. torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lanavas na morte, no buscando na ignomnia seno a prpria ignomnia?

CAPTULO V

A causa do pecado

Todos os corpos formosos, o ouro, a prata, e todos os demais tm, com efeito, seu aspecto atraente. No contato carnal intervm grandemente a congruncia das partes, e cada um dos sentidos percebe nos corpos certa modalidade prpria. Tambm a honra temporal e o poder de mandar e dominar tm seu atrativo, de onde nasce o desejo de vingana.

Todavia, para obtermos estas coisas, no necessrio abandonarmos a ti, nem nos desviar de tua lei. Tambm a vida que aqui vivemos tem seus encantos, por certa beleza que lhe prpria, e pela harmonia que tem com as demais belezas terrenas. Cara , finalmente, a amizade dos homens pela unio que une muitas almas com o doce lao do amor.

Por todos estes motivos, e outros semelhantes, pecamos quando, por propenso imoderada para os bens nfimos, so abandonados os melhores e mais altos, como tu, Senhor, nosso Deus, tua verdade e tua lei.

verdade que tambm esses bens nfimos tm seus deleites, porm, no como os de Deus, criador de todas as coisas, porque nele se deleita o justo, e nele acham suas delicias os retos de corao.

Portanto, quando indagamos a causa de um crime, no descansamos at averiguar qual o apetite dos bens chamados nfimos, ou que temor de perd-los foi capaz de provoc-lo. Sem dvida so belos e atraentes, embora, comparados com os bens superiores e beatficos, sejam abjetos e desprezveis. Algum comete um homicdio. Por que? Porque desejou a esposa do morto, ou suas terras, ou porque quis roubar alguma coisa, ou ento, ferido, ardeu em desejos de

vingana. Por acaso cometeria o crime sem motivo, apenas pelo gosto de matar? Quem pode acreditar em semelhante coisa?

Mesmo de Catilina, homem sem entranhas e muito cruel, de quem se disse que era mau e cruel sem razo, acrescenta o historiador um motivo: Para que a ociosidade no embotasse suas mos e sentimento.

Todavia, se indagares porque agia assim, dir-te-ei que mediante o exerccio de crimes, depois de tomada a cidade, conseguisse honras, poderes e riquezas, libertando-se do medo das leis e das dificuldades da vida, causados pela pobreza de seu patrimnio e a conscincia de seus crimes. Logo, nem o prprio Catilina amava seus crimes, mas aquilo por cujo motivo os cometia.

CAPTULO VI

O crime gratuito

Que amei, ento, em ti, meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? No eras belo, j que eras furto. Mas, por acaso s algo para que eu fale contigo? Belas eram as pras que roubamos, por serem criaturas tuas, formosssimo Criador de todas as coisas, bom Deus, Deus sumo, meu bem e meu verdadeiro bem; belas eram aquelas pras! Porm, no eram elas que apeteciam minha alma depravada. Eu as tinha em abundncia, e melhores. Colhi-as da rvore s para roubar; tanto que, to logo colhidas, joguei-as fora, saboreando nelas apenas a iniqidade, com que me regozijava. Se alguma delas entrou em minha boca, somente o crime que lhe deu sabor.

E agora pergunto, meu Deus: que que me deleitava no furto? Pois no encontro nenhuma beleza nele. J no falo da beleza que reside na justia e na prudncia, nem sequer da que resplandece na inteligncia do homem, na memria, nos sentidos ou na vida vegetativa; nem da que brilha nos magnficos astros em suas rbitas, ou na terra e no mar, cheios de criaturas, que nascem para sucederem umas s outras; nem sequer da defeituosa e sombria formosura dos vcios enganadores.

O orgulho imita a altura; mas s tu, Deus excelso, ests acima de todas as coisas. E a ambio, que busca, seno honras e glorias, quanto tu s o nico sobre todas as coisas e ser honrado e glorificado eternamente? A crueldade dos tiranos quer ser temida; porm, quem h de ser temido seno Deus, a cujo poder ningum, porm, quem h de ser temido seno Deus, a cujo poder ningum, em tempo algum ou lugar, nem por nenhum meio pode subtrair-se e fugir? As carcias da volpia buscam ser correspondidas; porm, no h nada mais carinhoso que tua caridade, nem que se ame de modo mais salutar que tua verdade, sobre todas as coisas formosa e resplandecente. A curiosidade sugere amor cincia, enquanto s tu conheces plenamente todas as coisas. At a prpria ignorncia e estultcia cobrem-se com o nome de simplicidade e inocncia; das quais no acham nada mais simples do que tu. E que pode haver mais inocente do que tu, pois, at mesmo o castigo dos maus lhes vem de seus pecados? A indolncia gosta do descanso; porm, que repouso seguro pode haver fora do Senhor? O luxo gosta de ser chamado de fartura; mas s tu s a plenitude e a abundncia inesgotvel de eterna suavidade. A prodigalidade veste-se com a capa da liberalidade; porm, s tu, s verdadeiro e liberalssimo doador de todos os bens. A avareza quer possuir muitas coisas; porm, s tu as possui todas. A inveja litiga acerca de excelncias; porm, que h mais excelente do que tu? A ira busca a vingana; e que vingana mais justa do que a tua? O temor aborrece as coisas repentinas e inslitas, contrrias ao que se ama ou se deseja manter seguro; mas haver para ti algo de novo e repentino? Quem poder separar de ti o que amas? E onde, seno em ti, se encontra inabalvel segurana? A tristeza definha com a perda das coisas com que a cobia se deleita, e no quer que se lhe tire nada, como nada pode ser tirado de ti.

Assim peca a alma, quando se aparta e busca fora de ti o que no pode achar puro e ilibado seno quando se volta novamente para ti. Perversamente te imitam todos os que se afastam de ti e se levantam contra ti. Porm, mesmo imitando-te, mostram que s o criador de toda criatura e que, portanto, no existe lugar onde algum se possa afastar de ti de modo absoluto.

Que amei, ento, naquele furto, e no que imitei, viciosa e imperfeitamente, a meu Senhor? Acaso foi o gosto de agir pela fraude contra a tua lei, j que no o podia fazer por fora,

simulando, cativo, uma falsa liberdade ao fazer impunemente o que estava proibido, imagem tenebrosa de tua onipotncia?

Eis aqui o servo que, fugindo do seu senhor, seguiu uma sombra. podrido! monstro da vida e abismo da morte! Como pde agradar-me o ilcito, e no por outro motivo, seno porque era ilcito?

CAPTULO VII

Ao de graas

Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minha alma sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graas, e confessarei teu nome, pois me perdoaste tantas e to nefandas aes. Devo tua graa e misericrdia teres-me dissolvido os pecados como gelo, como tambm todo o mal que no pratiquei. De fato, de que pecados no seria capaz, eu que amei gratuitamente o erro?

Confesso que todos j me foram perdoados; o mal cometido voluntariamente, e o que deixei de fazer pela tua graa. Quem dentre os homens, conhecendo tua fraqueza, poder atribuir s prprias foras sua castidade e inocncia para amar-te menos, como se tivesse menor necessidade de tua misericrdia, com a qual perdoas os pecados aos que se convertem a ti?

Aquele, pois, que, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou todas estas coisas que l de mim, e que eu recordo e confesso, no se ria de mim por haver sido curado pelo mesmo mdico que o preservou de cair enfermo, ou melhor, de que adoecesse tanto. Antes, esse deve amar-te tanto e ainda mais do que eu, porque o mesmo que me curou de tantas e to graves enfermidades, esse mesmo o livrou de cair no pecado.

CAPTULO VIII

O prazer da cumplicidade

E que fruto colhi eu, miservel, daquelas aes que agora recordo com rubor? Sobretudo daquele furto, em que amei o prprio furto, e nada mais? Nenhum, pois o furto, em si nada valia, ficando eu mais miservel com ele. Todavia, certo que eu sozinho no o teria praticado a julgar pela disposio de meu nimo na ocasio; - no, de modo algum; eu sozinho no o faria. Portanto, apreciei tambm na ocasio a companhia daqueles com quem o cometi. Logo, tambm certo que apreciei algo mais alm do furto; embora no amasse de fato nada mais, pois tambm essa cumplicidade era nada.

Mas, que esta, na verdade? E quem mo poder ensinar, seno o que ilumina meu corao e rasga minhas sombras? De onde vem minha alma a idia destas indagaes, desta discusso e consideraes? Se eu ento amasse as pras que roubei, e quisesse apenas seu desfrute, podia t-las roubado sozinho, se isso bastasse. Poderia fazer a iniqidade pela qual chegaria meu deleite sem necessidade de excitar o prurido da minha cobia com a conivncia de almas cmplices.

Porm, como no achava deleite algum nas pras, colocava este no prprio pecado, que consistia na companhia dos que pecavam comigo.

CAPTULO IX

O prazer do pecado

E que sentimento era aquele de minha alma? certamente, assaz torpe e eu um desgraado por aliment-lo. Mas, que era na realidade? E quem h que conhea os pecados? Era como um riso, como que a fazer-nos ccegas no corao, provocado por ver que enganvamos aos que no suspeitavam de ns tais coisas, e porque sabamos que haviam de detest-las.

Porm, por que me deleitava o no perpetrar sozinho o roubo? Acaso algum se ri facilmente quando est s? Ningum o faz, verdade; porm, tambm verdade que s vezes o riso tenta e vence aos que esto ss, sem que ningum os veja, quando se oferece aos sentidos

ou alma algo extraordinariamente ridculo. Porque a verdade que eu sozinho nunca teria feito aquilo; no, eu sozinho jamais faria aquilo. Tenho viva, diante de mim, meu Deus, a lembrana daquele estado de alma, e repito que eu sozinho no teria cometido aquele furto, do qual no me deleitava o objeto, mas a razo do roubo, o que, sozinho, no me teria agradado de modo algum, nem eu o teria feito.

amizade inimiga! Seduo impenetrvel da alma, vontade de fazer o mal por passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo de vingana! S porque sentimos vergonha de no ser sem-vergonha quando ouvimos; Vamos! Faamos!.

CAPTULO X

Deus, o sumo bem

Quem desatar este n, to enredado e emaranhado? Como asqueroso! No quero voltar para ele os olhos, no quero v-lo. S a ti quero, justia e inocncia, to bela e graciosa aos olhos puros, e com insacivel saciedade. S em ti se acha o descanso supremo e a vida imperturbvel. Quem entra em ti, entra no gozo do seu Senhor, e no temer, e estar perfeitamente bem no sumo bem. Eu me afastei de ti e andei errante, meu Deus, mui longe de teu esteio em minha adolescncia, e cheguei a ser para mim mesmo uma regio de esterilidade.

LIVRO TERCEIRO

CAPTULO I

O gosto do amor

Cheguei a Cartago, e por toda parte fervilhava a sert de amores impuros. Ainda no amava, mas j gostava de amar; secretamente sedento, aborrecia a mim prprio por no me sentir mais indigente de amor. Gostando do amor buscava o que amar, e odiava a segurana e os meus caminhos sem perigos, porque tinha dentro de mim fonte de alimento interior, de ti mesmo, meu Deus. Eu no sentia essa fonte como tal; antes, estava sem apetite algum dos manjares incorruptveis, no porque estivesse saciado deles, mas porque, quanto mais vazio, tanto mais enfastiado me sentia.

E por isso minha alma no estava bem e, ferida, voltava-se para fora de si, vida de se roar miseravelmente s coisas sensveis; se porm no tivessem alma, no seriam certamente amadas.

Amar e ser amado era para mim a coisa mais doce, sobretudo se podia gozar do corpo da criatura amada. Deste modo manchava com torpe concupiscncia a fonte da amizade, e obscurecia seu candor com os vapores infernais da luxria. E apesar de to torpe e impuro, desejava com af e cheio de vaidade, passar por afvel e corts.

Ca por fim no amor, em que desejava ser colhido. Porm, meu Deus, misericrdia minha, quanto fel no misturaste quela suavidade, e quo bom foste ao faz-lo! Fui amado, e cheguei secretamente aos laos do prazer, e me deixei alegremente enredar com trabalhosos laos, para ser logo aoitado com as varas de ferro ardente do cime, das suspeitas, dos temores, das iras e das contendas.

CAPTULO II

A paixo dos espetculos

Arrebatavam-me os espetculos teatrais, cheios das imagens de minhas misrias e de alimento para o fogo de minha paixo. Mas, por que quer o homem condoer-se ao contemplar coisas tristes e trgicas, que de modo algum gostaria de suportar? Contudo, o espectador deseja sofrer com elas, e at essa mesma dor seu deleite. Que isso, seno rematada loucura? De fato, tanto mais se comove algum com elas quanto menos livre se est de tais afetos, embora chamemos de misrias os sofrimentos prprios, e de compaixo a comiserao do mal alheio.

Porm, que compaixo pode haver em coisas fictcias e representadas? Nelas no se incita o espectador a que socorra a algum, seno que o mesmo convidado apenas angstia, apreciando tanto mais o autor daquelas histrias quanto maior o sentimento que elas nos inspiram. De onde resulta que, se tais desgraas humanas quer das histrias antigas, quer sejam inventadas so representadas de forma a no se excitarem sofrimento ao expectador, este sai aborrecido e murmurando; se porm, pelo contrrio, levado tristeza, fica atento e chora satisfeito.

Quer isso dizer que amamos as lgrimas e a dor? Sem dvida que todo homem busca o gozo; mas como no agrada a ningum ser miservel, e sendo grato a todos ser misericordioso, e como a piedade inseparvel da dor, no seria esta a causa verdadeira para que apreciemos essas emoes dolorosas?

Tambm isso provm da amizade. Mas para onde se dirige? Para onde vai? Por que se atira torrente da pez ardente, s vagas horrendas de negras leviandades em que a amizade se transforma voluntariamente, afastada e privada de sua celestial serenidade que o homem repudia?

Deve-se, pois, repelir a compaixo? De modo algum. Convm, pois, que alguma vez se amem as dores. Mas evita nisso a impureza, minha alma, sob proteo de Deus, do Deus de nossos pais, louvado e exaltado por todos os sculos; cuidado com a impureza. Porque nem agora me fecho a tal compaixo. Mas naquele tempo comprazia-me no teatro com os amantes, quando eles se gozavam em suas torpezas embora estas no passassem de encenaes. E

quando um deles se perdia, eu quase piedosamente me contristava, e sentia prazer numa e noutra coisa.

Hoje, porm, tenho mais compaixo do homem que se alegra em seus vcios, que do que sofre pela perda de um prazer funesto ou pela perda de uma msera felicidade. Esta misericrdia certamente mais verdadeira, mas nela a dor no encontra nenhum prazer. E embora seja certo que se aprove quem por caridade se compadece do miservel, contudo, quem fraternalmente compassivo preferiria que no houvesse razes para se compadecer. Porque assim como no possvel que exista uma benevolncia malvola, tampouco o que haja miserveis para deles se compadecer.

H, pois, dores que merecem compaixo, porm, nenhuma que merea amor. Por isso tu, Deus, que amas as almas muito mais elevadamente que ns, te compadeces delas de modo muito mais puro, porque no sentes nenhuma dor. Mas quem ser capaz de chegar a isso?

Mas eu, desventurado, amava ento a dor, e buscava motivos para senti-la. Naquelas desgraas alheias, falsas e mmicas, agradava-me tanto mais a ao do ator, e me mantinha tanto mais atento quanto mais copiosas lgrimas me fazia derramar.

Mas, que admira que eu, infeliz ovelha transviada de teu rebanho, por no aceitar tua proteo, estivesse atacado de ronha asquerosa? De aqui nasciam, sem dvida, os desejos daquelas emoes de dor que, todavia, no queria que fossem muito profundas em mim, porque no desejava padecer coisas como as que via representadas. Comprazia-me que aquelas coisas, ouvidas ou fingidas, me tocassem s superficialmente. Mas, como acontece aos que coam a ferida com as unhas, terminava por provocar em mim mesmo um tumor abrasador, podrido e pus repelente.

Tal era minha vida. Mas, seria isto vida, meu Deus?

CAPTULO III

O estudo da retrica e os demolidores

Entretanto, tua misericrdia, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantas iniqidades no me corrompi, meu Deus, levado por sacrlega curiosidade que, separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos servios aos demnios, a quem sacrificava minhas ms aes, sendo em todas flagelado com duro aoite por ti!

Tambm ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos da morte na celebrao de teus mistrios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso me aoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, Deus, misericrdia infinita, e meu refgio contra os terrveis malfeitores, com os quais vaguei de cabea erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva!

Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto maior louvor quanto mais hbeis fossem as mentiras. Tal a cegueira dos homens, que at de sua prpria cegueira se gloriam!

Eu j conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retrica, e por isso me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes, Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio s turbulncias dos eversores ou demolidores nome sinistro e diablico que eles consideravam distintivo de urbanidade, entre osquais vivia com imprudente pudor por no pertencer a seu grupo. verdade que andava com eles, e que me deleitava, s vezes, com sua amizade, porm, sempre aborreci o que faziam, como as troas e a insolncia com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos novatos, sem outra finalidade seno rir de suas trapalhadas, fazendo disso alimento para suas malvolas alegrias. Nada h mais parecido a estas aes que as dos demnios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos espritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais.

CAPTULO IV

O Hortnsio de Ccero

Entre essa gente estudava eu, em to tenra idade, os livros da eloqncia, na qual desejava sobressair com o fim condenvel e vo de satisfazer vaidade humana. Mas, seguindo

o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro de Ccero, cuja linguagem, mais do que seu contedo, quase todos admiram. Esse livro contm uma exortao filosofia, e se chama Hortnsio. Esse livro mudou meus sentimentos, e transferiu para ti, Senhor, minhas splicas, e fez com que mudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus olhos toda v esperana, e com incrvel ardor de meu corao suspirava pela sabedoria imortal, e comecei a me reerguer para voltar a ti. No era para limar a linguagem aperfeioamento que, parece, eu compraria com o dinheiro de minha me, naquela idade de meus dezenove anos, fazendo dois que morrera meu pai no era, repito, para limar o estilo que eu me dedicava leitura daquele livro, nem era seu estilo o que a ela me incitava, mas o que ele dizia. Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas terrenas, sem que eu soubesse o que obravas em mim! Porque em ti est a sabedoria, pela qual aquelas pginas me apaixonavam. No faltam os que nos iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome to grande, to doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo e em pocas anteriores, so apontados e refutados nesse livro. Tambm se encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Esprito, dado por meio de teu servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ningum vos engane com vs filosofias e argcias sedutoras, de acordo com a tradio dos homens e os ensinamentos deste mundo, e no de acordo com Cristo, porque nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade.

Mas ento tu bem o sabes, luz de meu corao eu ainda no conhecia o pensamento de teu Apstolo. S me deleitava naquelas palavras de exortao, o fato de me excitarem fortemente, inflamando-me a amar, a buscar, a conquistar, a reter e a abraar no a esta ou quela seita, seno prpria Sabedoria, onde quer que estivesse. S uma coisa me arrefecia to grande ardor: no ver ali o nome de Cristo. Porque este nome, Senhor, este nome de meu Salvador, teu filho, por tua misericrdia eu o bebera piedosamente com o leite materno, e o conservava, no mais profundo do meu corao, em alto apreo; e assim, tudo quanto fosse escrito sem este nome, por mais verdico, elegante e erudito que fosse, no me arrebatava totalmente.

CAPTULO V

A desiluso das escrituras

Em vista disso, decidi dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer. Vi ali algo encoberto para os soberbos e obscuro para as crianas, mas humilde a princpio e sublime medida que se avana o velado de mistrios; e eu no estava disposto a poder entrar nela, dobrando a cerviz sua passagem. Contudo, ao fixar nela a ateno, no pensei o que agora estou dizendo, mas simplesmente me pareceu indigna de ser comparada com a majestade dos escritos de Ccero. Meu orgulho recusava sua simplicidade, e minha mente no lhe penetrava o ntimo. Contudo, a agudeza desta viso haveria de crescer com os pequenos; mas eu de nenhum modo queria ser criana e, enfatuado de soberba, considerava-me grande.

CAPTULO VI

A seduo do maniquesmo

Deste modo vim cair com uns homens que deliravam orgulhosos, demasiado carnais e loquazes; em sua boca havia laos diablicos e engodo pegajoso feito com as silabas de teu nome, do nosso Senhor, Jesus Cristo, e do nosso Parclito e Consolador, o Esprito Santo. Estes nomes nunca saam de seus lbios, porm, s no som e rudo da boca, pois de resto, seu corao estava vazio de toda verdade.

Diziam: Verdade! Verdade! e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, no apenas de ti, que s verdade por excelncia, mas tambm dos elementos deste mundo, criao tua. Sobre isso, mesmo quando os filsofos diziam a verdade, tive de ultrapass-los nos raciocnios por amor de ti, pai sumamente bom, beleza de todas as belezas!

verdade, verdade! Quo intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mos, porm, obras tuas, e no a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais so superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome no daquelas primeiras, mas de ti mesmo, verdade, na qual no h mudana nem obscuridade momentnea!

E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas fices, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento.

Contudo, como as tomava por ti, alimentava-me delas, no certamente com avidez, porque no tinham o teu gosto pois no eras aqueles vos fantasmas nem me nutria com elas, antes sentia-me cada vez mais debilitado. A comida que se toma em sonhos, no obstante ser muito semelhante do estado de viglia, no alimenta aos que dormem, porque esto dormindo. Aquilo, porm, em nada era semelhantes a ti, como agora me certificou a verdade, pois que eram fantasmas corpreos ou falsos corpos; comparados com eles, so mais reais estes corpos celestes ou terrestres que vemos com os olhos da carne assim como os vem os animais e as aves.

Vemos estas coisas, e so mais reais do que as conjecturas sobre outros corpos grandiosos, que, por sua vez, que, por sua vez, quando as imaginamos, so mais reais do que quando por meio delas conjeturamos outras maiores e infinitas, que de modo algum existem. Com tais quimeras me alimentava eu, ento, e por isso no me saciava.

Mas tu, meu amor, em quem desfaleo para me tornar forte, nem s estes corpos que vemos, mesmo no cu; nem os outros que no vemos, porque s o Criador e os ocultaste, e no os consideras como as obras primas de tua criao.

Oh! Quo longe estavas daquelas minhas quimeras, fantasmas de corpos que jamais existiram em comparao, so mais reais as imagens dos corpos existentes; e, mais reais ainda essas imagens, esses mesmos corpos, os quais, todavia, no so tu! Mas tambm no s a alma que d vida aos corpos mas a vida das almas, a vida das vidas, que vives, imutvel, por ti mesma; a vida de minha alma.

Mas onde estavas ento para mim? e quo longe peregrinava eu, longe de ti, privado at as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quo melhores eram as fbulas dos gramticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a poesia e a fbula de Medeia soando pelo ar so certamente mais teis que os cinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de trevas, que no existem, mas que matam a quem nele acredita. Porm, versos e poesia eu os posso converter em iguaria para meu esprito e, quanto ao vo de Medeia, se o recitava bem, no lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, no lhe dava crdito. Mas ai de mim! eu acreditei naqueles erros dos maniquestas.

Ai de mim, por que degraus fui descendo at a profundidade do abismo, exaurido e devorado pela falta de verdade quando te buscava! E tudo isso, meu Deus a quem me confesso porque te compadeceste de mim quando ainda no te conhecia tudo por buscar-te, no com a inteligncia com a qual quiseste que eu fosse superior aos animais mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de mim, mais profundo do que o que em mim existe de mais ntimo, e mais elevado do que o que em mim existe de mais alto.

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudncia enigma de Salomo que, sentada em uma cadeira porta de sua casa, diz aos que passam: Comei vontade dos pes escondidos, e bebei da doura da gua roubada, a qual me seduziu por andar eu vagando fora de mim, sob o imprio da vista carnal, ruminando em meu ntimo o que meus olhos haviam devorado.

CAPTULO VII

Alguns erros dos maniqueus

No conhecia eu outra realidade a verdadeira e me sentia como que movido por um aguilho a aceitar a opinio daqueles insensatos impostores quando me perguntavam de onde procedia o mal, se Deus estava limitado por forma corprea, se tinha cabelos e unhas, e se deviam ser considerados justos os que tinham vrias mulheres simultaneamente, e os que causavam a morte de outros ou sacrificavam animais.

Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da verdade, parecia-me encaminhar para ela, porque no sabia que o mal apenas privao do bem, at chegar ao seu limite, o prprio nada. E como poderia ter eu tal conhecimento, se com os olhos no conseguia ver mais do que corpos, e com a alma no ia alm de fantasmas?

Tampouco sabia que Deus esprito, que no tem membros dotados de comprimento ou largura, nem quantidade material alguma, porque a quantidade ou matria sempre menor na parte que no todo e, mesmo que fosse infinita, sempre seria menor em uma parte definida por um espao determinado do que em sua infinitude, no podendo estar toda inteira em todas as partes, como o esprito, como Deus.

Ignorava totalmente o princpio de nossa existncia, que h em ns, e pelo qual a Escritura nos chama de imagem e semelhana de Deus.

No conhecia tampouco a verdadeira justia interior, que no julga pelo costume, mas pela lei retssima do Deus onipotente. Por ela se ho de formar os costumes dos pases conforme os mesmos pases e tempos, e sendo a mesma em todas as partes e tempos, no varia de acordo com as latitudes e as pocas; lei essa segundo a qual foram justos Abrao, Isaac, Jac e Davi, e todos os que so louvados pela boca de Deus. Os ignorantes, julgando as coisas de acordo com asabedoria humana, e medindo a conduta alheia pela prpria, os julgam inquos. como se um ignorante em armaduras, no sabendo o que prprio de cada membro, quisesse cobrir a cabea com a couraa e os ps com o elmo, e se queixasse de que as peas no se lhe adaptem convenientemente. Ou como se algum se queixasse de que, em determinado dia considerado feriado do meio-dia em diante, no lhe permitissem vender a mercadoria tarde, como acontecera pela manh; ou porque v que na mesma casa permite-se a um escravo qualquer tocar no que no permitido ao copeiro; ou porque no se permite fazer diante dos comensais o que se faz atrs de uma estrebaria; ou, finalmente, se indignasse porque, sendo uma a casa e uma a famlia, no se atribussem a todos as mesmas coisas.

Tais so os que se indignam quando ouvem dizer que em outros tempos se permitiam aos justos coisas que no se lhe permitem agora, e que Deus mandou queles uma coisa e a estes outra, conforme os tempos, servindo uns e outros mesma norma de santidade. E, contudo, bem visvel que no mesmo homem, no mesmo dia e na mesma hora e na mesma casa, o que convm a um membro no convm a outro; e aquilo que h pouco era licito, j no o mais; e que o que se concede em uma parte, justamente proibido e castigado em outra.

Diremos, por isso, que a justia vria e inconstante? O que acontece que os tempos a que ela preside no caminham no mesmo passo, porque so tempos. Mas os homens, cuja vida terrestre breve, por no saberem harmonizar as causas dos tempos idos, e das gentes que no viram nem conheceram, com as que agora vem e experimentam e, como tambm vem facilmente o que no mesmo corpo, na mesma hora e lugar convm a cada membro, a cada tempo, a cada parte e a cada pessoa, escandalizam-se com as coisas daqueles tempos, enquanto aceitam as de agora.

Ignorava eu ento estas coisas e no as refletia e, embora de todos os lados me ferissem os olhos, eu no as via. Quando declamava algum poema, no me era lcito por um p em qualquer outra parte do verso, seno em uma espcie de metro uns e em outra outros, e em um mesmo verso no podia meter em todas as partes o mesmo p; e a prpria arte da prosdia, apesar de mandar coisas to distintas, no era diversa em cada parte, seno uma s e coerente. Contudo, no via como a justia, qual serviram aqueles vares bons e santos, pudesse conter simultaneamente, de modo mais belo e sublime, preceitos to diversos, sem variar em sua essncia, apesar de no mandar ou distribuir aos diferentes tempos todas as coisas simultaneamente, mas a cada um as que lhe so prprias. E, cego, censurava queles piedosos

patriarcas, que no s usavam do presente como Deus lhes mandava e inspirava, mas tambm prediziam o futuro conforme Deus lhes revelava.

CAPTULO VIII

Moral e costume

Acaso ser em alguma parte e momento injusto amar a Deus de todo o corao, com toda a alma e com todo o entendimento, e amar ao prximo como a ns mesmos? Por isso, todos os pecados contra a natureza, como o foram os do sodomitas, ho de ser detestados e castigados sempre e em toda a parte, pois, mesmo que todos os cometessem, no seriam menos rus de crime diante da lei divina, que no fez os homens para usar to torpemente de si; de fato viola-se a unio que deve existir com Deus quando a natureza, da qual ele autor, se mancha com a depravao das paixes.

Com relao aos pecados que so contra os costumes humanos, tambm ho de ser evitados de acordo com a diversidade dos costumes, a fim de que o pacto mtuo entre os povos e naes, firmado pelo costume ou pela lei, no seja quebrado por nenhum capricho de cidado ou forasteiro, porque indecorosa a parte que no se acomoda ao todo.

Todavia, quando Deus ordena algo contra tais costumes ou pactos, sejam quais forem, deve ser obedecido, embora o que mande nunca tenha sido feito; e se no foi cumprido, deve ser restaurado, e se no estava estabelecido, deve-se estabelecer. Se lcito a um rei mandar na cidade que governa coisas que ningum antes dele e nem ele prprio havia mandado, e se no contra o bem da sociedade obedec-lo, antes o seria o no obedec-lo por ser pacto bsico de toda sociedade humana obedecer a seus reis quanto mais deveria ser Deus obedecido sem titubeios em tudo que mandar, como rei do universo? Porque, assim como entre os poderes humanos o maior poder se antepe ao menor, para que este lhe preste obedincia, assim Deus antepe-se a todos.

O mesmo se deve dizer dos crimes perpetrados com desejo de causar o mal, quer por agresso, quer por injria; e ambas as coisas, ou por desejo de vingana, como ocorre entre inimigos, ou por alcanar algum bem sem trabalhar, como o ladro que rouba ao viajante; ou para evitar algum mal, como acontece com o que teme; ou por inveja, como quando um miservel quer mal ao que mais feliz, ou ao que conseguiu riquezas, temendo ser igualado ou que j lhe sejam iguais; ou unicamente pelo prazer de ver o mal alheio, como acontece com o espectador dos combates dos gladiadores, ou com o que se ri e zomba dos outros.

Tais so os princpios ou fontes de iniqidade, que nascem da paixo de mandar, de ver ou de sentir, quer de uma s dessas paixes, ou de duas, ou de todas juntas. Razo por que se vive do mal, Deus altssimo e dulcssimo, contra o saltrio de dez cordas, teu declogo.

Mas, que pecado pode atingir a ti, que no s atingido pela corrupo? Ou que crimes podem ser cometidos contra ti, a quem ningum pode causar dano? O que vingas so os crimes que os homens cometem contra si, porque, mesmo quando pecam contra ti, agem impiamente contra suas prprias almas, e sua iniqidade engana-se a si prpria, quer corrompendo e pervertendo sua natureza feita e ordenada por ti quer usando imoderadamente das coisas permitidas, ou at desejando imoderadamente as no permitidas, pelo uso daquilo que contra a natureza.

Pecam tambm os que com o pensamento e a palavra se revoltam contra ti, dando coices contra o aguilho; ou quando, uma vez quebrados os limites da sociedade humana, alegram-se audaciosamente com as faces ou desunies, de acordo com as suas simpatias ou antipatias. E tudo isso o homem faz quando s abandonado, fonte da vida, nico e verdadeiro criador e senhor do universo, e com orgulho egosta ama-se uma parte do todo como se fosse o todo.

Essa a razo pela qual s se pode voltar para ti com piedade humilde, para assim nos purificares nossos maus costumes; pela piedade te mostras propcio com os pecados dos que te confessam, e ouves os gemidos dos cativos, e nos livras dos grilhes que ns mesmo forjamos, contanto que no ergamos contra ti os chifres de uma falsa liberdade, quer arrastados pela cobia de mais haveres, quer pelo temos de perder tudo, preferindo nosso prprio egosmo a ti, Bem de todos.

CAPTULO IX

Pecados e imperfeies

Mas, entre tantas maldades, crimes e iniqidades, esto os pecados dos que progridem, pecados que os homens de bom juzo vituperam, segundo a regra da perfeio, e louvam pela esperana de frutos futuros, como o verde promissor das colheitas.

H outras aes semelhantes a aes maldosas ou a delitos, e que no so pecados, porque nem te ofendem a ti, Senhor, nosso Deus, nem tampouco sociedade humana; como por exemplo quando procuramos coisas convenientes para o uso da vida e s circunstncias, sem que se saiba se essa busca cobia, ou quando castigamos a algum como desejo de que se corrija, fazendo uso do poder ordinrio, e no se sabe se o fazemos por vontade de mortificar.

Por isso, muitas aes que parecem condenveis aos homens, so aprovadas por teu testemunho; e muitas, louvadas pelos homens, so condenadas por teu testemunho, porque muitas vezes as aparncias do ato diferem das intenes do seu autor, assim como circunstncias ocultas do tempo.

Mas quando ordenas, algo inslito e imprevisto, mesmo que o tenhas proibido uma vez, mesmo que escondas por algum as razes do teu mandamento, mesmo que seja contra as convenes de alguns homens da sociedade, quem pode duvidar de que se h de obedecer, sendo que s justa a sociedade humana que te obedece? Felizes dos que sabem o que tu ordenaste, porque os que te servem fazem tudo o que mandas, ou porque assim o exige o tempo presente, ou para preparar o futuro.

CAPTULO X

Ridicularias dos maniqueus

Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que fazia eu quando me ria deles, seno dar motivo para que te risses de mim? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagncias, a ponto de acreditar que o figo, quando colhido, chora lgrimas de leite junto com a me figueira, e que se um santo da seita comesse o tal figo, colhido no por seu delito, mas de outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava, exalaria anjos e at mesmo partculas de Deus, partculas essas do verdadeiro Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se no fossem libertadas pelos dentes e pelo estmago do santo eleito!

Tambm acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais misericrdia com os frutos da terra que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto, que no fosse maniquesta me pedisse de comer, parecia-me que atend-lo era como merecer, por aquele bocado, a pena de morte.

CAPTULO XI

O sonho de Mnica

Mas estendeste tua mo do alto, e arrancaste minha alma deste abismo de trevas, enquanto minha me, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais do que as outras mes costumam chorar sobre o cadver dos filhos, pois via a morte de minha alma com a f e o esprito que havia recebido de ti. E tu a escutaste, Senhor, tu a ouviste e no desprezaste suas lgrimas que, brotando copiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua orao; sim, tu a escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me negado porque aborrecia e detestava as blasfmias do meu erro?

Nesse sonho viu-se de p sobre uma rgua de madeira; e um jovem resplandecente, alegre e risonho que vinha ao seu encontro, triste e amarga. Este lhe perguntou a causa de sua tristeza e lgrimas dirias, no por curiosidade, como si acontecer, mas para instru-la; e respondendo-lhe ela que chorava a minha perdio, mandou-lhe, para sua tranqilidade, que

prestasse ateno e visse por onde ela estava tambm estaria eu. Apenas olhou, viu-me junto de si, de p sobre a mesma rgua.

De onde veio este sonho, seno dos ouvidos que tinhas atentos a seu corao, Deus bom e onipotente, que cuidas de cada um de ns como se no tivesses outro para cuidar, zelando de todos como de cada um!

E como explicar o que se segue? Contou-me minha me esta viso, e querendo-a eu persuadir de que significava o contrrio, e que no devia desesperar de ser algum dia o que eu era, isto , maniquesta, ela, sem nenhuma hesitao, me respondeu: No; no me foi dito: onde ele est ali estars tu, mas onde tu ests ali estar ele tambm.

Confesso, Senhor, e muitas vezes disse que, pelo que me recordo, me abalou mais esta tua resposta pela solicitude de minha me, imperturbvel diante de explicao falsa e ardilosa, e por ter visto o que se devia ver e que eu certamente no veria sem que ela o dissesse que o mesmo sonho com o qual anunciaste a esta piedosa mulher com tanta antecedncia, a fim de consol-la em sua aflio presente, uma alegria que s havia de se realizar muito tempo depois.

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a me revolver naquele abismo de lodo e trevas de erro, afundando-me tanto mais quanto mais esforos fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viva, casta e sbria como as que tu amas, j um pouco mais ale