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Considera¸ oes sobre Matem´ atica Eduardo F. L¨ utz 1 Introdu¸ ao A Matem´ atica ´ e uma das ´ areas mais mal compreendidas e surpeendentes. As pessoas tendem a am´ a-la ou odi´ a-la (ou temˆ e-la), mas ´ e dif´ ıcil ficar neutro nesse assunto. Em qualquer caso, quase todos tendem a subestim´ a-la. Predominam ideias simplistas sobre Matem´ atica por toda parte. ´ E inevit´ avel que seja mal compreendida, pois a palavra ‘compreens˜ ao’ sugere um entendimento do todo, ao passo que o teorema de G¨ odel [1] afirma que o conhecimento (a Matem´ atica) ´ e infinito e n˜ ao pode ser reduzido a um conjunto finito de axiomas. 1 O par´ agrafo anterior foi propositalmente escrito de forma a despertar alguma estranheza, dependendo das cren¸cas do leitor em rela¸ ao ` a Matem´ atica. Dois pon- tos cr´ ıticos mencionados acima s˜ ao: o teorema de G¨ odel e seu significado, e a identifica¸c˜ ao da Matem´ atica com ‘o conhecimento’. Tecemos algumas considera¸c˜ oes sobre estes e outros as- suntos importantes nas se¸c˜ oes seguintes. 2 Considera¸ oes Preliminares Conta uma famosa par´ abola indiana que um grupo de cegos ouviu falar que um estranho animal chamado ele- fante fora trazido ` a cidade. Nenhum deles tinha ideia do formato do animal. Decidiram ir conhecer o animal e des- cobrir a forma dele pelo tato. Foram at´ e onde estava o elefante e o apalparam. O primeiro apalpou a tromba e concluiu que o elefante era semelhante a uma cobra. Ou- tro apalpou a orelha e concluiu que era semelhante a uma grande folha. O terceiro apalpou uma perna e concluiu que o elefante era como um tronco de ´ arvore ou como uma co- luna. O quarto apalpou o lado do elefante e concluiu que ele era como uma parede. O quinto apalpou a cauda e concluiu que elefantes s˜ ao semelhantes a cordas. Um fenˆ omeno semelhante ocorre em rela¸c˜ ao ` a Ma- tem´ atica. Diferentes pessoas possuem conceitos muito di- ferentes, mesmo quando utilizam elementos matem´ aticos explicitamente em sua atividade principal. Cada um lida com uma pequena parte da Matem´ atica e fica com a im- press˜ ao de que aquilo ´ e o todo. A t´ ıtulo de exemplo, h´ a quem pense que Matem´ atica lida apenas com n´ umeros. Ou, pior ainda, que Matem´ atica consiste em efetuarem-se opera¸ oes. Se todas as pessoas tivessem ideias t˜ ao restriti- vas sobre Matem´ atica, ainda estar´ ıamos na Idade M´ edia, andando em charretes e morrendo com pestes. 1 Mas o n´ umero de conceitos primitivos pode ser pequeno. Quando se fala em ciˆ encia moderna e como ela foi des- coberta, frequentemente as pessoas imaginam pensadores percebendo a importˆ ancia da experimenta¸ ao (testar as ideias) e propondo o uso do protocolo aristot´ elico, aquele que envolve observa¸ ao,formula¸c˜ ao de hip´ oteses, testes das hip´ oteses, e assim por diante. ´ E comum at´ e mesmo que se confunda isso com ciˆ encia, como se ciˆ encia fosse um processo realizado pela humanidade. O que poucos sabem ´ e que essas coisas j´ a eram conhe- cidas e usadas h´ a milˆ enios e sem grandes resultados. O grande achado da Revolu¸c˜ ao Cient´ ıfica foi algo inteira- mente diferente, algo que causou uma avalanche de conhe- cimento que cresce exponencialmente. Esse “algo” j´ a era especulado por povos antigos, mas mesmo hoje ainda n˜ ao faz sentido para a maioria das pessoas, de forma que at´ e mesmo historiadores dirigem sua aten¸c˜ ao a detalhes que lhes parecem mais razo´ aveis, por´ em menos importantes da Revolu¸c˜ ao Cient´ ıfica, geralmente ignorando a componente mais fundamental, sem a qual todo o resto desmorona. Vejamos o caso da importˆ ancia da experimenta¸ ao. Sem uvida ´ e importante testar ideias. Isso ´ e t˜ ao ´ obvio que a humanidade tem feito testes desde os prim´ ordios da ci- viliza¸c˜ ao. Tentativa e erro ´ e a metodologia mais funda- mental de aprendizado. Todos fazem isso desde bebˆ es. Os pioneiros realmente falaram na importˆ ancia da experi- menta¸c˜ ao e esse aspecto faz parte das ideias da revolu¸c˜ ao. A diferen¸ca est´ a na forma como a experimenta¸c˜ ao deve ser usada. Ela deve ser sistem´ atica, n˜ ao apenas casual. Para ser sistem´ atica, ela precisa seguir certas regras, as quais fazem parte da Matem´ atica. Este ´ e um ponto muito importante que precisa ser bem entendido. Durante muito tempo, diversos pensadores perceberam que a Matem´ atica possui aspectos muito curiosos, in- dependentes das linguagens que usamos para descrever seus elementos. Esses aspectos abrangem confiabilidade e muito mais f´ acil perceber erros no racioc´ ınio formal e as conclus˜ oes est˜ ao mais frequentemente corretas), objeti- vidade (existem m´ etodos determin´ ısticos e independentes de quem os usa), transcendˆ encia (a Matem´ atica parece transcender os limites da realidade f´ ısica) e abrangˆ encia (todas as ´ areas do conhecimento parecem ter suas ra´ ızes na Matem´ atica). Roger Bacon, que viveu no s´ eculo 13, foi um dos pensadores a enfatizar esse ´ ultimo aspecto. N˜ ao apenas aspectos num´ ericos, mas todos os aspectos de tudo teriam seu fundamento na Matem´ atica, na vis˜ ao dele. A ideia mais fundamental por tr´ as da Revolu¸ ao Ci- ent´ ıfica foi uma esp´ ecie de postulado metaf´ ısico baseado em ensinos b´ ıblicos eem constata¸c˜ oes pr´ aticas derela¸c˜ oes entre a Matem´ atica e o que se observa na realidade. Para- fraseando Galileu, Deus criou o universo usando elementos matem´ aticos. Precisamos aprender a ler esses elementos para poder entender a realidade. Se n˜ ao o fizermos, per- maneceremos como que a vaguear por um labirinto es- curo. Ciˆ encia deve ser entendida como uma metodologia de representa¸ ao e pesquisa baseada nesses elementos. A filosofia comum faz grandes promessas que n˜ ao pode cum- prir, mas consegue multid˜ oes de adeptos com discursos elo- 1

Considera˘c~oes sobre Matem atica · (a Matem atica) e in nito e n~ao pode ser reduzido a um conjunto nito de axiomas. 1 O par agrafo anterior foi propositalmente escrito de forma

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Consideracoes sobre

Matematica

Eduardo F. Lutz

1 Introducao

A Matematica e uma das areas mais mal compreendidase surpeendentes.

As pessoas tendem a ama-la ou odia-la (ou teme-la),mas e difıcil ficar neutro nesse assunto. Em qualquer caso,quase todos tendem a subestima-la. Predominam ideiassimplistas sobre Matematica por toda parte.

E inevitavel que seja mal compreendida, pois a palavra‘compreensao’ sugere um entendimento do todo, ao passoque o teorema de Godel [1] afirma que o conhecimento(a Matematica) e infinito e nao pode ser reduzido a umconjunto finito de axiomas. 1

O paragrafo anterior foi propositalmente escrito deforma a despertar alguma estranheza, dependendo dascrencas do leitor em relacao a Matematica. Dois pon-tos crıticos mencionados acima sao: o teorema de Godele seu significado, e a identificacao da Matematica com ‘oconhecimento’.

Tecemos algumas consideracoes sobre estes e outros as-suntos importantes nas secoes seguintes.

2 Consideracoes Preliminares

Conta uma famosa parabola indiana que um grupo decegos ouviu falar que um estranho animal chamado ele-fante fora trazido a cidade. Nenhum deles tinha ideia doformato do animal. Decidiram ir conhecer o animal e des-cobrir a forma dele pelo tato. Foram ate onde estava oelefante e o apalparam. O primeiro apalpou a tromba econcluiu que o elefante era semelhante a uma cobra. Ou-tro apalpou a orelha e concluiu que era semelhante a umagrande folha. O terceiro apalpou uma perna e concluiu queo elefante era como um tronco de arvore ou como uma co-luna. O quarto apalpou o lado do elefante e concluiu queele era como uma parede. O quinto apalpou a cauda econcluiu que elefantes sao semelhantes a cordas.

Um fenomeno semelhante ocorre em relacao a Ma-tematica. Diferentes pessoas possuem conceitos muito di-ferentes, mesmo quando utilizam elementos matematicosexplicitamente em sua atividade principal. Cada um lidacom uma pequena parte da Matematica e fica com a im-pressao de que aquilo e o todo. A tıtulo de exemplo, haquem pense que Matematica lida apenas com numeros.Ou, pior ainda, que Matematica consiste em efetuarem-seoperacoes. Se todas as pessoas tivessem ideias tao restriti-vas sobre Matematica, ainda estarıamos na Idade Media,andando em charretes e morrendo com pestes.

1Mas o numero de conceitos primitivos pode ser pequeno.

Quando se fala em ciencia moderna e como ela foi des-coberta, frequentemente as pessoas imaginam pensadorespercebendo a importancia da experimentacao (testar asideias) e propondo o uso do protocolo aristotelico, aqueleque envolve observacao, formulacao de hipoteses, testesdas hipoteses, e assim por diante. E comum ate mesmoque se confunda isso com ciencia, como se ciencia fosse umprocesso realizado pela humanidade.

O que poucos sabem e que essas coisas ja eram conhe-cidas e usadas ha milenios e sem grandes resultados. Ogrande achado da Revolucao Cientıfica foi algo inteira-mente diferente, algo que causou uma avalanche de conhe-cimento que cresce exponencialmente. Esse “algo” ja eraespeculado por povos antigos, mas mesmo hoje ainda naofaz sentido para a maioria das pessoas, de forma que atemesmo historiadores dirigem sua atencao a detalhes quelhes parecem mais razoaveis, porem menos importantes daRevolucao Cientıfica, geralmente ignorando a componentemais fundamental, sem a qual todo o resto desmorona.

Vejamos o caso da importancia da experimentacao. Semduvida e importante testar ideias. Isso e tao obvio que ahumanidade tem feito testes desde os primordios da ci-vilizacao. Tentativa e erro e a metodologia mais funda-mental de aprendizado. Todos fazem isso desde bebes.Os pioneiros realmente falaram na importancia da experi-mentacao e esse aspecto faz parte das ideias da revolucao.A diferenca esta na forma como a experimentacao deveser usada. Ela deve ser sistematica, nao apenas casual.Para ser sistematica, ela precisa seguir certas regras, asquais fazem parte da Matematica. Este e um ponto muitoimportante que precisa ser bem entendido.

Durante muito tempo, diversos pensadores perceberamque a Matematica possui aspectos muito curiosos, in-dependentes das linguagens que usamos para descreverseus elementos. Esses aspectos abrangem confiabilidade(e muito mais facil perceber erros no raciocınio formal eas conclusoes estao mais frequentemente corretas), objeti-vidade (existem metodos determinısticos e independentesde quem os usa), transcendencia (a Matematica parecetranscender os limites da realidade fısica) e abrangencia(todas as areas do conhecimento parecem ter suas raızesna Matematica). Roger Bacon, que viveu no seculo 13, foium dos pensadores a enfatizar esse ultimo aspecto. Naoapenas aspectos numericos, mas todos os aspectos de tudoteriam seu fundamento na Matematica, na visao dele.

A ideia mais fundamental por tras da Revolucao Ci-entıfica foi uma especie de postulado metafısico baseadoem ensinos bıblicos e em constatacoes praticas de relacoesentre a Matematica e o que se observa na realidade. Para-fraseando Galileu, Deus criou o universo usando elementosmatematicos. Precisamos aprender a ler esses elementospara poder entender a realidade. Se nao o fizermos, per-maneceremos como que a vaguear por um labirinto es-curo. Ciencia deve ser entendida como uma metodologiade representacao e pesquisa baseada nesses elementos. Afilosofia comum faz grandes promessas que nao pode cum-prir, mas consegue multidoes de adeptos com discursos elo-

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quentes. Por outro lado, a metodologia matematica naopromete ensinar muitos princıpios, nao e atraente para amaioria das pessoas e nao se espera que tenha muitos se-guidores.

De fato, ideias anteriores a Revolucao Cientıfica con-tinuam sendo amplamente utilizadas e ate apresentadascomo se fossem ciencia hoje em dia, pois poucos sao os queentendem ou utilizam a Ciencia (ou Ciencia Matematica,na linguagem de Roger Bacon e Leonardo da Vinci) con-forme mencionada pelos pioneiros. Apesar de serem pou-cos, os que a tem utilizado tem provocado uma avalanchede conhecimentos que esclareceram pontos fundamentaise geraram tecnicas, metodos e aparelhos que alavancaramo conhecimento em todas as areas, mesmo nas que con-tinuam a utilizar conceitos medievais de ciencia (ou seja,quase todas as areas).

Resumindo, a Ciencia descoberta pelos pioneiros baseia-se em Matematica e nao na razao humana, no raciocıniofilosofico, embora tenha sido descoberta e mencionada emum contexto de consideracoes filosoficas. E possıvel ras-trear a esse fator o desenvolvimento sem precedentes queo conhecimento humano teve nos ultimos seculos. E aindae possıvel ver hoje em dia como o uso explıcito de metodosmatematicos (que inclui linguagens de programacao) con-tinua acelerando o desenvolvimento do conhecimento e datecnologia.

Para compactar um pouco mais a ideia, a Matematicapode ser aprendida a partir de padroes encontrados nomundo fısico e a pesquisa cientıfica consiste no usoexplıcito desses elementos matematicos tanto na area ex-perimental (planejamento de testes, validacao, medidas derelevancia estatıstica, graus de confianca, etc.) quantona teorica (formulacao de modelos matematicos, demons-tracao de teoremas a partir de leis, o que gera teorias, usode teorias e modelos para gerar previsoes, etc.).

O que acontece quando se faz pesquisa experimental semlevar em conta os elementos matematicos pertinentes? Ve-jamos um exemplo. Ontem voce leu em seu horoscopo quereceberia uma carta no dia seguinte. Voce formulou umahipotese: “Se a Astrologia e confiavel, entao realmente re-ceberei uma carta amanha. Testarei minha hipotese. Sereceber a carta, a Astrologia e verdadeira.” Hoje vocerecebeu uma carta. Sua hipotese foi confirmada e vocepassou a confiar na Astrologia. O que ha de errado nessequadro? Muita coisa, desde os erros de logica em seuraciocınio (isso e um tipo de erro de calculo, so que emLogica ao inves de Aritmetica) ate o erro de nao calculara relevancia estatıstica de seu experimento. O que faltou?Matematica usada corretamente. Ela foi usada implicita-mente, mas com erros. E erros sao muito mais difıceis deidentificar quando voce nao coloca tudo as claras, explici-tamente.

Mas voltemos a questao dos conceitos de Matematica.Para muitos, Logica nao faz parte da Matematica. Paraoutros um pouco mais esclarecidos, uma parte da Logicafaz parte da Matematica (como a Logica Booleana, porexemplo), e outra nao (ex.: “fuzzy logic”). Outros ainda

conhecem as estruturas matematicas por tras do que al-guns consideram “logica nao-matematica”. Enfim, o quecada um percebe como fazendo ou nao parte da Ma-tematica depende de sua experiencia, o que inclui suaformacao academica. Considerando-se que quase nenhumacarreira academica passa por um aprofundamento muitoamplo em Matematica, e de se esperar que praticamentetodas as pessoas, incluindo cientistas, possuam uma nocaoextretamente restrita sobre os limites desse territorio.

Essa situacao e analoga ao caso de pessoas que vivemem um bairro de uma cidade grande quase sem comu-nicacao com o resto do mundo. Como e comum alguemdizer que vai conhecer o mundo antes de sair para conhe-cer um bairro vizinho, acostumam-se com a ideia de queo mundo e algum bairro vizinho.

Provavelmente a maior barreira ao entendimento doconceito de ciencia que mencionamos sejam ideias equi-vocadas sobre Matematica. Conceito equivocado e aqueleque se torna contraditorio ou ineficiente a certa altura.Discutiremos, ao longo das secoes, algumas das ideias quesao bastante comuns, porem bastante equivocadas nessaarea. Antes, porem, citaremos vislumbres que alguns per-sonagens historicos tiveram sobre o assunto e que muda-ram o mundo radicalmente.

3 Vislumbres

3.1 Roger Bacon

No seculo XIII, Roger Bacon fez grande esforco paraestudar, comparar e entender relacoes entre as diversasareas do conhecimento humano e metodos adequados aoestudo de cada uma. Ele leu, viajou, discutiu, observou eescreveu.

A certa altura de seus escritos, ele diz: “Passo agora aMatematica, o fundamento e a chave para todas as outrasciencias, estudada desde as primeiras eras do mundo, masque tem sido negligenciada ultimamente. Tratarei a se-guir de sua aplicacao ao conhecimento humano, ao conhe-cimento divino e ao governo da igreja.” [2]. Hoje em dia,essa negligencia continua a acontecer, porem o habito de-senvolvido nas chamadas “hard sciences” (ciencias duras),que consiste no uso sistematico e explıcito de metodos ma-tematicos, tem alavancado o progresso do conhecimentoapesar da confusao filosofica que ainda impera.

Apresentamos aqui apenas alguns trechos curtos (amos-tras) de comentarios de Bacon sobre o assunto, nos quaisele faz afirmacoes e as desenvolve, dividindo o tema emvarios aspectos e tratando de cada um deles.

“Temos a confirmacao da experiencia daqueles que con-seguiram as maiores distincoes em ciencia. Eles devemseus resultados ao fundamento matematico de seus estu-dos.” [2].

“Passando dos metodos aos objetos de estudo, desco-brimos ser impossıvel fazer progresso sem Matematica...”[2].

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Bacon referiu-se a “Scientia Experimentalis” comosendo uma metodologia geral, nao ligada a alguma areado conhecimento em particular, que possui uma dupla uti-lidade para a humanidade:

1. conferir os resultados obtidos por procedimentos ma-tematicos (reultados da Ciencia Matematica, ou sim-plesmente Ciencia);

2. estimular pesquisadores em novos campos ainda naoabertos a pesquisa.

Esta e uma nocao fundamental que muitos pesquisado-res modernos perderam de vista, confundindo ciencia comparadigmas e colocando preconceito academico em pe deigualdade com resultados de metodos poderosos. Hoje emdia, muitos tratam qualquer pesquisa academica como sefosse ciencia, desde que haja publicacoes em determinadoformato e haja revisao por pares (tipicamente com os mes-mos preconceitos).

Entre comentarios sobre os escritos de Bacon, encon-tramos notas como a seguinte: “Matematica e uma onto-logia geral, uma metafısica... Sua garantia e derivada deseu solido fundamento ontologico, ja que a Matematica ea propria estrutura da realidade, como Bacon destaca...”[3].

Se ele considerava a Matematica como sendo a propriaestrutura da realidade, nao e surpreendente que ele a con-siderasse aplicavel a todas as areas do conhecimento, tantoseculares quanto espirituais. O trecho a seguir ilustra isso.“Vimos a potencia da Matematica quando aplicada a coi-sas seculares. Passamos agora a sua aplicacao a coisasdivinas. Filosofia e impossıvel sem Matematica, Teolo-gia sem Filosofia. Todo o conhecimento esta contido, di-reta ou indiretamente, nas Escrituras. Assim, para o cor-reto entendimento da Escritura, conhecimento da natu-reza e necessario. Nas Escrituras, ha um duplo signifi-cado, literal e espiritual. O primeiro e necessario parao segundo: e, como temos mostrado, conhecimento ma-tematico e necessario para isso. Certamente os patriar-cas estudaram Ciencia Matematica e a transmitiram aoscaldeus e egıpcios, de onde ela chegou aos gregos. Issoe provado por Josefo e confirmado por Jeronimo e ou-tros doutores, assim como por filosofos como Albumazar.Alem disso, os proprios pais louvaram o valor da CienciaMatematica, como pode ser verificado em passagens deCassiodoro, Agostinho, Bede e outros.” [2].

“O proconceito contra Matematica ganhou forca pelaluta do paganismo contra o cristianismo, em que a magiaera usada pelo primeiro e em que os milagres cristaos eramconsiderados como magia.” [2]. E interessante notar comoo pensamento magico hoje em dia e mais comum entreos cristaos do que o raciocınio matematico. E comumencontrarmos crisaos que consideram milagres como coisasintrinsecamente inexplicaveis. De acordo com Bacon, essepensamento tem origem paga.

Quanto a abrangencia e aplicabilidade universal da Ma-tematica, hoje ja temos experiencia suficiente para sa-

ber que podemos aplicar metodos matematicos a todas asareas do conhecimento e a todos os aspectos da experienciahumana e alem, das emocoes a loucura, do raciocıno validoaos equıvocos, da fidelidade a monstruosidade. Temosaplicado metodos matematicos em todas as areas de in-teresse sem grandes barreiras, exceto a das limitacoes detempo e interesse. Infelizmente, porem, pesquisadores damaioria das areas do conhecimento humano nao possuemformacao sequer para saber que isso e possıvel e muitosvao alem e chegam a afirmar que nao e, tamanha e adesinformacao causada pela confusao filosofica, refletidaabundantemente em inumeros artigos e livros de autoresfamosos com formacao precaria em Matematica. Algunsate sabem aplicar um conjunto limitado de metodos ma-tematicos mas mesmo assim parecem incapazes de enten-der o significado do que fazem e quao incompatıveis saosuas ideias com sua pratica. O resultado tem sido ideiasprejudiciais, inconsistentes mas amplamente aceitas.

3.2 Leonardo da Vinci

As citacoes abaixo sao traducoes de anotacoes de Leo-nardo da Vinci em seus cadernos.

“Que nunhum homem que nao seja um matematico leiaos elementos de meu trabalho.”

“Oh! estupidez humana, nao percebes que, embora te-nhas convivido contigo mesma toda tua vida, ainda naoestas ciente da coisa que mais possuis, que e tua tolice? eentao, com a multidao de sofistas, enganai-vos a vos mes-mos e a outros, desprezando as ciencias matematicas, nasquais a verdade habita e o conhecimento das coisas nelasesta.”

O papel da experimetacao na Ciencia: “Ciencia e a ca-pita e a pratica sao os soldados.” “Aqueles que se apai-xonam pela pratica sem a ciencia sao como aqueles queentram em um navio sem leme ou bussola e que nuncapodem ter certeza de para onde estao indo.”

“Nenhuma investigacao pode ser chamada de cienciareal se nao puder ser demonstrada matematicamente.”

“Portanto, o estudantes, estudem Matematica e naoconstruam sem fundamentos.”

“Aqueles que condenam a suprema certeza da Ma-tematica alimentam-se de confusao e nunca podem si-lenciar as contradicoes das ciencias sofistas que levam aoeterno charlatanismo.”

3.3 Galileu Galilei

Galileu demonstrava ter ideias semelhantes as de Ro-ger Bacon. Ele entendia que Deus usou Matematica paracriar todas as coisas e que podemos encontrar fundamentosmais confiaveis para nossa filosofia estudando a natureza,aprendendo seus princıpios matematicos e usando essesmesmos princıpios para aprender mais. Entretanto, essametodologia, que ele chamou de Ciencia, de demonstracaoe raciocınio baseados em Matematica, jamais seria popu-lar, dada a concorrencia com a filosofia convencional. Ele

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estava certo. Hoje em dia, o conceito de ciencia esta detur-pado de tal maneira que reduziu-se a um mero fenomenosocial subordinado a filosofia da epoca. O conceito pro-posto por Galileu e considerado ridıculo. As pessoas ten-dem a ser credulas com especulacoes vazias e extrema-mente ceticas com resultados de metodos matematicos emesmo conceitos neles baseados.

“Em Sarsi pareco discernir a firme crenca de que, aofilosofar, devemos apoiar-nos na opiniao de algum autorcelebre, como se nossas mentes devessem permanecer com-pletamente estereis e infrutıferas exceto quando casadascom o raciocınio de outra pessoa. Possivelmente, ele pensaque filosofia e um livro de ficcao de algum escritor, comoIlıada ou Orlando Furioso, producoes nas quais a coisa me-nos importante e se o que foi escrito e verdadeiro. Bem,Sarsi, nao e assim que as coisas funcionam. A filosofiaesta escrita nesse grandioso livro, o universo, que perma-nece continuamente aberto a nossa vista. Mas esse livronao pode ser entendido a menos que primeiro se aprendaa entender a lıngua e a ler as letras com as quais e com-posto. Ele esta escrito na lıngua da matematica, eseus caracteres sao triangulos, cırculos, e outras figurasgeometricas sem as quais e humanamente impossıvel en-tender uma simples palavra dele; sem eles, fica-se a vagarem um labirinto escuro.” [4].

“Colocando de lado as dicas e falando abertamente elidando com a ciencia como um metodo de demons-tracao e raciocınio acessıvel ao uso humano, sustentoque quanto mais isto participa da perfeicao, menos pro-posicoes prometera ensinar, e menos ainda provara conclu-sivamente. Consequentemente, quanto mais perfeita ela e,menos atrativa sera e menor sera seu numero de seguido-res. Por outro lado, tıtulos magnıficos e muitas promessasgrandiosas atraem a curiosidade natural dos homens e osmantem para sempre envolvidos em falacias e quimeras,sem nunca oferecer-lhes uma amostra sequer da nitidez daverdadeira prova pela qual o gosto pode ser despertadopara saber o quao insıpida e a racao diaria da filosofia.Tais coisas manterao uma infinidade de homens ocupados,e sera realmente afortunado o homem que, guiado por al-guma luz interior fora do comum, puder sair dos confusoslabirintos nos quais ele poderia ter permanecido perpetua-mente errante com a multidao e tornando-se cada vez maisenredado.” [4].

3.4 Isaac Newton

Newton foi uma das pessoas intelectualmente mais bemdotadas de todos os tempos. Ao inves de deter-se em per-guntas ingenuas como se a Matematica e ou nao aplicavela investigacoes filosoficas, ele tratou de demonstrar comofazer isso no exemplo que estava mais a mao, a Mecanica.Estimulado e auxiliado por Edmund Halley, Newton tor-nou publico seu trabalho.

Para desenvolver sua obra, Newton usou seu conheci-mento matematic previo, mas precisou completa-lo comnovos conhecimentos matematicos que ele obteve do

proprio objeto de seu estudo, as leis da Mecanica. Trata-se da area que hoje chamamos de Calculo Diferencial,que possibilitou o desenvolvimento do conhecimento deequacoes diferenciais, as quais permitem o estudo das leisfısicas. Esse conhecimento provocou um efeito domino queinduziu a descoberta de mais e mais leis, o que gerou tec-nologias de conhecimento e praticas que permitiram gran-des avancos mesmo em areas nas quais metodos da cienciamatematica praticamente nao sao utilizados, apesar dapreferencia de se chamarem de ciencia as atividades depesquisa nessas areas.

Muitos outros pesquisadores contribuıram grandementenesse empreitada, mas a contribuicao de Newton foi deci-siva.

3.5 Maupertuis

No seculo XVIII, Pierre Louis Maupertuis teve umaideia interessante. O Calculo descoberto por Newton eLeibniz permitiu um entendimento sem precedentes sobreas leis fısicas e suas caracterısticas. Entre outras coisas,permitiu que se observasse e confirmasse um padrao de oti-mizacao nas trajetorias da luz. Isso inspirou Maupertuis.As Escrituras afirmam que tudo o que Deus faz e muitobom. Se a realidade fısica foi mesmo criada e e mantidapor um Ser Supremo, entao as leis fısicas basicas devemser todas otimizadas (princıpio da acao mınima), ou seja,

δS = 0 .

Outros pesquisadores, como Euler, Lagrange e, noseculo seguinte, Hamilton, descobriram metodos ma-tematicos que permitem deduzir leis fısicas a partir desseprincıpio. Hoje sabemos que esse princıpio permite de-duzir desde a Mecanica de Newton, passando pelas leisdo eletromagnetismo, a Relatividade Especial e Geral, asleis da Teoria Quantica de Campos, Teorias das Cordas emais.

Este simples detalhe ja deveria ser suficiente para dei-xar claro que toda a realidade fısica fundamenta-se em umprincıpio matematico simples, pois sao as leis fısicas quedefinem a existencia e funcionamento basico da realidadefısica e permitem que existam outras camadas de estrutu-ras e comportamentos.

4 Conhecimento eEntendimento

A palavra ‘matematica’ tem origem grega: μαθηματικά(matheematika). Esta palavra, por sua vez, e derivada deμάθηεμα (matheema), que significa ‘conhecimento’. Porextensao, essa palavra tambem era usada para estudo ouarea do conhecimento pelos antigos gregos.

A civilizacao grega fez varias contribuicoes importantesao conhecimento humano. A propria lıngua grega refletea riqueza de ideias dessa cultura.

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Um outro conceito interessante e o expresso pela pala-vra γνῶσις (gnoosis). Muitos a entendem tambem comoconhecimento, mas ha uma diferenca de significado emrelacao a μάθημα. Uma traducao melhor para a palavraγνῶσις em muitos casos seria ‘entendimento’.

Essa confusao de significados e bastante comum mesmoem alguns estudos de Psicologia e afins. Na lıngua portu-guesa (como ocorre em varios idiomas modernos), utiliza-se a palavra ‘conhecimento’ com varios significados. E utildistinguir mais claramente o significado central de μάθημα(conhecimento) do significado central de γνῶσις (entendi-mento).

Entendimento e a forma como organizamos estruturasmentais (em sentido amplo), a maneira de representar omundo que nos certa e lidar com conceitos auxiliares, ouseja, lidar com modelos. Trata-se de um fenomeno subje-tivo, diferente para cada pessoa. Nao pode ser comparti-lhado.

Conhecimento e algo mais objetivo e mais abstrato. Asproprias palavras ‘objetivo’ e ‘abstrato’ tambem costu-mam causar certa confusao.

A objetividade esta relacionada a independencia de su-jeito. Dizer-se que o conhecimento e algo objetivo significaque ele pode ser representado de tal forma que possa sercompartilhado.

A abstracao esta ligada a existencia de padroes, isto e,ao fato de existirem diferentes entidades com aspectos emcomum, o que permite a generalidade e a economia emrepresentacoes. A falha em entender os principais aspec-tos da abstracao tem causado o que se poderia considerarcomo uma sucessao de desastres filosoficos.

Ao observarmos mais cuidadosamente os metodos maiseficientes na pesquisa cientıfica e os comparamos com asmaneiras como sao retratados em um grande numero deartigos e livros na area da Filosofia da Ciencia, podemosencontrar alguns fenomenos grotescos. Esses fenomenosgeralmente estao ligados a algumas lamentaveis tendenciasfilosoficas que se desenvolveram nos ultimos seculos, eainda infestam diversas areas, apesar do acumulo de co-nhecimento capaz de desmascara-las.

Essas tendencias filosoficas, usualmente ligadas a umneo-antropocentrismo que se desenvolveu nos ultimosseculos tendem a impedir a percepcao ate mesmo do quedeveria ser obvio. Grande parte do material que se en-contra na literatura sobre Filosofia da Ciencia serve muitomais para obscurecer, mascarar fatos e confundir as ideiasdo que para esclarecer.

Tem-se tentado adaptar o conceito de ‘ciencia’ a con-cepcoes filosoficas ineficientes ao inves de utilizarem-seos novos conhecimentos proporcionados pelo metodo ci-entıfico para corrigir concepcoes filosoficas descabidas.

Os conceitos de ‘abstracao’ e de ‘realidade’ estao entreos mais prejudicados nesta luta entre conhecimento e anti-conhecimento.

E por causa de fenomenos desse tipo que autores comoo deste artigo sentem-se compelidos a tentar desfazer con-fusoes filosoficas antes de poder divulgar o que realmente

importa em termos de conhecimentos avancados.

5 Matematica como Linguagem

Ha quem goste de pensar em Matematica como se fosseuma linguagem. Esse erro conceitual e da mesma naturezaque imaginar-se que linguagem e sinonimo de lıngua por-tuguesa. Para quem viveu toda a sua vida imerso em umacultura em que se fala exclusivamente essa lıngua e semcontato com o mundo exterior, identificar-se linguagemcom lıngua portuguesa pode parecer razoavel. Da mesmaforma, se o unico contato que alguem teve com elementosmatematicos foi atraves de uma unica linguagem, e com-preensıvel que essa pessoa confunda a linguagem usada emsua educacao com a propria Matematica. Compreensıvel,mas incorreto.

Essa situacao agravou-se ao extremo de serem escritoslivros que tentam tratar da Matematica como se fosseuma linguagem, como se a Matematica fizesse parte daSemiotica e nao o contrario.

O que ha de errado com essa ideia? Varias coisas. Emprimeiro lugar, o simples fato de podermos usar diver-sas linguagens para expressar elementos matematicos (in-cluindo relacoes, propriedades, numeros e outras entida-des), ja deveria nos alertar de que ha algo fundamental-mente errado em considerar-se a Matematica como umalinguagem.

Ao longo da historia humana, diferentes culturas usa-ram diferentes linguagens para expressar elementos ma-tematicos. Essas linguagens tipicamente se baseiam emdiferentes aspectos dos elementos matematicos que repre-sentam. Algumas sao mais ricas do que outras. Porem,dentro de certos limites, representam as mesmas coisas.Matematica e o que e representado por essas linguagense nao apenas as linguagens em si, embora seja impossıvela existencia de qualquer linguagem sem Matematica, masesse e outro assunto, um tanto longo, por sinal.

Dependendo de quais aspectos de quais elementos ma-tematicos queremos estudar ou do uso que pretendemosfazer deles, utilizamos diferentes linguagens para repre-senta-los. Existem linguagens matematicas que enfatizamrelacoes (de qualquer coisa com qualquer coisa), existemlinguagens matematicas adequadas para representar algo-ritmos (algo particularmente util em processamento de in-formacoes; isso inclui a linguagem em que o DNA estaescrito), linguagens matematicas para representar estru-turas, linguagens matematicas para representar leis fısicase assim por diante.

Todas as linguagens de computador (exemplos: C,C++, Javascript, Java, Python, Ruby, Scala, Go, Has-kell, assemblies, Prolog, Lisp, etc.) sao “linguagens ma-tematicas”, a maioria delas especializada em expressar al-goritmos.

Se alguem deseja identificar Matematica com lingua-gens, pelo menos deve tentar identifica-la com o conjuntode todas as linguagens. Mesmo assim, isso ainda e incor-

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reto, pois a Matematica possui elementos que nada tema ver com linguagens. Para quem concentra-se mais nadescricao das coisas (que sempre e feita em alguma lin-guagem) do que nas coisas que estao sendo descritas, ebastante difıcil perceber o que ha de errado com a nocao deMatematica como linguagem ou como sistema de lingua-gens. Nesse caso, e importante uma familiaridade maiorcom alguns detalhes importantes da pesquisa cientıficapara entender a diferenca entre uma coisa e outra. Essaquestao e complexa, na verdade, e merece uma secao ex-clusiva: 9.

Alem disso, tendemos a pensar que usamos apenas umalinguagem matematica quando, na verdade usamos varias.Veremos um exemplo simples agora.

Ao lidarmos com Aritmetica e consideramos A e B comosendo dois numeros genericos quaisquer, podemos repre-sentar o produto deles por AB e o resultado sera o mesmoque BA (a ordem dos fatores nao altera o produto). Tec-nicamente, isso se chama comutatividade.

Quando o assunto e matrizes numericas 3x3, podemosrepresentar duas matrizes genericas por A e B respectiva-mente. Tambem podemos representar o produto de duasmatrizes por AB. Mas agora nao temos comutatividade,isto e, AB e BA sao coisas quase sempre diferentes. O quemudou? Mudou o significado de A, o significado de B e osignificado de AB. Produto entre matrizes e algo de umanatureza diferente do produto entre numeros reais. Ma-trizes sao entidades de uma natureza muito diferente dados numeros reais. Em outras palavras, estamos usandoos mesmos sımbolos para representar coisas totalmente di-ferentes. A rigor, nao usamos a mesma linguagem nos doiscasos.

Outro exemplo simples: em portugues, temos a palavra“casa”. Ela significa algumas coisas especıficas em por-tugues. Mas nada nos impede de considerar c = 5, a = 2,s = 3 e que quando colocamos essas letras juntas denota-mos o produto desses valores. Nesse caso, “casa” passa aser uma expressao de uma das linguagens que se prestama lidar com Aritmetica, e casa= 5×2×3×2 = 60. Apesarde usarmos o mesmo sımbolo (“casa”) em ambos os casos,sao linguagens diferentes.

6 Matematica e Algoritmos

Podemos utilizar regras matematicas de maneiraimplıcita ou explıcita. Quando usamos de forma implıcita,na maioria das vezes nao sabemos que estamos usandoalgo da Matematica. Por exemplo, ao planejarmos umsalto de uma margem para outra de um corrego, nossocerebro faz uma grande quantidade de calculos sem quetenhamos consciencia deles. Apenas temos uma intuicaodo resultado, de como devemos pular. Isso e uso implıcitode Matematica. Formulamos um algoritmo, uma tecnicapara realizar algo. No uso explıcito, sabemos que estamosusando Matematica e de que maneira.

Da mesma forma que muitos imaginam que a Ma-

tematica seja uma linguagem por haverem utilizado ape-nas uma linguagem para aprendizado explıcito de Ma-tematica, assim tambem uma experiencia restrita com orotulo “Matematica” as induz a pensar que Matematica eescrever sımbolos e fazer contas.

Nesse caso, a tendencia e pensar em Matematica comoum processo mental, no qual seguimos certas regras paraobter certos resultados. Trata-se da associacao entre Ma-tematica e alguns algoritmos. Sim, algoritmos fazem parteda Matematica, mas consistem apenas em uma minusculafracao dela.

Quem tem essa concepcao algorıtmica tende a imaginarque a Matematica depende de alguem para “executa-la”,para que ela possa funcionar e existir.

Outra situacao curiosa que encontramos nesse cenarioe o de pessoas que pensam em Matematica como algunsalgoritmos especıficos, nao todos. O algoritmo que per-mite somar dois numeros com varios dıgitos e obter umresultado seria matematico, mas levantar da mesa, ir acozinha e tomar um copo de agua seria um algoritmo nao-matematico, pois essa atividade nao foi rotulada comomatematica no aprendizado escolar. Na verdade, naoha qualquer razao para essa discriminacao de algoritmos.Qualquer pessoas suficientemente versada em linguagensde programacao sabe que podemos expressar qualquer umdesses algoritmos do cotidiano usando os mesmos elemen-tos matematicos. Nao faz sentido algum classificar unscomo matematicos e outros como nao-matematicos.

O conhecimento humano explıcito sobre Matematica pa-rece ter iniciado em funcao de propositos bem praticos, oque esta intimamente associado a algoritmos, isto e, ins-trucoes de como fazer coisas passo a passo. Ha escritosantigos que ensinam como medir a area de um terrenotrapezoidal como quem descreve uma receita de bolo, al-goritmicamente. Com o tempo, porem, a humanidade en-controu maneiras muitos mais eficientes e gerais de explo-rar elementos matematicos, tanto para conhece-los quantopara explorar novas fronteiras e possibilidades.

E interessante encerrar esta secao com uma ilustracao.Quando Joaozinho anda pela calcada de sua rua, e corretoque afirme “isto e a Terra”? Bem, em sentido coloquial,sim. Joaozinho mora na Terra, sua rua fica na Terra. Oproblema surge quando alguem passa a usar a expressaode Joaozinho como se fosse um termo tecnico para definirTerra. Pior ainda se construir um castelo filosofico fun-dado nele. Imagine essa pessoa a certa altura defendendoa ideia de que a Terra e andar pela calcada da rua deJoaozinho. Soa estranho, ate ridıculo, nao e? Para quemmora em outros lugares e viaja com frequencia por diver-sos meios de transporte, a definicao de Terra como “an-dar pela calcada da rua de Joaozinho” e inaceitavel, atemesmo inutil. No entanto, esse tipo de conceito manifesta-se quando algumas pessoas explicam o que entendem porMatematica; realizar alguns tipos de operacoes (andar emdeterminada rua).

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7 Matematica e Indutivismo

O pensamento intuitivo-filosofico e indutivo por natu-reza: parte do particular para o geral primeiro, para soentao tentar fazer o caminho inverso. Observamos umcaso, dois casos, tres casos, ... ate percebermos que exis-tem caracterısticas em comum e que, ao conhece-las, po-demos ter um conhecimento muito mais eficiente, que de-pende de relativamente pouca informacao para descrevermuitos casos de forma mais ou menos acurada. E assimque comecamos a aprender.

O problema e que frequentemente nosso raciocınio fi-losofico faz extrapolacoes completamente equivocadas emfuncao da forma temeraria como tende a lidar cominducao. Um exemplo disso e o conceito de tempo ab-soluto. A humanidade desenvolveu seus conceitos emum ambiente no qual as velocidades relativas sao ınfimasquando comparadas a da luz. Para todos os fins praticosde um cotidiano quase sem tecnologia, o tempo e real-mente absoluto. Entao, filosofos deram um passo adiantee construıram inumeras ideias baseadas implicitamente napremissa de que o tempo seja absoluto. Isso afetou atemesmo algumas concepcoes teologicas, como se pode verno debate sobre a temporalidade de Deus.

Seguindo os ideais da revolucao cientıfica, Newton fez“engenharia reversa” das leis do movimento e isso o le-vou a descoberta do Calculo Diferencial, que permitiu naoapenas a formulacao das leis da Mecanica (de forma inde-pendente do tempo ser ou nao absoluto, diga-se de pas-sagem), mas tambem as equacoes diferenciais do Eletro-magnetismo (reunidas e formuladas por Maxwell), que im-plicam em que o tempo e relativo, mas o espaco-tempo eabsoluto (Relatividade Especial). Ninguem esperava esseresultado, mas ele apareceu assim mesmo nas relacoes ma-tematicas de algumas leis fısicas. A intuicao dizia que oresultado era absurdo. A experimentacao mostrou que aintuicao e que afirmava um absurdo e que muitas con-sideracoes filosoficas anteriormente consideradas segurasestavam equivocadas.

Ocorreram muitos outros casos de discordancia entreraciocınio intuitivo-filosofico e previsoes matematicas. Nofinal, as ultimas sempre tinham razao, exatamente comoprevisto pelos pioneiros. Isso deveria nos estimular mais aentender como funciona esse processo. Por que o raciocıniohumano muitas vezes diz uma coisa e os padroes ma-tematicos que encontramos na natureza dizem algo total-mente diferente, incompatıvel com o que pensamos? Naonos aprofundaremos nesses detalhes aqui, mas precisamospincar algo bastante fundamental nessa area: deducao ver-sus inducao.

A Matematica nos fornece metodos mais seguros deinducao, mas sua maior forca aparece quando apreciamossua estrutura “natural”, mais voltada a deducao do que ainducao. Tentaremos explicar isso da forma menos tecnicaque pudermos.

Ao inves de lidarmos com Matematica algoritmica-mente, como quem lida com uma receita de bolo, a ex-

periencia tem-nos mostrado que e muito mais eficiente es-pecificar contextos por meio de axiomas e entao usar essesaxiomas para provar teoremas nos respectivos contextos.Ao fazermos isso, acabamos recaindo em um processo de-dutivo, embora lidando com estruturas que nao dependemde nossos processos mentais ou de linguages. O processoque mencionamos aqui e o do nosso aprendizado de formaa tornar-se mais abrangente. A Matematica em si definemas nao depende de processos.

Vejamos um exemplo de caminho dedutivo. Um grupoe definido pelos seguintes axiomas:

1. E um conjunto G.

2. G e munido de uma operacao interna ∗.

3. A operacao interna ∗ e associativa: a∗(b∗c) = (a∗b)∗c,para todo a, b e c ∈ G.

4. Existe um elemento neutro e em G: e ∗ a = a ∗ e =a, ∀a ∈ G.

5. Cada elemento possui um inverso, isto e, ∀a ∈ G:a− ∗ a = a ∗ a− = e.

Note-se a progressao: antes de especificarmos o pri-meiro axioma, podemos estar falando de absolutamentequalquer coisa: estamos no infinito dos infinitos. No pri-meiro axioma, restringimos o escopo aos conjuntos. Nosegundo, restringimos o escopo a conjuntos que possuemuma operacao interna (mas nada impede de possuir outrasoperacoes tambem). Quando chegamos ao ultimo axioma,ja temos algo muito mais especıfico do que no inıcio. Cadaaxioma e um passo em direcao ao finito, tornando o escopomais restrito.

Quanto menos axiomas uma estrutura precisa para serdefinida, mais simples e a definicao e mais proxima do infi-nito dos infinitos ela estara. Para chegar ate coisas finitas,precisamos de muitos axiomas. Do ponto de vista da abor-dagem axiomatica, que e infinitamente mais eficiente doque outras abordagens que a humanidade costuma usar, oinfinito e mais simples do que o finito, pois e o ponto departida para tudo o que se pode definir.

A Matematica nao apenas nao depende do indutivismo,mas nos estimula a seguir o caminho oposto, partindo doinfinito para entender o que e finito. Mesmo numeros fini-tos correspondem a estruturas infinitas. O numero 1, porexemplo, pode ser definido como a classe de equipotenciade todos os conjuntos unitarios (conjuntos que so admi-tem a si mesmos e ao vazio como subconjuntos). Ou seja,ate algo aparentemente finito e pequeno como o numero 1descreve uma classe infinita.

Ha quem diga que a ciencia e essencialmente indutiva.Isso denuncia um falso conceito de ciencia, um que nadatem a ver com o conceito dos pioneiros, baseado em Ma-tematica, que realmente fez a diferenca. Quando algo ba-seado em filosofia e com as limitacoes da mesma e cha-mado de ciencia, esse algo deve ser visto como falsa ciencia

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ou pseudociencia. Sua base e meramente o raciocınio hu-mano, que falha miseravelmente com frequencia. Notemosa distincao: descobrir a ciencia por meio de consideracoesfilosoficas e muito diferente de considerar a ciencia comoparte da filosofia ou fundamentada por ela. Confundiressas coisas seria o mesmo que imaginar que o conti-nente americano, como parte da crosta terrestre, e apenasuma parte do navio que permitiu a Cristovao Colombodescobri-lo.

8 Matematica e ConhecimentoHumano

E comum uma forma de entender areas do conhecimentocomo sendo o que a humanidade sabe sobre o assunto.Muitos entendem Fısica, por exemplo, como sendo o co-nhecimento humano sobre Fısica. Assim, se houver ou-tras especies inteligentes estudando as leis da natureza, oconhecimento deles nao e Fısica, pois nao sao humanos.Mais engracada ainda e a situacao de um fısico que tra-balha em uma area de fronteira, descobrindo coisas quea humanidade nao conhece. Esse fısico nao esta lidandocom Fısica ate que aquelas coisas passem a ser assimila-das como fazendo parte do conhecimento humano. O quee Fısica hoje e diferente do que era Fısica ontem. Por maiscomicas que sejam as consequencias desse tipo de aborda-gem, as pessoas tendem a ser condicionadas a pensar dessamaneira.

Vejamos um outro exemplo mais popular. Se chamar-mos de musicas apenas as que ja foram compostas, entaouma musica que sera composta no ano que vem nao se clas-sifica como musica atualmente. A definicao de musica serarelativa a epoca de quem aplica a definicao. Essa e umarestricao totalmente desnecessario e que chega a violar ateregras de bom senso, como a navalha de Ockham. Issoporque acrescenta uma clausula inutil a definicao de algoe que causa uma dependencia desnecessaria em relacao aoobservador. Em suma, e uma forma ineficiente de pensare definir. Impoe restricoes artificiais e desnecessarias.

Muito mais eficiente seria definir musica em funcao desuas caracterısticas intrınsecas. Isso nao nos impede detratar da relacao de uma musica conosco, seja em funcaode como a criamos ou como ela nos afeta.

Outro exemplo: se considerarmos como Cosmologiaapenas o que a humanidade sabe sobre o universo em gran-des escalas, entao um fenomeno como um superaglome-rado de galaxias so passa a ser um fenomeno cosmologicoapos ser conhecido pela raca humana. Enquanto nao eraconhecido por humanos nao era um fenomeno? Nao eracosmologico?

O humanismo deixou uma forte marca cultural quetende a levar a esses exageros conceituais que tentam cen-tralizar absolutamente tudo na humanidade, ate mesmo anatureza e a Matematica. Tudo e tratado como se depen-desse da raca humana para existir, se nao de fato, pelo

menos nos conceitos. E uma forma infantil, autocentrada,de ver o mundo.

9 Linguagens Matematicas

Ha quem pense em Matematica como se fosse umafamılia de linguagens. Mesmo os que nao pensamos assim,de vez em quando falamos em “linguagem matematica”ou “linguagens matematicas”. Ou dizemos que podemos“expressar matematicamente” isso ou aquilo. E facil de-duzir dessas expressoes que Matematica e um conjuntode linguagens, assim como e facil deduzir da expressao deJoaozinho (ver final da secao 6) que ‘Terra’ e andar pelacalcada da rua da casa dele, algo totalmente descabidomas que parece razoavel para quem nao conhece a Terrae nao sabe o que ela e de fato. O que significa isso e comose encaixa no quadro conceitual que estamos construindopara tentar ter um vislumbre do que e Matematica? Decerta forma, expressoes como “linguagem matematica” euma especie de abuso de linguagem. Uma expressao maisadequada seria “linguagem formal”.

Linguagens formais caracterizam-se por basear-se em re-gras sintaticas que refletem as regras essenciais do domıniosemantico (o que e representado pela linguagem), ou seja,do assunto ao qual se referem. Em muitos casos, isso per-mite o raciocınio formal.

Raciocınio formal, ou raciocınio baseado em formulas,tipicamente ocorre no seguinte contexto: dado um pro-blema em certo domınio, selecionamos (ou inventamos)uma linguagem cujos elementos reflitam os elementos doproblema e cujas regras sintaticas reflitam as relacoes rele-vantes do problema. Selecionada ou definida a linguagem,primeiro expressa-se o problema em questao na linguagemescolhida. A partir daı, inicia-se o raciocınio formal pro-priamente dito: usando-se apenas as regras sintaticas dalinguagem, trabalha-se com operacoes sobre a expressaodo problema ate obterem-se solucoes. Encontradas assolucoes, elas sao traduzidas para o domınio do problemausando-se o proprio dicionario da linguagem. Esta e aetapa da interpretacao de resultados do raciocınio formal.Frequentemente, ainda existe uma etapa de interpretacaofilosofica, mas essa ja nao faz parte do processo cientıficoem si, pois apoia-se na intuicao, de forma que tende afalhar onde a intuicao falha.

Veja um exemplo acessıvel na subsecao 17.1.Uma das caracterısticas do raciocınio formal e a de que

ele nao exige conhecimentos sobre o domınio do problema.E possıvel, por exemplo, expressar-se um problema formal-mente (em uma linguagem formal), fornecer a expressaoresultante a um programa de computador, deixa-lo traba-lhando ate que uma solucao seja obtida e depois traduziro resultado para o domınio do problema. Lembremo-nosde que a solucao do problema formal pode dizer que naoexiste solucao do problema no domınio original.

Linguagens para expressar algoritmos tambem sao lin-guagens formais, porem com uma caracterıstica um pouco

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diferente das linguagens formais que acabamos de men-cionar. O domınio delas sao os algoritmos em si, e suaprincipal utilidade para nos e a de permitir a automacaode processamento de informacao. Existe um grau a maisde indirecao neste caso, pois os algoritmos referem-se aalgum domınio, e a linguagem em si refere-se aos algorit-mos. Isso nao e eficiente para o raciocınio formal em si,mas permite que se programem computadores para aplicarmetodos matematicos a todas as areas do conhecimentohumano, da musica aos efeitos especiais dos filmes, das si-mulacoes de sistemas reais aos mundos virtuais dos jogos.

Todas essas coisas podem ser coloquialmente chamadasde “linguagens matematicas”. Entretanto, a Matematicanao esta apenas nessas linguagens, mas principalmente noque esta sendo representado. Note-se que essas lingua-gens so funcionam porque baseiam-se nas mesmas relacoesmatematicas que existem no que esta sendo represen-tado. E aı principalmente que vemos manifestacoes daMatematica.

Vejamos um exemplo simples. Trata-se de um assuntoque qualquer pessoa pode reconhecer como pertencendoaos domınios da Matematica: o teorema de Pitagoras.

Podemos dizer: “Em um triangulo retangulo em umespaco euclidiano, a soma dos quadrados dos catetos eigual ao quadrado da hipotenusa.” Esta e uma expressaona lıngua portuguesa referindo-se a uma propriedade detriangulos retangulos em espacos euclidianos. Essa propri-edade e consequencia de caracterısticas da Matematica. Oque a linguagem tem a ver com isso? Nada. A linguagemapenas nos permite expressar essa conclusao.

Tambem podemos expressar o seguinte: ∀Tr(a, b, c) ∈E, a2 = b2 + c2. Dissemos a mesma coisa em uma lin-guagem formal, ou seja em uma “linguagem matematica”,abusando da linguagem.

Os elementos matematicos por tras do que dissemos saoos mesmos, mas a linguagem mudou radicalmente. Noprimeiro caso, usamos uma linguagem nao-formal, “nao-matematica” (de novo, um abuso de linguagem, ja que to-das as linguagens dependem de regras matematicas paraexistir e funcionar). No segundo caso, usamos uma lin-guagem formal. A diferenca principal e que a segundalinguagem foi composta para refletir mais diretamente asrelacoes matematicas relevantes ao domınio na propria sin-taxe da linguagem. Ja as relacoes matematicas internasao portugues sao indiretas, associando classes de sımbolosao inves de refletir relacoes entre os proprios objetos des-critos.

Regras sintaticas sao sempre regras matematicas, maso grau de indirecao presente nessas regras faz bastante di-ferenca. Em qualquer caso, as relacoes matematicas estaoem toda parte nao apenas na linguagem usada para repre-sentar algo, ainda que esta seja uma linguagem formal.

10 Abstracao e Realidade

E comum encontrarmos pensadores que falam de abs-tracao como se fosse algo imaginario, um fenomeno psi-cologico que nada tem a ver com o mundo real. Essaideia tem a ver com um apego ao raciocınio concreto,que utiliza minimamente caracterısticas que os objetosque nos cercam possuem em comum e tende a conside-rar que cada caso e um caso, sempre. Com habitos men-tais dessa natureza, e muito facil imaginar que todos ospadroes existem apenas na mente humana, que qualquertipo de abstracao e artificial e nao corresponde ao que querque seja no mundo real. Isso em si ja e uma generalizacaoe uma afirmacao sobre padroes no mundo real. E seme-lhante a considerar como sendo uma verdade absoluta quenao existem verdades absolutas. Ou seja, e uma nocaoauto-contraditoria. Proposicoes que implicam na proprianegacao constituem o que chamamos de absurdos.

Resumindo, abstracao tem sido tratada por alguns comose fosse um processo mental sem relacao alguma com omundo fısico. Mas nao e assim que lidamos com o as-sunto tecnicamente e as evidencias mostram exatamenteo contrario.

Comecemos pelo princıpio.Uma laranja e outra laranja possuem sabores semelhan-

tes e exigem mais ou menos os mesmos movimentos praserem descascadas. Laranjas possuem caracterısticas emcomum que possuem consequencias praticas. Por isso te-mos uma palavra para representar os objetos dessa famılia:‘laranja’. Embora a palavra em si nao seja um objetopalpavel, ela representa algo que existe e faz diferenca aforma como colocamos em pratica instrucoes envolvendolaranjas. Nao podemos substituir ‘laranja’ por ‘dinamite’e esperar os mesmos resultados ao colocarmos o objetoem um liquidificador, por exemplo. A palavra ‘laranja’ euma abstracao, uma expressao que se refere a uma famıliade objetos com certas caracterısticas em comum. Em-bora uma ‘caracterıstica’ nao seja algo concreto, ela repre-senta coisas que acontecem no mundo fısico tanto quantoos proprios objetos que nele existem.

Imagine que voce va pegar frutas de uma caixa e passarpara outra, uma fruta de cada vez. Com mais ou menosa mesma sequencia de movimentos, voce pode mover 5laranjas, 5 macas, ou 5 peras. Isso e mais uma abstracao,ou seja, mais uma caracterıstica em comum possuıda porcolecoes de objetos.

Abstracoes sao padroes. Vemos, por exemplo, obje-tos que refletem frequencias de luz proximas e chamamosessa caracterıstica de cor. Cor e uma abstracao, algo quecolecoes de objetos possuem em comum.

Diferentes materiais podem ser organizados de formasemelhante. Podemos, por exemplo, formar um cubo depedra, de madeira, de bronze, de ferro, de vidro, de gelo eassim por diante. O que essas coisas possuem em comum?O que chamamos de forma, outra abstracao.

As cidades de uma regiao podem estar interconectadasde determinada maneira. Essa maneira pode ser replicada

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em outros conjuntos de cidades em outras regioes. A es-trutura de conexoes e a mesma, mas as cidades e regioessao diferentes. Ao estudar a natureza, descobrimos que‘estrutura’ e um dos tipos mais importantes de abstracaoque existem.

Alias, descobrimos que uma das formas mais eficientesde estudar qualquer assunto (da Semiotica as redes neu-rais) e via estruturas algebricas. Ou sendo um pouco maisgeral, estruturas relacionais. Dada a importancia disso,vamos dar uma ideia inicial do assunto e entao uma amos-tra do que vem quando nos aprofundamos um pouquinho.

Ao estudar Matematica, encontramos infinitas camadasde abstracao em todas as “direcoes”. Vamos exemplificarisso em uma direcao no territorio matematico cujo inıcioe familiar a maioria das pessoas.

Primeiro, aprendemos a lidar com famılias de entida-des (objetos, pessoas, etc.). Por exemplo, entendemos quedois indivıduos podem ser de uma mesma especie por tercaracterısticas em comum, e damos nome a essa especie.Por exemplo ‘ovelha’. Qualquer criatura que se encaixeem certo padrao sera chamada de ovelha. Isso e um nıvelde abstracao. Existe outra categoria que denominamos‘pedrinha’. Conta-se que antigos pastores de ovelha car-regavam duas bolsinhas uma cheia de pedrinhas e outravazia. Para cada ovelha, uma pedrinha em uma das bol-sinhas. Quando as ovelhas iam entrando no aprisco, paracada ovelha que entrava, o pastor movia uma pedrinha deuma bolsinha para a outra. Quando a ultima ovelha en-trava, a ultima pedrinha passava da primeira bolsa paraa segunda. Se sobrasse alguma pedra era porque faltavaalguma ovelha. O mesmo processo era repetido na saıdado aprisco. Isso significa que existe algo em comum entreo conjunto de ovelhas e o conjunto de pedrinha. Esse algoem comum e o que chamamos de ‘numero’, uma das pri-meiras entidades matematicas explicitamente conhecidaspela humanidade. Esse processo utilizado pelos pastoresnao funcionaria se nao refletisse algo da realidade. Osnumeros representam algo real. Se errarmos nas contas,coisas ruins acontecem no mundo real. Isso nao e numero-logia, apenas a constatacao de que, mesmo com conceitosabstratos, estamos representando coisas que existem nomundo real.

Numeros podem, portanto, ser considerados como umasegunda camada de abstracao. Existe uma infinidade delinguagens que podemos inventar para representa-los, masa linguagem usada nao alterara suas propriedades ma-tematicas, apenas as representara de maneira mais efici-ente ou mais limitada. O sistema arabico de numeracao emuito mais eficiente do que o romano, por exemplo.

Assim como existem numeros, que, na linguagem ara-bica representam-se como 1, 2, 3, etc., existe um pro-ximo nıvel de abstracao. Podemos representar numerosgenericos, sem especificar quais sao, assim como podemosfalar de ovelha sem dizer a qual ovelha em particular nosreferimos. Por exemplo, podemos falar de um numero xe de outro numero y sem dizer quais sao. Aqui usamosletras para representa-los, mas poderıamos usar qualquer

outro sımbolo. Usando esse tipo de notacao (linguagem)e as caracterısticas das operacoes numericas (operacoesaritmeticas), podemos encontrar expressoes gerais que va-lem para todos os numeros. Por exemplo,

(x+ y)2 = x2 + 2xy + y2 .

Podemos colocar qualquer par de numeros no lugar de xe y e esta expressao sera valida para eles. Em essencia,estamos lidando com infinitos casos de uma vez. Isso temum poder sem precedentes. Quanto mais avancamos naabstracao, mais poderosa essa abordagem tende a ficar.

Assim como podemos tratar de numeros genericos, ob-tendo expresoes que se aplicam a todos eles, sem precisar-mos citar numeros especıficos, tambem podemos lidar comoperacoes genericas. Isso nos leva a um oceano infinito depossibilidades (mas que nao abrange toda a Matematica):o oceano das estruturas algebricas.

Uma estrutura algebrica e uma colecao de conjuntos mu-nida de operacoes internas a cada conjunto e operacoes ex-ternas, entre diferentes conjuntos do sistema. Um exemplode estrutura algebrica sao os grupos, definidos na secao 7.Outro exemplo e a Aritmetica, que e a “lugar” da Ma-tematica onde moram os numeros. A maior parte da Ma-tematica nada tem a ver com numeros.

Assim como definimos grupos, definimos tambem aneis,corpos, espacos vetoriais, numeros reais, numeros comple-xos, quaternions, e assim por diante. E todos esses apre-sentam tremenda utilidade no estudo da natureza. Toma-remos agora uma dessas linhas para exemplificar.

Assim como podemos generalizar operacoes para ob-ter novas estruturas algebricas, encontramos padroes queformam famılias de estruturas algebricas. Uma dessasfamılias e formada pelas chamadas algebras de Clifford.Uma dessas e a estrutura dos numeros reais. Outra e ados numeros complexos (necessaria para expressar cam-pos quanticos). Outra e a dos quaternios, ligados a estru-tura do espaco-tempo e o comportamento do que esta nele.Outra ainda e a algebra das matrizes spin de Pauli, liga-das obviamente ao comportamento do spin das partıculas.Outra e a das matrizes de Dirac, ligadas tanto ao spinquanto a antimateria, que tambem sao consequencias daestrutura geometrica do espaco-tempo. E este caminhosegue infinitamente e possui bifurcacoes, seguindo em di-ferentes direcoes. A Matematica esta repleta dessas coisas,como se fosse uma floresta infinita com todos os tipos dearvores (estruturas algebricas) e outras coisas.

Entre as estruturas algebricas, encontramos tambem aslinguagens, todas elas. Linguagem tambem e um tipo deabstracao.

Resumindo, abtracao e uma forma legıtima de genera-lizacao que reflete algo do mundo real e e fundamental noestudo de Matematica.

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11 Matematica Independe deTempo

Gracas ao aprofundamento de conhecimentos ma-tematicos ligados ao estudo da natureza, descobrimoscoisas sobre o funcionamento do tempo que nao ima-ginavamos. Antes de comentarmos algum detalhe nestaarea, voltemos nossa atencao mais uma vez ao teorema dePitagoras. Se estamos sobre um plano e vamos em linhareta do ponto de coordenadas cartesianas (x1, y1) ate oponto de coordenadas (x2, y2), qual sera a distancia ` quepercorremos? O teorema de Pitagoras nos oferece umamaneira de calcular isso.

-x

6y

q(x1, y1)

q(x2, y2)

�����

������

���

`

∆x

∆y

Como os eixos x e y sao perpendiculares, vale o teoremade Pitagoras, que nos fornece a solucao:

`2 = ∆x2 + ∆y2 ,

sendo ∆x = x2 − x1 e ∆y = y2 − y1. Portanto,

` =√

∆x2 + ∆y2 .

O que acontece se adicionarmos uma terceira dimensao,z, e chamarmos a distancia total de L, mantendo ` comosendo a distancia percorrida por nossa projecao no planoxy? Nesse caso, podemos montar um triangulo retangulocuja base e ` e a altura e ∆z, o que nos permite aplicarnovamente o teorema de Pitagoras:

L2 = `2 + ∆z2 .

Notemos, porem que `2 = ∆x2 + ∆y2 , o que implica emque

L2 = ∆x2 + ∆y2 + ∆z2 .

Esta expressao e valida para espacos euclidianos (aque-les estudados no Ensino Fundamental) com 3 dimensoes ecoordenadas cartesianas.

No seculo XIX, Bernhard Riemann, aluno de Gauss, en-controu uma maneira simples de generalizar esse teoremapara outros tipos de espaco com qualquer sistema de co-ordenadas2.

2ds2 = gαβdxαdxβ , sendo que os ındices que aparecem em dx

nao sao potencias, mas ındices que dizem de que coordenada estamosfalando e ındices repetidos indicam soma implıcita.

Tambem no seculo XIX, James Maxwell reuniu as leis doeletromagnetismo na forma de um sistema de equacoes di-ferenciais. Como essas leis sao validas em qualquer sistemade referencia, elas implicam em que o tempo e o espaconao podem ser absolutos, mas que o sistema espaco-tempoe absoluto. Colocando de outra forma, se usarmos um sis-tema de coordenadas analogo ao cartesiano para represen-tar o espaco-tempo, a maneita de calcular distancias neleseria a seguinte:

∆s2 = ∆t2 −∆x2 −∆y2 −∆z2 .

O que distingue o tempo do espaco e apenas um sinal nestaformula. Esse simples sinal e responsavel por fenomenoscomo a causalidade e nosso avanco inexoravel rumo aofuturo. Diferentes observadores discordarao quanto a me-dida de ∆t ou das demais em dado experimento, mas oresultado final ∆s sera obtido por todos. Este e absoluto,independente de referencial. Na pratica, trabalhamos comdiferenciais e nao com diferencas, o que permite tambemlidar com espaco-tempo curvo.

Estas dicas contidas nas leis fısicas nos permitiram gran-des avancos em estudos de propriedades matematicas dotempo. Tambem exploramos teoremas que provam carac-terısticas desses espacos mais gerais. Em particular, umdesses teoremas implica em que o espaco-tempo apresentacurvatura em presenca de energia. Isso gera uma equacaoque nos permite lidar com o universo de um ponto de vistaexterno, no qual a nocao de presente nao faz sentido e otempo aparece como um todo. Ela tambem nos diz que otempo teve um inıcio.

Observando agora tudo isso e muito mais em retros-pecto, vemos que o tempo e apenas um detalhe em umtipo de estrutura matematica que chamamos de “estruturacausal”. A Matematica obviamente nao depende disso econtem uma infinidade de estruturas que nada tem a vercom causalidade, e diversas outras que sao mais funda-mentais do que a causalidade e lhe servem de base.

Nao faria sentido algum tentar imaginar a Matematicacomo alguma entidade confinada ao tempo ou dependentedele. Isso nos forcaria a redefinir a maioria das estruturasmatematicas que conhecemos como se nao fizessem parteda Matematica, o que nao faria sentido, pois entre es-sas estruturas encontramos a propria Aritmetica. Se nemAritmetica faz parte da Matematica, sobra o que exata-mente para fazer parte dela?

12 Definicao de Matematica

E impossıvel definir Matematica, pois nao ha nada maisbasico em termos do que ela possa ser definida. Entre-tanto, podemos tecer consideracoes sobre as pistas quetemos de sua natureza. Isso e essencialmente o que esta-mos fazendo ao longo de todo este texto. Assim, nao nosestenderemos muito nesta secao.

Convem, entretanto, resgatar a nocao baconiana de quea Matematica e a propria estrutura da realidade no sen-

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tido mais fundamental da palavra. E exatamente isso quetemos visto e confirmado com cada vez mais profundidadeem estudos avancados, embora seja muito difıcil justificaressa nocao para o publico leigo.

13 A Mente Depende daMatematica

Considerando que as leis fısicas (nao apenas suas ex-pressoes) sao relacoes matematicas e que sao elas que per-mitem que o universo e todo o seu conteudo existam efuncionem, chega a ser redundante afirmar que a mentehumana tambem depende da Matematica para existir efuncionar. Mesmo assim, como a maioria das pessoas naoconhece o caminho matematico que leva desde as leis fun-damentais do mundo quantico ate o cotidiano humano,vale a pena trazer a luz alguns detalhes uteis para formaruma nocao sobre isto.

Existe um princıpio de otimizacao, princıpio da acaomınima, obedecido pelas leis fısicas fundamentais:

δS = 0 .

Este princıpio permite deduzir essas leis fundamentais.Entretanto, como ele e muito geral, ao deduzirmos leis,precisamos especificar o contexto. Uma das maneiras defazer isso e via simetrias. Por exemplo, o fato de que asleis fısicas nao variam com o tempo implica na lei da con-servacao de energia por causa do princıpio da acao mınima.Em outras palavras, uma simetria da natureza nos permitededuzir uma lei de conservacao gracas ao princıpio de oti-mizacao.

Entre essas leis, encontramos as que regem todas as in-teracoes fundamentais. Entre essas, encontramos as leisda cromodinamica quantica, as das interacoes eletrofra-cas e as gravitacionais. As da cromodinamica, permi-tem que existam nucleos atomicos, com todas as suas ca-racterısticas, bem como reacoes nucleares que permitemque as estrelas brilhem e sintetizem elementos essenciaisa vida. As eletrofracas permitem que existam atomos,moleculas, reacoes quımicas, substancias com todas assuas propriedades, ıons, e assim por diante. Sao elas quepermitem a existencia da Quımica. Todas as proprieda-des quımicas dos materiais sao consequencias dessas leismais basicas. A Quımica Organica e apenas um caso par-ticular da Quımica, embora extremamente util e interes-sante. Em particular, as leis fısicas permitem a existenciade moleculas extremamente complexas e ate capazes deprocessar informacao.

Alias, informacao e algo bastante bem regulado pelasleis fısicas. As proprias leis, entretanto, nao geram sis-temas capazes de processar informacao de maneira nao-trivial. Elas apenas provem suporte para que esses siste-mas possam existir. Dado um sistema com uma estruturaadequada para isso, porem, as leis fısicas garantem queo sistema sera capaz de processar informacao. A propria

existencia de seres vivos depende disso. Toda a tecnologiaeletronica depende de dominarmos detalhes tecnicos portras disso. Para projetarmos um computador, por exem-plo, precisamos conhecer estruturas matematicas vincula-das a representacoes e processamento de informacao, comorepresentar essas coisas no mundo fısico de maneira quefuncionem, o que passa por usar as leis fısicas para garan-tir que o processamento de informacoes realmente aconte-cera. De posse desse conhecimento, nao e difıcil notar queos seres vivos baseiam-se no mesmo tipo de princıpios, em-bora com implementacao diferente, muito mais eficiente.O proprio processamento do software contido no DNA(isso e literal) segue os mesmos princıpios da execucao deprogramas em linguagem de maquina feita por computa-dores artificiais. Uma diferenca interessante e que o codigodo DNA contem nao apenas instrucoes comuns, mas deta-lhes sobre como montar nano-robos (enzimas) com funcoesbastante especıficas e capazes de trabalhar em equipe comoutros.

Alem desse processamento basico de informacoes quedefine os seres vivos, ainda encontramos outros sistemas demais alto nıvel que tambem processam informacao: as re-des neurais. O DNA contem instrucoes para a construcaode organismos inteiros, incluindo, em muitos casos, um sis-tema nervoso. Como funciona um sistema nervoso? Essee um assunto no qual tem havido avancos interessantesdesde a decada de 1940 (quando o assunto comecou a serestudado por fısicos e matematicos), com aceleracao con-sideravel desse progresso no seculo XXI, gracas a avancosna tecnologia de GPU e tecnicas de deep learning. Gran-des empresas possuem interessa nestas pesquisas por causade sua utilidade para negocios envolvendo informacao emtempo real.

Com a tecnologia da decada de 1990 ja comecaram aaparecer resultados interessantes. Na epoca ja surgiramestudos mostrando como redes neurais artificiais conse-guiam aprender via exemplos. Seguiram-se outras cons-tatacoes. Na decada seguinte, a pesquisa envolvia coi-sas como reconhecimento facial, reconhecimento de escritamanual, alem de caracterısticas globais do funcionamentodessas redes, como mınimos e atratores no campo de re-presentacao.

No caso do reconhecimento de escrita manual, por exem-plo, notou-se que a eficiencia era bastante inferior a hu-mana. Alem disso, o treinamento dessas redes passava poretapas quase manuais de formulacao de modelos para se-rem usados pelas redes. Descobriu-se entao uma tecnicaque permitia as proprias redes gerarem seus modelos semdependerem de intervencao externa. Com isso, a capa-cidade das redes neurais para reconhecimento de escritamanual superou a capacidade humana.

Redes neurais artificiais comecaram a ser testadas emmais e mais areas, da mineracao de dados a arte. Elas saocapazes de imaginacao, criatividade, de tomar boas de-cisoes em situacoes novas e muitas outras caracterısticasque atribuımos a mente e que muitos imaginam estar forados domınios da Matematica. Pelo que vimos ate agora,

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elas sao capazes de apresentar todas as caracterısticas damente humana, apenas com a atual limitacao de poderde processamento muito inferior ao cerebro. Qualitati-vamente, porem, vemos os mesmos tipos de fenomenos ecapacidades. Redes neurais sao um dos tipos de estruturasalgebricas que existem nos domınios da Matematica. E eum tipo de estrutura com princıpios bastante simples.

Hoje em dia, usam-se redes neurais ate mesmo para mo-delar problemas psicologicos e psiquiatricos.

Diante do que a humanidade ja conhece atualmente, janao faz mais sentido dizer-se que algo da experiencia hu-mana possa estar fora dos domınios da Matematica. Aindaassim, e interessante pensar em um exemplo mais conhe-cido para ganhar-se uma intuicao da abrangencia da Ma-tematica e da expressividade das linguagens formais: oscomputadores (incluindo celulares, tablets, etc.) artifici-ais, como funcionam e o que fazemos com eles atualmente.

Uma das estruturas algebricas mais simples e pobres e aalgebra booleana. Ela admite apenas dois valores (que po-dem ser representados por verdadeiro e falso, 0 e 1, etc.) eoperacoes envolvendo esses valores. De posse das equacoesdo eletromagnetismo e de conhecimento da algebra boole-ana (ou logica das proposicoes), somos capazes de projetarcircuitos capazes de efetuar operacoes dessa algebra. Osdois valores possıveis podem ser representados eletroni-camente por corrente passando ou nao passando por umcondutor, ou por uma voltagem alta ou baixa em determi-nada conexao. As operacoes sao “e”, “ou”, “ou exclusivo”e assim por diante. O que poderıamos expressar apenascom sequencias de 0 e 1 e essas operacoes simples? Quasenada, diria alguem.

Usando 0 e 1 para representar os dois valores possıveis,podemos combinar esses valores para representar numerosinteiros no sistema binario. Por exemplo, o numero 5 podeser representado em binario como 101. Numeros racio-nais podem ser representados por dois inteiros, sendo umo numerador e outro o denominador. Mais usualmente,representam-se numeros reais aproximadamente por doisinteiros em binario, um representando um expoente e ou-tro a mantissa, como em 129836797 × 10−24, mas embinario. E podemos representar operacoes aritmeticascomo operacoes booleanas que podem ser efetuadas porcircuitos simples.

Alem disso, podemos usar numeros para representar ou-tros sımbolos tambem, o que nos habilita a lidar com tex-tos. E seguimos adiante nesta sequencia, representandoimagens, instrucoes, regras, musicas, jogos, e tudo maisque vemos nos computadores atuais, de um simples textoaos mundos virtuais em 3D com efeitos visuais e sonoros.Tudo isso apenas com o menor e mais fraco dedinho daMatematica. Imagine-se o que e possıvel fazer com es-truturas realmente poderosas que conhecemos e com umainfinidade de outras que ainda permanecem alem do hori-zonte de nossa perspectiva!

Redes neurais sao um tipo de estrutura muito mais ricado que a Algebra Booleana. Nao e de se estranhar que,sendo feitos a partir desse tipo rico de estrutura algebrica,

sejamos capazes de experimentar tudo o que pertence anossa experiencia. Ainda assim, existe uma infinidadede estruturas algebricas mais ricas do que as redes neu-rais, muitas das quais lidam com coisas que a mente hu-mana nao alcanca diretamente. A boa notıcia e que o usoexplıcito de metodos matematicos tem nos dado acessoa muitas maravilhas assim, coisas totalmente estranhasa experiencia humana, mas extremamente interessantes ereveladoras.

E interessante tambem recordarmos a nocao de RogerBacon de que a Filosofia depende da Matematica, e nao ocontrario, como muitos pensam hoje em dia (ver subsecao3.1). Isso faz sentido diante da constatacao de que a mentehumana e uma manifestacao de estruturas algebricas e naoo contrario, lembrando da distincao entre representacao eo que e representado e que nossas representacoes nao saopura imaginacao, mas refletem algo do mundo real, casocontrario nao funcionariam na pratica, como vemos quefuncionam.

14 Usos Atuais que TranscendemNocoes Populares

Uma das caracterısticas mais importantes da Ciencia(Matematica) e sua capacidade de prever e explicar emdetalhes assuntos que estao alem de nosso conhecimento esobre os quais nunca fizemos observacao alguma. Em areasem que nao se usam metodos matematicos avancados, issonao acontece. Quando muito, viaja-se na imaginacao. Masem areas como a Fısica, em que abordagens matematicasexplıcitas sao usadas regularmente, esse fenomeno da pre-visao detalhada de coisas novas com posterior confirmacaoexperimental e usual. Alias, mais uma vez, isso tem se-guido a ordem mencionada por Roger Bacon: deducaomatematica primeiro, verificacao experimental depois.

Eis alguns exemplos mais famosos de fenomenos pre-vistos matematicamente: ondas eletromagneticas, anti-materia, espaco e tempo relativos, curvaturas do espaco-tempo e seus efeitos observaveis, buracos negros, on-das gravitacionais, avermelhamento de aglomerados degalaxias em funcao da distancia, radiacao cosmica defundo incluindo o formato de seu espectro, efeito tunel,“princıpio da exclusao”, quarks, cordas, boson de Higgs...So para tornar essa perspectiva mais clara, as ondas gra-vitacionais sao consequencias de uma equacao publicadaem 1915–1916. Somente um seculo mais tarde e que es-sas ondas foram observadas experimentalmente pela pri-meira vez, pois so entao a tecnologia estava suficiente-mente avancada para isso.

Em alguns casos, um fenomeno ate ja era conhecido,mas a deducao matematica nao dependeu desse co-nhecimento e ainda mostrou o que exatamente causa aexistencia do fenomeno e por que ele possui as carac-terısticas observadas. Um exemplo assim foi o do spin.

Alem de demonstrar a ıntima relacao que existe entre aMatematica e a realidade fısica, esses eventos nos servem

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de amostra da potencia dos metodos matematicos para ex-plorarmos mesmo setores da realidade que, por enquanto,sao inacessıveis experimentalmente.

Outra caracterıstica fundamental da Ciencia (Ma-tematica) e a capacidade de seus metodos funcionaremmesmo em domınios nos quais a intuicao humana falhamiseravelmente. Na pesquisa cientıfica, e comum encon-trarmos situacoes nas quais a realidade nao faz sentidoalgum para a intuicao humana, e o que a intuicao diz eabsurdo do ponto de vista das leis fısicas. Isso tende a con-fundir alguns filosofos, acostumados a tomar o raciocıniointuitivo como norma da verdade. Eis um exemplo de co-mentario que o autor deste artigo ouviu recentemente deum filosofo: “Espaco curvo e algo que eu nunca entendi.Isso nao faz sentido algum. E tem gente que quer nosobrigar a aceitar essas bobagens.” Porem, fısicos que li-dam com certos setores da realidade, nao podem se dar aoluxo de simplesmente ignorar o que observam so porqueparece estranho a filosofia convencional; e tentativas decompartilhar algumas das descobertas com o publico leigoas vezes sao interpretadas como arrogancia que afirma in-sanidades.

O fato e que ja no seculo XIX, os conhecimentos ma-tematicos ultrapassaram os horizontes da filosofia conven-cional e comecaram a ser tratados por alguns como ima-ginacao pura sem utilidade pratica. Um exemplo disso fo-ram os estudos sobre geometrias de novos tipos de espacoscom muitas dimensoes e curvatura, iniciados por Gauss ecomplementados por seu aluno Riemann. Muitos julga-ram ser puras especulacoes sem qualquer aplicacao util aomundo real. Entretanto, o que eles descobriram abriu asportas para a Relatividade Geral e possibilitaram o estudoda Cosmologia (espaco-tempo como um todo).

E estes foram apenas exemplos dos primeiros passosrumo a um infinito mundo fascinante que desafia e contra-diz a filosofia humana com frequencia, algo que transcendenocoes como espaco e tempo, coisas muito mais fundamen-tais do que as coisas mais fundamentais que a humanidadeseria capaz de imaginar, coisas mais simples do que asmais simples que costumam ocupar a mente humana e,de tao simples, parecem complexas; coisas tao complexasque uma mente finita desarmada nao pode compreender.Ainda assim, os proprios metodos matematicos que noslevam tao longe tambem nos fornecem maneiras de pas-sear por esses territorios e expandir a intuicao para quefuncione tambem la. Mas esse crescimento so e possıvel sedeixarmos para tras nossa confianca na intuicao humana epassarmos a treinar essa intuicao a partir da Matematica,ao inves de tentar julgar a Matematica confiando no quediz nossa va filosofia.

15 Matematica e Teısmo

Muitas pessoas consideram que a crenca em Deus pre-judica a pesquisa cientıfica. Que, embora haja cientis-tas teıstas, eles precisam manter as coisas separadas em

sua mente pois, a rigor, ciencia seria incompatıvel como oteısmo.

Essas ideias demonstram-se problematicas quando cons-tatamos que os avancos cientıficos dos ultimos seculosdevem-se, direta ou indiretamente, ao uso explıcito demetodos matematicos de maneira essencial, nao mera-mente periferica, na pesquisa. Por isso faz sentido de-finir Ciencia como os pioneiros fizeram, como algo fun-damentado em metodos matematicos. Em outras pala-vras, a Ciencia faz parte da Matematica. Os metodos daCiencia sao metodos matematicos. E existe um teoremamatematico que prova que Deus existe. Isso nao significaque o ateısmo e que e incompatıvel com a Ciencia?

15.1 Contexto Historico

Os pioneiros da Revolucao Cientıfica eram teıstas. Maisprecisamente, eram cristaos. Propuseram o conceito deciencia como sendo uma metodologia matematica. Haviatanto motivacao teologica quanto pratica para essa pro-posta. Galileu previu que isso nunca seria muito popular,que a humanidade iria preferir enredar-se com promessasvazias da filosofia comum e, filosoficamente, ficaria per-dida em um labirinto escuro. Antes dele, Roger Baconatribuiu o preconceito contra Matematica a influenciaspagas (nao-cristas). Se observarmos a questao de perto,notaremos que esse conceito de Ciencia foi um legado docristianismo a humanidade e que foi ele que desencadeouo grande progresso intelectual, principalmente potenciali-zado pela descoberta do Calculo Diferencial, que abriu asportas para o entendimento daas leis fısicas, o que abriuas portas ao desenvolvimeno tecnologico, potencializandoate mesmo as areas que nao possuem tradicao em en-tender ciencia como algo ligado a Matematica. Apesarda divergencia filosofica, fazem uso de consequencias demetodos matematicos continuamente, embora muitas ve-zes misturados com pressupostos filosoficos questionaveis,remanescentes do pensamento pre-cientıfico.

A Revolucao Francesa expressou uma profunda revoltacontra grandes injusticas que eram feitas em nome da re-ligiao. Embora nominalmente pregasse liberdade, igual-dade e fraternidade, colocou em pratica justamente ocontrario ao governar com mao de ferro, injustica e to-lerancia zero para com quem nao fosse muito enfatico noapoio a ditadura daquele dia. Esse movimento caotico defuria descontrolada, afirmou basear-se na razao e combateras supersticoes da religiao e do teısmo.

Apesar de negar tudo o que pregava por suas acoes, ainfluencia desse movimento e visıvel ate hoje em dia. Emparticular, no meio academico ha uma forte pressao paraque o sobrenatural seja sempre considerado como inexis-tente a priori (naturalismo), e todo o pensamento seja cen-trado no ser humano, mesmo no conceito de ciencia, quee vista como uma construcao social. Basta abrir pratica-mente qualquer livro sobre filosofia da ciencia para vermosdescricoes de fenomenos psicologicos e sociais em um con-texto no qual o autor sugere ou diz abertamente que fala

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de ciencia. Chega-se ao extremo de confundir-se cienciacom paradigmas. Ciencia passa a ser algo escorregadioem constante mudanca, nada confiavel e subordinada afilosofia comum.

Nesse cenario, cientistas teıstas sentem-se intimidadose tendem a nem mesmo revelar em que acreditam. Emuito forte a influencia para se pensar que, mesmo queDeus exista, Sua existencia nao faz diferenca na pesquisacientıfica e pode ser seguramente ignorada.

Segue-se uma sensacao, expressa enfaticamente por al-guns, de que nao se pode ao mesmo tempo acreditar emDeus e ser um bom cientista, pois a ciencia e o opostoda religiao. Ciencia estaria ligada a racionalidade; re-ligiao estaria ligada ao misticismo, ao pensamento magico.Um detalhe curioso e que nesse mesmo ambiente filosofico,impera o preconceito contra a Matematica (ela e tratadacomo algo bastante restrito e nao aplicavel a maioria dascoisas). E interessante tambem comparar essa ideia como que vimos na subsecao 3.1: “O proconceito contra Ma-tematica ganhou forca pela luta do paganismo contra ocristianismo, em que a magia era usada pelo primeiro eem que os milagres cristaos eram considerados como ma-gia.” [2]. Note-se como os proprios cristaos tendem a cairnessa emboscada do pensamento magico e do preconceitocontra a Matematica. O que antes foi uma contribuicao docristianismo a humanidade, agora e visto com desprezo echamado de “cientificismo” por alguns cristaos, ao mesmotempo em que e visto como incompatıvel com o cristia-nismo por nao-cristaos.

Se pensarmos em ciencia como sendo o paradigmada epoca (com seus pressupostos filosoficos e protoco-los de trabalho), entao realmente ha um conflito entre aciencia atual e o teısmo (linha filosofica que aceita/defendea existencia de Deus). E e facil solidarizar-se comateus quando vemos tantas ideias absurdas (que levama contradicoes) sobre Deus e mesmo sobre ensinamentosbıblicos. E muito comum que se cometam erros de Her-meneutica e se entendam textos bıblicos de maneira dis-torcida e inconsistente. Isso reforca a ideia de que a Bıbliaesta cheia de absurdos, uma opiniao popular entre intelec-tuais modernos.

Mas o que acontece se entendermos ciencia mais oumenos como os pioneiros da Revolucao Cientıfica faziam,como metodologia matematica capaz de penetrar em qual-quer assunto, mesmo no domınio espiritual? Roger Bacon,por exemplo, deixou claro que entendia que a Filosofia eessencial para a Teologia e que a Matematica e essenciala Filosofia. Alem da opiniao de Bacon e outros, temos al-guma outra evidencia de que podemos usar metodos ma-tematicos (Ciencia) para estudar temas como a existenciade Deus e Seus atributos? Muitos negam veementementeessa possibilidade, seja por nao acreditarem na existenciade Deus, seja por preferirem um pensamento magico noque se refere a temas espirituais, seja por imaginar queseria muita ousadia alguem penetrar em terreno sagrado aforca dessa maneira. Para quem tem essa ultima opiniao,a resposta e simples: tudo o que podemos estudar sobre

Matematica, incluindo atributos divinos, faz parte da Re-velacao Natural e somos aconselhados a estuda-la tao pro-fundamente quanto pudermos.

De volta ao ponto, se existe a possibilidade de estudara Deus usando metodos da Ciencia, o que descobriremos?Que Deus nao existe? Que Ele existe mas e diferente doque muitos acreditam?

Kurt Godel foi um matematico do seculo XX. E popular-mente conhecido por seu famoso teorema da incompletude,que prova que mesmo essa ınfima parte da Matematica quee a Aritmetica (que e onde “moram” os numeros e suasoperacoes) e infinita de tal maneira que e impossıvel es-gota-la com um numero finito de axiomas. Em outras pa-lavras, nenhum conjunto finito de axiomas pode ser com-pleto em relacao a Aritmetica. E existe uma infinitudede estruturas matematicas para as quais se pode provar avalidade desse teorema.

Um outro teorema muito interessante no qual Godel tra-balhou, mas sem publicar, foi o teorema ontologico. O te-orema foi encontrado em suas anotacoes. Ele parecia inte-ressado em explorar maneiras de lidar com argumentos fi-losoficos por meio de metodos matematicos. Sabemos queargumentos filosoficos sao muito mais frageis do que teore-mas, ate porque temos visto nos ultimos seculos diversosexemplos, que pareciam confiaveis, ruırem em suas ba-ses por apoiarem-se em extrapolacoes indevidas de nocoesintuitivas. Ja teoremas podem ser provados e nao depen-dem da intuicao humana para funcionar. Seria, portanto,muito melhor podermos usar teoremas do que simples ar-gumentos em nossa fundamentacao filosofica.

15.2 O Teorema Ontologico de Godel

Godel inspirou-se em argumentos ontologicos (que de-fendem a existencia de Deus) conhecidos ha seculos. Aocolocar o assunto em uma linguagem formal, suficiente-mente proxima das entidades matematicas representadaspor ela, ele foi capaz de modificar o argumento para eli-minar limitacoes e provar o teorema resultante.

Em notacao simplificada, os pontos centrais da demons-tracao do teorema podem ser expressos da maneira quesegue.

A1: {P (ϕ) ∧�∀x [ϕ(x)→ ψ(x)]} → P (ψ)A2: P (¬ϕ)↔ ¬P (ϕ)T1: P (ϕ)→ ♦∃x [ϕ(x)]D1: G(x)⇔ ∀ϕ [P (ϕ)→ ϕ(x)]A3: P (G)T2: ♦ ∃xG(x)D2: ϕ essx⇔ ϕ(x) ∧ ∀ψ{ψ(x)→ �∀x [ϕ(x)→ ψ(x)]}A4: P (ϕ)→ �P (ϕ)T3: G(x)→ G essxD3: E(x)⇔ ∀ϕ [ϕ essx→ �∃xϕ(x)]A5: P (E)T4: �∃xG(x)Para entender o que esta escrito, e preciso familiaridade

com Logica Modal e com este tipo de notacao. Discutire-mos essas coisas resumidamente a seguir.

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Logica Modal e uma parte da Logica especializada empossibilidades e certezas. Fazendo ja uma conexao coma notacao acima, dada uma afirmacao A, a expressao ♦Asignifica que A e possivelmente verdade e �A significa queA e necessariamente (certamente) verdade.

Alem dos sımbolos ♦ e �, usamos ainda ∧ (e), ∨ (ou),Y (ou exclusivo), ¬ (nao), ∃ (existe), ∀ (para todo), →(implica), ⇔ (logicamente equivalente por definicao, ou edefinido como).

Alem de familiaridade com a notacao que estiver em usono momento e com a Logica Modal em si, e usada nesseteorema algo da Logica de Predicados, outra parte impor-tante da Logica que contribui com um dos componentesmatematicos que permitem a existencia e funcionamentodas chamadas linguagens naturais.

Examinemos esses elementos um pouco mais de pertoa comecar pela parte da Logica de Predicados que nosinteressa no momento.

15.3 Logica de Predicados

No contexto que nos interessa, um predicado e umaaplicacao matematica (semelhante as funcoes numericas)com imagem em valores logicos. Em uma linguagem maisacessıvel, podemos dizer que uma aplicacao (ou funcao) ecomo maquinas nas quais introduzimos algo, que e trans-formado em outra coisa. Vejamos, por exemplo, a ex-pressao y = f(x). O sımbolo f representa uma funcaoque recebe um numero x e o transforma em um numeroy. Em uma situacao mais geral, em que nem x e nem yprecisam ser numeros, f e uma aplicacao.

Um predicado e uma aplicacao que “transforma” umsujeito em um valor logico, ou seja, verdadeiro ou falso.Vejamos um exemplo. Considere a seguinte afirmacao: “ATerra nao possui atmosfera.” Aqui, o sujeito e “A Terra”e o predicado e “nao possui atmosfera”. Para fazer umvınculo entre esse conceito e a notacao que usamos nospassos do teorema ontologico de Godel, podemos colocaressa frase na notacao prefixa:

nao possui atmosfera(A Terra).

Ou, para usar sımbolos mais compactos, ϕ =“nao possuiatmosfera”, x =“A Terra”. Assim, a frase passa a serexpressa da seguinte maneira:

ϕ(x).

Note-se que a notacao pos-fixa (o predicado vem aposo sujeito) do portugues tambem e usada em algumas lin-guagens formais algorıtmicas, como RPL, por exemplo.Nessa notacao, a mesma frase seria expressa como xϕ,com a mesma estrutura do portugues.

Voltando ao ponto principal, neste exemplo ϕ e um pre-dicado e x e um sujeito. Neste exemplo especıfico, a ver-dade e que ¬ϕ(x), isto e, a afirmacao ϕ(x) e falsa.

Temos tambem predicados de predicados, com uma es-trutura do tipo P [ϕ(x)] ou apenas P (ϕ). Isso equivale afazer afirmacoes sobre predicados.

Outro detalhe importante e que afirmacoes falsas saovalidas para coisa nenhuma. Por exemplo, podemos dizerque todo numero real simultaneamente menor do que 3 emaior do que 5 e tambem menor do que 5:

∀x ∈ R(x < 3 ∧ x > 5)→ x < 5 .

Na verdade, nao existe um numero real menor do que 3e maior do que 5, de forma que seja qual for a afirmacaoque fizermos depois, ela se aplicara a coisa nenhuma, e aexpressao final sera verdadeira como consequencia. Emingles, usamos a expressao “vacuous truth” para essa ca-tegoria de afirmacoes. Precisaremos disso para entenderum dos passos da demonstracao do teorema.

15.4 O Conceito de Axioma

Outro conceito importante que precisamos entender an-tes de entrar na Logica Modal e o de axioma. Em Filosofia,e comum considerar um axioma como sendo uma verdadeobvia, com a qual todos concordam e que pode ser usadacomo base em uma linha de raciocınio. Ate mesmo algunsmatematicos pensam dessa maneira. A rigor, porem, essaideia e extremamente perigosa e leva a equıvocos gravesem diversas situacoes. O correto e definir axioma como umitem de uma definicao, um delimitador de contexto. Veja-se, por exemplo, o conceito de grupo que apresentamos nasecao 7. Cada um daqueles itens e um axioma. Nenhumdeles e uma verdade universal obvia. Todos eles apenasservem para especificar o que chamamos de grupos. Dessaforma, podemos afirmar com certeza que todas aquelascaracterısticas sao validas para grupos por definicao. Sedependermos de partir do que “parece obvio”, cedo outarde incorreremos nos mesmos erros que se cometem fre-quentemente na Filosofia.

O teorema ontologico de Godel tem sido criticado e umadas crıticas afirma justamente que nem todos os axiomasque definem a Logica Modal sao verdades aceitas por to-dos. Entretanto, conforme explicamos, axiomas nao temcompromisso nem com o obvio e nem com verdades univer-sais. Apenas especificam o contexto no qual sao validos.

15.5 Logica Modal

Feitas essas consideracoes preliminares, podemos agoraconversar um pouco sobre Logica Modal. Na verdade,existem algumas variantes de estruturas que refletem as-pectos da Logica Modal, interessantes para destacar dife-rentes casos particulares nessa area. Trataremos primeirode alguns conceitos basicos e depois mencionaremos os axi-omas que especificam a versao de estrutura que usaremos.

Voce ja parou para pensar como seria sua vida se vocetivesse feito escolhas diferentes em alguns momentos deci-sivos? Se pudesse voltar no tempo, tentaria mudar algo?E se mudasse o passado e retornasse ao presente, aindaestaria no mesmo mundo ou em uma realidade paralelana qual as coisas sao um pouco diferentes? Independen-temente de isso ser possıvel ou nao, realidade ou fantasia,

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voce pode usar essa ideia de realidades alternativas paraentender Logica Modal.

Imagine muitas realidades paralelas. O que e verdadeem uma delas, pode nao ser verdade em outra. Por exem-plo, em algumas delas, o Brasil ganhou de 7 × 1 da Ale-manha em 2014. Em outras foi exatamente o contrario.Em outras ainda, esses paıses nem chegaram a competirentre si. Autores de material didatico sobre Logica Modaltem chamado essas “realidades alternativas” de mundospossıveis. A rigor, o conceito e mais rigoroso do que este,mas a ideia basica e a mesma para nossos fins praticos.

Existem afirmacoes (proposicoes) simples, atomicas, eafirmacoes compostas. Uma afirmacao atomica nao podeser subdividida em afirmacoes parciais. Afirmacoes com-postas sao combinacoes de afirmacoes atomicas. Umexemplo de afirmacao composta e “a grama e azul e o ceue amarelo”. Esta e formada por duas atomicas: “a gramae azul”, “o ceu e amarelo”. Elas aparecem combinadas naafirmacao composta pela operacao logica e.

Podemos organizar as afirmacoes atomicas de maneiraa formar uma sequencia infinita:

P ≡ [P0, P1, P2, P3, . . .] .

Em correspondencia com essa sequencia de proposicoes,podemos organizar conjuntos de mundos possıveis nosquais cada proposicao atomica e verdadeira:

P ≡ [P0, P1, P2, P3, . . .] .

O conjunto Pi (com i sendo qualquer inteiro nao-negativo) contem apenas os mundos nos quais a proposicaoatomica Pi e verdadeira. Ou seja, se Pi e valida em ummundo α, entao α ∈ Pi e a recıproca e verdadeira.

Neste contexto, um modelo consiste no par

M ≡ 〈M, P 〉

em que M e o conjunto de todos os mundos possıveis e Pe a sequencia de mundos possıveis definida acima, sendoque cada Pi ⊂M .

A seguinte expressao significa que A e uma afirmacaovalida (verdadeira) no mundo possıvel α do modelo M:

|=Mα A .

Feita esta introducao conceitual, podemos expressaraxiomas que usamos para definir a linguagem e o escopodo que faremos no ambito da Logica Modal.

1. |=Mα Pi ⇔ α ∈ Pi, ∀i ∈ N . (Relacao entre P e P .)

2. |=Mα > . (Definicao do sımbolo de verdadeiro.)

3. ¬ |=Mα ⊥ . (Definicao do sımbolo de falso.)

4. |=Mα ¬A ⇐⇒ ¬ |=Mα A .

5. |=Mα A ∧B ⇐⇒(|=Mα A

)∧(|=Mα B

).

6. |=Mα A ∨B ⇐⇒(|=Mα A

)∨(|=Mα B

).

7. |=Mα A → B ⇐⇒(|=Mα A

)→(|=Mα B

).

8. |=Mα A↔ B ⇐⇒(|=Mα A

)↔(|=Mα B

).

9. |=Mα �A ⇐⇒ ∀β ∈M |=Mα A .

10. |=Mα ♦A ⇐⇒ ∃β ∈M |=Mβ A .

Os dois ultimos axiomas sao de especial importancia,pois definem � (necessidade) e ♦ (possibilidade). Tradu-zindo, �A significa que A e verdade em todos os mundospossıveis (A e necessariamente verdade) e ♦A significa queA e verdade em pelo menos um mundo possıvel (A e pos-sivelmente verdade).

15.6 Traducao do Teorema

Com a introducao que fizemos, ja podemos ter uma ideiado que diz cada clausula da sequencia que leva a conclusaodo teorema.

Os itens A1, A2, A3, A4 e A5 sao axiomas. E im-portante lembrar que axiomas sao itens de uma definicao.Estes axiomas em particular definem um certo predicadoespecial P . Resulta que P pode ser entendido como umaperfeicao absoluta, ou algo absolutamente bom, isto e,algo positivo em todas as circunstancias, todos os mun-dos possıveis. Por exemplo, se x tem uma caracterısticaϕ, expressamos isso com ϕ(x). Se a caracterıstica ϕ e boaem todos os mundos possıveis, entao expressamos isso comP (ϕ).

Os itens T1, T2, T3 e T4 sao teoremas, sendo que oultimo e o teorema ontologico propriamente dito. O quevem antes serve apenas para prova-lo.

Os itens D1, D2 e D3 sao definicoes, isto e, cada umdeles e um axioma que basta para definr algo. Em outraspalavras, cada D e uma definicao composta por um unicoaxioma.

Vejamos agora o significado de cada item.

A1 {P (ϕ) ∧�∀x [ϕ(x)→ ψ(x)]} → P (ψ).

Primeiro axioma que define P . Se P se aplica a ϕ e sepossuir a caracterıstica ϕ sempre implica em possuira caracterıstica ψ, entao P se aplica a ψ.

A2 P (¬ϕ)↔ ¬P (ϕ).

Segundo axioma que define P . Se P e valido paraa negacao de uma caracterıstica ϕ, ele nao pode servalido para a caracterıstica ϕ.

T1 P (ϕ) → ♦∃x [ϕ(x)].

Teorema 1. Se P se aplica a uma caracterıstica ϕ,entao possivelmente existe um x que possui a carac-terıstica ϕ.

Para entender esta conclusao (teorema), vamos ima-ginar que P (ϕ), mas que nao exista x tal que ϕ(x).Neste caso, a expressao ∀x em A1 represenara o con-junto vazio e a expressao completa sera verdadeira(vacuous truth) para qualquer ψ, o que significa que

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P (ψ) (P se aplica a ψ). Em particular, ψ pode ser¬ϕ, o que significa que P se aplica tanto a ϕ quantoa ¬ϕ, o que viola A2. Como P respeita A2 por de-finicao, P so pode se aplicar a ϕ se em algum mundopossıvel existe um x que possui a caracterıstica ϕ.

D1 G(x) ⇐⇒ ∀ϕ [P (ϕ)→ ϕ(x)].

Definicao de divindade. Possuir a caracterısticaG sig-nifica possuir todas as caracterısticas absolutamenteperfeitas/boas. Essa e a definicao de ser divino. G(x)significa “x e Deus”.

A3 P (G)

Terceiro axioma que define P . Por definicao, P seaplica a caracterıstica de ser divino.

T2 ♦∃xG(x)

Teorema 2. E possıvel que Deus exista, isto e, empelo menos um mundo possıvel, Deus existe.

Este teorema prova que o ateısmo e falso (mas nao oagnosticismo). Por isso as vezes e chamado de teo-rema do nao-ateısmo.

Para provar isso, basta usar A3 em T1. Mais explici-tamente, como P se aplica a G (A3), podemos subs-tituir ϕ por G em T1 e obteremos imediatamente oresultado de que possivelmente existe x tal que x eDeus.

D2 ϕ essx⇔ ϕ(x) ∧ ∀ψ{ψ(x)→ �∀x [ϕ(x)→ ψ(x)]}.Definicao de essencia. Uma caracterıstica ϕ ser umaessencia de x significa que x possui essa caracterısticaϕ e que ela implica em todas as demais caracterısticasde x.

A4 P (ϕ)→ �P (ϕ)

Quarto axioma que define P . P e uma caracterısticaabsoluta, por definicao. Em outras palavras, estaclausula da definicao de P significa que P nao seaplica a uma caracterıstica ϕ a menos que possa seraplicado a ela em toda e qualquer circunstancia, issoe, em todos os mundos possıveis. Outra forma de en-tender isso e: se uma caracterıstica ϕ e boa/perfeitaem alguma situacao mas nao e em outra, entao¬P (ϕ), isto e, P nao se aplica a ϕ.

Algumas pessoas tem confundido isso com “colapsologico” e esse fenomeno tem sido atribuıdo a versaoda Logica Modal usada na demonstracao de T4. Es-clareceremos isso na subsecao sobre crıticas (15.7).

T3 G(x) → G essx.

Teorema 3. Se x e um ser divino, entao a divindadee uma essencia de x.

Para reproduzir essa conclusao, note as definicoes dedivindade (D1) e de essencia (D2). D2 implica em

que se x possui a caracterıstica G, disso decorrem to-das as demais (infinitas) caracterısticas, ou seja, pos-suir a caracterıstica G implica em possuir cada carac-terıstica ϕ para a qual P se aplica. Isso e precisamenteo que se define como sendo uma essencia.

D3 E(x) ⇐⇒ ∀ϕ [ϕ essx→ �∃xϕ(x)].

Definicao de ser essencial: x possuir a caracterısticade ser essencial (E) significa que, para toda a ca-racterıstica que for essencial para x, necessariamenteexiste alguma entidade que possui aquela carac-terıstica.

A5 P (E).

Quinto axioma que define P . P se aplica a carac-terıstica de ser essencial (E).

T4 �∃xG(x).

Teorema 4, que e o teorema ontologico propriamentedito: necessariamente existe x tal que x e divino.Em outras palavras, Deus existe em todos os mundospossıveis. Ainda de outra forma: nao existe possibi-lidade de Deus nao existir.

Para provar este teorema, note que, por definicaode G (D1), G(x) implica em que x possui todasas caracterısticas absolutamente perfeitas, ou seja,P (ϕ) → ϕ(x). Isso se aplica inclusive a caracterısticaE (A5), de ser essencial. Ou seja, G(x) → E(x).Alem disso, em T3 vimos que G ess x. De acordocom D3, isso implica em T4 e essas conexoes provamo teorema.

15.7 Crıticas

E importante lembrar que teoremas e argumentos co-muns nao sao coisas equivalentes que podem ser tratadasem pe de igualdade. Argumentos baseados em premissasfilosoficas aparentemente seguras tem sido demonstradoserrados de vez em quando. Esse problema nao ocorre comteoremas demonstrados corretamente.

Um argumento sugere alguma coisa. Um teorema provaalguma coisa e deveria encerrar uma disputa quando en-tendido. Sera que nao existem ateus que conhecem esteteorema? Sim, existem. Como podem continuar ateus?Bem, muitas vezes as preferencias pessoais falam maisalto do que a racionalidade e acabam travestindo-se de“razoes” para seguir seu caminho.

Conversei um pouco sobre esse teorema com ateus queconheco, mas nao todos ao mesmo tempo. Encontrei umpadrao curioso no comportamento de quase todos. Pri-meiro, acham que deve haver algo de errado com a de-monstracao do teorema. Quando explico que a prova doteorema foi confirmada ate mesmo por softwares para evi-tar erro humano [5] (DOI:10.3233/978-1-61499-419-0-93),passam a questionar a propria Matematica e (em casosem que conheciam o vınculo entre Matematica e Ciencia)a duvidar da propria Ciencia! Isso me surpreendeu, pois

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sao pessoas que eu considerava racionais. Diziam seguiras evidencias, mas nao aceitaram uma prova quando lhesfoi apresentada, pois ela chocava-se com o que preferiamacreditar. Uma dessas pessoas parou por um momentode questionar a Matematica e foi fazer uma pesquisa nainternet. Voltou dizendo que estava tudo bem, que haviaentendido qual era o problema e nao quis mais falar sobreo assunto. O que aconteceria se ele explicasse o contra-argumento que encontrou e eu mostrasse que o arguentoestava errado? Aparentemente, ele nao quis correr esserisco. O que sera que ele encontrou em sua rapida pes-quisa e por que ele aceitou esse resultado tao rapidamentee foi tao cetico com o teorema ontologico?

Veremos agora uma amostra das mais fortes “razoes”apresentadas por alguns para nao aceitar o teorema on-tologico.

15.8 O Enigma de Epicuro

Tambem conhecido com paradoxo de Epicuro.A ideia e mais ou menos a seguinte:

• Deus e bom e onipotente por definicao.

• O mal existe.

• Se Deus e bom e nao elimina o mal e porque nao pode,ou seja, nao e onipotente.

• Se Deus e onipotente e nao elimina o mal e porquenao quer, o que significa que Ele nao e bom.

• Segue-se que a existencia do mal e incompatıvel coma existencia de um ser que e ao mesmo tempo bom eonipotente.

• A existencia do mal implica na nao-existencia deDeus.

A primeira vista, isso parece uma prova de que Deus naoexiste, mas e apenas um argumento com diversos erros deraciocınio.

Existem diversas premissas que fundamentam a linhade raciocınio de Epicuro e seus seguidores e nem todassao validas. Vejamos algumas.

1. Onipotencia significa poder fazer absolutamente tudo,ate o absurdo.

Nessa concepcao, se Deus e onipotente, entao Elepode criar uma pedra tao pesada que nem Ele mesmopode carregar. Mas se Ele nao pode carregar a pedra,entao nao e onipotente, o que nega o ponto de par-tida do raciocınio. Isso significa que essa definicao deonipotencia e absurda. Em outras palavras, trata-sede uma definicao errada (sim, ate definicoes podemestar erradas).

Onipotencia e poder maximo, nao a capacidade de serabsurdo.

2. Se Deus deseja eliminar o mal, o processo de eli-minacao e instantaneo, ou seja, o mal e extinto noexato momento em que iria iniciar.

Uma variante dessa ideia falaciosa e a de que Deuspoderia regular as condicoes iniciais do universo e asleis da realidade de tal maneira que seria impossıvelsurgir o mal.

No caso da eliminacao instantanea do mal, isso e umpressuposto sem qualquer base solida. E se o processode eliminacao do mal nao e instantaneo e estamos vi-vendo justamente em um perıodo assim? Na verdade,e exatamente isso o que a Bıblia ensina.

Em ambos os casos, trata-se de um pressuposto sim-plista e ingenuo, pois apoia-se em outras premissasfalsas, como os exemplos a seguir.

(a) Toda e qualquer lei da realidade esta aberta amanipulacao divina. Isso e falso.

Se isso fosse verdade, Deus poderia transformaro absurdo em algo logico. A contradicao em algovalido. A incoerencia em norma. Mas a natu-reza divina nao e assim. O teorema ontologicoimplica em que Deus e o Ser Maximo coerente.Isso, por sua vez, implica em que existem regraslocais, dependentes de circunstancias e que haregras basicas, imutaveis e validas em todos osmundos possıveis.

(b) Dado um sistema que se modifica com o tempo,pode-se obter qualquer sequencia desejada de es-tados pela manipulacao de condicoes iniciais econdicoes de contorno. Isso e falso.

Ver 17.2. Nao se pode obter qualquer resultadodesejado a partir da manipulacao de condicoesiniciais e condicoes de contorno.

Nao faz sentido usar um simples argumento para con-testar um teorema. Seria como um ser humano tentarimpedir o movimento de um guindaste so com a propriaforca fısica.

15.9 Axiomas Nao-autoevidentes

Uma das crıticas ao teorema ontologico afirma que osaxiomas usados na demonstracao nao sao obvios, autoevi-dentes. Seriam, portanto, questionaveis, o que tornaria ademonstracao do teorema nao-confiavel.

E comum que as pessoas pensem em axiomas como ver-dades obvias, que todos aceitam sem questionar e por issopodem ser usados em provas de teoremas. Essa ideia einaceitavel se quisermos que as provas sejam provas, istoe, confiaveis sem sombra de duvida. Uma “verdade obvia”para uns pode ser uma “falsidade obvia” para outros. O“obvio” e relativo, depende da experiencia das pessoas epode basear-se em generalizacoes equivocadas, como te-mos visto com frequencia em premissas usadas em linhasde raciocınio filosofico.

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Precisamos encarar cada axioma como sendo um itemde uma definicao. O axioma sera automaticamente validopara aquilo que ajuda a definir. Nao precisa ser obvioe nem universal. Seu unico compromisso e com o que edefinido por ele.

Os axiomas usados na demonstracao do teorema on-tologico de Godel sao itens que definem os elementos usa-dos ali e nao precisam ser obvios e muito menos verdadesuniversais.

Ha um aspecto que foi questionado de maneira legıtima:sera que os axiomas usados sao consistentes, isto e, naogeram contradicoes? E a prova e realmente solida? Essasquestoes foram investigadas em [5] e o resultado foi que,sim, a prova e valida e os axiomas sao consistentes.

Resumindo, essa linha de crıtica parte de um conceitodescabido de axioma e mesmo a resposta ao aspecto validoda questao e favoravel a validade da prova.

15.10 Colapso Logico, L.M.S5

O argumento que parece mais convincente contra a de-monstracao deste teorema e o de que ela se baseia naLogica Modal S5, que sofre de um problema de colapsologico.

Primeiro, precisamos esclarecer o que se entende porcolapso logico. Imagine que qualquer afirmacao que sejaverdadeira em um mundo possıvel acaba sendo necessa-riamente verdadeira, isto e, vale em todos os mundospossıveis. Se em um mundo possıvel toda a vegetacaoda Terra e vermelha, isso tem que ser verdade em todos osmundos possıveis, incluindo o nosso. Em sımbolos formais,

∀A(A → �A) .

O que ha de errado com este argumento? Pelo menosduas coisas.

1. Existe uma famılia de estruturas chamadas de LogicaModal. Um desses membros e chamado de S5 e, se-gundo os crıticos, essa seria a versao usada pelo teo-rema. Mas isso e falso. A versao necessaria para pro-var o teorema e a KB, que nao possui colapso logico.

2. Nao existe colapso logico em nenhum dos axiomasusados na demonstracao do teorema ontologico deGodel. A coisa mais parecida com isso que encon-tramos na demonstracao e o axioma A4.

A4 diz que, por definicao, P e tal que so e valido parauma propriedade ϕ em um mundo possıvel se for validopara ϕ em todos os mundos possıveis. Isso faz parte dadefinicao de P porque e a caracterıstica de ser absoluta-mente perfeito/bom. A palavra “absolutamente” signi-fica exatamente isso: se vale em um mundo possıvel, valeem todos.

Mas note que isso nao e dito de qualquer predicado, masapenas de P justamente por ser ele absoluto por definicao.

Se pensassemos, ingenuamente, que tudo o que e abso-luto sofre de colapso logico, entao A4 seria um caso de

colapso logico, bem como os itens seguintes que fazem usode A4. Mas isso seria um conceito equivocado de colapsologico.

Resumindo, esse argumento nao procede.

16 Consideracoes Finais

Descobrimos constantemente coisas novas em termos deestruturas algebricas e suas consequencias, inclusive parao funcionamento do mundo fısico. Essas coisas nos levama descobrir cada vez mais caracterısticas da Matematicaque nao conhecıamos. Nao existe uma forma de definirMatematica de maneira a abranger tudo o que sabemos,muito menos o que ha para saber. Uma das coisas maisingenuas e inacuradas que podemos fazer e confundir Ma-tematica com as linguagens que usamos para estuda-la.Seria o mesmo que definir Terra como sendo o mapa desua cidade. Linguagens sao apenas mapas de parte darealidade.

Tudo o que temos aprendido sobre as regras por trasdas leis fısicas nos diz que a Matematica e a propria es-trutura da realidade (nao apenas fısica), como ja entendiaRoger Bacon. Ao tentarmos aplicar metodos matematicosa qualquer area de estudo, temos visto que e possıvel,desde que tenhamos suficientes conhecimentos. Infeliz-mente, esse nao e o caso da maioria das pessoas, incluindocientistas. A formacao em Matematica e quase sempremuito precaria, mesmo em boa universidades. Porem, naodevemos deixar nossa ignorancia ditar o que e e o que naoe possıvel fazer com metodos matematicos, muito menosdeixa-la impor fronteiras para a Matematica.

17 Apendice

17.1 Exemplo de Raciocınio Formal

Para ilustrar o raciocınio formal, usaremos um exemplonumerico, por serem numeros mais facilmente identifica-dos como fazendo parte da Matematica para a maioriadas pessoas. Por volta do inıcio do seculo XX, foi publi-cado no Brasil um enigma que comentaremos a seguir eaplicaremos o raciocınio formal para resolve-lo.

Um gaviao encontrou um bando de pombos e disse:— Bom dia, meus 100 pombinhos!Um dos pombos respondeu?— Com outro tanto de nos, e a metade de nos, e a

quarta parte de nos, e contigo, meu gaviao, seremos 100.Podemos resolver esse enigma por tentativa e erro, sem

grandes problemas. Mas trata-se de uma oportunidadepara exercitarmos o raciocınio formal. Para isso, primeiroexpressamos o problema em uma linguagem propria paraesse fim. Usaremos a linguagem aritmetica mais comumatualmente. O enunciado pode ser traduzido para a se-guinte expressao, sendo x o numero de pombos:

x+ x+x

2+x

4+ 1 = 100 .

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O proximo passo consiste em usar as regras desta lingua-gem, que refletem diretamente os axiomas e teoremas daAritmetica, para encontrar os valores de x que satisfazema essa igualdade (equacao). O significado de x e irrelevantenesta etapa.(

1 + 1 +1

2+

1

4

)x+ 1− 1 = 100− 1 ,

(2 +

1

2+

1

4

)x = 99 ,(

8

4+

2

4+

1

4

)x = 99 ,

11

4x = 99

11x = 99× 4 ,

x =��999 × 4

��11,

x = 9× 4 ,

x = 36 .

Esta foi a etapa do raciocınio formal. E importante lem-brar que este tipo de procedimento nao se aplica apenasa numeros, mas a qualquer tipo de sistema cujas regrassejam expressas por uma linguagem formal adequada.

O passo final consiste em usar o dicionario inicial, quefez a conexao entre o problema original e a linguagem for-mal, e traduzir o resultado para a linguagem do problemaproposto. Neste caso, o dicionario possui apenas um item:x e o numero de pombos. E o raciocınio formal nos levou aconcluir que x = 36. Na linguagem do problema original,o bando consistia de 36 pombos.

17.2 Condicoes Iniciais e de Contorno

A tıtulo de nocao preliminar, considera-se uma lei fısicacomo sendo simplesmente uma regularidade do mundofısico. Ao usarmos metodos da Ciencia para estudar essasleis, descobrimos que elas sao algo muito mais especıfico:sao relacoes entre grandezas, tipicamente envolvendo de-rivadas (do Calculo Diferencial, daı o ser esta estruturaindispensavel ao estudo de leis da natureza). Mais es-pecificamente, as leis fısicas estao intimamente ligadas aequacoes diferenciais.

Existem diversas famılias de equacoes diferenciais, cadauma com seus metodos de obter solucoes. Muitas dasequacoes das leis fısicas fazem referencia ao espaco e aotempo. Nesses casos, e comum resolvermos as equacoesusando condicoes iniciais e condicoes de contorno, alem deoutras propriedades do sistema. Um exemplo disso e umacorda de violao. Usamos a densidade e tensao da cordapara calcular a velocidade v de propagacao de ondas nela.A equacao que rege a propagacao das ondas e

∂2u

∂t2= v2∇2u .

No caso de apenas uma dimensao de espaco relevante aoproblema,

∂2u

∂t2= v2

∂2u

∂x2.

O que significa resolver esta equacao? Significa encon-trar a funcao u(x, t) que descreve o deslocamento de cadaponto da corda e em cada instante do tempo a partir de umcerto instante. A equacao em si admite infinitas solucoes,mas nosso objetivo e descobrir qual delas se aplica a nossoproblema em particular.

Se essa corda tem comprimento `, podemos usar umsistema de coordenadas no qual uma das extremidadesesta em x = 0 e a outra em x = `. E a corda esta fixanesses pontos. Estas sao condicoes de contorno.

A ultima informacao necessaria sao as condicoes iniciais.Isso e dado pelo formato que a corda tinha no instanteinicial, isto e, u(x, 0).

De posse dessas informacoes, conseguimos determinaru(x, t) para todos os pontos da corda em cada instante detempo t ≥ 0.

Ja que a equacao admite infinitas solucoes e podemosfacilmente encontrar a solucao que corresponde ao nossoproblema, ficamos com a sensacao de que podemos fazer oprocesso inverso: dada uma funcao u(x, t) qualquer, pode-mos encontrar condicoes iniciais e condicoes de contornoque serao capazes de gerar tal resultado. Essa concepcaoe falsa por uma razao bem simples: embora a equacaodas ondas admita infinitas solucoes, ela nao admite qual-quer solucao. Nem toda funcao u(x, t) satisfaz a equacaodiferencial das ondas.

Referencias

[1] GoDEL, K. uber formal unentscheidbare satze derprincipia mathematica und verwandter systeme, i.Monatshefte fur Mathematik und Physik, p. 173–198, 1931.

[2] BACON, R. Opus majus. 1267.

[3] MARCACCI, F. Roger bacon’s mathematics: demons-trative system and metaphysics in the communiamathematica. Franciscan Studies, v. 75, p. 407–421, 2017.

[4] GALILEI, G. Il saggiatore. 1623.

[5] CHRISTOPH BENZMuLLER, B. W. P. Automatinggodel’s ontological proof of god’s existence withhigher-order automated theorem provers. ECAI,2014.

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