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MICHEL MISSE E ALEXANDRE WERNECK (ORGS.) CONFLITOS DE (GRANDE) INTERESSE ESTUDOS SOBRE CRIMES, VIOLÊNCIAS E OUTRAS DISPUTAS CONFLITUOSAS

CONFLITOS DE (GRANDE) INTERESSE · A ofensiva dos empreendedores morais da cultura contra a pirataria de bens culturais digitalizados ... jovens em conflito com a lei e policiais

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MICHEL MISSEE ALEXANDRE WERNECK(ORGS.)

CONFLITOSDE (GRANDE) INTERESSEESTUDOS SOBRE CRIMES,VIOLÊNCIAS E OUTRASDISPUTAS CONFLITUOSAS

Conselho editorial

Bertha K. BeckerCandido MendesCristovam Buarque Ignacy SachsJurandir Freire CostaLadislau DowborPierre Salama

MICHEL MISSEE ALEXANDRE WERNECK(ORGS.)

CONFLITOSDE (GRANDE) INTERESSEESTUDOS SOBRE CRIMES,VIOLÊNCIAS E OUTRASDISPUTAS CONFLITUOSAS

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qual-quer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

Copyright © 2012, dos autores

Direitos cedidos para esta edição àEditora Garamond Ltda.

Rua Cândido de Oliveira, 43 - Rio CompridoRio de Janeiro - Brasil - 20.261-115

Tel: (21) [email protected]

RevisãoCarmem Cacciacarro

Editoração EletrônicaEstúdio Garamond / Luiz Oliveira

CapaEstúdio Garamond / Anderson Leal

Capa sobre foto de David Goehring, disponível em http://www.flickr.com/photos/car-bonnyc/3542554119/ sob licença Creative Commons “Atribuição”.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C759Conflitos de (grande) interesse : estudos sobre crimes, violências e outras disputas conflituosas / organização Michel Misse e Alexandre Werneck. - Rio de Janeiro : Garamond, 2012. 360p. : 14x21 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85- 7617-277-21. Criminologia - Brasil. 2. Crime - Aspectos sociais. 3. Crime e Criminosos - Aspectos sociais. 4. Violência - Brasil. 5. Violência - Aspectos sociais. I. Misse, Michel, 1951-. II. Werneck, Alexandre, 1957-.

12-5561. CDD: 364 CDU: 364:343.9

Sumário

O interesse no conflitoMichel Misse e Alexandre Werneck ............................................................7

I - LeI e ORDeM

Sistema de justiça criminal no Brasil: discutindo aspectos de seu funcionamento a partir de uma tipologia de homicídios dolososKlarissa Almeida Silva ..............................................................................29

As delegacias e suas especialidades: algumas considerações sobre a atividade policial civil especializada no Rio de JaneiroAndréa Ana do Nascimento.......................................................................59

O faro: habilidades, experiências e situações em um ambiente de controle de fronteiras na ArgentinaBrígida Renoldi .........................................................................................83

Rio em forma olímpica: a construção social da pacificação na cidade do Rio de JaneiroMarcella Carvalho de Araujo Silva ........................................................117

II - ORDeM FORA DA LEI

Usuário é criminoso? A ofensiva dos empreendedores morais da cultura contra a pirataria de bens culturais digitalizadosArthur Coelho Bezerra ............................................................................131

A luta dos “de bem” contra os “do mal”: justificações dadas para linchamentosDanielle Rodrigues .................................................................................155

“Frios”, “pobres” e “indecentes”: esboço de interpretação de alguns discursos sobre o criminosoCesar Pinheiro Teixeira ..........................................................................179

“Ninguém é peito de aço”: um olhar sobre as relações entre jovens em conflito com a lei e policiais no Rio de JaneiroNatasha Neri ..........................................................................................205

entre cálculos e dívidas: a dinâmica das relações comerciais no tráfico de drogas praticado por jovens de classe média no Rio de JaneiroCarolina Christoph Grillo ......................................................................227

III - CONFLITOS E VIDA SOCIAL

O fenômeno do pânico moral: apreciações clássicas, inovações e problematizações contemporâneasRodrigo Marques ....................................................................................251

Codificação sistêmico-binária do roubo de um canário belgaAntônio Carlos Luz Costa .......................................................................289

A ideia de exterminismo em e. P. Thompson: realismo e contradiçãoRicardo Gaspar Müller ...........................................................................305

A contribuição de uma abordagem pragmatista da moral para a sociologia do conflitoAlexandre Werneck ..................................................................................337

Sobre os autores .....................................................................................355

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O interesse no conflitoMichel Misse e Alexandre Werneck

O título desta coletânea alude a um triplo significado: “conflitos de interesse”, como se sabe, refere-se primeiramente à impossibilidade ética de se manifestar ou agir institucionalmente a respeito de terceiros com os quais se tenha muita proximidade social, familiar ou profissional, ou ainda com os quais se tenha interesses comuns (estejam estes combinados ou em disputa). É uma expressão muito usada em avaliações e auditorias, situações nas quais alguma dessas formas de proximidade social deve eticamente impedir que se aceite participar como avaliador ou auditor. É o primeiro sentido que nos vem à mente nos dias atuais, quando a expressão tem sido insistentemente incluída em editais e convites para a análise de projetos e artigos científicos, concorrentes em licitações de obras, concursos de poesia ou para o magistério e convocações de auditoria de órgãos públicos: deve-se evitar avaliar aquilo com que se tenha conflitos de interesse. Curiosamente, do ponto de vista do virtual excluído, o que há não é propriamente conflito de interesses, mas, pelo contrário, interesses em comum. O conflito é com os interesses da instituição avaliadora.

entretanto, uma segunda leitura pode impor o significado, mais antigo e tradicional, de que se trata de um tipo particular de conflito, aquele guiado por interesses materiais e não por princípios, como quando dizemos, por exemplo, que os conflitos sindicais são meramente conflitos de interesse. Nesse caso, quer-se diferenciar esse tipo de embate para o qual a legitimidade é reclamada daqueles outros em que o objeto em questão não pode ser reduzido a interesses legítimos. Nesse sentido, o interesse pode ser por um ideal, um ideário, uma doutrina, um sistema de

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valores, cuja legitimidade é disputada por outros ideais, outras doutrinas ou mesmo outro sistema de valoração. Max Weber chamou esse caso de “interesse ideal”, para distingui-lo do interesse (propriamente dito) material.

O primeiro e o segundo significados da expressão encontram-se, assim, na ponte (ou por baixo da ponte) que envolve interesses (materiais e ideais), valores morais e orientações éticas.

O terceiro significado é o mais prosaico, mas nos interessa mais aqui: conflitos de interesse são os conflitos que nos interessam, aqueles sobre os quais depositamos nossa atenção e que recortamos do variado conjunto de conflitos sociais que circula pelo mundo. São os conflitos de nosso interesse e que, por isso mesmo, aqui estão.

Antes de ingressarmos em sua delimitação, no entanto, teremos de percorrer os dois significados anteriores: o primeiro diz respeito a limites éticos da ação, o segundo quer saber da diferença ou afinidades entre limites éticos e interesses, ou simplesmente da guerra de interesses ou, grandiosamente, da “guerra entre deuses”. Isso nos conduz a nos perguntar qual é, afinal, o nosso interesse no tema do conflito.

O conflito na teoria socialO interesse do conflito para a teoria social é sabidamente grande,

quando não central. Embora atenuado pelas abordagens funcionalistas e sistêmicas, que enfatizaram mais o problema da ordem e da integração social – quando o conflito aparece apenas negativamente, como tensão, ruptura, disfunção, desvio, porta de entrada da anomia –, a importância desse objeto é, por motivos diferentes, determinante na teoria marxista, em grande parte da obra de Weber e na sociologia de Simmel, assim como em seus desdobramentos na Escola de Chicago. Charles Horton Cooley, pioneiro da sociologia americana, escreveu que “o conflito, de algum modo, é a vida da sociedade, e o progresso emerge de uma luta em que indivíduos, classes ou instituições buscam realizar sua própria ideia de bem”.

Na teoria social contemporânea, a reação às abordagens estrutural-funcionalistas, que enfatizam o que Parsons chamou de “institucionalização das expectativas de papéis”, produziu e vem

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produzindo diferentes contribuições sobre o conflito social e sua centralidade nas formações sociais e na interação entre atores de variadas dimensões da análise. Autores tão diferentes quanto Althusser e Dahrendorf, Poulantzas e Lensky, Foucault e Bendix, Habermas e John Rex, Honneth e Collins, Coser e Bourdieu podem ser aproximados quando se trata de enfatizar o papel fundamental do conflito como uma constante na história humana.

Há meio século, em uma revisão sintética desse conceito, Raymond Mack e Richard C. Snyder enumeraram dezenas de proposições de diferentes autores, galeria cuja análise lhes permitiu chegar a cinco proposições básicas e comuns a todas as abordagens compulsadas. Como Simmel já havia anteriormente argumentado, a primeira e mais importante proposição é que

1) o conflito requer ao menos duas partes ou duas unidades analiticamente distintas e, como tal, é uma relação de interação entre elas.

Além disso, 2) ele difere da competição, que é estritamente regulada, por buscar

destruir, ferir, frustrar ou controlar/dominar a outra parte;3) origina-se da diferença de posições, de recursos e/ou de poder,

como também a produz;4) não é uma ruptura ou um término da interação, mas, ao contrário,

um processo de interação social fundamental;5) o conflito acaba (ou é suspenso) com processos de acomodação

ou assimilação da parte derrotada ou dominada e, portanto, tende a se transformar, pelo processo de institucionalização, em “solução de compromisso” e/ou disputa regulada. O apaziguamento daí resultante, no entanto, seria menos constante que o conflito, que voltaria a irromper, entre as mesmas partes, entre partes consequentes do conflito anterior ou entre outras partes. e a memória do conflito também poderia contagiar novos conflitos.

Dois polos típico-ideais estão contidos no conceito de conflito social, o que tem redundado em acalorado conflito teórico (na verdade, hoje em dia, mais em competição do que em conflito) entre seus protagonistas.

No primeiro extremo, de fundamentação marxista ou weberiana, a ênfase é em uma abordagem macro, que sublinha o caráter já dado das

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condições que causam conflitos, a exploração e dominação de classe, para uns, a crise de legitimação na distribuição desigual de poder, para outros. Nas abordagens mais contemporâneas, parte de feministas e pós-estruturalistas partilham desse extremo teórico.

No outro polo perfilam-se os que defendem uma abordagem micro, herdeira de Simmel, do pragmatismo e da Escola de Chicago, que sublinha o caráter construído e interacional ou situacional do conflito. Aqui, a ênfase é posta na produção de significados moralmente divergentes, cujo conflito envolve antes “situações” ou “interações” que “indivíduos”. estes agem conflituosamente ou não em função da definição de um situ conflitivo, que é sempre contextual e interativo, por mais abrangente que possa ser.

Os dois polos se tocam, no entanto, quando se trata da fundamentação analítica do conceito: não há conflito de três lados; um terceiro ou é objeto do conflito ou seu tertium, sua solução. Como ele envolve analiticamente apenas duas partes (todas as outras tenderão a se perfilar com um ou outro lado), a contradição não parece nascer de diferenças naturais ou individuais, mas da própria interação que constitui essas duas partes e seus respectivos atores. Marx e Simmel concordariam, cum granum salis, com essa proposição geral.

Pois se o conflito é, assim, um atributo necessário e geral a todas as sociedades humanas, então a questão sobre o interesse no conflito se transfere para o seu reverso, o conflito de interesses (sejam materiais ou ideais). A disputa de significados morais ou de interesses econômicos ou políticos, a luta para impor um interesse ideal (de salvação da alma, por exemplo) sobre outros interesses, inclusive ideais (como o conflito entre convicções religiosas e científicas). Tudo isso pode assumir tanto uma dimensão macrossociológica quanto microssociológica. A questão que atravessa a ambas, entretanto (embora não venha a ter tratamento analítico comum), é a de compreender o que torna um conflito legítimo para as suas partes e o que o torna ilegítimo, pelo menos para uma delas. O problema aqui tem relação com o grau maior ou menor de adesão ao significado de que a situação é de conflito e não de “violência” pura e simples – ou seja, de que a diferença entre os homens seja lida apenas como discordância e não como agressão moral irreconciliável. Embora

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o conflito possa (e geralmente o faz) recorrer à força desproporcional (como meio ou como fim, não importa), algumas situações são definidas pelas pessoas como conflituosas e outras são definidas como violentas. É bem verdade que o conflito de significações morais pode muito bem estar fazendo com que uma parte veja apenas conflito onde a outra vê violência, mas o que interessa é que uma delas seja vitoriosa – digamos, a que vê violência onde a outra vê apenas conflito.

Pois o que torna um conflito legítimo e outro um crime é um processo semelhante. Nele, digamos segundo uma descrição parsoniana, uma dominação consegue legitimar e institucionalizar uma pauta de expectativas de papéis a expensas de outra. No entanto, e contra Parsons, essa mesmíssima pauta de valores já dada foi ela própria construída como consensual apenas após a vitória de uma parte sobre a outra e com sua institucionalização tornada hegemônica. Foi construída pelo conflito ou pela violência, dependendo de quem for o intérprete do processo histórico de sua construção. O caráter já dado é, assim, parte da dominação legítima e não da natureza da sociedade. Ele é também um construto. Nesse sentido, encontramos mais uma vez uma ponte entre a abordagem micro e a abordagem macro, desde que se aceite que o tema principal do conflito social é uma diferença de posições, uma relação desigual de poder/dominação quanto a lugares ocupados e/ou recursos disponíveis.

O conflito interno contido nas situações de conflitoMas quer partamos de uma abordagem, quer da outra, o conflito não

é a própria diferença. ele é, antes, uma consequência dela. Trata-se, assim, de um acontecimento, uma inter-ação. Trata-se mesmo é de uma resposta dos atores, e nasce necessariamente da constatação, por uma das partes, da diferença entre elas e de sua negatividade.

De modo que o processo constitutivo do conflito de interesse que estabelece a conflituosidade está centrado em uma operação discreta: a acusação. Essa ação constitui um movimento moral de estabelecimento de papéis: de um lado, alguém que se investe do direito (e do dever, por que não?) de apontar o outro como a “causa” de uma negatividade. A etimologia ajuda a ter uma imagem clara de suas capacidades: acusar

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vem do latim accusare, formado por ad, contra, e causari, apontar como causa. É algo de fácil percepção para qualquer um de nós, considerando nossa experiência prática com mundos como o direito ou a disciplina moral: temos em mãos uma cena, na qual tem lugar uma manifestação de discordância forte e de mobilização reativa em relação a uma (posi)(a)ção de outrem.

É, entretanto, primordial qualificar o fenômeno. Porque antes de ser uma forma pura, a acusação pode ser entendida como uma forma específica de um outro fenômeno social mais geral, a saber, a crítica.

Se não, vejamos: tanto acusação quanto crítica são movimentos nos quais se aponta o dedo para o outro e se diz que ele é o lado problemático de uma diferença não aceitável. Mas enquanto a crítica é operacionalizada por meio de um dispositivo cognitivo chamado responsabilidade, a acusação é por meio de outro, chamado culpa. Do ponto de vista operacional, a responsabilidade diz respeito à associação direta entre agente e ação, de modo que a questão aberta em uma responsabilização recai sobre o sentido da ação (sentido, no sentido propriamente weberiano). A responsabilidade pergunta ao agente que sentido ele dá para uma ação a princípio sem nenhum. De modo que se pode dizer que uma crítica é um procedimento segundo o qual se aponta a falta de sentido de uma ação. Essa falta de sentido se baseia na aposta de que, na determinada situação, o ator que fará a crítica imaginava que produzir sentido corresponderia a estar de acordo com um determinado “vocabulário de motivos”, ou, em outras palavras, corresponderia a estar de acordo com uma moral.

A crítica, então, aponta para o criticado a responsabilidade de dar sentido à situação, ou seja, para uma obrigação de dar uma resposta. A etimologia do termo é indicativa aqui também: “responsável” vem do francês responsable, derivado do verbo em latim respondère, “afirmar, assegurar, responder”. Ela é, assim, estruturalmente, um jogo aberto, uma abertura à negociação: se a ação parece inócua, ela o é porque não foi falada (ou seja, agida) na língua de sustentação que se esperava que se usasse em determinado caso. Mas o primordial aqui é que a crítica parte do pressuposto de que os envolvidos reconhecem a existência e validade de uma pluralidade desses vocabulários e uma possibilidade

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comum de mobilização de alguns deles em uma mesma situação, de modo que a questão é a expectativa em torno das apresentações de sustentações cabíveis para o que se fez.

A responsabilização é um recurso do dever que lança sobre o criticado uma lembrança de um compromisso: se se quer pertencer a este meio, a sociedade, é preciso se explicar, dar conta do que se faz. A aposta da crítica, então, é que todos nós, diante de uma crítica, somos lembrados de nossa responsabilidade com o mundo ao sermos responsabilizados pela falta de sentido do que aconteceu e pelo próprio acontecimento em si: fomos nós que o causamos, logo somos nós que devemos dar a ele lógica.

Pois bem, essa responsabilização pode também ser (e talvez a maioria das vezes seja) operacionalizada segundo um procedimento particular: uma crítica pode ser mobilizada adotando-se como ponto de partida não um pluralismo moral, mas, em vez disso, uma pretensão de universalidade de um princípio, usado como base da responsabilização. Nesse caso, trata-se de construir um tom acusatorial para a admoestação: ali, pressupõe-se que tanto o criticado (acusado) quanto aqueles no entorno devem reconhecer como legítimo e indiscutível o princípio moral considerado pelo crítico (acusador) como desrespeitado. Por conta disso, por sua pretensão à indiscutibilidade, a acusação será operacionalizad(ora/a) da/pela culpa, ou seja, a demanda pelo estabelecimento de um nexo entre a ação e sua necessária punição (e não apenas sua lógica, como na responsabilidade). Trata-se, então, de uma forma radicalizada da crítica, na qual o pluralismo de gramáticas morais é reduzido a uma unidade lógica pela reificação de uma das moralidades. Naturalmente, o exemplo limite é a acusação de crime: a lei tem justamente essa pretensão de universalidade. Dessa maneira, a crítica feita a alguém que praticou um ato criminalizado está no horizonte dessa indiscutibilidade da negatividade moral do ato. E, diferentemente do caso geral da crítica, aqui não estamos diante de um pedido de explicações. A acusação, em vez disso, procede de uma declaração de punibilidade. O centro da situação de acusação não é a disputa em torno dos elementos de um acordo. É, em vez disso, a legitimidade – a necessidade mesmo – de punição.

A situação que resulta em uma acusação, então, parte dessa pretensão de que se autoinveste a parte “ofendida” no conflito. Ou seja,

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redunda de um procedimento de reificação que busca ocultar o caráter originalmente negociável das disputas morais, tornando-as dadas aos olhos dos envolvidos.

O crime como conflito moralmente ilegítimo e ilegalA institucionalização de uma pauta de expectativas de papéis

sociais nas sociedades modernas deu-se por meio de um duplo processo: o monopólio estatal do uso da força legítima e, além da internalização de valores comum a outras sociedades, a valorização da autonomia individual de escolha sob autocontrole racional do próprio comportamento, associada à disciplina do corpo e à regulação do contato físico e social, ambas aprendidas nos aparelhos ou dispositivos de Estado (ou, em termos genéricos, nas instituições sociais): famílias, escolas, quartéis, fábricas, igrejas, asilos, hospitais, conventos, prisões, empresas, partidos etc.), assim como nos espaços públicos de circulação (ruas, praças, praias, esquinas, cinemas, teatros, cultos, comícios etc.). esse longo e complexo processo histórico, iniciado pela modernidade europeia, como que alienou grande parte dos conflitos, transferindo seu encaminhamento ou administração do seio da sociedade e da vida cotidiana para os dispositivos administrativos do Estado e para uma dimensão temporal específica.

Esse monopólio legítimo do uso da força desproporcional pelo Estado só se torna possível quando se consegue criminalizar (ou seja, reificar sua negatividade moral de uma forma pétrea na lei de modo a tornar sua punibilidade indiscutível) o uso privado dessa mesma força desproporcional na resolução de conflitos, uso tão comum no passado, quando eles eram assunto das famílias, clãs e aldeias. A crescente separação entre as esferas pública e privada permite também a distinção dos conflitos entre os privados e os públicos, entre os quais encontram-se os crimes. Com isso, uma imensa pauta de conflitos deixa de ser percebida como tal e passa a se constituir, moral e juridicamente, como crime. Os comportamentos de má-fé (fraudes, furtos, enganação, chantagem etc.) e os conflitos de honra e disputa por valores (calúnias, difamações, atentados à honra, racismo, status de masculinidade etc.), ambos da esfera privada (mais ainda assim passíveis de resolução

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jurídica); e os conflitos de ruptura com o monopólio da ordem pública pelo Estado (os que recorrem ao uso da intimidação e do uso da força física e de armas – roubos, brigas, atentados, homicídios), agravados pelo estatuto moderno da mens rea (intencionalidade do ato) ou atenuados como decorrentes de negligência, todos vêm igualmente a constituir a esfera criminal dos conflitos, aqueles moralmente ilegítimos e jurídica e judicialmente ilegais. São crimes do ponto de vista moral, para os quais poderá haver demanda de incriminação legal.

Por isso mesmo, não faz muito sentido, do ponto de vista sociológico (embora não do ponto de vista “criminológico”), distinguir os crimes dos conflitos sociais, a não ser pelo fato de que uns são reprimidos e outros administrados, uns são ilegais e outros legais. Mas as partes de ambos, os indivíduos ou sujeitos do conflito, não se distinguem entre si nem pela natureza do conflito, nem por seus meios e fins. Todos conflitam igualmente, apenas com recursos legais ou ilegais, legítimos ou ilegítimos, contando com o Estado ou contra (ou indiferentemente a) ele.

Mas eis aí uma diferença e tanto. embora não haja uma essência do crime que possa distingui-lo de outros tipos de conflito que não seja sua ilegalidade (que não está nele, mas no processo que a atribui), sua reprovação moral subsiste, e em muitos casos a repulsa moral que provoca restitui à hegemonia a atualidade de sua vitória e à dominação legítima o caráter não de dominação e, sim, de consenso, de largo contrato social aceito voluntariamente por todos.

Curiosamente, a condição da repulsa moral a esse tipo de conflito que vem a ser o crime é a mesma que permite a legitimação dos demais conflitos sociais como competição regulada. Os conflitos desaparecem, seja transformando-se em crimes, seja virando competição institucionalizada, por meio de sua abrangente judicialização. Firma-se, assim, a adesão à ideologia de uma sociedade sem conflitos, fundamentada em sua humanidade comum, democrática e liberal, e nos seus valores últimos, potencialmente partilháveis por todos. Os resquícios conflituais deverão merecer tratamento argumentativo (Habermas) ou pragmático.

Por tudo isso, o crime pode ser dito, com razão, antissocial. Mas os diferenciais de sua perseguição seguirão orientações distintas, já que o