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MARIA DA CONCEIÇÃO NASCIMENTO CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE: PROBLEMATIZANDO PRÁTICAS / DESNATURALIZANDO SUJEITOS E LUGARES

CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE · foram utilizadas, pelos colonizadores, como expressão de “atraso” dos chamados povos “primitivos”. Todavia, os caminhos da

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MARIA DA CONCEIÇÃO NASCIMENTO

CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE:

PROBLEMATIZANDO PRÁTICAS / DESNATURALIZANDO SUJEITOS E

LUGARES

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

NITERÓI, DEZEMBRO DE 2005

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MARIA DA CONCEIÇÃO NASCIMENTO

CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE:

PROBLEMATIZANDO PRÁTICAS / DESNATURALIZANDO SUJEITOS E

LUGARES

Dissertação apresentada ao Departamento

de Psicologia da Universidade Federal

Fluminense como requisito parcial para a

obtenção do título de mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª Drª Cristina Rauter

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Niterói, Dezembro de 2005

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Banca Examinadora

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Profª Drª Cristina Mair Baros Rauter – Orientadora

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Profª Drª Cecília Maria Bouças Coimbra

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Profª Drª Lilia Ferreira Lobo

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Profª Dr ª Maria Palmira da Silva

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PROFª DRª VERA MALAGUTI BATISTA

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A meus pais

Luciano e Maria José

E a

Frei Fernando Geurtse (in memorian)

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AGRADECIMENTOS

Enumerar pessoas, grupos ou instituições que, de algum modo, contribuíram na

realização desta dissertação se apresenta para mim como uma tarefa assaz espinhosa. Seria

talvez mais sensato evitar nomeá-los para não cometer injustiças. Entretanto, não há como

evitar este risco.

Quero, em primeiro lugar, agradecer o Criador pelo Dom da vida. Fui aprendendo

com o tempo, que o Criador é entendido, nomeado e cultuado segundo as diferentes culturas.

Infelizmente, as distintas formas de entender e reverenciar a fonte de onde emana toda criaçâo

foram utilizadas, pelos colonizadores, como expressão de “atraso” dos chamados povos

“primitivos”. Todavia, os caminhos da vida levaram-me a aguçar a sensibilidade para o

respeito a todos , independentemente de seu credo. Isso para mim é obra do Criador, por isso

a Ele todo louvor e graças.

Agradeço minha família pelo incentivo, apoio e compreensão pela minha ausência

nos momentos alegres tais como aniversários, batizados, casamentos, etc, mas também nos

momentos tristes nos quais nossa falta é por vezes sentida.

Não vou fazer um relato dos caminhos por que passei até concluir esse trabalho,

isso seria enfadonho. Todavia há que se ressaltar o quão foi importante Ter acatado a sugestão

da Profª Lília Lobo de procurar o PENESB-UFF quando, ainda na graduação, falei do meu

interesse pela história do negro no Brasil.

Meu reconhecimento à Profª Iolanda Oliveira, coordenadora do PENESB pela

acolhida desde aquele momento e incentivo para fazer o Curso de Especialização Raça, Etnias

e Educação no Brasil e, posteriormente, o mestrado. Outrossim, não poderia deixar de

registrar meu agradecimento aos que sempre me atenderam com carinho e atenção nos

momentos em que recorri ao PENESB para imprimir meus trabalhos ou tomar um livro

emprestado.

Agradeço ao Grupo Tortura Nunca Mais, pela concessão de bolsa como auxiliar de

pesquisa e à Equipe Clínica Tortura Nunca Mais pelo interesse pelo meu tema de estudo.

Não poderia deixar de ressaltar a importância da equipe de educadores do

CEJOMM, e agradecê-la pela calorosa acolhida e produção conjunta de subsídios teóricos, em

especial a partir da criação do Grupo de Estudos sobre o qual comento no decurso deste

trabalho. Igualmente agradeço à equipe do CRIAA-UFF com a qual tive a oportunidade de

discutir acerca do descaso de sucessivos governos quanto ao cuidado com os jovens e

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adolescentes empobrecidos. Descaso manifestado pelos parcos recursos destinados à

manutenção dos serviços ali implementados.

Agradeço à Profª Cristina Rauter, pela paciência e incentivo nos meus momentos

de cansaço desânimo e dificuldades decorrentes dos problemas de saúde vividos nos últimos

dois anos. Quero também pontuar que reconheço o seu empenho em acolher-me como sua

orientanda.

Ao meu querido amigo Celso minha gratidão pela presteza em me ajudar desde a

elaboração do projeto inicial e pela paciência em socorrer-me em minhas dificuldades

técnicas. Agradeço-lhe pela formatação final do trabalho.

Ás amigas Ana Cristina e Mônica pela insistência e incentivo para inscrever-me

para seleção do Mestrado em Psicologia.

Finalizo desculpando-me por uma possível omissão, o que penso poder corrigir

dedicando a todos amigos e colaboradores, com muito carinho, o poema de abertura desta

dissertação, como forma de externar o meu agradecimento.

Um agradecimento especial

a Luciano e Maria José,

Meus pais e à Frei

Fernando Geurtse (im

memoriam). .

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VOZES – MULHERES

(Conceição Evaristo)

A voz de minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio

ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

No fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado rumo

à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e fome.

A voz de minha filha

recobre todas as vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

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RESUMO

A negação e o silêncio em torno do racismo e, por outro lado, a existência do racismo

enquanto prática, no Brasil, são aspectos sem dúvida presentes também nas instituições de

atendimento psicológico à população. Propusemo-nos a analisar a discriminação racial

enquanto prática, em sua presença singular no quotidiano da sociedade brasileira, buscando

pensá-la não apenas como discurso, mas como um dos componentes nos processos de

produção de subjetividade. Tivemos como objetivo contribuir para a efetiva inclusão, no

campo das práticas psi e em especial, no campo da psicologia clínica, da questão racial,

aspecto geralmente ausente na literatura sobre o tema.

Palavras-chaves: Racismo – Produção de Subjetividade – Clínica Transdisciplinar.

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ABSTRACT

The denial and silence that surrounds racism and the existence of racism as a practice in Brazil are aspects also present in psychological

practice in institutions directed to the general population. We intended to analyze racial discrimination in Brazil as a practice, in its singular

presence in every day experience in Brazilian society. We analyzed racism not only as a discourse but also as one of the components of subjectivity production. We expect to contribute this way to the effective inclusion of the subject in the field of “psi” practices and mainly in

the field of clinical psychology, where racism has been generally absent in current bibliography.

Key-words: Racism – Subjectity Production – Transdisciplinary clinics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO P. 01

PARTE I - Racismo e sociedade brasileira: uma discussão oportuna P. 18

1- Sobre os conceitos de raça e racismo P. 18

1.1- Alguns usos e costumes dos termos raça e racismo P. 18

1.2- O darwinismo e uma nova conceituação de raça P. 20

1. 3- Racismo sem “raça” P. 27

1. 4- O racismo como “arma política” P. 29

2. Implicações das conceituações sobre raça na sociedade brasileira P. 36

2.1 – Racismo no Brasil: realidade ou fantasia. P. 36

2. 2 -Negação do preconceito e da discriminação raciais P. 41

2. 3 - Brasil – “paraíso racial” P. 47

2. 4 – O mito da democracia racial P.49

PARTE II - O discurso da “raça” e a produção de subjetividade P. 59

1- Clínica e relações raciais: uma articulação ainda incipiente P. 59

1.1. Uma articulação ainda incipiente P. 59

1. 2- Quando o silêncio fala mais alto P. 73

1. 3 – Subjetividade individuada: a marca do nosso tempo P. 82

1. 4- A força dos estereótipos P. 86

1. 5- Uma situação desconfortável, porém não incomum P. 90

3 – APOSTANDO NA POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE OUTROS MUNDOS P. 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS P. 107

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Introdução

Tecer um pequeno comentário ou fazer um pronunciamento mais amplo acerca do

racismo e da produção de subjetividade requer, de quem a isto se propõe, um certo cuidado

para não cair em formulações simplistas, ou num certo pessimismo frente à dureza da

realidade vivida por indivíduos ou setores da sociedade que sofrem discriminação por

questões de “raça”. O contingente dos que vivem esta realidade ainda é bem expressivo no

nosso país. Infelizmente, não só os dados oficiais estão aí para comprovar, como, vez por

outra, os jornais noticiam flagrantes de racismo, em episódios que vão desde a interdição de

entrada em alguns lugares até a prisão ou mesmo morte de alguém simplesmente por ser

negro, como foi o caso do dentista negro morto pela PM de São Paulo (O Globo, 10/02/04).

Evidentemente que, em quaisquer das situações mencionadas, quase sempre há a tentativa de

negar a ocorrência de racismo, o que vem a dificultar, inclusive, a transformação desta

realidade, como veremos no decorrer deste trabalho.

A persistência de uma ordem social na qual os negros, em sua maioria, têm

permanecido nos estratos inferiores da sociedade, aliada à insistência em não tomar isso

como um claro sinal de que vivemos numa sociedade hierarquizada, impede-nos muitas vezes

de proceder a uma análise mais acurada da realidade. De sorte que corremos o risco de

cairmos no conformismo quanto à possibilidades de mudança dessa ordem.

Queremos ressaltar que, no percurso deste trabalho, nos foi difícil demonstrar que

a raça ou cor das pessoas são elementos importantes a serem considerados porque foram e

são, ainda hoje, fatores utilizados para legitimar e perpetuar as desigualdades sociais.

Simplesmente porque fomos levados a tomar as categorias “raciais” como naturais quando, na

verdade, são uma construção social.

Por esse motivo, entendemos a importância, não só de expor as razões que nos

levaram à escolha do tema deste trabalho, como fazer um breve relato do caminho percorrido

na execução do mesmo. Optamos assim proceder por entender que nossas escolhas são fruto

de nossas vivências, são efeito das idéias e juízos que fazemos acerca do realidade da qual

fazemos parte. Idéias e juízos que, de acordo com as circunstâncias em que emergem,

extrapolam os limites de nossas existências particulares ao ponto de a academia não poder

mais ignorá-las. É exatamente aí que reside a importância de estarmos cientes de que estamos

propondo como objeto de estudo algo que tenha relevância para a sociedade na qual estamos

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inseridos. Como nos aponta LOURAU : “a instituição acadêmico-científica nos faz escrever

e escrevemos para sermos validados e valorizados por ela”1

É mister que acreditemos firmemente no que pretendemos realizar; o que não

significa fecharmo-nos no nosso ponto de vista, mas estar abertos a tudo que venha contribuir

para o nosso crescimento tanto a nível pessoal como coletivo, considerando que se tratam de

instâncias inseparáveis. Possivelmente tenha sido este o motivo que nos fez insistir na

pertinência do tema, porque ele fala da nossa implicação enquanto sujeitos históricos;

empreendimento nem sempre tranqüilo, porque quase sempre “é muito dolorosa a análise de

nossas implicações; ou melhor, a análise dos „lugares‟ que ocupamos, ativamente, neste

mundo”2

Sendo assim, consideramos oportuno registrar os fatos que foram marcantes na

feitura desta dissertação, posto que, sem sombra de dúvida, foi a partir das críticas, das

intervenções de colegas e professores, da discordância, aprovação e ceticismo de tantos

outros, e de muita persistência de nossa parte que o trabalho foi sendo elaborado.

Há três momentos importantes na construção deste trabalho que achamos

necessário destacar:

1. O projeto apresentado para a prova de seleção para o Mestrado em Psicologia;

2. A revisão bibliográfica sobre o tema;

3. A formulação atual do trabalho.

Com a denominação inicial de Recurso dos Excluídos: Grupos de Apoio e

Produção de Subjetividade, o projeto era uma tentativa de discutir a realidade de muitos

brasileiros para os quais o acesso à educação e à saúde estão reduzidos à assistência de

diversas organizações da sociedade civil, tais como igrejas, associações de moradores,

sindicatos, clubes, etc. Em que pese o reconhecimento de que essas instituições foram e são

importantes na sociedade, chamamos a atenção para o fato de que, para os grupos sobre os

quais estamos nos referindo, o recurso a obras sociais é freqüentemente o único ao seu

alcance, posto que a oferta desses serviços pelo Estado sempre estiveram aquém das

necessidades da população. Assim, para a população negra, tornou-se comum dirigir-se às

igrejas e/ou às chamadas pessoas de boa vontade.

Importante marcar que a iniciativa deste projeto se deveu à constatação de ser

negra a maioria dos indivíduos na situação acima referida. Na verdade, o que nos movia era a

1 LOURAU, R. Análise Institucional e Prática de Pesquisa. UERJ, 1993.

2 IDEM, p. 14.

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constatação de que esse dado era quase sempre ignorado, ou melhor, não era

visto como elemento a ser considerado quando se discutia as dificuldades das pessoas

assistidas em melhorar suas condições de vida, ou mesmo de buscar soluções para as mesmas.

O fato de ser grande o contingente de negros vivendo em situações adversas e sendo atendido

nesses espaços é algo que precisa deixar de ser visto como natural para que a situação se

reverta.

Bem, aprovado o projeto, passamos para a fase de discussão de como viabilizá-lo.

Até esse momento, e aí se incluiu a revisão dos objetivos, sentimos que não estava bem claro

de que forma iríamos desenvolver o que tínhamos em mente. A única certeza que tínhamos

era de que a discussão se centraria em torno do racismo que permeia as relações sociais,

buscando discutir em que medida a clínica psicológica toma isso como um dado de realidade.

Houve, inclusive, questionamento sobre a pertinência do projeto na área de clínica, sob o

argumento de se tratava de um tema mais voltado para a área de exclusão social3, ao que

ponderamos, afirmando ser importante sua inclusão na área de clínica, por ser ali que ele é

também silenciado, tal como ocorre na sociedade em geral.

Na verdade, estava difícil falar ou escrever sobre a motivação de debater a questão

racial no mestrado. Uma coisa é certa, o racismo, tal como ele se manifesta na sociedade

brasileira, torna-se, por vezes, algo que ofusca a visão e confunde o pensamento. É

precisamente isto que procuramos mostrar ao longo deste texto, não sabemos se o

conseguimos.

Houve momentos em que chegávamos a pensar se valeria mesmo a pena insistir

em tal propósito; o que acabou se revelando em um paradoxo, porque era aí mesmo que nosso

desejo se fortalecia. Sentíamos ser necessário expurgarmos de nós mesmos o efeito nefasto do

racismo que vivenciamos em nosso país, o qual nos deixa em situação desconfortável se

insistimos em recusar admoestações tais como: “deixa isso pra lá!”; “com o tempo, com a

evolução da sociedade isso muda”; “será conveniente tocar em algo que não deveria ser

evidenciado?”

Estas, por mais absurdas que possam parecer, foram questões que se tornaram

subsídios para sustentar a decisão de não deixar pra lá, porque isto significaria:

. em primeiro lugar, deixar de denunciar uma injustiça que se mantém por

décadas.

3 Clínica e Exclusão Social são as duas áreas de concentração em Estudos da Subjetividade do Mestrado em

Psicologia da UFF.

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. em segundo lugar, a “evolução” da sociedade não significa necessariamente o

abandono de posições racistas. A invenção da “raça” e de seus pressupostos é bem recente na

história da humanidade, e ganha novos contornos à medida que evoluem as forças produtivas,

ou melhor, em que aumenta o fosso entre as nações mais ricas e as mais pobres, entre os “bem

sucedidos” e os “consumidores falhos”, à medida em que se investe na segurança privada

vergonhosamente chamada de pública.

. em terceiro lugar, trata-se de desconfiar do que acostumamos tomar como

natural. Não vemos como transformar nossa sociedade sem reparar a injustiça cometida contra

os afro-brasileiros. O racismo como uma prática erigiu monumentos aos grandes “heróis”

nacionais, dentre os quais alguns se notabilizaram pelo massacre de índios e quilombolas,

pela eliminação de lideranças de várias revoltas populares. Taxados de degenerados, loucos,

analfabetos, ignorantes, incultos, grande número de brasileiros foram calados em nome do

progresso e grandeza da nação.

Pensamos que o momento atual é propício para este debate, não só porque o tema

está em alta, mas porque é urgente que assim se proceda.

Necessário se faz não perder de vista que isso não é apenas resultado da

“evolução” da sociedade, como pensam alguns, mas efeito das lutas de muitos brasileiros que,

ao contrário do que comumente se alardeia, sempre denunciaram a injustiça e anunciaram

com suas ações a aurora de um novo tempo. Refiro-me aos quilombos, às irmandades de

negros, à imprensa negra, à Frente Negra Brasileira, ao Teatro Experimental do Negro, ao

MNU, e tantos outros. Todavia, não falamos apenas das ações grandiosas que se tornaram

notícias; incluímos aqui mulheres e homens que no seu dia a dia não se deixaram abater e, de

alguma forma, fizeram e fazem história. Aqui tudo conta, um gesto, uma palavra, um olhar,

um objeto guardado, uma história que se conta aos filhos, um modo de vestir, de organização

social, e até o próprio silêncio quando este evoca uma realidade de dor a ser vencida.

O que tem isso a ver com psicologia, com a clínica?

Tem que esse é o solo sobre o qual atuamos. As pessoas com as quais trabalhamos

- brancas ou negras - têm um histórico que as torna discriminadoras ou discriminadas, pessoas

que têm preconceitos ou que sofrem por causa deles. Ambas fazem parte da mesma realidade.

Como isso chega à clínica; ou não chega?

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Vai depender de como nós profissionais pensamos a sociedade em que vivemos,

de como trabalhamos os conteúdos curriculares propostos e impostos em nossas escolas, por

vezes carregados de preconceitos e “verdades” sobre os chamados elementos formadores do

povo brasileiro. Depende também de como nos apropriamos do que é veiculado na mídia e

das conclusões que tiramos sobre o que acontece na sociedade. É a partir de tudo isso que

formulamos nossas opiniões sobre os moradores das ruas, das favelas, dos condomínios

luxuosos, do campo, das cidades, etc.

Este trabalho não se propõe a falar bem dos negros e mal dos brancos e vice-

versa; pensamos que pode contribuir para problematizar o que se passa entre nós. Estamos

todos submetidos ao mesmo modo de subjetivação capitalista, cujo objetivo é apagar toda e

qualquer expressão de singularidade, homogeneizar nossas atitudes, pasteurizar nossas

relações, isto é, nos tornar imunes a quaisquer sinais de contaminação pelo que acontece com

quem está ao nosso lado. Modo de subjetivação que, ao estabelecer fronteiras entre ricos e

pobres, negros e brancos, moradores do campo e da cidade, das favelas e do asfalto, cria a

ilusão da existência de mundos distintos, autônomos. Todavia, fazemos parte de uma mesma

realidade.

Neste trabalho, não estamos nada objetivos, no sentido durkeiniano da palavra,

pois estamos implicadas até a medula em tudo que escrevemos, é claro que o fizemos a partir

de fontes respeitáveis e de autores que são parceiros na luta por um mundo de respeito às

diferenças. Isto vem confirmar que se trata de uma escolha política, à medida em que optamos

por uma abordagem teórica que nos fortalece em nossas posições.

Portanto, nos reportaremos ao referencial teórico que nos permite uma

compreensão do racismo como uma prática, na perspectiva de Michel Foucault e da

subjetividade a partir da concepção de Guattari e Rolnik4.

Queremos ressaltar que tivemos dificuldade em encontrar subsídios teóricos que

nos permitissem analisar até que ponto, questões relativas ao racismo são discutidas ou

incorporadas no âmbito das práticas “psi”. Isto só veio reforçar o que já suspeitávamos, de

início, dado o silenciamento em torno deste tema na sociedade.

Sendo assim, concluímos ser necessário, principalmente para entender o modo

como esse tema tem sido tratado pelos profissionais “psi”: pensar os modos de subjetivação

capitalista; elaborar algumas considerações sobre o advento da psicanálise; verificar em que

medida os dispositivos clínicos incorporam dados relativos ao cotidiano de indivíduos que

4 As referências destes e dos demais autores consultados foram feitas imediatamente, em pé de página, após as

respectivas citações e no final do trabalho na lista de referências.

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vivenciam experiências dolorosas por causa de sua cor; problematizar as práticas

implementadas nos espaços de atendimento da população.

Sobre esses dois últimos pontos, ainda prevalece o silenciamento, não obstante

tratar-se de uma sociedade na qual é comum a ocorrência de casos de discriminação. O

silenciamento e a negação do racismo são, por excelência, o que caracteriza a sociedade

brasileira. Entendemos esta ordem social como uma construção histórica e é como tal que

deve ser tomada quando se discute os modos de subjetivação dominantes na sociedade

capitalista, tendo em vista que o silenciamento é também produtor de realidade. Sendo assim,

percebemos que talvez nossa contribuição não se restrinja apenas ao campo da saúde, mas

também ao campo da educação, ou quaisquer outros, cujos envolvidos estejam

comprometidos com o combate a quaisquer formas de discriminação.

Há, contudo, dois pontos que queremos ressaltar: Primeiramente deixar claro que

não tivemos a pretensão de escrever um manual sobre como tratar pessoas atingidas pela

discriminação racial. Antes, buscamos problematizar as práticas desenvolvidas nos locais

onde tivemos a oportunidade de estar presentes através da pesquisa, porque pudemos

inclusive participar de algumas atividades. Foram momentos em que, através do diálogo, da

discussão que tivemos acerca dos impasses decorrentes das dificuldades que os profissionais

enfrentavam no cotidiano, que pudemos, de alguma forma, intervir nesses espaços já que

nossa presença não se limitava a ouvir experiências e fazer relatórios para posterior análise.

Estávamos ali com o intuito mesmo de, respeitando o trabalho ali desenvolvido, dar nossa

contribuição sobretudo quando nos colocávamos não como “especialistas”, mas como

profissionais dispostos a pensar se os dados da realidade estavam ou não sendo levados em

conta nas práticas desenvolvidas nas instituições nas quais estivemos presentes. Assim,

chamamos a atenção para o caráter provisório de nossas apreciações e conclusões. Pensamos

que elas podem ser tomadas como material para outros desdobramentos, incluindo aí a revisão

dos nossos possíveis equívocos.

Neste ponto de nossa exposição é necessário esclarecer que nos referimos à

pesquisa Produção da Violência e Subjetividade Contemporânea: Construindo Dispositivos

Clínicos Transdisciplinares , coordenada pela Profª Cristina Rauter. Uma pesquisa realizada

numa parceria entre o Departamento de Psicologia da UFF e o Grupo Tortura Nunca Mais.

Como parte das atividades de observação participante da pesquisa, estivemos por

uma bom período presentes e atuando no CRIAA- UFF5. Ocasião em que tivemos

5 CRIAA - Centro Regional Integrado de Atendimento ao Adolescente.

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oportunidade não só de aproximação, mas de atuação junto ao grupo de mulheres – uma

cooperativa - constituída, em sua maioria, por mães de adolescentes e jovens atendidos

naquela instituição.

O interesse nosso como pesquisadores pelo trabalho desenvolvido no CRIAA

deveu-se ao fato de alguns jovens ali atendidos terem suas existências marcadas pela

passagem polícia ou pelo juizado da infância e adolescência, serem moradores de favelas , etc.

Nossa presença no CRIAA por um período mais extenso esteve relacionada ao

fato de que a pesquisa supra citada tinha como objetivo abordar a questão da violência ligada

à criminalidade cujos índices têm sido assustadores na atualidade. Vivemos em estado de

alerta constante o qual pode ser gerado a partir de experiência pessoal, (ser assaltado , por

exemplo) ou porque somos diuturnamente bombardeados com tais notícias através dos meios

de comunicação social. Entendemos que não se pode ignorar a criminalização de juventude

pobre quando o assunto é uso de drogas. Tratava-se de uma instituição que, na verdade,

atendia adolescentes e jovens com as características citadas acima.

No mesmo período em que estivemos ligados ao CRIAA tivemos a oportunidade

de conhecer uma outra instituição, o CEJOMM6, igualmente motivados pelo fato de ali

atender crianças e adolescentes pobres. Nossa inserção, neste caso, deveu-se também ao fato

de ali serem discutidas e trabalhadas questões relativas à realidade dos negros.

Percebemos que muitas crianças e adolescentes do CEJOMM e os usuários do

CRIAA têm realidades semelhantes quanto ao fato de serem empobrecidas e viverem sob

constante stress provocado pela presença e atuação da polícia e dos traficantes.

Duas realidades distintas que, no entanto, nos permitiram observar e constatar

especificidade do racismo brasileiro. O que fizemos a partir do relato das experiências e

debates sobre esse tema no CEJOMM e da ausência de discussão sobre o mesmo no CRIAA.

No CEJOMM, juntamente, com alguns membros da equipe de educadores,

criamos um grupo de estudos por sentirmos a necessidade de ter um espaço onde pudéssemos

aprofundar nossa reflexão sobre a história e realidade dos negros brasileiros. Na verdade, o

grupo de estudos nos proporcionou uma intensa troca de experiências cujo teor tratamos na

segunda parte do nosso trabalho.

As atividades da pesquisa, a participação nos eventos no CEJOMM e as reflexões

no grupo de estudo forneceram grande parte dos subsídios teórico/práticos que nos permitiram

articular racismo e produção de subjetividade.

6 CEJOMM – Centro Juvenil Oratório Mamãe Margarida

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O outro ponto a considerar é que neste trabalho estamos privilegiando o racismo

cujo alvo são os negros, não obstante entendermos o racismo como um fenômeno universal,

isto é, como sistema de dominação, baseado na supremacia de determinados grupos humanos.

Entretanto, é mister registrar que os critérios segundo os quais os homens foram classificados

mudaram ao longo dos tempos e não vamos nos ater em elucidar sua origem, nem dar ênfase

às formas de racismo antes da era moderna. Deste modo estamos sinalizando que nos

referimos ao racismo relativo às classificações dos diferentes grupos humanos que começaram

a ser formuladas a partir das grandes descobertas, mas que só vão ganhar o status de

científicas a partir do séc. XIX, com formulação do conceito de raças pela ciência. Trata-se do

racismo baseado na crença na existência de raças humanas.

O racismo é, pois, um sistema de dominação que antecede a idéia de raça. Como

fenômeno que atravessa as relações entre os homens, está presente no mundo há muito tempo

e parte sempre do pressuposto da superioridade de uns sobre os outros. O que muda no

decorrer da história é o princípio que sustenta a desigualdade. Assim, houve um tempo em

que os indivíduos eram considerados inferiores por não pertencerem à fé cristã ou a uma

determinada classe social ou linhagem (distinção entre nobres e plebeus), ou porque eram

primitivos (os povos recém descobertos). Hoje os alvos podem ser os imigrantes na União

Européia, os judeus, os nordestinos no Brasil, os favelados, etc.

Tudo isso vem confirmar que estamos tratando de um tema complexo, em função

dos diferentes caminhos que esta discussão pode suscitar. Todavia há um dado que se faz

necessário ter em conta, qual seja, a discriminação contra os negros na contemporaneidade, a

distinção entre os indivíduos as partir de critérios “raciais”, o que leva muitos estudiosos do

tema a afirmar que embora a concepção de “raça” do ponto de vista da biologia esteja

superada, ela subsiste no meio social, porque as pessoas continuam a ser categorizadas

segundo seu pertencimento a uma determinada “raça”.

O tema do racismo e, por conseguinte, uma certa explicação para as diferenças

entre os seres humanos sempre foi de interesse das ciências humanas, em especial

antropologia e sociologia desde o seu nascedouro. Estas disciplinas emergiram na 2ª metade

do século XIX e cuidaram de sistematizar um conjunto de saberes acerca do homem já

acumulados, em outros domínios do conhecimento. Todavia, é interessante ter em mente que

a biologia, cujos métodos de investigação obedeciam ao ideário positivista, passou a ser,

nesse momento, o grande modelo de análise. Daí que a sociedade e o homem passaram a ser

estudadas com as mesmas ferramentas utilizadas pela biologia; e, por conseguinte, buscou-se

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9

detectar na sociedade, as mesmas regularidades que ocorriam na natureza e, com isso,

estabelecer as leis que regeriam a sociedade. O evolucionismo e o darwinismo social são

exemplos da transplantação das leis naturais para a sociedade. O darwinismo social

radicalizou o primado das leis biológicas na determinação da civilização,

afirmando que o progresso humano é um resultado da luta e da competição

entre raças, vencendo os mais capazes (ou aptos) – no caso os brancos,

porque as demais raças, principalmente os negros, acabariam sucumbindo à

seleção natural e social.7

Nota-se, então que há, a partir desse momento, uma especificidade no racismo em

relação aos negros, já que se pode estabelecer um nexo entre escravização de africanos e a

invenção do racismo, não que este explique esta escravidão, mas porque foi a partir dela que o

caminho para a invenção da “raça” foi gradativamente aberto (AZEVEDO, 2002, p.115). É

sobre este racismo que tratamos no presente trabalho.

É, pois, na Antropologia e Sociologia, que vamos encontrar subsídios teóricos

sobre o racismo. Não podemos perder de vista que nas hipóteses que estas disciplinas

formularam sobre o homem e a sociedade está inclusa uma raciologia – um discurso sobre

raças – que começou que a se estruturar cientificamente a partir do séc, XVIII. (Idem, idem).

Trata-se, pois, de um discurso que vem a propósito justificar a dominação dos continentes sul-

americano, africano e asiático, assim como a intervenção sobre a vida e os costumes dos

setores populares – o higienismo no Brasil nos séculos XIX e XX, por exemplo. Na verdade

um conjunto de teorias e práticas necessárias à consolidação da ordem burguesa.

Constatamos, contudo, que a grande maioria dos autores que consultamos trabalha

com os conceitos de identidade e de ideologia.

Nas obras consultadas o racismo é entendido, via de regra, como uma ideologia e,

é como tal que se explica a sua influência sobre o comportamento. Nós temos outro

entendimento sobre a questão, pois o consideramos mais que uma ideologia, e esta é a razão

pela qual estamos tentando discutir o racismo a partir de outros referenciais teóricos.

No lugar de ideologia preferimos, como sugerem GUATTARI e ROLNIK (1989),

falar em produção se subjetividade, por entendermos o racismo como uma prática que, como

tal, engendra mundos. Uma pratica discursiva que se instituiu no início da modernidade do

século XVI e se desenvolveu no campo das ciências biológicas e humanas do século XIX até

a metade do século XX. Uma prática que, no pensamento de FOUCAUT (1999), produziu um

7 SEYFERT, G. Construindo a Nação: Hierarquias raciais e o Papel do racismo na Política de Imigração e

Colonização. In MAIO, M.C; SANTOS, R. V. Raça. Ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ CCBB,1996,

p.41.

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10

saber sobre os negros. Assim, nossa observação se concentra sobre os diversos mecanismos

através dos quis se procurou estabelecer uma correlação entre “raça” e atributos “próprios”

dos diferentes grupos humanos. O discurso higienista e as práticas médicas de higienização

das populações são um demonstrativo de como as práticas produzem um saber, posto que,

como estratégias para inserir essas populações no contexto da produção capitalista, elaboram

sobre as mesmas um discurso.

Não se trata somente de uma idéia “errônea” ou deturpada sobre o outro “racial”,

mas um modo de enxergar o outro que foi construído, e está sendo continuamente construído

nas diversas instâncias sejam elas midiáticas, econômicas, sociais, científicas, etc., juntamente

com toda maquinaria da produção capitalista.

Esse processo começou a tomar vulto quando, nesta produção, o africano foi

subjetivado como negro, este passando a ser sinônimo de escravo, e mais tarde, no caso

brasileiro, o negro foi sendo associado ao perigo, ao contágio, à doença pelos higienistas .

Nada disso está apenas no plano da representação, mas “diz respeito aos comportamentos, à

sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas

imaginários, etc” 8.

Daí podermos afirmar que o racismo faz parte da subjetividade capitalística. Aqui

se incluem as várias formas de racismo, além do racismo contra negros. Talvez seja possível

que a naturalização das “raças” tenha se propagado tão bem devido ao fato de a produção de

subjetividade pelo CMI “ser serializada, normalizada em torno de uma imagem, de um

consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental” 9. Sendo assim, as

diferentes formas de expressão (outros modos de subjetivação) são vistas não só como

estranhas, mas como impeditivos de uma ordem social tomada como a melhor porque

assentada sobre os princípios éticos, morais, científicos, religiosos da cultura ocidental

(branca e européia), estes sim, considerados os valores humanos.

Em se tratando explicitamente do racismo contra negros reiteramos que a

produção de saberes sobre eles não está restrita ao racialismo do século XIX, pois ela vem se

atualizando e se sofisticando através dos mais variados canais de produção de imagens,

rótulos, estereótipos, nos quais o negro é sistematicamente associado ao negativo. Uma

produção que em nada difere ou se conflitua com as instâncias produtoras de bens materiais,

pelo contrário, elas estão entrelaçadas.

8 GUATTARI, F; ROLNIK, S. Micropolítica – Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1989, p.28

9 Idem, p.40

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11

Trabalhos como os de BATISTA (2003); CHALHOUB (2001); COSTA (1979);

DORNELLES (2002); WACQUANT (2000, 2002), têm demonstrado de modo inequívoco a

“eficiência” das práticas instituídas no campo das políticas públicas, nos sentido de mostrar o

quanto elas estão afinadas com a divisão do trabalho no sistema capitalista.

Pensar, pois, o racismo a partir do conceito de subjetividade proposto por Guattari

parte da constatação de que a noção de ideologia, enquanto algo que nos remete à suposição

de que o que pensamos e acreditamos é que vai dirigir nossas ações, é insuficiente para

entender o modo de subjetivação capitalística. Embora sejam a linguagem, a família e os

demais equipamentos que nos rodeiam os agentes que vão nos formando10

enquanto sujeitos

humanos, tudo o que esses agentes fazem chegar até nós “não é apenas uma questão de idéia,

não é apenas transmissão de significações por meio de enunciados significantes”11

; trata-se de

algo mais sutil e abrangente.

Segundo GUATTARI “a representação teórica e ideológica é inseparável de uma

práxis social, inseparável das condições dessa práxis. É algo que se busca no próprio

movimento, incluindo aí os recuos, as reapreciações e as reorganizações das referências que

forem necessárias”. É preciso ter em conta que as grandes máquinas produtivas e as de

controle social são inseparáveis das “instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber

o mundo” 12

. Elas fazem parte do mesmo movimento, elas se conectam diretamente de modo

que tudo concorre para emergência e/ou consolidação da subjetividade.

Entender o racismo enquanto produção significa considerá-lo antes como uma

prática cujos efeitos são a consolidação de uma ordem social na qual as desigualdades entre os

homens são naturalizadas, isto é, as desigualdades por questões de “raça” são tomadas com

10

Segundo Guattari (1981) esta formação começa cada vez mais cedo, especialmente por meio da televisão e

dos jogos educativos. Ele faz referência a um modo de inserção da criança no mundo adulto na sociedade atual

que é bem diferente da que se dava nas sociedades pré-industriais. Acena para o fato de ter havido uma mudança

radical no tipo de atividades desenvolvidas pelas crianças, de modo que elas são formadas o mais cedo possível

em “uma certa tradutibilidade do conjunto dos sistemas semióticos introduzidos pelas sociedades industriais. A

criança não aprende somente a falar uma língua materna, aprende também os códigos da circulação na rua, um

certo tipo de relações complexas com as máquinas, com a eletricidade, etc... e estes diferentes códigos devem

integrar-se aos códigos sociais do poder esta homogeinização das competências semióticas é essencial ao sistema

da economia capitalista: „a escrita‟ do capital implica com efeito que o desejo do indivíduo, em seus diferentes

desempenhos semióticos, seja capaz de se adaptar, de se „tradutibilizar‟ agenciando-se a partir de qualquer ponto

do sistema sócio-econômico.” Sobre o tema consultar GUATTARI, F Revolução Molecular – pulsações

políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 51-55. (grifos do autor)

11

GUATTARI, F; ROLNIK, S. op. cit, p.27

12

Idem, ibidem.

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12

algo inerente à natureza. Para sermos mais precisos: a explicação forjada pela raciologia –

ciência das “raças” do século XIX – não ficou apenas no nível das idéias, ela penetrou todas

as instâncias produtivas, sejam elas de bens manufaturados, sejam de saberes sobre a

diversidade humana. Instâncias que se conectavam e se conectam não só ao nível das

informações, mas no fomento de práticas que reforçam e ratificam um certo modo de

percepção de mundo afinada com o sistema de significação dominante.

Entender o racismo enquanto ideologia talvez seja insuficiente para explicar seus

efeitos nefastos nas relações sociais porque permaneceríamos apenas na esfera da

representação. Verificamos que ele é mais do isso, ele é produtor de realidade, de mundos, ele

incide na produção de modelos, de comportamentos. Em outras palavras, dentro da

perspectiva que estamos considerando, sugerimos que, mais do que tomar o racismo como

ideologia, seria interessante discutir a subjetividade racista que é consumida e expressa,

vendida e afirmada. Não se trata, portanto, de pensar sobre o que algo – o racismo -

representa para nós, mas como ele está em nós, no nosso próprio modo de expressá-lo,

afirmando ou rechaçando, respectivamente, modos de existência compatíveis ou não com a

ordem capitalista.

A ordem capitalista “fabrica a relação do homem com o mundo e consigo

mesmo”13

, de sorte que muitos sequer desconfiam do sentido de suas ações e de que os

objetos e lugares não são naturais, tampouco aventam a hipótese de um outro modo de

existência, que passa a ser visto como antinatural, como anormal porque se acredita numa

forma de vida tida como correta.

Com relação a boa parte dos autores consultados, fazemos algumas ressalvas no

que diz respeito às “identidades”, à circunscrição da realidade a determinados quadros de

referência, a uma maneira de reconhecer em um grupo humano atributos que seriam

“próprios” de uma “raça”, o que conferiria ao mesmo uma identidade. Na perspectiva teórica

que estamos trabalhando não nos prendemos ao que se nos apresenta à primeira vista como

algo acabado e necessitado de reafirmação constante, de ser colocado em xeque quando deixa

de exprimir-se exatamente conforme ao modelo de referência. Este é, pois, o que sustenta a

produção capitalista, por ser este o imperativo que inibe qualquer potencial de singularização.

O “sucesso” do capitalismo reside na produção serializada, tanto de bens materiais como de

indivíduos ávidos em consumir “identidades”. Do contrário, como o mercado se firmaria,

como garantir que as mercadorias exerçam seu fascínio, se seus destinatários estiverem em

13

Idem, ibidem, p. 42

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13

mutação constante? É exatamente este processo – a possibilidade de escapar das referências

dominantes - que a produção capitalista busca inibir.

A imagem que ROLNIK (1995) faz de subjetividade, comparando-a com algo

semelhante a um objeto delimitado no espaço, é bastante sugestiva, no sentido de tornar mais

apreensível o que estamos pontuando acerca das identidades, na medida em que temos a

tendência ou o costume de entendermos estas duas dimensões - subjetividade e identidade -

como algo fixo, pouco permeável às oscilações do “espaço” no qual de expressam..

O que vislumbramos da subjetividade é o perfil de um modo de ser – de

pensar, de agir de sonhar, de amar, etc. – que recorta o espaço, formando um

interior e um exterior. Nosso olhar desatento vê na pele que traça este perfil

uma superfície compacta e uma certa quietude.. Isso nos faz pensar que esse

perfil é imutável assim como o interior e o exterior.14

É justamente neste ponto que ela nos convoca a um exercício de “distanciamento”

– “uma viagem virtual” – para explicar que o que vemos não é tão homogêneo ou permanente

como se acredita à primeira vista. Para este empreendimento é imprescindível que se

convoque uma certa potencialidade do nosso olho, a qual chama de “vibrátil” para que o olho

possa ser tocado pela força do que vê.

Sem muita dificuldade, logo notamos que a densidade desta pele é ilusória e

que é efêmero o perfil que ela envolve e delineia. A pele é um tecido vivo e

móvel, feito de forças; fluxos que compõem os meios variáveis que habitam

a subjetividade: meio profissional, familiar, sexual, econômico, político,

cultural, informático, turístico, etc.; como estes meios, além de variarem ao

longo do tempo, fazem entre si diferentes combinações, outras forças entram

constantemente em jogo, que vão misturar-se às já existentes, numa dinâmica

incessante de atração e repulsão. Formam-se na pele constelações as mais

diversas que vão se acumulando até que um diagrama inusitado de relações

de forças se configure. Nesse momento nosso olho vibrátil capta na pele uma

certa inquietação, como se algo estivesse fora do lugar ou fora de foco.” 15

Nossa “guia” prossegue, avisando que, se nesse momento estendermos a pele,

desmanchando o perfil que ela desenha, transformando-a numa superfície lisa, o olho vibrátil

percebe que a pele começa a reagir ao incômodo provocado pelo novo diagrama. A pele vai se

dobrar e do interior dessa dobra emerge o cenário de todo um modo de existência. “É como se

o diagrama que dá à pele sua atual tessitura tivesse se corporificado num microuniverso.

14

ROLNIK, S. Subjetividade, ética e cultura nas prática clínicas. Reelaboração de uma palestra... ,p.1. 15

Idem, p. 2

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14

Reencontra-se aqui um perfil de subjetividade, porém não é mais o mesmo que víamos no

começo.”16

Se prolongarmos essa “viagem”, vamos observar que outros fluxos vão entrar na

composição dessa pele, formando outras constelações; aos poucos outros diagrama de

relações de forças emergem e assim sucessivamente, a cada diagrama formado, uma nova

curvatura de pele se processa, de modo que há continuamente a diluição de um perfil e o

esboçamento de outro porque a cada vez que a pele é esticada, ela se curva e se estende em

outro ponto e de outra maneira.

Fica evidente que “cada modo de existência é uma dobra de pele que delineia o

perfil de uma determinada figura de subjetividade” 17

.

É dentro, pois, desta perspectiva que tentaremos pontuar alguns aspectos do que

encontramos em nossas leituras sobre identidade negra, entendendo-a mais do que como algo

construído social e historicamente e particularmente referido a um grupamento humano

específico. Tentaremos deslocar um pouco o eixo desta concepção, retornando àquelas

“forças/fluxos que compõem os meios que habitam a subjetividade”, porquanto entendemos

que nesses meios (já exemplificados) se configuram as diferentes “identidades”, ou seja, um

“jeito de ser” conforme a “raça”.

Via de regra, costuma-se afirmar que esses meios podem se configurar conforme a

“raça”, isto é, de acordo com a maneira como cada “raça” concebe o familiar, profissional, o

sexual, etc. Não se põe em questão que isto exista e que tenha sido negado ou menosprezado

(colonização), porém, salientamos que interessa-nos colocar em pauta que esse modo (negro)

de entender ou de se articular com as forças/fluxos podem não estar circunscritos apenas à

“raça” negra, outros podem assim se expressar. Outrossim, parece-nos viável ter em conta as

inúmeras possibilidades de configuração de outros mundos, para não cairmos na tentação de

“retorno ao idêntico”, à fixação de formas arcaicas; estas até podem ser retomadas, desde que

articuladas ao processo criador, para que possam adquirir alcance subjetivo (GUATTARI;

ROLNIK).

Por conseguinte, sugerimos falar na possibilidade de – ao invés de reforçar

“identidades”, remetendo-as sempre a referências já estabelecidas – referirmo-nos à “idéia de

processos transversais, de devires subjetivos que se instauram através dos indivíduos e dos

16

Idem, ibidem

17

Idem,ibidem.

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15

grupos” 18

desse modo, damos um passo além da idéia de reconhecimento e/ou de construção

de identidade.

A idéia de devir desloca o foca das lentes; deixa-se de focar uma certa

configuração da subjetividade, para que o olho “vibrátil” capte as linhas que traçam outras

“constelações” – provisórias – que apontam para outras formas de relações sociais, de

agenciamento com as “forças/fluxos”.

Esse ajuste de lentes – o “olho vibrátil” – permite dar conta que os devires19

subjetivos se instauram “porque eles próprios são processos de subjetivação, eles próprios

configuram a própria existência dessas realidades subjetivas” (Idem, idem). Entretanto esses

devires não existem em si mesmos, e sim no movimento processual – por isso são potentes-

podendo atravessar quaisquer estratificações: simbólicas, materiais, maquínicas, etc. Em

resumo, trata-se de um permitir-se, de um fazer-se, mas não um instalar-se, consolidando um

determinado “jeito” de ser.

Ainda sobre o tema das “identidades” não poderíamos deixar de salientar que as

sociedades capitalísticas se mantêm exatamente porque se apóiam na “segregação dos sexos,

das raças, das faixas etárias; na codificação das atitudes, na estratificação das castas”20

.

Portanto, nessas sociedades as demarcações ao nível de raça, sexo, idade, etc. – as

“identidades” - serão sempre bem vindas. A questão não é colocar em oposição negros e

brancos, mas apostar na possibilidade de ambos se livrarem das representações e dos

constrangimentos do “corpo social”, bem como das posturas, atitudes e comportamentos

estereotipados. Trata-se, de recusar o que o “corpo social” 21

repressivo impõe,

autoritariamente.

Ao abordarmos a problemática das identidades, é oportuno sinalizar para uma

outra dimensão da questão também presente nesta exposição; a referência que alguns autores

fazem acerca de uma certa identidade nacional. Trata-se, na verdade, de algo que está

intrinsecamente ligado à discussão sobre raças. Falando de modo mais incisivo: esses autores

falam, inclusive, da angústia que tomou conta da intelectualidade brasileira quando esta se

18

GUATTARI, F.; ROLNIK, S.- op. cit. p.74.

19

Diz respeito a instâncias pré-verbais, pré-egóicas e por isso não redutíveis a uma identidade. É também uma

passagem que pode atravessar os diferentes campos, não só microssociais, mas também o da literatura, da

música, etc. É molecular no sentido de que configura um certo tipo de universo que vai afetar a relação entre

todos os sistemas de alteridade, os sistemas de percepção, de sensibilidade, a sintaxe de uma escrita, de uma

música. Cf. Idem, p. 78-79. 20

GUATTARI, F. - op. cit. p.44.

21

Idem, p.43.

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16

deu conta de que este país abrigava um sem-número de não brancos e que, como nação (após

a Independência) precisava mostrar-se ao mundo. Vamos verificar que, de modo análogo ao

que dissemos acerca dos indivíduos, a “identidade nacional” também pode ser discutida, já

que se construiu e se constrói uma imagem de país a ser consumida dentro e fora dele.

Nessa construção, um ingrediente – a realidade de um país miscigenado - não

faltou e nem poderia faltar, posto que é partir dele que se acirram os debates há muito tempo.

SCHWARCZ (1994) o toma como tema recorrente nessa discussão até nossos dias. No texto

intitulado “Complexo de Zé Carioca”, Schwarcz, faz uma demonstração de como isto está

presente nos distintos momentos em que se discute a questão, afirma que:

Mais instigante é indagar sobre a recorrência da explicação que insiste no

caráter misto de nossa sociedade; sobre o diálogo que essas pequenas

narrativas estabelecem entre si e que, o mesmo tempo, constroem e

desconstroem a mestiçagem como tema; a malandragem como

representação.22

A partir desta observação a autora faz uma descrição interessante sobre como

esse “ingrediente” vai sendo utilizado nos sucessivos debates que, desde a Independência,

ocupam parte expressiva da intelectualidade brasileira. Nesta descrição pode-se notar que a

mestiçagem brasileira ao ser retomada recebe conotações distintas de acordo com o momento

histórico vivido. É isso que, ao nosso ver, permite concluir que se empreendermos uma

“viagem virtual” depararíamos com coisas interessantes sobre “identidade nacional”.

Gostaríamos de sublinhar que, no decorrer deste trabalho, falaremos, sem dúvida,

em ideologias, posto que não negamos que elas existam; apenas pontuamos sua limitação

como conceito explicativo para o racismo que sobrevive e recrudesce na atualidade sob

variadas formas. Igualmente será com a questão da identidade. Faremos ressalvas quando se

fizer necessário, porém, queremos afirmar que o mais importante é não perder de vista que

utilizamos o material que encontramos como ferramentas capazes de nos fornecer subsídios

que ratificam nosso ponto de vista, qual seja o de entender que as “identidades” são forjadas

juntamente com as demais mercadorias e em momentos específicos são matéria-prima para a

produção capitalista.

Para uma melhor compreensão do tema, dada a sua complexidade, dividimos o

trabalho em duas partes.

Na primeira parte procuramos concentrar as diversas conceituações sobre o

racismo assim como os usos e costumes do termo “raça” e suas implicações tanto no

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17

cotidiano, como nas formulações científicas a partir do advento da era moderna, dando mais

ênfase ao racismo científico do século XIX. Procedemos assim porque sabemos o quanto os

pressupostos racialistas daquele período ainda fazem ecos no nosso cotidiano.

Ainda nesta parte cuidamos de analisar a especificidade do chamado “racismo à

brasileira”. Para tal fizemos um apanhado sucinto das características de nossa sociedade no

que diz respeito ao modo como vem tratando a questão racial, destacando o pensamento de

intelectuais que partilhavam das idéias racistas e que muito influenciaram na formação

técnica, política e cultural dos brasileiros envolvidos nas áreas de educação, saúde, jurídica,

cultural, etc. Fizemos também um rápido percurso na história brasileira, fazendo uma breve

apreciação sobre como se consolidou a idéia de que vivemos uma “democracia racial” e de

como essa idéia vem sendo desconstruída à medida que vai sendo rompido o silêncio que

envolvia a questão racial no Brasil, sobretudo a partir da década de 90.

Na segunda parte nos empenhamos em tentar articular o discurso da “raça” e a

produção de subjetividade, entendendo esta como matéria prima do capitalismo, necessária à

sua consolidação e manutenção. Procuramos estabelecer o vínculo entre as práticas instituídas

e a manutenção da ordem burguesa. E, finalmente, chamamos a atenção para as possíveis

saídas frente aos impasses vividos pelos protagonistas de alguns episódios aqui relatados, nos

quais se vêem nitidamente os efeitos da subjetivação capitalística. Insistimos na importância

de uma aposta na capacidade de criação dos sujeitos envolvidos e na invenção de possíveis

saídas para as situações que os impedem de desenvolverem suas potencialidades.

22

SCHWARCZ, L. M. Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra. Trabalho

apresentado na reunião anual da ANPOCS, 1994.

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18

PARTE I

Racismo e sociedade brasileira: uma discussão oportuna.

1- Sobre os conceitos de raça e racismo

1.1- Alguns usos e costumes dos termos raça e racismo

O surgimento da idéia de raça se deu por volta do século XVI, porém convém

registrar que ainda não tinha a marca biológica; era uma concepção de raça que separava os

homens em fiéis e infiéis. quem não partilhava da fé cristã era considerado inferior.

SCHWARCZ (1998) nos lembra que os romanos chamavam de “bárbaros” todos

os que não pertenciam ao seu grupo, assim como, mais tarde, os cristãos nomeavam de

“pagãos” os que não partilhavam de sua fé, ou seja, o restante do mundo. Com a descoberta

do novo mundo, os povos recém-encontrados foram chamados de primitivos e, por

conseguinte, vistos “como um modelo diverso da humanidade, senão diminuto” 23

.

Talvez este tenha sido o modo mais comum, senão o único, de agrupar os

indivíduos segundo suas semelhanças e diferenças, embora os critérios utilizados para tal fim

tenham se modificado ao longo do tempo e nas diferentes culturas. Hoje, o mais comum é

falar em raça branca, amarela e negra.

Mas, tal como aconteceu em tempos mais remotos, ainda hoje, a constatação da

diferença pode vir acompanhada de um sentimento de desprezo pelo grupo apontado como

diferente do nosso. Quando isso acontece fala-se em racismo. Daí afirmar-se que o racismo é

também uma manifestação bem antiga e tem a ver, é claro, com a percepção que os homens

tiveram de suas diferenças; afinal os homens sempre souberam que eram diferentes, sendo

que “no séc. XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor de

águas entre as chamadas raças” 24

Entretanto, somente no séc. XIX foram elaboradas as

teorias que cuidaram de explicar e qualificar essas diferenças. Foi quando a biologia

introduziu a noção de raça, articulada à transmissão de caracteres físicos próprios a cada

grupamento humano, disseminando assim a concepção de que cada “raça” tinha atributos

próprios, estes nunca relacionados a instituições, mas à natureza biológica dos indivíduos e,

por isso, permanentes.

23

SCHWARCZ, L. M. Sob o signo da diferença: a construção de modelos raciais no contexto brasileiro.

In:Estudos e Pesquisas n. 4. Niterói: EDUFF,1998, p. 68.

24

MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Cadernos

PENESB n. 5. Niterói: EDUFF, 2004, p.19.

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Portanto, foi somente a partir do século XIX que se passou a acreditar que as

características dos diferentes grupos humanos eram biologicamente determinadas.

TODOROV (1993) denomina este movimento de racialismo, a partir do qual o racismo

adquire um outro sentido.

Todorov se ocupa de desfazer uma confusão muito freqüente entre racismo e

racialismo, afirmando que o primeiro diz respeito a um comportamento, às vezes de ódio e de

desprezo a pessoas com características físicas bem definidas e diferentes das nossas; já o

segundo é a crença na existência de raças humanas, com atributos próprios, transmissíveis

hereditariamente. O racismo é um comportamento, ele é mais antigo, trata-se de uma reação

frente ao diferente, e nem sempre esteve preocupado em explicar as diferenças entre os grupos

humanos. O racialismo, ao contrário, “é um movimento de idéias nascido na Europa

Ocidental, cujo grande período vai de meados do século XVIII a meados de século XX” 25

e

vai utilizar-se de argumentos científicos para explicar as diferenças entre os povos.

A doutrina racialista, segundo Todorov, se assenta em 5 proposições, que são: a) a

existência de raças; b) a continuidade entre o físico e o moral, isto é, à divisão do mundo em

raças correspondes a uma divisão por culturas; c) a ação do grupo sobre o indivíduo, ou seja,

o comportamento do indivíduo depende, na maioria das vezes, do grupo racial a que pertence;

d) hierarquia universal de valores, que é a crença na superioridade de uma raça sobre outra; e)

uma política baseada no saber, o que justificaria a submissão ou a eliminação das raças

inferiores; neste caso, trata-se de uma teoria que dá lugar a uma prática, podemos dizer que aí

se conjugam racialismo e racismo. Todorov acrescenta que “o racismo que se apóia num

racialismo produz resultados catastróficos: tal é, precisamente o caso do nazismo”.26

Todorov

parte do princípio que não se pode confundir estes dois termos, até porque o racismo, tal com

está definido acima, refere-se a um comportamento antigo e de extensão provavelmente

universal, enquanto o racialismo tem seu apogeu e queda num período bem demarcado da

história.

MUNANGA (1998), assinala que se pode conferir ao racismo um sentido mais

amplo, quando este envolve qualquer forma de discriminação, uma reação de intolerância

contra o que se considera uma característica natural de determinados grupos. É o caso de um

racismo contra jovens, contra mulheres, homossexuais, etc. Neste caso:

25

TODOROV, T. Nós e os outros. A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 1993. Parte 2: Raças, p. 107.

26

Idem, ibidem.

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20

“Uma tal posição implica a universalidade do racismo no tempo e no espaço

e atribui sua causa à própria psicologia humana. O racismo se torna um dado

universal que se soma ao fato da diferença existente entre os grupos

humanos, que é também um outro dado universal”27

.

Este seria, neste ponto de vista, o sentido mais amplo, comum e popular quando se

fala de racismo, e dentro desse conceito a palavra “raça” não está presente. Num sentido mais

restrito, Munanga faz referência ao racismo como “fenômeno recente da história da

humanidade , ligado indissoluvelmente à história da ciência e cultura ocidental”28

. O racismo,

nesse caso, não é um fenômeno universal, pois se trata de uma doutrina que utiliza

argumentos emprestados da ciência – a biologia (séc. XIX) - a qual não só forneceu uma

explicação para as diferenças entre os grupos humanos, mas estabeleceu uma hierarquia entre

eles e com isso a justificativa para a dominação de uns sobre os outros.

A biologização das raças contribuiu sobremaneira para o tipo de racismo que vai

se consolidando a partir daí, o racismo apoiado nas teorias racialistas. Estas não só

forneceram uma explicação sobre as diferenças entre os homens, mas qualificaram essas

diferenças, usando a respeitabilidade da ciência. Dito de outro modo, as práticas racistas desse

momento em diante, se justificam na afirmação da existência de uma relação estreita entre

características biológicas e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais.29

Essa corrente do racismo, baseada na vertente biológica começa a perder

substância com os avanços da ciência, a partir da segunda metade do século XX.

Não obstante a noção de raça tenha sido invalidada pela ciência, os elementos da

hierarquização entre as raças sobrevivem e ainda se mantém no imaginário das gerações

atuais, mesmo não tendo sido “cientificamente comprovada a relação entre uma variável

biológica e um caráter psicológico, entre raça e aptidões intelectuais, entre raça e cultura.” 30

.

1.2- O darwinismo e uma nova conceituação de raça

Um dos eventos que, sem dúvida, marcaram o período, foi o lançamento do livro

“Origem das Espécies”, de Charles Darwin. Essa obra teve uma influência decisiva nos

27

MUNANGA, K. “Teorias sobre o Racismo”. Estudos & Pesquisas nº 4. Niterói: EDUFF, 1998, p.45.

28

Idem, p. 46.

29

A classificação racial humana de Carl von Linné (séc. XVIII) já estava acompanhada de uma escala de valores

que sugere uma hierarquização. Consultar MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual... - op. cit.p.25.

30

Idem, p.26.

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21

diversos campos do conhecimento (medicina, biologia, história, antropologia e sociologia). A

teoria de Darwin – a mais famosa teoria da evolução – postulava que “todas as espécies

descendem de um ancestral comum e evoluem gradativamente através do processo de seleção

natural” 31

.

A obra de Darwin influenciou o debate que até então polarizava as opiniões sobre

a origem da humanidade. Entretanto, ela não foi prontamente aceita no meio científico o qual

vivia sob a influência de outras teorias, tais como, o lamarkismo, a ortogênese e algumas até

mesmo antidarwinianas (SANTOS, 1996). Só após a sua morte, o conjunto de sua obra,

juntamente com a de outros pesquisadores, constitui-se no que se chamou evolução

darwiniana.

O darwinismo passou a ser paradigma para a biologia moderna a partir dos anos

40, com a chamada 2ª revolução darwiniana. Todo conhecimento acumulado até então

permitiu a elaboração da chamada síntese evolucionária ou neodarwiniana, um sistema

explicativo que se aplicava aos diversos níveis do processo evolutivo, através do qual se

explicava a transmissão do material genético até o surgimento de novas espécies. Pela síntese

foi possível compatibilizar o mendelismo, a biometria e o darwinismo.

O pensamento evolucionista é anterior a Darwin e já exercia forte influência sobre

as teorias antropológicas (Antropologia Física), sendo que o darwinismo trouxe um

complicador a mais porque enfatizava a mudança, a instabilidade, a transformação, deixando

tanto monogenistas quanto os poligenistas32

desconfortáveis em suas proposições embasadas

em teses tipológico-descritivas.

Acho importante destacar duas questões que se entrelaçavam naquela ocasião: o

avanço da burguesia européia, o auge do imperialismo que dividiu o mundo segundo seus

próprios interesses e a ascensão da biologia, É a época em que a Ciência se transforma num

grande mito e, por conta disso, ninguém a questiona ou discute suas afirmações. E o que a

31

SANTOS, R. V. Da morfologia às Moléculas, de Raça à População: Trajetórias Conceituais em Antropologia

Física no século XX. In MAIO, M. C; SANTOS, R. V. op. cit. p. 126.

32

Os monogenistas defendiam a tese de que os seres humanos teriam uma origem única, já os poligenistas

afirmavam que os seres humanos provinham de diferentes origens. O interessante que a obra de Darwim,

mesmo atenuando o debate entre essas duas correntes de pensamento, não foi suficiente para derrubar as

hierarquias entre as raças. Os poligenistas acossados pela hipótese de origem única defendida por Darwim,

argumentavam que as raças teriam se separado em épocas bem remotas e pela seleção natural umas teriam

evoluído e outra não; sendo os traços físicos e mentais permanentes, a superioridade ou a inferioridade

explicados pelo grau de evolução. Os monogenistas, por seu turno, apostavam na hipótese de que as

desigualdades raciais seriam uma amostra dos estágios mais ou menos avançados da evolução humana, ou seja,

cada uma das raças seria uma amostra dos estágios evolutivos que toda a humanidade teria que passar para

atingir graus cada vez mais avançados (Lobo, 2004; SANTOS, 1996).

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22

biologia diz sobre os homens torna-se verdade incontestável, ou melhor, busca-se nas leis

biológicas a explicação para as relações humanas, posto que o homem como ser vivo estaria

submetido às mesmas leis. Isto porque, com a teoria da evolução de Darwim, a biologia,

torna-se o grande modelo de análise. “Termos como sobrevivência dos mais aptos,

adaptação, escorriam da biologia e passavam a ser utilizados na política, justificando práticas

imperialistas [...] o que se vendia era a idéia do domínio do mais forte sobre o mais fraco, do

mais adaptado ao menos adaptado” 33

.

SEYFERT (1996) vai dizer que:

O darwinismo social – principal doutrina racista vigente na passagem do

século – radicalizou o primado das leis biológicas na determinação da

civilização, afirmando que o progresso humano é um resultado da luta e da

competição entre raças, vencendo os mais capazes (ou aptos) – no caso, os

brancos, porque as demais raças, principalmente os negros, acabariam

sucumbindo à seleção natural e social.34

As teorizações da Biologia acerca do homem e da diversidade humana foram

utilizadas pela Sociologia e Antropologia, ciências que estavam surgindo naquele momento.

Schwarcz exemplifica isso, afirmando que Spencer aplicava à Sociologia as máximas de

Darwim, quando dizia: “o que vale para a Biologia vale para os homens” 35

. Segundo

ARENDT (2000), Herbert Spencer, o primeiro filósofo da evolução, tratava “a sociologia

como parte da biologia e acreditava que a seleção natural era benéfica para a humanidade e

que dela resultaria a paz eterna” 36

.

Segundo SCHWARCZ (1998), “o imperialismo utilizava-se da ciência para falar

do seu próprio andamento”; foi nessa ocasião que “se dividiu a humanidade numa só linha

ascensional, onde na ponta estavam os ocidentais, homens e brancos, de preferência da

Europa Central”. É nesse contexto que tomam força as teorias sobre as raças. Em suma, “vai-

se usar as diferenças e, sobretudo qualificar as diferenças, usando a respeitabilidade da

ciência”.37

Até a metade do século 20, a maioria dos antropólogos físicos não abriu mão do

conceito de raça e de tipo racial, mantendo-se fiel aos modelos descritivos e alheios aos

33

SCHWARCZ, L. M. Sobre o signo da diferença... - op. cit. p. 80.

34

SEYFERT, G. - op. cit. p. 41.

35

SCHWARCZ, L. M. Sob o signo da diferença…- op. cit. p. 80.

36

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 209.

37

SCHWARCZ, L. M. - op. cit. p. 82.

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23

avanços da biologia experimental e comportamental que fortaleciam a síntese neodarwiniana.

Autores que criticavam a idéia de estabilidade e fixidez das características raciais não eram

considerados.

Embora ficasse cada vez mais evidente que as tipologias raciais, baseadas em

características morfodescritivas, não tinham sustentação pelos novos parâmetros biológicos, o

debate sobre raça persistia, até mesmo se revitalizava.

A descoberta dos grupos sangüíneos por Landsteiner (1900-1901) e as pesquisas

que se seguiram foram marcantes e sugeriam que os critérios de classificação até então

utilizados precisavam ser revistos. Os grupos sangüíneos passaram a ser implementados como

marcadores raciais no lugar dos parâmetros morfológicos, pela descoberta de que eles eram

transmitidos segundo o modelo mendeliano e estavam presentes em todas as populações

humanas, inclusive em primatas não humanos, sugerindo então que a análise dos mesmos

tornaria a classificação mais objetiva.

À medida que avançam os estudos, novos parâmetros bioquímicos vão surgindo, o

que vai provocar a direção do olhar para estruturas cada vez mais diminutas, posto que as

características externas como cor da pele, formato de nariz, dimensões do crânio, tipo de

cabelo, etc. perderam sua relevância, sendo substituídas por estruturas cada vez menores, cuja

observação já não podia ser feita a olho nu, ou seja, “os marcadores raciais foram redefinidos

de modo a acompanhar este deslocamento metodológico desde a morfologia às moléculas” 38

.

O conceito de raça, enquanto ferramenta de classificação, sofre uma

transformação a partir das novas metodologias adotadas pela biologia experimental e pela

síntese neodarwiniana, porém não ocorre uma “desracialização” conceitual. O que ocorre é

uma saída da esfera de influência da perspectiva tipológico-descritiva para se abrigar à

sombra da genética, aproximando-se gradativamente do conceito de população. A raça vai se

conformando, ao longo do século 20, aos conceitos emergentes na genética de populações a

partir da síntese neodarwiniana. Houve uma mudança de perspectiva no que diz respeito ao

modo de pensar “raça”. Saiu-se da perspectiva que enfatizava a fixidez e a estabilidade para

redefinir raça “de modo a efetivar uma conciliação com um evolucionismo cuja ênfase era o

dinamismo e a mudança” 39

.

O debate em torno da definição de raça não se desenrolou sem contratempos e

consensualmente. Até meados deste século, os antropólogos físicos ainda defendiam uma

38

SANTOS, R. V. - op. cit. p. 128.

39

Idem, p. 129.

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24

definição tipológica, descritiva e determinista de raça. Em 1949, a Assembléia Geral da

Unesco foi dedicada ao debate sobre o conceito de raça, e tornou pública em julho de 1950 a

chamada “1ª Declaração sobre Raça” 40

. Houve muitas reações a essa declaração, conquanto

muitos geneticistas e antropólogos não aceitarem o seu conteúdo, principalmente porque esta

enfatizava a não existência de correlação entre características biológicas e qualidades

intelectuais, mentais, psicológicas, etc.

Uma outra reunião para debater “raça” ocorreu em 1951, na qual houve a

participação apenas de antropólogos físicos e geneticistas. O resultado desta reunião foi uma

segunda Declaração cujo texto é mais factual e biológico, mas só o foi à luz da genética. Os

antropólogos foram unânimes em considerar o conceito de raça como ferramenta de

classificação por meio do qual se poderia realizar estudos sobre o processo evolucionário.

Com relação à inteligência, temperamento, cultura e raça não houve uma posição conclusiva

por parte dos membros do comitê organizador da reunião; eles afirmavam que os dados

disponíveis não permitiam comprovar ou rechaçar qualquer associação. Nesse documento, o

ser humano, delineado por geneticistas e antropólogos, não é mais definido a partir de

modelos tipológicos e racializados, mas à luz do neodarwinismo.

Os debates em torno dos documentos da UNESCO são uma amostra do

acirramento de posicionamentos prévios de grupos que defendiam visões distintas de raça. O

desdobramento disso foi à efetivação, em antropologia física, de uma transição de raça à

população tal como anteriormente aconteceu, nos outros campos da antropologia, o

realinhamento de raça e cultura.

O conceito de raça na sua vertente tipológica ainda continua presente na

antropologia física norte-americana, embora a crítica à raça tenha sido consolidada por

influência dos antropólogos e geneticistas ligados às instituições norte-americanas,

No Brasil41

, pode-se distinguir duas linhas de pesquisa em relação à raça, sendo a

primeira centrada nas análises tipológicas, tal como a que se sucedeu em instituições

40

“A chamada „Primeira Declaração sobre Raça‟ foi tornada pública em julho de 1950. Alguns de seus

principais pontos são os seguintes: (1) enfatiza que as diferenças biológicas entre os grupos humanos são devidas

à operação de forças evolutivas e que a espécie humana é constituída por “populações”, na dimensão

neodarwiniana do termo; (2) “raça” designa um grupo ou população que se caracteriza por concentração de

partículas hereditárias (genes) ou atributos físicos, que podem variar ao longo do tempo; (3) a história humana e

estudos biológicos demonstram que o espírito cooperativo é natural e arraigado nos seres humanos (ou seja, o

ódio racial não lhes seria uma característica intrínseca, “natural”; (4) os grupos humanos não diferem em suas

características mentais, seja inteligência ou comportamento (UNESCO, 1952)”. Idem, p. 129.

41

Segundo Seyfert (1996), “o Brasil já possuía uma ciência das raças, gestada desde 1860, sob a influência de

Paul Broca, eminente anatomista e antropólogo francês – [..] Até 1877 são trabalhos esparsos, realizados no

âmbito das escolas de medicina, versando sobre as origens das raças humanas e temas próximos. Em 1877 foi

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25

antropologia tradicionais, tais como o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A segunda linha, a

desenvolvida nos departamentos de biologia e genética de algumas universidades, centra-se

na genética das populações. Em resumo, nos centros tradicionais, as proposições

neodarwinianas pouco foram consideradas, ao contrário do que se sucedeu no outro ramo da

antropologia física que centrou seu foco de investigação nas pesquisas e, genética de

populações. Estudiosos como Salzano e Freire-Maia (1967) definiram raça como:

...conjunto de indivíduos ocupando uma determinada área geográfica,

cruzando-se entre si e geneticamente distintos de outros conjuntos da mesma

espécie [...]

raça é: 1) uma população, 2) predominantemente endogâmica, e 3)

caracterizada por uma comunidade de genes diversa da que caracteriza outras

populações42

.

Em trabalhos recentes, os traços morfológicos externos, que no passado foram a

base das classificações raciais, não são sequer mencionados. Para os geneticistas “raça é um

conceito probabilístico que se aplica a um conjunto de indivíduos e não a indivíduos tomados

isoladamente” 43

. Contudo, mesmo privilegiando uma leitura neodarwiniana de raça, percebe-

se ainda resquícios de uma perspectiva tipológica em pesquisa sobre a “mistura racial” ou

“análise dos componentes raciais”.

Em um outro plano, o das relações sociais, percebemos que “raça” continua

sendo um fator de distinção entre as pessoas, não obstante estudos recentes comprovarem que

os seres humanos, do ponto de vista da genética, são mais “iguais” do que parecem.

Em trabalho intitulado “Retrato Molecular do Brasil Revisitado”, Sérgio D. J.

Pena (2004), descreve a pesquisa na qual se buscou montar a configuração genética do povo

brasileiro. Ele afirma que, pesquisando as patrilinhagens e matrilinhagens de brasileiros

brancos, foi constatada a presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em

brasileiros brancos, o que considera um número bastante alto. Isto significa que muitos

brasileiros brancos têm DNA mitocondrial ameríndio ou africano.

Isto vem comprovar que o fenótipo é apenas a ponta de um iceberg que esconde

as proximidades genealógicas entre os homens. Olhando por esta perspectiva, fica cada vez

instituído o primeiro curso de Antropologia Física no Museu Nacional, lecionado por João Batista de Lacerda. A

partir daí, os estudos se tornaram mais sistematizados, tanto nos museus como na Medicina Legal; os

pesquisadores interessados, principalmente na morfologia e classificação de tipos indígenas e mestiços.” - op.

cit. p. 48).

42

SALZANO, F. M; MAIA, N. apud SANTOS, R. V. - op. cit. p. 134-135.

43

Idem, p. 135.

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26

mais patente a utilização do fenótipo para justificar as desigualdades nas relações

humanas. Falaremos disso mais adiante

Em nota alusiva ao uso do termo “raça” em seu trabalho, Pena afirma que este:

é mais uma construção social e cultural do que biológica. Na verdade, do

ponto de vista genético, raças humanas não existem (TEMPLETOM, 1998).

O homem moderno distribuiu-se geograficamente e desenvolveu

características físicas, incluindo cor da pele, que são adaptações ao ambiente

de cada nicho ecológico. Entretanto, do ponto de vista genético não houve

diversificação suficiente entre estes grupos geográficos para caracterizar

raças em um sentido biológico, como demonstrou recentemente o geneticista

americano Alan Templenton 44

.

Um outro aspecto que convém considerar está relacionado ao destaque que se dá à

ínfima parte do material genético que nos diferencia do ponto de vista fenotípico, posto que

são poucos os genes responsáveis pela pigmentação da pele enquanto que para as demais

características não há praticamente diferenças que justifiquem, por exemplo, a existência de

uma outra espécie humana. Somos todos, independentemente das características morfológicas

externas Homo sapiens sapiens.

Pensamos que um pequeno trecho da belíssima conclusão de Stefhen J. Gould

(1999), em “A falsa medida do Homem”, nos fornece elementos valiosíssimos para livrarmo-

nos das limitações impostas pelas “verdades” pouco consistentes sobre as nossas “diferenças”.

Uns poucos caracteres ostensivos da aparência externa levam-nos a

considerar subjetivamente que se trata de diferenças importantes. Mas os

biólogos afirmaram recentemente, se bem que o suspeitassem havia muito

tempo, que as diferenças genéticas globais entre as raças humanas são

assombrosamente pequenas. Embora a freqüência dos diferentes estados de

um gene varie entre as raças, não encontramos “genes raciais”, ou seja,

estados estabelecidos em certas raças e ausentes em todas as demais.

Lewontin (1972) estudou a variação de dezessete genes que codificam

diferenças de sangue e comprovou que apenas 6,3% da variação podia ser

considerada própria de determinada raça. Nada menos que 85,4% da

variação ocorria dentro de populações locais (os 8,5% restantes

correspondiam às diferenças entre populações locais dentro de uma mesma

raça). Como observava Lewontin (comunicação oral), se o holocausto

acontecesse, e os únicos sobreviventes fossem os membros de uma pequena

tribo vivendo nas profundezas das florestas da Nova Guiné, seriam

conservadas quase todas as variações genéticas atualmente presentes nos

inúmeros grupos de nossa população de quatro bilhões de pessoas.

Esta informação a respeito das limitadas diferenças genéticas entre os grupos

humanos é tão útil quanto interessante, inclusive no sentido mais profundo

de salvar vidas humanas. Quando os eugenistas americanos atribuíram as

doenças da pobreza à constituição genética inferior das pessoas pobres, não

conseguiram propor outro remédio sistemático que não fosse a esterilização.

44

PENA, S. D. J. Retrato molecular do Brasil Revisitado. In Cadernos PENESB n. 5 - op. cit, p. 53.

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27

Quando Josepf Goldberger demonstrou que a pelagra não era um distúrbio

genético, mas uma conseqüência da avitaminose conseguiu curá-la45

.

1. 3- Racismo sem “raça”

Se o termo raça, utilizado para fazer distinção entre grupos humanos, a partir de

sua semelhanças e diferenças, adquiriu sentidos diversos, segundo o entendimento que se

imprimiu à evidência da diversidade humana, o mesmo se pode afirmar em relação ao sentido

de racismo.

Nem sempre se pode estabelecer uma relação direta entre racismo e a idéia de raça

tal como foi concebida no séc. XIX. Houve várias teorias justificando o racismo, até mesmo

de origem mitológica cujo exemplo é a derivada da interpretação que foi dada para a origem

das raças branca, amarela e negra a partir do relato bíblico acerca da maldição de Noé sobre

seu filho Cam. O incidente relatado no livro do Gênesis46

foi utilizado para fundamentar o

racismo contra os negros, justificando com isso a escravidão destes. Há uma edição da Bíblia

que, em uma nota de pé de página traz a seguinte sentença: “a maldição de Cam foi

abusivamente interpretada na história como maldição da raça negra” 47

.

ARENDT (2000), em “Origens do Totalitarismo”, ao analisar o aparecimento de

ideologias raciais na França e Alemanha, na época de constituição desses Estados, demonstra

que a distinção entre os homens era feita a partir da idéia de uma suposta primazia de uns

grupos sobre outros que teria sido formulada a partir da distinção entre nobres e plebeus,

entre aristocratas e burgueses. Sendo que na França a “raça” foi utilizada como arma para a

guerra civil e para a divisão do país e, na Alemanha, como esforço para reunir os alemães

contra o domínio estrangeiro. Neste caso, a raça se refere a grupos de indivíduos segundo a

classe a que pertencem, daí o slogan “uma „raça‟ de aristocratas contra uma nação de

cidadãos48

”. Busca-se, inclusive, na ascendência do indivíduo a explicação para as suas ações.

Também é apontada como uma forma de racismo a exclusão ou estigmatização de

um conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma categoria social. Assim temos um

racismo contra mulheres, contra pobres, homossexuais, obesos, etc. Nesses casos, o motivo da

45

GOULD, S. J. A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 45.

46

Gênesis 9:18-27.

47

BÍBLIA SAGRADA – Edição Pastoral. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Edições

Paulinas. 1990 p. 20 (grifos no original).

48

ARENDT, H. - op. cit., p. 191.

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28

rejeição não é a “raça” desses sujeitos, mas uma certa concepção sobre eles, baseada na idéia

de que eles têm algumas características que lhes são próprias, isto é, intrínsecas a sua

natureza.

Esse fato é por vezes utilizado para minimizar o racismo contra negros, sendo

comuns declarações do tipo: “mas as mulheres, os pobres, os travestis também são

discriminados”. Com efeito, essa discriminação acontece e é efeito de uma certa biologização

desses grupos, como se eles tivessem um “estigma corporal” 49

que lhes conferisse um modo

de ser ou de agir particulares, próprios.

Não queremos dizer com isso que esses racismos sejam mais palatáveis ou menos

nocivos do que o racismo contra os negros, por exemplo; a questão é que podem levar “à

banalização dos efeitos do racismo, ou seja, a um esvaziamento da importância ou da

gravidade dos efeitos nefastos do racismo no mundo” 50

, do racismo enquanto sistema de

dominação de povos e culturas.

Um outro aspecto a ser considerado é a necessidade de dar a devida atenção às

novas formulações do racismo nos últimos tempos: o racismo constituído com base nas

diferenças culturais e identitárias. Em outras palavras, o racismo ainda é uma realidade nas

relações sociais e ganha novas feições no mundo globalizado.

HASENBALG (1998), chama a atenção para alguns fatores que sinalizam uma

outra feição do racismo ultimamente. Nesse caso, se incluem as restrições à entrada de

imigrantes nos EUA, atualmente de latino-americanos e asiáticos, e a formação de uma

“subclasse” ou “underclass”, efeito da deterioração da situação de uma parcela da população

negra. Na União Européia há o que se pode chamar de “neo-racismo”, ou “racismo

diferencial” do qual os imigrantes são os alvos. A estes é imputada a responsabilidade pelos

problemas de desemprego e crises de moradia, criminalidade, drogas e terrorismo. Para

Hasenbalg, a lógica desse racismo diferencial é a cultura dos povos imigrantes que ameaça a

integridade da nação. Fica patente que o referencial já não é mais a raça, mas a cultura.

Diferentemente do que acontece na Europa e nos EUA, considera que há, na atualidade,

conflitos que já não apontam para a exclusão, mas para a eliminação de certas etnias, já que

“grupos étnicos são vistos como estranhos, estrangeiros e, inevitavelmente como inimigos” 51

,

49

MUNANGA, K. Uma abordagem... - op. cit. p 26.

50

Idem, p. 27.

51

HASENBALG, C. Relações Raciais no contexto Nacional e Internacional. In Estudos e Pesquisas n. 4. op. cit.

p. 12..

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29

como é o caso do ocorre entre hindus e muçulmanos, entre judeus e árabes, entre os Hutus e

Tutsi em Ruanda, etc.

O racismo, tal como foi visto anteriormente adquiriu múltiplas feições, decorrente

do fato de que cientificamente, as raças não existem. Todavia elas existem plenamente, no

mundo social e são o produto de formas de classificar e de identificar que orientam as ações

humanas (GUIMARÃES, 1999).

1. 4- O racismo como “arma política” 52

Não há raças e entretanto há relações raciais. Paradoxo? Não. Na realidade, a

expressão “relações raciais” acoberta outras relações, corresponde a um

eufemismo. Racismo pode ser definido então como a imposição de relações

de dominação disfarçadas sob a crença de que são raciais, isto é, de que há

raças. (Joel Rufino dos Santos)

A frase de Joel Rufino dos Santos tanto nos reporta ao que já foi dito

anteriormente como nos chama a atenção para um outro aspecto do fenômeno do racismo tal

como se estrutura a partir do século XIX.

Segundo ARENDT (2000), o racismo, emergiu simultaneamente em todos os

países ocidentais no século XIX, entretanto, nos séculos anteriores já tinha raízes profundas.

Considera que, na verdade, ele absorveu todos os pensamentos racistas que existiam

anteriormente, mas que por si mesmos não eram capazes de transformar o racismo em

ideologia53

.

Arendt afirma que, antes de começar a “corrida para a África”, o pensamento

racial era uma idéia que, como tantas outras, disputava a aceitação da opinião pública, mas

somente algumas dessas idéias chegaram a se tornar uma ideologia, ou seja, um sistema

capaz de atrair e persuadir as pessoas, passando a ser o orientador de suas vidas na

modernidade. Ela concebe ideologia como um sistema de pensamento que pretende ser a

chave da história, ou seja, “julga poder apresentar a solução dos „enigmas do universo‟ e

dominar o conhecimento íntimo das leis universais „ocultas‟, que supostamente regem a

natureza e o homem” 54

. Para ela apenas duas ideologias sobreviveram à pressão do

pensamento racional: a que interpreta a história como uma luta natural entre raças e a que

52

Expressão utilizada por Hannah Arendt . - op. cit. p. 189.

53

O que achamos intessante na exposição de Hannah Arendt sobre racismo diz respeito ao que ela entende sobre

ideologia.

54

ARENDT, H. - op. cit. p. 189.

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interpreta a história como luta econômica de classes. Essas ideologias alcançaram o status de

explicadores dos fatos históricos, sociais e humanos. Por conta disso, afirma que tanto a

ideologia racial como a de classes “formaram moldes obrigatórios de pensamento”55

, ou seja,

não só os intelectuais, mas as grandes massas rejeitam a apresentação de fatos, passados ou

presentes, que não se ajustem a uma delas. Ao racismo se deu uma importância e dignidade

como se fosse uma grande contribuição espiritual para o mundo ocidental. Segundo Arendt, o

racismo, tal como toda ideologia, foi criado, mantido e aperfeiçoado como arma política. Seu

aspecto científico não é o mais importante, embora se utilize de argumentos aparentemente

bem articulados os quais têm o poder de convencer até mesmo os cientistas, notadamente os

que estão mais interessados em pregar às grandes massas as novas interpretações da vida e do

mundo do que nas pesquisas propriamente ditas. Por isso que não há praticamente nenhuma

ciência que não tenha sido afetada pelas cogitações raciais. AZEVEDO (2002) vai mais

fundo nesse ponto ao afirmar que “o racialismo foi parte da própria modernidade da

ciência”56

.

Sobre este ponto, FOUCAULT (2002) vai mais além ao afirmar que o racismo foi

introduzido nos mecanismos de Estado quando da emergência do biopoder, o qual considera

um dos traços fundamentais das tecnologias de poder desde o século XIX, momento em que

o domínio da vida sofre por completo a intervenção de um poder que se incumbiu não só do

cuidado com o corpo dos indivíduos, no sentido de aumentar-lhe a força útil, mas na gestão

de tudo o que diz respeito à vida desses indivíduos enquanto espécie humana. Trata-se de

gerir a vida na terra, de regulamentá-la, de modo a ter o absoluto controle sobre a mesma.

Quando discute a emergência do biopoder, Foucault nos interpela para uma outra dimensão

do racismo. Este é por ele entendido , como uma maneira de o biopoder introduzir um corte

no domínio da vida, sobre um domínio que ele mesmo se incumbiu de intervir; “o corte entre

o que deve viver e o que deve morrer”57

.

Ele vê no surgimento das raças, na distinção e hierarquia entre elas, na

qualificação de umas e desqualificação de outras “uma maneira de fragmentar o campo do

biológico de que o poder se incumbiu”, uma maneira de defasar, no interior da população,

uns grupos em relação a outros...de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no

55

Idem, idem.

56

AZEVEDO, C. M.M. Para além das Relações Raciais: por uma história do racismo. In: Anti–racismo e seus

paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004, p. 124.

57

FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 304.

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interior do domínio considerado como sendo um domínio biológico. Esta seria a primeira

função do racismo: fragmentar o biológico; a segunda função seria a de permitir uma relação

positiva, no sentido de poder justificar a morte do outro “inferior” porque isso pode tornar a

vida – entendida aqui como sinônimo de espécie humana – mais justa. Em resumo, quanto

mais espécies inferiores forem eliminadas, mais fortes e vigorosas serão as demais. O foco

não é mais o indivíduo e sim a espécie, é esta que sairá fortalecida. Neste ponto, a morte do

outro inferior, anormal ou degenerado se constitui num bem para a humanidade. Não seria

este o princípio que orientou as práticas eugênicas e nazistas, as de extermínio de um modo

geral?

A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria

minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça

inferior ( ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em

geral mais sadia; mais sadia e mais pura58

.

Mais adiante, ele vai afirmar que “a raça, o racismo, é a condição de

aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização”, numa sociedade que tem um

poder que é “em primeira instância, em primeira linha um biopoder”59

. Nesta sociedade, a

eliminação dos indesejáveis (ou tudo que inviabilize a existência destes) é sempre referida ao

fortalecimento da própria espécie ou da raça.

Segundo Foucault, o racismo faz funcionar uma relação do tipo guerreira, porém

de uma forma completamente nova, afinada com o biopoder; uma relação biológica onde não

há mais enfrentamento explícito como na relação guerreira. Esta é, na verdade, bem anterior

ao racismo, mas é dela que extrai sua lógica: para não ser morto o indivíduo tem que matar,

para ser vitorioso, um grupo tem que massacrar o inimigo. Por conseguinte, damo-nos conta

do quão oportuna foi a teorização que a ciência faz sobre raça no século XIX . O discurso

sobre raça iniciou bem antes, mas é só a partir desse momento, não por coincidência, que ele

vai ganhar o status de científico, no mesmo período em que o biopoder “tomou posse da

vida” porque a ação deste ultrapassa o cuidado com o corpo dos indivíduos, ela se estende do

orgânico ao biológico, do corpo à população, de modo que não há instância vital que não seja

atravessada por esse poder, daí a expressão: biopoder.

Foucault ao dissecar os meandros do biopoder, aponta os paradoxos de um poder

que, ao mesmo tempo que investe nas tramas que podem prolongar a vida, intervem sobre a

58

Idem, p. 305.

59

Idem, p.306.

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mesma proporcionando melhores condições, pode, do outro lado inviabilizar a vida, dadas as

possibilidades concretas de fabricar seres monstruosos, destruidores. Porém, o que mais

salienta é o fato de este poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar

morrer. Como, a partir dos avanços da medicina, das ciências biológicas, da farmacologia, se

pode aceitar, permitir, ou ser indiferente à morte de milhões de seres humanos? Ou dito de

outro modo: como achar natural que determinados indivíduos sejam tratados como

cidadãos de 2ª classe? É possível porque o exercício do biopoder – incluindo aí o poder

de matar - passa pelo racismo, este entendido a partir da perspectiva foucaultiana.

Neste ponto podemos nos dar conta que se pode estabelecer um nexo entre a

teorização que a ciência faz sobre raça no século XIX - uma teoria que pode ser vista como

uma síntese do discurso sobre raças que começou alguns séculos antes - e o poder que

também foi, paulatinamente, abrangendo toda a extensão da vida até se constituir no que

entendemos como biopoder.

Outrossim, pensamos ser interessante ter em conta que, em primeiro lugar, a

argumentação científica, elaborada pelos teóricos da raça, vem justificar a dominação e

exploração de povos e, em segundo lugar, que as teorias racialistas caem como uma luva num

mundo que busca “progresso” 60

a todo custo. Cada conquista da sociedade capitalista é vista

como um avanço em direção a um mundo melhor. É nesse sentido que Foucault afirma que o

evolucionismo de Darwim tornou-se não só um jeito de “transcrever em termos biológicos o

discurso político”, mas a expressão de um modo de “pensar as relações de colonização, a

necessidade das guerras, a criminalidade” etc. O racismo se desenvolve e vai irromper, nas

sociedades modernas que funcionam no modo do biopoder, nas circunstâncias onde “o

direito de morte é necessariamente requerido” 61

.

É interessante que se pode estabelecer uma correlação entre as diversas

formulações do racismo e o avanço do capitalismo. Fica claro que à medida que uma

argumentação a seu favor vai se esgotando, novos elementos são suscitados, de sorte que já

se afirmou que se os negros não existissem seriam inventados (GUATTARI,1999), tal a

necessidade que o capitalismo tem de apresentar algo que justifique suas práticas.

60

Quando se entende por progresso o modo ocidental de dominar a natureza e de dominar os homens. Com esse

culto ao progresso, justifica-se o direito do capitalismo de colonizar “os povos ditos „primitivos‟ ou „atrasados‟

para que se beneficiem dos „progressos da civilização‟” CHAUÍ, M. O que é Ideologia. São Paulo:

Brasiliense,1985,.p.121.

61

FOUCAULT, M. - op. cit. p. 307.

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O capitalismo é um sistema econômico baseado no lucro, sendo o acúmulo de

capital o motor que o sustenta, tornando-se poderoso aquele que o controla. Os países

europeus , a partir do século XV se tornam senhores dos demais: Ásia, África e América. Foi

a partir da exploração destes que os europeus reuniram capital suficiente para financiar os

seus projetos. A escravização dos povos indígena e africano foi durante muito tempo a forma

de adquirir riqueza pela extração de açúcar, tabaco, algodão, minério desses três

continentes. Era preciso justificar o tratamento dado a esses indivíduos, cujos costumes e

crenças eram bem diferentes dos europeus. O empreendimento europeu era inclusive

apontado como possibilidade de redenção dessas almas, se é que esses homens as possuíam!

Havia dúvidas sobre isso, não foram poucas as controvérsias sobre a humanidade dos índios e

dos africanos, considerados inferiores por suas práticas religiosas e por sua ignorância dos

preceitos cristãos. Ainda não se falava em raças, era a ascendência do indivíduo, isto é, o

pertencimento a uma certa linhagem que distinguia os homens. Era o chamado “estatuto da

pureza do sangue” 62

que sustentava o colonizador branco no poder, aquele cujos ancestrais

não tinham a marca do gentio.

Já no século XVIII, o chamado século das Luzes, essas distinções não têm mais

lugar, e os homens não buscavam mais na religião as explicações para tudo, inclusive para a

existência de povos diferentes.

O Iluminismo vai trazer algumas questões para a sociedade de então, o regime de

escravidão vai sendo questionado, tanto pelas novas conceituações sobre o homem, quanto

pelas novas relações de trabalho.

O final do século XIX caracteriza-se pelo intenso movimento de expansão do

domínio das potências européias - é o imperialismo. O período é marcado pelo surgimento

dos grandes conglomerados de empresas. As nações mais ricas iniciam a exportação de

capitais para as nações mais pobres. Para as primeiras já não era suficiente ter um mercado

consumidor para os seus excedentes, era preciso controlar ou possuir as fontes de matéria

prima, em abundância nos países pobres (HUBERMAN, 1979). Estes vão ter suas economias

subordinadas aos interesses dos donos do capital. É preciso explicar a sujeição dos países

pobres.E uma das explicações é que estes países eram habitados por seres inferiores,

incapazes de criar uma civilização, portanto, era natural que Europa ocidental mantivesse o

controle sobre os demais.

62

LOBO, L. F. “Racismo e Controle Social no Brasil: A psiquiatria e os saberes competentes”. Cadernos Penesb

nº 5. Niterói: EDUFF, 2004, p. 59.

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Na Europa, em meados do século XIX, era grande a preocupação com o futuro da

civilização, a pureza do sangue já não assegurava o domínio sobre as massas, era a nobreza

em agonia, seus ideais caindo por terra. A idéia da superioridade da raça branca, defendida

por Gobineau em seu “Essai sur l‟inégalité dés races humaines”, se detém sobre o declínio

das civilizações e busca uma explicação para tal fato. Procura explicá-lo colocando a história

na categoria das ciências naturais – uma lei natural regendo o curso dos acontecimentos. Há

nela uma conexão íntima entre o sentimento racista e as explicações sobre a decadência das

civilizações; afirmava que “as nações morrem quando se compõem de elementos

degenerados” 63

.

Gobineau fez uma escala de desigualdades, tomando por base as “provas” da

história e da cultura dos povos, colocando os brancos no topo das características morais e

intelectuais e os negros na parte inferior e degradada. Igualmente postulou que a queda das

civilizações se devia à degenerescência das raças causada pela mistura de sangue, ou seja, a

raça inferior sempre acabava preponderando em qualquer mistura. Batalhou pela definição e

criação de uma elite que sustentasse a aristocracia: no lugar de príncipes uma “raça” de

príncipes, os arianos. Pela raça, segundo ele, se poderia constituir uma elite com direito às

antigas prerrogativas das famílias feudais – a partir daí se sentir como nobres – origem

superior – garantia de direitos superiores.

Ainda cabe perguntar, por que as teorias racialistas ganharam tanta força em

lugares onde a escravidão de negros agonizava como no Brasil e em muitos lugares onde já

tinha sido abolida? Em princípio, esta questão só tem sentido, quando se imagina que as

teorias racialistas justificariam a escravidão. Ocorre que elas surgiram exatamente no

momento em que se discute o princípio de igualdade entre os homens. Se os homens são

iguais, têm por princípio os mesmos direitos. Então, como explicar e sustentar a

subordinação de alguns? As teorias racialistas são, na verdade, uma extensão do princípio

igualitário, são um modo de reafirmar a hierarquia quando se afirma, por outro lado, a

igualdade entre os homens. Trata-se de uma contraposição a esse princípio. Frente a

reaproximação dos grupos sociais, surge o movimento contrário, o de antagonização desses

grupos. O princípio da hierarquia é contemporâneo ao princípio da igualdade entre os

homens64

.

63

GOBINEAU, 1937. Apud LOBO, l. F. - op. cit, p. 63.

64

Sobre este assunto, consultar: DUMONT, L. Homo Hierarchicus. São Paulo: Edusp, 1992. Anexo 1: Casta,

racismo e estratificação.

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As doutrinas racialistas se alimentam das categorias produzidas na escravidão e

até antes dela. Elas sempre tiveram conexão com teorias científicas. Transplantaram

explicações da biologia para a sociedade. Trataram menos de investigar as relações que

provar que a biologia determinava o comportamento, esta foi a proposta da antropologia

física dos séculos XIX até meados do século XX.

A crença na superioridade e/ou inferioridade de uma raça já era um fato antes do

racialismo, de modo que o racismo apenas adquire um outro sentido, indo servir para

justificar as práticas discriminatórias, nas quais se incluem desde as atitudes de aceitação ou

repulsa entre as pessoas no seu dia a dia às reações contrárias à legitimidade de uma

determinada população de instalar-se no país ou na cidade que lhe aprouver. Cremos que aqui

também retomar a argumentação de Foucault (2000) sobre a importância do racismo numa

sociedade que funciona no modo do biopoder, quando enfatiza que é só mediante um racismo

que foi possível a implementação de políticas de exclusão ou eliminação de grupos

considerados “inúteis”, “incapazes” ou “perigosos” em uma sociedade. Ele vai afirmar que “a

função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do

biopoder, pelo racismo” 65

.

O racismo na verdade esconde - e muito bem - outros interesses em questão e sua

“eficácia” reside exatamente nisso: a naturalização da “raça”, isto é, “raça” como

componente da natureza. Segundo ARAÚJO (1999), isto aconteceu a partir do momento em

que a raça passou a ser objeto da Ciência, a qual forneceu alguns critérios para a

categorização racial, tomando características físicas (umas mais que outras),

comportamentais e cognitivas como definidoras de um determinado tipo racial. De sorte que

esses critérios fortalecem a crença de que não é possível mudar de uma categoria para outra,

ou seja, se o sujeito é caracterizado como pertencente a uma raça não há como deixar de sê-

lo, valendo como “critério de pertencimento a uma determinada raça o fato de ter sido gerado

ou por ser capaz de gerar indivíduos que tragam as mesmas características raciais” 66

.

Araújo prossegue pontuando que raça é um “conceito que traz em sua essência o

velamento de pertencimento a nossas práticas lingüísticas”, posto que, mesmo após a

insuficiência da sua conceituação biológica, as categorias raciais continuam, tal como já

existiam antes de a ciência fornecer critérios seguros de diferenciação racial. Elas já tinham

seu lugar no mundo, daí que:

65

FOUCAULT, M. - op. cit. p306.

66

ARAÚJO, G. G. Identidade Racial e Teoria Psicanalista. Dissertação de Mestrado. IMS/UERJ,1999, p.74.

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Os critérios raciais, lançados no século XIX, saíram das páginas dos tratados

científicos e conquistaram definitivamente seu lugar no uso público de raça.

A circularidade está aí: os critérios raciais científicos já não servem para

definir raça, mas raça é definida pelos critérios de outrora. O que se infere

disso é que o conceito de raça tem atualmente pouco compromisso com sua

origem. O que sustenta é o uso lingüístico, isto é, o preconceito racial67

.

Araújo pontua que os critérios raciais já não se sustentam em evidências

científicas, porém têm efeito performativo, isto é, produzem realidade, porque as pessoas

continuam sendo categorizadas e categorizando do mesmo modo, devendo ainda levar-se em

conta que “ser categorizado continua tendo as mesmas implicações estéticas e morais que

sempre tiveram” (Idem). Acha, inclusive “possível que a distância entre a aplicação

contemporânea de critérios raciais e a origem desses critérios apenas fortaleça um dos

aspectos fundamentais do conceito de raça: sua naturalidade”.68

O fato é que todos, desde o nascimento, estamos como que presos a uma teia de

significados atribuídos à categoria “racial” a que pertencemos. E tudo isso concebido como

parte da natureza, e não como uma explicação inventada pelos homens em um momento

datado da história.

A classificação mais comum agrupa a espécie humana em três grandes grupos: o

branco, o negro e o amarelo. Estas são “cores” que nada têm a ver com a cor branca, amarela

ou preta, a aplicação dessa cromatologia sobre os humanos tem a ver como significado

atribuído ao branco e ao preto na cultura ocidental. Cabe aqui a observação de GUIMARÃES

(1999) afirmando que “alguém só pode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir

uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto é, as pessoas têm cor

apenas no interior de ideologias raciais”.69

2. Implicações das conceituações sobre raça na sociedade brasileira

2.1 – Racismo no Brasil: realidade ou fantasia.

Já é costume no nosso país ouvir-se expressões de indignação ou de perplexidade

frente às denúncias de discriminação racial. Diante de manifestações explícitas de racismo,

muitos são categóricos e dizem tratar-se de uma situação absurda nos dias de hoje. Chega-se

67

Idem, p. 75.

68

Idm, ibidem (grifos do autor)

69

GUIMARÃES, A S. A – op. ciit. p.44.

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mesmo a afirmar que isso não cabe mais no atual estágio da humanidade, que o valor da

pessoa está nas suas ações e não na cor de sua pele, que todos somos iguais, ou que somos

todos irmãos, etc. Entretanto, todos sabemos que não é bem assim. Em uma sociedade

altamente hierarquizada como a brasileira, os lugares são muito bem definidos, inclusive pelas

fronteiras de raça e cor. Como diz Milton Santos:

Ser negro no Brasil é, pois, com freqüência, ser objeto de um olhar

enviesado. A chamada boa sociedade parece considera que há um lugar

predeteminado, lá em baixo, para os negros e assim tranqüilamente se

comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide

social como haver “subido na vida”70

Assim, ser pobre e negro no Brasil é condição para não aspirar cursar medicina,

por exemplo; ou ter seu espaço de circulação restrito a alguns lugares. Nesse caso, não falta

alguém que, sutil ou diretamente, pergunte: como? E o que não é dito claramente,

transparece em olhares, indagações sutis, evasivas, aconselhamento ou sugestões

“práticas e objetivas” 71

.

Isso ficou bem patente no debate atual sobre cotas as raciais nas universidades, no

qual há até quem discorde apenas afirmando que os negros seriam mais discriminados porque

não teriam possibilidade de lá se manter ou porque se sentiriam diminuídos por terem

conseguido o ingresso na universidade mediante tal prerrogativa. Evidentemente que há

outros argumentos contrários a tal política, inclusive entre negros. Não vamos explorá-los

todos aqui, apenas tecer alguns comentários sobre o assunto em questão. Do nosso ponto de

vista, percebemos que nem sempre os argumentos levantados – os favoráveis e os contrários –

revelam uma visão mais abrangente da questão. Todavia, achamos importante que as pessoas

se manifestem; afinal veio a público um assunto que a sociedade brasileira sempre evitou – o

racismo. Consideramos que este debate é um dos efeitos positivos da implementação de cotas

raciais nas universidades brasileiras.

Nossa exposição sobre esse tema será bastante resumida, porque excederia os

limites deste trabalho, e porque o mesmo tem sido trabalhado em publicações recentes, entre

70

SANTOS, M. Folha de São Paulo – Caderno Mais!, 07/05/00.

71

Sugestões que apontam para escolha de um curso cujo ingresso seria mais “fácil” e/ou que possibilitaria um

ingresso mais rápido no mercado de trabalho. Opções que estão relacionadas, respectivamente, à preparação para

o vestibular e à necessidade de trabalhar; para muitos é sugerido um curso que permita trabalhar. Como vai fazer

um curso em tempo integral e adquirir livros e outros materiais exigidos? Mais sobre esse assunto consultar:

TEIXEIRA, M. P. “Negros em ascensão. Trajetórias de Alunos e Professores Universitários no Rio de Janeiro”.

Tese de Doutorado. Museu Nacional. UFRJ.1998, p. 215 – 242.

Page 52: CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE · foram utilizadas, pelos colonizadores, como expressão de “atraso” dos chamados povos “primitivos”. Todavia, os caminhos da

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as quais citamos: GUIMARÃES (1999), MOREIRA (2003), CARNEIRO (2003),

HENRIQUES (2003), MAIO & SANTOS (2004), AZEVEDO (2004), BRANDÃO (2004).

Em primeiro lugar, entendermos que a implementação de cotas raciais tem que ser

vista como parte de um conjunto de medidas emergenciais no sentido de corrigir graves

distorções no acesso à universidade; e em segundo lugar que não se trata de uma benesse do

governo, mas de resultado da ação de diversos setores da sociedade comprometidos com a

transformação da realidade da população negra como um todo. Sendo assim, a questão das

cotas precisa ser vista no conjunto do que chamamos políticas de ação afirmativa.

De acordo com MAIO & SANTOS (2004), a implementação de políticas de ação

afirmativa, vem ganhando “maior visibilidade na versão „cotas raciais‟ nas universidades

públicas”. Eles vêem nesse processo

um momento de inflexão do papel do poder público de um discurso centrado

no elogio à miscigenação e à ausência de conflito racial,, para o do

reconhecimento não apenas do racismo como um grave problema de

iniqüidade social, mas também da necessidade de se criar instrumentos

políticos que o debelem a partir do diagnóstico das desigualdades raciais72

.

No Brasil, a mudança passou a ser sentida quando esse tema entrou na agenda

política do governo Fernando Henrique Cardoso que instituiu, no dia 20 de novembro de 1995

– por ocasião de uma manifestação em homenagem aos 300 anos de Zumbi dos Palmares – o

“Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra”. No entanto, é

em torno da realização da “Conferência Mundial contra o Racismo, discriminação Racial,

Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, sob os auspícios da ONU e realizada em

Durban, África do Sul, em setembro de 2001” que se observa “a grande guinada rumo as

ações afirmativas no Brasil” 73

.

Segundo Maio e Santos, os efeitos de Durban logo se fizeram sentir no Brasil,

pois, o governo estava atento à revelação de credenciais de país democrático no plano

internacional, “especialmente no cumprimento de resoluções elaboradas em fóruns

multilaterais em nome dos princípios de igualdade, inclusive racial, sob o signo dos direitos

humanos”. Imediatamente após a conferência, o governo brasileiro definiu um programa de

políticas de cotas no âmbito de alguns ministérios (Desenvolvimento Agrícola e Reforma

Agrária, Justiça, Relações Exteriores). Nos municípios e nos estados, também foram tomadas

72

MAIO, M.C.; SANTOS, R. V. Políticas de cotas, os “olhos da sociedade” e os usos da antropologia: o caso da

UnB. Reunião anual da ANPOCS. Caxambu, 2004, p. 7.

73

Idem .

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39

iniciativas nesses sentido, porém a que obteve mais destaque em 200l foi a aprovação, pela

Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, do sistema de cotas raciais nas

universidades estaduais.

O que observamos, e os autores supracitados confirmam, é que nos últimos anos o

debate em torno da implementação de políticas de ação afirmativa tem girado em torno do

sistema de cotas nas universidades públicas. Há, por certo, o perigo do isolamento, as cotas

sendo apontadas como única solução para o problema. Este é, pois, um dos riscos apontados

por alguns setores que têm restrições não só à política de cotas, mas a políticas de ação

afirmativa como um todo. Achamos que essas críticas – quando baseadas em argumentos

consistentes - podem contribuir não só para o enriquecimento do debate mas para a

implementação de políticas públicas que de fato atendam aos interesses dos menos

favorecidos. Ademais, essas críticas são bem vindas, na medida em que possam servir de

subsídios que ajudem os envolvidos a refletir sobre os possíveis efeitos dessas políticas,

avaliando em que medida elas poderão contribuir para a construção de uma sociedade menos

desigual.74

Todavia, quase sempre nessas discussões não se fazem referência ao que pode ser

o estopim de todo esses “alvoroço” em torno deste assunto: os interesses econômicos

envolvidos, como bem escreve MOREIRA (2003):

É impossível prever quanto tempo será necessário para se alcançar uma

sociedade em que raça deixe de ser um critério de classificação das

pessoas.Quando mais rápido vier esse tempo, melhor, porque raça tem

funcionado como uma carga de opressão e humilhação sobre os não-brancos

em todo o mundo. Dentre os inúmeros fatores que irão contribuir para que

possamos atingir o ideal de sociedade não racista, deve-se considerar a

posição dos brancos, a forma pela qual reagirão à perda de privilégios de

sempre desfrutam exatamente pelo controle inconteste do Estado75

.

São muitos os argumentos pró e a favor dessas políticas, eles variam desde os

baseados em informações sérias aos sem consistência teórica alguma; é possível que alguns

sejam decorrentes da visão estereotipada sobre o negro, o que apenas refletiria uma faceta do

racismo brasileiro.

74

Não se referindo diretamente à questão das ações afirmativas, mas de forma mais ampla, Bauman 2003), ao

discutir o direito ao reconhecimento num contexto do capitalismo globalizado, chama a atenção para o perigo do

sectarismo e da absolutização da diferença que podem comprometer todo um trabalho de integração. Sobre o

tema consultar: BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Cap. 6, p. 69-81.

75

MOREIRA, D. Reflexões sobre mudança sócio-racial no Brasil. In: Racismos contemporâneos. Rio de

Janeiro: Takano Ed. 2003., p. 72.

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40

BRANDÃO (2004) nos expõe, de forma sucinta, algumas questões que perpassam

essa discussão a partir de trabalho realizado com alunos freqüentadores do PVNC76

porque

elas sintetizam um pouco da nossa realidade.

Submersos nas redes ideológicas que caracterizam a ordem social brasileira,

que negam o racismo e afirmam a existência de uma falsa democracia racial

esses alunos olham para política de cotas com esperança e medo. Paira sobre

suas cabeças também a ideologia do mérito que acompanha os processos de

operação política das sociedades capitalistas ancoradas em perspectivas

liberais. O medo de subverter a noção abstrata e inconsciente de mérito se

alia entre esses jovens o medo de serem mais uma vez vítimas das

discriminações que marcaram suas vidas. [...], mas todos lançarão mão do

direito que a lei estadual lhes garantiu... 77

Vale também pontuar que, frente à inevitabilidade desta prática, retorna-se ao

velho chavão: tem que haver melhoria no ensino básico, pois é de lá que tem que começar a

mudança. É claro que isso tem que ser feito, entretanto, parte da realidade fica encoberta por

este argumento – seguramente bastante forte - porque remete ao direito de todos de acesso à

educação. Uma realidade comprovada pelas estatísticas oficiais que informam que, “apesar

da melhoria dos níveis médios de escolaridade da população brasileira ao longo do século

XX, o padrão de discriminação racial expresso pelo diferencial na escolaridade entre brancos

e negros, mantém-se perversamente estável entre gerações”78

. O que vem a demonstrar que as

“políticas universalistas não têm sido capazes de alterar o padrão de desigualdade racial” 79

.

Este é um dos argumentos em que nos apoiamos quando defendemos a adoção de políticas

públicas que contribuam para romper com a perpetuação das desigualdades raciais.

Reiteramos o que já dissemos anteriormente, essa – a política de cotas – não é a

solução do problema, mas pode se constituir em um dos meios, em caráter temporário, de se

buscar uma sociedade em que a raça seja um fator irrelevante na alocação de recursos e

distribuição de riquezas. Esta política tem que estar articulada com as demais reformas

políticas, que tenham como meta a construção de uma sociedade democrática disposta a

76

PVNC - Pré-vestibular para negros e carentes. “... as origens do PVNC remontam ao ano de 1993, quando na

Baixada Fluminense um grupo de educadores, em sua maioria ligados ao movimento negro na região, resolveu

atuar contra as dificuldades de acesso ao ensino superior das parcelas pobres e racialmente discriminadas da

população. Esta idéia nasce de reflexões previamente elaboradas pela “Pastoral do Negro” que nos anos de 1989

e 1992 organizou encontros em vários estados da federação para discutir a questão do acesso de negros e

mestiços ao ensino superior. BRANDÃO, A. P. Discursos sobre o mérito entre alunos do PVNC. In: Cadernos

PENESB n. 5 p. 135.

77

Idem p.155.

78

HENRIQUES, R. Silêncio – O canto da desigualdade racial. In Racismos contemporâneos. - op. cit. p, 15.

79

CARNEIRO, S. Ideologia Tortuosa. Idem, p.122.

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enfrentar o rolo compressor da globalização neoliberal. Por isso, uma estratégia nacional de

combate ao desemprego e à pobreza também se faz necessária.

Tal como já afirmamos anteriormente, o mito da “democracia racial” encobriu

uma realidade na qual o acesso a bens e serviços tem sido limitado por barreiras de raça e cor;

a tese da igualdade de oportunidades para todos nunca foi contestada, como se todos

estivessem nas mesmas condições no momento da disputa. Mas ocorre que, no momento em

que se tenta colocar o dedo na ferida, invocando a urgência de se apelar para outras formas

de), enfrentamento da situação, de modo a barrar a “transmissão hereditária

dadesigualdade”80

, porque os dados oficiais estão aí para confirmar que “apesar da

escolaridade de brancos e negros crescer de forma contínua no século XX, 2,3 anos de estudo

é a diferença observada na escolaridade média dos pais desses jovens e de forma

assustadoramente natural, encontra-se a mesma diferença entre os avós desses jovens”81

.

Mesmo assim, ainda é comum ouvir pessoas afirmando que não é bem isso, e arranjando

explicações outras para a causa do problema, quase sempre apontando retornando ao discurso

da pobreza como causa do problema. Só que pobreza não é causa, ela é efeito da subtração de

recursos para satisfação das necessidades básicas dos indivíduos.

Desse modo percebe-se o quanto o racismo brasileiro, é escorregadio, de difícil

diagnóstico, porque sempre há a tentativa de confundi-lo com classismo.

2. 2 -Negação do preconceito e da discriminação raciais

Quase sempre quem nega a existência de racismo no Brasil acena para a ausência

de conflitos raciais e aponta a intensa miscigenação como um fator que dificulta inclusive, a

assunção de uma “identidade” racial.

A idéia de um paraíso racial não é recente e remonta ao período republicano e foi

largamente utilizada, inclusive, para atrair imigrantes (RAMOS, 1996). Posto que a realidade

de um país mestiço se revelava irreversível, utilizou-se desse fato para a elaboração de um

discurso acerca da convivência harmonioso entre as raças.

Uma convivência harmoniosa entre as “raças” não é de modo algum indesejada,

todavia, isso só pode ocorrer de fato quando não existe a crença em um ser humano universal,

mas o reconhecimento de que há modos distintos de expressão humana. Ora, este é um ponto

80

PASSET, R. A ilusão neoliberal. Apud MOREIRA, D. - op. cit. p. 63.

81

HENRIQUES, R. op. cit, p. 15.

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de vista que contrasta sobremaneira com as concepções sobre o homem e o mundo que, no

início do período republicano, dominavam82

o pensamento das elites brasileiras sempre

interessadas em encontrar uma fórmula que permitisse manter seus domínios e assegurar seus

privilégios. Pensamos serem oportunos alguns comentários acerca dos fundamentos dessa

concepção.

Trata-se, pois, de uma sociedade cuja grande preocupação era resguardar a

propriedade adquirida por meio de concessões segundo a “ordem social patrimonialista”

transplantada para o Brasil pelos portugueses. SODRÉ (1999) nos expõe com muita clareza os

antecedentes do modo como os brasileiros ainda hoje entendem o direito de propriedade.

Fazendo referência ao “Livro da Virtuosa Benfeitoria”, escrito na primeira metade do século

quinze pelo Infante D. Pedro (1392-1449)”83

, Sodré nos expõe de forma clara e sucinta os

princípios que balizavam a concessão de “benfeitorias” desde o início da colonização. No

livro,

o príncipe, o governante é apresentado como aquele a quem naturalmente

devem pertencer as riquezas: „A arte do canto mais deve ser ensinada a

quem tem boa voz e afinação, e é poderosa para bem usar da música, assim

como os príncipes são possuidores das riquezas temporais, de que muitos

podem fazer bem e mercês‟84

.

O açambarcamento de riquezas pela nobreza e a sua distribuição, por

favorecimento, a outros parceiros sociopolíticos ficam assim justificados eticamente, afirma o

autor.

A importância do texto de D. Pedro reside no fato de que ele permite entrar em

contato com a fonte inspiradora do que é ainda o fulcro de toda a argumentação de quem

resiste a qualquer forma de questionamento e transformação da ordem vigente. Assim escreve

Sodré:

O notável em todo esse texto é que, graças a ele, pode-se tomar contato com

uma fonte ideológica do Estado patrimonialista português nascente que

coloca, sem rodeios e com tintas filosóficas, no centro da argumentação, a

categoria do favor privilegiado, persistente até hoje como forma social na

vida brasileira.85

82

E ainda dominam a sociedade em geral.

83

SODRÉ, M. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil”. Petrópolis: Vozes, 1999, p.70.

84

Idem, p. 71.

85

Idem, p.71/72 (grifos do autor)

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De acordo com o “Livro da Virtuosa Benfeitoria”, as “benfeitorias” deveriam

circular na “comunidade dos iguais, chefiada por príncipes e senhores, ou seja, a comunidade

dos africanos e seus descendentes estavam excluídos. Consideramos a Lei de Terras86

, de

1850, um bom exemplo dessa prática, pois a partir dela a posse legal das terras passou a ser

reconhecida mediante a compra, mas nem por isso a cultura do favor deixou de imperar entre

os que Faoro (1973) denominou “os donos do poder” 87

. Estes faziam estender seus domínios

cooptando elementos das classes pobres, inclusive mulatos. Era a fórmula por excelência de

anular antagonismos raciais e amainar possíveis descontentamentos. Os favorecimentos, o

compadrio, os arrendamentos foram e ainda são formas de garantir o domínio por parte dos

setores dominantes da sociedade.

As elites brasileiras sempre foram muito hábeis na defesa de seus interesses, e

pode-se dizer que seu amor ao Brasil cresce na razão direta do quanto de riquezas elas podem

extrair para ostentar um padrão de vida compatível com o que pensam de si mesmas: cidadãos

de primeira classe. Elas se sentem parte de uma “raça” superior, da porção européia na

constituição da nação brasileira, à qual se credita o mérito pelo crescimento e

desenvolvimento do país; aos demais, negros e índios, os lugares e as posições subalternas,

pois racialmente inferiores88

.

Um dos dilemas dos governos após a independência residia na dificuldade que

tinham em lidar com algo que os aterrorizava: como se afirmar como nação aos olhos do

mundo, com uma população majoritariamente negra e mestiça? Se os intelectuais de então

anteviam com pessimismo o futuro do país, devido a mistura de raças que aqui se efetivara.

Havia, portanto, de acordo com Sodré uma grande ambigüidade por parte das classes

dominantes, porque elas, ao mesmo tempo em que almejavam romper com a colonização

européia e assumir uma “identidade” própria (e isso era uma exigência histórica), insistiam

em manter intacta a hierarquia de classes herdada de Portugal. Sodré afirma que “as

sociedades com passado colonial, como as americanas [...] tiveram que inventar a sua

identidade no momento em que romperam com a colonização européia”. Essa preocupação

com a identidade, por vezes excessiva, era, segundo ele, expressão de sua ausência ou

86

Um eufemismo para o que se pode chamar de impedimento aos pobres (leia-se: negros libertos) do acesso à

terra.

87

FAORO, R. Os donos do poder- a formação do patronato político brasileiro. Apud. SODRÉ, M. - op. cit. p.

73.

88

Darcy Ribeiro (1995) também fala da estabilização desse tipo de ordenamento social no qual os setores

dominantes se sentem (e são vistos) como detentores naturais do poder. In: RIBEIRO, D. O povo brasileiro,

p.24.

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“formulação excessiva por parte de um estrato oligárquico-patrimonialista dominante” que

insistia em “manter uma unidade territorial caracterizada por relações de servidão entre o

Estado (o Senhor) e a Nação (as massas real e tendencialmente excluídas).”89

Há, por certo, o anseio em marcar uma diferença em relação à Europa, e isso só

pode ser alcançado mediante a incorporação de elementos valorizáveis do território nacional,

no entanto, persiste-se em “sobrevalorizar como „superior‟ a civilização do colonizador

europeu” 90

, o que constitui uma ambigüidade, no pensamento de Sodré, que a aponta

igualmente nas “situações de classe”, posto que no período colonial a ordem estava assentada

na “dicotomia racial branco-europeu/negro-africano” e no segundo império “o preconceito

racial servia para manter a distância entre o mundo dos privilégios e direitos e o mundo das

privações e deveres” 91

.

A distância entre esses dois mundos não se alterou com a abolição, seus

defensores, pertencentes à elite monarquista, se preocupavam menos com o destino das

grandes massas do que em estar afinados com as idéias liberais que chegavam da Europa.

Nem se aventava a hipótese de romper com a lógica dominante que reputava como natural a

ordem vigente. Infelizmente, pouco ou nada mudou até os dias de hoje. O Brasil continua

sendo um dos países cuja concentração de renda é uma das mais altas do mundo. Guimarães

ressalta que

a admissão da igualdade universal entre os homens era colocada ao nível

dogmático e teórico, acima e além de qualquer contato ou engajamento com

os interesses reais das pessoas envolvidas. Tal como hoje, essa teoria

coexistia, sem maiores problemas com a enorme distância social e com o

sentido de superioridade que separavam os brancos e letrados dos pretos, dos

mulatos e da gentinha em geral.92

Por conseguinte não é de se estranhar a exclusão dos negros do pacto social pós-

independência (entre monarquia, senhores rurais e comércio exterior). Eles não são nem de

longe adequados ao projeto de um país “homogêneo e puro”, isto é, “com identidade branca”

tal como propugnava em 1820, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da

Independência (SODRÉ, 1999). As oligarquias brasileiras e os segmentos sociais com eles

comprometidos se preocupavam, desde a Independência, em fazer o país firmar-se no cenário

89

SODRÉ, M. - op. cit. p.78.

90

Idem, idem.

91

DA COSTA, E. V. “The Brazilian empire:myths and histories. Apud. SODRÉ - op. Cit. p.78.

92

GUIMARÃES, A. S. R. , “Racismo e anti-racismo no Brasil” São Paulo: Editora 34, 1999, p. 47.

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internacional, era preciso dar-lhe um “rosto”, mas interessava manter a nação como um

“negócio”, naturalmente não mais do rei de Portugal, mas dos dirigentes locais. Como diz

Sodré:

Era preciso ter um perfil identitário com alguma valorização frente à Europa

e, ao mesmo tempo, manter nos lugares dominados os negros e os índios,

esses que efetivamente constituíam as possibilidades concretas de povo.” 93

Era exatamente a realidade de um país, onde os não brancos eram maioria, que

aborrecia a classe dirigente e que é bem evidente por ocasião da Primeira Guerra Mundial

quando, tanto no Brasil como no exterior é intenso o movimento de caráter nacionalista

através do qual se pretende “descobrir, afirmar e reclamar os princípios da nacionalidade e

realiza-lo através do Estado Nacional” 94

. A situação de caos instalada na Europa em

decorrência da guerra encorajava os brasileiros na busca de um caminho de desenvolvimento

a partir de seus próprios recursos. O envolvimento do Brasil no conflito, com a declaração de

guerra às potências centrais colocava-o na posição de destaque na América Latina, o que

conferia ao país uma confiança em si mesmo. Todavia, ainda permanecia uma questão que,

segundo Skidimore, incomodava profundamente os dirigentes da nação:

os políticos brasileiros não tinham mais dúvidas de que representavam o país

líder do bloco latino-americano. Restava só uma questão- mas essa

aborrecida. Que identidade étnica exibiria lá fora esse aspirante ao concerto

das nações?95

Esse tipo de preocupação dá a medida do quanto, no início do século XX, a crença

na inferioridade racial de determinados grupos humanos é ainda corrente e fonte de inspiração

para as medidas governamentais que vão atingir os que são considerados um obstáculo ao

desenvolvimento: nas cidades, a grande massa de libertos, subempregados, e desocupados em

geral e no interior, a população de miseráveis à mercê das vicissitudes da natureza e do

descaso dos grandes proprietários. Não faltaram defensores para o programa de erradicação

de doenças que nos sertões afetavam as populações dependentes, em sua maioria, da

benevolência dos senhores, cujo estatuto de pertença ao estamento superior lhes conferia o

direito de propriedade, inclusive dos que gravitavam no entorno de seus domínios. Nos

centros urbanos a intervenção governamental se fez, sobretudo, nas obras de modernização

93

SODRÉ, M., op. cit, p. 80.

94

LIMA, N.T.; HOCHMAN, G. Condenado pela Raça, Absolvido pela Medicina: O Brasil Descoberto pelo

Movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, M. C.; SANTOS, R.V. Raça, Ciência ...op. cit. p.24.

95

SKIDIMORE, T. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1976, p.191.

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das cidades e campanhas de higiene e mudança nos costumes. (COSTA, 1979; CHALHOUB,

1996).

A higiene - um conjunto de práticas cujo objetivo era o ordenamento das cidades,

posto que a questão da salubridade era apontada como prioridade para os governos nas

primeiras décadas do século XX - foi peça chave para a aceitação da medicina como agente

transformador das cidades posto que outros métodos se mostravam ineficazes. A medicina

tomou conta do espaço urbano com sua política de higienização das populações. Esse foi o

período áureo do higienismo cujo alvo foi a família (COSTA,1979) a qual foi sendo

persuadida a mudar seus costumes considerados antiquados para os novos tempos. A higiene

funcionava como auxiliar na política de transformação dos indivíduos em função “das razões

de Estado”. (COSTA, 1979).

Costa salienta que essas medidas de higiene se dirigem, contudo, à família

burguesa, citadina, modificando sua conduta física, intelectual, moral, sexual e social; os

escravos, mendigos, os “sem família”, em geral, estão fora; estão sim, sujeitos a outras

práticas: policial, segregacional.

... pode-se observar que, no processo de definição da „família‟, a higiene

dirige-se exclusivamente às família de extração elitista. Não interessava ao

Estado modificar o padrão familiar dos escravos que deveriam continuar

obedecendo o código punitivo de sempre. [...] Escravos, mendigos, loucos,

vagabundos, ciganos, capoeiras, etc. servirão de antinorma, de casos-limite de

infração higiênica. A eles vão ser dedicadas outras políticas médicas. Foi

sobre as elites que a medicina fez incidir sua política familiar, [...] A camada

dos „sem família‟ vai continuar sendo entregue à polícia, ao recrutamento

militar ou aos espaços de segregação higienizados como prisões e asilos.96

Se, anteriormente, o tratamento desumano imputado aos negros era justificado

pelo estatuto da escravidão agora com o higienismo, assiste-se ao seu progressivo afastamento

do convívio social, sob a alegação de que sua influência era prejudicial às famílias, leia-se:

pequena e alta burguesia. (COSTA, 1979). Creio que não se pode perder de vista que nessa

época o conceito biológico de raças inda está em vigor e outras políticas estão sendo

implementadas com o objetivo, explícito ou velado, de transformar a realidade considerada

caótica pelas elites. Mas, de qualquer forma, não vamos encontrar uma declaração explícita de

que as medidas tomadas tinham qualquer cunho racial, nem faria sentido algo dessa natureza

num país onde as fronteiras raciais nunca foram bem demarcadas, um fato largamente

96

COSTA, J, F. “Ordem Médica e Norma Familiar”. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 33.

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utilizado para negar o racismo que se expressava em políticas diferenciadas, mas nunca

como política de Estado. Voltaremos nesse tema mais adiante.

GUIMARÃES (1999) nos fala desse modo de entender o racismo que só é

percebido ou denunciado, quando inclui medidas discriminatórias ou segregacionistas, nos

países onde é oficialmente reconhecido, porém, deixa de considerar também como

manifestação de racismo a existência e permanência de instituições que negam ao outro

racial um tratamento igualitário.

2. 3 - Brasil – “paraíso racial”

A definição que o dicionário Koogan-Larousse dá ao termo paraíso reforça a idéia

que talvez seja comum em muitas culturas, qual seja a de uma realidade cuja possibilidade de

acesso depende em grande parte do esforço humano, mas aponta também, em sentido

figurado, como “lugar de delícias, lugar onde a gente se sente bem, em paz e sossego”.

Pois bem, em se tratando de relações raciais há o costume de aplicar essa idéia à

realidade brasileira, havendo referência explícita a uma suposta coexistência pacífica entre as

três “raças” formadoras da nação brasileira. Geralmente, se faz comparação com a realidade

de outros países para a defesa desse ponto de vista.

A imagem de um país onde não existem conflitos raciais pode ser complementar à

visão paradisíaca da terra brasileira que desde os tempos dos descobrimentos suscitou a

imaginação dos que para cá vieram. Até os dias de hoje não há quem deixe de extasiar-se

frente à exuberante vegetação, às extensas planícies, às montanhas, às praias, enfim, diante do

Brasil “marcado pela própria natureza”. A ponto de ser a natureza o primeiro motivo de

orgulho dos brasileiros, conforme pesquisa VP/Veja, CPDOC-FGV/Iser - Lei, justiça e

cidadania, cujo comentário de CARVALHO (1999) merece destaque. Ele inicia seu artigo

afirmando que o “motivo edênico habita a imaginação nacional desde os primórdios da

presença européia” e que seu objetivo nesse trabalho é documentar, com os dados da

pesquisa, a “surpreendente vitalidade do motivo edênico no Brasil de hoje” e sugerir uma

possível explicação para isso. Uma explicação que para ele poderia ser chamada de “motivo

satânico”, isto é, a “visão negativa do povo” 97

que também é antiga.

Carvalho faz uma retrospectiva da admiração frente à natureza que está presente

desde a carta de Caminha e em obras de diversos autores nacionais e estrangeiros. Faz

97

CARVALHO, J. M. o motivo edênico no imaginário social brasileriro. In; PANDOLFI et al (org). Cidadania,

Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999, p.19.

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referência, inclusive à época da Independência quando a imagem do país é “arranhada”

porque o português Manuel Fernandes Tomás – o Compadre de Lisboa - afirmara que o Brasil

não poderia ser a sede da monarquia porque não tinha um bom clima e que apenas os

africanos teriam condições de suportá-lo98

. Esses comentários provocaram a ira do cônego

Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca e de outros panfletários. O padre recorreu a

várias autoridades brasileiras e estrangeiras para refutar as declarações do compadre de

Lisboa e “aponta a excelência do clima, de „primavera completa‟, as belezas naturais, a

fertilidade do solo, as riquezas minerais. [...] a ausência de flagelos naturais, secas,

terremotos, tufões, epidemias.”99

O que é surpreendente para Carvalho é o fato de ainda hoje, tal como o padre

Perereca, os brasileiros vão buscar na natureza as razões para se orgulhar do Brasil, conforme

pesquisa supracitada. Então pergunta: “Como é que, 174 anos após a independência, os

brasileiros ainda não conseguem encontrar as razões para seu orgulho patriótico que tenham a

ver com conquistas nacionais e não com fatores sobre os quais não têm controle?” Carvalho

lembra que já Machado de Assis reclamava dos estrangeiros visitantes do Brasil que só

tinham olhos para a natureza e dela se maravilhavam. Tal atitude, para Machado, “excluía

qualquer idéia de ação humana” 100

.

Ora, esta é exatamente a questão, pois na medida em que se exaltavam as belezas

naturais, atribuía-se ao brasileiro a causa de todos os males. Tanto é assim que, Brandônio, o

autor dos “Diálogos das Grandezas do Brasil”, descreve as maravilhas da terra e quando lhe

pedem explicações sobre a carestia dos produtos, ele responde que “é culpa, negligência e

pouca indústria de seus moradores”. Os jesuítas, por outro lado, queixavam-se do envio de

criminosos e prostitutas para o Brasil, afirmando que a escravidão favorecia a corrupção entre

senhores e escravos. Estes últimos eram considerados depravados por natureza.101

98

“O compadre de Lisboa, Manuel Fernandes Tomás, atacara o clima e a gente do Brasil para desqualificar o

país como sede da monarquia. Dissera, repetindo Aristóteles, que o país, por estar na zona tórrida, tinha clima

ardente e pouco sadio. Só os africanos podiam suportar, e isto, por tempo limitado, os „dardejantes raios de uma

zona abrasadora‟. Além disso, continuava, a população do país estava reduzida „a poucas hordas de negrinhos

pescados na Costa d‟África. O país é „selvagem, inculto, e terra de macacos, dos pretos e das serpentes.‟” Idem,

p. 22.

99

Idem, p. 22-23.

100

Idem . p. 30.

101

O jesuíta Jorge Benci – autor de “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. Nesta obra o

trabalho é concebido como uma obrigação que o senhor tem diante do escravo. Benci considera que os pretos

são mais inclinados ao ócio e, por conseguinte, ao vício. Assim Benci os descreve: “Os brancos para serem bons

mestres na arte de pecar necessitam de lições mui repetidas, e por isso é necessário que freqüentem por largo

tempo as classes do ´cio; e os pretos não necessitam de muito tempo. Com quatro dias de lição ficam Mestres em

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Essa inferioridade brasileira vai ganhar revestimento cientificista com as teorias

racialistas do século XIX. Parece oportuno enfatizar o quanto essas características “negativas”

foram utilizadas para justificar ações governamentais contra todas as iniciativas de

organização popular, a maioria delas “esquecidas”, daí o brasileiro não ter do que se orgulhar,

a não ser de possuir uma bela paisagem. Nela incluída uma população ordeira e pacífica.

Enfim, os ingredientes que, aliados à prodigiosa natureza, resultariam num paraíso, inclusive

racial, porque nesta terra as três “raças” convivem harmoniosamente.

RAMOS (1996) comenta que no retrato que a diplomacia brasileira fazia do país,

nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, também predominavam os dotes

naturais; outrossim a idéia de que aqui inexistiam conflitos sociais e raciais era um incentivo

para atrair imigrantes102

.

2. 4 - O mito da democracia racial

Talvez sejamos tentados a aceitar que de fato isso aconteça, que a cordialidade

entre as raças seja uma realidade, pois, afirmar o contrário pode trazer conseqüências tais

como ser acusado de importar um problema que aqui não existe (HASENBALG, 1998),

sobretudo porque se tornou muito comum analisar a situação brasileira a partir das realidades

norte-americana103

e sul-africana, onde o Jim Crow e o apartheid104

, respectivamente,

artes e Doutores da malícia. Mas qual é a razão desta diversidade? Como os pretos são em comparação mais

hábeis para todo o gênero de maldades que os brancos, por isso eles com menos tempo de estudo saem grandes

licenciados do vício na classe do ócio. Esta grande habilidade para os vícios, com que os pretos levam singular

vantagem sobre os brancos, o mesmo Deus a declarou por Amós, comparando os filhos de Israel com os Etíopes

(Amós 9,7). Pergunto agora: faltavam nações, brancas e viciosas, com que pudesse comparar Deus os filhos de

Israel? A razão se colhe de S. Jerônimo, o qual diz que nas Escrituras se chamam Etíopes não quaisquer

pecadores, senão os que são tintos com a cor preta de todos os vícios. Logo consenti o senhor ócio aos escravos,

é querê-los mestres em todo o gênero de vícios e singularmente no vício da desonestidade.” In HOONAERT, E.

Et. all. (org.) “História da Igreja no Brasil” Primeira Época. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 379.

102

Sobre a questão racial e imigração consultar: RAMOS, J. S. - op. cit. p. 59 a 81.

103

Para Guimarães, nem mesmo os cientistas sociais escaparam desse caminho posto que “tomaram, em geral,o

padrão de relações raciais nos Estados Unidos como modelo para comparar, contrastar e entender a construção

social das „raças‟ em outras sociedades, especialmente no Brasil.” GUIMARÃES, A. S. A. - op. cit. p. 39

104

Jim Crow: nome como ficaram popularmente conhecidas as leis se segregação racial nos EUA. Essas leis

surguiram nos estados da antiga confederação separatista – os estados do sul . Através dessas leis, os direitos de

cidadania da população negra, em teoria garantidos pelas emendas à constituição foram gradativamente

neutralizados. Por essas leis, foi instituída a segregação dos negros em transportes públicos, restaurantes, escolas,

lavatórios, estações de ônibus e trens, forças armadas, etc. Foram muitos os protestos contra essas leis, no

entanto elas perduraram até o final da década de 60, do século XX. Mais sobre o tema consultar: DU BOIS, W.

E. R., As Almas da Gente Negra, Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999, p.10 – 44.

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estabeleceram limites bem demarcados para negros e brancos, o contrário do Brasil, onde a

ausência desses limites105

é utilizada, inclusive, para negar práticas discriminatórias, estas

sempre encobertas pelo discurso da igualdade perante a lei. Temos até mesmo uma lei, a qual

afirma que racismo é crime inafiançável. Entretanto há uma série de empecilhos para que se

faça uso desta lei, sendo um deles a dificuldade de arrolar testemunhas sobre um caso de

racismo; quase sempre a vítima é, pelos motivos apontados acima, induzida a não levar o caso

adiante. A insistência em denunciar uma prática racista provoca um intenso mal-estar,

porque desvela algo que não se quer tocar, que é um tabu; de fato muitos se imaginam

numa democracia racial. Essa é uma fonte de orgulho nacional e é um trunfo frente a

outras nações para afirmar que somos um povo civilizado (GUIMARÃES, 1999). É

comum ouvir-se que no nosso país isso não existe mais, que é coisa de “gente atrasada”.

DAMATTA (1989), ao analisar algumas das peculiaridades do “racismo à

brasileira”, vai reportar-se ao que se sucedeu nos Estados Unidos, após o término da Guerra

Civil, quando o Norte – igualitário e individualista – sai vitorioso e impõe para todo o país

sua hegemonia moral e política. DaMatta vai também lembrar que as sociedades igualitárias

engendraram formas muito claras de preconceito, porque seu modo de funcionamento não

admitia igualdade entre as raças. Sendo assim, a forma de sustentar o lugar subalterno do

negro, herdado da estrutura escravista do Sul, foi apelar para leis que impediam claramente a

“competição econômica de negros e brancos como iguais num mercado de trabalhadores

livres”. No Brasil tal não aconteceu, aqui foi difundida a idéia de que a nação brasileira é o

resultado da mistura de três raças: a branca, a negra e amarela, como se fosse um encontro

casual. Ignora-se que somos uma “sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um

quadro rígido de valores discriminatórios”, herdeira da colonização de “portugueses brancos e

aristocráticos”, de sorte que a famosa mistura de raças se deu mantendo as distinções de

classe e de origem dos diferentes elementos da mistura. É exatamente isto que o mito da

democracia racial encobre. Por isso DaMatta afirma:

Apartheid: sistema de segregação dos negros implantado a partir de 1948 na África do Sul. Segundo

Munanga (op. cit) “o apartheid (palavra do Afrikans) foi oficialmente definido como um projeto político de

desenvolvimento separado, baseado no respeito às diferenças étnicas ou culturais dos povos sul-africanos, Um

projeto certamente fundamentado no multiculturalismo política ideologicamente manipulado” (p.27). Este

sistema no qual os negros, a maioria da população, só podiam habitar os lugares previamente definidos para tal,

durou até a década de 80, do último século.

105

O fato de ter mencionado os sistemas norte-americano e sul-africano não significa querer compará-los com o

que ocorre no Brasil. Tratou-se apenas de pontuar que são sistemas distintos, não cabendo discutir se existe um

que seja melhor, todos são ruins, sendo qualquer comparação um modo de enfraquecer o combate ao racismo.

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Realmente estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu

como sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros, índios e

brancos está ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças. Numa

sociedade onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é a

forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas

fiquem no seu lugar e “saibam” qual é ele.106

Lugares quase nunca questionados porque naturalizados pelos costumes, pela

tradição de um país que se vê evoluído porque tem uma legislação na qual o racismo é crime

inafiançável. Ora, se é crime, é porque existe, mas o racismo “à brasileira” tem uma existência

camaleônica, transmuta-se sob o manto da hipocrisia geral que se utilizando de um arsenal de

justificativas nega a prática de qualquer ato discriminatório de natureza racial. O incômodo é

muito grande porque contraria aquilo que é fortemente defendido com o uma característica de

nossa sociedade, qual seja a de uma sociedade democrática, onde as pessoas podem circular

livremente, pois não há leis que as impeçam. No entanto, as pessoas podem circular

livremente, desde que não firam o código que está implícito nas relações entre os

diferentes grupos. E isso inclui não dar “nome aos bois”. É como se houvesse um acordo

tácito entre brancos e negros de modo que nem um nem outro denuncie o que está havendo.

Essa prática silenciosa também pode ser entendida como algo que contribui para a

perpetuação das desigualdades, como veremos mais adiante. Assim a presença de negros nos

lugares tradicionalmente ocupados por brancos, ou no exercício de determinadas profissões

pode provocar um certo estranhamento, porém, este se transformará em desconforto se houver

insistência em apontar as causas desse estranhamento.

Parece incrível, mas é assim que acontece, cria-se um embaraço muito grande

quando o assunto é preconceito e discriminação racial, racismo,...Afinal aqui é o “paraíso

racial”.

Guimarães (1999) sustenta que a superação do conceito biológico de raças foi um

dos eixos de sustentação do discurso que nega a ocorrência de racismo no Brasil; segundo ele,

“tornou-se lugar comum, entre os brasileiros, a afirmação de que as raças não existem, e de

que o que importa, no Brasil, em termos de oportunidades de vida, é a classe social de

alguém” 107

, o que, na verdade, equivale a dizer que não tem sentido falar em raças face à

inexistência de racismo entre os brasileiros. Destaca ainda que “no Brasil o ideário anti-

racialista de negação da existência de „raças‟ fundiu-se logo à política de negação do racismo

106

DAMATTA, R. A ilusão das relações raciais. In O que faz do Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1989,

p.46.

107

GUIMARÃES, A. S. A – op. cit. p.62.

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como fenômeno social” 108

e que entre nós haveria apenas “preconceito”, algo que poderia ser

superado com a convivência entre as pessoas e os grupos.

Não obstante a superação do conceito biológico de raças, as pessoas, os diferentes

grupamentos humanos foram e continuam sendo classificados a partir de critérios pouco ou

nada consistentes, mas suficientemente fortes para assegurar a supremacia de uns sobre

outros. Daí concordar com Guimarães quando aponta a necessidade de teorizar as raças como:

construtos sociais, formas de identidade baseadas numa idéia biológica

errônea, mas socialmente eficaz para construir, manter, reproduzir diferenças

e privilégios. Se as raças não existem no sentido estrito e realista da

ciência,ou seja, se não são um fato do mundo físico, elas existem , contudo,

de modo pleno, no mundo social, produtos de formas de classificar e de

identificar que orientam as ações humanas.109

Essas formas de classificar e de identificar se deram, como já dissemos

anteriormente, a partir de critérios que não se sustentam porque baseados numa suposta

continuidade entre natureza e sociedade.

Para PEREIRA (2001), aqui o racismo se apresenta de forma difusa e não

explicitada, ora se manifesta, ora não, e quando tal acontece não é da mesma forma; quase

sempre “obedece a um código moral que, decalcado em subterfúgios, procura negar a

existência do próprio racismo, embora haja também setores preocupados em desnudar o

avesso desse código que insiste em esconder a desigualdade debaixo da diversidade”. E mais,

esse código de ambigüidades impede que as que as vítimas do racismo se situem frente ao

fenômeno e possam medir o alcance de suas exigências. “Ele é simplesmente desorientador.

Tal ambigüidade decorre da própria dificuldade em se conceituar o que é racismo e da

confusão deste com classismo”. Pereira vai mais adiante ao pontuar que “o racismo deve ser

entendido como um complexo de idéias, atitudes e ações sociais centradas em alegadas

diferenças biológicas dos indivíduos em interação social”.Um complexo de idéias que

compreende

uma predisposição psicológica para a ação social” – atitudes e opiniões

desfavoráveis ao “outro” racial (preconceito) podendo ou não ser

verbalizadas – e passa pela ação ou comportamento social real que cerceia

ou mesmo impede o “outro” de ampliar seus espaços sociais (

discriminação), chegando até a confiná-lo a espaços físicos com limites

bem definidos (segregação).110

108

Idem, idem.

109

Idem, p. 64

110

PEREIRA, J. B. B. “Diversidade, Racismo e Educação”. In cadernos PENESB n º 3. Niterói: EDUFF, 2001,

p.21.

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No caso brasileiro não há segregação de grupos de forma direta ou programada.

Entretanto quando isso ocorre, “o confinamento se dá de forma indireta, quase sempre

mediada pela classe social ou por condições econômicas”, conclui Pereira. A nosso ver, a

concentração de negros nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras ilustra esse

ponto de vista.

Não existe, pois, racismo institucionalizado, isto é, não está estabelecido em

normas institucionais o impedimento do acesso de negros a determinados lugares. “Todos são

iguais perante a lei”, reza a Constituição. Todavia, em termos materiais, na ausência de

discriminações raciais institucionalizadas, esse racismo se mantém e se reproduz, na opinião

de Guimarães, quando contraditoriamente a cidadania para alguns é definida amplamente pela

garantia de direitos formais e para outros (a maioria) a cidadania é negada porque os direitos

“são, em geral, ignorados, não cumpridos e estruturalmente limitados pela pobreza e pela

violência cotidiana”.111

Desse modo, o racismo se perpetua através de “restrições factuais de

cidadania”, de imposição de distâncias sociais advindas das enormes diferenças de renda e

educação, ou seja, através das “desigualdades sociais que separam brancos de negros, ricos de

pobres, nordestinos de sulistas”.

Guimarães afirma o seguinte:

Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas,

universalistas, tratando-se a si mesmo como anti-racismo, e negando, como

anti-nacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-brasileiro.

Para este racismo, o racista é aquele que separa, não o que nega a

humanidade de outrem, desse modo, racismo, para ele é o racismo do

vizinho (o racismo americano).112

Guimarães também não poupa críticas ao marxismo pelo fato de este ter insistido

no caráter “ideológico das raças” não colaborando para a mudança desse quadro. Aponta a

influência marxista no pensamento e ações de uma “fração emergente das classes médias

brasileiras, nas décadas seguintes ao pós-guerra” 113

. Os intelectuais de então afirmavam que,

com o advento de uma nova ordem social, estariam sanados os problemas das minorias, eles

eram partidários da idéia de que os negros estavam em desvantagem por uma questão apenas

econômica. Para eles a chamada “democracia racial” seria conquistada através da luta de

111

GUIMARÃES, A. S. R. op. cit. p. 56.

112

Idem. p. 57.

113

Idem , idem.

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classes. De certa forma contestavam a idéia de que a democracia racial era uma realidade,

porém, achavam que ela seria possível com o desenvolvimento econômico do país.

Um contexto no qual as pessoas, independentemente de sua condição econômica e

social, tenham igualdade de tratamento certamente é desejável (pelo menos para os

defensores de uma sociedade igualitária). Entretanto, quando se diz que no Brasil se vive uma

democracia racial, não podemos nos iludir, quanto ao significado da construção histórica e

social desse conceito, articulado ao mito fundador da nacionalidade brasileira, tomada como

resultante da interação das três “raças”. HASENBALG (1998) aponta para a originalidade

dessa construção, por considerar que, se de um lado houve integração simbólica do negro e

do índio, do outro houve a subordinação dos mesmos nos planos econômico e social.

Portanto, a chamada democracia racial não passa de um mito. Trata-se de uma certa

explicação para o amplo processo de miscigenação que ocorreu e ocorre na sociedade

brasileira.

DAMATTA vai dizer que

a mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social

contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão

profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado a

problemática mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o

Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da

democracia social, do que assumir que somos uma sociedade

hierarquizada.114

Partilhando deste ponto de vista, Hasenblag considera que o mito da “democracia

racial” tem o “mérito” de amortecer as iniciativas para o enfrentamento da situação, pois ela

“camufla, oculta as desigualdades raciais e dificulta a percepção do racismo”115

. Outrossim, o

fato de não haver restrição formal aos negros, em quaisquer instâncias da sociedade, é

utilizado para afirmar que há oportunidade para todos.

As noções acerca da democracia racial foram formuladas por intelectuais

partir de idéias preexistentes e, no caso do Brasil, foram encampadas pelo

Estado e oferecem a definição oficial da situação. Mais ainda, essas idéias

estão parcialmente incorporadas ao senso comum racial da população. Ao se

falar ou agir contra essa definição pode-se incorrer em custos políticos e

sociais elevados. Um desses custos é a sempre repetida acusação de se

importar um problema que inexiste na sociedade brasileira”.116

114

DAMATTA, R. op. cit. p. 46-47.

115

HASENBALG. C. op. cit. p. 14.

116

HASENBALG. C. “Entre o Mito e os Fatos: Racismo e Relações Sociais no Brasil”. In MAIO, M. C. e

SANTOS, R. V. (orgs) op. cit. p. p.239.

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Hasenbalg aponta outros elementos do modelo brasileiro que seriam inibidores de

manifestações de racismo: a “apologia da mestiçagem” e o “hibridismo” ou “mestiçagem

cultural”. No primeiro caso refere-se à ambigüidade e pouca nitidez nas fronteiras entre os

grupos étnicos e raciais. No segundo, considera que “as influências culturais no Brasil têm

duas direções: de brancos para negros e de negros para brancos. Isto implica na

nacionalização de símbolos culturais negros e na socialização dos negros na cultura branca

dominante. Conclui que

“as sínteses culturais são de via dupla e este hibridismo cultural, onde

tantos brancos participam de práticas culturais de origem negra, também

parece funcionar como elemento inibidor de formas „diferenciais‟ de

racismo”.117

A mestiçagem cultural em si não é ruim, pelo contrário. Não se faz aqui apologia

a uma suposta “pureza” racial ou cultural. As trocas que ocorreram entre os diferentes

grupamentos humanos são uma constante, posto que são efeito do contato entre eles. As

intensas migrações que empreenderam desde os primórdios da humanidade contribuíram para

que tal acontecesse.Isto é, sem dúvida, enriquecedor. O que se discute aqui e quando ela é

utilizada para negar a ocorrência de racismo, o qual se fundamente com uma suposta

superioridades entre as raças.

SCHWARCZ (1998) também comenta sobre a “democracia racial”, ao considerar

que no Brasil “o racismo não está nas leis, não está no Estado, mas disseminado no

cotidiano”. Para ela “as teorias raciais deixaram de ser modelos científicos, mas não são

abolidas. Passaram para o dia a dia, se transformaram em códigos internalizados e, portanto,

jamais afirmados; eficientes porque invisíveis e silenciosos” 118

. Torna-se, nesse caso,

difícil de ser identificado e combatido.

Para ela o racismo, até os dias de hoje, é um grande mal entendido entre os

brasileiros. Considera ser ele

o resultado de uma convivência tão longa com a escravidão; de uma abolição

entendida como presente e que não previu qualquer reparação ou

incorporação ao mercado de trabalho, e de um modelo científico racial que

se afirmou no mesmo momento em que os negros – ex-escravos –ganhavam

direito à liberdade.119

117

Idem. Relações Raciais... op. cit. p. 15.

118

SCHWARCZ, L. M. op. cit. p. 95.

119

SHUWRCZ. L. M. “Sob o Signo da Diferença: a construção ... op. cit. p. 96.

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Esse modelo científico racial se constituiu na 2ª metade do séc. XIX e exerceu

forte influência sobre os ideólogos da nação brasileira. As obras de cientistas tais como: Nina

Rodrigues, João Batista de Lacerda, Silvio Romero, Euclides da Cunha, etc., estão repletas de

informações sobre o homem brasileiro que refletem o ideário racialista do século XIX.

Um dos expoentes do pensamento racial brasileiro do período, Raimundo Nina

Rodrigues é também conhecido como “fundador da antropologia afro-brasileira”. Era médico

e desenvolveu vários estudos sobre negros e mestiços vistos que para ele são “temas de

patologia médica” 120

. Numa de sua obras mais conhecidas “Os Africanos no Brasil”, os

negros são , antes de tudo, um objeto de estudo. Toma-os como seres prematuros em seu

desenvolvimento mental e incapazes de civilização, sendo esta uma das razões para a

inferioridade do Brasil. Daí a seguinte afirmação: “o que importa ao Brasil determinar é o

quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra

que possui e se de todo fica essa inferioridade compensada pelo mestiçamento,...” 121

Deixa

transparecer, inclusive, um certo pessimismo em relação ao futuro do país ao salientar que “se

o futuro do Brasil dependesse de chegarem os seus negros ao mesmo grau de aperfeiçoamento

que os brancos, muitas vezes se poderia transformar antes os seus destinos de povo, se é que

algum dia se houvesse de realizar” 122

. Um ponto sobre o qual Nina Rodrigues se detém é

sobre a criminalidade dos negros. Estudando-a como algo que sobrevive a gerações, defende a

tese de que a mesma tem a ver com a fase evolutiva destes indivíduos e, por isso, os atos

criminosos destes devem ser julgados levando-se em conta a sua condição inferior.

A sobrevivência criminal é, [...] um caso especial de criminalidade, aquele

que se poderia chamar de criminalidade étnica, resultante da coexistência,

numa mesma sociedade, de povos ou raças em fases diversas de evolução

moral e jurídica, de sorte que aquilo que ainda não é imoral nem antijurídico

para uns réus já deve sê-lo par outros. [...] a contribuição dos negros nesse

tipo de criminalidade é das mais elevadas123

Não é demais lembrar que a obra de Nina Rodrigues teve influência significativa

na Criminologia brasileira.

120

SODRÉ, M. op. cit. p. 86.

121

RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ed Nacional; Brasília: Ed Universidade de

Brasília, 1982, p. 264.

122

Idem, p. 265.

123

Idem, p. 273.

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João Batista de Lacerda notabilizou-se pela defesa intransigente do

branqueamento como solução paro o Brasil. Segundo SKIDIMORE (1976), A “tese do

branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca”. O fato de a população

negra diminuir progressivamente em relação à branca era um fator que chamava a atenção dos

defensores do branqueamento. De igual modo estavam atentos ao fato de a miscigenação

produzir “naturalmente uma população mais clara”, fenômeno também acelerado pela

imigração branca, ou seja, a predominância branca seria favorecida. Lacerda soube articular

esses dados para desenvolver a tese de que num futuro próximo (100 anos) o país teria uma

população majoritariamente branca. No momento em que a miscigenação é vista como um

entrave para o país porque estava associada à degeneração, ele introduz uma hipótese otimista

de que a miscigenação traria também resultados positivos, tais como uma “população mestiça

sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural como fisicamente” 124

.

João Batista de Lacerda atuou como delegado brasileiro no Congresso Mundial

das Raças, em Londres, em 1911. Defendeu, segundo SEYFERT (1996), o branqueamento da

raça, que, na sua versão científica, “era visualizado como um processo seletivo de

miscigenação que, dentro de um certo tempo (três gerações), produziria uma população de

fenótipo branco”.

Silvio Romero, ensaísta, escritor, defende o “branqueamento da „raça brasileira‟

pela seleção natural”, tese que desenvolveu na sua obra mais conhecida, a “famosa História

da Literatura Brasileira – na realidade uma obra de reflexão sobre o Brasil” 125

. Nesta obra

registra suas conclusões sobre as contribuições do branco, do negro e do índio para a nossa

formação histórica e literária do Brasil, afirmando que a mestiçagem não é de todo um mal, já

que proporcionaria o tipo de indivíduo mais forte mais adaptado ao nosso meio. Eis uma

pequena amostra de seu pensamento:

Alguns autores, ainda sob o domínio de certos preconceitos, negam todo e

qualquer valor intelectual, etnológico e social ao mestiço. [...] Em primeiro

lugar, não é a superioridade intelectual do mestiço sobre o branco que se

quer provar neste livro. O que se quer tornar o patente é que o branco, para

suportar a luta pela existência no meio brasileiro, para adaptar-se à sua nova

patria teve que reforçar-se com o sangue das raças tropicais. Daí o

cruzamento e daí o mestiço, que, como produto de uma adaptação, já é por si

mais próprio para o meio e, se é inferior ao branco pela inteligência, é-lhe

superior como agente de diferenciação, como elemento para a formação de

124

SKIDIMORE, T. op. cit. p. 81 (grifos do autor).

125

SODRÉ, M. op. cit. p.88 (grifos do autor).

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um tipo nacional. José Bonifácio poderia ter mais talento do que Gonçalves

Dias, é possível que tivesse, do que aliás duvido; mas com certeza não era

mais brasileiro, mais nacional do que o grande poeta maranhense. Afinal, é o

branco que virá a prevalecer; porque é ele que nos trouxe a civilização; mas

para assegurar esta mesma vitória, para formar uma nacionalidade forte neste

meio, ele teve que diluir-se na mestiçagem, teve que alterar sua pureza de

sangue (...)126

Euclides da Cunha, autor do clássico “Os Sertões”, era seguidor de Nina

Rodrigues, evolucionista convicto e defensor do ideário social-darwinista. Era inclusive

favorável à imigração branca. Esta traria um “poderoso elemento étnico” para dar ao país um

outra feição.

É na sua obra mais conhecida – “Os Sertões” - que Euclides da Cunha expõe seu

ponto de vista sobre o brasileiro do interior – o sertanejo. Era também jornalista e é como tal

que faz a cobertura de Canudos, um movimento que ele, a princípio, considerou uma contra

revolução contra a jovem república. Opinião que muda quando lá chega e se depara com a

realidade da vida do sertão, vê que se trata mais do que um levante de mestiços ignorantes e

supersticiosos liderados por Antônio Conselheiro. Na verdade, vê essa revolta como uma

“demonstração dramática de poder existencial do homem do sertão vencido pelo poderio

militar das tropas do sul” 127

. Entretanto, a rebelião também era vista por ele como efeito da

instabilidade emocional do sertanejo. Esta instabilidade seria decorrente da mistura de raças,

um dos grandes perigos da miscigenação. Assim como seus contemporâneos, ele acreditava

na hierarquia das raças, por isso explicava o comportamento do sertanejo pelas suas origens

raciais. Segundo Lima e Hochman (1996), nessa obra “sobressaem elementos de força e

fragilidade – o sertanejo é um forte, mas é também rude e carente de civilização” 128

.

Mas o que é marcante na sua obra é análise que faz dos dois fatores que os

deterministas apontavam como os grandes problemas do Brasil – raça e clima. Retrata então

as dificuldades de sobrevivência do sertanejo advindas dos parcos recursos e das calamidades

naturais que o assolavam – a seca; e expõe a preocupação com a grande mestiçagem.

126

ROMERO, S. História da Literatura Brasileira.Apud SALLES, R. H.; SOARES, M.de C. Episódios de

história afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A / Fase, 2005, p. 116.

127

SKIDIMORE, T. op. cit. p. 121.

128

LIMA, N.; HOCHMAN, G. op. cit. P.28.

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PARTE II

O discurso da “raça” e a produção de subjetividade

1. Clínica e relações raciais

1.1. Uma articulação ainda incipiente

No Brasil, quando alguém vira uma figura pública, torna-se incolor. Temos

que discutir claramente o racismo, o desprezo pelos negros, a apatia de

muitos negros. E isso nem sempre se faz com paz e amor. Às vezes é

necessário uma dose de deselegância. Prefiro que sintam raiva, ódio do que

pena de mim. (MVBill - Raça Brasil – out/2004)

Marta129

é funcionária de uma instituição de ensino. Um dia, relatou-nos que seu

filho a tinha informado que estava se sentindo provocado por um colega de turma que o

instigava para a briga. O rapaz disse à mãe que, do jeito que as coisas estavam caminhando,

seria inevitável um confronto entre eles, e, se tal acontecesse, o outro levaria a pior, por ser

mais franzino. A mãe logo entrou em alerta e sentiu necessidade de tomar uma providência;

afirmava que se os meninos chegassem às vias de fato, certamente seu filho estaria fora do

colégio. Ela dizia que, no embate entre um aluno negro, bolsista do colégio, e um branco

pagante, é claro que seu filho estaria em situação de desvantagem. Temerosa do que poderia

acontecer, resolveu agir. Foi procurar o responsável pela disciplina no pátio do colégio e o

notificou sobre o que vinha ocorrendo e cobrou-lhe uma providência, mas a provocação

continuou. Na verdade, seu filho já o notificara do que vinha acontecendo, assim como

também o fora um professor que também não “ouviu” a reclamação. Marta foi então procurar

outro funcionário a quem relatou o que vinha acontecendo e também pediu que uma

providência fosse tomada, pois a situação estava ficando insuportável. Ela temia pelo que

pudesse vir a acontecer, porém, de modo algum expôs, com palavras, o que tanto a afligia.

Os responsáveis pela disciplina finalmente decidiram chamar os dois alunos,

confrontá-los e, assim, por um fim àquela demanda. No final os dois envolvidos são

considerados culpados pela situação criada porque, segundo chefe de disciplina, se eles

anteriormente eram amigos e passaram a se estranhar, de alguma forma os dois eram

responsáveis pelo que vinha ocorrendo.

129

Todos os nomes são fictícios.

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60

Em tempo, Marta comentou que a desavença entre eles teve início quando o seu

filho teve notas melhores que o colega em questão. Foi a partir daí que a perseguição

começou.

A maneira como a situação foi conduzida, levou-a seguinte pergunta: por que seu

filho foi também culpabilizado, se foi o outro que começou a contenda?

Para nós uma questão está posta: que mecanismos sutis se escondem por trás

dessa aparente atitude de neutralidade dos responsáveis pela disciplina do colégio, frente aos

dois estudantes?

Este é um caso que ilustra como o racismo se mostra no cotidiano, sem cara,

travestido em atitudes de recusa da presença ativa e positiva do negro: freqüentar um colégio

classe média e, mesmo sendo bolsista, tirar boas notas. Para Milton Santos (2000), a ascensão

do negro desperta expressões veladas ou ostensivas de ressentimento (paradoxalmente contra

as vítimas).

Relatos desse tipo são comuns, tanto em encontros cujo objetivo é discutir as

dificuldades pelas quais os negros brasileiros passam nas mais variadas situações cotidianas,

quanto em conversa informal entre indivíduos ou grupos quando vêm à tona as experiências

dolorosas por questões de raça/cor.

O caso citado é paradigmático no sentido de ilustrar o que é deveras comum em se

tratando de relações raciais porque nele está contido aquilo que parece caracterizar o racismo

à brasileira, uma espécie de pacto de silêncio entre negros e brancos, qual seja, o de não

ferir o código implícito nessas relações: não tocar no assunto. Afinal, aqui é o país da

“democracia racial”. A este ponto ainda se pode acrescentar a acusação de se estar retomando

um tema já ultrapassado, que é o conceito biológico de raças.

A constatação da inexistência das raças e de que a diversidade intragrupos é

maior do que entre grupos diferentes, que a ciência vem nos revelando nos

últimos tempos, não tem impacto sobre as manifestações de racismo e

discriminação em nossa sociedade e em ascensão no mundo, o que reafirma

o caráter político do conceito e raça e a sua atualidade, a despeito de sua

insustentabilidade do ponto de vista biológico.130

Ora, acontece que este fato por si mesmo pouco mudou a vida dos que sofrem o

preconceito. Concordamos com CARONE (2002) quando afirma que “por mais que a ciência

venha a demonstrar que „raça‟ é uma construção social e ideológica quando se trata da espécie

130

CARNEIRO, S. - op. cit. p. 117.

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humana, ainda assim não será fácil desmistificá-la no plano do cotidiano sócial.” 131

Ela

prossegue lembrando que os intelectuais negros americanos, em tom de pilhéria, costumam

dizer que “as suas pesquisas têm demonstrado a falsidade ideológica do conceito de raça, mas

isso não os ajuda a tomar um táxi no meio da noite...” 132

. Do mesmo modo afirmamos que no

Brasil isso não impede que os poucos alunos negros em instituições como a supracitada, se

sintam pressionados a todo tempo a ocuparem o lugar condizente aos estereótipos “raciais”.

Também não impede que Vilma, uma cliente, negra, confesse se sentir incapaz de

realizar algumas tarefas, em especial as que demandam maior empenho intelectual. Relata, em

seu depoimento, que se sentia muito inferiorizada por ser negra e que só começou a repensar

sua posição a partir do momento em que começou a obter outras informações acerca da

produção intelectual, artística e cultural de negros brasileiros, bem diferentes do que sempre

ouvira durante sua formação escolar, nas aulas de História do Brasil. Ou seja, Vilma começa a

desfazer a associação: negro/incapacidade para... . No entanto, ela. ainda se dizia sem forças

para traçar um outro percurso para a sua vida. As dificuldades que tem que superar são

enormes e algumas estão relacionadas ao desemprego, à moradia distante, ao acesso restrito a

cursos de formação e até mesmo a possibilidade de poder submeter-se ao tratamento

psicológico133

, o qual é apontado por ela como algo que há muito tempo gostaria de poder

alcançar e que só agora o consegue, daí tomá-lo como um passo a mais na sua vida.

As dificuldades de Vilma são comuns à maioria dos negros brasileiros e são o

fulcro de nossa inquietação, na medida em que carecemos de subsídios teóricos que abranjam

as questões suscitadas nos casos relatados. O que nos força a perguntar em que medida a

Clínica contempla a realidade do racismo à brasileira?

Bem talvez já tenhamos a resposta, conquanto entendermos que as dificuldades

que temos tido no âmbito de nossas pesquisas estão relacionadas ao contexto mesmo da nossa

sociedade no que concerne ao silenciamento e negação do racismo. Sendo assim, a clínica

psicológica não difere das demais instituições. A construção desta dissertação é, em si

mesma, uma amostra do que estamos afirmando. Quando iniciamos a pesquisa bibliográfica

sobre racismo e psicologia, encontramos muito pouco material em bibliotecas, e um reduzido

nº de teses e dissertações que abordassem o tema, principalmente no que diz respeito às

131

CARONE, I. Breve Histórico Sobre uma Pesquisa Psicossocial Sobre a Questão Racial Brasileira. In:

CARONE, I,; BENTO, M. A. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 23.

132

Idem.

133

V. refere-se aqui ao tratamento de consultório.

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62

práticas envolvendo a questão racial. Essa dificuldade, de certo modo, não causou surpresa;

para nós ela já se constitui num dado interessante para problematizarmos por ser também

reveladora do “racismo silencioso” a que estamos nos referindo.

Gostaríamos de destacar, que na nossa pesquisa constatamos a existência material

que trata de discutir esse tema no campo dos costumes e da antropologia. Muitos autores

consultados defendem a pertinência de se dar atenção especial às peculiaridades da sociedade

brasileira no que diz respeito à riqueza de manifestações culturais, nas quais estão presentes

crenças, hábitos, costumes e modos de vida que nos informam da influência de diversos povos

que aqui viviam há muito tempo - os índios, e os que para cá vieram ou foram trazidos – os

africanos, os europeus, os asiáticos, etc. Foi até sugerido que fizéssemos um estudo

relacionado com algum aspecto da ancestralidade africana. Não obstante, acharmos

interessante a idéia, conquanto entendermos que parte expressiva da população brasileira tem

uma compreensão de mundo bem particular, que é herdeira dessa tradição, achamos que o

mesmo teria um alcance limitado para o que nos propomos, ou seja, não problematizaria o

“racismo silencioso” e sua presença no campo das práticas psicológicas.

É por conta dos preconceitos, que as religiões de matriz africana foram vistas (e

ainda o são) como expressão do atraso134

. AUGRAS (1995), relata, em “Alteridade e

Dominação”, o quanto o etnocentrismo e a visão evolucionista sobre a diversidade humana

estão presentes em trabalhos de estudiosos que cuidaram, a seu modo, de dar uma explicação

aos fenômenos relativos ancestralidade africana, notadamente no que se refere ao transe

místico. Ela observa que

Os trabalhos clássicos dos antropólogos amiúde recorreram a conceituações

oriundas de teorias psicológicas, quiçá psicopatológicas. Foi o caso de

Raymundo Nina Rodrigues, que se apóia em Charcot para descrever o transe

místico como “estado de sonambulismo provocado, com cisão e substituição

da personalidade” (1900:81), estado este, de cunho nitidamente histeróide.

Três décadas mais tarde, vem Arthur Ramos (1934) introduzir o referencial

psicanalítico para interpretar os mitos iorubanos. Nele, o transe é ainda

enfocado como fenômeno patológico. É preciso chegar a Melville J.

Herskovits (1943) para que seja reconhecida a normalidade do transe, por ser

134

Sobre esta questão Jayro Pereira de Jesus afirma: “Passados 500 anos do “descobrimento”, a cosmovisão

africana continua a ser alvo da ação do racismo cultural-religioso que cada vez mais exacerba a sua afrateofobia

e se retroalimenta de forma cíclica e recorrente, atravessando todos os períodos históricos do Brasil. As barbáries

do racismo religioso se manifestam material e simbolicamente, ratificando continuamente preconceitos,

estigmas, estereótipos, [...] Como que num contínuo, a intolerância religiosa recrudesce potencialmente na

atualidade do século XXI, face ao crescimento vertiginoso das igrejas do campo neopentecostal, que se

notabilizam pelo fundamentalismo e proselitismo beligerantes, numa ação ostensiva notadamente contra

tradições religiosas de matriz africana”. (JESUS, 2003, P.188-189 – grifo do autor). Mais sobre o tema consultar:

JESUS, J. P. “Terreiro e cidadania: Um projeto de combate ao racismo cultural religioso afro e de

implementação de ações sociais em comunidades-terreiros” In Racismos contemporâneos. op. cit. p.185-201.

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63

a possessão comportamento institucionalizado, ritualmente induzido e

treinado. Daí por diante, os estudos das comunidades de terreiro passam para

a alçada quase exclusiva dos antropólogos e sociólogos, norteados pelas

teorias e técnicas próprias de sua área.135

Augras prossegue, apontando, nas interpretações de estudiosos do porte de Freud

e Jung sobre o transe místico e os africanos, respectivamente, o eurocentrismo e a visão

evolucionista da humanidade. Afirma que o psicólogo que queira investigar mais sobre o tema

não disporia de apoio “por parte das teorias clássicas da psicologia da personalidade”, por

exemplo.

Poder-se-ia dizer, generalizando, que a própria visão de personalidade,

dividida em diversas instâncias, e fundamentada na cisão consciente e

inconsciente é a pura expressão do corte racionalista, marca inconfundível do

pensamento europeu.

Que dizer das escolas norte-americanas? Os behavioristas, com seu claro

pragmatismo e sua objetividade, não incorrem nos mesmos deslizes que

Freud e Jung. No entanto, se podem oferecer modelos interessantes no nível

do estudo da socialização – particularmente as teorias da modelagem social –

pouco têm a dizer, por enquanto, no que tange à dinâmica da personalidade.

(...)

Chegando a esse ponto, cabe perguntar: será que a psicologia, ciência euro-

americana por nascimento, possui, tal como está hoje, capacidade para gerar

um saber respeitável, sem submeter-se a uma funda revisão crítica? No

campo que nos diz respeito, as teorias da personalidade revelam - se

dominadas por implacável etnocentrismo.136

Conclui, afirmando que, para os fins a que se propunha, foi necessário buscar um

enfoque “baseado mais na perspectiva fenomenológica do que propriamente psicológica”. Na

pesquisa de campo sobre identidade mítica, preferiu o “enfoque fenomenológico e

compreensivo, como o único meio que assegurasse o respeito aos valores alheios e a

humildade em retratá-los” 137

.

Araújo (1999), em trabalho intitulado “Identidade Racial e Teoria Psicanalítica”,

faz referência à escassa produção brasileira sobre raça e psicanálise e afirma que as produções

existentes, a maioria norte-americana aponta que:

- Tal como já observado, as instituições psiquiátricas e/ou psicanalíticas são

marcadas pelo padrão cultural branco e que a prática dos profissionais é

fortemente marcada por preconceitos ou estereótipos raciais e/ou culturais,

havendo, portanto, a necessidade de desconstrução didática dos mitos raciais e de

135

AUGRAS, M. Alteridade e dominação no Brasil - Psicologia e Cultura. Rio de Janeiro: NAU, 1995, p. 48.

136

Idem, p. 50.

137

Idem, idem.

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os profissionais reconhecerem em si mesmos e nas suas práticas a atuação desses

preconceitos.

- Entre os norte-americanos há quem afirme que há dificuldade de os psicanalistas

brancos se identificarem com o mal psíquico dos pacientes negros. Para tais

autores, pelo fato de não serem negros, estes psicanalistas não levariam em conta

o que seria mais relevante considerar nas queixas dos pacientes, entretanto há que

não concorde com esse ponto de vista.

- as idéias preconceituosas permeiam não só as instituições e as práticas como

também se refletem no pouco número de profissionais negros para os quais há

dificuldades de ingresso nos cursos de graduação138

.

- a orientação dada nas instituições de saúde em comunidades negras também

reflete o etnocentrismo da classe média branca que tem o racismo

institucionalizado139

.

O autor faz uma crítica a esses trabalhos pelo fato de a raça aparecer, ou melhor,

ser na maioria dos casos tomada como algo natural e que as questões ligadas à raça são

tomadas como algo que deveria ser ultrapassado para se chegar ao verdadeiro cerne da

doença, isto é, da causa do transtorno. Acentua que era esperado dos artigos clínicos algo

como uma

revisão metapsicológica sobre o peso do racismo da dinâmica psíquica, em

particular, nos processos identificatórios do Eu. Em vez disso, notamos que

quase todos, a despeito de suas diferenças, partilham irrefletidamente duas

premissas: 1) raça como algo natural – portanto, um conceito não

relativizável e 2) crença na idéia de que questões ligadas à raça no

processo analítico devem ser ultrapassadas, trabalhadas ou aproveitadas

em favor da busca do verdadeiro núcleo patógeno do transtorno

apresentado.140

138

Em trabalho recente, Moema Poli Teixeira, afirma que “se por algum critério metodológico , considerando

que na Universidade predominam os alunos brancos, fôssemos escolher o curso menos branco, o eleito seria o

curso de serviço social com apenas 55,2% de alunos brancos. (...) Enquanto o mais clarinho seria disparado o de

Medicina, com quase 90% de alunos brancos (88%0 e ainda na faixa dos 80% teríamos Odontologia (85,6%),

Informática (83,3%, Farmácia 81,9%, Engenharia e Psicologia (com 80,7 e 80,6% respectivamente)” In

TEIXEIRA, M. P. - op. cit p. 27.

139

Sobre a formação do Profissional “psi”, é bem vinda a leitura do trabalho de Vilhena et. all. Embora não trate

da questão racial, as autoras fazem uma reflexão interessantíssima sobre o descompasso que há “entre valores

que norteiam a cultura, as práticas e a formação do profissional do psicólogo e aqueles que estão presentes entre

os sujeitos pertencentes aos setores mais pobres da população” In VILHENA et all. “O trabalho do Psicólogo

com Comunidades: Cultura e Formação Profissional. Psicologia Clínica. Departamento de Psicologia, PUC-Rio

vol 12/1 Ano 2000, p.133.

140

ARAUJO, G. G. op. cit. p. 67.

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Quanto à primeira premissa, já tratamos anteriormente. Sobre a segunda, o autor

discorre sobre a aceitação de associar raça com sofrimento, porém, ela é reduzida às questões

de cor e clinicamente sua relevância é reduzida a possíveis associações inconscientes, a

traumas precoces de outra ordem, Há tentativa de sempre afirmar que há algo por trás de raça.

Ela que parece estar em sintonia com a idéia de conflitos na esfera das

identidades sócio-culturais – como os conflitos provocados pela

discriminação racial – não têm o mesmo status explicativo ou descritivo das

causas ou razões responsáveis por conflitos afetivo-sexuais.141

Araújo ressalta ainda a dificuldade de os autores reverem os pressupostos da

crença que adotaram ao analisar o racismo na psicanálise, ou seja, não colocaram em questão

as bases de sua própria crença. Considera que isto tem a ver com a idéia de raça erigida no

século XIX (Ver Parte I) e com as implicações morais es estéticas que as categorizações

raciais sempre tiveram.

Sobre as bases da crença na existência de raças humanas, o trabalho de

AZEVEDO (2002) nos fornece uma rica contribuição ao discutir as implicações da utilização

das conceituações racialistas construídas na modernidade sem uma avaliação crítica de seus

pressupostos teóricos nos quais sobressaem os preconceitos sobre as raças ditas “inferiores”.

A autora problematiza, inclusive, o universalismo humanista que exclui vários segmentos de

pessoas, sendo ele mesmo que está no seio da teoria liberal.

BEZERRA (1987), ao referir-se sobre as peculiaridades dos usuários dos serviços

públicos de saúde mental, apontou alguns problemas diante do que é por vezes caracterizado

como “insucesso” do tratamento ali dispensado. Dentre alguns equívocos cita a “ilusão da

universalidade” que dificulta perceber “as verdadeiras fronteiras culturais que percorrem todo

o conjunto social demarcando modelos culturais e visões de mundo que apresentam entre si

diferenças de uma profundidade muito maior eu se possa parecer a um olhar mais

desavisado”. Continua, afirmando que, “o homem objeto das teorias do comportamento

individual não é um indivíduo dado, natural e universal, mas sim uma construção social,

historicamente datada e geograficamente pouco uniformizada”.142

O texto de Bezerra aponta para a diversidade dos usuários dos serviços públicos

em saúde mental, porém não adentra no que seria esta diversidade, tampouco fornece dados

que permitam dizer o quanto as formulações teóricas sobre as “raças”, elaboradas no séc.

141

Idem, ibidem.

142

BEZERRA JÚNIOR, B. “Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental”. In TUNDIS, S.

A. e COSTA, N. Cidadania e Loucura – Políticas de Saúde Mental no Brasil . Petrópolis: Vozes, 1987, p. 140-

141.

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XIX, ainda são atuantes na sociedade, ou melhor, ainda permeiam os saberes sobre essa

diversidade. Por conta disso caberia perguntar: em que medida as práticas “psi” põem em

questão essas teorizações?

Pensamos que um breve retorno aos primórdios da introdução da psicanálise no

Brasil pode nos ser de grande valia. De acordo com NUNES (1988), os princípios da

psicanálise começaram a ser adotados pela comunidade médica brasileira durante aos anos de

1920 e 1930. Período em que ganha força a idéia de que a teoria freudiana seria importante

para a compreensão dos distúrbios mentais. Porém, isso não chega a “promover mudanças na

ideologia psiquiátrica dominante”.143

Na verdade, o que se tem é uma adaptação do discurso

psicanalítico ao “projeto político mais global, pretendido pela medicina da época” 144

. Trata-

se do projeto de higiene social traçado no decorrer do século XIX, cuja grande preocupação

era a intervenção direta sobre o social, visando a transformação de hábitos e costumes da

população. Nesse contexto, o foco das atenções das autoridades médicas se voltava para

grande “massa populacional constituída de brancos pobres, estrangeiros, imigrantes, escravos

libertos, etc. que formava um proletariado nascente e uma população marginal” 145

cujos

modos de vida eram vistos como inadequados à nova ordem então se consolidando. A grande

preocupação era “com a formação de um novo tipo de indivíduo, para o melhoramento do

povo, para o aperfeiçoamento da raça brasileira” 146

. Neste contexto, a escola e a família serão

os espaços que vão merecer a especial atenção dos higienistas, para os quais a educação física

e moral da infância é condição para o país adequar-se às exigências dos novos tempos.

Com o objetivo de preparar as crianças para um futuro livre de aspectos

degenerativos e conseqüentemente para se alcançar um desenvolvimento

adequado, os higienistas vão propor regras minuciosas, cuidados constantes,

modificações nos hábitos familiares, mudanças nos sistema educacional, com

vistas a garantir uma boa formação física e moral de cada cidadão.

É nesse momento que a instituição psiquiátrica vai ganhar um lugar de relevo

nos discursos médicos.147

Nunes chama a atenção para o fato de a psiquiatria naquele momento estar muito

preocupada com a formação moral dos indivíduos e, nesse sentido, propõe medidas de higiene

143

NUNES, S. A. Da Medicina Social à Psicanálise. In BIRMAN, J. (coord). Percursos na História da

Psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Taurus, 1988, p. 61.

144

Idem, p. 62.

145

Idem, p.63.

146

idem, idem.

147

Idem, p. 64

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nas quais estavam incluídos cuidados especiais que visavam defendê-los da “degeneração

psíquica, que seria uma desordem nos centros nervosos que produziria perturbações nos

sentimentos e pensamentos e tornaria os indivíduos inaptos à vida e improdutivos ou nocivos

à sociedade” 148

. Considerada como passível de ser transmitida hereditariamente, ou até por

falha na educação, a degeneração psíquica passou a ser um grande perigo a ser evitado. O que

vai justificar a necessidade de uma maior intervenção médica sobre a população. Daí por

diante, a medicina passa a tomar qualquer desvio de comportamento como manifestação desta

anomalia. Nota-se, contudo, que esse discurso, de início era voltado para as elites, visando “o

aperfeiçoamento de constituição de uma burguesia nacional livre de taras” 149

, vai aos pouco

atingindo os setores empobrecidos da população, cujos hábitos de vida são vistos como focos

de doenças e vícios.

Em 1923, com o propósito de dar assistência aos doentes mentais e ampliar os

trabalhos de prevenção e a educação dos indivíduos, foi fundada a Liga Brasileira de Higiene

e Saúde Mental. Nos anos seguintes, observa-se, claramente quea atividade da Liga ultrapassa

aos objetivos puramente assistenciais, posto que suas ações vão resvalar para projetos que

estimulam a eugenia. Projetos que podiam ser, desde campanhas contra alcoolismo, até

“projetos de estímulo à prática de esterilização de indivíduos considerados nocivos à

sociedade”.150

Observa-se que:

no centro destas formulações estava a preocupação com a raça brasileira,

com seus aspectos inferiores, selvagens e degenerados” (...) A eugenia foi

nesse período um tema nacional que alcançou grande repercussão, e que

tinha como base a preocupação com a constituição étnica do povo

brasileiro.151

É importante assinalar que esse período é marcado por intensas convulsões sociais

motivadas pela luta por melhores condições de vida de grande parte da população moradora

dos grandes centros urbanos. No entanto, com o afã de fortalecer as elites e conter a

insatisfação crescente das massas que colocava em risco a organização do Estado, parte da

intelectualidade brasileira tenta explicar os conflitos como efeito de fatores raciais que fariam

parte da constituição do povo. Dentre esses intelectuais vamos encontrar muitos expoentes da

148

idem, p.65.

149

Idem, idem.

150

Idem, p.67.

151

Idem, p.68.

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psiquiatria brasileira que vão buscar na constituição biológica do homem brasileiro a

explicação para os problemas econômicos e políticos advindos do modo capitalista de

produção. Para esses intelectuais o homem brasileiro tinha se tornado indolente,

indisciplinado, preguiçoso, um perigo ambulante para a ordem e o progresso nacionais por ter

herdado aspectos degenerados das raças inferiores.

Nunes chama a atenção para o fato de que é nesse contexto que as descobertas

freudianas começam a ser introduzidas nos círculos de estudo, nas faculdades de medicina,

etc. Salienta que a maioria dos trabalhos que buscam divulgar a psicanálise a aponta como um

saber que pode ser auxiliar na pedagogia e num programa de melhoramento do povo em geral.

“esta ciência por permitir um acesso ao que haveria de mais profundo nos indivíduos, poderia

ser de grande importância nesse projeto de pedagogia moral do povo. E é esse aspecto que vai

ser enaltecido e destacado.”152

Para os psiquiatras, a psicanálise tornou-se um dos temas mais

relevantes para o saber psiquiátrico, embora lhes fizessem algumas restrições .

Se de seu aspecto meticuloso resulta que algumas demasias devam ser postas

de lado, fato é que proveitosíssima é a investigação que nos permite devassar

o pensamento alheio e apurar a grande influência que nos distúrbios dela

desempenham as questões sexuais. A psicanálise consiste em um método de

exploração diagnóstica em que se investiga o objeto do pensamento alheio.153

Esse aspecto de um saber que poderia desvendar a alma alheia agrada por demais

os médicos, pois entendem que isto pode ajudar nas medidas de prevenção de doenças desde a

infância e evitar possíveis desvios. Sendo assim, percebe-se que o interesse dos médicos

volta-se mais para este propósito do que para o uso terapêutico da psicanálise.

Há, pois, uma certa adaptação das formulações psicanalíticas, de forma até mesmo

descontextualizada aos propósitos da psiquiatria. Não há sequer preocupação em atentar para

o fato de alguns conceitos freudianos entrarem em choque com as teorias psiquiátricas

hegemônicas no século XIX. Nas formulações da psicanálise sobre o aparelho psíquico, por

exemplo, não há lugar para que se continue falando de hereditariedade e degeneração,

entretanto, isto não encontra eco na comunidade dos psiquiatras. “Nossos autores não vão

abrir mão da idéia de que a causa etiológica fundamental dos distúrbios mentais são os

estigmas degenerativos que seriam transmitidos hereditariamente.”154

Alguns psiquiatras

152

idem, p.71.

153

ROXO, H. Psicanálise. Apud NUNES, S. A. op. cit. P. 71.

154

NUNES, S. A. op. cit, p.75.

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69

defendem a psicanálise , extraindo de sua teoria o que acham interessante e útil, mas as

proposições básicas da psiquiatria permanecem intocadas: o binômio hereditariedade-

degeneração.

Elas estão nos tratados de medicina e psiquiatria que vão utilizar o negro como

objeto da Ciência como o fez Nina Rodrigues e Henrique Roxo. Para o primeiro, “quanto

mais mestiço, mais degradado, descaracterizado, débil, sujeito a toda sorte de doença. A

hereditariedade híbrida poderia produzir produtos ainda piores que os negros” 155

. Nina

Rodrigues até mesmo defendeu a tese sobre a responsabilidade penal dos negros e mestiços,

que segundo ele não poderia ser a mesma dos brancos porque aqueles eram menos evoluídos

que estes156

. Henrique Roxo, ao investigar algumas moléstias mentais que afirmava serem

próprias dos negros, atribui a causa das mesmas ao fato de os negros serem pouco ou nada

evoluídos.157

Na verdade, na vasta bibliografia existente sobre o período áureo do higienismo

no Brasil, as massas empobrecidas, nas quais se destaca o grande número de negros e

mestiços, são sempre vistas pela ótica do evolucionismo, pouco se lhe dão importância a não

ser enquanto corpo que deve ser tornado útil para o trabalho.

Como podemos notar, as investigações de Silvia Nunes acerca das práticas

psiquiátricas e eugênicas, nos dão conta do quanto elas estavam atravessadas pelos

preconceitos raciais.

Os pressupostos da “inferioridade” dos negros veiculados pelas teorias racialistas

estão presentes nas formulações de uma psiquiatria que, segundo Jurandir Costa, era “racista,

moralista, xenófoba, desejosa de imobilizar um povo tido como degenerado e

insubordinado”158

. Uma psiquiatria que se apoiava na antropologia criminal de Lombroso,

psiquiatra italiano que acreditava que as proporções do corpo eram o espelho da alma. Bento

nos lembra que “o biótipo do criminoso nato de Lombroso era o biótipo do negro, eram os

negros que estavam, sob o rótulo de criminosos, presos nas casas de detenções, submetidos à

155

LOBO, L. F. op. cit. p.67.

156

Nina Rodrigues, após discorrer sobre o que considera característico das chamadas raças inferiores, declara:

“A presunção lógica, por conseguinte, é que a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças

inferiores, não pode ser equiparada a das raças brancas civilisadas.” In RODRIGUES, N. As raças Humanas e a

responsabilidade penal no Brasil. Salvador:Livraria Progresso Editora, 1957, p.117-118.

157

Mais sobre as proposições de Henrique Roxo sobre os negros e algumas doenças mentais, consultar LOBO,

op. cit. p. 68-71.

158

Apud BENTO, M. A. op. cit. p. 36.

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70

mensuração”.159

Esses pressupostos estão igualmente nos laudos, como o demonstra Maria

Clementina Pereira da Cunha em “O espelho do mundo – Juquery, a história de um asilo”.

Nos laudos dessa instituição, a mulheres internadas, quase todas negras, eram citadas como

degeneradas em função de suas características raciais: “Os estigmas de degeneração física que

apresentam são os comuns à sua raça: lábios grossos, nariz esborrachado, seios enormes e pés

chatos”.160

Se essas mulheres fossem encontradas viajando sozinhas eram diagnosticadas

como ninfomaníacas.

Convenhamos, tem razão BENTO (2002) quando afirma, apoiada em PATTO

(1997), que

estas são as bases de uma psicologia que se faz presente até hoje que explica

as condições dos que vivem em desvantagem, tidos como perdedores a

partir de distúrbios ou deficiências presentes em seu aparato físico ou

psíquico, absolutamente naturalizados [...] os psiquiatras são citados por ela

como nossos ancestrais, pois foram os primeiros a trazer a psicologia que se

aplicava na Europa n o século XIX161

.

Segundo BATISTA (2003), os laudos psiquiátricos e psicológicos do Juizado de

Menores atestam a vigência das bases da psiquiatria do século XIX. Sobre as equipes

auxiliares e técnicas das Delegacias e do Juizado de Menores e Funabem, compostos por

assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras e médicos, faz o seguinte comentário:

Estes quadros técnicos que entram no sistema para humanizá-lo, revelam em

seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças a serem

proferidas) conteúdo moralistas, segregadores e racistas carregados daquele

olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão

presente até hoje nos sistemas de controle social.162

Pensamos que, a partir dessas constatações, podemos retomar aqui algumas

conclusões de Araújo sobre a necessidade de “desconstrução didática dos mitos raciais por

meio de livros e seminários, além da busca permanente, por parte dos terapeutas, do

reconhecimento de seus próprios preconceitos e idiossincrasias.”163

Concordamos com este

ponto de vista, todavia entendemos que isto só será possível à medida em que denunciamos o

159

Idem, idem.

160

CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo - Juquery, a história de um asilo. Apud BENTO, M. A. Op. cit. p. 36.

161

Idem, idem.

162

BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan,

2003, p. 117 (grifo da autora).

163

ARAÚJO, G. G. - op. cit. p.63.

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71

racismo que permeia as relações sociais no nosso país, de uma forma tão perversa porque não

dito, mas profundamente arraigado nos costumes, nas expressões, nos laudos, nas crenças, na

distribuição e ocupação do espaço urbano, etc. Trata-se, pois, de uma escolha ética e política.

Estamos por certo falando de uma clínica na qual as questões do cotidiano têm

lugar, porque o terapeuta pode ouvir outras coisas além do sexual-infantil (RAUTER, 1998).

Esse posicionamento é efeito da problematização de práticas que vêem na organização

familiar, na qual os desejos, as referências giram em torno das figuras parentais, a origem de

traumas e conflitos de toda ordem. A tentativa é sempre a de explicar a realidade à luz da

estrutura familiar (GUATTARI; DELEUZE, 1976). Quando, ao contrário desse

posicionamento, entendemos que também o cotidiano deva ser considerado, apostamos numa

clínica que põe em questão a própria realidade, não se fixando em buscar o significado dos

fenômenos que nela ocorrem, mas em analisar os efeitos que eles produzem nas relações

sociais. Recusa-se assim a promover a interiorização e a intimização tão característicos da

subjetividade contemporânea. Ademais, nesta perspectiva clínica, o inconsciente faz mais que

simbolizar, ele é a própria realidade, posto que ele é entendido com o produtivo, maquínico.

O campo do inconsciente não é mais, nem menos importante que o campo do real histórico.

De sorte que ambos (inconsciente e campo social) são igualmente afetados porque não estão

separados. O campo social é também fruto do desejo (Idem), e este é, igualmente, produzido.

Quando alguém se queixa de discriminação, há que se ter em conta que tal

acontece em uma sociedade que produz indivíduos sujeitados a certos parâmetros e que as

formações inconscientes são continuamente atravessadas pelo campo social e vice-versa.

Quando tudo é remetido ao campo da linguagem, corre-se o risco de não levar em conta que

esses fenômenos de discriminação tanto dizem respeito à ação concreta dos indivíduos

envolvidos, à sua maneira de conceber a realidade que o cerca; como podem estar presentes e

sendo (re)produzidos nas práticas institucionais.

Pensamos que se pode discutir as implicações políticas164

de privilegiar uma

prática que ignora ou minimiza o social, o histórico e o político, e mais: tenta remetê-las a

significações pré-estabelecidas. Em se tratando da questão da negritude, cremos que propor

uma clínica que contemple outros modos de subjetivação ou, melhor dizendo, que considere o

modo de subjetivação capitalístico que faz parecer como estranhos, nocivos ou inferiores,

tudo o que não se enquadra na norma dominante, envolve alguns cuidados tais como o de não

entender essa admoestação como a reivindicação por mais uma especialidade clínica. Cremos

164

É bom lembrar aqui a observação de Rauter (1998, p.121) que “uma prática clínica é, antes de tudo política,

na medida em que a produção de subjetividade é política.”

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ser importante pensar e investir na problematização de uma prática que, como toda a

sociedade, ainda é atravessada pelos estereótipos raciais e pelo silenciamento e negação que

envolvem o tema do racismo em nosso meio, e na construção de dispositivos teóricos e

clínicos que não podem mais ignorar que na nossa sociedade o lugar de cada um não pode ser

dissociado das concepções racistas que ainda vigem entre nós.

Acreditamos ser pertinente a propósito da luta contra o racismo o que KOLKER

(2002) afirma com relação à tortura: “Enquanto a nossa sociedade não se perceber atingida

pela tortura e pela impunidade, esta prática continuará a fazer vítimas e a comprometer a

democracia” 165

.

Foi o reconhecimento de que a prática da tortura fere os princípios democráticos

que impulsionou os membros da Equipe Clínico Grupal Tortura Nunca Mais a construir

estratégias terapêuticas junto aos pacientes vítimas de tortura. Frente ao fato de que os

repertórios existenciais e teóricos-técnicos acumulados até o momento não davam conta de

pensar as marcas da tortura, “lançamo-nos então, junto aos pacientes, à tarefa de construir

nossas estratégias terapêuticas” 166

.

Admitimos que isso só aconteceu porque houve uma disposição política que

tomou essas marcas como expressão de subjetividades produzidas no contexto

sócio/econômico/político das ditaduras militares dos países sul-americanos. Contudo, aceitar

essa demanda não implicava nem na “configuração de uma nova vitimologia, com

privatização e despolitização do dano, nem na construção de novas categorias

psicopatológicas ou de novos especialismos.” 167

Outrossim, implicava, certamente, em não

atribuir outros significados à tortura; tratava-se, pois, de discutir uma prática que, naquele

momento histórico específico, foi utilizada pelos defensores do regime para atender às

exigências do capital. O modelo de desenvolvimento adotado era apresentado como

necessário para o progresso, de sorte que seus opositores eram transformados em inimigos do

país. Foi um momento em que vê claramente como as forças sociais que administram o

capitalismo investem na produção de subjetividade posto que, naquele instante, o recurso à

tortura - uma forma de fazer calar (SIRONI, 1999) - foi um meio de regular a conduta dos

indivíduos, portanto tudo caminhava para a consolidação de um certo modo de viver. Dar

165

KOLKER, T. Ética e intervenção clínica em relação à violação dos Direitos Humanos. In: RAUTER,

C.;PASSOS, E.; BENEVIDES, R. (org). Clínica e Política: subjetividade violação dos direitos humanos.Rio de

Janeiro:IFB/ Te Corá Ed. ,2002, p.190.

166

Idem, p. 184.

167

Idem, idem, (grifo da autora)

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outros significados à tortura remetendo-os à intimidade do lar, buscando relacioná-la às

estruturas do psiquismo é desconsiderar todo o campo social no qual individualismo e

consumismo são expressões da subjetividade dominante.

Por conseguinte, nesse tipo de abordagem, as questões do cotidiano são acolhidas

porque se parte do pressuposto de que elas são contingentes, não são naturais, são produções

histórico-sociais e como tais devem ser remetidas ao contexto de sua produção168

. Nesse caso,

têm lugar as práticas psi comprometidas com a produção de “novas questões, novas

problematizações, novos territórios, agenciamentos e subjetividades que não sejam meras

reproduções, mas que consigam afirmar-se no campo da singularidade” 169

. Contrariamente a

essa posição, havia (e pensamos que ainda há) quem procure relacionar a queixa do torturado,

ou de quem sofre qualquer discriminação por “raça” a conflitos intrafamiliares. Nós

preferimos pensar nos efeitos da influência do torturador (SIRONI, Idem), ou dos estereótipos

raciais.

Pensamos que esta observação vale também para pensar em como tratar os efeitos

do racismo, mesmo em sua expressão silenciada. Para isso reiteramos que é necessário

colaborar e insistir na necessidade de investir na análise da história e da realidade do país,

procurando tirar o véu de silêncio que encobre as profundas desigualdades raciais.

1. 2. Quando o silêncio fala mais alto

No ano de 2002, o Conselho Federal de Psicologia lançou um concurso cujo tema

foi: “Pluralidade Étnica: um desafio à Psicologia Brasileira”. Era uma convocação para um

aprofundamento do conhecimento acerca da questão étnica, para a produção de um saber

enraizado na nossa realidade social e cultural. Considerava ser o Brasil um país no qual as

“pluralidades étnica e cultural são as marcas de sua história enquanto nação”. Entretanto,

parte dessa pluralidade tem sido negada “quer pelas teorias do caráter nacional brasileiro, quer

168

Em relação à tortura, Sironi (1999) fala da necessidade de pesquisar a intencionalidade do torturador

(pensamos que poderíamos acrescentar, no contexto deste trabalho, os propósitos do racismo) que seria a

tentativa de “nadificação”, de fazer desaparecer tudo o que funda a singularidade. É um ataque à parte coletiva

do indivíduo, desintegrando a articulação entre o singular e o coletivo.

169

COIMBRA M. B. et al. Intervenção clínica quanto à violação dos Direitos Humanos: por uma prática

desnaturalizadora na teoria, na ética, na política. In: RAUTER, C. ; PASSOS, E.; BENEVIDES, R. op. cit. p,

115.

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pelas concepções de Psicologia centradas em pressupostos advindos de continentes como

Europa e América do Norte”.170

Esta é uma realidade constatada, mas penso que a questão ainda pode ser ampliada

se houver a tentativa de investigar as razões dessa negação. Talvez SODRÉ tenha razão,

quando afirma que “persiste ainda hoje a utopia civilizatória da Europa” 171

ao comentar sobre

a incapacidade de parte da intelectualidade brasileira de reconhecer os valores das culturas

não européias, imputando-lhes uma suposta inferioridade.

Para AZEREDO (2002), falar de pluralidade étnica “torna-se um desafio,

sobretudo para a Psicologia, uma disciplina que tem privilegiado o enfoque individualista, não

prestando atenção às determinações históricas nem tampouco à dimensão política da

constituição do ser humano”. E vai mais adiante sublinhando que:

o enfoque individualista que tem sido geralmente privilegiado pela

Psicologia está em sintonia com a sociedade desigual que tem sido o Brasil

desde o tempo da colônia, e considero que permanecer nesse enfoque

significa compactuar com o processo que produz a desigualdade.172

No texto mesmo do CFP há a afirmação de que parte da pluralidade étnica

brasileira é negada, contudo pensamos que não basta esta constatação. Há a necessidade de

atentarmos para as práticas desenvolvidas, sobretudo nos serviços públicos, que é para onde

se dirige a maioria dos negros. E, então, perguntamos, estão estes serviços atentos às

especificidades deste segmento da população, no que concerne ao sofrimento psíquico

advindo das suas características “raciais”? Pensamos que não, porque, tal como quaisquer

outras instâncias da sociedade, ali também a negação e o silêncio sobre as desigualdades

raciais fazem parte do cotidiano. Sabemos que a célebre frase: “aqui é todo mundo igual”, é a

resposta, quando alguém ousa dizer que está sendo discriminado por causa da cor. É bom

lembrar o que já dissemos anteriormente sobre as manifestações sutis de racismo tão comuns

no nosso dia a dia! Assim como a perpetuação das desigualdades tem a ver com as práticas

individuais ou institucionais. Traremos a seguir alguns fatos que poderão ilustrar o que

estamos querendo mostrar.

170

Psicologia: Ciência e Profissão. Revista do Conselho Federal de Psicologia. Ano 22, nº 4, 2002 - Editorial.

171

SODRÉ, M. Op. cit. p. 33.

172

AZEREDO, S. M. da M. “O Político, o Público e a Alteridade como Desafios para a Psicologia”. In

Psicologia: Ciência e Profissão. Op. cit., p. 15.

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Como atividade de pesquisa173

, durante algum tempo, acompanhamos de perto o

trabalho desenvolvido com adolescentes e jovens numa instituição voltada para o tratamento

de usuários de drogas. Em diversas ocasiões, os profissionais que lá atuavam chegaram a

comentar que a segurança de um supermercado próximo era reforçada quando os meninos iam

fazer compras. Atitude que era vista, pelos profissionais que os acompanhavam, como

decorrente do fato de serem usuários de drogas e terem eventualmente algum envolvimento

com o tráfico. Todavia, há alguns dados sobre esses meninos e a instituição que os acolhe que

também podem explicar o reforço da segurança. Trata-se de uma instituição pública e os

adolescentes ali atendidos são, em sua maioria, negros ou pardos. Fato que confirma as

estatísticas oficiais, pois, entre os que buscam os serviços públicos de saúde os negros e

pardos constituem a maioria (LIMA, 1999). Nenhum dos profissionais fez qualquer referência

a esse último item, a cor dos meninos. Silêncio, entretanto, não é novidade que o fato de

serem negros e pobres os torna suspeitos em potencial, são considerados perigosos, daí a

“necessidade” de maior vigilância.

Igualmente silêncio sobre esta questão, quando se discutia a dificuldade de

inserção de algum deles em algum trabalho, o que era dificultado pela baixa escolaridade.

Mas nem de longe se estabelecia qualquer correlação entre o nível de escolaridade desses

meninos e a sua condição social, nenhuma menção ao fator racial como um dos determinantes

dessa realidade. Os dados oficiais estão aí a informar que o tempo de permanência na escola é

menor entre os negros174

. É comum a preocupação com o trabalho, o qual é geralmente

apontado como solução para o adolescente pobre. Quando se fala em escola é quase sempre

na perspectiva de preparação para o trabalho. Afinal é natural que esses meninos trabalhem.

Têm que cuidar do próprio sustento e ajudar em casa. Além disso, nem sempre lhes é

garantido o acesso à escola, e, quando tal acontece a chamada qualidade de ensino deixa

muito a desejar. A falta de recursos no setor ficou ainda mais acentuada nesses tempos de

economia globalizada e são os mais pobres que têm sofrido os efeitos das políticas neoliberais

de ajuste da economia de modo que é cada vez maior o fosso que separa ricos e pobres,

negros e brancos.

Esta mesma instituição também abrigava uma cooperativa de mulheres, a maioria

tinha filhos usuários do serviço ali prestado. Quando em algum momento se solicitava que

173

Pesquisa: “Produção da Violência e Subjetividade Contemporânea: construindo dispositivos clínicos

transdisciplinares” - UFF/Equipe Clínico Grupal Tortura Nunca Mais. Coordenação: Cristina Rauter. 2000 –

2004. 174

“A média da freqüência escolar da população negra é hoje de 4,4 anos” - RUFINO, A. “Configurações em

preto e branco” In Racismos Contemporâneos. op. cit. p. 30.

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falassem algo de suas experiência de vida, se negavam a fazê-lo, alegando que nada tinham a

dizer. Quase sempre desqualificavam o próprio trabalho, como se para elas não fosse possível

sustentar o desejo de ter algo de sua autoria. Pensamos que esse posicionamento possa estar

relacionado também com a questão racial, entretanto, esse tema sequer era colocado; confesso

que eu mesma hesitava em provocar uma discussão sobre o assunto, embora sentisse

necessidade de fazê-lo, porque sentia ali como que pairando no ar um sentimento de

impotência tão comum entre os negros, quando se tem pela frente o desafio de estar numa

posição bem diversa da tradicionalmente ocupada, ou seja, nas profissões de menor prestígio

social. Mas eu temia o efeito de uma intervenção nesse sentido pelas razões mesmas já

apontadas, de ser acusada de estar importando um problema e aí o não dito (é uma prática)

tem força de manter tudo nos seus devidos lugares. Justificado pela urgência em resolver os

problemas relativos ao funcionamento da cooperativa qualquer discussão que não trouxesse

uma resposta imediata às dificuldades daquelas mulheres parecia não caber ali. Dificuldades

de trabalho, de transporte, par comprar remédios, de manter os filhos na escola, de moradia.

Ora, todo um contexto de uma população excluída de bens e serviços na qual os negros são

maioria. Outrossim, o modo como essas mulheres se viam naquele trabalho era demonstrativo

de como se sentiam “incapazes” para tal empreitada.

Apenas uma vez houve uma alusão clara e direta sobre raça naquela instituição.

Aventou-se a possibilidade de uma menina ter problemas em casa por ser “morena”; os pais,

adotivos, eram brancos. Entretanto a discussão não foi adiante.

Em uma outra instituição, diferentemente da que acabei de mencionar, esse tema é

abordado, e não teria como não sê-lo, pois e ali se desenvolve um trabalho cujo objetivo é a

valorização da cultura negra. Trata-se de um trabalho de assistência a crianças pobres

moradoras de alguns bairros da periferia de Niterói. São crianças que, via de regra, necessitam

de reforço escolar, em sua maioria pertencem à rede pública de ensino. O centro oferece

reforço escolar, atendimento psicológico, cursos de cabeleireiro, informática, manicure e

pedicure e oficinas de dança, pintura, etc. Tal como no exemplo anterior, a grande

preocupação dos educadores é com o “futuro” desses jovens (eles só podem ficar até os 16

anos), devido à proximidade deles com o tráfico. Portanto, encaminhá-los para o mercado

de trabalho o quanto antes se torna imperativo. Todavia, o baixo desempenho escolar tornam

menores as chances de esses jovens terem uma ocupação e/ou continuarem os estudos.

Continuar os estudos, na verdade, parece ser uma possibilidade quase que remota

para a maioria, na opinião de uma das educadoras. Ela revela com muita tristeza que isso nem

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sequer se cogita no meio deles. Parece algo que não cabe em sua realidade. É como se

estivessem “destinados” precocemente ao trabalho, afinal são pobres e negros.

As duas instituições se assemelham, não obstante, na primeira, a questão racial

não ser colocada, verbalmente. Ambas discutem o “futuro” de sua clientela e, comumente, os

profissionais, apontam alguns fatores que limitam as oportunidades que esses jovens têm de

desenvolver suas potencialidades, e inviabilizam o próprio tratamento, ou o estudo. Dentre

esses fatores se destacam a falta de recursos e a ação do tráfico.

Todavia, não se discute as práticas ali implementadas, pouco de indaga acerca dos

vínculos que esses sujeitos mantêm com a instituição, esta lhes fornece o vale transporte, a

refeição175

e, às vezes, uma esperança de trabalho. Quase sempre o discurso é sobre a

preparação deles para enfrentar as dificuldades da vida. Mas de que vida está se falando? Que

caminhos lhes são apontados? Certamente os caminhos considerados os melhores, já que

eles não têm condições de outro melhor, leia-se, não podem querer outro. Em muitas

circunstâncias sequer chegam a conhecer outro caminho.Naturaliza-se assim sujeitos e

lugares.

Os caminhos apresentados como melhores passam quase sempre pela preparação

para o trabalho. Este é, quase sempre, tomado como fonte de redenção para adolescentes e

jovens das periferias das cidades.

Não obstante as transformações que ocorreram em nossa sociedade, observamos

que esta realidade pouco mudou. Não é de hoje que para as crianças pobres é apontado, não o

caminho da escola, mas o do trabalho, muitas vezes em condições pouco favoráveis ao seu

desenvolvimento integral. Trata-se de uma prática que se repete ao longo dos anos. Foi a

solução encontrada para os filhos dos escravos e libertos, como o é hoje para os filhos dos

excluídos dos bens e serviços, dos “consumidores falhos” (BAUMAN, 2001).

É comum a imagem de crianças trabalhando em qualquer época da história

brasileira, uma imagem que reflete muito bem o caráter excludente das políticas oficiais, que,

via de regra, sempre estiveram em consonância com os interesses das classes dominantes. Os

empobrecidos vão tendo acesso aos bens, dentre os quais podemos incluir a educação, na

medida em que, de alguma forma, isto vai torná-los indivíduos aptos à ordem burguesa. É a

partir desta perspectiva que se pode ter uma visão mais abrangente de uma sociedade

175

A questão que levanto é a seguinte: como esses “benefícios” chegam aos seus destinatários? Eles são meios

para os jovens alcançarem seus objetivos ou são dádivas de uma mão poderosa que os mantêm em seus devidos

lugares? O lugar da impotência, do não saber, do sonho não sonhado. Não será ainda a mão do “senhor” que

ainda persiste e se considera necessária, porque “esse pessoal” pouco ou nada têm a oferecer? Afinal, essa

massa iletrada e “inculta” precisa ser redimida.

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organizada de tal forma que, para determinadas crianças e adolescentes, o abandono da escola

é visto como inevitável em decorrência da necessidade de trabalhar. Essa obrigação de

trabalhar é antiga, ela é inclusive parte da história dos empobrecidos deste país! Esta história

é, sem dúvida, a dos negros brasileiros os quais constituem 63% do total de pobres no Brasil

(RUFINO,2003)

CUNHA (1999) traça um painel de como se deu a inserção do negro no sistema

educacional brasileiro. Para tanto começa sua pesquisa, buscando na história da educação no

Brasil algo que a informe sobre tal fato, tendo em conta que até a abolição isso não se

colocava, pelo fato mesmo de que no sistema escravista, por razões óbvias, a escolarização

dos negros era descartada, isto é, o negro era proibido de freqüentar a escola por ter a

condição de escravo. Entretanto, observa que com a Lei do ventre Livre e a Abolição essa

interdição perderia seu efeito, porém é a partir daí que fica bastante evidente o caráter

excludente das políticas oficiais, pois, constatou a existência de leis que discriminavam os

negros e impediam seu acesso à escola. Mesmo após a Constituição de 1824 que considera

também os filhos da escrava e libertos como cidadãos brasileiros, e por isso também teriam

direito à instrução primária. Vejamos o que diz a Lei Magna de 1824:

Art. 6 São Cidadãos Brasileiros

I Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos.

No entanto, no dia 4 de janeiro de 1837, o então presidente da Província do Rio de

Janeiro, Paulino José de Souza sancionou a Lei – nº 1 que dispõe o seguinte sobre a Instrução

Primária:

Art. 3º São proibidos de freqüentar as escolas Públicas:

1º Todas as pessoas que padecerem de moléstias contagiosas.

2º O escravos, e o pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos. 176

Cunha observa que as províncias gozavam de uma certa autonomia, e por conta

disso, podiam definir, a partir de suas leis, quem teria acesso à instrução primária. Os negros

em geral estavam excluídos da instrução primária, o que configura uma situação de

preconceito racial, tal como Ana Maria A. Freire afirma:

Assim com esta “coerência” a nossa sociedade estava perpetuando o

elitismo, o autoritarismo, a discriminação – perversos e injustos – que,

interditando corpos e negando direitos para proveito próprio, justificativa que

176

CUNHA, P. M. C. da . Da senzala à sala de aula: como o nego chegou na escola. In cadernos PENESB, nº 1.

Niterói: Intertexto, 1999.

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a cor de suas peles indicava inferioridade intrínseca, proibindo-os de lerem e

escreverem.177

Cunha, tal como comentamos anteriormente, observa que “o Brasil independente

guarda traços de sua herança colonial. A elite que assumiu o poder era originaria dos ricos

proprietários de terra, interessados em manter a estrutura escravocrata”. Uma elite que

camuflava as desigualdades sociais com um discurso liberal e “que tentava acompanhar o

processo de modernização sem, no entanto, modificar a ordem social.”178

Por certo não faltaram leis dispondo sobre a instrução pública, o que não significa

que eram cumpridas, há que se levar em conta que no Brasil é comum o distanciamento entre

a formulação de uma lei e a sua regulamentação, mas de uma coisa não se tem dúvida, até a

abolição, o acesso dos escravos às escolas estava vedado. Parece ironia, mas é na condição de

abandonados que, após a lei do Ventre Livre, os negros vão ter acesso à instrução fornecida

nas instituições criadas para “ampará-los” - os asilos. Essas instituições cuidavam de

transmitir valores e princípios de comportamento, tendo em vista na verdade

o intuito de preparar essas crianças para a produção, uma vez que estando

formadas teriam que prestar serviço compulsório no estabelecimento por um

período de três anos e depois trabalhar em empresas ou fábricas. 179

Portanto, podemos constatar que mesmo para os nascidos após a Lei do Ventre

Livre, pouco ou nada mudou, em relação à obrigatoriedade ao trabalho.

Ao comentar sobre a infância da criança escrava, Cunha afirma que desde muito

cedo as crianças eram incumbidas de desempenhar tarefas como carregar trouxa de roupa

cuidar da cozinha, servir mesas, cuidar de crianças menores, vender mercadorias, etc. e as que

eram abandonadas na roda dos expostos que conseguiam sobreviver, eram enviados a

criadeiras que recebiam uma pensão da Santa Casa para criarem essas crianças até a idade de

07 anos, daí em diante, eram encaminhadas a famílias adotivas, sendo que os meninos

poderiam ser enviados ao Arsenal da Marinha e as meninas para o Recolhimento das Órfãs.

Em quaisquer dos casos, essas crianças deveriam trabalhar durante 7 anos gratuitamente, para

ter alimentação e teto. Só a partir dos 14 anos poderiam empregar-se recebendo salário.

Chamamos a atenção, contudo, que essa modalidade de assistência aos órfãos não

se restringe ao período anterior `a abolição, ela subsiste nas primeiras décadas do século XX.

Sobre o trabalho das meninas menores, BATISTA (2003), ao analisar processos de meninas

177

FREIRE, A. M. 1993 Apud CUNHA, P. M.C. - op.cit. p. 88. 178

CUNHA, P. M. C. op. cit, idem.

179

Idem, p. 89.

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na Vara de Órfãos, entre 1907 e 1914, registra um fato que é também digno de nota: “a Vara

de Órfãos funcionava como uma agência de serviços domésticos, intermediando a colocação

de meninas abandonadas, que saíam do „Asylo de Menores‟ para trabalhar „a soldada‟180

em

casas de família.”181

A pesquisa de Cunha vai ainda pontuar que o trabalho também aparece como

alternativa para os filhos menores no próprio texto da Lei do Ventre Livre.

Promulgada em 28 de setembro de 1871 pela Princesa Imperial D. Isabel, a Lei nº

2040, a Lei do Ventre Livre, no artigo 1, parágrafo 1º, diz:

Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de

suas mães, os quais terão obrigação de cria-los até a idade de oito anos

completos. Chegando o filho da escrava a esta idade o senhor da mãe terá a

opção ou de receber do estado a indenização de 600, $ 00 ou a utilizar-se dos

serviços do menor até a idade de 21 na os completos [...]182

Cunha chama atenção para o fato de “a infância deste menor fica limitada à idade

de oito anos”; a partir daí, o senhor pode ser indenizado, em caso de o menor ser entregue ao

Estado ou utilizar-se de sua mão-de-obra sem nenhuma obrigação de pagar-lhe um salário. A

Lei diz que esses “ingênuos” podem ser, em caso de maus-tratos, entregues a associações que

também terão direito aos seus serviços. Consta no parágrafo 1º do Artigo 2º: “As ditas

associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos

completos”183

Pelo exposto, constatamos que a obrigatoriedade ao trabalho desde a mais tenra

idade parece ser uma norma que, há muito tempo, está presente nos modos de “cuidar” da

infância pobre no nosso país.

. Poderíamos então perguntar: e hoje, o que mudou? Infelizmente, neste nosso

século, o trabalho infantil ainda é uma realidade, e a educação em nosso país ainda não é

180

“A „soldada‟ era uma prática comum em que uma família tomava sob sua responsabilidade jovens com idade

entre 12 e 18 anos, comprometendo-se a „vesti-la, calçá-la, alimentá-la e depositar mensalmente em caderneta da

Caixa Econômica Federal” quantias que variavam de 5 a 10 mil réis. Um termo de compromisso era assinado

perante o Juiz, que portanto organizava e intermediava uma espécie de prorrogação dos serviços prestados

geralmente pelas jovens escravas do passado. Não se haviam transcorrido ainda vinte anos da abolição e não é

coincidência que a maioria destes processos se refira a jovens morenas ou pardas.” (grifos no original) In

BATISTA, V. M. - op. cit. p.66).

181

Idem, p. 65.

182

Apud CUNHA, P. M. C. - op. cit. p. 84.

183

Idem, idem.

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prioridade; a situação das escolas públicas cujos freqüentadores são majoritariamente as

populações mais empobrecidas continua a desejar.

De um modo geral, o trabalho, tal como nos dois últimos séculos passados,

continua sendo visto como elemento recuperador nas instituições de atendimento aos jovens

pobres.

A preocupação com a formação profissional dos adolescentes e jovens é um traço

comum em instituições do gênero, desde as primeiras décadas do século passado. O período

compreendido entre 1930 e 1945 é considerado por Antonio Carlos Gomes da Costa como a

fase de implantação efetiva do Estado Social brasileiro. “Segundo ele, o período que se segue

ao Estado Novo fez das políticas sociais o instrumento de incorporação das massas urbanas ao

projeto nacional, liderado por Getúlio Vargas.”184

O sistema compreendia reformatórios, casas

de correção, patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos, que tinha no

SAM (Serviço de Assistência ao Menor) seu principal órgão articulador. É interessante notar

que nessas instituições, os jovens eram submetidos à rígida disciplina, e a formação para o

trabalho estava presente, já que o trabalho era vista como agente reabilitador. É inclusive sinal

de cura. A avaliação de uma psicóloga do Serviço de Liberdade Assistida sobre um jovem

morador de uma favela do Rio de Janeiro é exemplar, “ao considerá-lo „curado‟, afirma:

atualmente o jovem está trabalhando como engraxate e perfeitamente integrado à

sociedade”185

O veredicto acima parece inofensivo, todavia, ele expressa em poucas palavras o

que essa profissional pensa sobre o lugar desse jovem na sociedade. Dizer que ele está

perfeitamente integrado equivale dizer que ele está no seu lugar. Um lugar naturalizado

pelas práticas cotidianas nas instituições nas quais o chamado ensino profissionalizante

continua mantendo um sem número de jovens atrelados “a posições e ocupações subalternas”,

como nos alerta Batista ao constatar o tipo de atividades que são propostas aos jovens a título

de profissionalização. Guardadas as devidas proporções, as duas instituições a que nos

referimos neste trabalho se assemelham às dos processos analisados por Batista, no que

concerne à indicação ou preparação para o trabalho.

De qualquer forma, o jovem que não se conforma ao que ele pode querer, torna-se

motivo de preocupação ou é visto como portador de alguma patologia. Que tal se, ao invés de

olharmos nossos jovens como possíveis desajustados, ajustássemos nossas lentes para

184

Apud BATISTA, V. M. op. cit. p. 71

185

Idem. p. 122 (grifo da autora).

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percebermos o quanto as instituições que os atendem em nada diferem da sociedade que os

discrimina.

Para AZEREDO,

Ao invés de ter mais dados, precisamos, então aprender a levantar as

questões que poderão abrir caminhos para resolvermos os enormes

problemas do racismo e sua complexa relação com outras formas de

dominação e exploração. Precisamos fazer perguntas e também, o que é

muito importante, aprender a escutar as respostas, com ouvidos abertos para

a diferença”186

Todavia, esse exercício tem sido dificultado por algo que pode ser considerado

como efeito do “mito da democracia racial”: a negação e o silêncio sobre o racismo no Brasil.

1. 3. Subjetividade individuada: a marca do nosso tempo

Tudo o que foi discutido até o momento exige problematizar a prática que

comumente acontece nos serviços de atendimento, sejam eles públicos ou não. Aqui,

referimo-nos, naturalmente, ao que se oferece aos usuários nesses serviços, à escuta do

profissional “psi” e, por conseguinte, ao que é considerado material de intervenção. Penso que

isso pode estar relacionado com o lugar e o papel da Psicanálise na sociedade.

Sobre o papel e o lugar da Psicanálise, o texto de BEZERRA (1999) nos fornece

alguns elementos valiosos que considero pertinentes para este trabalho. Para este autor a

psicanálise tem sido constantemente acionada para opinar sobre os mais variados aspectos da

vida. O uso crescente das palavras, expressões e concepções da psicanálise tornou-se cada vez

mais comum. Embora presente em diferentes países, a psicanálise apresenta por isso mesmo

feições distintas, e essa diferença tem a ver com o modo como foi introduzida e com as

condições históricas e culturais em que se desenvolveu.187

Há entre nós uma “cultura

psicanalítica” cuja expressão se faz sentir na presença de uma certa lógica de pensamento, um

código para emoções e um modo de falar próprios à psicanálise e que permeia todo o tecido

social.

186

AZEREDO, S. M. da M. op. cit., p. 16.

187

Quanto a este ponto, creio que analisar como se deu isso no Brasil merece uma atenção especial, até pelas

peculiaridades de uma sociedade onde as teorias racialistas deram sustentação às práticas higienistas

implementadas nos séculos XIX e XX. Na atualidade, as tecnologias “psi”, para RAUTER E JOSEPHSON

(1990), continuam, de certa forma o projeto higienista, porque “dispõem de um instrumental mais sutil e

especializado de ação no interior dos sujeitos e das famílias”.

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Quanto a este ponto, o trabalho de RAUTER e JOSEPHSON (1990) é ilustrativo

de como essa “cultura” está fortemente arraigada, em especial no modo como o terapeuta

acolhe a fala do sujeito. O que foi observado é que em muitos casos, há por parte do terapeuta

um não reconhecimento de um “problema psicológico”, se na fala do cliente não há referência

alguma a um problema de ordem familiar, infantil ou sexual. As pesquisadoras constataram

que

Muitas vezes os terapeutas demonstram frustração ao verificarem que seus

clientes falam menos do que deveriam, e quando falam, sua fala lhes parece

vazia, “conversa de comadre”, um simples descarregar de problemas, etc.

Quais seriam, para os terapeutas, as falas adequadas? Ao nosso ver existem

dois “temas nobres”, valorizados pelos terapeutas como pertinentes ou

proveitosos do ponto de vista do tratamento: as falas que se referem à vida

familiar e à sexualidade. Além disso, é à luz destes dois referenciais que a fala

do cliente será “traduzida” ou interpretada, mesmo quando a eles não se refira

explicitamente.188

Outrossim, há que se levar em conta que o interesse também se volta para o que

haveria no íntimo de cada um, sobre o que de fato seria a “causa” dos seus problemas. O

cotidiano desses sujeitos é por vezes, ou quase nunca, valorizado, já que o sexual-infantil

passou a ser valorizado como algo relevante na constituição do sujeito.

Para BEZERRA (1999), a concepção de sujeito como um ser dotado de

interioridade, um “eu”, passou a existir no início da era cristã, entretanto, somente na época

moderna essa idéia deixa o plano da reflexão e das práticas restritas para se impregnar

lentamente na cultura e no tecido social, passando a habitar a consciência dos indivíduos e dos

agentes sociais. “É nesse mundo moderno que se criam as condições sociais que, de certa

maneira, permitem, ou melhor, levam o sujeito a se pensar como indivíduo. É nele que essa

configuração particular do ser humano se „naturaliza‟”.189

A questão que se tem a levantar é como e por que se tornou hegemônica essa

versão de homem? Sobre este ponto, o autor faz uma referência a Foucault e à sociedade

disciplinar, considerando que as técnicas disciplinares revelam não só controle e repressão,

mas também criação, ao produzirem uma certa subjetividade afinada com a ordem social

emergente. Este fato pode ser constatado nos vários processos de individualização das figuras

do louco, do criminoso, etc, e na criação de instituições voltadas para o tratamento

188

RAUTER , C e JOSEPHSON, S. – “Mulher e Psicologia: Reflexões Sociopolíticas” – Cadernos do ICHF nº

14, Niterói, UFF , 1990.

189

BEZERRA, B. Subjetividade Moderna e o Campo da Psicanálise. In BIRMAN, J. (org). Freud – 50 Anos

depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1999, p. 227.

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individualizado dos seus objetos de intervenção, sem falar nas práticas também

individualizadas que sustentavam essas instituições. “No nível do conhecimento, dos saberes,

as ciências humanas correspondem a uma das dimensões deste fenômeno de múltiplos tempos

e múltiplas faces: a invenção do homem moderno” 190

.

Esse homem moderno é, na verdade, um produto da nova modalidade de poder

que se instaura, o poder disciplinar, imprescindível para ajustar os indivíduos aos novos

tempos, à ordem burguesa em processo de consolidação. É oportuno destacar que o homem

como objeto de saber surgiu com o desenvolvimento capitalista e sua exigência de controle

dos corpos e dos desejos.

A normalização da sociedade é o imperativo para a afirmação da nova ordem

burguesa que se estabelece a partir da introdução de novas formas de produção econômica,

com o sistema agrário feudal sendo paulatinamente substituído por um novo sistema que

privilegiava as corporações profissionais, os agrupamentos urbanos; enfim, os primórdios da

industrialização já se faziam presentes. Esse processo implicou na revolução da imagem da

sociedade e na sua hierarquia de valores. Entretanto, mais do que apontar o alcance das

transformações que ocorreram ao nível das técnicas ou nas formas públicas de relacionamento

social, o que mais interessa ressaltar “é o quanto esse processo de normalização da vida social

invadiu os indivíduos, „organizando‟ também seu espaço interno, „criando‟ uma subjetividade

ordenada em novos moldes, internalizando uma nova idéia de mundo, do homem e das suas

relações”. 191

Surge uma esfera privada da existência, vivida em torno da família, da casa; um

mundo sentido como autônomo e onde os sujeitos podem viver a sua individualidade sem

constrangimento. O espaço doméstico passa a ser o lugar da exploração dos afetos e da

educação, posto que está livre das tarefas produtivas. A economia aparece então, como uma

instância separada da vida dos indivíduos, algo que lhes escapa, uma realidade que transcende

à sua existência, já que o homem perdeu o domínio sobre os meios de produção; sua

subsistência é garantida por um salário, porém a mercadoria que produz pouco ou nada tem a

ver com a sua própria vida, pelo menos é isto que é tomado como realidade, ou seja, trabalho

e vida como instâncias distintas. Entretanto, é a instituição família que se torna forte aliada na

consolidação da ordem burguesa na passagem do século XIX para o XX. A privatização da

vida familiar é um dos pilares desse processo.

190

Idem, p.230.

191

Ibidem, p. 230.

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A subjetividade individuada, o modo de viver a experiência subjetiva que se

tornou naturalizada na consciência dos indivíduos é uma das características da sociedade

moderna. Ela não é uma idéia sobre o homem, mas uma realidade, um modo de viver sempre

reforçado pela experiência cotidiana. A “posse de um verdadeiro vocabulário de introspecção,

e uma „linguagem da intimidade‟ abundante em adjetivos e advérbios... e fortemente centrada

na utilização da primeira pessoa do singular (eu) como sujeito do discurso”, 192

tanto da parte

de quem busca atendimento psicológico como de quem o atende expressa o quão naturalizada

está a vivência subjetiva na atualidade.

Colocar em discussão alguns aspectos da clínica, no que concerne ao lugar que

ocupa na contemporaneidade, se faz necessário, conquanto ela pode ser também considerada

como um dispositivo de consolidação da ordem burguesa. E tal pode acontecer quando se

exclui, por exemplo “o modo se subjetivação que não se encaixa ao Instrumental Psi” 193

, ou

quando questões do cotidiano não são “ouvidas”, se não remetem a uma interioridade.

Exemplificando: Nas visitas que foram feitas a algumas instituições durante a

pesquisa citada havia, num primeiro momento, uma negativa por parte dos profissionais em

relatar de que forma a violência vivida (ou não) pelos usuários dos serviços de saúde, e quiçá

pelo próprio terapeuta, estaria sendo levada em conta na intervenção clínica; depois éramos

informados, que comumente assuntos relacionados a questões de trabalho, moradia, violência

doméstica, etc. seriam da alçada da assistente social e para ela, portanto, encaminhadas.

Ou ainda, quando não se põe em questão “uma das características das teorias do

psiquismo que é a de pensar o homem enquanto sujeito psicológico universal”.194

Em outras

palavras, as chamadas leis que regem o psiquismo humano foram elevadas a categorias

aplicáveis ao ser humano em geral, desconsiderando-se o contexto sócio-político e cultural em

que as mesmas foram instituídas, ou seja, na Europa; pois, na verdade, por muito tempo se

pensou que a “humanidade” estava lá.195

Era de onde emanava todo conhecimento, cultura e

saber. Não se pode esquecer que o eurocentrismo se fortaleceu a partir do conhecimento de

outras possíveis humanidades.Talvez isso possa explicar o silenciamento sobre o “outro”

racial, e a desqualificação de outras formas de organização familiar que não expressem o

192

BEZERRA, B. op. cit.

193

RAUTER, C. “Clínica do Esquecimento: Construção de uma Superfície”. TESE. Programa de Estudos Pós -

Graduados em Psicologia Clínica. PUC-SP, 1998.

194

BEZERRA, B. op. cit., p.140.

195

SODRÉ, M. op. cit., p. 29.

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célebre triângulo: papai-mamãe-édipo, protótipo da típica família burguesa, ainda tão

valorizada na atualidade.

Abrir-se, pois a um outro conhecimento de outras possíveis humanidades. Aqui

me reporto a FOUCAULT (1999), quando nos obriga a pensar na emergência do homem tal

como o concebemos hoje; ele é datado, não existiu desde sempre e sendo assim pode

desaparecer. O homem - sujeito e objeto do conhecimento - surgiu num determinado

momento da história e isto faz ver, no nosso entendimento, quanto são frágeis as concepções

que este tem sobre os “outros”. Afinal, quem são esses “outros”?

1. 4. A força dos estereótipos

Malcom X – líder negro norte-americano – em sua autobiografia fala das pressões

que sofrera no colégio, em especial quando quis ser presidente de sua turma no ginásio.

Confessa que não podia agir naturalmente, pentear-se conforme os costumes de sua família;

era obrigado a portar-se segundo o padrão estético dominante, ou seja, apagar em si mesmo

tudo que denunciasse a sua singularidade, a começar pelos cabelos, os quais tiveram que ser

alisados; era o jeito de tentar igualar-se aos brancos para obter seu reconhecimento. Eis seu

depoimento:

Foi o primeiro passo realmente grande para o caminho da autodegradação:

suportar toda aquela dor, literalmente queimar minha carne só para fazer com

meus cabelos ficassem parecendo com os de um branco. Eu me juntava à

multidão de homens e mulheres negros da América que sofreram uma

lavagem cerebral tão grande até acreditarem que os pretos são inferiores e eu

devem até mesmo violar e mutilar os corpos que Deus criou para tentar

parecer “bonitos” pelos padrões dos brancos.196

Malcom X nos revela ainda que ele só conseguiu mudar o que pensava acerca de

si mesmo e mudar seu posicionamento, buscando expressar-se livremente, quando ele

abandonou o ideal de ser o que a sociedade esperava dele, quando deixou de desejar ser

branco, quando parou de incorporar em sua vida valores e tradições tidos como melhores, mas

que pouco lhe acrescentavam, no sentido de expandir suas possibilidades de crescer enquanto

pessoa.

Pensamos que o depoimento de Malcom X ilustra de forma sucinta um processo

eu vem de muito longe, que é a submissão de outras culturas à européia – ocidental e branca –

a qual se atribui uma positividade, um ideal de beleza, uma racionalidade, etc. forçoso nos é

196

HALEY, A. Autobiografia de Malcom X com colaboração com Alex Haley. Rio de Janeiro: Record, 1992.

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entender que tudo isso se sucedeu como se fosse natural que assim se processasse, sem jamais

desconfiar que essa “brancura” transcende o branco, que ela é reificada e como tal tomada

como realidade autônoma e não como algo inventado num dado momento da nossa História.

Quase sempre se faz referência à produção de saberes sobre o negro, não se

considera que também a brancura é uma invenção, ela não é natural; no entanto tudo o que se

refere ao branco é visto como a expressão de humanidade, daí “a brancura ser vista pelos não-

brancos como sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria

científica, etc.”197

Não é pequeno o repertório de ditos populares e piadas que difundem esse ideal de

civilidade. Eles estão, de tal forma, disseminados no meio social que muitas vezes quem os

profere, ou quem os ouve, pouco se apercebe o quanto eles veiculam preconceitos e

informações deturpadas sobre índios e negros. Sobre os últimos o repertório é vastíssimo!

Há que se acrescentar, contudo, que a brancura não é assim percebida apenas

pelos não-brancos, ela o é também pelo colonizador que, via de regra, jamais considerou a

possibilidade de “os outros” também possuírem uma arte, uma estética, uma moral, um saber,

uma ciência, etc.

O encontro dos europeus com “os outros” resultou no aniquilamento destes, não

porque os primeiros fossem mais competentes, mais inteligentes, ou melhor, adaptados que os

segundos (pressupostos racialistas), mas porque se tratava de uma luta desigual, eram dois

mundos que se confrontavam, com concepções bem distintas. Eduardo Galeano, em seu

memorável “As Veias Abertas da América Latina”, dedica um capítulo inteiro a traçar um

panorama de como foi o início da conquista das Américas que redundou no massacre das

populações nativas. Para os primeiros que aqui chegaram - espanhóis e portugueses – a nova

terra era como a bênção dos céus , o coroamento de sua saga pela conquista do novo mundo,

do qual logo cuidaram de apoderar-se das riquezas, leia-se: ouro. Objeto da cobiça de muitos

povos desde a antiguidade, na América, o ouro estava nas paredes de suntuosos palácios, na

ornamentação de templos, na forma de curiosas esculturas, enfim, grandeza e glória! Porém,

era mais como oferta aos deuses que expressão de poderio dos homens.

Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais,

engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas

nativas conhecia o ferro nem o arado, nem o vidro e a pólvora, nem

empregava a roda, a não ser em pequenos carrinhos. A civilização que se

197

COSTA, J. F. Violência e psicanálise. Apud NASCIMENTO, M. C. Cada um no seu lugar! Que lugar? Uma

reflexão sobre como se produziram alguns costumes relativos à presença de negros em determinados lugares.

Trabalho de conclusão do curso de graduação em Psicologia. UFF/ Niterói, 1999.

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abateu sobre estas terras, vinda do além-mar, vivia a explosão criadora do

Renascimento: a América aparecia como uma invenção a mais, incorporada,

junto com a pólvora, imprensa e bússola, ao efervescente nascimento da

Idade Moderna.198

Os europeus, na sua febre pela anexação de terras aos seus domínios, tiveram

como aliados a pólvora, o racismo e também o assombro que provocaram sobre a população

nativa.

Os indígenas foram derrotados também pelo assombro. O imperador

Montezuma recebeu, em seu palácio, as primeiras notícias: um grande

“monte” andava mexendo-se pelo mar. Outros mensageiros chegaram

depois: “...muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão, como

ressoa estrépido, como derruba as pessoas; e atordoam-se os ouvidos. E

quando cai o tiro, uma bola de pedra sai de suas entranhas: vai chovendo

fogo...” (Segundo os informantes indígenas de frei Bernardino de Sahagún,

no Códice Florentino, Miguel Leon-Portilha, Visión de los vencidos, México,

1967.199

Sabemos o quanto foram e ainda são comuns nos manuais didáticos os

comentários jocosos sobre a reação dos indígenas à chegada dos europeus. De igual modo

esse tipo de informação se estende aos africanos, retratados, via de regra, como indivíduos,

cuja contribuição teria sido apenas a de braços nas lavouras e nas minas. E África, como terra

do atraso, quase sempre é apresentada como “lugar de onde vieram os escravos”, como se

esses homens e mulheres pertencessem a uma categoria de seres com atributos próprios à

escravidão, prontos a executar o projeto do branco; este sim, apresentado não só como grupo

capaz de produzir cultura, mas de redimir os demais. Em nome da chamada civilização

ocidental cristã, impérios foram devastados, povos dizimados, vidas reduzidas a simples

máquinas de produzir trabalho, não sem antes assegurar o domínio das riquezas – matéria-

prima para a acumulação capitalista (GALEANO, 1983).

Os “outros” não foram subjugados por inferioridade racial como se tornou comum

afirmar, mas pelo confronto de posições políticas, culturais e religiosas.

Assenhorear-se de bens, tais como, terras, minas de ouro e prata, diamantes,

construir cidades e fortalezas, em suma, intervir sobre a natureza é um fato comum a todas as

culturas, o que as diferencia é a maneira com são realizadas estas ações, o que expressa a

relação que cada cultura tem com a natureza. E a partir do encontro dessa diversidade que os

homens vão inclusive melhorando as condições de vida. O intercâmbio cultural entre

europeus, asiáticos e africanos é de longa data, o que proporcionou o surgimento de

198

GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p.28.

199

Apud Idem. idem (grifos do autor).

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entrepostos comerciais, povoados e verdadeiros impérios. Podemos, portanto afirmar que os

africanos não foram meros fornecedores de matéria-prima, inclusive braços, eles utilizaram os

conhecimentos e práticas conhecidos no árduo trabalho que lhe foi imposto.

A África, à época dos descobrimentos abrigava uma diversidade de povos e

culturas.

No século XV, podemos afirmar que algumas populações africanas já

haviam atingido um processo de evolução em tecnologia de transformação,

de manipulação do ferro, na produção agrícola de subsistência e no manuseio

do minério, por exemplo, que superava qualquer prognóstico das sociedades

européias. Nesse período, grandes reinados e impérios bem desenvolvidos

podem ser reconhecidos no continente africano. Destaca-se pela refinada

produção artística e pelas relações comerciais com sociedades árabes,

indianas e asiáticas. Tais relações tiveram grande influência nas sociedades

africanas das regiões Norte e Centro-oeste do continente.200

Todavia os negros foram obrigados a esquecer tudo isso, ou melhor, lhes foi

negado conhecer a história de seus antepassados.

Assim como os povos indígenas, as “tribos” africanas foram por muito tempo

consideradas como seres sem história. Como dissemos anteriormente, são modos diferentes

de relação com o mundo. Predominavam nas culturas africanas a tradição oral, o que foi

interpretado pelos ocidentais, não por acaso, como ausência de informação sobre o passado,

apenas porque não transmitido em documentos escritos. Porém, o que dizer dos africanos

islamizados? Alfabetizados em árabe eram letrados, conheciam o Alcorão e como tal

despertaram a ira dos colonizadores. Segundo João José Reis, “foi duro para uma sociedade

onde a etnia dominante, os brancos , continuava predominantemente analfabeta, aceitar que os

escravos africanos possuam meios sofisticados de comunicação.”201

É em torno do Alcorão

que se dá, na Bahia, a revolta dos Malês, 1835.

Foi também o encontro com o Islã que provocou a transformação na vida de

Malcom X. Quando se deu conta do quanto desconhecia da história de sua gente, percebeu

que poderia construir uma nova vida, sem se envergonhar de sua aparência nem do passado de

seu povo.

A idéia de um sujeito escravizado por que vindo de uma terra atrasada, incapaz de

produzir cultura, impede que os brasileiros, em especial os negros, tenham uma apropriação

200

SILVA, M. R. Reflexos da diáspora africana no Brasil. In: NOGUEIRA, J. C. História dos trabalhadores

negros no Brasil. Vol. 1. são Paulo: CUT, 2001, p. 20.

201

REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil. Apud BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio d

Janeiro: Revan, 2003, p. 24.

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positiva de sua história. A desqualificação de sua cultura e de sua história o faz desejar ter

nascido branco, ou, na medida do possível, igualar-se ao branco.

Desejo que, nos depoimentos colhidos por Neusa Santos Souza (1983), aparece

nas falas de seus interlocutores – homens e mulheres negros – cujas histórias de vida são uma

amostra de como esses sujeitos são continuamente forçados a negar (ou esquecer) as próprias

origens. Outrossim, as experiências de vida retratadas no texto são uma amostra viva de como

operam os estereótipos raciais, de modo que, na sua totalidade, os entrevistados falam de si

mesmos a partir das expectativas que a sociedade branca, racista têm para com eles. Como a

própria autora afirma:

Autodesvalorização e conformismo, atitude fóbica, submissa e

contemporizadora são experiências vividas por nossos entrevistados,

humilhados, intimidados e decepcionados consigo próprios por não

responderem às expectativas que se impõe a si mesmos, por não possuírem

um Ideal realizável pelo Ego.202

A reversão desse estado de coisas é a condição de possibilidade de os negros

alcançarem a saúde psíquica. O que ocorrerá mediante a recusa em submeter-se às exigências

de uma sociedade que os coloca em condição de inferioridade, obrigando-os, aberta ou

sutilmente, a recorrerem a uma série de artifícios para compensar o “defeito” de ter nascido

negro, o que vai se dar à custa de muito sofrimento, posto que “o negro que elege o branco

como Ideal do Ego engendra em si mesmo uma ferida narcísica, grave e dilacerante” 203

. Para

reverter esse estado é preciso uma atitude de recusa frente às demandas que lhe são impostas.

Segundo Neuza, a condição de cura dessa ferida exige do negro a

construção de um outro Ideal de Ego. Um novo Ideal de Ego que lhe

configure um rosto próprio, que encarne seus valores e interesses, que tenha

como referência e perspectiva a História. Um Ideal construído através da

militância política, lugar privilegiado de construção transformadora da

História.204

1. 5. Uma situação desconfortável, porém não incomum

Vivemos num país em que o acesso à educação é antes visto como privilégio de

classes do que como um direito de todos. Embora desde a primeira carta constitucional após a

202

SANTOS, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de

Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 41.

203

Idem, idem.

204

Idm, p. 44.

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independência declarar que cabe ao Estado a garantia da educação básica a todos os cidadãos

brasileiros, a realidade de grande parte da população denuncia a não regulamentação a

contento desse princípio constitucional. Dentro desse contexto, tornou-se comum o

surgimento de instituições que têm como objetivo atender às demandas dessa população.

Pensamos que podemos aqui destacar aquelas iniciativas ligadas principalmente aos colégios

confessionais que, via de regra, eram freqüentados pelos filhos das classes mais abastadas,

cabendo aos demais, o atendimento em anexos dessas instituições nos quais o ensino

profissionalizante, tal como nos referimos anteriormente, ocupava o lugar central. Podemos

afirmar que a lógica de funcionamento nesses espaços é a mesma que foi instaurada nos asilos

e casas de correção de “menores”, nos quais o trabalho é visto como fator de

recuperação/inclusão. Só um detalhe: isto não é passado, é atualíssimo!

Um olhar atento para a arquitetura desses espaços de “educação” pode ser

revelador de como estão demarcados os limites numa sociedade hierarquizada como a nossa;

vai inclusive, detectar a atualidade da “casa grande” e da “senzala” embora esses termos

tenham saído de uso por fazerem referência a uma relação de trabalho já “superada”. No

entanto, nesses espaços é como esses dois mundos permanecessem ativos. É assim que, num

evento onde se discutia a realidade do negro brasileiro por ocasião do 13 de maio, neste ano,

uma participante do encontro falou de sua impressão ao adentrar naquele local, um desses

espaços de atendimento aos filhos das chamadas classes populares. Ela, com lágrima nos

olhos, falava de como se sentira ao percorrer o caminho para chegar ao local do encontro cujo

acesso é dificultado pelo fato de estar implantado numa área mais distante do prédio principal

da instituição do qual é parte integrante. Como se voltasse no tempo, ela se vira, como se nada

tivesse mudado, era nítida a separação entre aqueles dois mundos; era como estivesse

caminhando para a senzala, tal maneira com se dispõem esses espaços. Ali, na senzala ela se

sentia no meio dos seus, empobrecidos, humilhados pela grandiosidade da casa grande, a

cujos portões não têm acesso, salvo em condições especiais - que são cada vez mais raras -

quando interessa aos habitantes da casa grande afirmar algum projeto de inclusão social

Na verdade, constatamos que são dois mundos, no entanto, eles são expressão de

uma mesma realidade, pois se atravessam continuamente, apesar de distanciados pela situação

de classe. Com o seu depoimento, aquela participante chamou a atenção de todos para o

“lugar” que sistematicamente os negros vêm ocupando na sociedade, e com que naturalidade

isto é encarado. O que é revelador da particularidade do racismo à brasileira cuja insistência

em negá-lo favorece a reprodução da “ordem hierárquica diferenciadora entre brancos e

negros, ampliando as desigualdades sociais e nutrindo uma série de tropos sociais para a

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raça.”205

Por mais bem intencionadas que sejam, as práticas desenvolvidas nos espaços sobre

os quais estamos nos referindo mais consolidam lugares e fortalecem as fronteiras de classe

do que contribuem para que os sujeitos que ali freqüentam tenham uma visão crítica de sua

realidade. É no cotidiano dessas instituições que se pode notar como as relações sociais são

atravessadas por preconceitos, os quais são reveladores da falta de informação, ou de

informação deturpada sobre o outro.

Telma - educadora de uma dessas instituições - fez o relato de um episódio

vivenciado por um aluno que, num certo dia, lá chegara desesperado, chorando muito e quase

não conseguindo explicar o que tinha ocorrido. Com alguma dificuldade, conseguiu dizer o

que tinha se passado numa aula de história do Brasil na escola onde estuda, quando um colega

o identificou e também sua mãe às figuras de escravos estampadas no livro. Eram as figuras

de um negro amarrado ao tronco, com as calças abaixadas em situação humilhante, sendo

açoitado por um feitor, e uma mulher com um cesto enorme de frutas na cabeça. O menino,

negro, não gostou da comparação e, sentindo-se ofendido, acabou batendo no colega, sendo

por isso levado até à direção da escola, onde foi repreendido. Segundo ele, a direção da

escola lhe teria dito que comunicaria o fato à instituição supracitada. Por conta disso ele

estava tão assustado, achando que poderia ser dali afastado.

Telma, juntamente com outros educadores, vêm, já há algum tempo, trabalhando

com as crianças e adolescentes daquela instituição, questões relativas à problemática e cultura

negras e pensa que este foi o motivo do encaminhamento do caso para ela pela coordenadora

da instituição que havia acolhido o menino. Ela ouviu o menino, procurando acalmá-lo,

apontando aspectos positivos da obra dos trabalhadores, cuja maioria enfrenta condições

precárias de trabalho: não têm boa aparência, são mal vestidos, ficam sujos, etc. Falou da

importância do trabalho dos seus (nossos) antepassados para o país; insistia, portando, para

que ele se desvencilhasse das imagens que tanto o constrangera.

O menino negro quase foi suspenso da escola porque bateu no colega, Certamente

o motivo da briga será minimizado, o menino – o “agressor” foi humilhado, passou por

constrangimento por ser negro. No entanto, prevalecerá a sua atitude “agressiva”. A primeira

agressão não foi considerada, (pelo menos que se saiba). A atitude da direção do colégio, ao

ameaçar o “agressor” com a suspensão o despontecializa quando ele tenta defender-se ao se

sentir ofendido e fortalece o outro na sua posição de superioridade por ser branco.

205

GUIMARÃES, A. S. A. op. cit. p. 63

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A coordenadora da instituição encarregou-se de encaminhar o caso. Entretanto,

Telma acha pouco provável que ela tenha entrado em contato com a escola para investigar o

ocorrido, também não teve notícia de que o colégio onde o menino estuda tenha contatado

aquela instituição, conforme havia sido prometido ao menino. O tempo foi passando e

nenhuma providência tinha sido tomada. De qualquer forma, Telma acha que esta seria uma

tarefa para o grupo de estudos206

. Seria, pois, uma tarefa do grupo e não dela individualmente,

no que concordam os demais membros do grupo. Estes chegaram a sugerir que poderiam

tomar esse tipo de episódio como material para possíveis intervenção em escolas.

O interessante foi percebermos que, tal como em situações semelhantes, tudo

caminha para o “desfecho” habitual, ou seja, a questão principal, a humilhação - o

constrangimento que o indivíduo sofre por ser negro - vai sendo posta no esquecimento,

silenciada. A rotina de adiamentos é característica desse tipo de ocorrência. No momento em

que o fato ocorre há uma espécie de consternação geral, falas indignadas, denúncia de fatos

semelhantes, etc, para, em seguida, uma falta de interesse, ou melhor, o assunto “perde”

substância;é logo substituído por outros mais “relevantes”. E assim vão se somando aos

assuntos pendentes... Mas no grupo de estudos o assunto suscitou o interesse dos participantes

que chegaram a discutir sobre o conteúdo de imagens veiculadas nos desenhos e quadros

ilustrativos do período colonial207

. Outrossim, consideraram chegada a hora de intervirem,

posto que, passados já quase dois meses, não houve iniciativa por parte da coordenação em

avançar a investigação sobre o assunto. Acharam aquele episódio tão emblemático que o

utilizaram como tema de oficina em encontro anual de educadores daquela instituição. Muitos

participantes dessa oficina afirmaram já ter vivido aquela experiência.

Acreditamos que a experiência vivida por aqueles meninos nos fornece algumas

pistas sobre os efeitos de um discurso veiculado por meio de gravuras e desenhos sobre os

negros no período da escravidão. Ainda comuns nos compêndios escolares, essas figuras,

reproduzem, até mesmo de forma caricaturada, um certo olhar e um certo saber sobre o negro.

Em que pese o impacto que esse tipo de material pode provocar, pensamos que o mais

preocupante é o uso que é feito dele pela escola, porque ele - o material (livro didático,

cartazes, revistas, etc,) - serve como auxiliar do professor no desempenho de sua tarefa – a de

206

Grupo de Estudos Ngunga.Trata-se de um grupo de estudos formado a partir de nossa participação junto aos

educadores daquela instituição. O objetivo do grupo é estudar as questões relativas ao negro na sociedade

brasileira, o racismo e problematizar as práticas que o legitimam.

207

Tomou-se por referência a reflexão da autora do texto em estudo: SCHWARCZ, L. M. Sob o signo da

diferença... op. cit.

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educador. Infelizmente, a Lei nº 10.639/03 que determina o ensino da História da África

nas escolas de ensino fundamental e médio, ainda não é cumprida, e são tímidas as

iniciativas no sentido de efetivá-la. Entendemos que a implementação dessa lei seria um

recurso importantíssimo no sentido de promover uma outra percepção e um outro olhar sobre

a África e, por conseguinte, sobre o negro.

Podemos fazer uma leitura da reação dos estudantes envolvidos no incidente

supracitado. À primeira vista poderíamos apenas pensar no fato de o menino branco ter

utilizado uma imagem estereotipada para ridicularizar o negro e este ter se sentido humilhado

frente a algo que, de alguma forma, lhe dizia respeito, afinal ali estava retratado um pedaço da

história de seus antepassados. Contudo pensamos que a reação do segundo pode ser tomada

como uma recusa em colocar-se no lugar da submissão, da impotência. O lugar que lhe é

conferido no modo de subjetivação dominante

É nas engrenagens de produção de subjetividade que vamos incluir as atitudes de

professores e dirigentes escolares quando fazem calar o aluno que “atrapalha” a aula. Por que,

ao invés de retirar o aluno de sala e enquadrá-lo na tarja de aluno de mau comportamento, não

se buscou olhar para o que a reação desses meninos estava sinalizando? Podemos detectar na

ação dos profissionais de educação aquilo que GUATTARI e ROLNIK (1989) chamam de

atitude normalizadora que é a de tomar o ocorrido como apenas um problema de menor

monta, dar-lhe um significado e integrá-lo dentro das rotinas estabelecidas. Uma outra

maneira de conduzir a questão seria o que chamam de atitude reconhecedora e, neste caso, a

saída seria tomar reação do aluno negro como uma recusa em ocupar um lugar que a

subjetividade dominante – manifestada na fala do branco - estava lhe impondo. A partir daí,

tentar desfazer as estratificações dominantes, os estereótipos, os lugares estabelecidos, as

“verdades” veiculadas nos livros didáticos e nos meios de comunicação, etc. Desse modo,

aquele material até poderia ser utilizado, desde que para discutir outros elementos da

realidade que aquelas imagens também veiculam. A reação do negro foi bater no colega, mas

quem garante que aquilo também não incomodou outros alunos, mesmo os brancos? Só que

não se manifestaram do mesmo modo. Podemos vislumbrar em certos comportamentos – até

numa agressão física - a expressão de uma singularidade, de uma maneira de existir de modo

autêntico. A atitude reconhecedora cuida de “fazer a gestão dos fenômenos de singularidade

presentes na situação”.208

208

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. - op. cit. P. 51

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CUNHA (2001), defende com muita veemência a necessidade de introdução de

conteúdos no ensino de História nas escolas, desde as séries iniciais, que levem em conta a

grande diversidade cultural de nossas crianças, considerando que a grande maioria dos nossos

livros didáticos pouco tem a oferecer em termos de uma abordagem menos racista com

relação a participação dos africanos na formação da sociedade brasileira. É urgente que se

que sejam fornecidas aos alunos - negros e brancos - informações menos carregadas de

preconceitos.

Um ponto é interessante considerar: muitas informações que temos acerca do

cotidiano nos tempos coloniais nos foram fornecidas pelos muitos viajantes estrangeiros que

aqui vieram, muitas vezes com o intuído de observar como se desenvolvia a vida nas colônias.

Não podemos esquecer que a presença desses indivíduos também se explica pelo interesse em

justificar o prognóstico pouco animador que faziam acerca do futuro do país, devido a grande

miscigenação que aqui acontecia. Isto era visto como sinal de um futuro pouco promissor,

posto que acreditavam que a miscigenação era responsável pelo declínio das civilizações.

Mais do que isto, as raças “inferiores” não seriam sequer capazes de construir uma

civilização, de sorte que nas imagens que faziam dos indivíduos pertencentes a essas raças

transparecia todo o preconceito que tinham com relação aos negros e índios.

Embora não disponha de dados estatísticos que comprovem o efeito, sobre a vida

de crianças e jovens negros, de certas imagens ainda veiculadas, inclusive nos livros

didáticos, temos a convicção – a partir do ocorrido naquela escola - de que algo precisa ser

feito. Constatamos que a implementação da Lei nº 10.639/03, cujo objetivo é o de

proporcionar aos estudantes uma compreensão mais realista dos processos históricos, a partir

da aquisição de conteúdos mais significativos e mais coerentes, pode também contribuir para

a alteração desse quadro. Talvez se possa perguntar: em quê isso influenciaria, no atual estado

de coisas? Muitos dirão: “Ah!... isso são águas passadas!” Entretanto, essa água continua

inundando nossas mentes e pautando nossas ações. A reação dos estudantes aqui relatada está

aí a demonstrar o quanto os estereótipos raciais são atuantes e, portanto, produtores de

realidades. Eles são produto de uma engrenagem muito poderosa, de uma máquina que produz

gente, a maioria convencida de que os conteúdos dos livros traduzem a realidade. Não nos

damos conta de que o que está documentado nos livros é uma certa versão da história, que

atende a interesses nem sempre confessáveis, e talvez um deles seja esse mesmo, produzir a

sensação de impotência frente aos fatos e às “fotos” (gravuras, desenhos dos tempos

coloniais). Cabe aqui pontuar que com relação aos negros brasileiros há um grande

silenciamento e uma certa versão ainda dominante sobre a sua presença e atuação na

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construção do país. Via de regra, o que sabemos está circunscrito ao contexto de produção de

saberes sobre os chamados elementos formadores do povo brasileiro. Nele o negro é

costumeiramente visto como escravo, como mero cumpridor de ordens e seu saber é

continuamente “desqualificado em função de outros interesses e racionalidades.”209

De um

modo geral, “não se credita a ele (escravo ou liberto) a invenção de modos de vida ou

intervenção sobre os costumes, e tampouco é visto como ser capaz de pensar sobre a sua

própria condição.”210

Nas palavras de CUNHA: “associou-se à idéia do escravo, a do

africano e do negro, como sinônimos e a estes apenas a idéia do escravo como fator de

produção”211

de sorte que, se depender tão somente das informações constantes nos manuais

didáticos, pouco se tem sobre nossa história, cujo desenrolar comportou o trabalho escravo,

porém, a relação que havia entre escravizados, libertos e homens livres foi bastante intensa212

de modo que muito se construiu no sentido de um intercâmbio de saberes, de produção de

modos de vida, além da participação conjunta em irmandades, quilombos, festas, etc. Há

ainda que levar em conta que a história do povo brasileiro é também uma história de lutas,

revoltas e insurreições, algumas delas protagonizadas por escravos sublevados. Entretanto, o

cotidiano de lutas do povo brasileiro é desqualificado e posto no esquecimento, em função da

veiculação de informações que tem o objetivo claro de produzir a impotência, a submissão; tal

como nos aponta COIMBRA (2001), a produção do esquecimento também faz parte das

estratégias de produção de sujeitos aptos à ordem capitalista.

Cremos poder afirmar que temos pelo menos duas leituras dos acontecimentos,

podemos dizer uma oficial, a que serve aos interesses editoriais, educacionais, ou políticos e

outra que seria a que se transmite entre os interessados em extrair da história algo que os

fortalece em suas lutas por melhores dias. Neste caso, é comum recorrer-se aos personagens

209

CHALHOUB, S. medo branco de almas negras: escravos e libertos e republicanos na cidade do rio de

Janeiro. In: Discursos sediciosos: crime direito e sociedade. Instituto carioca de Criminologia. Rio de Janeiro:

Relume Dumará. Ano 1, n. 1, 1996, p. 169.

210

NASCIMENTO, M. C. Memórias silenciadas: devoção e cultura na Irmandade de são Benedito de Angra dos

Reis. Monografia de Conclusão de Curso (Especialização: Raça Etnias e Educação no Brasil). UFF. Niterói,

2003, p.31.

211

CUNHA, H. Etnia afrodescendente e o ensino de História do Brasil. In: MARTINS, J.; LIMA, M. J. R. (Org).

educação, etnias e combate ao racismo. Cadernos de Educação, n.3. março 2001, p. 59.

212

Flávio dos Santos Gomes (1996) refere-se à existência de uma complexa rede social, a qual denominou

“campo negro”. Uma rede que podia envolver, em determinadas regiões escravistas brasileiras, inúmeros

movimentos sociais e práticas sócio-econômicas em torno de interesses diversos. O “campo negro”, construído

lentamente, acabou por se tornar palco de luta e solidariedade entre os diversos personagens que vivenciaram os

mundos da escravidão. Mais sobre o tema, consultar: GOMES, F. S. Quilombos do Rio de Janeiro no século

XIX. In; GOMES, F. S. (Org). Liberdade por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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do passado, nos momentos em que se faz necessário o apego a algo que potencialize os que

comungam de um mesmo ideal. RAUTER (1998) afirma que “a história produz o futuro

quando ela serve de ferramenta para a ação, como nos momentos em que os povos tomam um

herói do passado para construir o futuro” 213

. Nesse ponto pensamos que seja possível darmo-

nos conta do estrago que o racismo produziu (e produz) nas mentes e nos corações dos

brasileiros. Zumbi dos Palmares foi morto pelas forças da ordem em 1695 e por muito tempo

seu nome foi associado à assombração, só a partir do trabalho de resgate de sua memória ele

passou a ser cultuado como herói, como figura de referência para o movimento de libertação

do povo negro. O resgate do lugar de Zumbi na história de lutas dos brasileiros é também

uma outra leitura sobre os povos escravizados, um outro saber sobre o negro, é a

desconstrução da idéia ainda dominante sobre os negros, e igualmente sobre os índios, pois

são os dois grupos que não estão incluídos na “norma psico sócio-somática criada pela classe

dominante, branca ou que se autodefine desta maneira” 214

. É, sobretudo, recusar os heróis

produzidos a partir da manipulação dos fatos históricos em favor dos interesses das classes

dominantes, leia-se, do capital. Trata-se de uma tarefa exaustiva, porque a imagem de Zumbi

incomoda, ela perturba, porque em seus traços não estão presentes aquilo que o Ocidente

consagrou como ideal de beleza, de humanidade, de caráter. Talvez para alguns, Zumbi ainda

encarne a subversão à ordem estabelecida, quando se a toma como a ordem, ou ainda é

assombração. Para outros, a figura de Zumbi ainda é utilizada para ridicularizar o negro, tal

como aconteceu durante a visita de um grupo de alunos a uma instituição na qual havia a

figura de Zumbi afixada à porta de uma sala de aula intitulada “sala Zumbi dos Palmares”.

Logo que avistaram tal figura, os estudantes começaram a caçoar do único negro presente

entre eles. O menino ficou muito sem graça e o professor nada falou. Achamos que o fato

por si só é explicativo do que acontece na nossa sociedade e expressa o racismo nela presente.

213

RAUTER, C. op. cit, p. 72.

214

COSTA, J. F. Violência e Psicanálise.Apud NASCIMENTO, M. C. Cada um no seu lugar... - op. cit, p. 9.

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2. Apostando na possibilidade de construção de outros mundos

Todo corpo possui a sua própria essência, única, singular, nunca genérica ou

específica, mas diferente de todas as outras, e até diferente de si mesma na

medida em que se desenvolve no tempo, no passado e no futuro. É por isso

que a filosofia estóica privilegia as diferenças e destitui as Idéias universais

ou as Identidades dos objetos gerais. (FUGANTI, 1990)

Pensamos que um desafio se coloca àqueles que estão envolvidos no ensino das

ciências sociais ou psicológicas e aos que desenvolvem trabalhos no campo social. Porque

duas alternativas aí se colocam: ou serem simplesmente mantenedores da ordem ou serem

comprometidos com a desconstrução da mesma. No primeiro caso, estão incluídos aqueles

que nos sistemas terapêuticos ou nas universidades agem como simples depositários ou canais

de transmissão de um “saber científico”; uma posição que reforça os sistemas de produção de

subjetividade dominante. No segundo, os que se interessam por atividades voltadas para a

transformação subjetiva, os que se envolvem em trabalhos voltados para a construção de

estratégias de resistência frente aos processos subjetivos de captura, para a construção de

linhas de fuga.

Mas então, que fazer? Que estratégias adotar para termos uma sociedade sem

racismos? É isso possível? Como concretizar esse desejo?

Bem, não é nosso propósito responder a essas perguntas, como se isso se bastasse

ou se fosse possível respondê-las satisfatoriamente. Sugerimos antes um exercício de pensar,

ou mais que isso: admitir que é possível outras formas de sociabilidade.

Sem querer traçar caminhos, lembramos, de início, ser fundamental ter em mente

que a luta contra as diferentes formas de segregação também tem que se dar “ao nível em que

se articula, efetivamente, a construção, a produção de subjetividades.”215

É nesse ponto que

GUATTARI e ROLNIK entendem ser frutífera, na luta contra o racismo, o abandono de uma

posição defensiva , que apenas reivindique direitos, mas que se adote uma posição ofensiva,

indo mais fundo na questão evocando devires (seja ele negro, mulher, criança, índio, etc.),

entendendo que qualquer um pode entrar num devir negro, por exemplo, porque o devir não

tem nada a ver com cor da pele ou qualquer outra característica física. Não tem nada a ver

com as estratificações dominantes ou com as representações. Na verdade estas são as

215

GUATTARI, F; ROLNIK, S. Op. cit. p.78.

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instâncias que estão constantemente aprisionando os processos de singularização216

e os

enquadrando em “referências de equipamentos coletivos e segregadores”.

Todavia, é preciso estar atentos para não transformá-las em modelos; seria uma

espécie de “recaída” num processo de “cura”. Portanto, ao invés de perscrutar um modo de ser

“genuinamente” negro, que tal enxergar – invocando o “olho vibrátil” – “faíscas de negritude”

por entre as chamas de nossa “brasilidade” tão ávida por fazer-se, mas sistematicamente

abortada pelos arautos de um Brasil civilizado aos moldes europeus.

“Faíscas da negritude” – devires intensos – que fizeram dos quilombos, das

irmandades de negros, da capoeira, das escolas de samba, dos cortiços, etc. espaços de

criação e de solidariedade. O mesmo sentimento de solidariedade que vimos/vemos presentes

nos mutirões para reerguer casas e roças derrubadas pelas intempéries e/ou pelo latifúndio,

nos lamentos das senzalas...

“Faíscas de negritude” presentes no jongo, congada, lundus, batuques, choros,

jazz, spirituals, samba, blues, hip hop, funk, ritmos destrutivos, por isso “perigosos”, uma

outra estética que se fazia e se faz presente, contagiando qualquer um que se deixava e se

deixa afetar pelo que não pode ser reduzido, nem codificado porque é sopro vital. Por mais

forte que seja a tentativa do capital, no sentido de extrair ao máximo tudo o que pode

transformar em mercadoria, para alimentar sua sede insaciável de lucro, a fonte de onde tudo

isso emana mantém-se viva. Podemos comprovar isto na produção incessante dos nossos

artistas, dos nossos jovens, na revitalização de certas formas de convivência comunitária que

pareciam não ter mais lugar no mundo globalizado.

Devir intenso porque não tem pátria, nem família, aliás, estas são abstrações

oriundas de um poder que separa os homens, impedindo-os de serem fraternos e portadores de

alegria. Devires que eclodem em quaisquer lugares e provocam alterações – às vezes

imperceptíveis – na “pele” que recobre a subjetividade. No entanto, sabemos que o “corpo”

por eles tocados jamais voltará ao “estado originário” porque aí se produziu uma dobra e uma

nova constelação se configura, uma outra paisagem se descortina, um ser humano cuja

existência é uma multiplicidade e por isso mesmo não redutível a referenciais pré-

estabelecidos.

216

“O termo „singularização‟ é usado por Guattari para designar os processos disruptores no campo da produção

do desejo: trata-se de movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da

afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. Guattari chama a atenção para a

importância de tais processos, entre os quais se situariam os movimentos os quais, as minorias – enfim, os

desvios de toda espécie.” Idem, p. 45.

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“Faíscas de negritude...” nas trancinhas, no gingar da passista, do mestre-sala e da

porta bandeira, do rei congo, da baiana, da mãe preta, no gostinho bem brasileiro da feijoada,

do angu, da cocada, do acarajé, da pipoca, de tanta coisa...

Devires intensos...múltiplas saídas, mil modos de fazer-se, inúmeras formas de

estar, de ser negro/negra , posto que nossa proposta é a de não apegarmo-nos a formas pré-

estabelecidas, mas juntamente com os envolvidos construirmos dispositivos que

desnaturalizem os lugares estabelecidos, ou que, pelo menos, provoquem rupturas com o

modo de subjetivação dominante.

É nas nossas andanças, encontros, conversas informais, reuniões, debates,

consultório, grupos de estudo, em suma, é no cotidiano, que damo-nos conta do quanto os

lugares e os sujeitos estão naturalizados, de como a “raça” e a cor “negra”, estão aí a lembrar

uma certa estética, um certo ideal de beleza, um certo modo de ser nem sempre valorizados.

De igual modo, não faltam depoimentos de negros e negras que se dizem pouco à vontade nos

espaços onde atuam, que se sentem diminuídos em sua condição “racial”, que vivem situações

de contínuo stress por causa da cor, que têm dificuldades de reivindicar direitos, etc.

São diversos os momentos de ocorrência de situações desconfortáveis, de

discriminação mesmo. Após o relato de alguma experiência, uma questão fica: que fazer?

Pergunta muitas vezes acompanhada da sensação de que não há saída ou de que esta situação

ainda vai perdurar muito, principalmente quando se trata de episódios nos quais a atuação da

polícia é explicitamente racista. Foi assim que um mestre de capoeira fala da revista a qual

apenas ele foi submetido, quando de uma batida policial no ônibus em que retornava para

casa. Conta que se sentiu mais ameaçado ainda quando indagou ao policial sobre o porquê de

haver se dirigido diretamente a ele, após passar pelos demais passageiros. Foi “convidado” a

calar a boca, caso contrário a situação iria piorar para ele, para quem não restou outra saída

que não fosse deixar-se revistar. Nessas situações percebe-se na prática policial a atualidade

do discurso racista. Parece-nos que a ira do policial faz sentido na medida em que a figura do

capoeirista era ela mesma um discurso, a afirmação de uma “negritude”. Suas roupas, seu

penteado rastafari, seus colares, tudo lembrava e afirmava uma certa estética; uma forma de

expressão que ainda suscita no aparelho policial a “necessidade de vigilância”. Isto só vem a

confirmar que o saber produzido nos órgãos de vigilância e controle da população fornece

aos mantenedores da ordem – a polícia - os instrumentos necessários para exercer seu papel.

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A polícia sabe a quem se dirige, conhece seu alvo, por isso pode agir. Esta é a máxima que

baliza as ações policiais217

.

De igual modo, a polícia está sempre desconfiando dos que tradicionalmente não

podem ser donos. Uma senhora presente numa dessas discussões afirmou que

sistematicamente a polícia pede os documentos do seu filho. Este é motorista particular, leva

o filho do patrão para a escola todos os dias, estaciona no mesmo lugar, mas quase sempre é

interpelado pela polícia; conta que certa vez, ele só se viu livre do policial quando o menino

saiu do colégio, veio ao seu encontro e confirmou que ele estava ali a trabalho. Ela conclui,

com uma certa resignação, que foi preciso uma criança branca para livrá-lo de uma ocorrência

policial.

Nesses fatos do cotidiano podem ser verificados o quanto as personagens

envolvidas estão aprisionadas aos estereótipos raciais. Mas prossigamos, reportando agora a

situações em que os protagonistas desenvolvem trabalhos voltados para a temática do

enfrentamento do racismo.

Numa das reuniões do grupo de estudo Ngunga, sobre o qual já nos referimos

neste trabalho, três mulheres falaram sobre trabalho que tiveram e têm com seus filhos devido

a dificuldades por eles enfrentadas nos espaços que freqüentam, em especial no colégio e na

igreja, pelo fato de serem negros, falam da necessidade de estar a toda hora marcando um

lugar. Uma delas fala que sempre estava insistindo em sentar-se nos bancos da frente, quando

lhe era apontado um lugar mais atrás, ocasião em que se valia da sua posição de catequista

para ocupar aquele lugar, numa igreja cujos freqüentadores são majoritariamente brancos.

Fala da dificuldade de seus filhos no colégio, no qual eram por vezes pouco aceitos por suas

características físicas (cor, tipo de cabelo). Acha que sua filha, embora use trancinhas,

assimilou a mesma postura e gestos “brancos”, no modo de ajeitar os cabelos, balançá-los,

torcê-los sobre o pescoço e colo. Gestos característicos das meninas brancas do colégio, cujos

cabelos lisos e longos são constantemente manipulados (alisados, alongados) com as mãos ,

ou seja, jogados ao vento, com um balançar de cabeças; gestos que vemos repetir-se

217

Neste ponto que Fabiano Monteiro (2003), coordenador do Cerena*explica que a trabalho feito com os

policiais no sentido de “conscientizá-los” de suas práticas racistas deveria ter um outro enfoque. Ao invés de

falar dessas práticas, problematizar com os policiais a forma como eles percebem e concebem a ocupação dos

espaços urbanos, especialmente por aqueles sujeitos que tradicionalmente são alvo das suas ações.

*CERENA – “Centro de Referência Nazareth Cerqueira” órgão vinculado à Secretaria de estado de Justiça do

Estado do Rio de Janeiro. Dentre os programas ali propostos, desde sua criação no ano 2000, o Disque-Racismo

foi o que mais se destacou. Houve também um esforço, por parte dos participantes do programa, em desenvolver

trabalho voltado para a formação dos policiais, no sentido de propor mudanças no tratamento com negros,

mulheres, deficientes físicos, homossexuais, etc.

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freqüentemente na televisão, em especial nas propagandas de xampus e cremes, exaltando um

certo ideal de beleza.

Outra mãe comenta que tem duas filhas. Considera que uma delas, cujos traços

“brancos” são bastante evidentes, não teve dificuldades em inserir-se no grupo dominante.

Contudo, acha que esta tem consciência de sua ascendência negra, pois ela – a mãe - nunca

sentiu de sua parte qualquer rejeição por ser negra. Entretanto, sua outra filha teve mais

dificuldades no colégio, nela os traços “negróides”, em especial os cabelos, são bem evidentes

e embora ela afirme ter resolvido essas questões, já é inclusive uma universitária, ela (a mãe)

acha que não é bem assim. A jovem vive “brigando” com o cabelo, alisando-o a todo custo e

não aceitando qualquer sugestão dela sobre como cuidá-los. A mãe percebe que existe mais

do que um cuidado com o cabelo, vê no fato de querer alisá-lo o desejo de escondê-lo, que ela

se sente diminuída com o cabelo que tem. Esta mãe se angustia um pouco porque não

consegue conversar com sua filha sobre tudo isso.

A referência a este “tipo” de cabelo fez com uma das mães dissesse que já fora

abordada e questionada sobre porque não “melhorava” a aparência de seu cabelo (ela os deixa

ao natural). Ao que ela retrucou, dizendo que assim é o seu cabelo, que assim se sente bem e

bonita; pontuou que ela o trata, sim, mas que não pretende alterá-lo, se sente bem com o

cabelo que tem; embora não sendo liso, ele tem também beleza. É isto. Uma coisa bem

simples, ela tem um jeito de cuidar de sua beleza, um modo de se articular com o que a

rodeia, com o cabelo, com as roupas, com as palavras,... é a sua singularidade!

Elas falaram, a seguir, dos efeitos da hegemonia de um certo ideal de beleza, dos

padrões europeus, brancos, sobre o comportamento das crianças e jovens com os quais

trabalham. Estes têm dificuldades de se retratarem positivamente, isto é, fazem o desenho de

si mesmos e dos colegas a partir dos estereótipos que lhes são impostos. Difícil fazerem um

auto-retrato onde apareçam os traços “negróides” sem caricatura. O rosto é o mais difícil de

fazer, quase sempre desistem de desenhá-lo.Por tudo isso concluem que, nos aspectos

relativos à “raça”, há muito que trabalhar.

O rosto é o mais difícil de fazer! Todavia ele subsiste, nos incontáveis homens e

mulheres que na diáspora africana cuidaram de mantê-lo vivo através dos anos. É o rosto do

trabalhador do campo e da cidade, do migrante, dos sem-terra, do prisioneiro, dos deserdados

da sorte, mas é também o rosto do poeta, do músico, do médico, da mãe-de-santo, da

professora, do jornalista, do escritor, da dona de casa, etc.. São incontáveis os rostos “negros”,

como também incontáveis os rostos “brancos” e de outras cores que compõem a humanidade

tão rica e variada em sua expressão. Talvez a dificuldade de delinear esses rostos possa ser

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minimizada se tentarmos não nos fixar em modelos, mas os tomarmos como expressões

momentâneas, fugazes, porque essas formas não estão adstritas a uma “raça” e seu contorno

está em constante mutação. Embora certos traços sejam mais freqüentes entre os membros de

determinado grupo, eles não devem ser vistos como algo em si mesmo., o bastante para

definir um tipo “racial” supostamente inferior ou superior. Não é tarefa fácil, posto que

estamos constantemente bombardeados com imagens que nos remetem a modelos, à formas

tornadas símbolos de beleza, de comportamento, etc.

Urge desfazermo-nos das representações e com isto libertamo-nos das prisões nas

quais fomos jogados pela subjetivação capitalística. Em se tratando da clínica psicológica,

livrarmo-nos do engodo de ver, na dificuldade de desenhar o rosto “negro”, a expressão de

algo de ordem interna do sujeito. Os episódios relatados foram vividos pelos envolvidos em

suas existências particulares, no entanto dizem respeito a uma construção que é social. É no

coletivo que elas estão sendo colocadas, é ali que precisam ser discutidas e os membros desse

coletivo chamados a problematizar e desconstruir essas formações.

Estamos como que amarrados às significações que nos são impostas desde a mais

tenra idade; desde muito cedo as crianças são bombardeadas com imagens e sons que lhes

conformam a uma certa organização de mundo. Um mundo redondo no qual supostamente

vão encontrar respostas às suas dúvidas, desejos e necessidades. Sem dúvida que não é fora do

mundo que cada um vai construindo a sua existência, todavia, a maneira como isso vem se

dando, não tem nos levado não à felicidade, mas a uma certa tristeza de existir; não nos leva a

explorar todas as nossas potencialidades, mas a nos encolhermos sob a tirania de um “destino”

que nos aponta uma determinada direção a seguir e que nos força a nos olharmos as nossas

diferenças como motivo para provarmos uma suposta superioridade de uns sobre outros, ao

invés de tomá-las como algo enriquecedor de nossa experiência, enquanto seres capazes de

forjar uma existência mais humana, exatamente porque somos diferentes.

Forjar uma existência mais plena, forjar um rosto cujas linhas de expressão não

estejam previamente determinadas, ao contrário, deixar que linhas se cruzem livremente e

configurem desenhos cujos contornos não sejam meros decalques de uma realidade já

codificada, um modelo a ser seguido. Talvez aí se encerrem as dificuldades de os meninos

desenharem o próprio rosto, de descambarem para a caricatura quando confrontados com o

“molde” no qual são instados a se conformar. Mas que molde é este? Não seria também a

caricatura uma forma de expor como eles percebem a própria singularidade? Lembremos que

nossa sensibilidade e percepção são efeito de uma produção de subjetividade na qual uma

certa estética é valorizada em detrimento de outras consideradas menores. Mas há algo aí que

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mereceria a nossa reflexão porque, se por um lado esses meninos têm dificuldade de desenhar

os traços singulares da negritude, por outro eles a expressam muito bem de outros modos, seja

na capoeira , na dança afro ou nos ritmos percutidos nas carteiras, etc., enfim há infinitos

modos de expressar o que lhes é peculiar, de modo que a expressão gráfica através do

desenho é apenas uma delas. Há também que se discutir as circunstâncias em que esses

desenhos são solicitados e levar em conta que nem todos estejam naquele momento em um

“devir desenhista”.

De tudo o que até agora nos reportamos, penso que é chegado o momento de não

permitir que o sentimento de inferioridade, o estado de angústia, de dor quase física, de quase

abandono de um projeto de vida, tão bem expresso por uma jovem que veio ao consultório

falar de seu desejo de superar a situação de crise que estava atravessando no trabalho e na

universidade. Na ocasião, afirmava que se sentia diminuída por ser negra, ocasião em que

procuramos mostrar-lhe, a partir do próprio relato que fez das conquistas que até então já

obtivera, que ela não era menor que ninguém e que poderíamos pensar saídas para tudo aquilo

que ela trazia. Ela trazia, com certeza, uma questão que não era dela somente, mas de muitos

brasileiros.

Brasileiros que não se sentem acolhidos num país que não é uma “pátria mãe

gentil”, porque “expondo-os à desigualdade, ao racismo, ao preconceito”, não lhes fornece um

ambiente bom o bastante para viver; pelo contrário, restringe, na verdade o seu potencial

criativo e abre “espaço para desequilíbrios e decorrentes doenças psíquicas, psicossomáticas e

até físicas.” 218

. .

Talvez este possa ser uma pista, no sentido de propor estratégias em nossa prática

que contribuam para a construção de um ambiente favorável à criação, enfim, há que buscar

saídas para as situações nem sempre propícias à expansão da vida.

Na verdade, se fizermos uma retrospectiva histórica, damo-nos conta que as saídas

sempre existiram, embora em momentos precisos se tenha a sensação de que os negros tinham

sido fragorosamente derrotados.

São ecos, são vozes, são batidas fortes ou toques sutis quase imperceptíveis. São

traçados, são linhas que se cruzam aqui e ali, formando mosaicos que se desfazem em

milhares de pontos que subitamente se juntam, recortando um novo perfil que nada mais é, na

verdade, mais uma faceta de algo que se perpetua ao longo dos anos e, por alguns instantes

218

GUIMARÃES, M. A. C. Tradição religiosa afro-brasileira como espaço de equilíbrio. In: SILVA, J. M da

(Org) Religiões afro-brasileiras e saúde. Centro de Cultura Negra do Maranhão. 2003, p. 46-47.

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(ou anos), foi impedido de manifestar-se. No entanto, refaz-se de outros modos até então

impensados por quem se acostumou a uma única expressão de vida, como se esta tivesse

existência estática e passível de aprisionamento em códigos, escrituras, leis, monumentos,

religiões, significados, significantes, etc.

Evidentemente há a necessidade de um pouco de sedentariedade, ninguém

sobrevive no caos total; “é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se

recomponha a cada aurora” 219

. O que é bem diferente de abraçarmos a todo custo a

organização que aí está, ou lançarmo-nos na busca frenética daquela que pensamos ser a ideal.

Nada mais contrário ao que vimos insistindo até então: livrarmo-nos das representações e

coações que o “corpo social” nos impõe (GUATTARI, 1981).

Trata-se de “abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento,

circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidades,

territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor” 220

. É permitir que o

traçado do rosto comporte linhas de quaisquer direções, pois, ali se conjugam forças/fluxos de

diferentes matizes que podem a qualquer instante entrar em conexão com outras, e outras, ...

e assim novas paisagens se configurando.

Não tanto valor à significância e à interpretação, apenas o suficiente para “opô-las

ao próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive

as situações nos obrigam” 221

, mas agir livremente, de acordo com as exigências da vida em

cuja dinâmica estamos inseridos.

Pensamos que não importa saber se quando algumas escravas “azedavam” a

comida de suas senhoras, fugiam, ou, na pior das hipóteses, se matavam, ou empreendiam

qualquer ação para tornar suas existências mais suportáveis, tinham a medida exata do que

isso iria acarretar. Importa sim, ter em mente que agiam segundo o que, no limite, lhes era

exigido para se manterem vivas. O que parece um ato de crueldade era, naquele instante, a

saída para quem não é mero expectador da vida, mas nela está mergulhado e de alguma

maneira intervém no seu curso. Foram os pequenos gestos, aparentemente sem importância

para o conjunto da sociedade que aos poucos foram minando o edifício escravista, de sorte

que chegou o momento que outra paisagem se configurou.

219

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed 34, 1996,

p. 23. 220

Idem, idem.

221

Idem, p. 23.

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“Trata-se sempre de liberar a vida onde ela mesma é aprisionada ou de tentar faze-

la num combate aberto” 222

Na verdade, a história dos africanos e seus descendentes no Brasil está repleta de

situações que são uma amostra de como esses indivíduos souberam inserir, nos interstícios da

cultura dominante, elementos fortes das suas tradições223

, os quais permanecem até hoje e são

continuamente atualizados.

Depreende-se daí que cabe-nos então experimentar as oportunidades que nos são

postas diuturnamente. Por mais insignificantes que possam parecer. Cada gesto, movimento,

atitude pode ser algo que vai provocar pequenas alterações ou “desordens” no que estamos

habituados a tomar como bom ou mau. Sendo que, no primeiro caso, temos a tendência de

querer conservar, daí o risco de absolutizá-lo e, no segundo, igualmente, com o agravante de

que, nas más situações, nem sempre damo-nos conta de que se podem construir linhas de

fuga a partir das quais se podem construir outros territórios existenciais.

Porque a vida, o sopro vital, o axé não estão submetidos a quaisquer instâncias de

comando, por isso por mais que os massacres que os africanos sofrem em África e seus

descendentes na diáspora, a vida continua se fazendo. E novos rostos vão se configurando,

mas este processo só se dá à medida que abandonamos o já estabelecido, que não ficamos

debruçados sobre o que se passou, imersos na dor que sentimos um dia, porque só há devir

quando nós abandonamos o estrato, quando deixamos de ser alguém. Trata-se de cada vez

mais - insistimos - de produzir o estranhamento, de evitar o reconhecimento sob qualquer

rótulo, de permitir que outras experiências tenham lugar. Deixar de ser alguém significa

abandonar o que nos é imposto, tendo em vista que o rosto, a forma homem que conhecemos,

foi produzida em um dado momento da história, isto é, o rosto é histórico, ele não existiu

desde sempre. Daí, desfazer o rosto é possível, desde que não nos prendamos às limitações

impostas por quaisquer categorias, sejam elas de gênero, de faixas etárias ou raciais.

Se temos um destino, este será o de escaparmos ao rosto, às formas estabelecidas,

aos modelos, permitindo que outros rostos (muitos rostos) se configurem.

222

DELEUZE, G; GUATTAR, F. Apud ROLNIK, S. Instaurações de mundos. In: TUNGA. Tunga 1977-1997.

223

Em diversas localidades brasileiras, onde os reisados e as congadas ainda persistem, o azul e o branco são

muito utilizados e estão associados às cores de Maria; são coes que não refletem a matriz cultural africana. Isso

nos permite inferir que, quando da criação desses grupos, se abrir mão destas cores para preservar outros

elementos culturais que lhes eram mais caros, porque é o toque dos tambores, o canto e a dança que fazem a

diferença. Nossos antepassados não podiam tocar para seus ancestrais ou para os orixás, então tocavam para são

Benedito ou N. Sra do Rosário. Na brecha que se abria no culto, criou-se um meio de expressar sua cultura. Cf.

NSCIMENTO, M. C. op. cit. p. 53.

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