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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS Constituição da ciência psicológica (uma perspectiva histórica) e o campo epistemológico do surgimento do Comportamentalismo Aline de Carvalho Abdelnur RA: 187720 Orientadora: Débora C. Morato Pinto Monografia apresentada ao Departamento de Psicologia como requisito para obtenção do título de Bacharel em Psicologia SÃO CARLOS DEZEMBRO DE 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CIÊNCIA S

Constituição da ciência psicológica (uma perspectiva histórica) e

o campo epistemológico do surgimento do Comportamentalismo

Aline de Carvalho Abdelnur RA: 187720

Orientadora: Débora C. Morato Pinto

Monografia apresentada ao Departamento de Psicologia como requisito para obtenção do título de Bacharel em Psicologia

SÃO CARLOS

DEZEMBRO DE 2003

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho insere-se num contexto de pesquisa acerca dos fundamentos da

Psicologia. Neste contexto, tanto a história da formação das diferentes formulações em

psicologia como o campo epistemológico que as sustenta são freqüentemente abordados.

O estudo da história da psicologia e de sua epistemologia podem permitir uma

compreensão mais contextualizada e fundamentada de suas principais abordagens, ao

promover a integração entre informações externas e as discussões características de seu

desenvolvimento interno.

Neste sentido, este trabalho configura-se numa tentativa de recuperar a história de

um período crucial da formação da Psicologia como ciência - em especial da sua

constituição como tal nos Estados Unidos, partindo das repercussões da teoria da evolução

na ciência nascente, passando pela reação funcionalista, pela legitimação e

desenvolvimento da psicologia animal, pela reflexologia, representada principalmente pela

figura de Pavlov e pelo estabelecimento de teorias da aprendizagem, com ênfase em

Thorndike - com o objetivo de demonstrar que essas foram influências que delinearam um

cenário receptivo à formulação de uma ciência psicológica nos moldes do

Comportamentalismo.

Tal recuperação histórica dar-se-á tendo em vista, em especial, as questões da

definição do objeto de estudo em Psicologia e de seus métodos.

Os passos essencias para alcançar o objetivo proposto são:

- Mostrar que a teoria da evolução, ou o que mais tarde foi resumido sob o

termo darwinismo, ao revolucionar a biologia da época, deu origem a uma nova forma

de encarar o domínio do psicológico, que na época se identificava com o estudo da

consciência em seus elementos, sob a égide do Estruturalismo.

- Identificar, no movimento funcionalista, essa nova maneira de abordar a

consciência profundamente compromissada com a teoria da evolução, diretrizes teóricas

e metodológicas que viriam a influenciar o surgimento da primeira ciência do

comportamento.

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- Encontrar na psicologia animal e nos estudos da aprendizagem de

Thorndike, assim como na reflexologia de Pavlov e Bekhterev, suas contribuições

decisivas para o surgimento do Comportamentalismo.

Esta recuperação histórica serve ao propósito de compreender o início do

movimento comportamentalista e de suas proposições originais, desenvolvidas pelo

psicólogo John B. Watson e que culminaram em seu artigo “A psicologia como a vê um

behaviorista”, originalmente publicado na Psychological Review, em 1913.

MÉTODO DE ABORDAGEM

Neste trabalho proceder-se-á basicamente à análise de textos. No primeiro

momento, de recuperação histórica, os textos referem-se principalmente à história da

psicologia e dos seus fundamentos.

No segundo momento, em que será alvo do trabalho a compreensão do início do

movimento comportamentalista, a fonte principal será o próprio artigo de Watson,

traduzido em duas versões, em dois manuais de história da Psicologia. Serão utilizados

também textos que versam sobre o artigo ou sobre as origens do Comportamentalismo na

versão de Watson.

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O contexto da Psicologia nos Estados Unidos antes do Manifesto de

Watson (1913)

A teoria da evolução, oficialmente sistematizada e postulada por Charles Darwin em

1859 no livro “A Origem das espécies por meio da seleção natural”, revolucionou a

biologia da época, e, por que não dizer, toda a época.

A partir da observação de que espécies animais existentes guardavam semelhanças

anatômicas com fósseis e ossos de criaturas que não mais habitavam o planeta, inferiu-se

que as formas vivas estiveram e continuam em constante mudança ou evolução. Essa

constatação, assim como o fato de que há variações entre membros de uma mesma espécie,

levaram à formulação de um mecanismo através do qual se articulassem a variação dentro

de uma espécie e a evolução desta como um todo.

Este mecanismo ou processo foi designado seleção natural, que teria resultado na

sobrevivência apenas dos organismos que conseguiram os melhores ajustes às demandas do

ambiente a que estiveram expostos. Como conseqüência, são esses organismos que irão

transmitir seus genes aos descendentes. Posteriormente, alguns destes podem vir a exibir as

qualidades ou habilidades herdadas num grau superior ao dos pais. No curso de muitas

gerações, podem ocorrer grandes mudanças de forma, que podem explicar as diferenças

entre espécies existentes.

A partir de então, o homem já não podia mais ser considerado uma espécie

escolhida, criada por Deus à sua imagem e semelhança, mas somente como uma espécie

diferente, resultante da evolução de outras espécies.

Embora as evidências para a teoria da evolução fossem amplamente anatômicas, o

próprio Darwin já sugeria que a continuidade entre as espécies não se dava só na forma,

mas também no comportamento e nos processos mentais, com pode ser atestado em duas

publicações posteriores, “A ascendência do homem” e “A expressão das emoções no

homem e nos animais”, de 1871 e 1872, respectivamente. (Schultz e Schultz, s.d.)

No livro de 1872, Darwin sugeria que gestos, posturas e expressões emocionais

tinham valor adaptativo e que havia continuidade nesses padrões entre os animais e o

homem, sendo que as expressões emocionais seriam “remanescentes de movimentos que

um dia serviram à alguma função prática” (Schultz e Schultz, s.d, p.130).

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O comportamento e o funcionamento mental faziam parte do estudo da consciência,

que era o objeto eleito pela psicologia nascente, que se propunha a determinar seus

elementos constituintes. Esta forma de estudar a consciência era a dominante na época e

tinha, nos Estados Unidos, o seu principal expoente na figura do psicólogo inglês

E.B.Titchener, vinculado à Universidade Cornell, em Nova Iorque e discípulo de Wundt, o

fundador da psicologia experimental. Embora tivesse importado do laboratório de Leipzig a

sua concepção dos objetivos e métodos da Psicologia, Titchener introduziu mudanças que

configuraram o seu Estruturalismo numa psicologia diferente da praticada por Wundt.

Para este, a análise dos elementos da consciência era uma das tarefas mais

importantes da Psicologia por ser essencial para a descoberta do modo pelo qual eles se

organizam e das leis que regem tal organização. A consciência tinha um papel ativo na

organização e síntese de seus elementos, sendo portanto papel da Psicologia, sempre

amparada pela Fisiologia, a investigação desse processo.

Já para Titchener, a determinação dos elementos e de suas condições fisiológicas, a

partir da decomposição dos processos conscientes e da experiência imediata, era o objetivo

primordial de seu Estruturalismo. A investigação do processo pelo qual os elementos se

organizam não tinha grande destaque entre seus esforços, e a sua concepção sobre tal

processo era muito mais afinada com o Empirismo e o Associacionismo da Modernidade

do que a de Wundt.

A respeito desse alinhamento ao Empirismo e ao Associacionismo, J.R.Angell, um

dos fundadores das novas idéias que iriam vigorar após o Estruturalismo, nos E.U.A.,

aponta em 1906 que “as concepções mais extremas e hábeis da psicologia estrutural

parecem ter evoluído de uma aceitação impura do que podemos denominar a doutrina dos

“estados da consciência”. Admito que esta é, na realidade, a versão contemporânea da

“idéia” de Locke”. (apud Herrnstein e Boring, 1971, p.619)

A consciência tinha um papel de destaque na teoria da evolução e Angell era um dos

psicólogos nos Estados Unidos, onde as idéias de Darwin haviam encontrado ampla

acolhida, que iriam especular sobre as suas funções, em oposição à análise de seu conteúdo.

Tornar-se-ia então mais relevante estudar os processos mentais em funcionamento para

adaptação ao ambiente.

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A consciência não seria mais estudada em si, como o faz um anatomista em relação

a um órgão do corpo. Embora a visão da consciência como um órgão ainda fosse presente,

o seu estudo, a partir de então, passou a ser sempre relativo ou em função de algo que lhe

era exterior e que a determinava. Esta mudança de perspectiva, propiciada pelas teorias de

Darwin, acabou por favorecer o caráter aplicado da psicologia que se praticaria nos Estados

Unidos, o que provavelmente não teria acontecido se a Psicologia de Wundt e o

Estruturalismo de Titchener, que tinham o caráter e a intenção deliberada de permanecer

como ciências puras, tivessem prevalecido nesse país.

Além da importante influência na definição e modo de encarar o objeto de estudo na

psicologia, as pesquisas de Darwin também tiveram frutíferas conseqüências sobre os

métodos de estudo da consciência, justificando o uso de outras técnicas e fontes de dados

no estudo da natureza humana, para além da introspecção experimental, desenvolvida e

praticada por Wundt e Titchener.

A teoria da evolução, ao focar a variabilidade entre indivíduos da mesma espécie

também direcionou a nova ciência para o estudo das diferenças individuais entre os

homens. Juntamente com o tópico da herança mental, as diferenças individuais foram o

legado inestimável de F.Galton para a Psicologia, que até então as havia omitido de seus

esforços.

Segundo Schultz e Schultz, s.d.,Galton acreditava que a capacidade intelectual, ou

gênio, era transmitida por herança genética e que podia ser medida de acordo com o nível

de discriminação sensorial do indivíduo. A partir desse pressuposto, desenvolveu testes de

inteligência para medir a capacidade intelectual de homens e mulheres, aplicou a seus

dados rigorosos tratamentos estatísticos, e criou uma das mais importantes medidas em

ciência, a correlação (segundo Schultz e Schultz, s.d.). A sua obra é de acentuada

importância para a Psicologia, pois foi a partir da aplicação de seus testes mentais que a

nova ciência começou a atentar para o tópico das diferenças individuais.

Além de haver propiciado para a Psicologia esse novo tópico, Darwin havia, de

forma irreversível, postulado a continuidade no funcionamento mental entre animais e

homens. Logo, o estudo do comportamento animal se impunha ao estudo do

comportamento humano.

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Após a publicação de “A origem das espécies”, o tópico da inteligência animal

popularizou-se e entrou na ordem do dia no meio científico, dando origem ao que

denominou-se psicologia comparada. Em 1883, ela foi sistematizada pelo fisiologista

britânico G.J.Romanes, num livro intitulado “Animal Intelligence”.

Nos primórdios da psicologia animal, a inteligência e os processos mentais são

inferidos através de uma técnica conhecida como introspecção por analogia (segundo

Schultz e Schultz, s.d.). Os pesquisadores supõem na mente dos animais os mesmos

processos que se passam em suas mentes, para interpretar ou explicar o comportamento

observável dos primeiros. Os mesmos tipos de raciocínios e capacidades intelectuais são

atribuídos aos animais. Mais tarde, um sucessor de Romanes sugeriu que o comportamento

animal deveria ser explicado por processos mentais inferiores, quando estes fossem

suficientes. Foi dado assim o primeiro passo para reverter a tendência de antropomorfizar

os animais. Morgan acreditava que grande parte do comportamento animal podia ser

explicada enquanto resultado de aprendizagem ou de associações baseadas em experiência

sensorial. Embora Romanes e Morgan tivessem desenvolvido seus trabalhos na Inglaterra, a

liderança do campo logo passou para os Estados Unidos (segundo Schultz e Schultz, s.d.)

Este foi o contexto de fundação da psicologia animal. O seu desenvolvimento rumo

a uma maior objetividade será exposto quando tratarmos da reflexologia e de Thorndike.

A psicologia comparada, aliada ao evolucionismo, com sua noção básica de

modificação das estruturas físicas “determinadas pelos requisitos necessários a sua

sobrevivência” (Schultz e Schultz, s.d., p.141), propiciaram um terreno para a reação

funcionalista, que advogava para os processos mentais a mesma função das estruturas

físicas: a adaptação ou modificação com vistas à sobrevivência.

A história do funcionalismo nos Estados Unidos é vital para a compreensão de toda

a psicologia subsequente que se criou neste país. No entanto, neste trabalho ela será

examinada de forma resumida, mais precisamente em relação aos pressupostos e

contribuições que moldaram o movimento do Comportamentalismo.

Embora sejam utilizadas designações como reação funcionalista, funcionalismo,

escola funcionalista etc, seus representantes, assim como seu precursor William James,

nunca se propuseram a criar uma escola psicológica nova, do modo como fez, por exemplo,

Watson, em 1913, ao fundar o Comportamentalismo. Em 1906, no Discurso Presidencial da

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Associação Americana de Psicologia, Angell considera que “atualmente, a psicologia

funcional é pouco mais que um ponto de vista, um programa, uma ambição”. (apud

Herrnstein e Boring, 1971, p.617). Nem por isso, os pressupostos e a coerência teórica e

metodológica funcionalistas podem ser questionados. Embora na época de sua formulação

inicial com James e de seu desenvolvimento, nas Universidades de Chicago e Columbia,

seus representantes não se propusessem a fundar uma nova escola em psicologia, da

perspectiva atual pode-se dizer que formaram um movimento amplamente influente, que

pode, com razão, ser colocado sob a propícia designação de funcionalismo.

W.James marcou a psicologia americana de forma decisiva. Assimilou a teoria da

evolução de Darwin, além de ter estudado esta teoria na sua faceta social e mais

especulativa, preconizada pelo filósofo inglês H.Spencer. Embora tenha sido influenciado

pelas suas idéias na juventude, James se tornou mais tarde um severo crítico de Spencer,

essencialmente quanto ao caráter totalmente determinista da evolução defendido pelo

filósofo.

Embora James não tenha fundado a psicologia funcional, sua teoria era conforme à

atmosfera funcionalista da época, tendo adiantado várias das posições mais tarde adotadas

pelos funcionalistas. Alguns alunos que levaram à frente seu projeto foram: Angell,

Woodworth e Thorndike.

O livro mais importante de James para a psicologia, os “Princípios de Psicologia”,

de 1890, é até hoje visto como uma das maiores contribuições americanas ao campo. Nele,

o autor já apresenta uma das diretrizes mais importantes e permanentes do funcionalismo,

qual seja, de que o objetivo da psicologia é estudar as pessoas vivas e suas mentes em

funcionamento em sua adaptação ao ambiente.

No primeiro capítulo dos “Princípios”, James define o objeto de estudo da

psicologia como os fenômenos e condições da vida mental. Fenômenos indicando que o

objeto de estudo está na experiência imediata e condições para apontar a importância do

corpo e em particular do cérebro na vida mental (segundo Schultz e Schultz, s.d.). As

relações da consciência com o cérebro são analisadas sob o prisma e com a linguagem da

evolução. Define a consciência como uma atividade seletiva (James, 1989) que agiria sobre

o aparato cerebral e suas infinitas possibilidades (segundo Kinouchi, 2001). Tal atividade

estaria direcionada para a adaptação, com vistas à sobrevivência do organismo.

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Em termos de sua contribuição quanto aos métodos da psicologia, embora não tenha

sido um grande experimentalista, James usou e legou aos funcionalistas direções de

experimentação, a qual considerava essencial nos campos da psicofísica, da percepção

sensorial e da memória. Também deixou a proposta de um método comparativo que

investigasse diferentes populações como animais, crianças, povos primitivos e doentes

mentais (segundo Schultz e Schultz, s.d.)

Outra diretriz essencial do trabalho de James, que iria influenciar o funcionalismo e

mais tarde também o Comportamentalismo, foi a sua decisão de afastar a Psicologia da

Metafísica. Com isso, ele pretendia instituir a psicologia como uma ciência natural, “com

leis verificáveis (...) {que permaneça}positivista e não metafísica” (James, 1890/1950 apud

Abib, 1998, p.80).

Esta não foi a sua única contribuição epistemológica à psicologia, e em especial ao

movimento comportamentalista. De acordo com Abib, 1998, aproximadamente duas

décadas antes do manifesto de Watson, James antecipou noções basilares do

comportamentalismo referentes ao caráter da psicologia como ciência, as noções de

predição e controle prático dos estados da mente e da ação (p.81). Predição e controle são

palavras-chave do projeto comportamentalista para a psicologia.

No mesmo texto em que fala de predição e controle prático, James reforça o caráter

pragmático que deveria guiar a psicologia, afirmando que educadores, médicos e diretores

de presídios esperam desta ciência regras práticas de ação para “melhorar as idéias,

disposições e conduta dos indivíduos pelos quais são responsáveis” (1892/1983 b, apud

Abib, 1998, p.81). Esta tendência a uma psicologia direcionada para a prática far-se-á sentir

no rápido e decisivo desenvolvimento da psicologia aplicada nos Estados Unidos,

conseqüência do funcionalismo.

Um dos mais importantes seguidores de James e eficiente propagandista das idéias

funcionalistas, segundo Herrnstein e Boring, 1971, J.Dewey publica, em 1896, o artigo “O

conceito de arco reflexo em psicologia”. Neste artigo, Dewey ataca as concepções

anteriores do arco reflexo, por considerá-las elementaristas e reducionistas.

De acordo com a análise de Herrnstein e Boring, 1971, nesse artigo encontra-se “o

germe de virtualmente todas as objeções modernas contra o uso da unidade estímulo-

resposta como o elemento fundamental de comportamento na teoria psicológica”. (p.394).

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O que Dewey defende e tenta elucidar, em sua crítica às concepções anteriores do reflexo, é

que o comportamento não pode ser dividido nos elementos estímulo e resposta e que a

Psicologia não pode satisfatoriamente ser reduzida ao estudo dos reflexos como a base da

ação humana. Para ele, essas concepções são deficientes e insatisfatórias por assumirem o

estímulo sensorial e a resposta motora como “existências psíquicas distintas” (p.396).

Segundo a sua concepção, o arco reflexo é um contínuo de coordenação sensório-motora

que não pode ser sub-dividido em estímulos e respostas.

Após ressaltar o erro básico das concepções tradicionais do reflexo, a distinção

estímulo/resposta, Dewey extrai as conseqüências dessas concepções para a Psicologia,

indicando que elas implicam numa psicologia desconexa “seja do ponto de vista do

indivíduo ou da espécie, seja do ponto de vista da análise da consciência madura”. (p.396).

Quanto ao indivíduo ou à espécie, a divisão do arco reflexo em estímulo e resposta destrói a

continuidade, que considera como a característica fundamental tanto do arco reflexo como

do comportamento em geral, originando uma “série de saltos” que teriam origem fora do

processo da experiência, “seja numa pressão externa do “ambiente”, seja numa variação

inexplicável e espontânea dentro da “alma” ou do “organismo”. (p.396). Em relação à

análise da consciência madura, o problema estaria em não considerar a unidade da

atividade, e apenas considerá-la como constituída de três existências separadas, o estímulo

periférico ou sensação, a idéia ou processo central e a resposta motora ou ato, “que devem

de alguma forma ser ajustadas entre si, seja através de um alma extra-experimental, seja

através de puxão ou empurrão mecânicos”. (p.397)

Por fim, Dewey considera que nessa separação dos três elementos subsiste o

dualismo metafísico, no qual a sensação estaria na fronteira do psíquico com o físico, a

idéia seria puramente psíquica e o ato puramente físico. Com isso, a teoria tradicional do

arco reflexo não seria nem fisiológica nem psicológica.

Ao propor a sua concepção do arco reflexo como um contínuo de coordenação

sensório-motora, Dewey o vê sob o prisma da evolução, que era a principal influência e

mote da visão funcionalista na psicologia. Ele procura interpretar o estímulo e a resposta

não como distinções de existência, mas como “distinções teleológicas”, de funções ou

papéis desempenhados “com referência a buscar ou manter um fim”. (p.398). Assim, o arco

reflexo seria uma “adaptação realizada” e o fim a que se destinaria, reprodução e

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preservação da vida, estaria presente e organizado nos meios, os atos ou seqüências de atos

que erroneamente eram sub-divididos em estímulos e respostas.

Dewey e Angell foram responsáveis por fazer da Universidade de Chicago o

primeiro centro do funcionalismo nos Estados Unidos, assim como pela orientação prática

deste movimento, que tinha como uma de suas marcas a aplicação da psicologia aos

problemas reais da época.

Em 1904, Angell publica seu manual “Psychology”, que dá corpo à nova

abordagem. Aí serão encontradas três idéias que seriam os principais temas do movimento

funcionalista, quais sejam:

- a psicologia é o estudo das operações mentais, em contraste com a

psicologia dos elementos mentais

- a consciência presta um serviço ao organismo, já que ela sobreviveu. Esse

serviço deve ser averiguado também em processos mentais específicos, como formar

um juízo e desejar.

- Para o funcionalismo não há distinção real entre mente e corpo, havendo

entre os dois uma fácil transferência.

O terceiro nome importante para o movimento na Universidade de Chicago foi o de

H.A.Carr, que trabalhou com Watson, por cujas mãos foi iniciado na psicologia animal.

Sob sua liderança, o funcionalismo atingiria o ápice como sistema formalmente definido.

Defendia que, além da observação introspectiva, a psicologia deveria se valer também de

observações mais objetivas.

Na prática, no funcionalismo, havia uma ênfase sobre a objetividade, pois boa parte

das pesquisas não mais usavam a introspecção, e os sujeitos eram tanto humanos quanto

animais. Dessa maneira, a psicologia rumava para o estudo do comportamento manifesto e

objetivo, em detrimento do estudo da mente subjetiva, abrindo caminho para o

Comportamentalismo, que iria banir de vez a consciência e outras expressões da mente,

redefinindo a psicologia como a ciência do comportamento.

A ênfase funcionalista na objetividade e na prática favoreceram o delineamento de

uma psicologia aplicada, cujos representantes mais expressivos, G.Stanley Hall,

J.M.Cattell, L.Witmer, W.D.Scott e H.Münsterberg, “modificaram a natureza da psicologia

americana tão radicalmente quanto os fundadores acadêmicos do funcionalismo” (Schultz e

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Schultz, s.d., p.175). O caráter aplicado da psicologia nos Estados Unidos também viria a

ser uma das grandes influências ao Comportamentalismo, em especial na educação.

Um dos expoentes da maior objetividade nos métodos da psicologia era o uso de

sujeitos animais em pesquisas. Já vimos como a psicologia comparada, no início, procurava

atestar a existência de inteligência nos animais.

Não é de surpreender que um passo importante rumo a uma maior objetividade

também na psicologia animal tenha sido dado por um fisiologista e zoólogo que trabalhou

na Universidade de Chicago, o grande centro funcionalista. Seu nome era Jacques Loeb e

ele propunha e utilizava uma abordagem mais mecanicista na psicologia animal. Watson

fez cursos com este fisiologista. Ao mesmo tempo, na Universidade Columbia, a psicologia

animal experimental se desenvolvia com E.L.Thorndike.

Em 1900, o labirinto para ratos havia sido introduzido e se tornara o método-padrão

no estudo da aprendizagem. No entanto, pode-se dizer que até 1910, a psicologia

comparada ainda antropomorfizava a mente nos animais. Em 1908, o livro “The Animal

Mind” marca o fim de uma era nos estudos com animais. Em 1909, a obra de Pavlov

tornara-se conhecida nos Estados Unidos e em 1911 é fundado o periódico “Journal of

Animal Behavior”.

Outro marco no estudo do comportamento animal foi a repercussão da história de

Hans, o cavalo inteligente. Esta é uma história bem conhecida dentro da psicologia e a sua

principal conseqüência foi a de apontar a necessidade de abordar o comportamento animal

de forma experimental e mais controlada, para que não se chegasse mais a afirmações

descabidas de altos níveis de inteligência nos animais. Além disso, de forma irrevogável,

ficou claro que estes são capazes de aprender e que podem ser condicionados a mudar seu

comportamento. Logo, o estudo da aprendizagem animal tornava-se muito mais proveitoso

do que a especulação sobre o que se passava em suas mentes, tornando-se o principal tema

e método da Psicologia nos Estados Unidos, onde Thorndike desenvolvia suas pesquisas ao

mesmo tempo em que, na Rússia, I.P.Pavlov fazia importantes descobertas sobre a

fisiologia animal que iriam repercutir de forma dramática na Psicologia.

Trabalhando como fisiologista interessado na digestão, Pavlov acidentalmente

observou que o reflexo de salivação em cães era provocado por estímulos diferentes da

comida, tais como a visão da pessoa que os alimentava ou seus passos. A princípio, ele

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denominou a salivação diante desses estímulos de reflexos psíquicos, utilizando-se de uma

linguagem carregada de termos como desejos, julgamento e vontade, para designar o que se

passava com o cães. Mais tarde, privilegiou uma abordagem mais objetiva do fenômeno,

passando a designá-lo reflexo condicionado.

A partir de então, Pavlov se concentrou no estudo desses reflexos e prosseguiu

conduzindo experimentos em condições de laboratório altamente controladas, para evitar a

intromissão de qualquer estímulo diferente daqueles com os quais queria parear a alimento,

a fim de produzir o reflexo salivar.

Uma das suas mais importantes descobertas foi que o reforço, no caso a comida, é

necessário para que aconteça a aprendizagem da resposta condicionada. Além do efeito do

reforço na aprendizagem, ele e seus associados também estudaram a extinção de respostas,

recuperação espontânea, generalização, discriminação e condicionamento de ordem

superior, todos temas que seriam recuperados pela psicologia da aprendizagem norte-

americana, representada pelo Comportamentalismo de Watson e principalmente do de

B.F.Skinner.

As pesquisas de Pavlov também demonstraram que a referência à consciência, no

estudo dos processos mentais superiores, não era mais inquestionável, uma vez que estes

podiam ser analisados em termos fisiológicos. O condicionamento pavloviano forneceria à

Psicologia “o átomo do comportamento, uma unidade concreta operacional a que o

comportamento humano complexo podia ser reduzido” (Schultz e Schultz, s.d., p.229),

além de ter sido o paradigma para a formulação do condicionamento operante proposto por

B.F.Skinner décadas mais tarde.

Embora Pavlov tenha sido a grande figura da reflexologia, um conterrâneo seu,

V.M.Bekhterev, também ajudou a mudar o foco da psicologia animal, e por conseguinte, da

Psicologia como um todo rumo ao comportamento manifesto objetivo e observável, ao

estudar a resposta condicionada motora, ou o que denominou reflexo associado.

O que ele descobriu foi que, da mesma forma que estímulos associados à comida

podiam eliciar reflexos de salivação, movimentos reflexos motores podiam ser provocados

por estímulos associados com o original. Por exemplo, o toque de uma campainha na hora

do choque provocava o afastamento do dedo, resposta motora reflexa. Para Bekhterev,

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reflexos motores de nível inferior se combinavam para formar comportamentos de nível

superior, noção que estaria presente no Comportamentalismo de Watson.

Ao lado da reflexologia russa, a contribuição mais direta e evidente do período que

antecede o Manifesto de Watson sobre o seu Comportamentalismo e também sobre o de

Skinner veio das pesquisas de E.L.Thorndike, “um dos primeiros psicólogos americanos a

receber toda a educação nos Estados Unidos” (Schultz e Schultz, s.d., p.218). Foi na

Universidade de Columbia, um dos dois grandes centros do funcionalismo, que, por

cinqüenta anos, Thorndike desenvolveu suas mais importantes pesquisas e teorias sobre a

aprendizagem.

Assim como Pavlov, ele também fazia uso de termos mentalistas como satisfação e

desconforto, e, embora tenha mantido tais termos ao longo do desenvolvimento de sua

teoria da aprendizagem, esta não deixava de ser objetiva e mecanicista, concentrada no

comportamento manifesto e não nos elementos mentais ou nas experiências conscientes.

Thorndike concebia a aprendizagem como o estabelecimento de conexões concretas entre

estímulos e respostas, e não conexões entre idéias, como concebiam os associacionistas.

Tais conexões estímulo-resposta seriam depois tomadas como as unidades do

comportamento.

Um dos mais importantes legados de sua teoria da aprendizagem ao

Comportamentalismo foi a Lei do Efeito, derivada das pesquisas com a caixa-problema.

Neste aparato, era colocado um gato privado de alimento e fora da caixa havia comida

como recompensa para a fuga, que exigia movimentos gradualmente mais difíceis para ser

conseguida. Com o tempo, no decorrer das sucessivas tentativas, os movimentos

desordenados e ineficazes do gato foram substituídos pelo comportamento adequado,

muitas vezes já na primeira tentativa.

A partir da observação e registro do número de tentativas e do tempo necessário

para abrir a caixa e assim obter a comida, Thorndike pôde adotar medidas quantitativas da

aprendizagem e elaborar as leis que a governavam.

As respostas que levavam ao êxito, ou seja, à fuga e consequentemente à comida,

eram incorporadas e aquelas que nada modificavam no ambiente para permitir a fuga eram

obliteradas.

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Como já mencionado, a sua teoria ainda estava vinculada às noções mentalistas de

prazer, satisfação, desconforto etc. Por isso, a sua formulação da Lei do Efeito, uma

generalização do que Thorndike observou nas caixas-problema, destacava que os atos que

produzem satisfação ficam associados com ela, e têm por isso maior probabilidade de se

repetirem do que antes, ao passo que aqueles que produzem desconforto tornam-se

dissociados das situações em que ocorreram, tendo sua probabilidade de ocorrência nessas

situações diminuída.

De acordo com Figueiredo, 1991, na Lei do Efeito de Thorndike pode-se encontrar a

influência cruzada do funcionalismo e do mecanicismo associacionista. O funcionalismo, a

influência dominante, segundo Figueiredo, estaria presente “sustentando o modelo de um

processo auto-regulado sob o controle seletivo das conseqüências do comportamento”

(p.80), que seria o processo de aprendizagem.

Thorndike, ao apresentar a sua teoria acerca da aprendizagem por meio de

associações entre sensações e impulsos (ou estímulos e respostas) deixa transparecer

claramente a influência funcionalista ao pontuar que, nos animais superiores a vida corporal

e os atos de conservação são dirigidos por essas associações e que estas são responsáveis

pelo fato do animal usar o melhor local para alimentar-se, dormir no mesmo local, evitar

novos perigos e aproveitar-se de mudanças na natureza. Enfim, elas são responsáveis pelas

adaptação e sobrevivência dos animais.

Já o mecanicismo associacionista estaria presente de forma mais “disfarçada” ou

não-intencional. Ainda segundo a análise de Figueiredo, o atomismo estaria parcialmente

presente na Lei do Efeito na noção de stamping in , que seria um processo automático de

conexão entre situação ambiente e resposta conseqüenciada, em que a conseqüência

selecionaria respostas, ao fortalecer ou enfraquecer associações entre complexos de

estímulos e respostas particulares. Como essas respostas não são consideradas simples

movimentos, mas como ações de coordenação de movimentos com a finalidade de produzir

uma conseqüência, a noção de organismo tem que permanecer como “condição de

possibilidade da integração dos movimentos nas formas complexas da interação adaptativa”

(p.81).

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Tal organismo, embora seja um mecanismo biológico de adaptação, é também em

parte concebido na forma de um mecanismo físico, em termos mecanicistas (Figueiredo,

1991)

A outra lei da aprendizagem, complementar à do efeito, era a Lei do Exercício ou do

Uso e Desuso, segundo a qual a mera repetição de um resposta a fortaleceria, em termos de

freqüência. Mas pesquisas ulteriores demonstraram que a repetição era muito menos eficaz

para fortalecer uma resposta se comparada às suas conseqüências em termos de

recompensa.

Posteriormente, Thorndike também abandonou o lado da punição, ou das respostas

que produzem desconforto, de sua lei do Efeito, pois não se podia averiguar um efeito

negativo na freqüência das respostas comparável ao efeito positivo da recompensa.

O Manifesto de Watson: por uma psicologia como ciência do

comportamento

Segundo informações de Herrnstein e Boring (1971), John B.Watson havia se

doutorado sob a orientação de Angell, “o líder efetivo da escola funcionalista”. Em suas

pesquisas de psicologia comparada, ele ainda se via diante do impasse, generalizado na sua

época, de como interpretar os dados objetivos do comportamento animal segundo o

conteúdo subjetivo da mente.

Influenciado por tradições filosóficas e científicas como o Pragmatismo e o

Positivismo, de acordo com Figueiredo (1991), Watson decide, de forma explícita e

categórica, tomar o comportamento, dado bruto e imediato das observações em Psicologia,

como o objeto de estudo dessa ciência, e não mais a vida interior da consciência ou da

mente.

A escolha do comportamento como novo objeto da Psicologia revela e é testemunha

tanto do espírito positivista quanto da atitude pragmatista que iriam marcar o surgimento da

nova escola de Psicologia nos EUA, o Comportamentalismo.

O positivismo se faz presente, antes de tudo, na decisão de mudar o objeto de estudo

da Psicologia. O comportamento era, para Watson, o único objeto passível de ser

apreendido e estudado segundo os parâmetros e métodos das ciências naturais. O “antigo”

17

objeto, a consciência ou os estados mentais, assim como seu método de acesso, a

introspecção, deveriam ser banidos da Psicologia enquanto uma ciência do comportamento.

Segundo Watson (1913) “se se conceder ao comportamentalista o direito de usar a

consciência do mesmo modo como outros cientistas naturais a empregam- ou seja, sem

fazer dela um objeto especial de observação- ter-se-á garantido tudo o que a minha tese

exige.” (apud Schultz e Schultz, s.d., p.245)

De acordo com a análise de Figueiredo (1991), “o positivismo se manifesta na

condenação da pretensão de ir além do observável e da elaboração de leis empíricas...”

(p.82). Ora, que outro objeto, além do comportamento, concebido como respostas

adaptativas , dos músculos e glândulas do organismo, integradas em instintos e hábitos, se

prestaria de forma mais inequívoca à observação e à elaboração de leis empíricas quanto à

sua freqüência, intensidade e outras relações com os estímulos do ambiente?

Além de servir aos propósitos de uma ciência alinhada às ciências naturais, o

comportamento se mostrou para Watson como a única forma de possibilitar para a

Psicologia o maior alcance prático enquanto uma ciência aplicada aos problemas humanos.

Ainda segundo Figueiredo (1991), “...o pragmatismo é o reflexo filosófico do

funcionalismo, na ênfase no caráter instrumental do conhecimento e na produção de

conhecimento útil...” (p.82). Poderíamos acrescentar que, dando continuidade à atitude

pragmatista na Psicologia dos EUA, Watson reitera com seu Manifesto o chamado de

James para os propósitos de previsão e controle que a Psicologia deveria assumir.

Embora em seu Manifesto Watson critique tanto os estruturalistas quanto os

funcionalistas, ele sabe-se tributário da influência e do ideário dos últimos: “Talvez não

haja uma falta absoluta de harmonia entre a posição esboçada aqui e a da psicologia

funcional” (Watson ,1913, apud Schultz e Schultz, s.d., p.245)

A crítica ao Estruturalismo, a escola psicológica de Titchener, nos EUA, se faz

essencialmente através da condenação de seu método principal, a introspecção

experimental, como meio privilegiado de acesso às sensações elementares.

Já o teor da crítica ao Funcionalismo é mais sutil e complexo. Alega Watson que

essa escola ou corrente de psicologia, ao se opor ao Estruturalismo, não o faz de forma

completa e coerente.

18

A primeira objeção ao funcionalismo diz respeito ao modo de estudar e falar sobre o

seu objeto. Segundo sua análise, os funcionalistas apenas operaram uma substituição ou

adição de termos, tal como processo perceptual em lugar de percepção, com o intuito de

“afastar o cadáver de “conteúdo” e deixar “função” em seu lugar.” (Watson, 1913, apud

Herrnstein e Boring, 1971, p.633). Ao apenas trocarem os termos usados pelos

estruturalistas, os funcionalistas, além de não mostrarem cuidadosamente as mudanças de

sentido atribuídas, não teriam avançado, em relação aos primeiros, quanto às descrições e

explicações dos processos e fenômenos que se propunham a estudar.

A segunda crítica ao funcionalismo remete a um problema que esteve sempre em

pauta na Psicologia, desde que esta começou a caminhar de mãos dadas com a Fisiologia,

ou seja, desde a sua formação enquanto uma ciência experimental, inicialmente por meio

das investigações psicofísicas.

Tal problema estava inscrito na discussão acerca do mental e do físico e de seus

papéis no funcionamento do organismo. A hipótese que a filosofia moderna legou à

Psicologia, e da qual o associacionismo não escapou, foi a de paralelismo, segundo a qual o

físico e o mental teriam funcionamentos paralelos e independentes, sendo que o mental e

todos os fenômenos assim designados seriam apenas epifenômenos em relação ao físico,

representado pelo sistema nervoso.

William James fez a crítica desta hipótese no capítulo “A Teoria do Autômato”, em

seu “Princípios de Psicologia”, e os funcionalistas que o seguiram a incorporaram às suas

formulações. Se estes não admitiam a redução do mental, ou do papel da consciência, a

simples fenômenos marginais, sem status causal, era porque pensavam em termos de

interação entre o físico ou cerebral e o mental. Para James, a consciência dirigiria,

conforme os propósitos de seleção, a atividade do cérebro, o que denota interação

necessária entre as duas instâncias.

Watson acusa os funcionalistas de recorrer tanto ao paralelismo quanto à interação,

sem no entanto explicitar os argumentos desta acusação.

Embora a sua versão para a Psicologia difira em muitos e significativos aspectos das

direções funcionalistas, Watson admite a ascendência de seu Comportamentalismo quando

conclui que : “...o comportamentismo é o único funcionalismo coerente e lógico” (1913,

apud Herrnstein e Boring, 1971, p.634)

19

Já em relação à crítica ao Estruturalismo, é através dela que Watson pretende

defender a sua tomada de posição como a única que pode fazer avançar a Psicologia frente

à estagnação e ao non-sense do estudo e classificação dos elementos mentais.

A estagnação a que o Estruturalismo levaria inevitavelmente a Psicologia pode ser

entendida como produto de sua insistência em um método que não era “legítimo” quanto à

sua objetividade e capacidade para permitir mensuração e generalização, assim como da

escolha de seu objeto, que não exibia as características possibilitadoras de acesso,

observação e mensuração das quais a Psicologia, para Watson, não podia prescindir.

Tal método, que havia sido introduzido por Wundt na Alemanha e aperfeiçoado por

Titchener nos EUA, era a introspecção experimental, que tinha como objeto de investigação

as sensações elementares constituintes da experiência direta ou imediata.

Os estruturalistas pretendiam, através desse método, treinar seus sujeitos

experimentais a observar e classificar seus estados mentais, sob condições controladas de

laboratório. A análise controlada dos estados mentais levaria à “purificação” da experiência

direta, através de sua decomposição em sensações elementares. Averiguar o número e os

atributos dessas sensações seria tarefa primordial do psicólogo, que deveria estar apto para

extrair dos seus sujeitos, os chamados observadores, os relatos mais precisos e completos

acerca do que observavam introspectivamente.

Para Watson, a discussão acerca dos atributos e do número de sensações era estéril e

infrutífera, uma vez que ela era dependente das experiências imediatas dos sujeitos, que

dificilmente conseguiam chegar a um consenso quanto ao que observavam.

Portanto, o método e o objeto que o Estruturalismo defendia para a Psicologia não

tinham condições de propiciar observações independentes do observador, e esta talvez seja

a crítica mais pertinente de Watson quanto à impossibilidade de se fazer uma ciência

psicológica que pudesse se equiparar às ciências naturais em termos de seus resultados

práticos e potencial de aplicação no mundo.

Watson é bastante contundente em sua crítica à introspecção. “Se você não

consegue reproduzir quaisquer resultados, isso não se deve à falha em seu aparelho ou no

controle de seus estímulos, mas ao fato de sua introspecção não ser bem treinada. Ataca-se

o observador, e não a situação experimental”.(1913, apud Herrnstein e Boring, 1971,

pp.631-632)

20

A questão da experiência direta vinculava-se ao estudo mais abrangente da

consciência, que era o objeto da Psicologia até então. Mas Watson já estava mais

interessado nas pesquisas com animais, sobre os instintos e a formação de hábitos, e via na

psicologia comparada a maneira mais produtiva de estabelecer as leis que regiam a vida

psicológica do homem enquanto reações ao ambiente e não mais como a vida da

consciência. Ele chama a atenção para o fato de que o objeto da investigação psicológica

deveria ser o que o organismo faz para adaptar-se ao seu ambiente. Mas até aí, esta

proposta já era defendida pelos funcionalistas. O que Watson fez foi colocar o

comportamento do organismo no centro da investigação, deslocando o estudo dos processos

conscientes e substituindo-o pelo estudo dos processos adaptativos dos organismos em

termos de respostas aos estímulos do ambiente.

Ao deslocar o estudo dos processos conscientes ou da consciência em si do centro

da investigação psicológica, ele alega que: “Certamente é preciso mostrar que é falsa essa

doutrina que exige uma interpretação analógica de todos os dados do comportamento: a

posição de que o valor de uma observação para o comportamento é determinado pela sua

produtividade para dar resultados apenas interpretáveis no domínio mais limitado da

consciência (realmente humana)”. (Watson, 1913, apud Herrnstein e Boring, 1971, p.629)

Quando Watson mostra que a psicologia anterior fazia da consciência tal como é

conhecida pelo ser humano o centro de referência para todo comportamento, ele compara

aquele momento da Psicologia com a Biologia na época em que as idéias de Darwin sobre a

continuidade das espécies foram amplamente aceitas e absorvidas.

Da mesma forma que os dados de comportamento, tanto humano quanto animal,

eram interpretados e avaliados segundo os parâmetros da consciência, o material das

observações em anatomia e fisiologia que corroboravam a tese da continuidade entre as

espécies era interpretado e avaliado segundo o conceito de evolução no homem, e não a

partir de seu valor para a espécie estudada.

Watson acusa os psicólogos anteriores de escolher o material de relevância para a

Psicologia e com isso, relegar a um segundo plano alguns processos que consideravam de

interesse puramente fisiológico, como os reflexos. A não ser que os processos indicassem a

presença de consciência, ou que pudessem de alguma forma ser estudados com referência a

ela, eles eram descartados das investigações.

21

É importante observar o que Watson coloca sob a denominação de comportamento.

Para ele, o comportamento são as reações do organismo, de suas glândulas e seus músculos,

que podem ser hereditárias ou adquiridas por meio de hábitos, aos estímulos do ambiente, e

o psicólogo deveria estudar como essas reações auxiliam na adaptação do organismo,

prevendo e controlando a gama de estímulos a que ele pode responder, assim como as

diferentes respostas que eles podem eliciar.

Em última instância, as respostas são redutíveis a movimentos musculares e

secreções glandulares, mas segundo Schultz e Schultz, s.d., “Watson parece ter concebido a

resposta em termos da obtenção de algum resultado no ambiente, e não como uma

agregação de movimentos musculares.” (p.248)

Em sua concepção e definição de comportamento, podem-se encontrar pontos de

vista tanto do funcionalismo quanto do atomicismo/mecanicismo, que também estava

presente no Estruturalismo. Ao considerar as reações do organismo, por meio de instintos e

hábitos, enquanto formas de adaptação ao ambiente, Watson mantém-se alinhado à tradição

de que proviera, a funcionalista. No entanto, ao decompor o ambiente em estímulos e as

reações do organismo em respostas musculares ou glandulares, ele reproduz um modelo

atomicista e também mecanicista, uma vez que a associação das respostas é que compõe a

reação total do organismo.

Segundo Figueiredo, 1991, “Watson supunha a total compatibilidade entre as

unidades funcionais- hábitos e instintos- e as unidades moleculares- respostas discretas

eliciadas por estímulos discretos.” (p.82)

As respostas eram classificadas segundo dois critérios, o de serem

instintivas/hereditárias ou habituais e de serem implícitas/não-observáveis ou

explícitas/observáveis. Todas as respostas possíveis podiam ser agrupadas em quatro

categorias: hereditárias e explícitas, hereditárias e implícitas, habituais e explícitas ou

habituais e implícitas. Logo, ao considerar a noção de respostas implícitas, Watson atenuou

a sua posição original de que o objeto da Psicologia fosse concretamente observável, “...

aceitando também que ele fosse potencialmente observável.” (Schultz e Schultz, s.d.,

p.249)

Ao descartar a introspecção como método não compatível com uma ciência natural,

ele importa métodos mais objetivos dessas ciências, como a observação (do

22

comportamento) em campo ou em laboratório e o método do reflexo condicionado, que

havia sido desenvolvido por Pavlov no campo da fisiologia animal. Este método, que iria se

tornar o principal nos laboratórios de pesquisa dos comportamentalistas, só foi introduzido

em 1915, dois anos após o início oficial do movimento. (Schultz e Schultz, s.d., p.247)

No entanto, dada a natureza do objeto psicológico, o comportamento humano,

Watson teve que considerar o método do relato verbal e também o método dos testes,

embora tenha adaptado-os aos seus objetivos e ao seu objeto.

O método do relato verbal era utilizado quando o método mais confiável dos

reflexos condicionados não era recomendado, por ser mais trabalhoso ou impossível de ser

implementado, ou quando as respostas não podiam ser registradas a não ser pelas palavras

do sujeito. Ele era, na verdade, o “substituto watsoniano para o método da introspecção”,

segundo análise de Keller, 1974. (p.63). Mas o que Watson pretendia acessar, com o

método do relato verbal, não era a experiência imediata do observador, mas sim as suas

reações verbais, enquanto respostas motoras, aos estímulos apresentados pelo

experimentador.

Muitos críticos de Watson acusaram-no de manter o método que tanto execrara,

apenas mudando-lhe o nome. Em grande medida, esta é uma acusação justa e Watson

tentou dela escapar recomendando o uso dos relatos verbais “tão parcamente quanto

possível.” (Keller, 1974, p.64)

Em relação ao método dos testes, ele os manteve, alegando que, embora

denominados mentais, eles ofereciam sempre informações a respeito do desempenho

(verbal, manual ou outro) do sujeito em relação a certos problemas do teste. (Keller, 1974)

Em seu artigo de 1913, Watson refere-se ao comportamento instintivo e descreve os

resultados de observações acerca do comportamento de uma espécie de pássaros das Ilhas

Tortugas, onde esteve estudando esta espécie. Ele explicitamente alinha a sua psicologia a

um meio termo na questão nativismo/ambientalismo. “A psicologia que eu tentaria

construir teria como ponto de partida, em primeiro lugar, o fato observável de que os

organismos, tanto humanos como animais, se ajustam aso seus ambientes por meio de

equipamentos hereditários e de hábitos.” (Watson, 1913, apud Schultz e Schultz, s.d.,

p.242)

23

No entanto, após adotar a teoria do condicionamento, em 1916, ele passa a declarar

que o comportamento humano era em sua maior parte aprendido. (Logue, 1978). Mais

tarde, por volta de 1925, ele recusa o conceito de instinto e argumenta que “todos os

aspectos do comportamento humano que parecem instintivos são, na realidade, respostas

socialmente condicionadas.” (Schultz e Schultz, s.d., p.249). Deste modo, ele passa a

defender e a ser porta-voz de um ambientalismo radical.

Não se pode dizer que esta guinada na direção de um ambientalismo estrito na

determinação e origem do comportamento humano tenha sido fruto apenas da abrangência

dos resultados extraídos pelo método dos reflexos condicionados ou do desenvolvimento

interno de sua teoria.

Ao atribuir todo o comportamento, incluído aí as habilidades, as escolhas e os

talentos individuais, ao treino propiciado pelo ambiente, físico e social, Watson também

alargava a aplicabilidade de seus princípios de controle e modificação da conduta humana,

e mais uma vez coroava o espírito pragmático e empreendedor da cultura americana que

representava.

CONCLUSÃO

A recuperação da história e do campo epistemológico do surgimento do

Comportamentalismo colocam-no sob um ponto de vista mais compreensivo e abrangente.

Os rumos que a Psicologia, ao menos nos EUA, estava tomando na época em que

Watson lançou seu movimento justificam, em grande medida, as suas posições extremas e

algumas vezes reducionistas. A estagnação a que o Estruturalismo estava levando a

Psicologia e a falta de sistematização das idéias e dos estudos funcionalistas propiciaram

um terreno fértil para que as idéias e propostas de Watson fecundassem e encontrassem

aceitação e respaldo, tanto no meio acadêmico quanto no meio leigo.

A escola de pensamento que ele iniciou foi e continua sendo, embora apurada e sem

os excessos característicos de sua gênese, na mesma medida controversa e influente.

Embora a sua versão para uma ciência do comportamento tenha sido suplantada por uma

versão mais refinada e completa acerca do comportamento humano, o Behaviorismo

Radical de B.F.Skinner, ela sempre manterá seu merecido lugar de destaque entre as obras

24

que moldaram a Psicologia e que permitiram-na avançar rumo a uma maior objetividade e

aplicabilidade.

Em 1974, no livro em que sistematiza a filosofia de sua ciência, Skinner assim se

pronunciava a respeito de seu antecessor: “O próprio Watson fez importantes observações

acerca do comportamento instintivo e foi, na verdade, um dos primeiros etologistas no

sentido moderno; impressionou-se muito, porém, com as novas provas acerca daquilo que

um organismo podia aprender a fazer, e fez algumas alegações exageradas acerca do

potencial de uma criança recém-nascida. Ele próprio considerou-as exageradas, mas,

desde então, tais alegações têm sido usadas para desacreditá-lo, sua nova ciência

nascera, por assim dizer, prematuramente, dispunha-se de muitos poucos fatos relativos ao

comportamento – particularmente o comportamento humano. A escassez de fatos é sempre

um problema para uma ciência nova, mas para o programa agressivo de Watson, num

campo tão vasto quanto o do comportamento humano era particularmente prejudicial.

Fazia-se mister um suporte de fatos maior do que aquele que Watson foi capaz de

encontrar e, por isso, não é de surpreender que muitas de suas declarações pareçam

simplificadas e ingênuas”(Skinner,1982, p. 9).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- Abib, J.A.D. (1997) Teorias do comportamento e subjetividade na psicologia. São

Carlos: Editora da UFSCar

- Abib, J.A.D. (1998) Virada social na historiografia da psicologia e independência

institucional da psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 14, 077-084

- Figueiredo, L.C.M. (1991) Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Editora

Vozes

- Figueiredo, L.C.M. & de Santi, P.L.R. (2000) Psicologia: uma (nova) introdução. 2a

edição, São Paulo: EDUC

- Herrnstein, R.J. e Boring, E. (1971) Textos básicos de História da Psicologia. São

Paulo: Herder/EDUSP.

- Keller, F.S. (1974) A Definição da Psicologia. São Paulo: EPU- Editora Pedagógica e

Universitária Ltda. (pp.55-76). Original de 1965

- James, W. (1989) Principios de Psicología. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica.

(Trabalho original publicado em 1890). Caps. I e V

- Kinouchi,R. (2001) O contexto da psicologia de W.James. (Manuscrito não-publicado)

- Logue, A.W. (1978) Behaviorist John B.Watson and the continuity of the species.

Behaviorism: a forum for critical discussion, 6, 1, 71-79

- Schultz, D.P. & Schultz, S.E. (s.d.) História da psicologia moderna. 5a edição. São

Paulo: Editora Cultrix (Trabalho original publicado em 1992)

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- Skinner, B.F. (1982) Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix / Editora da

Universidade de São Paulo. (Original de 1974)