16
Projeto História, São Paulo, n.35, p. 397-412, dez. 2007 367 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO USO DE MÁQUINAS ELÉTRICAS NO AMBIENTE DOMÉSTICO* Márcia Bomm de Arruda** O ambiente doméstico de hoje é repleto de máquinas elétricas que medem as inúme- ras atividades que são realizadas de forma rotineira. As práticas alimentares, de higiene, de descanso, de lazer, de contato com o mundo, de sociabilidade constituem-se, muitas vezes, por meio de aparelhos como: refrigerador, fogão, torradeira, exaustor, ventilador, ar condicionado, máquina de lavar louça, máquina de lavar roupa, microondas, batedeira, liquidicador, televisão, telefone, computador, aparelho de som e muitos outros. Mas nem sempre foi assim. A familiaridade que temos hoje com esses objetos nos impede, muitas vezes, de pensarmos que existe uma história da presença e dos usos das máquinas no ambiente do- méstico. Se no ambiente de trabalho, nas fábricas, muita resistência teve que ser vencida para a incorporação das máquinas no processo de produção, como terá sido sua adoção nas atividades domésticas? Que adaptações foram necessárias? Será que houve resistên- cia? Que mudanças de hábitos, comportamentos, pensamentos implicaram na entrada da tecnologia nos lares? De que esses objetos são a materialização? No Brasil, enquanto o uso das máquinas no ambiente de trabalho - principalmente na fábrica e no espaço público (bondes, automóveis) - mereceu atenção de inúmeros autores, o mesmo não se pode dizer do espaço privado. Que investimentos - técnicos, de design, publicitário, políticos - foram feitos para que os eletrodomésticos fossem aceitos nos lares brasileiros? Muitas respostas surgem para explicar a ampla aceitação desses objetos técnicos: fa- cilidade, comodidade, conforto, menos trabalho, beleza, modernidade. No entanto, acei- tar estas respostas signicaria naturalizar a existência desses objetos, como se eles fossem o resultado óbvio de um tipo de desenvolvimento tecnológico, cujo m estaria apenas na satisfação das necessidades humanas. Este é, em parte, o discurso que encontramos nas propagandas de eletrodomésticos e que merece ser problematizado. Cada um desses

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO USO DE MÁQUINAS ELÉTRICAS NO AMBIENTE DOMÉSTICO

Embed Size (px)

DESCRIPTION

.

Citation preview

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 397-412, dez. 2007 367

    CONSIDERAES ACERCA DO USO DE MQUINAS ELTRICAS NO AMBIENTE DOMSTICO*

    Mrcia Bomfi m de Arruda**

    O ambiente domstico de hoje repleto de mquinas eltricas que medem as inme-ras atividades que so realizadas de forma rotineira. As prticas alimentares, de higiene, de descanso, de lazer, de contato com o mundo, de sociabilidade constituem-se, muitas vezes, por meio de aparelhos como: refrigerador, fogo, torradeira, exaustor, ventilador, ar condicionado, mquina de lavar loua, mquina de lavar roupa, microondas, batedeira, liquidifi cador, televiso, telefone, computador, aparelho de som e muitos outros. Mas nem sempre foi assim.

    A familiaridade que temos hoje com esses objetos nos impede, muitas vezes, de pensarmos que existe uma histria da presena e dos usos das mquinas no ambiente do-mstico. Se no ambiente de trabalho, nas fbricas, muita resistncia teve que ser vencida para a incorporao das mquinas no processo de produo, como ter sido sua adoo nas atividades domsticas? Que adaptaes foram necessrias? Ser que houve resistn-cia? Que mudanas de hbitos, comportamentos, pensamentos implicaram na entrada da tecnologia nos lares? De que esses objetos so a materializao?

    No Brasil, enquanto o uso das mquinas no ambiente de trabalho - principalmente na fbrica e no espao pblico (bondes, automveis) - mereceu ateno de inmeros autores, o mesmo no se pode dizer do espao privado. Que investimentos - tcnicos, de design, publicitrio, polticos - foram feitos para que os eletrodomsticos fossem aceitos nos lares brasileiros?

    Muitas respostas surgem para explicar a ampla aceitao desses objetos tcnicos: fa-cilidade, comodidade, conforto, menos trabalho, beleza, modernidade. No entanto, acei-tar estas respostas signifi caria naturalizar a existncia desses objetos, como se eles fossem o resultado bvio de um tipo de desenvolvimento tecnolgico, cujo fi m estaria apenas na satisfao das necessidades humanas. Este , em parte, o discurso que encontramos nas propagandas de eletrodomsticos e que merece ser problematizado. Cada um desses

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007368

    Mrcia Bomfim de Arruda

    objetos que hoje entendemos como fundamental para nossa vida , de fato, a expresso de necessidades que foram criadas historicamente.

    A inteno aqui no ser a de tentar responder s inmeras interrogaes que surgem ao eleger os eletrodomsticos como objeto de estudo. Essas perguntas tm o propsito de apontar possibilidades de investigao de um tema que ainda no foi muito explorado no campo da histria no Brasil. Portanto, o objetivo ser o de problematizar as idias expres-sas no prprio design dos eletrodomsticos, assim como o discurso da mdia a respeito dos usos desses objetos.

    Encante seu lar com a eletricidade

    Quando se usa o termo eletrodomstico, como o prprio nome diz, imediatamente vem mente a imagem de uma infi nidade de utenslios domsticos movidos eletrici-dade. O dicionrio Aurlio (BUARQUE DE HOLANDA, Aurlio. 1999) defi ne o termo como, aparelhos eltricos de uso caseiro e, para o dicionrio Houaiss,(HOUAISS, Ant-nio e VILLAR, Mauro de Salles. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001) diz-se de ou utenslio ligado eletricidade e usado para proporcionar comodidade, lazer ou auxiliar nas tarefas domsticas. Entretanto, alguns deles podem funcionar movidos por outros meios como querosene, carvo, lenha ou o gs.

    Alguns dos eletrodomsticos que conhecemos hoje foram originalmente criados para funcionar com outros combustveis e, posteriormente, adaptados para a eletricidade. Di-ferente do que se pode pensar, o uso da eletricidade nos equipamentos domsticos no foi resultado meramente de um avano do conhecimento cientfi co ou do progresso, idias que aparecem com freqncia nas histrias da tecnologia.(FORTY, Adrian. Objetos de Desejo - Design e Sociedade desde 1750, So Paulo: Cosac Naify, 2007: 248)

    Na Gr-Bretanha, no fi nal do sculo XIX, diversifi car a demanda por energia eltrica antes utilizada, principalmente, para iluminao, foi uma necessidade das indstrias que produziam esse tipo de energia. A venda de eletricidade apenas para iluminao causava problemas na economia de escala. Como o consumo maior era durante a noite, ao longo do dia a capacidade geradora das usinas fi cava ociosa. No havia como armazenar ele-tricidade gerada fora do pico e, assim, a demanda desigual era um srio problema para a indstria. Para conseguir lucro e cobrir o alto custo da produo, tornava-se necessrio criar outras demandas para a eletricidade que no fossem somente a iluminao e que no ocorresse somente no perodo noturno (Ibid: 249-250).

    No caso da Gr-Bretanha, as empresas de fornecimento de energia fi zeram uso de uma intensa publicidade para convencer as pessoas de que a energia eltrica representava modernidade, progresso, positivando sua imagem atravs da idia de que traria benefcios

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 369

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    no futuro. As empresas tiveram que enfrentar alguns obstculos nessa caminhada, rumo a um suposto progresso: o alto preo da eletricidade em comparao com outros tipos de combustvel; o fato de que as residncias, quando muito, estavam adaptadas apenas para iluminao e no possuam tomadas; e tambm o medo, j que a idia comum identifi cava a eletricidade a uma fora obscura, invisvel e letal. (Ibid: 255-256)

    Na Gr-Bretanha, se cada consumidor agisse com instintos econmicos racionais, o crescimento da demanda eltrica entre 1920 e 1939 no teria sido to grande quanto foi (Ibid: 260). A eletricidade no era mais efi ciente que o gs para cozinhar e aquecer e, ainda custava mais caro, portanto os consumidores que a escolheram deviam ter sido infl uenciados por outros motivos. Segundo Forty (Ibid), os motivos estavam na publici-dade que foi feita apresentando a eletricidade como uma fonte de energia progressista e libertadora com potencial futuro ilimitado e, tambm, na melhoria do design dos ele-trodomsticos. A eletricidade s pode ser comercializada efetivamente por meio de seus aparelhos e, para atrair consumidores, estes deveriam ser - ou parecer - tecnologicamente avanados. (Ibid: 260)

    No Brasil, nas primeiras dcadas do sculo XX, as empresas de eletricidade tinham controle sobre alguns setores de servios pblicos, como telefones e bondes. Em depoi-mento de Armando de Moraes Samento, que trabalhou na dcada de 1930 no Departa-mento de Promoes das Empresas Eltricas Brasileiras, de propriedade da American Foreign Power, ele afi rma que a empresa era acionista controladora de vrias empresas de utilidade pblica no Brasil, entre elas as do Rio Grande do Sul, da Bahia, de Pernambuco e de empresas de vrias cidades do interior de So Paulo. A funo de Samento era criar demanda para o aumento de consumo de energia eltrica. Na agncia de publicidade que trabalhava, a N. W. Ayer, entre os clientes estava a General Electric e, ento, faziam pro-moo de ferros de engomar e refrigeradores, principalmente. (Samento, 1990: 02)

    No fi nal da dcada de 1930, no Brasil, a empresa Ligth, que atuava na rea de energia eltrica incentivava a colocao de tomadas nas residncias. O que indica que o consumo de equipamentos eltricos no perodo encontrava obstculos de ordem prtica. O anncio da empresa apresentava um desenho onde se podia ver o ambiente de uma sala e um casal procurando tomadas para ligar uma luminria, um ventilador, um aspirador de p, um fongrafo (O Cruzeiro, 16/01/1937: 52). Em 1943, um anncio da Companhia de Carris, Luz e Fora do Rio de Janeiro fazia propaganda de um programa musical de rdio, cha-mado Ondas Musicais. O anncio propunha: Sirva-se da eletricidade e o programa ia ao ar das 13 s 14 horas (Ibid, 22/05/1943, ano XV, n. 30, capa).

    Ao longo do ano de 1946 a General Electric veiculou uma campanha, com v-rios anncios que propunham Encante seu lar com a eletricidade, e aproveitava para

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007370

    Mrcia Bomfim de Arruda

    oferecer, alm dos materiais para instalao eltrica que a marca produzia, seus apa-relhos domsticos: mquina de lavar pratos, fogo eltrico, cafeteira, assadeira, passa-deira porttil, radiador eltrico (ventilador), ferro de engomar, rdio, aspirador de p, misturador de alimentos (batedeira), cobertor eltrico, torradeira. Um dos anncios tra-zia a frase: Mande os criados eltricos G-E prepararem a primeira refeio da manh (Ibid, 09/03/1946: 87).

    Por esses indcios podemos pensar que tambm no Brasil, nas primeiras dcadas do sculo XX, o consumo de eletricidade nas residncias ainda era, essencialmente, para ilu-minao. O que implicava em prejuzo para as empresas ligadas ao ramo de eletricidade, que necessitavam da diversifi cao nos usos da energia eltrica e da criao de condies concretas para a expanso dos seus negcios, como instalao de tomadas nas casas.

    Os primeiros aparelhos eltricos para uso domstico que chegaram ao Brasil vinham da Europa e dos Estados Unidos. No incio do sculo XX, apesar dos anncios na impren-sa, o consumo ainda era restrito, o preo alto e o custo para a importao, alm das difi -culdades no fornecimento de energia eltrica, contribuam para isso. Outros fatores como a ausncia nas casas de instalaes eltricas, falta de tcnicos especializados no conserto desses equipamentos e ainda, o medo da eletricidade, tambm podem ter infl uenciado. Nos anos 1940 havia nas revistas avisos dirigidos s donas-de-casa para que tomassem certos cuidados com os aparelhos eltricos, pois podiam causar acidentes e at a morte.

    A expanso e a consolidao do uso da eletricidade no espao domstico urbano, a partir dos anos 1920, foi rpida. Na dcada de 1940, nas maiores cidades brasileiras, aproximadamente metade do total das residncias urbanas possuam instalao eltrica. Em boa parte das casas a energia eltrica antecedeu a gua encanada e as instalaes sani-trias (RJ: Centro de memria da eletricidade no Brasil, 2001: 197-199). Ainda assim, as instalaes eltricas serviam, principalmente, para iluminao e no era comum encontrar tomadas nas casas.

    Na dcada de 50, as condies prticas para a produo e consumo de eletrodoms-ticos no Brasil estavam praticamente criadas. Energia eltrica mais acessvel, credirio para incentivar a compra e uma indstria nacional se desenvolvendo rpido. No entanto, esses fatores apenas no eram sufi cientes para fazer com que fossem consumidos em es-calas cada vez maiores. Foi necessria uma mudana de ordem mais profunda, mais sutil, menos fcil de ser percebida. Foi preciso mudar hbitos, comportamentos, um trabalho quase pedaggico e de convencimento de que a vida com esses aparelhos seria mais fcil, mais alegre, mais saudvel, mais bonita.

    Nesse sentido a publicidade teve um papel fundamental. Ela no apenas tornou os eletrodomsticos conhecidos como tambm apresentou esses objetos, para alm dos seus

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 371

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    aspectos fsicos e funcionais, como possibilidades de se ter mais sade; alimentao sau-dvel; proteo contra doenas; de se respirar ar puro, de se ter menos trabalho com os servios domsticos; de se ter mais opes de lazer.

    Em torno dos eletrodomsticos, a propaganda produziu um ideal de vida domstica, movida eletricidade, distante das condies reais em que vivia a grande maioria da populao brasileira. O que no impediu que esse ideal fosse ao longo do tempo incorpo-rado, tornando-se uma referncia e um modelo para a sociedade.

    Pe na Consul - eletrodomsticos e mdia

    Os avanos tcnicos na propaganda de eletrodomsticos ao longo do sculo XX es-to estreitamente ligados expanso da imprensa, seja escrita, falada ou televisionada. Inclusive, o fato do rdio e da televiso serem, tambm, eletrodomsticos e se tornarem uma presena constante nas residncias, contribuiu grandemente para que a publicidade alcanasse um pblico maior e mais diversifi cado.

    A imprensa foi largamente utilizada pelos fabricantes de eletrodomsticos estran-geiros e nacionais e teve um papel extremamente importante na criao de um mercado consumidor no pas. A escolha do veculo de comunicao pelos anunciantes de eletrodo-msticos estava relacionada com o pblico que queriam atingir.

    Os fabricantes de eletrodomsticos fi zeram uso dos mais variados meios de comu-nicao para criar um mercado consumidor para seus produtos. Ouvintes de rdio, te-lespectadores, platias de cinema, leitores de revistas e jornais passaram a se deparar constantemente com os anncios dos mais diversos tipos de eletrodomsticos, das mais diferentes marcas.

    Na imprensa escrita, as revistas ilustradas foram amplamente utilizadas para veicular anncios de eletrodomsticos. Conforme afi rma Trusz (Revista eletrnica de Histria, vol. 1, n. 3, maro de 2004: 5), nas primeiras dcadas do sculo XX, esses anncios, assim como o de automveis e os de cinema, foram os mais refi nados exemplares da evoluo das tcnicas publicitrias.

    Grandes fabricantes de eletrodomsticos como a General Electric e a General Motors (esta ltima fabricava tambm automveis) eram importantes anunciantes na imprensa brasileira. Seus departamentos de propaganda eram os responsveis, principalmente nos anos 20, pela publicidade dessas empresas. O ncleo de propaganda mais profi ssional e capacitado da poca era o da General Motors (ngelo, 1990: 25). O modo de fazer propaganda dessas empresas fez escola no Brasil, foram as grandes marcas americanas que trouxeram a tcnica norte-americana de propaganda comercial (RAMOS, Ricardo, MARCONDES, Pyr. 200 anos de propaganda no Brasil: do reclame ao cyber anncio, SP: Atual, 1985:32).

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007372

    Mrcia Bomfim de Arruda

    As empresas estrangeiras de eletrodomsticos e os laboratrios farmacuticos foram os grandes anunciantes na imprensa do comeo do sculo XX. Alm das revistas e dos jornais, a publicidade no rdio tambm teve sua histria ligada s grandes marcas. Em 1932, logo quando o governo brasileiro autorizou a veiculao de publicidade nas pro-gramaes de rdio, a Sociedade Rdio Philips do Brasil, criada em princpio para ajudar a vender no pas os produtos da empresa, levou ao ar o primeiro programa de Ademar Cas. O apresentador, que fez histria no rdio, havia sido vendedor de rdios da Philips no Rio de Janeiro.

    No programa de Cas foi ao ar o primeiro jingle que se tem notcia, o da padaria Bragana (CAS, Rafael. Programa Cas, o rdio comeou aqui. RJ: Mauad, 1995). Em-presas como a Olivetti, General Electric, Semp, Brastemp, Arno, Consul e muitas outras utilizaram o jingle em campanhas publicitrias no rdio. Lmpadas, rdios fongrafos, chuveiros, mquinas de datilografi a, sorveteira e vrios outros eletrodomsticos ganha-ram jingles cujo objetivo desejvel pelas empresas era um maior ndice de reteno na mente do consumidor (Informativo Consul, agosto de 1974, n.33: 06).

    A Consul, na dcada de 70, contratou msicos consagrados, como Ivan Lins, e grupos como Evinha e os Golden Boys para criar e executar jingles. A contratao de msicos famosos para compor jingles para a Consul era anunciada como uma tcnica moderna de publicidade, como um diferencial dos tempos em que a comunicao auditiva se resumia ao linguajar pernstico de locutores gritando as excelncias de um produto (Idem).

    O jingle de Ivan Lins para a Consul foi intitulado Esposas felizes, mesmo tema de uma Campanha publicitria que durou meses e depois foi substituda pela Crianas con-tentes. Conforme os publicitrios se a Consul proporciona felicidade a milhares de espo-sas e alegria a milhares de crianas, est colaborando para a harmonia da famlia brasilei-ra. Por isso criamos, como ela, um terceiro anncio, coroando a Campanha 73: Maridos Tranqilos (Informativo Consul, julho de 1973, n. 30, p.17).

    Vale destacar que nesse perodo vivia-se no Brasil uma intensa represso, tortura e perseguio poltica e, ao mesmo tempo, o chamado milagre brasileiro. Milagre que, se por um lado, do ponto de vista do consumo pessoal, a expanso da indstria favoreceu as classes de renda alta e mdia, por outro, os salrios dos trabalhadores de baixa qua-lifi cao foram comprimidos. Sendo que os empregos em reas como administrao de empresas e publicidade valorizaram-se (Fausto, 2002: 487).

    Identifi cado pelos publicitrios como moderno, bonito e sofi sticado; fcil de guardar na memria; com uma letra humana que identifi cava plenamente a natureza do refri-gerador Consul e as aspiraes do consumidor, o jingle de Evinha e os Golden Boys afi rmava:

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 373

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    Voc chega em sua casa, encontra um mundo que s seu. Voc pe todo o carinho. No seu lar, no seu lugar, numa casa to tranqila, Consul no pode faltar. Sua geladei-ra Consul. Tranqilidade consul. Geladeira Consul. Tranqilidade Consul [...] (Informativo Consul, agosto de 1974, n.33,: 6-7)

    Enquanto a violncia era institucionalizada no pas, a letra da msica propunha que a tranqilidade devia estar no espao privado do lar e no consumo cada vez maior de bens que ajudariam a criar um mundo alienado de tudo, s seu.

    O governo militar, no perodo ps-1964, contou com o grande avano das teleco-municaes no pas. As facilidades de crdito permitiram a um nmero cada vez maior de brasileiros a aquisio de vrios bens como automveis e, entre os eletrodomsticos, a televiso. A TV Globo foi a grande porta-voz do governo, e a propaganda governa-mental passou a ter um canal de expresso como nunca existira no pas. A marchinha Pra frente Brasil embalou a vitria da seleo brasileira na Copa do Mundo de 1970 (Fausto, 2002: 484). A televiso a cores, que chegou em 1973, contribuiu ainda mais para fazer os telespectadores esquecerem a misria e o atraso do pas em termos econmicos e culturais (SANTANNA, Denise Bernuzzi de. La Recherche de la beaut. Tese de Dou-torado, Universidade de Paris VII, Paris, 1994: 502).

    A televiso foi implantada no Brasil em 1950 e em pouco tempo tornou-se um dos mais efi cientes meios de divulgao publicitria. No entanto, nos seus primrdios, a te-leviso era vista com desconfi ana pelos profi ssionais da publicidade. No se dominava a tcnica para a produo de comerciais para televiso e ainda no havia uma grande audincia que empolgasse os profi ssionais do setor.

    Implantada a televiso, primeiro em So Paulo, depois Rio de Janeiro (1951), Belo Horizonte (1955) e Porto Alegre (1959), ainda havia difi culdade de comercializar os apa-relhos, que eram importados. Somente a partir de 1959 comeam a ser fabricados em maior nmero no Brasil.

    No havia um sistema de redes; problemas de transmisso eram freqentes; o video-tape, introduzido em 1959 - que permitiu uma difuso limitada para algumas capitais - s comea a ser utilizado mais tarde; a difuso se resumia ao eixo Rio-So Paulo; e, nessa poca, o hbito de assistir televiso ainda estava no comeo. Por tudo isso se acreditava que a televiso ainda no fosse totalmente compatvel com a lgica comercial (ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira. SP: Brasiliense, 1991: 47). As empresas fabri-cantes de eletrodomsticos preferiam anunciar seus produtos no cinema, no rdio e na imprensa escrita.

    No incio da televiso no Brasil, os profi ssionais vieram importados do rdio: artis-tas, cantores, locutores, animadores, apresentadores, msicos, maestros que tinham ex-

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007374

    Mrcia Bomfim de Arruda

    perincia com platia, aparies em palcos e auditrios de todo o pas. A televiso era ento uma espcie de rdio com imagem (Branco, Renato Castelo (coord.) Histria da Propaganda no Brasil, SP: T. A .Queiroz, 1990: 242). Talvez por conta disso, patrocinar programas musicais, como fez a Consul nos anos 60, tenha sido uma forma efi caz de tornar mais conhecida sua marca.

    O programa patrocinado era o Rio Hit Parade, transmitido ao vivo pelo Canal 13 TV-Rio. Msicos de renome apresentavam-se junto a uma orquestra e um coral, produ-zindo um espetculo de grande audincia. O sucesso do programa contribuiu para que ele fosse exibido em outras capitais brasileiras como Porto Alegre, So Paulo, Curitiba, Salvador e Braslia. A proposta do programa era uma msica para cada gosto e um intr-prete correto para cada msica (GELBCKE, W. Publicidade, Informativo Consul, n.11, Joinville, 1966: 11). Esse investimento publicitrio teve sucesso fazendo com que, nos anos 60, a marca Consul saltasse do sexto para o primeiro lugar no ranking nacional de vendas de refrigeradores.

    A televiso contribuiu grandemente para gravar na mente dos telespectadores a re-lao entre produto e marca de eletrodomsticos. A campanha Pe na Consul, de 1978, tinha o objetivo de promover o nome Consul como sinnimo de geladeira, pois a marca no era muito citada nas pesquisas de opinio. A campanha com o slogan: Pe na Consul foi considerada no meio publicitrio como um grande sucesso, ganhando vrios prmios. A frase virou expresso popular utilizada em vrios contextos, de charges polticas a pro-gramas humorsticos na televiso.

    Outra marca bem sucedida no mercado e grande investidora em publicidade foi a Brastemp. Quem no se lembra do esquim puxando seu tren, parecendo marchar como um soldadinho? Ele aparecia em comerciais de Televiso entre os anos 1960 e 1970, fa-lando em anncios de rdio, ilustrando propagandas em revistas e informativos internos da Brastemp.

    Mas a campanha publicitria de maior sucesso foi a realizada em 1991, com base em pesquisa de opinio de donas-de-casa e conhecida pelo slogan No assim uma Brastemp (http://www.multibras.com.br). O nome original da campanha era No tem comparao, mas se, para o fabricante no havia nenhum produto to bom quanto o seu, para o consu-midor o que contava era o preo. Muitas donas-de-casa entrevistadas, mesmo diante do constrangimento de opinar diante do entrevistador, tinham como certo que, na hora de comprar, o que defi nia era o preo. E assim nasceu a campanha criada pela empresa de pu-blicidade Talent para a fabricante Brastemp, cujo mote era convencer o consumidor que o conveniente para ele era comprar um eletrodomstico Brastemp, mesmo que no tivesse recursos para isso. Na propaganda, o ator afi rmava que j possua um eletrodomstico, mas reconhecia que no era assim nenhum Brastemp.

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 375

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    Linhas modernas, elegantes e de grande classe

    A imagem freqente de casais sozinhos ou acompanhados por fi lhos, presente desde os primeiros anncios de refrigeradores no incio do sculo XX, indica qual era o pblico alvo dos fabricantes de eletrodomsticos. Adquirir um refrigerador importado era um luxo para poucos devido ao preo alto. Se a inteno era sempre ampliar o pblico consumidor, tornava-se necessrio buscar argumentos que atingissem o mximo de pessoas. Constituir uma famlia sempre fez parte dos projetos de vida de grande parte da populao. Dife-rente das pessoas de classe alta, que podiam dispor de recursos em qualquer momento da vida, em geral o homem de classe mdia casava quando conseguia atingir uma situao fi nanceira estvel que lhe permitia sustentar mulher e fi lhos. Assim, era esse homem que os fabricantes viam como um potencial comprador para os seus produtos.

    A publicidade era, em geral, dirigida s mulheres, mas o objetivo era fazer com que elas convencessem os maridos da necessidade em comprar um refrigerador. Para facilitar a compra, surge, nos anos 1950, o credirio; ainda assim, os refrigeradores continuaram a ser um artigo de luxo.

    A imagem da famlia nas propagandas de eletrodomsticos sempre foi uma constante at pelo menos a dcada de 1970. Propagandas de refrigeradores Brastemp produzidas para a televiso nesse perodo sugeriam que a compra do refrigerador era uma necessi-dade a partir do momento em que se casava. A idia de que o casamento trazia fi lhos, a famlia crescia e tornava-se indispensvel a compra ou a troca do refrigerador antigo por um novo e maior. A idia, inclusive, que havia um modelo de refrigerador para cada tamanho de famlia.

    Os fabricantes davam aos refrigeradores uma garantia, em geral, de cinco anos, mas eles duravam bem mais que isso. Com uma vida til relativamente grande, o que fazer para o consumo de refrigeradores crescer? As inovaes no eram to constantes, nem to radicais a ponto de justifi car, para aqueles que j possuam um refrigerador, a troca por um modelo mais novo. Assim, a propaganda propunha que havia um tamanho de re-frigerador para cada tamanho de famlia ou, se a famlia crescesse, um refrigerador maior tornava-se necessrio.

    Nos comerciais para televiso de refrigeradores da Brastemp, quando no era a espo-sa que convencia o marido da necessidade da compra, era o sogro que intimava o genro a trocar de refrigerador: ou voc troca a geladeira, ou me devolve a fi lha e a entrava a imagem de toda a famlia em torno do refrigerador Brastemp e ouvia-se a frase Brastemp 320: a geladeira tamanho famlia (Filme publicitrio: Sogro, agncia Salles Inter-americana, 29/03/1977).

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007376

    Mrcia Bomfim de Arruda

    Essa associao entre refrigerador e famlia sugerida em vrias propagandas da Brastemp. Em uma delas, ao som alegre de msicas que diziam sobre as qualidades do refrigerador, famlias cantavam, gesticulavam, abriam refrigeradores. Ambientadas em diferentes tipos de cozinhas, desde mais modestas com refrigeradores menores em que aparecia apenas o marido e a esposa, sugerindo recm-casados, at mais sofi sticadas, amplas, com refrigeradores maiores com marido, esposa e vrios fi lhos.

    Em uma dessas propagandas, um cenrio montado com vrios refrigeradores em um fundo branco. Entram mulheres, homens, crianas de diferentes idades cantando e correndo. Ao fi nal posicionam-se ao lado dos refrigeradores e em coro cantam: Dei-xe sua vida mais alegre, com Brastemp. Pode-se notar que formam ncleos familiares sugerindo av-av, fi lho-nora, fi lha-genro e netos (Filme publicitrio: Deixe sua vida mais alegre, agncia Salles Inter-americana, produtora Interteam Produes de Fil-mes Ltda, 12/10/1979).

    Essa associao entre alegria, prazer e eletrodomstico, em que imagens do esfor-o e do rduo trabalho despendido pelas mulheres nos afazeres domsticos nunca so mostradas, feita pela publicidade pelo menos desde a dcada de 30. Na dcada de 60 aparece o apelo facilidade e ao prazer que os produtos de uso domstico podiam pro-piciar queles que os utilizavam (SANTANNA, Denise Bernuzzi de. Op. Cit.: 360). As mulheres nos comerciais para televiso dos anos 1970, assim como nos anncios em revistas nas dcadas anteriores, eram brancas, bonitas, jovens, maquiadas, bem vestidas, alegres.

    Os papis do marido, da esposa e a diviso do trabalho domstico tambm so su-geridos. Quando os refrigeradores aparecem no cenrio da casa, sempre na cozinha e associado mulher. Mesmo quando o marido que mostrado ao lado do refrigerador ainda assim a esposa quem d a ltima palavra, ela que assume a importncia em comprar o produto. O homem aparece como o provedor do lar, aquele que deve ser con-vencido da compra pela esposa que, por sua vez, quem tem a legitimidade de conhecer as necessidades do lar. Ao fi nal de um comercial, na cena da compra do refrigerador, a mulher d um grito de felicidade e agradecida abraa e beija o marido (Filme publicitrio: Cerveja, 01/01/1975).

    SantAnna, (1994) referindo-se aos programas de televiso nos anos 70, afi rma que a imagem do pai de famlia, nas classes mdias de So Paulo, se revela como um refl exo dos contrastes provocados pelo crescimento urbano e pela modernizao do pas condu-zida pelo regime militar. A fi gura do pai de famlia era a de um indivduo obcecado pela ascenso social, com um carro ltimo tipo, que comprava a crdito, angustiado, cansado, endividado, com um desejo insacivel de riqueza e consumo (SANTANNA, Denise Ber-nuzzi de. Op. Cit.: 502).

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 377

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    Nos ltimos anos da dcada de 1960, propagandas da Consul na televiso, no rdio e em revistas distribudas em todo o pas faziam essa relao entre refrigerador-casamento-esposa-marido. Os papis de cada um eram bem defi nidos: a mulher aparecia agradecen-do ao marido a compra do refrigerador, o marido realizando o sonho da esposa, fazendo-a feliz. Grande parte das campanhas era dirigida s mulheres Uma campanha romntica para atingir a intuio feminina (Informativo Consul, 1968: 04). Como falavam para as mulheres, essas campanhas destacavam as linhas modernas, elegantes e de grande classe dos modelos de refrigeradores. Os publicitrios entendiam que a preocupao com a esttica fazia parte do universo feminino.

    Colocada em relevo em detrimento da funo, a esttica dos aparelhos eltricos do-msticos aparece na publicidade dos anos 50 e torna-se mais forte na dcada seguinte. Ligada evoluo das tcnicas publicitrias e da opinio pblica, a publicidade de eletro-domsticos sofre mudanas com a valorizao da forma exterior do objeto mais do que o seu funcionamento ou a sua funo (SANTANNA, Denise Bernuzzi de. Op. Cit.: 369).

    Nos refrigeradores, nessa caixa retangular com divisrias, tal qual uma prateleira fechada hermeticamente por uma porta, no h nada inscrito na sua forma que possa ser associado mulher. O que a publicidade fez de maneira inteligente foi associar o refrige-rador a idias como alimentos frescos, gostosos, saudveis e, portanto, importantes para a sade de toda a famlia. Qualquer dona-de-casa zelosa, e responsvel imediatamente sentiria-se compelida a comprar um refrigerador, afi nal, era sobre seus ombros que caia a responsabilidade pelo bem-estar da famlia.

    Atributos tecnolgicos

    Analisando comerciais para televiso da empresa Brastemp, produzidos ao longo da dcada de 1970, percebemos duas formas diferentes de apresentar os refrigeradores: em uma, o objeto tcnico inserido em um ambiente domstico, familiar; apresentado qua-se como um membro da famlia; sua importncia atestada por pessoas comuns, donas de casa, maridos, crianas; o apelo mais emocional, uma associao feita entre o objeto e a alegria, a felicidade. Na outra, o foco colocado sobre o objeto e suas qualidades tcnicas, quem apresenta o especialista, um tcnico, supostamente isento de qualquer subjetividade, fala em nome da cincia, da razo.

    Uma srie de comerciais de refrigeradores da Brastemp, com fundo escuro, colocan-do em destaque refrigeradores vazios, eram apresentados por indivduos vestidos com jalecos brancos, culos, representando a fi gura de um tcnico. Nesses comerciais, dado destaque a aspectos dos refrigeradores Brastemp que os concorrentes no teriam: maior espao interno, resistncia, consumo menor de energia, congelador maior (Filme publici-

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007378

    Mrcia Bomfim de Arruda

    trio: congelador/Espao, agnciaSalles Inter-americana, produtora Fathom Filmes Ltda, 28/08/1978).

    Apesar da proposta, no segundo caso, de mostrar a tcnica investida no objeto, no se v a parte traseira, nem o motor, nem o fi o que liga o refrigerador rede eltrica. Em vrios comerciais o refrigerador est repleto de comida, o que leva a supor que estaria em funcionamento. No entanto, os gestos necessrios a esse funcionamento - colocar o fi o na tomada, girar o boto que o liga, no se deixam ver. Um nico gesto mostrado, repetidas vezes, de abrir a porta do refrigerador e que parece fazer a mgica de coloc-lo em funcionamento.

    Alm dos aspectos mais explorados, o que esses comerciais no mostram ou apenas deixam entrever, torna-se um dado importante - as possibilidades de leitura histrica dos aspectos tecnolgicos inscritos nos objetos tcnicos, e que no so explicitamente des-tacados nas propagandas, referida por Ulpiano T. B. de Meneses (2000:112) em seu artigo O fogo da Socit Anonyme Du Gaz sugestes para uma leitura histrica de imagem publicitria. Apesar dos atributos tecnolgicos serem parcialmente mostrados, esto inscritos na prpria imagem dos refrigeradores: a porta grossa que isola o interior do refrigerador, o puxador que deve assegurar uma manipulao adequada, as prateleiras que organizam o espao, o boto que regula a temperatura, um compartimento separado para congelamento dos alimentos. Cada equipamento desses, e os constantes aperfeioa-mentos que vo sofrendo ao longo do tempo, indica mudanas profundas nos modos de pensar e viver da sociedade.

    Refrigeradores vendidos no Brasil nas dcadas de 1940 e 50 possuam trincos que eram uma cpia das maanetas dos automveis da poca. Os logotipos com a marca dos refrigeradores tambm foram uma demonstrao da identidade estilstica que foi transferida dos automveis para os eletrodomsticos. A caligrafi a utilizada no logotipo dos refrigeradores Frigidaire era a mesma dos logotipos da Chevrolet (FRAIHA, Silvia (coord.). Eletrodomsticos: origens, histria e design no Brasil, RJ: Frahia, 2006: 76). As formas arredondadas que os refrigeradores possuam eram fruto da tecnologia uti-lizada na fabricao de automveis, exemplo do que em design fi cou conhecido como streamlining, ou estilo aerodinmico.

    Representao de tudo que era moderno - e, por conseqncia, veloz, gil - o estilo aerodinmico se fez presente de objetos (automveis, eletrodomsticos, mveis) at o corpo humano, que teve que se desvencilhar de tudo que signifi casse menos agilidade e que difi cultasse a velocidade de locomoo. Conforme SantAnna,

    para majorar a sade acelerar a produtividade, mdicos e conselheiros da imprensa logo se apropriaram do ideal do aerodinamismo: principalmente ao decretarem o fi m das roupas pesadas, dos espartilhos, chapus e penteados complicados. Entre as jus-

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 379

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    tifi cativas, constava o receio de difi cultar a agilidade do corpo e sua velocidade de locomoo (SANTANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de Passagem. SP: Estao Liberdade, 2001: 43).

    O estilo aerodinmico, presente em alguns eletrodomsticos vendidos no Brasil en-tre as dcadas de 1940 e 60, convidava a prticas culinrias e de limpeza mais rpidas e efi cientes. A brancura e o acabamento sem emendas dos refrigeradores Coldspot e, tam-bm, da primeira geladeira Consul, destacavam qualquer mancha exigindo uma limpeza imediata. A aparncia da geladeira, tal como a de numerosos aparelhos e artefatos, era uma contnua censura aos modos relaxados, uma lio objetiva de limpeza. (FORTY, Adrian. Op. Cit.: 230)

    Por sua vez, a aparncia aerodinmica dos refrigeradores resultou do interesse em di-minuir gastos com a produo. A tcnica de estampagem utilizada na fabricao de carro-cerias de automveis foi aproveitada nos refrigeradores. Na dcada de 1930, a tecnologia de dobra e estampagem de chapas exigia que os raios de curvatura das arestas fossem am-plos e suaves, pois era mais difcil obter cantos vivos na estocagem. Os cantos arredon-dados dos refrigeradores, idia de Raymond Loewy, contratado pela Sears Roebuck para redesenhar a geladeira Coldspot e que havia trabalhado para a indstria automobilstica, foi adotado por toda a indstria de refrigeradores (FRAIHA, Silvia. Op. Cit.: 40).

    Nos anos 50, paralelamente ao aumento da publicidade de eletrodomsticos - pro-pondo que eles tornariam mais fcil o trabalho domstico - comeam a crescer as exign-cias sobre as donas-de-casa brasileiras para obterem maior efi cincia no lar, como se seus deveres domsticos fi zessem parte de uma rotina industrial. A cozinha efi ciente era a cozi-nha americana, na qual a localizao do fogo, geladeira e demais eletrodomsticos havia sido pensada para permitir economizar energia e obter maior rapidez no ato de cozinhar. E no era toa que se sugeria nessa cozinha a presena de um relgio de parede eltrico posicionado em lugar bem visvel (Casa e Jardim, Agosto de 1955, n. 16: 35).

    O armazenamento de comida e todas as suas implicaes nos hbitos alimentares e nas prticas domsticas tambm sofreu modifi caes com a utilizao de refrigeradores. E os desdobramentos vo mais longe: a televiso e os refrigeradores parecem formar um conjunto com o setor de produo e comercializao de produtos alimentcios, formando uma extensa rede de consumo.

    A inaugurao da televiso e a produo de geladeiras domsticas no Brasil so apontadas como de imensa relevncia na implantao dos supermercados no pas.

    Uma possibilita a propaganda do novo processo e a outra permite a estocagem de pere-cveis no lar, incentivando assim a compra de maiores quantidades em cada visita feita s lojas de alimentao. (BRANCO, Renato Castelo (coord.) Histria da Propaganda no Brasil, SP: T. A . Queiroz, 1990: 279)

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007380

    Mrcia Bomfim de Arruda

    A imagem de autonomia, de crianas e adultos se dirigindo at a cozinha, abrindo a porta de um refrigerador para pegar um alimento ou bebida, freqentemente mostrada nas propagandas, trazia a idia de auto-servio, self-service, to cara rede supermerca-dista criada entre os anos 50 e 60 do sculo XX no Brasil. A histria da implantao dos supermercados no pas cheia de percalos que tambm contam sobre a criao, nessa poca, de novos hbitos na populao. Em 1953, quando foi aberto um supermercado de 1.400 m2 na rua da Consolao em So Paulo, com o sugestivo nome Sirva-se, Jnio Quadros mandou prender os donos porque estavam vendendo em uma mesma loja ali-mentos secos e perecveis, o que, no seu entender, ia contra as boas normas de defesa da sade pblica (Ibid. 1990: 281).

    A imagem de um dono de supermercado sendo preso por vender alimentos secos e perecveis no mesmo local, to estranha aos olhos de hoje, , no entanto, testemunha de sensibilidades e preocupaes que se transformaram em um curto perodo de tempo. Com a entrada dos equipamentos eltricos nos lares, houve a produo de uma economia dos gestos: de higiene, alimentares, de trabalho, de lazer, de satisfaes corporais, de outra ordem daquela quando essas mquinas no faziam parte do ambiente domstico. Uma experincia nova que passa a ser vivenciada no espao da casa que ela, tambm, uma forma tcnica pensada e projetada por engenheiros e arquitetos (BEGUIN , Franois. As maquinarias inglesas do conforto. Espao & Debate, n.34, 1991: 42).

    Contra-golpe

    Em torno dos usos dos eletrodomsticos podemos vislumbrar uma histria que no aquela mais banalizada que busca correspondncias ou oposies ou at ameaas entre o homem e a mquina; ou ento que toma a mquina como mero instrumento facilitador da vida moderna; ou que busca nas invenes tcnicas uma histria da evoluo humana. possvel problematizar a relao entre homens e mquinas (no caso, eletrodomsticos) entendendo essa relao como produtora de um novo tipo de sociedade.

    Analisando a propaganda de eletrodomsticos, podemos encontrar um imaginrio em torno desses objetos. Expectativas sobre os benefcios que podiam trazer para a sade, para o corpo; a utilidade para a dona-de-casa na realizao de tarefas domsticas; o con-forto que podiam propiciar; a felicidade que trariam; a capacidade de tornarem mais fcil o trabalho. Nas propagandas, os eletrodomsticos eram apresentados como sinnimos de modernidade, progresso, desenvolvimento e avano tecnolgico.

    Na prtica, esses objetos tcnicos precisaram incorporar em seu aspecto fsico essas idias presentes na mdia, se no fosse assim, no seriam aceitos pelos consumidores. Os designers de eletrodomsticos conseguiram materializar idias como limpeza, higiene,

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007 381

    Consideraes acerca do uso de mquinas eltricas no ambiente domstico

    beleza, modernidade, menor trabalho. O estilo aerodinmico dos eletrodomsticos vendi-dos no Brasil entre os anos 1940 e 1960 foi um exemplo disso.

    Mas sabemos que, de fato, alm de tornar mais leve o fardo e poupar tempo nas tare-fas domsticas, o que esses aparelhos eltricos fi zeram foi tornar possvel atingir padres mais elevados na realizao dessas tarefas. O tempo economizado passou a ser gasto fa-zendo a mesma tarefa - ou outras - com mais freqncia e melhor. Nos Estados Unidos e Inglaterra, esses objetos tcnicos aumentaram o trabalho, elevando o padro dos cuidados com a casa (FORTY, Adrian. pp.284-285).

    Nos prprios eletrodomsticos, nas suas caractersticas tcnicas, possvel apre-ender como a sociedade vive, seus medos e sentimentos. Aspiradores de p expressam preocupao com a limpeza; exaustores propem a renovao do ar, que, por sua vez, visto como determinante para a sade, assim como, o congelamento de comida que o freezer permite, considerado fator de conservao das vitaminas dos alimentos.

    A aparncia desses objetos tambm foi pensada para transmitir a impresso de hi-giene. Nos aspiradores de p, os mecanismos foram escondidos por invlucros de liga de metal fundido, homogneos e lustrosos. Os mecanismos continuaram os mesmos, mas o invlucro que brilhava de limpeza escondia as engrenagens sujas da vista. Como diz For-ty, o design diz as pessoas o que elas devem pensar sobre a casa e como devem compor-tar-se dentro dela. Rdios e radiofones (aparelho de som) criaram um novo tipo de lazer dentro de casa, liquidifi cadores, batedeiras de bolos, moedores, espremedores, refrigera-dores convidavam a prticas culinrias mais rpidas, menos trabalhosas e transformaram os hbitos alimentares. Enceradeiras, aspiradores de p e exaustores produziram novas percepes e sensibilidades do limpo e do sujo, do saudvel e do nocivo.

    Ao mesmo tempo, os aspectos fsicos desses objetos tcnicos dependem do que as pessoas pensam a respeito do que apropriado e belo no lar. As mquinas de costura so um bom exemplo de como o imaginrio social pode infl uir sobre o design. As primeiras mquinas de costura fabricadas nos Estados Unidos, na dcada de 1850 e oferecidas para uso domstico, no eram diferentes das usadas nas ofi cinas e operadas por moas da clas-se trabalhadora. No eram consideradas apropriadas para os lares devido a sua aparncia industrial. A soluo encontrada pelos fabricantes foi criar um modelo exclusivamente domstico, o que foi feito apenas com o acrscimo de ornamentos e por uma estrutura mais leve. A publicidade ajudou a mquina de costura a ser vendida apresentando-a como sinnimo de economia, alm de um bonito objeto de decorao (FORTY, Adrian. Op. Cit.: 132-137).

    Os objetos tcnicos para uso domstico no so apenas produtos da sociedade como, tambm, produzem a sociedade. Por isso, talvez fosse o caso de pensar, como prope

  • Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 367-382, dez. 2007382

    Mrcia Bomfim de Arruda

    Flusser (FLUSSER, Vilm. O Mundo Codifi cado. SP: Cosac Naif, 2007: 48-49),50 que as mquinas, por mais estpidas que sejam, contra-atacam, revidam nossas investidas. Como vo golpear quando se tornarem mais espertas? (...) Esse um problema do design: como devem ser as mquinas, para que seu contragolpe no nos cause dor? Ou melhor: como deve ser essas mquinas para que o contragolpe nos faa bem?.

    Recebido em setembro/2007; aprovado em outubro/2007.