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CONSIDERAÇÕES PARA A FORMALIZAÇÃO DE ALGUNS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES Márcio Renato Guimarães (UFPR) RESUMO: No presente trabalho, parto da caracterização, constante em Ilari et alii (1993) e Ilari (1996), dos advérbios focalizadores, na direção de uma proposta de formalização, dentro de uma semântica formal, de modelos teóricos, de alguns desses advérbios – com especial referência a mesmo. Serão revisadas as seis categorias de verificação propostas por Ilari para identificar operações específicas expressas pelas construções onde figuram os focalizadores, com a identificação de uma nova operação – a da verificação por instâncias limites. A inclusão da categoria de verificação por proporção será questionada, baseada em sua semelhança com a expressão da intensificação. A identificação de alguns procedimentos recursivos para a identificação de elementos co(n)textuais será proposta, com o fim de possibilitar a inclusão de mecanismos formais, nos modelos de interpretação, para a recuperação desses elementos. 1. Advérbios Predicativos e Não-Predicativos O objetivo central de Ilari et alii (1993) é a revisão da afirmação, constante ao longo da Tradição Gramatical, de que o advérbio é um termo cuja colocação na estrutura da sentença é livre de restrições. A principal tese do texto é que uma maior liberdade de colocação ocorre com alguns tipos de advérbios, mas com a maior parte dos tipos de advérbios a colocação observa restrições bastante rigorosas. Assim que se fez necessário, ao longo da pesquisa que levou à redação daquele texto, também uma revisão da subclassificação dos advérbios constante das gramáticas escolares, também ela bastante insatisfatória. Apesar de essa revisão não ser o propósito central do artigo (que estabelecer as regras de colocação dos advérbios na sentença), ela acaba ocupando mais da metade da sua extensão. Ilari et alii (1993) dividem a classe dos advérbios (após, previamente, excluir delas os dêiticos de lugar e de tempo) em dois grandes grupos: advérbios predicativos e advérbios não-predicativos. Os primeiros corresponderiam a predicadores de grau superior, enquanto os segundos denotariam outros tipos de operadores que não predicadores de grau superior. A noção de que alguns advérbios denotam predicações de grau superior é apropriada de Reichenbach (1947). A formalização de Reichenbach é utilizada, por Ilari et alii (1993: 90-1) para distinguir entre advérbios (como precipitadamente), que denotam predicadores de grau superior, e advérbios que não denotam (como não e ontem): (1) a. Pedro saiu. b. Pedro saiu precipitadamente. c. Pedro saiu ontem. d. Pedro não saiu. A “forma lógica” reichenbachiana das sentenças constantes em (1) pode ser vista em (2): (2) a. 5 f [σ (f) f(p)]

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CONSIDERAÇÕES PARA A FORMALIZAÇÃO DE ALGUNS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES

Márcio Renato Guimarães (UFPR)

RESUMO: No presente trabalho, parto da caracterização, constante em Ilari et alii (1993) e Ilari (1996), dos advérbios focalizadores, na direção de uma proposta de formalização, dentro de uma semântica formal, de modelos teóricos, de alguns desses advérbios – com especial referência a mesmo. Serão revisadas as seis categorias de verificação propostas por Ilari para identificar operações específicas expressas pelas construções onde figuram os focalizadores, com a identificação de uma nova operação – a da verificação por instâncias limites. A inclusão da categoria de verificação por proporção será questionada, baseada em sua semelhança com a expressão da intensificação. A identificação de alguns procedimentos recursivos para a identificação de elementos co(n)textuais será proposta, com o fim de possibilitar a inclusão de mecanismos formais, nos modelos de interpretação, para a recuperação desses elementos.

1. Advérbios Predicativos e Não-Predicativos

O objetivo central de Ilari et alii (1993) é a revisão da afirmação, constante ao longo da Tradição Gramatical, de que o advérbio é um termo cuja colocação na estrutura da sentença é livre de restrições. A principal tese do texto é que uma maior liberdade de colocação ocorre com alguns tipos de advérbios, mas com a maior parte dos tipos de advérbios a colocação observa restrições bastante rigorosas. Assim que se fez necessário, ao longo da pesquisa que levou à redação daquele texto, também uma revisão da subclassificação dos advérbios constante das gramáticas escolares, também ela bastante insatisfatória. Apesar de essa revisão não ser o propósito central do artigo (que estabelecer as regras de colocação dos advérbios na sentença), ela acaba ocupando mais da metade da sua extensão.

Ilari et alii (1993) dividem a classe dos advérbios (após, previamente, excluir delas os dêiticos de lugar e de tempo) em dois grandes grupos: advérbios predicativos e advérbios não-predicativos. Os primeiros corresponderiam a predicadores de grau superior, enquanto os segundos denotariam outros tipos de operadores que não predicadores de grau superior. A noção de que alguns advérbios denotam predicações de grau superior é apropriada de Reichenbach (1947). A formalização de Reichenbach é utilizada, por Ilari et alii (1993: 90-1) para distinguir entre advérbios (como precipitadamente), que denotam predicadores de grau superior, e advérbios que não denotam (como não e ontem):

(1) a. Pedro saiu.b. Pedro saiu precipitadamente.c. Pedro saiu ontem.d. Pedro não saiu.

A “forma lógica” reichenbachiana das sentenças constantes em (1) pode ser vista em (2):

(2) a. ∃f [σ (f) ∧ f(p)]

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b. ∃f [σ (f) ∧ π (f) ∧ f(p)]c. ∃f [σ (f) ∧ f(p,o)]d. ¬∃f [σ (f) ∧ f(p)]

Enquanto o advérbio de negação denota o operador lógico sentencial (ou proposicional) ‘¬’, e o advérbio ontem denota um elemento argumental dentro da função denotada pelo verbo, um advérbio como precipitadamente – bem como outros advérbios qualitativos – denotam predicações de grau superior, quer dizer, operadores de funções que tomam como argumento não indivíduos mas funções. Observe-se que a análise de Reichenbach não só prevê o uso de predicadores de ordem superior para a explicação do significado apenas dos advérbios: nas formulações acima também a significação do verbo é explicada através de um predicador de ordem superior – o verbo sair denota uma função sobre a qual é predicada a função superior σ . A diferença é que, enquanto o verbo denota uma função com determinadas propriedades (por exemplo, da qual é predicada uma função superior F), o advérbio denota apenas a função superior F que é predicada da função denotada pelo verbo.

Um dos aspectos mais charmosos da análise de Reichenbach é a possibilidade de associar a denotação de alguns tipos de advérbios – nomeadamente os advérbios derivados de adjetivos através de algum mecanismo morfológico de derivação (como o sufixo –ly , do inglês, ou o “sufixo” –mente, do português e de outras línguas românicas) – com a denotação de adjetivos aparentados. Para Reichenbach, no entanto, isso só é possível quando o adjetivo – ou o advérbio – representam uma função independente, caso em que as duas funções podem ser separadas parafraseando, com equivalência de significado, a sentença em que as expressão em questão ocorre, com uma construção em que cada uma das expressões (o adjetivo/advérbio e a função que ele modifica) é separada em uma sentença independente, sendo as sentenças assim resultantes unidas pela conjunção – é o que acontece entre (3), por exemplo, e sua paráfrase em (4):

(3) Royce Hall is a red building.(4) Royce Hall is building and Royce Hall is red.

O mesmo ocorre com alguns advérbios – veja-se o exemplo (5), parafraseado em (6):

(5) John moves slowly.(6) John moves and John is slowly.

Isso não ocorre com alguns adjetivos – e mesmo com alguns advérbios:

(7) He is very intelligent.(8) *He is intelligent and he is very.

(9) He moves a lot.(10) *He moves and he is a lot.

Na análise de Reichenbach, também os adjetivos correspondem a funções de grau superior – a formalização reichenbachiana de (11) pode ser vista em (12), adaptando-se a notação para aquela utilizada por Ilari:

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(11) Annette is beautifull.(12) ∃ f [β (f) ∧ f(a)]

Reichenbach utiliza funções1 de ordem superior tanto para caracterizar as propriedades de advérbios como para caracterizar as propriedades de outras “funções” de primeira ordem, como verbos e adjetivos. A diferença entre advérbios e expressões como verbos e adjetivos é que estes denotam funções sobre individuais, caracterizadas de acordo com suas propriedades (as funções de ordem superior que as caracterizam), enquanto que aqueles denotam unica e exclusivamente funções de ordem superior, não predicando diretamente sobre individuais. Como vantagem adicional, um advérbio em –ly é entendido como denotando a mesma propriedade do adjetivo do qual é derivado.

A análise inspirada em Reichenbach proposta por Ilari et alii (1993) para os advérbios predicativos não é totalmente imune a dificuldades. Em primeiro lugar, antes de tomar como protótipos os advérbios predicativos como um todo, ela parece ser uma análise dos advérbios qualitativos. De sua aplicação para outras subclasses de advérbios predicativos pode-se dizer, no mínimo, que não será tão automática quanto é para os qualitativos.

Os advérbios “intensificadores” de Ilari et alii (1993) – que eu prefiro chamar pelo nome mais antigo e mais preciso de advérbios de quantidade – parecem denotar relações entre quantidades e não apenas uma qualificação da função denotada pelo verbo, e há evidências de que eles denotam o mesmo tipo de operação denotada pelos quantificadores (= determinantes) correspondentes. Ainda assim, mesmo em seus usos como “advérbios de verbo” a sua interpretação como funtores de ordem superior parece não explicar a riqueza das funções que eles assumem. Dependendo do tipo de verbo que eles modificam

(13) "Achei um filme emocionante. Gostei mais do filme do que do livro."

[http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/adoraveis-mulheres/adoraveis-mulheres.asp]

(14) Parece que para todos os góticos entrevistados, o visual importa bastante, mas ao contrário do que a maioria das pessoas costumam pensar, ele é apenas uma maneira de exteriorizar o que esse pessoal tem dentro de si.[http://www.por.com.br/?page=noticias&noticia=336&caderno=1]

(15) Eu, em poucos anos, já viajei mais para a América do Sul do que todos os presidentes que passaram pelo Brasil. Já viajei mais para a África do que os presidentes que passaram pelo Brasil.[http://www.radiobras.gov.br/integras/2005/integra_20042005_1.htm]

(16) A reforma ministerial que o governo está parindo demorou mais para se concretizar do que os habituais nove meses de gestação.[http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=206517]

(17) Uma colega que estava comigo gastou diversos guardanapos e ainda sujou bastante o chão propositalmente...

1 Observe-se que o f de Reichenbach está para fato, não para função. Uma forma lógica como 2.b. pode ser parafraseada como “existe um fato tal que esse fato é afirmado sobre Pedro, esse fato possui a propriedade σ e esse fato possui a propriedade π “.

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[http://www.overmundo.com.br/guia/comer-e-subir-ladeira](18) Saber de pessoas e mais pessoas que levam a vida como uma

grande representação teatral (no mau sentido da coisa) desanima muito.[http://www.muitosuspeito.blogger.com.br/]

Advérbios de quantidade parecem quantificar – entendendo-se, por quantificar, “denotar um tipo específico de relação entre quantidades” – coisas diferentes conforme sejam aplicados sobre tipos diferentes de verbos: com verbos estativos, como gostar e importar, eles denotam uma diferença entre a intensidade com que a predicação denotada por esses verbos é feita do sujeito; com verbos “de evento”, como viajar, eles denotam uma relação entre duas quantidades de eventos do tipo denotado pelo verbo em que o sujeito se envolve; com verbos com duração temporal intrínseca, como demorar, eles denotam a diferença do tamanho de dois intervalos de tempo; com verbos de mudança de estado, como sujar e desanimar, eles denotam a diferença entre dois graus de intensidade de predicação. Em outros trabalhos (Guimarães, 2007; Guimarães, a sair) essas diferenças são discutidas com mais profundidade.

Os advérbios predicativos “sentenciais” identificados por Ilari et alii (1993) também parecer caber com mais dificuldade nesse esquema reichenbachiano. A fim de verificar isso, tome-se um exemplo para cada subclasse de advérbios predicativos sentenciais identificada por Ilari et alii (1993), a saber: hedges (19), quase-modais (20), aspectualizadores (21) e de atitude proposicional (22) – exemplos de Ilari et alii (1993: 82-3):

(19) Humanamente, é impossível fazer tanto processo ao mesmo tempo.

(20) [É de praxe] falar com essa pessoa e agir com essa pessoa dentro da máxima ética... porque essa pessoa, provavelmente, será um cliente futuro.

(21) Diariamente, quase que diariamente, eles chegam atrasados.

(22) Ainda não... Felizmentente, [as crianças] ainda não começaram [aquela fase mais difícil].

A dificuldade, nos exemplos acima, é identificar qual instância deverá ser qualificada (a sentença? a proposição? um evento “denotado” pela sentença?)

Nenhuma consideração, no entanto, é feita acerca dos advérbios não-predicativos, subclasse em que são classificados os advérbios focalizadores,que são a (sub)categoria focalizada neste trabalho, para além da caracterização de todos os advérbios como modificadores em construções endocêntricas – uma caracterização correspondente à de deSwart (1993: 3) dos advérbios como uma categoria X/X:

(23) família de - de agricultores, não podia ser dispensado o trabalho dos filhos, [mesmo [os novinhos]SN]SN, que mal poderiam segurar uma enxada, tinham que ir pra roça como eles diziam.[PRCTB24/SLIN:0094]

(24) meus pais, por exemplo, nós éramos em três irmãos, nos levavam em todos os bailes infantis que tinha, e a gente sabia, do começo do ano [até [o final do ano]SN]SN, a gente sabia quais eram os bailes infantis que tinha.

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PRCTB22:SLIN:0169

Isso quer dizer que advérbios são entendidos como funtores que mapeiam uma categoria de um determinado tipo (variável, já que os advérbios se aplicam sobre categorias de tipos bastante diferentes) em uma outra categoria do mesmo tipo da categoria-argumento. Isso, porém, não apresenta nada de consistente acerca da interpretação semântica dos advérbios em questão, o que parece depender da subclasse que eles denotam.

Uma abordagem formal dos advérbios focalizadores deve partir do reconhecimento dessas expressões como funtores de tipo X/X que denotam uma determinada noção para a descrição do tipo de noção que eles denotam em um modelo semântico formal. Na seção 2, algumas considerações acerca do tipo de noção denotada por esses advérbios, partindo-se da discussão constante de Ilari (1996). Na seção 3, algumas pistas que podem levar à formalização desses advérbios são colocadas.

Os dados utilizados para o estudo do advérbio mesmo provém das entrevistas do córpus VARSUL realizadas em Curitiba. Para alguns exemplos, menos facilmente encontráveis num córpus de menor extensão (ainda que de construção de amostra mais controlável) como o VARSUL, utilizou-se o buscador GOOGLE®, com a restrição “Páginas do Brasil”.

2. A noção de focalização

Em Ilari (1996), são desenvolvidas algumas noções que apareceram, de maneira bastante intuitiva e implícita, em Ilari et alii (1993) acerca da caracterização dos advérbios focalizadores. O autor identifica (Ilari, 1996: 196) três critérios gerais, que constituem a noção de focalização, numa formulação que o próprio autor reconhece como imprecisa. Assim, segundo o autor, “dizemos que uma expressão adverbial realiza uma operação de focalização no sentido em que estamos procurando caracterizar quando:

(i) aplicada a um segmento da oração...(ii) ...explicita que esse segmento fornece informações mais exatas

que a média do texto, em decorrência de uma operação prévia de verificação...

(iii) ...que por sua vez implica um roteiro próprio, por exemplo, a comparação implícita com algum modelo ou parâmetro recuperável no co(n)texto.

O esquema tripartite acima explicita, na construção da focalização, três operações básicas. A primeira operação é a do destaque de uma figura do seu fundo. Algumas outras noções configuram uma separação de uma figura do seu fundo, como ocorre com a intensificação denotada por bem, em (25):

(25) como se chama aquelas florzinha branquinha bem cheirosa... eu acho que é ja... jasmim, não é? [POA 45:339]

Segundo o autor, a qualificação do jasmim como uma “flor bem cheirosa” separa os jasmins de outras flores pela intensidade de seu cheiro – o que, diga-se de passagem, é conseguido também pelo morfema diminutivo e pelo adjetivo branquinha, que separam o jasmim de outras

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flores. Concordo, no entanto, que a focalização opera uma separação do tipo de um contraste entre figura e fundo, e que isso é um ingrediente importante da operação de focalização. Assim, por exemplo, no exemplo acima citado em (23), a focalização se baseia num contraste desse tipo:

(23) família de - de agricultores, não podia ser dispensado o trabalho dos filhos, mesmo os novinhos, que mal poderiam segurar uma enxada, tinham que ir pra roça como eles diziam.

Em (23), os [filhos] novinhos constitui a figura, que contrasta com o fundo que é explicitamente representado, aqui, pelo sintagma os filhos, que figura na ocorrência imediatamente antes. Na verdade, essa instanciação a partir das subclasses de uma classe é o ingrediente principal do processo de verificação, identificado por Ilari como o processo seguinte da construção da focalização – a ideia geral, constante no passo descrito em (ii), é a de que as instâncias promovem uma melhor exatidão daquilo que é expresso. Assim, aquilo que é expresso na ocorrência (23) – qual seja, que o trabalho dos filhos dos agricultores não pode ser dispensado – é melhor expresso por que se aplica sobre uma determinada instância – o trabalho dos filhos mais jovens – que fornece um limite onde se verifica, privilegiadamente, o alcance da afirmação. De uma certa forma, essa instância destacada representa um limite mais periférico da classe total, menos passível de ser atingido pelas consequências da afirmação feita do que outras instâncias, mais centrais. Ou seja, tal é o alcance da afirmação “o trabalho dos filhos não pode ser dispensado” que até na instância periférica do trabalho dos filhos menores essa afirmação continua valendo.

A informação de que essa instância é mais periférica, e que por isso constitui parâmetro privilegiado de verificação, é definida pelo contexto, neste caso específico – acredito que essa informação podia ser entendida como fazendo parte de um conhecimento compartilhado (talvez por nossa cultura urbana contemporânea) de que os mais novos de um grupo humano devessem ser poupados de trabalhos pesados como o da agricultura. Mas é possível, também, que esse tipo de informação esteja expressa no cotexto:

(26) Então a gente não sabe ao certo se foi a Prefeitura que uniu tudo e ficou tudo ("hã") uma coisa só, Pilarzinho, né? Que uniu esse lado aqui, passando o Bom Retiro pra aquele lado pra lá, uniu tudo como Pilarzinho, não se sabe! Então, até [me]- me vi na lista desse ano ali como Pilarzinho ou como Taboão, mas eu creio que aqui é Pilarzinho. Mesmo nas placas das ruas pode ver que, né? rua tal, número tal, Pilarzinho. E antigamente era Taboão.[PRCTB10/SLIN:139-149]

A questão no trecho acima da entrevista de número 10 do córpus VARSUL de Curitiba era determinar precisamente em que bairro situa-se a casa do falante, já que a delimitação dos bairros feita pela prefeitura de Curitiba não corresponde à divisão tradicional, consuetudinária para os antigos moradores. A informação da caracterização dos bairros nas placas das ruas, introduzida pelo mesmo, representa uma instância entre as informações acerca da delimitação dos bairros, e serve para verificar a afirmação (ainda que modalizada por eu creio) de que a casa em questão se situa, oficialmente, no Pilarzinho.

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Aquilo a que me referi como “verificação de uma asserção através de instanciação”, um pouco acima pode representar também uma operação mais geral de estabelecimento de limites mais precisos, no sentido de menos vagos ou difusos. Assim, no exemplo () analisado acima, a focalização em mesmo os novinhos serve para garantir que a afirmação de que o trabalho dos filhos não podia ser dispensado não foi feita com base em que o trabalho de qualquer proporção representativa dos filhos (a maioria deles, p. ex.) não podia ser dispensado, mas numa proporção realmente significativa – e essa relevância é contextualmente definida. Essa proporção não necessariamente esgota todos os casos, embora exista uma construção que implica o esgotamento das instâncias, por contraste, que é nem mesmo, ou qualquer construção com um termo negativo, ou só mesmo.

2.1. As categorias de focalização

Após descrever as características gerais da operação de focalização, Ilari divide os focalizadores em seis categorias, conforme os tipos de focalização denotados:

i. verificação por númeroii verificação de proporçãoiii. verificação de coincidência com um protótipoiv. verificação de identidade ou congruênciav. verificação de factualidadevi. confronto de tipologias

Nas subseções abaixo, pretendo demonstrar a aplicação das caracterizações de Ilari (1996) sobretudo aos advérbios focalizadores mesmo e até, mais do que retomar exaustivamente as caracterizações daquele autor para os advérbios focalizadores.

2.1.1. Verificação de Número

Ilari (1996: 198) identifica duas estratégias básicas: a primeira é a de apresentar o número como um resultado exato – operação representada pelo operador exatamente; a segunda consiste em apontar o número como uma operação de totalização – que o autor relaciona com o operador no total ao qual se pode ainda acrescentar expressões como ao todo, os exemplos (27) e (28) são repetidos de Ilari (1996: 199):

(27) L1 – ...somos de famílias grandes então acho que dado esse fator nos acostumamos a muita gente[...]L2 – e daí o entusiasmo para nove filhosL1 – exatamente nove ou dez[SP360: 31]

(28) contei também o número de estudantes.... quarenta e um... e: eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista... que vocês: são no total cinqüenta e um... quer dizer sempre está faltando... não é? um pouco...[RE337: 16]

(29) Hoje as quatro operadoras que atuam no Estado têm ao todo 60 planos pós-pagos convencionais (excluindo os empresariais) e mais 7 pacotes pós com crédito fixo para ser usado no mês.

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[http://br.noticias.yahoo.com/s/01042009/25/tecnologia-plano-celular-estoura-mes.html]

A esses operadores “de número exato” podem o autor acrescenta os operadores “de limite” no máximo, no mínimo, se tanto e pelo menos, que não focalizam um determinado número, mas antes alguma região em uma escala adjacente a um determinado número (mais ou menos) exato – o exemplo (30) foi extraído de Ilari (1996: ):

(30) ...contei os seguintes grupos: grupo a: o b, o c, o d, o f e o i... portanto temos entre 8 e 9 grupos no máximo.[RE337: 12]

(31) Mas também é verdade que hoje se tem feito “dois transplantes por mês, se tanto”.[www.sinpro-rs.org.br/extra/jun99/capa_1.htm]

(32) Baseado nos mesmos dados analisados pelo COO da Mozilla, eu chegaria a uma conclusão diferente: são no mínimo 49 milhões de usuários, e se as demais estimativas estiverem corretas, provavelmente o número se aproxima dos 120 milhões.[http://br-linux.org/linux/firefox-sao-no-minimo-125-milhoes-de-usuarios-segundo-a-mozilla]

(33) Pelo menos 13 pessoas morreram nas primeiras horas deste sábado (horário local) em um ataque atribuído aos Estados Unidos no noroeste do Paquistão, informou o site da emissora de TV paquistanesa Geo News.[http://ultimosegundo.ig.com.br/bbc/2009/04/04/ataque+atribuido+aos+estados+unidos+mata+pelo+menos+13+no+paquistao+5336949.html]

Dos exemplos acima, no máximo e se tanto denotam um determinado limite e opera com a região da escala abaixo desse limite. Pelo menos denota um limite mínimo e opera com a região da escala acima desse limite, do mesmo modo que no mínimo. A essas expressões pode-se acrescentar: ao menos, com aproximadamente o mesmo comportamento de pelo menos, mas com a característica de que pode ser negada (nem ao menos), mas aparentemente não em contextos envolvendo quantidades definidas maiores ou diferentes de um e sequer (que apresenta a forma negativa, porém de significado equivalente, nem sequer) – além de aproximadamente e mais ou menos, que definem um limite e denotam a região da escala imediatamente acima e abaixo desse limite:

(34) Terremoto deixa ao menos 40 mortos na ItáliaPelo menos 40 pessoas morreram e dezenas estão desaparecidas em um terremoto de 6,3 graus na escala Richter que atingiu a cidade medieval de L'Aquila, no centro da Itália, a 90 km da capital Roma, nesta segunda-feira de manhã.[http://ultimosegundo.ig.com.br/bbc/2009/04/06/terremoto+deixa+varios+mortos+na+italia+5362932.html]

(35) Mestre querido, quando olho teu sofrimento,Nem ao menos um lamento Tua boca pronunciou E os meus pecados sobre Ti foram lançados E no Gólgota amargurado,

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Todo sangue derramou [http://www.cifras.com.br/cifra/actos-2/ao-pe-do-monte]

(36) Aproximadamente 80 cicloturistas fazem o circuito Vale Europeu durante a semana do carnaval.[www.circuitovaleeuropeu.com.br/blog/?p=65]

(37) Existe uma teoria sobre como no mundo inteiro só existem 500 pessoas reais (o elenco, por assim dizer; todas as outras pessoas do mundo, diz a teoria, são figurantes) e todas se conhecem. Na realidade, o mundo contém milhares e milhares de grupos de mais ou menos 500 pessoas que passarão a vida se encontrando, se evitando, se esbarrando numa improvável casa de chá de Vancouver.[http://www.naozero.com.br/node/9]

Os mesmos operadores – exceto aproximadamente – também podem figurar em construções que envolvam, não quantidades cardinais definidamente determinadas (= “exatas”), mas expressões de quantidade não-definida (= “indeterminadas”, para usar a terminologia gramatical clássica):

(38) O professor Merril Siverstein, sociólogo da Universidade do Sul da Califórnia, descobriu que cerca de dois terços dos netos vêem algum avô apenas algumas vezes por ano, se tanto.[http://www.paisseparados.com/noticiasler.asp?id=1064]

Todos esses operadores “de limite” – exceto, talvez, aproximadamente – figuram em construções que descrevem “eventos, ações e propriedades de indivíduos, tratados como se fossem grandezas passíveis de comparação numérica”, conforme Ilari (1996: 199):

(39) ...a primeira pergunta foi: “por que o direito é um fenômeno social?”.. eu acredito que a grande maioria consegui responder... e, se não individualmente, pelo menos o grupo ajudou.[RE337:44]

(40) Ronaldo é a cereja do bolo, que só deverá entrar em cena quando estiver mais ou menos nos trinques, se tanto.[http:// colunistas.ig.com.br/albertohelenajr/2009/01/18/timao-se-apresenta/]

Mesmo e até figuram entre os focalizadores que operam sobre verificação de número, com funções bastante diferentes. O primeiro parece denotar uma operação bastante similar ao de exatamente, enquanto o segundo parece ser um operador “de limite”, com comportamento similar a no máximo:

(41) Para você ver como são as coisas, lembro agora (a memória volta aos poucos) que há bem mais de um ano atrás, quando respondi a esse exercício pela primeira vez, ele tinha sido postado por uma participante que havia feito um concurso e essa questão, disse ela mais tarde, gerou polêmica e foi anulada com a banca informando que o resultado era mesmo 20 anos.

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[http://www.somatematica.com.br/forumsm/viewtopic.php?p=95217&sid=5d448256dbdb16b5628bfe6f8f6767eb]

(42) E o Pnae diz que, planos de lançadores, o Brasil só tem mesmo dois.

[http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL53085-5603,00-BRASIL+QUER+LANCAR+DOIS+SATELITES+EM.html]

Mesmo e exatamente não admitem, quando aplicados à verificação de número, resultados inexatos. A diferença parece ser que, enquanto exatamente denota, além do número exato, que ele é um número exato, mesmo parece antes denotar que o resultado é um determinado número, não outro.

Já a similaridade de até com no máximo, quando aplicados à verificação de número, pode ser exemplificada com a possibilidade de ambos ocorrerem na mesma construção:

(43) Os candidatos que fizerem o novo Exame Nacional do Ensino Médio poderão inscrever-se em até cinco cursos oferecidos pelas instituições que aderirem ao sistema, em qualquer região do país.[http://oglobo.globo.com/educacao/vestibular/mat/2009/04/06/novo-enem-permitira-inscricoes-em-ate-cinco-cursos-de-qualquer-regiao-do-pais-755168434.asp]

(44) Com design moderno, a chopeira Mister Beer 6.6 litros tem maior capacidade de armazenamento proporcionando maior praticidade, uma vez que você pode utilizar até no máximo 11 garrafas de vidro ou 19 latas.[http://www.twenga.com.br/dir-Casa,Acessorios-relativos-ao-vinho-de-mesa,Chopeira-03906]

2.1.2. Verificação de Proporção

Ilarir (1996:199-201) descreve como verificação de proporcionalidade aquela que é expressa: a) sobre propriedades e relações expressas por “adjetivos, verbos, etc.” e b) que podem ser entendidas como realizando-se em parte ou por inteiro. Essas expressões são elencadas pelo autor em dois tipos de escala, representada abaixo:

tudo/nada mais/menosbaixa proporção

um pouco

média proporção

até certo ponto, mais ou menos, meio, (não) tanto assim

alta proporção absolutamente, plenamente, rigorosamente

A dificuldade em aceitar esse tipo de noção como de focalização é a de distingui-la da intensificação, noção definida por Ilari et alii (1993) como de outra natureza – e até elencada entre os advérbios predicativos, que deveriam ser de natureza totalmente diversa da dos advérbios não-

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predicativos. O próprio Ilari reconhece essa semelhança, perguntando-se até que ponto essas duas noções não se confundem, e propondo três critérios de distinção entre a intensificação e a focalização através da verificação de proporção, que reproduzo abaixo:

a) não há comparação de dois indivíduos quanto à intensidade que uma mesma propriedade assume em ambos, ou da intensidade que assumem duas propriedades distintas num mesmo indivíduo (tipos “A mais bonito que B”, “A mais bonito que inteligente”), mas sim de uma propriedade em relação a si mesma;

b) a substituição por muito, em alguns dos exemplos citados, não seria possível ( concordo muito) ou alteraria o sentido ( estou sendo muito fiel aos fatos);

c) absolutamente, plenamente e rigorosamente e o intensificador muito parecem ter distribuições diferentes:

absolutamente x muito xfielcertoimpossível*grande*bom*alto*verde [cor]? verde [amadurecimento]

fielcerto*impossívelgrandebomalto*verde [cor]verde [amadurecim.]

O primeiro critério diz respeito ao tipo de comparação expresso, os dois critérios seguintes dizem respeito às propriedades dos focalizadores operando verificação de proporção em contraste com a do intensificador (proto)típico muito.

Com relação ao primeiro critério, é verdade que a comparação estabelecida por absolutamente etc. não se dá, nem pode se dar, entre dois indivíduos, nem entre duas propriedades num mesmo indivíduo. Nesse sentido expressões como absolutamente, mais ou menos, até certo ponto e as outras citadas por Ilari diferem grandemente não dos advérbios de quantidade (= intensificadores), mas de um pequeno grupo bem definido deles: os advérbios de comparação – ou, mais precisamente, dos operadores de construções comparativas (mais... do que...; menos... do que...; tanto/tão... quanto...).

Porém, eu não caracterizaria o tipo de comparação que absolutamente etc. expressam como de “uma propriedade com relação a si mesma”, mas como a proporção com que uma propriedade se realiza num indivíduo com relação a uma escala de referência para a realização dessa propriedades em indivíduos no universo do discurso. Em outras palavras, trata-se de entender a realização de propriedades, relações etc. em indivíduos – ou, como eu prefiro dizer, a predicação de algo acerca de um determinado indivíduo – como não sendo apenas resultado de uma função que toma indivíduos e dá valores de verdade discretos num sistema binário de sim/não (do tipo “A tem a propriedade B” vérsus “A não tem a propriedade B”), mas como uma função que reconhece gradações entre um zero e um grau máximo de predicação/realização de propriedades em indivíduos. Nesse sentido, a operação exercida pelos operadores de

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julgamento de valor, como muito e pouco, para citar-se apenas os prototípicos, é exatamente da mesma natureza, mudando apenas a região da escala que é referência para a “medição” da proporção. Vejamos como isso se dá em alguns dos exemplos citados por Ilari (1996:200):

(45) Eu estou sendo absolutamente fiel à comunicação, eu posso ver que a turma inteira atingiu tal rendimento em, em matemática, em português...[POA278:204]

(46) ... a lei é feita para o homem, para proteger o homem... e no entanto o homem está... sujeito e até certo ponto escravo da lei[RE337:91]

(47) essa primeira taxionomia refere-se mais ou menos a uma classificação, eu digo mais ou menos porque nós vamos ver qual é a diferença que existe entre uma taxionomia e uma classificação...[POA278:17]

(48) eu acredito que já tenham tido entre cinco e oito aulas de teoria geral do estado... portanto... já devem estar mais ou menos por dentro até da linguagem[RE337:261]

(49) a habilidade de passar meio rápido pelo guardinha[POA278:228]

A diferença entre absolutamente fiel e um exemplo hipotético em que figurasse a expressão muito fiel, como em (50), é entre regiões de uma mesma escala e não entre comparações de diferente natureza:

(50) Eu estou sendo muito fiel à comunicação, eu posso ver que a turma inteira atingiu tal rendimento em, em matemática, em português...

A sentença em (50) poderia ser parodiada como “eu estou sendo fiel num determinado grau acima de um certo grau que é (contextualmente) definido como o esperado, satisfatório, etc.”, enquanto (45) poderia ser parodiada como “eu estou sendo fiel em um determinado grau que está acima de qualquer outro grau possível”. Em ambos os casos, trata-se do grau com que uma propriedade é predicada de um indivíduo, embora varie a região de uma escala referencial de graus em que cada grau expresso seja situado.

A dificuldade em usar muito com algumas expressões, como impossível e verde (significando cor) talvez resida na dificuldade de se entender essas expressões como graduáveis. A primeira pode ser entendida, inclusive, como aceitando apenas duas possibilidades, mutuamente exclusivas – apenas os graus máximo e zero da escala, daí que uma coisa pode ser absolutamente impossível, mas não muito impossível ou pouco impossível.

Já os graus estabelecidos por mais ou menos e meio podem ser entendidos como ou um grau intermediário entre os representados por muito ou pouco – ou mesmo como uma representação estilística de um pouco – ou ainda, como graus intermediários entre o máximo (absolutamente, totalmente, completamente etc.) e mínimo (o zero, a região do nada). Este último parece ser o caso de até certo ponto

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Em Guimarães (2007: 142-5), eu proponho uma representação gráfica dessa escala, que adapto, aqui, para a representação das expressões citadas por Ilari (1996).

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absolutamente, etc.

algo(mais ou menos, meio)até certo ponto

muito

mais ou menos, meio

pouco, um pouco, etc.

nada

Com relação à possibilidade de adjetivos indicando cor serem intensificados, há alguns exemplos que parecem contradizer o juízo expressado por Ilari:

(51) O mar é muito azul, os quiosques bem animados e com certeza tem o público mais selecionado e belo das praias do Estado ! muita gente bonita ![http://www.feriasbrasil.com.br/es/guarapari/enseadaazul.cfm]

(52) A princesa Branca de neve assim chamada por ter a pele muito branca, os lábios vermelhos como o sangue e os cabelos negros como o ébano e que vivia num lindo castelo com seu pai e sua mãe.[http://www.toymagazine.com.br/boneca-disney-princesa-branca-de-neve-p-392.html]

O mesmo com absolutamente:

(53) Imagine-se agora, caro leitor, você tendo à mão uma folha de papel branca, absolutamente branca e nela você colocasse com a sua caneta esferográfica, um pingo de tinta . Por certo a folha continuaria branca, porém, não mais absolutamente branca.[http://www.evirt.com.br/ovodecolombo/cap06.htm]

(54) O céu está absolutamente azulhá prédios, alguns brancos ao fundo, no alto do morroem meio ao resto de mata e canto ecoado de pardaistambém um bem-te-vi.[http://recantodasletras.uol.com.br/poesias/1363276]

Os outros dois exemplos citados por Ilari, os advérbios plenamente e rigorosamente, parecem exibir restrições específicas com relação ao tipo de expressão que modificam:

(55) eu concordo plenamente que, para que a gente vá aplicar uma lei [...] para que a gente vá aplicar sinais no trânsito, por exemplo [...] é preciso que eu aplique, que eu utilize os sinais de trânsito na hora certa...[POA278:289]

(56) formular uma sentença rigorosamente fechada... baseada de novo... rigorosamente... numa interpretação formal[RE337:401-402]

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Mas deve-se ter cuidado com aquilo que se postula como agramatical. Algumas construções que tentei postular como agramatical se mostraram ocorrendo, ainda que em frequência muito baixa. Por exemplo, uma busca no buscador Google® encontrou apenas duas ocorrências de rigorosamente triste, contra 330 para rigorosamente fechada, 477 para rigorosamente correta, enquanto que rigorosamente azul não retornou dados:

(57) Por dois ou três meses, nós, mulheres, devemos ficar hermeticamente fechadas em casa e depois nos será permitido sair, mas apenas para retribuir as visitas e para ir à Igreja. Nada de passeios, a não ser ao campo, nenhuma diversão, e uma postura sempre rigorosamente triste...[http://www.ppgletras.ufjf.br/profs/textos/textoma3.pdf]

(58) É realmente impressionante, é rigorosamente triste, é desesperadamente complicado, é profundamente lamentável tentar ensinar a quem não queira aprender.[http://www2.uol.com.br/omossoroense/011207/conteudo/cap_caverna.htm]

Para rigorosamente branca a pesquisa retornou 5 ocorrências, enquanto rigorosamente negra, retornou apenas uma:

(59) Quadros célebres retratam cães de aspecto muito parecido com o bolonhês atual, com a diferença de que antes a cor era quase sempre o banco e preto, enquanto que hoje se exige que a pelagem seja rigorosamente branca.[http://www.saudeanimal.com.br/bolonhes_dog.htm]

(60) Duquesa era uma cadela rigorosamente negra, uma promessa de prazer a ser cumprida num altar de beleza e orgia.[http://www.comunique-se.com.br/index.asp?p=Conteudo/NewsShow.asp&p2=idnot%3D51338%26Editoria%3D874%26Op2%3D1%26Op3%3D0%26pid%3D1%26fnt%3Dfntnl&rss=on]

O fato de que rigorosamente tem um uso mais restrito na língua do que outros advérbios de grau total pode ser visto na sua frequência total. Uma busca para rigorosamente, no mesmo buscador, retornou aproximadamente 581 mil ocorrências, contra quase 900 mil para plenamente, mais de um milhão para absolutamente, mais de dois milhões para completamente e quase cinco milhões para totalmente. Os dados desse tipo de busca não são absolutamente confiáveis, dado que por mais que se selecione a restrição “páginas do Brasil”, ainda assim podem aparecer ocorrências do português europeu, e até mesmo do italiano e espanhol.

Em vista do que é dito acima, prefiro excluir a verificação por proporção dos casos de expressão de focalização. As relações entre a expressão da focalização e da “intensificação”, bem como outras relações de quantidade, ainda fica para ser melhor estudada. O viés de relação entre esses dois campos de significação me parece ter sido identificado: é a relação de comparação.

Pode-se entender a intensificação como um dos componentes da exata situação em um protótipo, realizada pela focalização. A esse respeito,

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a ocorrência de intensificadores mais prototípicos com focalizadores também mais prototípicos (como mesmo, até) talvez dê pistas interessantes:

(61) hoje em dia já fica esse lance meio estranho, né? [mais]- mais humorismo, [mais]- mais novela mesmo.[PRCTB09/SLIN:0715]

(62) então, eu acho assim que então, em matéria de- de segurança dos bairros, está [muito]- muito ruim mesmo a segurança.[PRCTB10/SLIN:0632]

Nesses casos, o focalizador atua como um intensificador da intensificação. Parece que se usa a força do focalizador como operador de circunscrição em um protótipo para enfatizar a intensificação. Uma estratégia comum de ênfase da intensificação é a da enumeração de graus, com a focalização no grau mais alto da escala:

(63) É o time que é ruim mas muito ruim mesmo. Mas como disse , estará entupido a Arena pois contra times do eixo eles se agigantam.[www.verdao.net/forum/index.php?showtopic=8759&pid=146795&mode=threaded&start=]

(64) Achei o final muito ruim, mas muito ruim MESMO! O Kishin do nada ficar daquele jeito?[http:// tsundere.blogspot.com/2009/03/soul-eater-51-fim.html]

De qualquer forma, a fronteira entre a intensificação e a identificação com um protótipo através da intensificação é bastante tênue:

(65) Eu peg- pego às vezes quando eu estou brava falo: “Vocês vão ver a hora que eu morrer, se vocês-” porque eu não gosto de flor e nem vela, sabe? Não gosto mesmo! Vela tem um cheiro ruim, né?[PRCTB08/SLIN:1035]

(66) E. Ah! Você tem cara de bem encrenqueira, heim, Dona Cleuza?F. (falando rindo) Não brigo. E. Não briga mesmo?F. Não. Eu sou ruim. Não digo que eu não sou. Sou ruim mesmo. Mas se mexer comigo eu brigo. Agora, se não mexer comigo, eu não brigo com ninguém, sabe?[PRCTB08/SLIN1461]

Na sequência em (65), mesmo atua como marcador de grau mínimo de intensidade (junto, é claro, com não), podendo ser substituído por outras expressões de intensidade zero, como nem um pouco ou de jeito nenhum. Já em (66), mesmo parece marcar a coincidência com o protótipo também pela intensidade (expressa aqui pela gradação sou ruim... sou ruim mesmo).

2.1.3. Verificação de Coincidência com um Protótipo

Acredito que a postulação por trás da verificação de coincidência com um protótipo seja a de que as diversas predicações possíveis de uma

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qualidade ou relação com relação a um indivíduo sejam entendidas como passíveis de uma gradação por aproximação. Isso pode ser bem observado no exemplo apontado por Ilari (1996) como o mais prototípico dessa operação, em ():

(67) ...lá em Ipanema, bem em frente daquele Cine Park[POA 45: p.1]

A relação estabelecida pela expressão em frente (de) SN comporta diferentes graus de aproximação, que Ilari representa por uma aproximação ao ângulo reto com relação ao objeto (ou lugar) que figura na posição do SN regido pela preposição de (Ilari, 1996: 203):

‘procure o prédio do lado oposto da rua, caminhando/olhando a partir do cinema, perpendicularmente à frente do próprio’

A implicação de uma relação ou propriedade passível de uma gradação por aproximação está por trás de outros casos apontados em Ilari (1996: 203), incluindo os advérbios propriamente, realmente e mesmo.

(68) inclusive eu coloquei ciência normativa entre aspas para mostrar que não é propriamente uma ciência que se chama normativa[RE377:475]

(69) uma preocupação realmente científica... realmente de homem de ciência

[RE337-349-353]

É por não coincidir com o protótipo “mais central”, para usar uma metáfora espacial, do que pode ser dito ciência, e não por não ser ciência tout court, que a ciência normativa é caracterizada como não sendo propriamente uma ciência. Da mesma forma, a preocupação é realmente científica por estar mais centralmente localizada com relação ao que é o protótipo daquilo que pode ser predicado por científico.

Essas construções com operação de verificação de protótipo parecem ser bastante comuns com o focalizador mesmo:

(70) e acredito que o estouro mesmo veio na faixa do- do oitenta, né? da década de oitenta, né? onde abriram casas de- de nomes tradicionais no comércio, né?[PRCTB05/SLIN:0071]

(71) E. Dona Anadir, chamam a senhora de Nadir ou Anadir.F. Nadir, mas meu nome mesmo é Anadir.[PRCTB10/SLIN0008]

(72) eu acho assim que não é um- que se você quer ser mesmo uma pessoa de deus, não precisa você estar indo na missa.[PRCTB08/SLIN:0729]

(73) então, [esse]- o cama mesmo, né? o sofá-cama caiu.[PRCTB03/SLIN:0592]

(74) nós se damos bem, sabe? se gostamos bem, apesar de que- que com os parentes lá da minha- do meu pai se damos muito bem mesmo com as minhas primas lá, com meus primos.[PRCTB03/SLIN:1373]

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Talvez uma paródia mais completa para mesmo, nessas ocorrências todas, seja aquilo que se pode mais apropriadamente chamar de – que talvez seja mais transparente com relação à operação de verificação por coincidência com o protótipo. Observe-se que, nos dois primeiros casos, em que o mesmo se aplica a SNs que expressam o protótipo – ou, melhor dizendo, a expressão que inclui a predicação no interior (no centro) da qual se situa o protótipo – ele parece ter que vir sempre posposto para expressar essa relação. No caso contrário, ou seja, anteposto, ele parece indicar outra relação:

(75) e acredito que mesmo o estouro veio na [...] década de oitenta, quando abriram casas de nomes tradicionais no comércio.

(76) Mas mesmo meu nome é Anadir.

Intuitivamente, (75) parece indicar que o estouro, entre outras coisas de somenos importância (menos prototípicas?) vieram na década de 80, e (76) parece caber mais apropriadamente em um contexto em que se expressasse “entre os nomes que o pessoal costuma pronunciar de maneira inadequada está o meu, que é Anadir”. Referi-me brevemente a esse processo, no início desta seção, quando comentei os exemplos (23) e (26):

(23) família de - de agricultores, não podia ser dispensado o trabalho dos filhos, mesmo os novinhos, que mal poderiam segurar uma enxada, tinham que ir pra roça como eles diziam.

(26) mas eu creio que aqui é Pilarzinho. Mesmo nas placas das ruas pode ver que, né? rua tal, número tal, Pilarzinho.

Como disse no início da seção 2, chamo a esse tipo de processo de verificação da validade (ou do alcance da validade) de uma predicação através de instâncias específicas dessa predicação. Em (), como também disse acima, temos a verificação através de instâncias que se situam no limite da aplicabilidade de uma predicação.

Observe-se que a substituição de mesmo por até faria mais sentido na primeira ocorrência, que parece trabalhar com a verificação nas instâncias limites, do que nas demais, em que se trata mais de juntar-se instâncias àquelas que vêm enumeradas no co(n)texto:

(77) família de - de agricultores, não podia ser dispensado o trabalho dos filhos, até os novinhos, que mal poderiam segurar uma enxada, tinham que ir pra roça como eles diziam.

(78) mas eu creio que aqui é Pilarzinho. Até nas placas das ruas pode ver que, né? rua tal, número tal, Pilarzinho.

(79) e acredito que até o estouro veio na [...] década de oitenta, quando abriram casas de nomes tradicionais no comércio.

(80) Mas até meu nome é Anadir.

No caso de (81), é mais complicado verificar a anteposição do mesmo, já que, anteposto, ele parece aplicar-se mais diretamente a você (posposto):

(81) se você mesmo quer ser uma pessoa de deus

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Observe-se que, com relação a esse caso, mesmo parece ter o mesmo efeito em diversos lugares de colocação – sempre posposto com relação ao primeiro termo do predicado complexo (quer dizer, quer):

(82) se você quer mesmo ser uma pessoa de deus(83) se você quer ser mesmo uma pessoa de deus(84) se você quer ser uma pessoa de deus mesmo

Mesmo considerando-se uma pausa antes e depois de mesmo, em (), ainda assim parece que a escolha melhor para situar o protótipo a ser envolvido na operação no SV é pospor mesmo a qualquer dos elementos principais do SV, como em (82), (83) ou (84).

2.1.4 Verificação de Identidade e Congruência

A verificação de identidade e congruência, para Ilari (1996: 204), é uma relação estabelecida entre dois termos (“indivíduos, lugares e momentos”) dentro de um mesmo texto:

(85) Está aí, bem exatamente a diferença: é uma predição, é uma inferência, a partir da constatação de uma identidade. Exatamente, é uma previsão, é uma inferência, é uma predição, a partir de uma realidade e, em economia, em administração, se usa muito o termo extrapolação, né?[POA278:218]

No exemplo acima, os dois termos (“indivíduos”) relacionados são, por um lado, o que vem depois dos dois pontos (é uma predição, é uma inferência, a partir da constatação de uma identidade) e a diferença – ou, talvez, para ser mais preciso, o “lugar” onde está a diferença.

O autor ainda relaciona a esse tipo de operação os usos de expressões como exatamente, além de outras (certo, exato) como retomadores de turno na conversação – como é o caso, em parte, da segunda ocorrência de exatamente em (), ou de exato, em ():

(86) L1 – O testosterona ele inibe...L2 – inibe... exato [...] é o seguinte... é porque... a verdade é que tanto no sexo feminino quanto no masculino há sempre uma produção significante embora pequena mas do sexo oposto[SA49:92]

Nestes casos, é possível entender que as duas instâncias a serem comparadas encontram-se no mesmo cotexto, mas não no mesmo texto – encontram-se sempre (ou mais ou menos sempre) em textos de interlocutores diferentes em turnos diferentes de uma mesma conversação.

Mesmo, como era de se esperar de seu significado “primeiro”, ocorre em construções de verificação de identidade e congruência:

(87) é que a gente está nisso, né? (est) mas [eu]- o que eu gostaria mesmo era outra coisa. eu gostaria mesmo é de trabalhar no comércio, com vendas, né?[PRCTB03/SLIN:0703]

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(88) deixa eu voltar e ficar no meu cantinho lá que0 é lá o meu lugar mesmo, né?[PRCTB03/SLIN:0777]

(89) aqui os caras não investem em nada, investem em merenda, em sopa [...] onde tinha que entrar mesmo é- é- era nas faculdades.[PRCTB09/SLIN:0326]

Aparentemente, os casos mais típicos de mesmo em construções com operação de verificação de identidade – e talvez o mesmo se dê com os outros advérbios focalizadores – consistem em exemplos de predicado nominal, em que o focalizador aparece como um modificador endocêntrico nesses predicados – em construções com a fórmula geral [[SV] FOC]SV. Mas mesmo ainda ocorre em outro tipo de construção de verificação de identidade, e o mais interessante dessas construções é que eu as tinha, a princípio, excluído do escopo deste trabalho porque se trata das ocorrências de mesmo como adjetivo, não como advérbio:

(90) é, porque daí você sabe que os catarinas, eles falam cantando. os parnanguara ali, serra abaixo, eles também são quase o mesmo sotaque, né?[PRCTB01/SLIN:0993]

(91) Homem tem que ser contraditóriose o mesmo homem que rié o mesmo homem que chora,se o mesmo homem que odeiaé o mesmo homem que adora...[http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20081206081746AAydK6j]

(92) “A boca que beija é a mesma que escarra.”[Augusto dos Anjos]

Este é um dos usos em que até difere diametralmente de mesmo. Por sua natureza de marcador de limites, até convém mais à delimitação de verificação por aplicação a casos extremos do que à congruência, ou mesmo a centralidade com relação à inclusão em um protótipo. Talvez a identidade a um protótipo deva ser vista como um caso especial da identidade e congruência, ou vice-versa:

(93) A boca que beija é até a boca que escarra.

2.1.5. Verificação de Factualidade

Para Ilari (1996: 206), a verificação de factualidade está ligada a um processo de comprovação a partir da apresentação de uma argumentação factual. Assim, em dois exemplos bastante exemplares apresentados pelo autor, elementos explícitos desse processo de comprovação aparecem, juntamente com o focalizador, que introduz a conclusão final:

(94) a ginecomastia secundária é aquela em que por exemplo atinge o homem em qualquer fase, qualquer idade... então... um tumor... um tumor maligno é que se faz a retirada do

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testículo... então vocês veem que geralmente... o crescimento das glândulas mamárias... está ligado... realmente à ação hormonal[SA49:81]

(95) ...essas glândulas [NB: pelo contexto, trata-se dos tubérculos da aréola mamária] se hipertrofiam... às vezes a extração periga até deixar sair um líquido semelhante a um colostro provando que realmente não são glândulas sebáceas.[SA49:129]

Em ambas as sequências acima é possível detectar um roteiro de comprovação que conduz à conclusão introduzida por realmente – ou, mais precisamente, introduzida por um operador explícito de argumentação: vocês veem em () e provando que em (). Ilari reconstrói o caminho argumentativo para o exemplo (), mas é possível fazer para ambos. No primeiro exemplo, opera-se com generalização: a retirada de um testículo por causa de um tumor faz crescer as glândulas mamárias, o que leva a concluir que é a diminuição do hormônio masculino que leva as glândulas crescerem; dessa conclusão se conclui, mais genericamente, que (uma) ação hormonal provoca o crescimento das glândulas mamárias. Dado que, na sequência em (), os argumentos estão ainda mais explícitos, Ilari (1996: 206) propõe uma estrutura de silogismo para capturar a prova:

Se algo é uma glândula sebácea, então não produz leite.⇒Os tubérculos da aréola mamária produzem um tipo de leite, o

colostro.∴Os tubérculos da aréola mamária não são glândulas sebáceas.

Ilari aponta, para o focalizador, que sempre aparece junto à conclusão, que ele expressa duas funções, não necessariamente eliminatórias, podendo surgir simultaneamente: a) realçar a verdade da própria conclusão (lembre-se que não são os focalizadores os introdutores da conclusão, função desempenhada por outros operadores, já acima identificados) – o que é chamado de reforço – e b) dar a entender que seria incorreto endossar opiniões contrárias – o que é chamado de dissuasão.

O autor ainda diz que mesmo figura, junto com realmente, na função de reforço, embora no exemplo que ele apresenta esse reforço é feito sobre uma afirmação pura e simples, sem nenhum processo de comprovação de qualquer tipo acompanhando:

(96) /a informante fala dos concertos musicais a que assistiu na juventude/

...A gente não podia sentar na plateia, íamos lá em cima... na galeria, mas que a gente gostava, né? Ia toda a turma do pessoal que apreciava mesmo a música, e porque a gente não podia pagar, naturalmente, né...

Mas é possível encontrá-lo em situações em que alguma argumentação se encontra presente, ainda que não numa forma tão elaborada quanto nos exemplos () e (), retirados de gravações de aulas de anatomia do córpus do NURC:

(97) é , você é uma tonta mesmo, hein! fica pegando e dando as coisas de dentro de casa pros outros!

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[PRCTB08/SLIN:899]

2.1.6. Confronto de topologias

Esse processo de verificação, para Ilari, entende as predicações como passíveis de serem relacionadas umas com as outras num processo de hierarquização. É como se as predicações fossem colocadas em níveis de hierarquização com relação uma às outras e os focalizadores as localizassem nos níveis correspondentes. O exemplo analisado por Ilari (1996: 208) para exemplificar esse processo de hieraquização, é representado em (98):

(98) Quando é que o aluno evidencia conhecimento? E também quando é que o professor solicita respostas do aluno que exigem apenas eu digo apenas porque é o processo mental mais simples, nem mesmo é considerado processo mental, é simplesmente evocação, memória, quando é que o aluno utiliza ou trabalha naquela categoria do conhecimento? Quando ele evoca, quando ele enumera, quando ele depende [...] dá uma definição[POA278:78]

No trecho acima, o focalizador apenas indica que a expressão que modifica (o termo conhecimento, que acaba elidido, na sequência) está no nível mais baixo de uma hierarquia estabelecido pelo falante na medida em que organiza a progressão do seu texto. Já o focalizador nem mesmo ao mesmo tempo estabelece um nível hierárquico, representado pelo predicado que modifica – é considerado processo mental – e situa o sujeito/tópico conhecimento (também elidido, e retomado da primeira sentença) abaixo desse nível hierárquico. E, finalmente, simplesmente retoma o nível mínimo estabelecido pelo apenas, para situar os predicados que se encontram nesse nível mínimo.

Ilari apresenta essa hierarquização como um processo de natureza dêitica, quase como se o falante estabelecesse espacialmente um percurso, hierarquizando os predicados como etapas com relação a um ponto de partida ou de chegada. É claro que o estabelecimento desse percurso, dessa hierarquia não é um processo independente de qualquer contexto. Ao contrário, é um processo construído no texto e através do texto, cujo estabelecimento é negociado pelos interlocutores.

Mesmo é um dos focalizadores que representam pontos mais avançados nesse percurso – contrastando com apenas e simplesmente, que estabelecem os níveis inferiores na hierarquia:

(99) E. É verdade. Agora sobre [o]- [o]- os dois lá, o Lula e o Collor, eu achei desde o começo também o Collor [muito]- muito metido, né?F. Muito, muito.E. Não era uma pessoa [que dava]- que a gente pudesse acreditar nele, né? Nunca passou.F. Não, não. Ele não tinha cara, né? que desse- que pudesse depositar uma confiança.E está aí no que deu mesmo, que não tem, né?E. É verdade. F. Não está tendo capacidade, não.

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[..] ele tinha que pegar mesmo, entregar os pontos, largar a presidência pra outro, pros militares de uma vez, então-[PRCTB03/SLIN:1507]

(100) o comércio ainda- ainda tem muito espaço, muito campo ainda pra progresso e residência nem se fala, né? claro, nem se fala que eu digo porque podem haver ampliações, né? mas, terrenos mesmo, você já não acha muito, é muito pouco.[PRCTB05/SLIN:0205]

Nas sequências acima, mesmo estabelece pontos máximos no percurso. Na primeira ocorrência, em (99), ao modificar está aí no que deu, ele estabelece quão avançado está o processo (ele não tem/está tendo condições). Já na segunda ocorrência, em (100), tinha que estabelece que o ponto representado pelo mesmo ainda não foi atingido. Nesse exemplo, a progressão no percurso é dado pela passagem do elemento modificado por ainda (espaço, principalmente) em contraste com o elemento modificado por mesmo (terreno).

Se mesmo representa um ponto máximo da perspectiva do ponto de chegada, mesmo ainda não atingido, até representa um ponto máximo da perspectiva do ponto de partida, e também o ponto limite atingido:

(101) agora, uma matéria que eu [nunca]- nunca me dei foi matemática. [...] Português eu até- até ia, sabe?[PRCTB19/SLIN:0292]

(102) Se você errasse, você ficava lá, ia de castigo antes da aula e depois tinha que responder tudinho aqui, pegar o livro e estudar até acertar tudo.[PRCTB01/SLIN:0126]

O focalizador já também representa limites atingidos, talvez contrastando com o até por tê-los representados do ponto de vista da chegada:

(103) ele [Jaime Lerner] é uma pessoa que tem grandes de qualidades, né? então, ele já provou isso no passado e agora também está provando que está aí, né? já inventando esse ligeirinho, e ecologia, tudo, né?[PRCTB03/SLIN:0239]

3. Para a Formalização dos Focalizadores

Certamente a formalização de todas os advérbios focalizadores de uma língua como o português do Brasil, em todos os seus contextos de ocorrência e em todas as operações específicas de focalização em que eles podem figurar, demandaria um trabalho com proporções muito maiores que as modestas e limitadas proporções deste trabalho – e, possivelmente, um autor muito menos limitado do que este. Nesta seção, contento-me em apontar algumas operações envolvidas e que podem ser recuperadas nos modelos de análise disponíveis até o momento. Uma das dificuldades para a formalização destas expressões – além de outras que não vêm previstas nos modelos disponíveis no mercado – é justamente a limitação dos modelos disponíveis.

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Ficou claro, por exemplo, que, em muitos casos, a focalização trabalha sobre a recuperação de elementos do cotexto não só de sentenças anteriores àquelas em que o focalizador ocorre, mas também de elementos que não ocorrem explicitamente como categorias do mesmo tipo das que constituem os núcleos das categorias em que o focalizador ocorre como modificador em construção endocêntrica. Para não fazer referência aos elementos que ocorrem no contexto, e que, num modelo formal, precisam ser explicitamente estipulados.

Dadas essas dificuldades, nesta seção não será proposto um modelo completo de interpretação, sofisticado ao ponto de dar conta desses elementos co(n)textuais. Muito menos um modelo completo o suficiente para dar conta de todos os casos de focalização – ou mesmo todos os casos do focalizador mesmo, que é o escolhido para o estudo específico em questão. Antes, limito-me a alguns casos mais controláveis, identificando as relações expressas e tentando identificar, nas construções específicas, a função de cada elemento.

A. Verificação de coincidência com o protótipo. O exemplo (proto)típico deste processo é o (71), adaptado aqui em (104):

(104) [Me chamam de] Nadir. Mas meu nome mesmo é Anadir.

Como já se viu acima, esse caso trabalha com diferentes instâncias de uma mesma categoria, identificando uma delas como mais prototípica do que as outras. No caso específico acima, a categoria da qual é estabelecido o protótipo é representada pelo SN meu nome. Como é mesmo que estabelece do que é o protótipo, esse focalizador toma como argumento essa categoria:

[[meu nome]SN mesmoFOC]SN

Essa relação nos daria a forma geral de construção de protótipo expressa da seguinte forma:

[[CAT] FOC]PROT

em que: CAT: categoria de onde é extraído o protótipoFOC: focalizador[...]PROT: termo que denota o protótipo com que se faz a

identificação

No exemplo em questão, aparecem duas instâncias que são relacionadas à categoria – Nadir e Anadir. A instância que é identificada com o protótipo é Anadir, e essa identificação se faz pela predicação sobre o termo que denota o protótipo com que se faz a identificação. Essa relação de a instância a ser identificada figurar como item imediatamente conectado ao termo que denota o protótipo parece se manter, o que adicionaria mais um elemento à nossa equação:

[[[CAT] FOC]PROT INST1]em que: CAT: categoria de onde é extraído o protótipo

FOC: focalizador[...]PROT: termo que denota o protótipo com que se faz a

identificação

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INST1: instância a ser identificada com o protótipo (= a ser identificada como mais central com relação ao protótipo do que as outras)

O exemplo em questão contém uma instância a mais, menos central com relação ao protótipo do que a instância identificada. Essa instância figura antes da instância identificada – mas essa situação não é necessária; o exemplo bem poderia ter a seguinte forma:

(105) Meu nome mesmo é Anadir. Mas os vizinhos me chamam de Nadir.

Ou, ainda, essas instâncias outras poderiam figurar no contexto, mesmo.

Aproveito para fazer a identificação de outros dois exemplos em que uma instância é identificada como mais central com relação ao protótipo de uma categoria:

(106) [[[o estouro]CAT mesmoFOC]PROT [veio na [..] década de oitenta]iINST]

(107) [[[se damos muito bem]CAT mesmoFOC]PROT [com minhas primas, meus primos]iINST]

Do ponto de vista da construção do modelo de interpretação, o protótipo de uma categoria pode ser entendido como uma espécie de subconjunto dessa categoria – não qualquer subconjunto, mas um subconjunto central. Uma expressão como mesmo, então, denotaria uma função que extrairia esse subconjunto central de um determinado conjunto denotado pela termo modificado. O que poderia caracterizar esse subconjunto poderia ser algum tipo de grau [de intensidade] de predicação da propriedade que o caracteriza. Assim, a delimitação de um conjunto não seria feita no modelo clássico, em que uma linha dividiria os elementos do Universo Discurso pertenceriam a esse conjunto, mas por círculos concêntricos conforme alguns elementos fossem mais típicos do conjunto do que outros. A relação de pertencimento - ∈ - seria uma relação graduada – ∈dx – que poderia ser descrita como “pertence com um grau x, em que x seria um valor em uma escala (digamos, de 0 a 1)”. Graficamente, a limitação de um conjunto no Universo do Discurso seria representada como na Figura 1.

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U

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Figura 1: Modelo de Conjunto com pertencimento graduável

Um conjunto C (digamos, o conjunto daqueles “com quem se damos muito bem”) pode ser entendido como um conjunto graduável, em que o subconjunto C1 contém todos os elementos y ∈dx C, tal que x > 0 – correspondendo ao conjunto todo, propriamente dito –, o suconjunto C5 contém todos os elementos y ∈dx C, tal que x > 0,5, e o subconjunto C10 contém todos os elementos y∈dx C, tal que x = 1,0, para uma escala graduável de 0 a 1,0.

Embora o modelo descrito acima seja bastante diferente dos modelos de grau clássicos disponíveis na literatura (como os utilizados para a descrição de construções comparativas, p.ex.), é possível que o mesmo tipo de modelo possa ser adaptado para o estudo destes casos de focalização.

B. Extensão da predicação para outras instâncias. Esse processo já foi descrito quando se analisou o exemplo em (), acima. Ele não é descrito em Ilari (1996), muito provavelmente porque deve ocorrer apenas com mesmo (e até), cujo estudo não foi muito explorado naquele trabalho. Recapitulo o exemplo e a discussão, abaixo:

(23) família de - de agricultores, não podia ser dispensado o trabalho dos filhos, mesmo os novinhos, que mal poderiam segurar uma enxada, tinham que ir pra roça como eles diziam.

Como disse acima, o que ocorre no exemplo () é que a verificação do alcance de uma determinada predicação (que o trabalho dos filhos não pode ser dispensado, na agricultura) se faz na extensão dessa predicação para uma instância limite (no caso, o trabalho dos filhos bem jovens). De uma certa forma, o processo aqui é o inverso do processo anterior: é uma determinada predicação que é verificada através de sua distribuição por suas instâncias, não uma instância que é comprovada pela situação (mais central ou não) com relação a uma predicação. E, enquanto o processo anterior implicava a delimitação de um protótipo, de um núcleo da predicação, com a exclusão das instâncias mais marginais desse núcleo,

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C1C5

C10

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este processo implica a extensão dessa predicação para instâncias mais marginais.

Também a ordem dos fatores na estrutura sintática é outra. A categoria de predicação geral não é os novinhos, modificada por mesmo – ela está alhures – neste caso específico, antecede o focalizador e encontra-se fora de seu escopo de ação. O que está no escopo de ação do focalizador, agora, é a instância-limite para a qual se faz a extensão.

Essa oposição parece se reproduzir na estrutura das construções. O que caracteriza as estruturas que expressam esse tipo de verificação parece ser a anteposição do mesmo com relação aos elementos modificados. Até este ponto, não há garantia de que seja verdade de que toda estrutura com o mesmo anteposto expressa esse tipo de relação. Que isso possa ser verdade é sugerido pela mudança de posição do focalizador mesmo na estrutura prototípica da discussão sobre a verificação por coincidência com o protótipo feita no item A., acima:

(108) [Me chamam de] Nadir. Mas mesmo o meu nome é Anadir.

Claramente, no exemplo acima, não se preserva o mesmo efeito de significação da ocorrência original (com o mesmo posposto). Não parece haver progressão da primeira sentença para essa, não parece se dar a verificação que se propõe pela focalização. Talvez porque o que venha antes não pode ser entendido como a categoria mais geral.

O exemplo (23) é mais prototípico porque tem explícita uma categoria mais geral do mesmo tipo sintático da que é modificada pelo mesmo anteposto. Como também se viu acima, o exemplo (26) contrasta com esse porque a categoria mais geral está difusa no cotexto anterior:

(26) Então a gente não sabe ao certo se foi a Prefeitura que uniu tudo e ficou tudo (“hã”) uma coisa só, Pilarzinho, né? Que uniu esse lado aqui, passando o Bom Retiro pra aquele lado pra lá, uniu tudo como Pilarzinho, não se sabe! Então, até me- me vi na lista desse ano ali como Pilarzinho ou como Taboão, mas eu creio que aqui é Pilarzinho. Mesmo nas placas das ruas pode ver que, né? rua tal, número tal, Pilarzinho. E antigamente era Taboão.[PRCTB10/SLIN:139-149]

Talvez a categoria mais geral a ser estendida seja “razões para dizer que o lugar onde está o falante se situa no Pilarzinho”. O dado do nome do bairro nas placas das ruas é uma extensão limite, adicionada para verificar a afirmação de que há vários argumentos para comprovar tal afirmação.

Esse raciocínio nos dá uma forma inversa com relação ao que está no escopo do focalizador (a instância, não mais a categoria mais geral) e o que está além desse escopo (a categoria geral, não mais a instância), embora nos exemplos acima a sequência dos termos tenha se preservado:

[[CAT] [FOC [INST]]EXT]em que CAT: categoria mais geral

FOC: focalizador[...]EXT: termo que denota a extensão de uma categoria a uma instância marginal e/ou adicionalINST1: instância a ser incluída na extensão de uma determinada categoria

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Quer corresponda exatamente a esse processo ou não, parece que a ordem do focalizador mesmo anteposto parece ser mais rara do que a ordem em que ele é posposto: de 168 ocorrências do focalizador mesmo nas dez primeiras entrevistas do córpus do VARSUL em Curitiba (descontadas as ocorrências de mesmo como “adjetivo”), apenas dez correspondem a construções com o mesmo anteposto – nove delas em um única entrevista, a de número 10 – e mesmo o exemplo fora dessa entrevista é muito estranho. Vejamos apenas alguns desses exemplos:

(109) É, eles são aqui de Curitiba, né? Tem o Pedroso aí tal, o filho dele, né? que são os donos, né? são aqui de Curitiba, né? Eles não são de Curitiba, são próximos, mas não são- Mesmo o velho mesmo é aí de Itaperuçu, né?[PRCTB03:SLIN:0976]

(110) e mesmo que- você vê, o que está nas placas, né? que é posto na rua pelo prefeito, e tudo, está como pilarzinho.[PRCTB10/SLIN:0161

(111) Agora, muitas pessoas ainda dizem assim: "Ah! Ainda bem que não- que não está muito desenvolvido o bairro, senão ficava assim mais é- movimentado, mais perigoso, né? então, acham assim que- uns preferem que seja assim calmo, tranqüilo, que não tenha grande comércio. *Outros já preferem que seja mais movimentado, né? Mas eu assim- eu acho muito assim- por ser perto do centro, é um bairro muito esquecido.mas e, mesmo aqui no nosso bairro as ruas estão muito- muito assim- é, como é que eu quero dizer- muito abandonada, né? que a prefeitura devia assim de- passar antipó em todas elas, abrir o esgoto, né?[PRCTB10/SLIN:0182]

(112) Mas, você pode ver, tem ruas aí- transversais ali que- que está na- na- no macadame, e muito mal cuidadas, não- não passaram antipó, não abrem uma valeta de esgoto nem nada. Mesmo quando chove, sabe?[PRCTB10/SLIN:207]

(113) eu achava assim, em matéria de segurança, cabe mais à polícia militar, né? pôr assim uma ronda de policiais a cavalo, ou mesmo os camburão, né? que passassem nos bairrosassim mais seguido, assim, né? digamos, não de minuto em minuto, mas de hora em hora, né? ou de meia em meia hora, que fizesse uma ronda né?[PRCTB10/SLIN:0611]

REFERÊNCIAS:GUIMARÃES, Márcio R. 2007. Intensificadores como quantificadores: os

âmbitos da expressão da quantificação no português do Brasil. Tese de Doutorado. Curitiba: UFPR.

GUIMARÃES, Márcio R. a sair. Advérbios de quantidade, classes verbais e quantificação.

ILARI, Rodolfo. 1996. Advérbios focalizadores. In: ILARI, Rodolfo (ed.) Gramática do português falado II: níveis de análise lingüística. Campinas: Editora da UNICAMP.

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ILARI, Rodolfo et alii. 1993. Considerações sobre a ordem dos advérbios. In: CASTILHO, Ataliba T. Gramática do português falado I: a ordem. Campinas: UNICAMP.

REICHENBACH, Hans. 1947. Elements of symbolic logic.deSWART, Henriëtte. 1993. Adverbs of quantification: a generalized

quantifier approach. New York/London: Garland.

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