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Universidade Estadual de Maringá 27 e 28 de abril de 2010 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE SANTIDADE E EDUCAÇÃO NA “BULA DE CANONIZAÇÃO” DE CLARA DE ASSIS DIAS, Ivone Aparecida (UEM) OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM) O objetivo de nossa comunicação é apresentar algumas considerações iniciais sobre a relação entre santidade e educação tomando como recorte temporal o século XIII. A fonte documental utilizada para traçar essa relação é a Bula de Canonização de Clara de Assis (1194-1253). Consideramos importante salientar que a análise da fonte supracitada integra um amplo corpus de textos escritos por Clara ou a ela endereçados, tais como a Regra de vida, Cartas, Documentos Pontifícios etc, e que estão sendo analisados para a elaboração de nossa tese de Doutorado em Educação. Conforme a introdução feita por Pintarelli, Pedroso e Teixeira (2008, p. 78) às Fontes Franciscanas e Clarianas, a Bula de Canonização de Clara é um documento conhecido desde o século XVII. Os autores afirmam que Lucas Wadding, no século citado, teria visto vários exemplares desse documento ainda com seus selos de chumbo. “Mas um exemplar garantido só se tornou conhecido, quando foi encontrado pelo Padre Zeffirino Lazzeri no arquivo do castelo de Sant’Angelo, em Roma”. A cópia da Bula encontrada por Lazzeri foi dirigida aos bispos franceses “[...] e o seu descobridor acredita que seja uma espécie de minuta para o documento” (PINTARELLI, PEDROSO e TEIXEIRA, 2008, p. 78). A própria introdução da Bula assinala que a mesma fora endereçado aos bispos da França: “[Alexandre, bispo, servo dos servos de Deus], a todos os veneráveis arcebispos e bispos estabelecidos no reino da França: [saúde e bênção apostólica]” (BC, 2008, p. 1735) 1 . 1 BC = Bula de Canonização de Santa Clara.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE SANTIDADE E EDUCAÇÃO NA “BULA DE

CANONIZAÇÃO” DE CLARA DE ASSIS

DIAS, Ivone Aparecida (UEM)

OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)

O objetivo de nossa comunicação é apresentar algumas considerações iniciais sobre a

relação entre santidade e educação tomando como recorte temporal o século XIII. A

fonte documental utilizada para traçar essa relação é a Bula de Canonização de Clara de

Assis (1194-1253).

Consideramos importante salientar que a análise da fonte supracitada integra um amplo

corpus de textos escritos por Clara ou a ela endereçados, tais como a Regra de vida,

Cartas, Documentos Pontifícios etc, e que estão sendo analisados para a elaboração de

nossa tese de Doutorado em Educação.

Conforme a introdução feita por Pintarelli, Pedroso e Teixeira (2008, p. 78) às Fontes

Franciscanas e Clarianas, a Bula de Canonização de Clara é um documento conhecido

desde o século XVII. Os autores afirmam que Lucas Wadding, no século citado, teria

visto vários exemplares desse documento ainda com seus selos de chumbo. “Mas um

exemplar garantido só se tornou conhecido, quando foi encontrado pelo Padre Zeffirino

Lazzeri no arquivo do castelo de Sant’Angelo, em Roma”.

A cópia da Bula encontrada por Lazzeri foi dirigida aos bispos franceses “[...] e o seu

descobridor acredita que seja uma espécie de minuta para o documento”

(PINTARELLI, PEDROSO e TEIXEIRA, 2008, p. 78). A própria introdução da Bula

assinala que a mesma fora endereçado aos bispos da França: “[Alexandre, bispo, servo

dos servos de Deus], a todos os veneráveis arcebispos e bispos estabelecidos no reino da

França: [saúde e bênção apostólica]” (BC, 2008, p. 1735)1.

1 BC = Bula de Canonização de Santa Clara.

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Quando a Bula foi encontrada a mesma fazia “[...] parte de um fascículo de cinco

pergaminos com las bulas de canonización de San Edmundo de Cantorbery y de San

Pedro Mártir (canonizados el 16 de diciembre de 1246 y 9 de mayo de 1253)

[...]”(OMAECHEVARRIA e COLS., 1970, p. 107). Essas bulas, todas do século XIII,

procediam do Arquivo da catedral de Anagni, na qual foi realizada a cerimônia de

canonização de Clara (PINTARELLI, PEDROSO e TEIXEIRA, 2008).

De acordo com Omaechevarria e seus colaboradores (1970), a Bula é um documento

intimamente relacionado com o Processo de Canonização de Clara2 e com a sua

Legenda3. Pintarelli, Pedroso e Teixeira (2008, p. 79) também enfatizam que esse

documento, que apresenta um resumo da biografia de Clara de modo “[...] solene e

elegante [...]” é dependente de seu Processo de canonização. Afirmam, ainda, que,

conforme alguns críticos, o documento talvez já estivesse escrito antes da morte do Papa

Inocêncio IV; contudo, quem o publicou foi o seu sucessor, Alexandre IV, o mesmo que

canonizou Clara.

Devido ao estilo do documento, à sua forma de trabalhar com as palavras,

principalmente com a ideia de claridade, de luz, articulada ao nome de Clara, alguns

estudiosos indicam a possibilidade da Bula ter sido redigida por Tomás de Celano

(PINTARELLI, PEDROSO e TEIXEIRA, 2008, p. 78). Não há, contudo, conclusões a

respeito de seu verdadeiro autor.

Conforme a afirmação dos autores supracitados, Clara teria sido canonizada,

provavelmente, no dia 15 de agosto de 1255 (PINTARELLI, PEDROSO e TEIXEIRA,

2 O Processo de canonização de Clara de Assis registra o testemunho de religiosas e de leigos a respeito da vida de Clara de Assis. “Dois meses após a morte de Clara, a 18 de outubro de 1253, o Papa Inocêncio IV encarregou o Bispo de Espoleto, Bartolomeu, para investigar a santidade da damianita. Foi pedida uma pesquisa a respeito da devoção e do culto que vinha sendo prestado a Clara, os milagres que vinham se manifestando, etc.. O resultado disso foi o Processo de Canonização, iniciado por volta de 24 a 29 de novembro de 1253”. (SILVA, 2007, p. 124-5). 3 “A palavra ‘legenda’ quer dizer ‘para se ler’, ‘para ser lido’ [...]” (SOUZA, BERNARDI E KIRCHNER, 2007, p. 149). São duas as Legendas de Clara: A Legenda de Santa Clara e a Legenda Versificada de Santa Clara.

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2008), sendo que a sua Bula de canonização teria sido expedida pelo Papa Alexandre IV

no primeiro ano de seu pontificado, no dia 26 de setembro de 1255, em Anagni.

Portanto, dois anos após a morte de nossa personagem (BC, 83)4.

Antes de passarmos às considerações a respeito desse importante documento pontifício

do século XIII, no sentido de destacarmos a relação entre santidade e educação nele

presente, julgamos conveniente salientar algumas questões que nos auxiliarão,

posteriormente, em nossas análises. Especialmente, apresentaremos como a santidade

vem sendo explicada por alguns estudiosos do assunto. Assim, iniciamos com a

concepção de santidade destacada por Silveira (1995, p. 11-12). Para ele, “A Bíblia

aplica o termo santo a Deus. Ele é o Santo, o totalmente outro, o transcendente, o

numinoso. Só a Deus cabe por natureza a santidade”. Em sua análise, o termo “santo”

“[...] é aplicado a coisas, lugares, pessoas, não por serem santos por natureza, mas por

estarem em relação com o Santo, Deus. [...]”. No Novo Testamento, segundo o autor,

fala-se em possibilidade de participação do homem na natureza divina. Portanto,

embora os homens não sejam santos por sua própria natureza, podem sê-lo porque

podem participar da santidade d’Aquele que é Santo.

Essa reflexão levou o autor a distinguir duas formas de santidade: a santidade essencial

– atributo divino por natureza – e a santidade ética ou moral, santidade das boas ações,

da união com Deus e de sua imitação – santidade que, em relação à essencial, podemos

marcar como não-essencial.

Podemos dizer, portanto, que a prática da santidade ética ou moral, ou santidade não-

essencial é entendida como a possibilidade para o homem ser partícipe da santidade

divina ou essencial. É com base nesta perspectiva que apresentaremos nossas

considerações a respeito da santidade de Clara a partir de sua Bula de canonização.

4 Conforme indicam Pintarelli, Pedroso e Teixeira (2008), o exemplar que compõe as Fontes Clarianas – com a qual estamos trabalhando – tem a data de 26 de setembro, contudo, há outros exemplares com a data de 19 de outubro. Para eles, deve ser a data da expedição da Bula.

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Para a efetivação de nosso objetivo, também julgamos relevantes as reflexões de Bartoli

(2007, p. 88), grande estudioso das fontes clarianas, sobre a questão da santidade. O

autor esclarece que a santidade, de modo geral, na Idade Média, era concebida de forma

diferente pelo povo e pelos representantes da Igreja. Assim, ele afirma que a ideia de

santidade, para o povo, estava relacionada tanto com o ouvir falar de alguém que podia

realizar milagres, como com a prática de tocar o túmulo ou de ter contato com o corpo

da pessoa considerada santa. Desse modo, “[...] a idéia de santidade nada tem a ver com

a vida da pessoa santa. Poder-se-ia nem conhecer a vida e, mesmo assim, receber um

milagre”.

Observamos, assim, que era o “ouvir falar” sobre milagres que levava o povo a acorrer

ao túmulo de uma pessoa considerada santa. Portanto, era a “fama pública” referente

aos milagres que respaldava a procura pelo “encontro” com o santo; visava-se, por meio

desse encontro – visita ao túmulo ou toque no corpo do santo – a obtenção de um favor,

a libertação de uma dificuldade, a cura de uma doença.

Conforme Teixeira (2007, p. 20, grifos na obra), a fama pública pode ser entendida

como um meio de comunicação fundamental no período medieval. Para ele,

O temo latino fama tem como significado originário o que se diz de alguém; o segundo, é a voz corrente entre o povo. Tem inclusive o significado de boato. Por fama pública poder-se-ia entender, então, tudo aquilo que o povo noticia, comenta, transmite na vida cotidiana: um evento, importante ou não, a doença de alguém, um escândalo, uma tragédia, etc. Pode-se perfeitamente imaginar a vivacidade da fama pública, quando Francisco se despiu diante do bispo e começou a viver como deserdado e maltrapilho, ele que gostava de vestir-se bem. A fama pública interpretou-o como louco. Igualmente, quando Clara fugiu da casa paterna na noite de domingo de Ramos, escolhendo tornar-se esposa do Cristo pobre.

A fama pública de Clara também está registrada em sua Legenda (53, 4-5)5 quando, por

exemplo, dois cegos afirmam: “Ouvimos falar há pouco de uma senhora que morreu na

5 Os números referem-se ao capítulo da Legenda e seus versículos.

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cidade de Assis, e se diz que o poder do Senhor honra seu sepulcro com graças de cura e

muitos milagres”.

Desse modo é possível observar que a busca do povo não era pelo conhecimento da vida

da pessoa considerada santa, isso pouco importava; a busca visava à satisfação de

alguma necessidade que afligia a vida, que dificultava a existência. Temos “notícias”,

por exemplo, de alguns milagres creditados a Clara nos quais vemos a cura de membros

doentes do corpo, multiplicação de pães quando de sua escassez etc (PC). Assim,

podemos dizer que era a dureza da vida que levava o povo a buscar a obtenção de

favores do céu pela intercessão de alguém considerado santo.

Entretanto, de acordo com Bartoli (apud SILVA, 2007, p. 125), “[...] para o papa

Inocêncio IV era importante estabelecer uma ligação entre a santidade de vida e as curas

que se realizavam junto ao túmulo da damianita”6.

Entendemos que é a partir dessa questão que podemos apresentar a contraposição da

ideia de santidade da Igreja em relação à ideia que o povo tinha acerca de quem era

santo. Assim, por exemplo, na Legenda de Santa Clara, na Segunda parte, na qual estão

descritos os milagres de Clara após sua morte, o autor da Legenda afirma:

Costumes santos e obras perfeitas são o verdadeiro prodígio dos santos. Esse é o testemunho que devemos venerar em seus milagres. João não fez sinal nenhum (Jo, 10,41); mas os que fazem milagres não são mais santos do que ele. Por isso, bastaria sua vida perfeitíssima, se outra coisa não fosse pedida pela tibieza e pela devoção do povo (LSC, 49, 1-3)7.

Ainda na Legenda encontramos outro trecho que evidencia que, aos olhos da Igreja, a

forma de vida da pessoa com fama de santa deveria ser considerada em primeiro lugar,

antes dos milagres a ela atribuídos. Assim, no capítulo 62 o autor da Legenda diz que

6 Inicialmente as clarissas eram conhecidas como Damianitas (religiosas que moravam no convento de São Damião) ou Damas pobres. Apenas em 1263 as religiosas seguidoras de Clara passaram a ser chamadas clarissas, em obediência ao Papa Urbano IV (http://www.franciscanos.org.br/sav/ordensfranciscanas/02.php). 7 LSC = Legenda de Santa Clara.

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após a morte de Clara o Papa Alexandre IV foi “[...] levado pelo acúmulo de tantos

milagres a uma decisão insólita, começou a tratar de sua canonização com os cardeais”.

Assim, podemos dizer que o próprio Papa foi alcançado pela fama pública de Clara.

Desse modo,

Entregou o exame dos milagres a pessoas dignas e discretas, encarregadas de estudar também sua vida prodigiosa. Viu-se que Clara tinha sido, em vida, claríssima pela prática de todas as virtudes e, morta, admirável por milagres autênticos e comprovados. (LSC 62, 3-5).

Bartoli (2007, p. 88) salienta que

[...] o autor da Legenda sabe que a santidade é a conformação com a vida de Cristo. Os costumes e a maneira de viver é que fazem uma pessoa santa. [...] Para ser santo, é necessário ter uma vida santa, de acordo com o Evangelho. Para aquele tempo, esta era uma idéia “moderna” de santidade. Era a idéia que a Cúria romana queria fazer circular no meio do povo. Esta era idéia com a qual o autor escreveu sua Legenda. Mas ele sabia também que no povo havia “tibieza” de fé e devoção, que precisavam de milagres. Por isso, escreveu o segundo opúsculo, que é todo dedicado aos milagres, mesmo que ele, pessoalmente, não gostasse dos milagres.

Esse mesmo estudioso nos informa, ainda, que nas fontes clarianas, além das

concepções de santidade do povo e da Sé apostólica, uma terceira concepção pode ser

identificada: a das Irmãs de São Damião. Para o autor, a concepção de santidade das

irmãs está descrita nas Atas do Processo de Canonização de Clara e não aparecem na

Legenda. Ou seja, muitos dos milagres relatados pelas irmãs durante o interrogatório

para compor o Processo de canonização não foram relatados pelo autor da Legenda

(BARTOLI, 2007) – fato este que pudemos constatar com a leitura de ambos os

documentos.

Conforme Bartoli (2007, p. 93),

[...] Para o autor da Legenda, não é preciso ver os milagres para ter fé; mas para as irmãs é preciso ter fé para ver os milagres. Esses milagres não são apenas episódios extraordinários, mas simplesmente são os

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sinais da presença de Deus na vida dos homens. Pode-se ver essa presença também nos episódios da vida de cada dia, mas é preciso ter uma visão que permita vê-los. Essa visão é a fé.

As leituras realizadas até o momento nos permitem considerar que no início do

cristianismo, as concepções de santidade do povo e da hierarquia eclesiástica talvez não

fossem tão diferentes entre si. Uma passagem da Legenda Versificada de Santa Clara

(XXXIII) possibilita levantar a hipótese de que mesmo no século XIII não havia uma

rígida divisão entre o que esses diferentes seguimentos sociais entendiam por santo e

santidade:

A notícia da morte da virgem comoveu imediatamente todos os cidadãos. [...] O povo aclamava-a como bem-aventurada, venerava-a como santa, e misturava louvores com as lágrimas. Apressou-se o podestá, cercado por pelotões militares de homens armados; ficaram atentos à tarde e usaram guardas durante toda a noite, cuidando de proteger tesouro tão precioso para que não pudesse acontecer nada de sinistro, pois foi tão grande a devoção de todos que os sagrados selos pontificais8, que brilham nos dedos, foram colocados nas mãos preciosas da defunta para poderem adquirir algo de sua virtude: esperavam que a morta não fosse avara para com seus devotos [...]

Observamos que mesmo homens situados nos níveis mais elevados da sociedade

aguardavam a realização de milagres de Clara. Todavia, cumpre dizer que, apesar da

espera do milagre, este era aguardado considerando-se que já em vida ela realizara

muitos favores, muitos benefícios em prol dos homens. Ou seja, já aparece o

entendimento de que a possibilidade do milagre estava relacionada à maneira como

Clara vivera.

Entendemos que essa questão ainda precisa ser melhor esclarecida. Assim, só em outra

oportunidade poderemos apresentar reflexões mais aprofundadas sobre a mesma.

8 “Os bispos usavam, nos anéis, as insígnias com que carimbavam os documentos”. (Fontes Franciscanas e Clarianas, 2008, p. 1778, nota de rodapé),

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Outra questão que precisamos trazer à baila é a exigência, pela Igreja, da instauração de

Processos, de pesquisa, de investigação de milagres e da forma de vida do suposto santo

para que a Igreja pudesse reconhecer oficialmente sua santidade por meio do processo

de canonização.

O reconhecimento de alguém como santo, e a autorização para o culto litúrgico, era (sic) da competência das igrejas locais até o fim do século X. Em 993, pela primeira vez, o Papa declarou formalmente santo a (canonizou) S. Ulrich, monge-bispo de Augsburgo. Sem o rigor do atual processo de canonização. Tal direito lhe foi reservado aos poucos. A maioria dos santos venerados na Igreja não passou por um processo de canonização formal. Seu culto imemorial em igrejas locais foi simplesmente aceito pela Igreja universal (SILVEIRA, 1995, p. 12).

Pedroso também (apud SILVA, 2008) afirma que no século XIII a ideia da instauração

de um Processo como instrumento de respaldo para a canonização era relativamente

recente; entretanto, desde o século XII havia se tornado uma exigência para o

reconhecimento de um santo ou de uma santa.

Desse modo, aos poucos, a palavra final sobre a santidade de alguém com tal fama se

tornou uma prerrogativa do Papa; contudo sua palavra se sustentava nos resultados de

um trabalho de pesquisa sobre a vida do “candidato” a santo – ou tornado “candidato”

por sua fama pública entre o povo. Todavia, é preciso lembrar que era grande a

filtragem de informações pelos notários responsáveis pelos registros de uma

investigação com fins de canonização. Desse modo, havia influências nos testemunhos

de quem era ouvido e a possibilidade de distorções era um fato possível, como lembra

Vauchez (apud SILVA, 2008).

O autor acima citado também ressalta que

A alteração por parte da santa Sé, das causas que conduziam à santificação foi acompanhada pela instituição de um controlo sobre as virtudes e os milagres dos servidores de Deus, que eram submetidos a um exame atento da cúria depois de ouvido o testemunho de todos os que dele tinham conhecimento ou que tinham beneficiado com sua intercessão, no quadro de um processo de canonização. A partir daí,

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haverá no Ocidente duas espécies de santos: aqueles que, tendo sido aprovados e reconhecidos pelo papa, poderão ser objecto de culto litúrgico, e os outros, que terão de contentar-se com uma veneração local (VAUCHEZ apud SILVA, 2008, p. 212-13).

Podemos dizer que Clara foi reconhecida como santa tanto na instância local – pelo

povo – como na Cúria papal – oficialmente, portanto –, o que é evidente em sua Bula de

Canonização.

Tendo sido reconhecida e oficializada como santa, Clara precisava ser conhecida, sua

vida precisava ser divulgada. Desse modo, a nosso ver, a Bula não é um documento que

foi enviado aos bispos da França simplesmente para lhes informar que o Papa decidira

colocar Clara “[...] na lista dos santos, com o conselho e o consentimento comum [...]”

dos “[...] irmãos e todos os prelados então presentes na Sé apostólica [...]”. A Bula

contém ensinamentos que os bispos deviam divulgar, como podemos observar abaixo:

Por isso, recomendamos e exortamos atentamente a vós todos, mandando por esta carta apostólica que celebreis com devoção e solenidade a festa desta virgem no dia 12 de agosto e que a façais celebrar por vossos súditos com toda veneração, para que mereçais tê-la como piedosa e diligente ajuda diante de Deus.

Durante a celebração das missas os bispos, assim como os padres, deviam ressaltar

como Clara vivera de maneira virtuosa, apresentando-a como um modelo a ser seguido,

imitado. Desse modo, a nosso ver, é por essas práticas que, aos poucos, implantava-se a

concepção de que o povo devia, antes de procurar os santos para obter milagres,

conhecer a vida dos mesmos para imitá-los, para aprender a ser santo com eles. Nesse

sentido, a divulgação da vida dos santos pode ser tomada como um recurso educacional

fundamental no século XIII.

Assim, é que, narrando de forma resumida alguns aspectos de sua biografia, a Bula

indica que a santidade de Clara teria resultado de sua forma de viver, de suas opções por

uma vida virtuosa na Igreja:

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De fato, quando ainda menina, no século, procurou desde a mais tenra idade atravessar por um atalho limpo este mundo frágil e imundo [...] Quando quis fugir do ruído do mundo, foi para uma igreja do campo [...] De família nobre, mais nobre ainda pelo comportamento [...] Na verdade, ela foi a árvore destacada (cf. Dn 4,8) e eminente, de ampla ramagem, que deu o doce fruto da religião no campo da Igreja [...] ela foi um candelabro elevado de santidade (BC, 17, 21, 27, 31, 33, grifos na obra).

Nesse processo educacional para uma vida virtuosa, trabalhando com o nome de Clara,

o autor da Bula permite entender que a santidade era concebida como um processo:

“Foste clara antes da tua conversão, mais clara na conversão, preclara por teu

comportamento no claustro e brilhaste claríssima depois do curso da presente

existência [...]” (BC 6, grifos nossos). Observamos, desse modo, que o próprio nome de

Clara, relacionado à luz, à claridade, é tomado como um instrumento educacional. Ou

seja, a partir do nome dela é construída toda uma explicação de como a mesma,

gradualmente, concretizou a santidade não-essencial, por meio da vivência das virtudes,

tornando-se, assim, participante da santidade essencial.

Por meio da Bula verificamos que há um esforço em mostrar que a vida do santo – no

caso, a vida de Clara – devia ser divulgada, seu comportamento, anunciado, suas

virtudes, destacadas para que o povo começasse a tomá-la como exemplo a ser seguido.

Desse modo, era fundamental mostrar o caminho a ser percorrido, dar a conhecer os

elementos que concorreram para que a sua santidade fosse reconhecida. Nesse sentido, a

vida virtuosa ganhava realce. Assim, eis algumas das qualidades, das virtudes atribuídas

a Clara:

Ela foi a primeira entre os pobres, a comandante dos humildes, mestra dos continentes, e abadessa dos penitentes. Ela governou o seu mosteiro e a família que nele lhe foi confiada, com solicitude no temor e no serviço do Senhor e na plena observância da Ordem: vigilante no cuidado, esforçada no serviço, atenta na exortação; diligente para admoestar, prestimosa para se compadecer, discreta para se calar, madura no silêncio, experimentada em todas as coisas oportunas para um perfeito governo, querendo mais prestar serviço que dominar, e mais honrar do que ser honrada. Sua vida era instrução e doutrina para as outras (BC, 37-39)

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Outra questão que merece destaque é o fato de, na Bula, a Igreja ser apresentada como o

espaço – ou domínio - privilegiado para o desenvolvimento da santidade: “Ela fez no

terreno da Igreja o jardim da humildade [...] Ela edificou nas terras da religião a

fortaleza da abstinência estrita [...]” (BC, 36, grifos nossos). Ou seja, Clara tornara-se

santa porque aprendera com os ensinamentos da Igreja a forma correta de bem viver. A

Igreja fora sua mãe, a sua educadora, aquela que lhe mostrara o caminho para tornar-se

santa: “Alegre-se então a Mãe Igreja, que gerou e educou essa filha que, como genitora

fecunda de virtudes, produziu com seus exemplos muitas discípulas da religião [...]”

(BC, 71). Para a Igreja, portanto, Clara devia ser tomada como um exemplo de alguém

que reconhecera sua autoridade de Mãe e aprendera com ela a arte de bem viver. Essa

Clara, obediente, distinta por suas virtudes, devia ser lembrada, celebrada, tomada como

exemplo a ser seguido; sua vida devia ser divulgada para que os homens pudessem

encontrar nela uma auxiliar, uma intercessora, em seu próprio processo de santificação:

“Esta clara foi distinguida aqui por suas obras fúlgidas, esta Clara é clarificada no alto

pela plenitude da luz divina [...] e na terra, sentem-se os remédios manifestos do seu

auxílio” (BC 5,7).

As considerações acima pontuadas nos permitem observar que, por meio da Bula, a vida

de Clara é tomada como “objeto” ou como instrumento educativo, como exemplo a ser

seguido. Ou seja, a sua canonização representou uma oportunidade para a Igreja ensinar,

para educar, para mostrar como Clara praticara as virtudes, como vivera e conformara

sua vida à de Cristo – o qual havia tomado como modelo maior – e, por isso, tornara-se

santa. Isto é, ela fora reconhecida oficialmente como santa porque sua prática de vida

fora a concretização da santidade não-essencial a qual lhe possibilitara a participação na

santidade essencial, aquela pertencente apenas a Deus, conforme indicamos por meio de

Silveira (1995).

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REFERÊNCIAS:

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