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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/307167210 Consciência animal: para além dos vertebrados Article · March 2009 CITATION 1 READS 746 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: ANICARE - Educate Animal Welfare as a Farming Opportunity View project Current and Future Ethical Challenges Facing the Veterinary Profession in Ireland View project Manuel Magalhães Sant'Ana Faculty of Veterinary Medicine, University of Lisbon 32 PUBLICATIONS 89 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Manuel Magalhães Sant'Ana on 08 September 2016. The user has requested enhancement of the downloaded file.

Consciência animal: para além dos vertebrados · Jornal de Ciências Cognitivas Março, 2009 1 Consciência animal: para além dos vertebrados Manuel Magalhães-Sant’Ana Instituto

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Consciência animal: para além dos vertebrados

Article · March 2009

CITATION

1READS

746

1 author:

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

ANICARE - Educate Animal Welfare as a Farming Opportunity View project

Current and Future Ethical Challenges Facing the Veterinary Profession in Ireland View project

Manuel Magalhães Sant'Ana

Faculty of Veterinary Medicine, University of Lisbon

32 PUBLICATIONS   89 CITATIONS   

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Jornal de Ciências Cognitivas Março, 2009

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Consciência animal: para além dos vertebrados

Manuel Magalhães-Sant’Ana

Instituto de Biologia Molecular e Celular, Universidade do Porto, Porto, Portugal

Médico Veterinário, Mestre em Bioética - [email protected]

Resumo:

O delicado tema da consciência animal envolve três dimensões principais: a

cognição, a auto-consciência e a senciência. Da sua compreensão, e da análise de

estudos científicos recentes, resulta a dúvida sobre a possível presença de consciência

nos animais invertebrados. E é esta dúvida que nos permite estabelecer um argumento

capaz de fazer incluir os invertebrados na esfera da moralidade.

Introdução:

Na pequena localidade de Castelcutó, na Sicília, um grupo de rapazes no dealbar da

adolescência e inconscientes das tribulações que se avizinham, procura distracções para

os seus dias. É Primavera, no ano de 1940, e a Itália de Mussolini prepara-se para

participar ufana na Segunda Grande Guerra. Os amigos de Renato Amoroso, enquanto

esperam no solarengo passeio à beira-mar pela passagem de Malèna, a mais bela mulher

da povoação, divertem-se a queimar uma formiga. Usando uma lupa graduada, eles

fazem incidir os raios de Sol sobre o diletante insecto:

“- Piné, o que achas? A formiga sabe que está arrumada?”

“- Eu é que sei?”

“- Se for como tu, não sabe coisa nenhuma!”, e soltam uma sonora gargalhada, um

pouco forçada.

A formiga tenta debalde escapar ao feixe luminoso e contorce-se em movimentos

espasmódicos e desesperados. A batalha dura alguns segundos até a formiga se deter,

funérea e de patas para o ar. Um estranho silêncio apodera-se dos jovens, até aqui

jocosos. Olham a formiga jacente como que surpreendidos com o desfecho letal da sua

brincadeira; Piné, que segura a lupa na mão esquerda, entoa uma oração, repetida por

todos:

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“- De culpas estou lavado, fui por Jesus resgatado.”1

A situação narrada, apesar de ficcionada, serve de mote e de ponto de partida para

este artigo que pretende ser uma reflexão sobre os animais invertebrados e que incide

em questões como a senciência, a consciência e o estatuto moral. Para avançarmos,

torna-se indispensável clarificar alguns destes conceitos.

Animais invertebrados – uma definição

Calcula-se que os animais invertebrados, isto é, todos aqueles desprovidos de coluna

vertebral, correspondam a mais de 99% de todas as espécies animais do planeta

(Strickberger 2000). Considero ser este um número suficientemente abrangente para os

incluirmos na nossa reflexão. São seres normalmente pequenos e, na sua maioria,

marinhos fugindo ao convívio e compreensão da espécie humana; a maior parte dos

invertebrados terrestres são artrópodes, de que fazem parte os insectos (como a formiga)

e os aracnídeos (como a aranha). O estudo destes animais (como a entomologia e a

malacologia) foi visto durante centenas de anos como um ramo pobre da zoologia, no

qual não valia a pena despender demasiado tempo; honrosa excepção foi Jean-Baptiste

Monet, Cavaleiro de Lamarck, que desenvolveu um trabalho notável na compreensão e

classificação sistemática dos “animais sem vértebras” (Lamarck 1801), tanto mais que

foi ignorado pelos cientistas coevos. O conhecimento que a ciência moderna trouxe

sobre a anatomia, fisiologia e biologia destes animais não alterou, no entanto, a

concepção psicológica que deles fazemos. Herdeiros do pensamento aristotélico,

consideramos ainda hoje os invertebrados como seres inferiores, em contraponto com

os superiores vertebrados. Mesmo sabendo que a evolução das espécies, alicerçada nas

teorias darwinianas, não obedece a critérios perfeccionistas ou teleológicos, a verdade é

que estabelecemos esta convicta divisão que se encontra expressa, por exemplo, no

Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa.

1

Excerto do filme “Malèna” realizado por Giuseppe Tornatore. Produção de Medusa

Film/Miramax Films, Itália/EUA, 2000. Tradução do autor a partir da tradução original.

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Cognição, auto-consciência e senciência

É fundamental compreender exactamente de que falamos quando abordamos o

“problema duro da consciência” (Curado 2007). Não me proponho apresentar uma

definição própria de consciência mas considero, no que aos animais diz respeito, ser

importante distinguir três dimensões da palavra consciência, que se interligam e

complementam, e que se encontram explanadas na Tabela 1.

Tabela 1: CONSCIÊNCIA ANIMAL - As relações entre Cognição, Auto-consciência e Senciência.

Capacidade Mental

Designação segundo Block

1995

Software envolvido

Procedimento Mental

Estratégia usada Processo

Básico Função

Ontogénica Função

Filogénica

Cognição Access

Consciousness Memória

Rules of thumb (fazer associações e

categorias conceptuais a partir

de informação sensorial)

Comparação; ligação;

encadeamento; mapeamento

espacial.

Tentativa e erro

(estímulo – resposta)

Aprendizagem

Adaptação à mudança (Evolução)

Auto -Consciência

Monitoring and self-

consciousness Mente

Metacognição (responder a

processos cognitivos internos)

Cálculo numérico; representação

abstracta; análise lógica;

pensamento indutivo e dedutivo.

Raciocínio e pensamento integrante

Compreensão

Senciência Phenomenal or

emotional consciousness

Sistema nervoso

e órgãos dos

sentidos

Percepção subjectiva da

qualidade dos inputs sensoriais

Assimilação de sensações

e percepções.

Reforços sensoriais positivos negativos

Evitar lesões físicas e prevenir

situações perigosas

A cognição (ou representação cognitiva) diz respeito aos processos pelos quais o

animal assimila, processa e armazena informação (Dawkins 2001). A auto-consciência

pode se descrita como a capacidade em manter uma representação mental da sua própria

dimensão física e dos seus próprios estados fisiológicos internos (Budiansky 1998) e

envolve uma miríade de estados mentais que se traduzem em pensamento, memória e

sensação (Griffin 1976). Por último, a senciência (ou consciência fenomenal)

corresponde à capacidade em experimentar sensações subjectivas tais como dor ou

prazer. Estes três vértices da consciência, estudados em detalhe na psicologia e

neurofisiologia humanas, são de muito difícil acesso nos animais não humanos e

despoletam muitas dúvidas e contradições. A consciência animal é um campo do

conhecimento que não reúne consensos mas do qual se esperam enormes evoluções nos

próximos anos. Para a etóloga britânica Marian Stamp Dawkins, a consciência é o maior

mistério ainda por desvendar que a biologia enfrenta (Dawkins 2001).

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A cognição é um processo muito avaliado em zoologia, o que não quer dizer que seja

bem compreendido. Acredita-se que esteja presente em todos os animais vertebrados,

onde se podem encontrar processos cognitivos muito diferentes. A avaliação das

estratégias cognitivas varia consoante a biologia de cada espécie e são essas diferenças

que fazem com que seja difícil dizer se um animal é cognitivamente mais complexo do

que outro: um morcego-ferradura (animal gregário, noctívago, insectívoro, voador e que

se guia por ecolocação) difere diametralmente de uma foca-leopardo (animal marinho

de águas frias, carnívoro e solitário), embora sejam ambos mamíferos.

A auto-consciência é a forma de consciência animal que mais dúvidas suscita e que

mais tem apaixonado neuro-psicólogos e etólogos. São famosos os estudos de

linguagem gestual realizados em primatas superiores nas décadas de 70 e 80 do século

passado, estudos esses que fizeram correr rios de tinta na defesa da metacognição

animal, mas principalmente na sua refutação. A dúvida persiste sobre se os símios

antropóides são capazes de se verem si próprios como indivíduos e de pensar em

pensamentos2, mas entretanto outros animais já entraram nesta corrida como golfinhos,

elefantes e pegas.

Em relação à consciência fenomenal ou senciência, e mesmo na ausência de

unanimidade, existe uma aceitação generalizada de que pelo menos todos os vertebrados

são sencientes. É plausível que a senciência não seja um fenómeno de tudo ou nada e

que se apresente com diferentes graus: assim sendo, mamíferos e aves seriam mais

sencientes do que répteis, anfíbios e peixes. Estudos recentes (Sneddon 2003) parecem

comprovar, no entanto, que os peixes (denominados vertebrados inferiores) são capazes

de experimentar dor física e psicológica de modo muito análogo aos mamíferos. A

senciência é o aspecto da consciência animal que mais importância prática possui, na

medida em que nos permite saber a melhor forma como cada animal deve ser tratado e

assim estabelecer medidas capazes de promover o seu bem-estar.

A generalização sobre as capacidades mentais, cognitivas e sensoriais dos animais

aqui deixada não deve ser encarada como uma verdade factual mas antes um conjunto

de teorias, que correm o risco de se tornarem falaciosas na medida em que, de facto, não

sabemos exactamente do que estamos a falar. Darwin foi o primeiro a referir-se à

consciência como um fenómeno evolutivo adaptativo e não a uma prerrogativa da

espécie humana. Por alguma razão, os animais conscientes tornaram-se mais aptos do

2 Tradução do inglês think about thoughts.

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que aqueles que regiam as suas acções por simples regras de tentativa e erro (Dawkins

2001). Mas as melhores evidências científicas ainda não foram capazes de cabalmente

definir quais as espécies animais capazes de acompanhar o ser humano na posse de

consciência reflexiva e na capacidade em formular pensamentos abstractos. Mesmo

experiências que comprovam o uso de raciocínios complexos por parte de animais, não

chegam para comprovar que eles são seres conscientes (Dawkins 1998). E desta forma,

a classificação estabelecida não serve para mais do que estabelecer uma fronteira entre

animais (e entre os animais e nós próprios) que pode, na realidade, não existir.

Os invertebrados e a consciência

E quanto aos invertebrados, onde se situam no quadro da consciência animal? A

convicção, quase universal, na sociedade ocidental é a de que os invertebrados são

animais incogniscientes, inconscientes e insencientes. Esta é, talvez, a hipótese sobre

consciência animal que menos discordância gera, embora esteja longe de ser uma

verdade científica.

Piné e seus amigos queimam uma formiga até à morte. Nada de muito condenável

parece existir neste comportamento (quantas travessuras envolvendo animais não

fizemos, ou assistimos, na nossa meninice?). Para todos os efeitos, foi só uma formiga

(um insecto, portanto). E quantos de nós se deteriam de esmagar uma formiga se esta

tivesse o fadário de nos percorrer o pescoço? Ao acreditarmos que os invertebrados não

pensam, não sentem e não sofrem, estamos a considerá-los absolutamente desprovidos

de consciência, em todas as suas dimensões. E, desta forma, assumimos que a nossa

conduta para com eles tem tanta importância como tem a nossa atitude para com um

automóvel ou para qualquer outra entidade incapaz de pensar, sentir ou sofrer.

Podemos encontrar na literatura várias vozes capazes de pôr em causa a ausência

liminar de consciência nos invertebrados e que vão desde Darwin até filósofos e

cientistas contemporâneos. Em The Descent of Man, Charles Darwin ([1871] 2001)

teoriza:

Os animais inferiores, tal como o Homem, manifestamente sentem prazer e dor,

alegria e tristeza. (...) Até os insectos brincam juntos, como foi descrito pelo

excelente observador, P. Huber, que viu formigas perseguindo-se uma às outras e

fingindo morderem-se, como se fossem cachorrinhos.

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Mais recentemente, o filósofo inglês Stephen Clark (1985) deixa-nos o aviso de que

“mesmo criaturas cujo comportamento parece, à primeira vista, ser uma mera resposta a

estímulos sensoriais, de acordo com a sua disposição natural, podem ser mais

complexos do que imaginamos.” Num artigo em que se apontam as seis principais

ratoeiras em que o investigador pode incorrer na abordagem à consciência animal,

Marian Dawkins (2001) refere o perigo em assumir que apenas organismos

cognitivamente complexos são conscientes, posição que a autora rejeita sob o risco de

se menosprezar e até mesmo ignorar reacções potencialmente conscientes em animais,

como os invertebrados, que não são reconhecidos pelas suas capacidades intelectuais.

Collett & Collett (2002), após reverem uma centena de estudos, concluem que os

insectos sociais (como formigas e abelhas) utilizam estratégias de navegação e

orientação semelhantes às dos mamíferos e aves, com recurso a mapas espaciais e à

memória. A fiabilidade, e ao mesmo tempo, flexibilidade apresentadas pela navegação

visual destes insectos, não são compatíveis com o resultado esperado de acções pré-

programadas ou do mero acaso.

Se é possível que os insectos desenvolvam elaborados processos cognitivos com

recurso à memorização, será que faz algum sentido pensar que eles podem sofrer?

Sendo a consciência uma adaptação darwiniana, a dúvida está em saber a partir de onde

na árvore da vida é que podemos falar em sofrimento propriamente dito e não apenas

em estímulos sensoriais negativos. Eisemann et al. (1984), num curto artigo que já se

converteu em clássico, afirmam que, se é provável que muita da manipulação a que os

insectos são sujeitos a nível experimental não é dolorosa, a verdade é que outros

estímulos como altas temperaturas ou choques eléctricos aparentemente o são.

Defendi recentemente que a avaliação humana da consciência animal é

forçosamente antropomórfica (Magalhães-Sant’Ana 2008a) e como tal vai perdendo

exactidão à medida que vamos ‘descendo’ na escala filogenética: é-me fácil saber

quando um cão tem dor ou desconforto, mas mais dificilmente o sei no caso de uma

tartaruga. Este tipo de avaliação empírica corre o risco de cair num absolutismo bacoco

que nos leve a afirmar verdades que não o são. Por exemplo, considerar que um cão tem

maior capacidade para sentir dor que uma tartaruga ou dizer que uma formiga é um ser

insenciente. Estas afirmações podem vir a provar-se tão longe da verdade como a teoria

mecanicista de Descartes o é. É hoje consensual de que a visão cartesiana dos animais

como autómatos biológicos está errada à luz dos conhecimentos científicos modernos e

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não expressa as convicções da nossa sociedade. Mas a única evolução que fizemos

desde então foi no sentido de proteger o bem-estar do 1% de animais considerados

superiores (os vertebrados) em detrimento dos 99% de seres inferiores (os

invertebrados). Aos primeiros reconhecemos o interesse em não sofrer e em serem

tratados com respeito em função disso conferimos-lhes protecção legal através de

normas de bem-estar animal. Aos segundos não lhes conferimos nada3

, pois

consideramos que eles não sentem dor, sofrimento ou outro tipo de sensação

desagradável.

Num interessantíssimo artigo da revista Animal Welfare, o cientista C. M. Sherwin

analisa experiências científicas realizadas em modelos invertebrados e procura

interpretar as suas reacções (Sherwin 2001). Foi avaliada a capacidade de memória e

aprendizagem observacional, a presença de percepção espacial e de mapas cognitivos,

respostas operativas, testes de preferência, dor e nociocepção, entre outros. Sherwin

conclui que as respostas apresentadas por diversos invertebrados como abelhas, polvos,

aranhas, bichas-cadelas e que nós consideramos automáticas, rígidas e fixas estão afinal

sob algum controlo voluntário. Continua dizendo que se estas mesmas reacções fossem

realizadas por vertebrados seriam normalmente tidas como indicativas de algum grau de

consciência. De facto, temos facilidade em comparar o comportamento dos vertebrados

com o comportamento humano e daí retirar conclusões sobre as suas capacidades

mentais, mas apresentamos maior relutância em fazê-lo quando se tratam de

invertebrados, onde é mais difícil encaixar a nossa visão antropomórfica. Nas palavras

de Sherwin, “considerando os seguintes estudos é útil lembrar que a ausência de

evidência não é evidência da ausência.” Mas a nossa conduta denuncia o contrário:

basta-nos a ausência de evidência para assumirmos a evidência de ausência de

consciência nos invertebrados.

Recordo uma conferência a que assisti em que o cientista libanês Bassen Hassam da

Universidade de Leuwen, Bélgica, relatava as descobertas em circuitos neuronais,

realizadas pela sua equipa, recorrendo ao uso de Drosophila melanogaster, mais

conhecida como “mosca da fruta” (Hassam 2006). Além das vantagens em termos

financeiros e práticos pela rapidez dos resultados e facilidade de maneio, a Drosophila

permite contornar um vazio legal que não considera os insectos animais de laboratório

3 Pelas leis, quer nacionais quer da União Europeia, só os animais vertebrados vivos não

humanos são sujeitos de protecção. O único invertebrado a receber protecção em termos de

bem-estar é o polvo (Octopus vulgaris) na Animals (Scientific Procedures) Act 1986 do

Reino Unido.

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e como tal não sujeitos a regras de manuseamento ou de experimentação. Se não fosse

este um insecto quase microscópico, ficaríamos certamente chocados com as

experiências levadas a cabo e que incluíam, entre outros procedimentos, a destruição de

parte do cérebro espetando finos alfinetes nas suas liliputianas cabeças; o insecto

sobrevivia a esta ‘lobotomia’ e o procedimento nem parecia diminuir a esperança média

de vida, já de si curta, de 15 dias.

O que é para mim mais interessante é que estes cientistas, para poderem realizar este

tipo de experiências, têm de se abstrair do seu próprio objecto de estudo, a mosca-da-

fruta. Hassam e a sua equipa acreditam que a mosca não sofre. Não sabem se ela sente

dor, mas creêm que ela não a experimenta. Só assim podem exercer o seu trabalho de

forma séria, isenta e rigorosa. Curiosamente o que esta equipa procura demonstrar é que

a Drosophila é um bom modelo para estudar o ser humano e o seu sistema nervoso já

está a ser usado para compreender o nosso: regeneração cerebral após lesão, Doença de

Alzheimer, sobrevivência neuronal, entre outros.

O apaziguador exercício de consciência que a maior parte de nós faz, incluindo

filósofos e cientistas, é o de pensar que, algures na escala filogenética, a experiência

emotiva da dor deixa de existir. A dor existe enquanto fenómeno fisiológico (e por isso

é estudada em modelos animais) mas não é acompanhada por uma percepção

subjectivada e emocional.

Investigações realizadas em cefalópodes vêm colocar seriamente a possibilidade de

polvos, lulas e chocos, invertebrados com um sistema nervoso complexo e mal

compreendido, serem também sencientes e, porque não, conscientes (Mather 2008). E

quantas mais espécies invertebradas são escrutinadas, mais as dúvidas se adensam

quanto às reais capacidades cognitivas e nocioceptivas destes animais. Este é, porém,

um processo lento, quer pela dificuldade em encontrar parâmetros rigorosos de aferição

da consciência, quer em quantificar variáveis em animais dos quais conhecemos mal os

seus hábitos e cuja distância filogenética nos dificulta a interpretação.

Os primeiros passos já estão a ser dados no sentido de abordar o assunto da

consciência animal para além dos vertebrados superiores. Bom exemplo disso é o

relatório entregue pela EFSA (European Food Safety Authority) à Comissão Europeia,

através do seu comité científico de saúde e bem-estar animal (AHAW), sobre o uso de

animais para fins científicos e experimentais. Nele se afirma que as características

sensoriais dos peixes ciclóstomos (lampreias), moluscos cefalópodes (polvos, lulas e

chocos) e crustáceos decápodes (caranguejos, lagostas e camarões) lhes permitem ser

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inseridos na mesma categoria dos animais actualmente protegidos. E vai mais longe ao

defender restrições ao uso de formas fetais de vertebrados no último mês de gestação e

em formas larvares independentes de peixes, anfíbios, cefalópodes e decápodes (AHAW,

2005).

Da consciência à ética – inclusão dos invertebrados na esfera da moralidade

A única razão para afastar os invertebrados da reflexão bioética reside na crença

colectiva de que eles não experimentam sofrimento. Mas, e se estivermos errados? Uma

formiga que perde o seu trilho está condenada a morrer; mesmo sendo o mais perto que

conhecemos de um “autómato biológico”, na medida em que reage a estímulos

quimiotácticos muito precisos e a comportamentos pré-programados, só a distância que

nos separa de tão ínfimo ser nos permite concluir que a formiga não sofre, pelo menos

da forma como nós sofremos ou daquilo que nós entendemos como sofrimento.

A brincadeira de crianças que descrevi na introdução deste artigo ilustra de forma

exemplar a visão do ser humano em relação aos invertebrados: são seres inferiores, não

incluídos na reflexão ética ou filosófica e muito menos em questões de bem-estar

animal. Quando Piné e amigos queimam a formiga não o fazem por estarem tomados

por um acesso de fúria irreflectido; fazem-no com a mesma naturalidade que nós

esmagamos a mesma formiga que teima em entrar-nos pela cozinha e tomar de assalto a

despensa, e nem nos passa pela cabeça considerar se esse gesto tem alguma dimensão

ética.

Há aqui duas questões a considerar: uma é matar um invertebrado de forma

injustificada e outra é a forma como o fazemos. Estas duas questões não são a meu ver

eticamente neutras e têm implicações mais profundas. Para sencientistas como Peter

Singer fazer mal a um animal envolve provocar-lhe sofrimento: se matar não provocar

sofrimento, não é errado fazê-lo (Singer P [1975] 2000) 4. Onde eu considero que o

Sencientismo tem a sua maior falha é na, para já, evidente impossibilidade em traçar

uma linha divisória e inequívoca entre uns e outros, isto é, entre os que sofrem e os que

não sofrem. O principal argumento para considerar um animal senciente é a presença de

4 Neste raciocínio está subjacente a ideia de que os animais não têm perspectivas de futuro e que,

portanto, encurtar a sua vida não representa uma violação dos seus interesses. Por outro lado,

para Singer e dentro da tradição utilitarista, matar um animal não é um problema ético se ele

viveu uma vida boa, se for abatido sem sofrimento (e não apenas de forma indolor) e se for

substituído por um novo animal senciente, que não existiria se o anterior não fosse abatido.

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um eixo neuronal central protegido por um esqueleto interno. Mas, o que é dor para uma

ostra? Não sabemos e é essa ignorância que nos permite colocá-las vivas em água a

ferver sem nos determos a equacionar a hipótese de estarmos a cozer um animal vivo e a

provocar-lhe uma morte potencialmente dolorosa. Não estou com isto a dizer que é

errado fazê-lo, na medida em que não há dados indeléveis que o asseverem. Mas

também por isso considero que tentar estabelecer diferenças maniqueístas entre os

animais (vertebrado = senciente; invertebrado = insenciente) é uma decisão tão

arbitrária como estabelecer divisões entre seres humanos por motivos, não menos

aleatórios, de raça, sexo, idade ou condição social, por exemplo.

A formiga não sabe que vai ser morta por Piné; não grita, não expressa sentimentos,

mas o que vemos não deixa de nos fazer questionar sobre a sua senciência. Segundo o

princípio da semelhança com a espécie humana (o princípio que usamos na avaliação do

sofrimento nos vertebrados), é muito difícil não ver na sequência desenfreada de

movimentos aleatórios e descontrolados uma reacção dolorosa profunda, ou pelo menos

o seu equivalente em ‘formiguês’. Descartes via o cão a espernear e a gritar e

considerava-os meras reacções mecânicas e pré-programadas. Porque é que quando

vemos uma formiga na mesma situação pensamos o mesmo? Albert Schweitzer,

filósofo alemão e Prémio Nobel da Paz em 1952, considerava que todos os seres vivos

possuíam uma will-to-live, uma vontade de viver que merece ser respeitada e preservada.

Na obra Civilization and Ethics e referindo-se ao ser humano que vive o princípio da

reverência pela vida, Schweitzer (1923) escreveu:

Se ele sair à rua após uma tempestade e vir uma minhoca que se perdeu, ele

compreende que ela secará ao Sol se não alcançar rapidamente terra húmida onde

rastejar, e então ele remove-a das pedras mortíferas e devolve-a à relva luxuriante.

Se ele passar por um insecto que caiu numa piscina, dá-se ao trabalho de lhe fazer

chegar uma folha ou galho no qual ele possa trepar e salvar-se.

Mas ao contrário de Schweitzer, para muitos de nós “o único insecto bom, é um

insecto morto”5 (Rich 2000). No entanto, pensar num mundo sem insectos é imaginar

um mundo pós-apocalíptico, com invasão de seres microscópicos, como fungos e

bactérias, de vegetação rasteira e a extinção de todos os mamíferos (Rich 2000). Por

5 Tradução do original inglês the only good bug is a dead bug.

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mais que desprezemos as moscas e recorramos a todos os métodos possíveis para

eliminá-las a verdade é que não concebemos (a não ser, talvez, que sejamos

adolescentes sem nada para ocupar o tempo) arrancar-lhes as asas e espetar-lhe um

alfinete antes de a esmagarmos com a sola do sapato. Na verdade, não sabemos se a

mosca sente dor quando lhe arrancamos as asas; ela não apresenta o comportamento da

formiga queimada, mas isso é secundário: o gesto em si é errado quer se trate de um

vertebrado ou invertebrado porque aplicar aquilo que nós consideramos cruel a um

animal que não sabemos ser capaz de sentir dor é fazer uma simplificação do raciocínio

ético de modo a podermos agir indiscriminadamente ou de forma contrária às nossas

convicções. E se a mosca sem asas pode não sofrer, nem física nem psicologicamente, a

verdade é que já mosca não é, na sua habilidade inigualável em voar.

Peter Carruthers (2007), respeitado filósofo da bioética animal, lança-nos a

provocação de que os insectos sociais e as aranhas exibem um ‘grau de mentalidade’6

passível de os considerarmos como objectos empatia e de preocupação moral.

Carruthers serve-se do argumento da consciência (como elemento determinante de

consideração moral) para nos fazer questionar até que ponto é que estamos dispostos a ir

na defesa dos interesses daqueles que sofrem. Na sua opinião, o facto de um animal (ou

um ser humano) poder vir a sofrer, não nos obriga, enquanto agentes morais, a actuar

em seu benefício mas se alguém defende aqueles que sofrem terá forçosamente de ter

em conta estes invertebrados no seu juízo ético.

Conclusão:

Os principais autores sobre ética animal fazem uma destrinça mais ou menos

categórica entre vertebrados e invertebrados, defendendo os primeiros e arrumando os

segundos no limbo do desconhecido. Esta visão parece ser partilhada, de uma maneira

geral, por todos nós: enquanto que os primeiros são conscientes (já não parece haver

dúvidas nesse sentido), os segundos ou não são ou talvez sejam, ou mesmo que sejam

estão tão afastados de nós humanos que esse acaba por ser um argumento irrelevante. O

raciocínio que eu procuro defender é o de que, partindo dos chimpanzés e da sua

indiscutível capacidade em experimentar sensações complexas semelhantes às humanas,

podemos facilmente usar o mesmo argumento para alargar a esfera da moralidade aos

6 Tradução do original inglês degree of mindedness.

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cães, que connosco partilham 15 mil anos de evolução conjunta; ou aos gatos; e destes

para todos os mamíferos domésticos que desempenham um papel vital para a nossa

sociedade; e nesse caso a todos os mamíferos com os quais partilhamos uma herança

comum; e dos mamíferos às aves, cognitivamente evoluídas; das aves aos peixes, seres

sencientes; dos peixes aos cefalópodes, invertebrados com sistema nervoso muito

complexo; e destes chegamos a todos os invertebrados sobre os quais existe a dúvida

razoável de possuírem capacidades cognitivas superiores às que actualmente lhes

reconhecemos.

Não sendo possível, à luz dos conhecimentos científicos actuais, estabelecer fronteiras

precisas para a consciência (e em particular para a senciência) proponho que esta

característica não seja a determinante na consideração das questões éticas entre seres

humanos e animais. Outras características, como o valor ecológico – o papel

desempenhado por um determinado organismo no meio natural – ou o valor da espécie

devem precedê-la (Magalhães-Sant’Ana, 2008b). Apesar de afirmar que a consciência

não é o principal factor a ter em conta, considero-o muito importante: nada justifica o

sofrimento perpetrado a animais de forma gratuita, injustificada e cruel. A diferença é

que eu abro o benefício da dúvida a todos os animais e não só aos vertebrados.

Agradecimentos

À Dra. Anna Olsson (IBMC-UP), pela orientação da dissertação de Mestrado em

Bioética que deu origem a este artigo.

Bibliografia

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experimental and other scientific purposes”, The EFSA Journal, 2005, 292: 1-46

Block, Ned (1995) “On a confusion about the function of consciousness”, Behavioral

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Budiansky, Stephen (1998) If a lion could talk – Animal Intelligence and the evolution

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