Considerações sobre a constituição psíquica

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    ISSN 0103-7013Psicol. Argum., Curitiba, v. 28, n. 61, p. 167-174 abr./jun. 2010

    Licenciado sob uma Licena Creative Commons

    ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ACONSTITUIO PSQUICA

    Some considerations about the psychic constitution

    Paulina Schmidtbauer Rocha

    Linguista, psicanalista, scia fundadora do Centro de Pesquisa em Psicanlise e Linguagem e do Crculo Psicanaltico de Pernambuco,Recife, PE - Brasil, [email protected]

    Resumo

    A partir de uma srie de cenas do cotidiano e da clnica psicanaltica, a autora analisa o surgimentodo acontecer psquico em bebs e crianas pequenas, articulando-o ao conceito de rede tensionallibidinal grupal. O artigo demonstra como o sentimento de Eu depende dos outros do ambiente e docompartilhamento de experincias signicativas em que cada um tem uma participao ativa. Trata-se,pois, de um momento em grupo, mas no qual a participao de cada um dos integrantes vivida tantode modo particular quanto grupal. Alm disso, o trabalho destaca a precocidade desse acontecer ps-quico para as crianas. Comenta ento o uso desse conceito no trabalho clnico com crianas em gravesofrimento psquico.

    Palavras-chave: Acontecer psquico. Rede tensional libidinal grupal. Clnica psicanaltica. Crianaspequenas. Autismo.

    Abstract

    Based on a sequence of scenes of daily life and of psychoanalytic clinic, the author discusses the emergence of themental functioning in babies and little children, to articulate it to the concept of group libidinal tensional net. Thearticle demonstrates how the sense of Ego depends on the others, the environment and the exchanges of the signica-tive experiences in which each one has an active participation. It is a moment in group, but the participation of eachone of the elements is lived in a way that is both singular and collective. Therefore, the author signs the precocityof this psychic process to the children and comments the use of this concept at the clinic work with children withpsychic suffering.

    Keywords: Mental functioning. Group libidinal tensional net. Psychoanalytic clinic. Little children. Autism.

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    Presenciei nesses ltimos quinze anos, emvrios momentos dentro do settingpsicanaltico e foradele, na vida cotidiana, cenas que a posteriorise agru-param, se revestiram de sentidos e clarearam algunsaspectos do acontecer psquico tal qual exposto por

    Freud ([1911] 2004), no seu artigo Formulaessobre dois princpios do acontecer psquico.

    Minhas preocupaes com a constituiopsquica, ou melhor, de me apropriar da expressode Freud acontecer psquico, esto marcadaspela atuao clnica com crianas em sofrimentopsquico precoce e com a clnica psicanaltica daspsicoses ao que se acrescenta uma preocupao coma clnica psicanaltica do social. Consequentemente,preocupei-me com as capacidades humanas de vivere trabalhar em grupo.

    Porque criamos ao longo da vida vriosgrupos? De onde provm a sensibilidade, a neces-sidade do coletivo? Vejamos o que Freud nos diz noseu livro Psicologia das massas e anlise do Eu:

    [...] O contraste entre a psicologia individual ea psicologia social ou de grupo, que primeiravista pode parecer pleno de signicao, perdegrande parte de sua nitidez quando examinadomais de perto. verdade que a psicologiaindividual relaciona-se com o homem tomadoindividualmente e explora os caminhos pelos

    quais ele busca encontrar satisfao para seusimpulsos instintuais; contudo, apenas raramentee sob certas condies excepcionais, a psicologiaindividual se acha em posio de desprezar asrelaes desse indivduo com os outros. Algomais est invariavelmente envolvido na vidamental do indivduo, como um modelo, umobjeto, um auxiliar, um oponente, de maneiraque, desde o comeo, a psicologia individual,neste sentido ampliado, mas inteiramente justi-cvel das palavras , ao mesmo tempo, tambmpsicologia social (FREUD, [1920] 1996, p. 91).

    Podemos partir da constatao de que nuncaestamos ss, sempre estamos entre vrios. Gostaria

    de esclarecer que este termo vrios me pareceapropriado1, porque traz a ideia de mltiplos, diversos,mutveis. Organizamo-nos psiquicamente para vivere produzir em grupo, sem que por isso percamos asingularidade, mas tampouco a perspectiva do cole-

    tivo. Isso, at na atualidade, quando est privilegiadaa ao do um, o crescimento do um, ou ento,a negao da singularidade e, consequentemente,do grupo enquanto composto de vrios, quandoo vrios vira uma massa (torcidas organizadas).

    Mesmo se em muitas teorizaes psicanalti-cas sobre os primeiros tempos da existncia humana,esse aspecto mencionado por Freud fora esquecido,gostaria de pens-los desde a vida intrauterina eminterao com o meio ambiente e considerar queassim se estendem vida afora. Digamos, vida cheiade acontecimentos que implicam o beb ele mesmoe os outros, aqueles que esperaram por alguns mesessua chegada. A criana, ao nascer, est aguardandoum grupo, na expectativa das mltiplas sonoridades,inscries sonoras registradas ainda durante a vidaintrauterina. O sentido ttil e auditivo est maduroantes de o beb nascer, ele registra as vozes do meioambiente e os sons do corpo materno; as batidasdo corao, a prpria voz da me. Essa variedade ediversidade sonora, j presente nos traos mnmicosdo beb, alm dos registros das sensaes tteis, vaifazer parte da sua experincia ao vir ao mundo. Ouvi-

    las, senti-las ao nascer avivar as inscries e assimo beb vai reencontr-las neste novo ambiente, comalgumas modicaes, todavia reconhecveis. Assimse daria continuidade da sua existncia. Observandonas salas de parto, percebemos que ao ser colocado nopeito da me, o beb reencontra essas sonoridades eca plcido. Muito devagar comea a procurar a fontesonora tentando focalizar e agrupar-se com o olhar.

    Vejamos o que diz Freud ([1911] 2004, p. 66):

    [...] Foi preciso que no ocorresse a satisfaoesperada, que houvesse uma frustrao para

    que essa tentativa de satisfao pela via aluci-natria fosse abandonada. Em vez de alucinar,o aparelho psquico teve ento de se decidir

    1 Adjetivo pertencente a uma pluralidade de espcies, ou apresentando diferentes cores, formas, etc.; sortido, variado, caracterizadopela diversidade, que abrange diversas manifestaes; mltiplo; que no constante; volvel, instvel; que no sossega; bulioso,irrequieto; que hesita; indeciso, incerto, irresoluto; sem coerncia; contraditrio, incongruente, discrepante; pronome indenidoque, no uso adjetivo, indetermina o substantivo, quando a ele anteposto, e no uso substantivo, o substitui, sempre indicandopluralidade, mas no totalidade; diversos, alguns, muitos, numerosos.

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    por conceber as circunstancias reais presentesno mundo externo e passou a almejar umamodicao real deste. Com isso foi introdu-zido um novo princpio da atividade psquica:no mais era imaginado o que fosse agradvel,

    mas sim o real, mesmo em se tratando de algodesagradvel. Essa instaurao do princpio darealidademostrou-se um passo de importantesconseqncias.

    E mais adiante no prprio texto continua:

    [...] A realidade exterior adquiriu maior impor-tncia, e com isso tambm se tornou maisrelevante o papel dos rgos sensoriais voltadospara o mundo externo e da conscincia a elesligada. [...] constituiu-se uma funo especial,a ateno que deveria fazer uma busca peridicano mundo externo para que os dados fossemconhecidos de antemo caso uma necessidadeinterna inadivel se manifestasse (FREUD,[1911] 1996, p. 66).

    Ento possvel perceber que Freud levaem considerao o encontro entre o beb e o mundoexterno como fundamental para o acontecer psquico.Winnicott (1978) dir mais tarde que o meio ambienteapresenta o mundo para o beb. Assim, parece-me

    que ele est bem condizente e, ao mesmo tempo,se situa na continuao do pensamento de Freud.Essas observaes e as leituras dos textos

    de Sonia Salmeron (1996a, b) ajudam a entender osprimrdios da constituio do eu, e seguindo estaautora colocam em evidncia a importncia do grupo,ou de vrios, na constituio do que ela, Kas (1976) eAnzieu (1976) chamaram de Eu grupal. Mas Salmeron(1996a, b) traz algumas contribuies a mais para acompreenso da constituio da noo do coletivo.

    Ela complementa dizendo que, por sua vez,o nascimento de um beb desencadeia as expectativas

    no grupo familiar, ou naqueles que esto ao redorda gestante, com todas as fantasias e projees.Essa expectativa estabelece com o recm-nascido,esse novo que chegou, uma relao privilegiada,e no trabalho clnico visvel que cada pessoa aoredor desse beb acredita inconscientemente ser oprincipal personagem para ele, que amado bemmais e melhor que todos os outros. Essa fantasiados vrios, sejam ou no membros do grupo familiar,estar na base da vitalidade de um recm-nascido.

    O beb vivido fantasmaticamente como um bebmaravilhoso, um tesouro que estabelece no grupouma dinmica, que Snia Salmeron (1996b) chama dedinmica tensional libidinal grupal. Como ela diz,da vai nascer uma poltica de grupo, uma diplomacia

    de grupo. Basta lembrar todos os movimentos queacontecem entre os avs, as tias, os pais, os bisavs,os cimes, afetos, conselhos, medos, etc. Tudo issocoexiste nas relaes inconscientes e at mesmonas nossas relaes conscientes. Um exemplo disso o desejo que os pais tm de que seus lhos sejamamados por todos. Pode ser por razes narcsicas,por razes generosas, ou por razes mais polticas:s vezes como proteo s crianas (por exemplo,quando os pais morrem, para ter algum que cuidedo lho deles) ou, por razo bem banal, quandoeles desejam algumas horas de paz, ter algum queacolha a criana com satisfao para brincar comela. Todas essas razes resumem-se no desejo deque o lho seja amado no grupo ao qual pertence.O padrinho e a madrinha na nossa cultura catlica,arma Salmeron (1996b), no outra coisa a noser uma forma de assegurar que na ausncia dos paisalgum cuidar do lho, o que tambm ligado angstia de perda do objeto. Ao redor da crianaforma-se o que Salmeron (1996b) chama de redetensional libidinal grupal.

    Quanto criana, ela vai adotar incons-

    cientemente esses modos de relacionamento fami-liar, vai estabelecer a relao com cada membro dogrupo. Esse movimento grupal, essa rede tensionallibidinal traz tambm as tenses entre os membrosdo grupo, entre si e em relao ao beb. Os modosde relaes naquela famlia e as tenses que aquientram em jogo vo fazer parte da experincia dobeb. Assim, estaro na base do que Snia Salmeron(1996a) chama o ego grupal, cuja funo ser deformar no futuro outros grupos, exatamente por terhavido essa experincia.

    Dessa rede faz parte aquele que cuida de

    uma forma privilegiada do beb. Durante bastantetempo, essa relao, chamada relao dual, foi privile-giada nas formulaes dos psicanalistas que pareciamesquecer-se da existncia dos vrios que fazem partedo ambiente e que esto presentes ao mesmo tempo.Assim, formulou-se a ideia de que a presena do paiera algo mais tardio, como tambm o grupo.

    Freud dizia que o eu era resultado, era odepsito de diferentes identicaes vividas na infn-cia, de certo modo, um grupo, mas aqui se tratam

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    de identicaes secundrias. As identicaes dosistema primrio, atravs das sonoridades das vozes,dos contatos fsicos, formaram um grupo de identi-caes primrias interno.

    Nas suas formulaes, Freud ([1920] 1996)

    destacou no incio das suas elaboraes ideal do eu,eu ideal, e o super eu. Mas no deniu bem, deixourelativamente esfumaadas as fronteiras entre idealdo eue eu ideale no avanou nas concepes sobreo grupo.

    Sonia Salmeron (1996a) fala de maneira beminteressante da formao do eu ideal e do ideal doeu. O primeiro seria resultado de uma relao arcaicacom uma personagem onipotente, a me, nascendoda identicao primria com a onipotncia materna.O eu ideal ca tambm ligado a essa identicaocom a me que, lembrando Melanie Klein (1981), dona no seu ventre de um nmero incalculvel debebs, ela tem nela um grupo.

    Salmeron lembra que o beb vive nos bra-os da me, v o mudo a partir de seus braos. Sesente como tendo um grande corpo, que obedeceaos seus desejos. Ele est em permanente dilogo,corpo a corpo com a me, ele a me, esse adultoque anda. exatamente ao redor de 3 anos, quandoa me no vai mais coloc-lo nos braos e quando vaiassumir andar com os prprios ps, que o beb criarnoes de alto e baixo, dentro e fora, e de distncia,

    que vivenciar a grande desiluso, dando-se contado tamanho do seu corpo e da sua fragilidade. Umgrande golpe na sua autoestima, segundo Salmeron. hora de iniciar a entrada no complexo do dipo. Oeu ideal vai permanecer e vai nos acompanhar a vidatoda. Para Snia Salmeron (1996a) o eu ideal umplo do ego grupal cujo antpoda o ideal do ego,instncia mais evoluda que contm nela um grupoque formado desta admirao que a criana sentepelos diferentes adultos do seu convvio. Admiraofeita de verdadeiras efuses de amor pelas realizaesdos adultos. Para Salmeron (1996a), o ideal do eu

    grupal na sua origem. atravs dessa organizao internagrupal, Eu grupal, que a criana vai poder sair doestado de fuso interna com a me. Na sua evoluovai para o grupo, porque o grupo atraente e no sedeve esquecer que o beb tem uma vivncia grupal,porque ele era e rodeado por um grupo de pessoasque tentam ter uma relao privilegiada com ele. Eleest inserido na rede tensional libidinal grupal. Entoo beb desde incio exposto, para Salmeron (1996b),

    tentao de se dirigir ao grupo, aos membros dogrupo, usufruir disso e ao mesmo tempo privilegiara relao com a me e se sentir frustrado quandoum ou outro est sendo impedido.

    Segundo ela, conforme foi dito, o ideal do

    eu contm em si o grupo que construdo a partirda admirao que a criana sente pelos diferentesadultos do seu ambiente, admirao pelos reais fei-tos dos adultos, nem sempre ligados diretamente aobem-estar da criana. Da nasce o ideal do ego, quemais tarde vai evoluir para os ideais mais avanados,ligados a posies ticas, morais, para poder sustentaras vivncias grupais, a funo e a formao da vidacoletiva. Podamos pensar numa instncia separadacuja funo seria possibilitar a formao do grupo,e a insero em grupos.

    Diferentemente da posio de Salmeron(1996b), parece-me que no h necessidade deadjetivar o eu com grupal, j que na relao como ambiente, inserido na rede tensional libidinalgrupal, tal qual ela to bem descreveu e com asensibilidade que lhe peculiar , que o eu se cons-titui (Rocha, 2004).

    Desde criana sempre fui envolvida comos bebs e suas mes. Quer dizer, gostava muito decuidar dos recm-nascidos e sempre me propunha acar algumas horas com o nen enquanto os pais seausentavam. Assim, presenciei muitas cenas que ca-

    ram gravadas na minha memria anos a o. Os bebscontinuaram a povoar minha vida de psicanalistatambm. Algumas situaes caram emblemticas es vezes formam um conjunto que de repente tomasentido, esclarece ou traz um assunto novo.

    Assim, vou narrar quatro cenas da vidacotidiana e dois da clnica psicanaltica que dizemda constituio do eu e dos vrios na rede tensionallibidinal grupal:

    Fui visitar um casal de amigos e me levaram para buscar

    o netinho na escola, pois queriam que eu o visse, em funo

    das preocupaes com seu desenvolvimento. Chegando acasa encontramos a me do garotinho, que j esperava para

    dar o banho, tarefa qual me juntei, por um momento.

    Logo, em seguida, voltei para a sala de estar, onde

    estavam os avs e o pai, que entretempo havia chegado.

    Para nossa surpresa, o netinho apareceu alegremente

    entre ns, nu, com o chapu do pai que caa por cima

    das orelhas. A me vinha correndo atrs. Ele deu uma

    volta olmpica pela sala olhando bem para cada um de

    ns, absolutamente soberbo e irresistvel. Unanimemente

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    decidimos apoiar essa bela exibio e explodimos em

    aplausos. O garotinho bateu palmas tambm, satisfeito

    com nossa colaborao no seu espetculo. Devo dizer que

    ns tambm nos felicitamos entre ns, muito felizes com

    o seu desle e com os nossos aplausos. Um ms depois,

    recebi uma carta da av me comunicando que no havianecessidade de se preocupar mais com netinho: ele est

    como naquele dia em que voc nos visitou!

    Ao longo dos anos utilizei vrias vezes nosseminrios essa cena para ilustrar o aparecimentodas identicaes secundrias, a trplice hlice donarcisismo e o incio da instalao da funo paterna.No entanto, um aspecto importante no tinha sidorevelado nessa observao para mim. S depoisda cena que narrarei a seguir consegui distinguire diferenciar o elemento que me parece preciosoe imprescindvel para o efeito de subjetivao naprimeira infncia.

    Essa cena foi registrada num ambulatrio de pediatria

    durante uma consulta programada do acompanhamento

    perinatal. Na sala estava o cinegrasta, a pediatra, a

    me e a lhinha, um bebezinho de 1 ms e 15 dias.

    O beb dormia, enquanto a mdica fazia perguntas de

    rotina me falando sobre amamentao, hbitos e

    sade. Depois de um tanto, Clarissa comeou aos poucos

    a abrir os olhinhos, abrir a boca, aes que chamaram

    a ateno da me e da pediatra. As duas trocaramalgumas palavrinhas carinhosas com ela e mostraram-se

    satisfeitssimas com o biquinho que veio como resposta.

    Essa cena se repetiu mais uma vez e era a hora do exame

    fsico da Clarissa. Era um dia frio e o beb estava bem

    acolchoado em vrias camadas de roupa. A me comeou

    a tirar as roupas com muito cuidado, falava com carinho

    sorrindo para a lha. Clarissa aos poucos se prendeu no

    olhar da me e com certo esforo sustentou-o e focalizou

    o rosto da me. Abriu um sorriso feliz e desdentado

    animando-se para algo a mais. Enquanto a me abria

    num largo sorriso, continuando a falar com Clarissa essa

    por sua vez tentou soltar a voz, num primeiro momentosem sucesso. Aps uma breve pausa estimulada pela

    me fez sua segunda tentativa de responder conversa

    materna. Desta feita apareceu um tmido arrulho que

    Clarissa decidiu no valorizar. Mas a me e a pediatra

    continuaram a falar, valorizando os esforo,s e ento

    Clarissa soltou a voz em vrios arrulhos, riu satisfeita e

    quando a plateia toda entrava feliz na conversa ela olhou

    para a me, depois para a pediatra e para o cinegrasta

    que estava gravando aquela consulta. Todos festejaram

    essa primeira conversa, orgulhosos por estarem l e por

    terem sido reconhecidos por Clarissa como partcipes

    desse importante momento. Era voc, voc, voc e eu.

    Clarissa se reconhecia enquanto ser nico em relao a

    cada um dos presentes e todos os presentes a reconheciam

    e se congratulavam entre si festejando.

    O que me chamou a ateno foi a idade dobeb, que s tinha 1 ms e 15 dias. Era uma garotinhaque se desenvolvia bem dentro do previsto, para ospadres do crescimento e desenvolvimento. Mas couposto que compartilhar um feito em grupo mesmonessa terna idade possvel e coube ao observadorconstatar o momento de subjetivao vindo destacelebrao do acontecer psquico. Trarei a seguir maisum momento desse, desta vez com um menino de 4meses, que tambm diz do acaso, em certo sentido,desses acontecimentos:

    A tia estava cantando para o sobrinho uma cano de

    ninar e como ele mostrou-se, de repente, extremamente

    interessado, ela repetiu. Concentrado, olho no olho, ele

    entoava algumas rplicas, enquanto a tia cantava. Assim

    parecia. Ento, de brincadeira, a tia decidiu parar aps

    cada verso e dar uma pausa, abrindo assim espao para

    o jovem cantor talentoso mostrar seus dotes musicais.

    Ele no negou o talento. Imediatamente produzia algo

    semelhante (semelhante um modo de dizer) a um som

    mal articulado, porm prolongado e com variaes tonais.A tia continua repetindo a cano. A me, que obser-

    vava a cena sentada ao lado, crescia, a olhos vistos, de

    satisfao e orgulho. Sem se fazer de rogada, ela entrou

    na cantoria e quando, num momento, se abaixou para

    pegar algo que caiu, seu lhote a procurou com o olhar.

    A partir de ento, toda vez que entoava a sua parte,

    ele passava o olhar para o rosto da me e depois para

    o da tia. Terminaram felicssimos rindo toa.

    Essa foi a primeira vez que Thomas par-ticipou de uma brincadeira ciente dos vrios ais

    presentes fruindo da ao em comum.Por ter testemunhado outro momentocom uma criana de 1 ano e 6 meses me permitisugerir que tais acontecimentos tm repercusses naconstituio psquica do indivduo. Vejamos:

    Estvamos num restaurante self-service quando se

    juntou a ns um jovem pai com seu lhinho de 1 ano

    e 6 meses. Foi aquela algazarra, j que uma parte dos

    presentes no conhecia o menino e caram contentes

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    com a sua presena. Ele cou bem protegido no colo

    do seu pai por um bom tempo e, quietinho, observava

    os presentes sem falar. O pai lhe oferecia algumas

    comidinhas que foram prontamente recusadas com um

    movimento de cabea. Aos poucos ele comeou a mostrar

    interesse pelos presentes, o que foi notado pela turmamais jovem da mesa, desejosa de cuidar do pequeno.

    Ele rapidamente passou para o colo da jovem mais

    alegre que lhe ofereceu lpis de cor para desenhar nos

    guardanapos. Chamou-me a ateno o domnio que

    o menino tinha do lpis. Parecia uma criana de 3,

    4 anos. A jovem contornou com lpis a mo dele, o

    que o encantou. Foram-se vrios guardanapos nessa

    atividade. Nosso menino estava muitssimo contente.

    Os gritos de alegria que se seguiam a cada desenho

    captaram a ateno dos presentes. A ele pegou o lpis

    e ps a mo da jovem para desenhar-lhe o contorno.

    Obviamente, a assistncia comentou tal audcia. Pois

    ele fez o contorno direitinho e quando a jovem levantou

    a mo do guardanapo arrancou suspiros de admirao.

    Os aplausos foram espontneos e ele, contente, olhou

    para ns olho no olho, perfazendo a roda toda. O pai

    encheu-se de orgulho a olhos visto, claro. Mas o resto

    no cou muito atrs. E foram-se os guardanapos da

    nossa e das mesas vizinhas. Na semana seguinte soube

    que nosso desenhista pronunciou as primeiras palavras,

    mas a primeira de todas se referia ao acontecido no

    self-service. Era o nome da jovem.

    Os quatro exemplos descritos aconteceramfora do setting analtico. Os prximos que vou relatarfazem parte do trabalho cotidiano no CPPL2. Umadelas aconteceu durante as primeiras consultas queantecedem indicao teraputica.

    Na primeira consulta vieram os pais, um jovem casal

    simptico cheio de dvidas e indagaes acerca do lhinho

    de 2 anos que, segundo eles, estava apresentando algumas

    diculdades no desenvolvimento. Eles estavam muito

    receosos e foram pressionados pelos familiares a consultar

    um especialista. No m da conversa apareceu o medode receberem o diagnstico de autismo, apesar de a me

    ter se informado na internet e ter chegado concluso

    de que o lhote pouco correspondia s descries dessa

    patologia. Propus ento de v-los novamente, junto com a

    criana. Conversei com uma colega e pedi para juntar-se

    a ns durante a consulta; caso precisasse empreender uma

    2 CPPL: Centro de Pesquisas em Psicanlise e Linguagem, instituio teraputica para crianas com sede em Recife.

    psicoterapia em grupo ou individualmente, ela estaria

    j em contato com os pais e a criana. Marcelo chegou

    com os pais e subimos para o atendimento. Ofereci os

    brinquedos, que ele espalhou pelo meu div. Muito atento

    conversa dos adultos, virava-se para mostrar algum

    brinquedo ao pai. Quando a colega chegou, sentou-se,aps apresentada, no cantinho do div, prxima a

    Marcelo. Ele no deu muita ateno, ento ela pegou

    um pequeno dinossauro e foi se aproximando sem

    nada dizer. A chegada do dinossauro, ao contrrio, foi

    percebida imediatamente e o brincar agora correu solto.

    Muito entretido, Marcelo apenas se virava de vez em

    quando para o pai, lanando uma rpida olhada. Fui

    buscar um brinquedo e na volta dei uma tropeada no

    p de Marcelo, que estava ajoelhado ao lado do div.

    Levei um susto e dei um pulo para no machuc-lo.

    Ele olhou e riu, eu tambm ri, pedindo desculpas e ns

    camos na gargalhada. Era muito engraado tudo isso.

    Marcelo girou e olhou para o pai, para minha colega

    e para mim, por ltimo para a me. Eles tambm

    acharam graa. Era hora de compartilhar. Enm

    estvamos todos juntos.

    Essa cena, como as outras, teve um desfechosatisfatrio. Os pais se convenceram de que umacriana que interage com tanta espontaneidade comcerteza no pode receber o diagnstico de autismoinfantil. Eles de fato no estavam convictos desse

    diagnstico, nem o haviam recebido de ningum,estavam apenas com muito medo. Assim, se tran-quilizaram, puderam reconhecer que o lho de fatotinha um atraso no desenvolvimento da linguageme, ao lado de uma irm muito falante e espaosa,recuava, cando em segundo plano. A indicaoteraputica foi bem aceita e a participao deles notratamento do lho facilitou o nosso trabalho, queterminou com xito.

    Mais uma cena, dessa vez para ilustrar umacontecer psquico do Eu construindo a experinciada coletividade e sua inscrio na histria do indi-

    vduo, numa sesso de psicanlise em grupo, comcrianas entre 2 e 4 anos:

    Jorge estava no grupo havia cinco meses, quando

    recebemos uma visita. Na sala de grupo, nosso colega

    psicanalista ocupou bastante espao pelo seu tamanho.

    Sentou-se num canto e cou observando enquanto ns

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    os terapeutas e em relao a cada criana, tornamospossvel o tal at luxdo fazer viver. Sem garantias,mas uma possibilidade.

    Muitas vezes s percebemos quando jaconteceu, como no dia em que Roberto chegou

    porta do meu consultrio e disse: bom dia, tiaPaula. E de fato estava l Roberto em carne e osso,habitando si mesmo, simplesmente bem. Fazia tempoque Roberto estava falante, leitor incansvel dosgibis, afeioado aos jogos eletrnicos, crtico ferozdas minhas parcas capacidades nesses ltimos. Masmesmo assim Roberto no estava ali. Conversava, masno estava. At o dia em que chegou e continuou.So horas em que a equipe celebra. Para celebrartem que ser voc, voc, voc e eu. Eu quero deRoberto no tardou. Mas no dia em que Robertoanal compareceu, eu devia ter lhe dito:

    Carpe Diem, Roberto!

    REFERNCIAS

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    Recebido: 21/03/2009Received: 03/21/2009

    Aprovado: 04/07/2009Approved: 07/04/2009