Constituição, democracia e indeterminação social do direito

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  • Resumo

    O artigo explora a tese de que a ordem constitucional vigente

    sob a Constituio Federal de 1988 caracterizada pela indeterminao social do direito. Esse conceito combina dimen-

    ses empricas e normativas: a multiplicidade de arenas decisrias especializadas na estabilizao de expectativas e a luta

    de justificao sobre a interpretao poltica das normas jurdicas.

    Palavras-chave: Constituio Federal de 1988; indeterminao social

    do direito; constituio democrtica; democracia.

    AbstRAct

    This article explores the statement that the constitutional

    order in force since the promulgation of the Federal Constitution of 1988 epitomizes the social indeterminacy of law. This

    concept brings together empirical and normative dimensions: multifarious arenas of decision-making tailored to estabi-

    lization of expectations and struggles for justification about political interpretation of legal norms.

    Keywords: Federal Constitution of 1988; social indeterminacy of law;

    democratic constitution; democracy.

    Novos esTUdos 96 JUlho 2013 33

    Constituio, demoCraCia e indeterminao soCial do direito*

    Samuel Barbosa

    Dossi: 25 anos Da constituio De 1988

    Novos esTUdos 96 JUlho 2013 33

    Uma tentativa de diagnstico dos 25 anos da ordem constitucional esbarra em muitas dificuldades, a comear pelas lacu-nas de conhecimento emprico em que pese a ampla bibliografia hoje disponvel sobre o stf sobre a aplicao da Constituio nas vrias instncias do Judicirio, assim como sobre outros temas rele-vantes. Outra se impe pela diversidade de perspectivas disciplinares que, da histria constitucional e cincia poltica aos debates de teoria do direito e teoria constitucional, visam a constituio1. Menos evi-dente a dificuldade de natureza conceitual: escolher um conceito de direito largo o suficiente para cobrir e interligar dimenses empricas e normativas e produtivo o suficiente para incorporar e criticar as ofer-tas de explicao e compreenso da ordem constitucional vigente.

    [*] AgradeoaleituradeJosRo-drigoRodriguezeJoaquimToledoJr.eoenviodebibliografiaporFabiolaFanti,CelsoCampilongo, JefersonMarianoSilvaeLeonardoRosa.

    [1] Cf.umatentativadecobriressadiversidadedeperspectiva,Avritzer,Leonardo(org.).Dimenses polticas da justia.RiodeJaneiro:CivilizaoBrasileira,2013.

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    [2] Apoiei-meementrevistasestru-turadascomumconjuntodejuzes,advogadospblicoseprivadoseau-ditoresfiscais,algunsdelesprofes-soresqueresponderamnaqualidadedeprofissionais,e,comalgunsdeles,entrevistas semiestruturadas maisextensas.Soprofissionaisdereasdiferentesdodireito,emmomen-tos diferentesdacarreira.Agrade-oatodasetodos:AlbertoAlonsoMuoz,CaioFarahRodriguez,CelsoCampilongo,ElivaldaSilvaRamos,FernandoDiasMenezesdeAlmeida,FranciscoSatiro,GustavoJust,Ho-meroBatistaMateusdaSilva,JarbasLuizdosSantos,JulianoMaranho,JosMariaArrudadeAndrade,Lu-ciaBarbosaDelPicchia,ManoeldeQueirozPereiraCalas,MarcosUn-turaNeto,MileneChavez,RodrigoBroglia Mendes, Said Takieddine,ThiagoBrito,ThiagoTannous.

    [3] Aconvergnciapodeserexplica-dadevriasmaneiras:aexistnciadeumaregraexigindodeterminadaaoouhbitossocialmenteformados.

    Vou delinear em grandes linhas uma tese conceitual que articula duas dimenses do direito. Na primeira dimenso, o direito defi-nido como conjunto de processos institucionalizados para produzir decises e, com isso, desempenhar a funo de estabilizao de expec-tativas sobre comportamentos sociais. A segunda dimenso enfatiza o direito como prtica argumentativa acerca da indeterminao das normas jurdicas. Na primeira dimenso, o direito funciona como pa-rmetro para a ao estratgica dos clientes do sistema jurdico. Na segunda, o direito um medium especializado para o exerccio da ar-gumentao prtica pelos cidados. Por si s, cada dimenso exigiria uma discusso extensa, o que no posso fazer aqui. A apresentao limitada pelo ponto de fuga do artigo: caracterizar a indeterminao social do direito na ordem constitucional ps-1988.

    Na primeira seo, a partir da teoria do direito de H. L. Hart, apre-sento o que significa dizer que o conceito de direito tem duas dimen-ses distintas, definidas aqui como aspecto externo (regularidade) e aspecto interno (regra). Na segunda seo, interpreto as duas dimen-ses, a partir da sociologia jurdica, respectivamente, como rotinas institucionalizadas e justificao. Discuto a indeterminao do direi-to nas duas dimenses. Por um lado, h uma fragmentao de arenas que produzem decises incompatveis que compromete a segurana jurdica. Por outro, o significado das regras objeto de luta de justifica-o, resultado da existncia de modelos concorrentes. Na ltima seo, esse esquema conceitual empregado para interpretar a ordem cons-titucional ps-1988. Apresento tambm o significado da expresso

    constituio democrtica, a partir do trabalho de Maurizio Fioravan-ti, que permite dar intelegibilidade ao debate constitucional brasilei-ro mais recente. Nas duas ltimas sees, analiso indcios empricos ainda provisrios, resultado de levantamento qualitativo, para dois elementos do argumento: a percepo de insegurana jurdica, com-partilhada por muitos profissionais do direito, e a pluralidade de re-gimes jurdicos relativamente autonmos em relao Constituio2.

    1.

    Em O conceito de direito, de 1961, Hart deu uma contribuio impor-tante para investigar a dupla face do direito que se revelou fecunda para a teoria social (Luhmann e Habermas) e para teorias sociolgicas de mdio alcance (Denis Galligan) ao distinguir, a partir da dife-rena entre regularidade e regras sociais, os pontos de vista externo e interno. Para que haja regularidade, necessria e suficiente a con-vergncia, que pode ser registrada por um observador, de comporta-mentos3. Para que haja uma regra, necessria a atitude especfica de consider-la como padro que exige o comportamento; nesse caso, o

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    [4] Hart, H. The concept of law.Oxford: Oxford University Press,1997[1961],pp.9-11,57-59[ed.bras.:O conceito de direito.TraduodeAn-toniodeOliveiraSetteCamara.SoPaulo:MartinsFontes,2009].

    [5] Shapiro,Scott.Whatisthein-ternalpointofview?.Fordham Law Review,75,2006,pp.1157-70.

    [6] Hart,op.cit.,p.11(grifosdoau-tor).Eopoderdessejuizespecfico,parajulgaressecaso,segundoesseprocessoespecfico,nosefundaemumaregularidade,masemregrasdejulgamento.

    padro um critrio que justifica a ao conforme a regra e a crtica ao que dela se desvia4.

    Mas a distino entre os dois pontos de vista no idntica dis-tino entre participante e observador5. O participante de uma ordem jurdica, ao invs de adotar a atitude crtico-reflexiva, pode assumir a regra como uma regularidade para fazer prognsticos e tomar decises tcnicas e estratgicas. Esse o caso quando uma lei obedecida no por respeito lei, mas para evitar uma punio. A escolha se baseia em prognsticos: escolher pagar um imposto depende da previso acerca de como um tribunal vai decidir a constitucionalidade do imposto. Os prognsticos sero to mais seguros quanto mais regular for o com-portamento dos tribunais sobre determinado assunto. Mais adiante vou retirar as consequncias desse ponto de vista externo adotado pelo participante de uma ordem jurdica, que um dos aspectos da dimenso de facticidade do direito. Antes, porm, quero reunir mais elementos para destacar os aspectos institucionais de uma ordem ju-rdica como a brasileira.

    A institucionalizao do direito foi explicada por Hart com o con-ceito de regras secundrias. Alm das regras que estatuem deveres e proibies, uma ordem jurdica madura possui uma reflexividade ca-racterstica: regras regulam a criao de outras regras e regulam a apli-cao das regras aos casos. As regras secundrias de cmbio e de jul-gamento institucionalizam, respectivamente, processos decisrios de criao e aplicao do direito. Por exemplo, a Constituio define no art. 62 uma minuciosa regulao para a edio de medidas provisrias e sua converso em lei; no art. 102, as matrias de competncia do stf.

    Do ponto de vista externo, os processos decisrios seriam regis-trados como regularidades e rotinas. Mas, do ponto de vista interno, como relaes de validade. Uma medida provisria vlida porque foi criada com respeito Constituio. Uma sentena judicial vlida quando respeita as regras de julgamento que regulam a aplicao do direito aos casos:

    O juiz, ao punir, toma a regra como seu guia e a violao da regra como a razo e justificao para ele punir o autor da violao [offender]. Ele no considera a regra como uma afirmao de que ele e outros provavelmen-te vo punir os desvios, embora um espectador pudesse considerar a regra precisamente desta maneira6.

    A institucionalizao do direito, portanto, no apenas uma ro-tina ou regularidade que pode ser descrita, mas tem uma dimenso de validade que pressupe a adoo do ponto de vista interno. Uma questo importante saber quem deve adotar necessariamente tal ponto de vista.

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    [7] Hart,op.cit.,pp.116-17.

    [8] Hart,op.cit.,p.127.

    Hart prope que um sistema jurdico existe se estiverem reunidas duas condies necessrias e suficientes: (1) as regras que definem os comportamentos obrigatrios e proibidos, que so vlidas segundo critrios do sistema, so geralmente obedecidas pelos cidados pri-vados; (2) as regras que definem os critrios de validade e as regras de cmbio e julgamento so aceitas pelos funcionrios (officials)7.

    Quanto ao participante que no atua como funcionrio, basta adotar o ponto de vista externo. J vimos em que sentido ele se comporta assu-mindo esse ponto de vista, orientando-se em termos tcnicos e estrat-gicos. Ele tambm pode adotar o ponto de vista interno, mas isso no necessrio. Essa uma condio importante porque exprime que a exis-tncia do direito depende da convergncia dos comportamentos, isto , as leis no devem ser geralmente desobedecidas, sem o que no existe o sistema jurdico. J os funcionrios, especialmente os juzes, adotam (isso tambm pode ser registrado por um observador como um fato) e devem adotar a atitude interna. Eles aceitam, no apenas obedecem, os fundamentos ltimos de validade do direito. A pergunta sobre a exis-tncia do sistema jurdico, portanto, pede uma resposta com duas faces (a Janus-faced statement): o direito tem a dimenso de facticidade e a dimenso de validade. Um adendo importante que, tanto para o parti-cipante que necessariamente adota o ponto de vista externo quanto para o participante oficial que deve adotar e adota o ponto de vista interno, o sentido da regra no pode ser indeterminado para todos os casos. Vale dizer, a extenso da regra determinada para casos centrais e indetermi-nada apenas em casos-limite (os chamados casos de penumbra). Hart assume uma tese de filosofia da linguagem importante para seu projeto: a indeterminao da regra definida como problema lingustico, que existe em casos de vagueza, mas nem sempre ocorre. Para os casos de indeterminao, o juiz possui um poder discricionrio, tem que fazer uma escolha que no pode ser arbitrria ou irracional8.

    Essas so condies mnimas para a existncia de todo sistema jurdico. Como Hart se move no plano de uma teoria geral do direito, e estuda o sistema jurdico, no cuida de condies mais exigentes para caracterizar um sistema jurdico determinado. Portanto, ele no oferece uma teoria da argumentao apta a fundamentar os juzos de justificao implicados no ponto de vista interno, tanto para os casos fceis, subsumidos s regras, como para os casos difceis (va-gueza). Uma teoria da argumentao responderia qual a justificao para que uma escolha acerca de casos difceis no fosse arbitrria ou irracional. O espao da luta de justificao est demarcado, mas no est preenchido. Alm disso, importante questionar em que medi-da uma ordem jurdica democrtica exigiria a participao do cidado na luta por justificao, no sendo suficiente que ele adotasse o ponto de vista externo.

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    [9] Paraosexemplosquevoudarnasequncia,importantesalientarqueousodossmbolosproibidoeobrigatrionosuficienteparacaracterizar uma regra. Dizer quealgumdevepagarumimpostosobpenademultapodesignificarquehumaexpectativa(senopagar,sermultado)quenoseadaptadesi-luso(nopagamento).Esse,emlinhasgerais,oconceitoluhmanianoderegracomoexpectativanormativa,queapagaadimensodeontolgicaacessveldopontodevistainterno.

    [10]Umobservadorinteressadoeminvestigardeterminada instituioseapoianaexistnciadeparadigmasquefuncionamcomoregrasdojogodainstituio,permitindoprognos-ticarumpadromnimoapartirdoqualemergemoutrasdinmicaspas-sveisdeexplicao.

    [11] Estouconsiderandoapenasashiptesesemqueoclienteoptaporlitigarnas instnciasoficiais.Maselepoderiaresolveroconflitoforadaformalidadedodireito,comapoioemregrassociaisemecanismosinfor-maisdesoluodascontrovrsias.Cf.Ellickson,RobertC.Order without law: how neighbors settle disputes.Cam-bridge(Mass.):HarvardUniversityPress,1991.

    2.

    Um diagnstico adequado da atual ordem constitucional precisa levar em conta rotinas institucionalizadas e justificao, que com-pem a dupla dimenso do direito. Em cada dimenso, possvel identificar um tipo de indeterminao: indeterminao institucional e indeterminao normativa. Vou chamar de indeterminao social do direito a relao entre ambas.

    J vimos que o participante de uma ordem jurdica pode adotar um comportamento tcnico e estratgico com relao ao direito. A regra perde a caracterstica deontolgica (proibido, obrigatrio) e adquire, do ponto de vista externo, a caracterstica modal ( neces-srio, possvel)9. Vou reservar o termo regra para o padro que preserva o sentido deontolgico acessvel do ponto de vista interno, e adotar o termo paradigma para o padro que serve de orientao tcnica/estratgica e serve de base para fazer prognsticos sobre o comportamento dos tribunais. Alm disso, assumo que o paradig-ma no vago para todos os casos e tem, para os casos centrais, um sentido determinado.

    Qualquer participante sabe enumerar um conjunto de paradigmas sobre os impostos que deve pagar, os crimes que deve evitar e sobre afirmaes acerca do legislador, juiz, policial. Com base em paradig-mas, faz previses sobre o comportamento das instituies e de ou-tros agentes, e pode fazer escolhas estratgicas10. Em situaes mais complexas, ele consulta sempre uma advogada11.

    At aqui, acompanhamos uma possibilidade aventada por Hart: os participantes podem adotar o ponto de vista externo. sedutor expan-dir a descrio para abranger o comportamento dos funcionrios. Di-gamos, ento, que juiz, promotor, advogado participam da reproduo do direito apelando para paradigmas. Por exemplo, a smula n- 443 do tst, publicada em setembro de 2012, presume discriminatria a despedida de empregado portador do vrus hiv ou de outra doena grave que suscite estigma ou preconceito. Invlido o ato, o empregado tem direito reintegrao no emprego. Essa proposio bem deta-lhada sintetizaria a aplicao rotineira pelo tst de outros paradigmas mais abstratos (clt). Um paradigma programa a atribuio de um dos valores do cdigo do direito (jurdico/no jurdico) aos casos; os juzes dispem de um critrio para tomar decises com economia de tempo, os advogados para planejar a defesa do seu cliente (empregado ou empregador) em um processo judicial. A repetio de paradigmas e o aprendizado de novos paradigmas criados pela legislao ou pela jurisprudncia fazem do direito uma questo de rotinas que permitem prognosticar a deciso das instituies judiciais e fazer escolhas estra-tgicas. Quanto mais paradigmas, maior a segurana jurdica. Quanto

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    [12]Para uma discusso aprofun-dadadoproblemadacertezanodi-reitodopontodevistadateoriadossistemas,verGonalves,GuilhermeLeite.Osparadoxosdacertezadodireito.Revista Direito GV,2,2006,pp.211-22.

    mais paradigmas, mais redundante o sistema jurdico, e mais se sabe o que se pode esperar.

    Continuando o exerccio de adotar o ponto de vista externo como suficiente, uma dificuldade a ser enfrentada : como conciliar a tese de que o direito cria rotinas e permite prognstico sobre o compor-tamento dos tribunais com a percepo de insegurana jurdica com-partilhada por muitos profissionais (e cidados) do direito brasileiro?

    A percepo de insegurana tem explicaes diferentes a depender dos vrios regimes jurdicos que compem a ordem jurdica brasileira, a exemplo do direito tributrio, notarial, empresarial, direito do menor, direito de falncias, direito do mercado de capitais, direito antitruste etc. Para o exemplo do direito tributrio, a formao de paradigmas fica seriamente debilitada em razo da constante produo de regras dos vrios nveis e entes da federao em competio por receitas.

    Seja qual for o regime, a insegurana se traduz na dificuldade de prognosticar a deciso dos tribunais e rgos administrativos, percep-o compartilhada pelos entrevistados. Isso porque a jurisprudncia varia entre os tribunais de instncias diferentes, entre os tribunais de mesma instncia, at mesmo entre as cmaras de um mesmo tribunal. Cada tribunal cultiva sua autonomia para decidir os conflitos. Uma cmara especializada de falncias em um tribunal como o de So Paulo que julga os principais casos de falncia do Brasil ciosa da sua auto-nomia com relao ao stj. A autonomia do tst reconhecida pelo stf, que evita julgar matria trabalhista. Ou ainda, pensando em cmaras arbitrais cuja deciso secreta, no faz sentido perguntar por um pa-dro jurisprudencial. Alm desses fatores, a autonomia decisria ocor-re porque h uma diviso de trabalho entre as instncias: enquanto a primeira instncia vocacionada para a aplicao do direito aos casos, tribunais superiores se especializam em discusses de teses abstra-tas sobre a interpretao do direito. Em parte, porque o significado interpretativo fixado em instncias superiores tem dificuldade de se irradiar de cima a baixo.

    Nessa circunstncia extremada de incerteza, a institucionalizao do direito a chave para explicar o desempenho da funo estabiliza-dora. O cliente do sistema jurdico autuado por um rgo de fiscaliza-o pode recorrer ao Judicirio para anular a multa; caso no obtenha uma deciso favorvel, pode recorrer dessa deciso, de posse de uma liminar (deciso preliminar) favorvel em alguma instncia, no pre-cisa se incomodar com a lentido do Judicirio para dar um desfecho ao processo. Em outras palavras, apesar da dificuldade de prognosti-car as decises e da ausncia de uma jurisprudncia coerente, o cliente tem acesso a uma rede de processos institucionalizados. Com mais sucesso em alguns casos, menos em outros, o cliente obtm certezas precrias, conquistadas de deciso em deciso12.

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    [13] Waldron, Jeremy. RonaldDworkin:anappreciation,2013,p.2,em,acessadoem20/07/2013.

    [14] Este o saldo que retiro dodebate norte-americano que apsosautoresdoCritical Legal Studiesaosautoresdateoriaanalticadodireito.Tushnet,Mark.Defendingthein-determinacythesis.QLR,16,1996,pp.339-56.Coleman,JuleseLeiter,Brian.Determinacy,objectivity,andauthority.Pennsylvania Law Review,142,1993,pp.549-637.Hartog,Hen-drik.Pigsandpositivism.Wisconsin Law Review,1985,pp.899-936.

    [15] Emrazodosconflitossociais,odebatejurdicoespecializadopres-sionadoa inventarnovassoluespermanentemente.JosRodrigoRo-driguezcaptouessacircunstncianaexpressoemblemticadogmtica conflito, que serve para proble-matizaraideiadeumsaberjurdicoreprodutorderotinas:Essaneces-sidadedeconstantementedarcontadeconflitosnovos,apartirdeummaterialjurdicojexistente,colocaoaparelhoconceitualdogmticoemum estado de crise permanente.Trata-sedeumaatividadevoltada,aomesmotempo,paraopassadoeparaofuturo,sempreemfunodoprin-cpiodaigualdadeperanteasleis.Rodriguez,JosRodrigo.Dogmti-caconflito:aracionalidadejurdicaentresistemaeproblema.In:Rodri-guez,J.R.,Pschel,FlaviaPortellaeMachado,MartaRodriguezdeAssis.Dogmtica conflito: uma viso crtica da racionalidade jurdica.SoPaulo:Saraiva,2012,p.24.

    Mas essa perspectiva objetivadora que a apaga a dimenso interna do direito no leva a srio a prtica argumentativa to onipresente na dinmica jurdica que fica reduzida mera retrica, criao de re-dundncia. Parece unilateral reduzir a dinmica do direito situao de juzes que aplicam mecanicamente paradigmas ou a de advogados e clientes que atuam como lobistas interessados em uma deciso quase legislativa13. O cnico dir que isso mesmo.

    Ainda admitindo a existncia de paradigmas e processos institu-cionalizados funcionando dessa maneira, uma interpretao alterna-tiva, que adota o ponto de vista interno, sustenta que a dimenso de justificao est interligada dimenso das rotinas. Por um lado, a referncia aos paradigmas depende de suposies de fundo: justifica-es, deliberaes que formam a garantia para se tomar uma propo-sio incontroversa para os casos centrais. O acordo presumido que sustenta os paradigmas consequncia de prticas argumentativas do passado que formam o acervo de suposies de fundo pressuposto no presente. Alm disso, os acordos e sua expresso paradigmtica podem ser revisados na prtica argumentativa do presente. Por outro lado, a ausncia de jurisprudncia no um fato constatado sem mais. Um tribunal que no segue a orientao de um tribunal superior justi-fica a correo das suas decises segundo a melhor interpretao que pode dar para o direito vigente. Assim, no parece utpico postular a dimenso de justificao, ela est inscrita na dinmica do direito.

    Digamos ento que na atual ordem constitucional h, por um lado, indeterminao institucional. Os vrios rgos e as variadas arenas judiciais, administrativas e quase oficiais para tomada de deciso no se estruturam em hierarquias rgidas. Cada rgo atua para garantir sua autonomia decisria, o que cria obstculos consolidao da ju-risprudncia. Mas, por outro lado, a luta de justificao pelo sentido da norma aberto a disputa, tanto nos casos fceis como nos casos difceis. A indeterminao normativa no pode ser corretamente in-terpretada como indeterminao lingustica (restrita aos casos de va-gueza) como props Hart14. Os conflitos sociais, o fato do pluralismo das sociedades contemporneas desafiam a suposio de evidncia dos casos fceis15. A indeterminao normativa evidencia-se em es-pecial porque o prprio material normativo (legislao, juriprudncia, literatura jurdica) expressa modelos normativos contestveis. So modelos de justia, de sociedade bem-ordenada, de liberdade que so disputados nas vrias arenas em seu detalhamento.

    Essa caracterizao to mais plausvel quanto mais presente a inde-terminao que caracteriza a prtica democrtica e a cultura de direitos:

    A conscincia do direito e sua institucionalizao mantm uma rela-o ambgua. Esta implica, por um lado, a possibilidade de uma oculta-

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    [16]Lefort,Claude.A inveno demo-crtica: os limites do totalitarismo.SoPaulo:Brasiliense,1987,p.57.

    [17] Sobreahistriadaconstituintee o processo de redemocratizao,verBarbosa,LeonardoAugustodeAndrade.Histria constitucional brasi-leira: mudana constitucional, autorita-rismo e democracia no Brasil ps-1964.Braslia: Cmara dos Deputados,2012,ePilatti,Adriano.A constituinte de 1987-1988: progressistas, conserva-dores, ordem econmica e regras do jogo.Riode Janeiro:LumenJuriseEd.puc-rj,2008.

    [18]Fioravanti,Maurizio.Los dere-chos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones.Madri:Trotta,2009.

    [19]GilbertoBercovicitemprodu-zidodiversostrabalhosquebuscamevidenciarodebatepolticoqueestpressupostonodebateconstitucio-nal.Ver,emespecial,Bercovici,Gil-berto.Soberania e constituio: para uma crtica do constitucionalismo.SoPaulo:QuartierLatin,2008.Igual-mente vale para Cattoni, Marcelo.Poder constituinte e patriotismo cons-titucional.BeloHorizonte:Manda-mentos,2006.

    o dos mecanismos indispensveis ao exerccio efetivo dos direitos pelos interessados, em decorrncia da constituio de um corpo jurdico e de uma casta de especialistas; por outro lado, fornece o apoio necessrio conscincia do direito16.

    Em uma democracia consolidada, a ambiguidade apontada por Lefort dificilmente se resolve a favor do fechamento e isolamento autrquico dos mandarins do direito. A cultura jurdica deixa de ser identificada como monoplio dos profissionais do direito e a esfera pblica jurdica se alarga para cobrir outras vozes. Ganha evidncia e se torna explcito o debate dos modelos normativos de justia, socie-dade bem-ordenada etc. que esto incorporados no direito, ao invs de permanerem como pano de fundo da convico dos juristas e implci-tas nas justificativas pontuais, caso a caso.

    3.

    A Constituio de 1988 uma constituio democrtica. Essa afir-mao no tem nada de trivial. Na constituinte, no prosperou uma constituio projetada por notveis. Vingou a expressiva mobilizao e participao popular em meio ao mosaico de agremiaes partid-rias, de porta-vozes dos poderes institucionais (presidncia, Judici-rio, Ministrio Pblico, polcia), de grupos de interesse com influncia variada. A especificidade desse processo contrasta com uma histria constitucional de cartas outorgadas, de constituio de notveis, to-das com reduzida participao da esfera pblica17.

    Mas a afirmao no trivial porque a prpria expresso constitui-o democrtica rene princpios de extrao diferentes, incompatveis ou pelo menos de combinao problemtica. De Kant a Habermas, a tentativa de interpretar a combinao entre direitos humanos e sobera-nia popular, estampados na Declarao francesa de 1789, d mostras da dificuldade do projeto do constitucionalismo democrtico. A crtica ideo-lgica da Declarao desde Marx duvida da consistncia desse projeto.

    Maurizio Fioravanti usa a expresso para caracterizar um tipo es-pecfico de constituio que tem exemplos no sculo xx, especialmen-te no ps-guerra18. Constituies democrticas combinam dois tipos, a constituio-programa (constituzione-indirizzo) e a constituio-

    -garantia (constituzione-garantia), formadas respectivamente no pro-cesso revolucionrio francs e no norte-americano. Vou apresentar em grandes linhas a reconstruo histrica de Fioravanti porque ela d intelegibilidade, em chave poltica, ao debate jurdico-constitucional brasileiro mais recente19.

    O processo poltico da Revoluo Francesa combina direitos e so-berania da nao ou povo, configurando um tipo especfico de cons-

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    titucionalismo. Os direitos declarados desde 1789 no expressavam a experincia sedimentada em costumes e na prtica das instituies como o caso do constitucionalismo ingls, que tutela os direitos pela ao dos juzes que aplicam o common law. A experincia acumulada no Antigo Regime expressava, como diz o prembulo da Declarao, ig-norncia, esquecimento e desprezo dos direitos. Afirmar os direitos indicativo de que revoluo se faz contra o passado. Os direitos guar-dam uma dimenso de projeto de futuro, de algo a ser conquistado. Tambm diferentemente dos ingleses, cuja Constituio costumeira mista, equilibrando os poderes (King in Parliament), expressava uma soberania parlamentar limitada, no tipo francs a soberania da na-o ou povo. A definio mais precisa dos direitos reenviada lei; o problema no o de limitar, encontrando o equilbrio entre os poderes, mas o de constituir os poderes, o que coloca o problema da relao entre poder constituinte e poderes constitudos.

    Com efeito, nas declaraes e constituies do perodo revolucio-nrio, a enunciao de diversos direitos apenas na aparncia se asse-melha experincia inglesa. o caso do art. 7- da Declarao de 1789,

    Ningum pode ser acusado, preso ou detido seno nos casos deter-minados pela lei. Mas o reenvio lei, que alis aparece em posies centrais da Declarao, sugere outro horizonte poltico. Na interpreta-o de Fioravanti, um erro ler os direitos como conjunto de garantias da liberdade e propriedade dos indivduos. Erro porque os direitos no so experincia mas programa para o futuro, inclusive abertos inveno de novos direitos, como os direitos sociais enunciados na Declarao jacobina de 1793. E erro porque o debate sobre o exerccio da soberania antecede discusso das garantias. Em outras palavras, a sociedade no concebida maneira inglesa como sociedades de indi-vduos titulares de direitos liberdade e propriedade, mas sociedade de indivduos politicamente ativos, cuja unidade (nao ou povo) titular da soberania. O problema expressar e representar a soberania da nao ou povo.

    No art. 6-, a Declarao de 1789 deixava aberta a dramtica alterna-tiva para a manifestao da vontade da nao ou povo, que acompanha o processo revolucionrio. A alternativa entre democracia direta e representao: A lei expresso da vontade geral. Todos os cidados tm o direito de concorrer, pessoalmente ou atravs dos seus repre-sentantes, para a sua formao. Por um lado, a soberania da nao ou povo incita mobilizao dos cidados, exige o sufrgio universal e meios para participao direta do povo. Fazer a revoluo significa im-pedir que o legislador se firme como um novo soberano e que o corpo poltico dependa da representao para ganhar unidade. A soberania constituinte manifesta uma desconfiana dos poderes constitudos. O exemplo emblemtico disso o art. 28- da Declarao jacobina de

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    [20]Fioravanti,op.cit.,p.67.

    1793: Um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de modi-ficar a sua Constituio. Nenhuma gerao pode sujeitar as geraes futuras s suas leis. Por outro lado, h a alternativa de fundar a repre-sentao, liberada do mandato imperativo, garantindo, com isso, uma maior autonomia da classe poltica capaz de transcender interesses particulares e faces. Em suma, a revoluo oscila em duas direes opostas: afirmar a prioridade do corpo constituinte soberano de ci-dados politicamente ativos contra os poderes constitudos; afirmar a primazia do legislador que encarna a vontade geral acima das faces atuantes da nao ou do povo20.

    Em sntese, esse tipo de constituio-programa subordina a lgica da garantia lgica da soberania. Quer pela mobilizao permanente do poder constituinte, quer pelo legislador virtuoso, a elaborao da lei garante os direitos. Em um e outro caso, no h espao para uma constituio com fora para limitar os poderes e se firmar com supre-macia e rigidez sobre a legislao.

    Do processo revolucionrio norte-americano, resulta o tipo da constituio-garantia. A crise cujo desfecho a independncia cata-lizada pela reao dos colonos s leis do Parlamento ingls que criam novos tributos sem o consentimento dos interessados. A reao se baseia em uma complexa teoria poltica decantada na vibrante esfera pblica americana. Uma mescla de republicanismo radical, da lite-ratura jurdica sobre a ancient constitution e dos escritos da ilustrao combinam-se para criticar a soberania parlamentar e para a defesa dos direitos dos colonos que se referem de modo ambivalente aos direitos dos costumes antigos e aos direitos naturais.

    Para Fioravanti, o constitucionalismo norte-americano estabiliza a constituio como governo limitado com fins de garantia. Em pri-meiro lugar porque o poder constituinte das assembleias coloniais e da conveno dos Estados reunidos se manifesta na criao de consti-tuies escritas. A constituio, no as leis, a principal fonte do direi-to. As leis se subordinam constituio, que no pode ser modificada por procedimentos ordinrios. Em segundo lugar porque a defesa da supremacia da constituio se encaminha pela via judicial, expediente que se firma no incio do sculo xix. Pesou aqui a experincia da tutela de direitos pelo common law importado do constitucionalismo ingls. Por fim, porque a oposio soberania parlamentar no se resolve na linha jacobina, apesar da linhagem de pensamento radical presente no universo de referncias. A estabilizao dos poderes constitudos se deu na frmula dos freios e contrapesos, definidos pela constituio escrita e rgida.

    Na Europa ps-revolucionria, a doutrina do direito pblico reage a essas duas tradies. Rejeita a concepo de direitos e liberdades pr-

    -estatais e a supremacia e rigidez constitucional que fundamentam

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    [21] Fioravanti,op.cit.,p.107.

    [22]Aarnio,Aulis.SobreelderechoyelEstadodeBienestar.In:Derecho, racionalidade y comunicacin social.Mxico:Fontamara,1995,pp.33-46.

    critrios externos para avaliar a lei estatal. Os direitos e liberdades so interpretados como posies jurdicas subjetivas criadas e tuteladas pela lei do Estado. Os cdigos e as leis ganham posio de destaque nas fontes do direito, a constituio reduzida a frame of government. O percurso resumido por Fioravanti em duas mximas: da procla-mao revolucionria das liberdades tutela dos direitos pelo direito positivo estatal e da supremacia da constituio supremacia do Estado. A doutrina do direito pblico rejeita tambm a ideia do poder constituinte popular permanentemente mobilizado:

    Enquanto na outra margem do Atlntico a constituio, rgida e pro-tegida pelo controle de constitucionalidade, se impe aos poderes pblicos para garantir os direitos, na Europa continental o Estado de direito, a lei do Estado, o poder pblico como reflexo orgnico da nao, quem custodia os direitos e por eles defendido, desde um ponto de vista rigorosamente liberal, das intromisses desestabilizadoras da constituio, do poder constituinte, das vontades particulares dos indivduos e das foras sociais21.

    Essa exposio esquemtica suficiente para discernir algumas estruturas do constitucionalismo que importam para interpretar as constituies do ps-guerra, dentre elas a Constituio brasileira de 1988. A tese de Fioravanti que as constituies da democracia de massa e do Estado social combinam a tradio da constituio-garan-tia e da constituio-programa. Por um lado, recupera-se a supremacia e rigidez da constituio, vale dizer, a legislao est subordinada constituio, que s pode ser modificada por processos especiais. A ideia do legislador que encarna a vontade geral corrigida pelo status superior da constituio. Alm disso, o Judicirio ganha centralidade como arena para dar efetividade constituio. Por outro lado, a cons-tituio projeta-se para o futuro como conjunto de princpios, valores e fins que deve ser levado em conta pelos poderes e pela sociedade. Alm disso, d fundamento para a inveno de novos direitos, em ou-tras palavras, a luta de justificao no se resume funo de garantias dos direitos j consagrados ou a luta por sua universalizao. No apenas garantia, mas projeto de futuro. Das duas tradies, recupera-

    -se o conceito e a prtica do poder constituinte que havia sido silencia-do pela doutrina do direito pblico do Estado de direito.

    O debate constitucional brasileiro mais especializado inteligvel a partir desse pano de fundo. As discusses sobre teoria da interpre-tao e teoria da argumentao ganharam centralidade, avanando para alm da doutrina do direito pblico tradicional22. So discusses que procuram alargar o conceito de norma jurdica para contemplar padres cuja estrutura no evidente para os profissionais do direi-to. perceptvel a diferena entre uma regra que prescreve nigum

  • 44 coNsTiTUio, democracia e iNdeTermiNao social do direiTo Samuel Barbosa

    [23]Algunsdessestemasestoexem-plificadosnodebateconstitucionalmaisrecenteemSilva,VirglioAfonsoda.A constitucionalizao do direito: os direitos fundamentais nas relaes entre particulares. So Paulo: Malheiros,2005. Mendes, Conrado Hbner.Direitos fundamentais, separao dos poderes e deliberao.SoPaulo:Sa-raiva,2011.Just,Gustavo.Interprter les thories de linterprtation.Paris:LHarmattan, 2005. Souza Neto,CludioPereiraeSarmento,Daniel(orgs.).A constitucionalizao do direi-to.RiodeJaneiro:LumenJuris,2007.

    [24]AniseAssociaoLsbicaFemi-nistadeBrasliaCoturnodeVnus.LegislaoeJurisprudncialgbttt.Braslia,2007,em

  • Novos esTUdos 96 JUlho 2013 45

    rerparatantofoiforjadoemgrandemedidapelostribunaisinferiores.Eestescontinuaroadisputarainter-pretaodacf,sejaqualforoencami-nhamentodadopelostf,emNobre,Marcos.Indeterminaoeestabi-lidade:os20anosdaConstituioFederaleastarefasdapesquisaemdireito.Novos Estudos,n.82,2008,p.106.Atesedesseartigo,aindeter-minaosocialdodireito,aomesmotempoinstitucionalenormativa,ofe-receelementosanalticosparaemba-saressediagnstico.

    [26]Ver,paramaisdetalhes,Rodri-guez,op.cit.,p.28:Aobtenodeumaresposta jurisdicionalnofazcessarodebatedogmtico.Eleces-saemrelaoaocasoconcreto,maspodecontinuaremnomedoscasosfuturosquesejamsemelhantesque-le,sobreosquaisaqueladecisopo-derviraterinfluncianacondiodejurisprudncia.Porissomesmo,apossibilidadedequeodebateperma-neaocorrendonasociedade,mesmodiantedeumarespostajurisdicionaljdada,temimportnciaparaalegi-timidadeeparaaeficciadodireito.

    [27]Cf.PrincpiosdeYogyakarta,em,acessa-doem20/07/2013.

    [28]CF,art.226,3.ParaefeitodaproteodoEstado,reconhecidaaunioestvelentrehomememulhercomoentidadefamiliar,devendoaleifacilitarsuaconversoemcasamento.

    [29]Por um lado, a invocaoaosprincpios(moraise jurdicos)apresentava-secomopanaceiaparasolucionartodososmalesdanossaprticajurdicaeconstitucional.Poroutro,aretricaprincipialistaserviaao afastamento de regras claras ecompletas,paraencobrirdecisesorientadassatisfaode interes-sesparticularistas.Assim,tantoosadvogadosidealistasquantoosas-tutamente estratgicos souberamutilizar-seexitosamentedapompadosprincpiosedaponderao,cujatrivializaoemprestavaaqualquertese,mesmoasmaisabsurdas,umtododerespeitabilidade.Issotudo,parece-me,emdetrimento deumaconcretizao jurdicaconstitucio-nalmenteconsistenteesocialmenteadequada,emNeves,Marcelo.Entre Hidra e Hrcules.SoPaulo:MartinsFontes,2013,pp.ix-x.

    do Estado, obrigando o registro de contrato de convivncia entre pessoas capazes, que vivam ou pretendam viver uma relao de co-munho afetiva, independentemente de oposio de sexo entre os contratantes. Logo aps a deciso do stf e apesar de no mencionar o casamento homoafetivo, o stj reconheceu a habilitao para o ca-samento em uma deciso que beneficiava um casal de lsbicas do Rio Grande do Sul; meses antes um juiz de primeira instncia em Jacare (sp) autorizava o primeiro casamento civil gay, com parecer favor-vel do Ministrio Pblico. Vrios Tribunais de Justia estaduais, na sequncia, ordenaram aos cartrios a habilitao para o casamento e converso da unio estvel em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, o cnj procurou uniformizar nacionalmente o reco-nhecimento desse direito25.

    A luta de justificao ocorreu e prossegue em vrias arenas, no comeou e no terminou no stf26. A autonomia dos processos ins-titucionalizados de tomada de deciso, que foi interpretada como mecanismo de estabilizao de expectativas, pode ser interpreta-da como possibilidade para o exerccio da luta de justificao que permite o aprendizado cruzado entre os vrios rgos e a inveno de novos direitos. Novos paradigmas (o casamento homoafetivo reconhecido no direito brasileiro) so definidos na luta de justifi-cao. importante lembrar que o debate se beneficia de experin-cias legais e jurisprudncias de outros pases, e com a legislao in-ternacional de direitos humanos em relao orientao sexual e identidade de gnero que se adensa em convenes e normas de soft law27. Esse caso um exemplo de que, em muitos temas, a luta de jus-tificao no autrquica, mas se define em redes que transcendem culturas jurdicas particulares.

    Mas a Constituio no reconheceu a unio estvel apenas entre homem e mulher28. No vou detalhar qual foi a justificao dada pelo stf. Apenas registro que nenhum juiz afastou o princpio de fidelida-de Constituio. Em outras palavras, a justificao expressamente apresentada como se a Constituio j trouxesse inscrita essa possi-bilidade de reconhecimento: o debate especializado na atualidade am-pliou o repertrio dos tipos de justificao aceitos na argumentao jurdica. Essas observaes sumrias indicam que o campo da teoria da argumentao est aberto, com possibilidade de defesas dos novos esquemas de justificao e crticas aos abusos29.

    Alm disso, um diagnstico realista precisa considerar o fato da frag-mentao do direito brasileiro em regimes jurdicos diferentes. Mais que uma especializao temtica, a diviso entre os regimes exprime lgicas com relativa autonomia que se manifestam de vrias maneiras. Os vnculos entre os regimes e a Constituio so os mais diversos. Comparando entre os regimes, varia o grau de importncia de argumen-

  • 46 coNsTiTUio, democracia e iNdeTermiNao social do direiTo Samuel Barbosa

    [30]Nobre,op.cit.,pp.99,104.

    tar com base na Constituio: de forma ocasional e indireta no direito antitruste, bancrio, mercado de capitais e societrio; frequente e neces-sria no direito tributrio, administrativo, urbanstico, direito de famlia, direito do menor. Para um regime especfi co, o peso do argumento cons-titucional depende do nvel jurisdicional em que se pratica a justifi cao: na primeira instncia judicial, a aplicao do direito penal e em muitas reas do direito civil se baseia primariamente nos respectivos cdigos; nas instncias superiores, a justifi cao se apoia com mais frequncia na Constituio. Dependendo dos regimes, a formao de paradigmas foi concluda mais rapidamente. o caso das vrias decises do stf que consolidaram uma jurisprudncia em matria tributria, o que no im-pediu a indeterminao para inmeros outros temas tributrios. As re-formas do Judicirio introduziram mecanismos processuais visando a uniformizao da jurisprudncia para alguns regimes, cujos efeitos j se fazem sentir; mas o sucesso dessa poltica est em aberto. O certo que a fragmentao em regimes jurdicos um incentivo ao desenvolvimento de uma cultura jurdica restrita aos profi ssionais, porta-vozes de orien-taes estratgicas ou de justifi caes restritas aos casos.

    * * *

    Um diagnstico da ordem constitucional ps-1988 deve levar a srio a indeterminao social do direito. Essa uma frmula para ex-primir a articulao entre segurana jurdica e legitimidade do direito, a funo estabilizadora do direito e a luta por justifi cao que desafi a os paradigmas aceitos, a multiplicidade de arenas institucionalizadas e a indeterminao normativa.

    O sinal emblemtico de que a defi nio do sentido da Constitui-o se projeta no tempo que o desnimo com algumas derrotas (con-vocao de uma Assembleia Constituinte distinta de um Congresso, sobre o afastamento de congressistas binicos, sobre retrocessos nas votaes do texto fi nal, sobre a prtica de interpretar a Constituio luz do direito da ditatura) no embotou o potencial emancipador inscrito na Constituio30. Resta saber em que medida a Constituio ser capaz de infi ltrar seus princpios normativos fundamentais nos vrios regimes jurdicos e nas vrias arenas decisrias. Nesse caso, a justifi cao que ocorre caso a caso se mediria luz dos modelos de sociedade inscritos na Constituio. Resta saber qual ser o signifi -cado da nossa Constituio com o aprofundamento da democracia, o alargamento da esfera pblica jurdica e a intensifi cao da luta de justifi cao por direitos.

    Samuel Barbosa professor do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade

    de Direito da usp e pesquisador do Ncleo Direito e Democracia do Cebrap.

    Rece bido para publi ca o em 8 de julho de 2013.

    noVos estudosceBraP

    96, julho 2013pp. 33-46