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contemporanea|comunicao e culturaW W W . C O N T E M P O R A N E A . P O S C O M . U F B A . B R
323contemporanea | comunicao e cultura - v.12 n.02 maio-ago 2014 p. 323-339 | ISSN: 18099386
CONSTRUINDO IMAGENS DE SOM & FRIA: CONSIDERAES SOBRE O CONCEITO DE PERFORMANCE NA ANLISE DE VIDEOCLIPES
BUILDING SOUND & FURY PICTURES: CONSIDERATIONS ABOUT PERFORMANCE IN MUSIC VIDEO ANALYSISThiago Soares1
RESUMO:
O artigo se prope a discutir o conceito de performance, a partir da perspectiva de Paul
Zumthor e de Simon Frith, como base para a anlise de videoclipes. O intuito reconhe-
cer a complexidade que a noo de performance possui e realizar um enquadramento
conceitual para o tratamento discursivo de expresses do terreno musical. Postula-se
que o videoclipe uma camada performtica sobre a cano que o origina possibilitan-
do o reconhecimento de corporalidades que se traduzem em disposies audiovisuais.
Videoclipes seriam, portanto, materializaes de gestos, formas de danar e agir dos
corpos dos artistas que os originam.
PALAVRAS-CHAVES:
videoclipe; performance; cano popular
ABSTRACT:
This article aims to discuss the concept of performance on two authors: Paul Zumthor
and Simon Frith. The idea is to create basis for the analysis of music videos. Our goal
is recognize the complexity of performance and conduct a conceptual framework for
the debate about discursive perspectives in music expressions. We postulate that music
video is a performance layer on the song that originates it allowing the recognition of
corporeality that can be translated into audiovisual features. Music videos therefore
would be the materialization of gestures, forms of dancing and the act the bodies of
artists who originate them.
KEY WORDS:
music video; performance; pop song
1 Professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao (UFPE). [email protected]. RECIFE, BRASIL.
JORGE CARDOSO FILHOSOBRE MSICA, ESCUTA E COMUNICAO THIAGO SOARESCONSTRUINDO IMAGENS DE SOM & FRIA
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Debater a concepo imagtica no mbito do videoclipe consiste, frequentemente,
em se deparar com o conceito de performance. Seja de forma coloquial, referindo-se
performance do artista em cena, forma de atuar, maneira de cantar, gesticular,
danar, entre outras, a remisso corporalidade como forma de compreenso das di-
nmicas discursivas no mbito do videoclipe uma das importantes chaves de compre-
enso deste audiovisual. Neste artigo, parte-se da premissa de que o enfrentamento do
termo performance se faz necessrio como aporte para pensar questes em objetos
audiovisuais e, mais detidamente, em videoclipes. Trata-se de uma tentativa de com-
preender a construo dos elos conceituais entre a cano e o clipe, a partir das in-
meras possibilidades de encenao de um corpo neste caso, o artista-protagonista do
videoclipe. Vale ressaltar que o conceito de performance como tratamos aqui, ou seja,
a noo de que a cano como uma expresso potica traz, em si, uma performance
inscrita, j foi anteriormente discutida (FRITH, 1996 e ZUMTHOR, 1997) e sistemati-
zada no terreno da msica popular (DANTAS, 2005). Dessa forma, o conceito ao qual
nos filiamos, visa delimitar o terreno da performance no mbito da cano, tentando
no causar rudos conceituais com o largo uso da nomenclatura performance na
Antropologia, na Sociologia, nas Artes Cnicas; ou na aplicao senso comum tambm
da nomenclatura - que poderia ser desdobrada em performance coreogrfica, per-
formance vocal, entre outras infinitas (e possveis) classificaes.
A delimitao do termo performance como propomos utilizar tem a inteno de valo-
rizar os aspectos sonoros dos artistas que interpretam a cano. Quando nos referimos
ao fato de que as canes trazem inscritas performances, precisamos deixar claro que
estamos na busca por um corpo sonoro. Ou seja: nos interessa discutir a performance
inscrita na cano como a voz do artista se apresenta modulada, como a cano ins-
creve uma forma de dan-la, que cenrios podem ser evocados pelas materialidades
inscritas nas canes, de que forma a audio de uma determinada voz j apresenta
uma srie de conceitos socialmente e midiaticamente construdos. Como atesta Danilo
Dantas,
se h um corpo em uma cano ouvida por um meio auditivo, de certo no podemos mais
v-lo. Mas, seu sexo, pulsaes, sentimentos, esto impressos na mdia sonora. Assim, na
cano gravada, existiriam traos de performance que guiariam o ouvinte em sua escuta.
Como ouvintes, estamos aptos a reconhecer esses traos e dar vida cano a partir de
nossas prprias experincias seja ela cotidiana, no conhecimento das diversas entoaes,
interjeies ou musicais, na identificao dos diversos gneros musicais e suas convenes
(DANTAS, 2005, p. 6)
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Neste caso, entendemos que a performance parte de um material expressivo significan-
te, produz sentido em consonncia com questes de ordens cultural e contextual e sua
dinmica diz respeito a um duplo: um objeto performatiza outro, coloca em circulao
as materialidades expressivas dos produtos articuladas a maneiras pr-inscritas de lei-
turas. Conceitualmente, argumenta-se que videoclipes performatizam as canes que
os originam, propondo uma forma de fazer ver a cano a partir de cdigos inscritos
nas prprias canes, mas tambm diante da problemtica dos gneros musicais e das
estratgias de endereamento dos produtos do mercado musical.
Encarar o videoclipe como uma performance da cano no significa compreender este
audiovisual apenas como uma leitura sinestsica dos sons da cano, mas, sobretu-
do, entender que, para alm das configuraes sonoras inscritas nos produtos da msi-
ca, h codificaes de gnero e estratgias das trajetrias individuais dos artistas que
implicam em leituras e implicaes estticas que se materializaro nestes produtos.
Assim, interrogar de que forma o videoclipe se constri como uma performance sobre a
cano significa apontar para a compreenso de que: 1. a performance uma forma de
reconhecimento conceitual de algo previamente disposto; 2. articula-se, na dinmica
performtica, um princpio fundamental na msica: a voz, que culturalmente reconhe-
cida, impele codificaes imagticas de gestual de rosto e aspectos corpreos; 3. deve-
-se compreender a materialidade plstica do som como passvel de ser performatizada,
localizando esta problemtica na dinmica sinestsica; 4. performatizar uma cano
entender que trata-se de uma dinmica inscrita no terreno dos gneros musicais; 5. a
performance da cano implica na localizao de cenrios inscritos na expressividade
dos produtos.
PERFORMANCE COMO RECONHECIMENTO
Para Paul Zumthor, performance reconhecimento. A performance realiza, concreti-
za, faz passar algo que eu reconheo, da virtualidade atualidade. (ZUMTHOR, 1997,
p. 36) Percebe-se que a descrio do autor elstica, empreendendo inmeras possi-
bilidades de recortes e apropriaes. Neste primeiro momento, interessa-nos discutir o
princpio de que, sendo o reconhecimento de algo, a performance tensiona as formas
de atualizao de um fenmeno. Implica em perceber a existncia de um objeto que se
prev reconhecvel e a referida performance como a materializao e atualizao des-
te reconhecimento. Nas relaes entre videoclipe e cano, percebemos a construo
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de uma noo de reconhecimento: o clipe se constitui, fundamentalmente, diante da
idia de que ele concretiza e traduz uma noo de reconhecimento no s da estrutura
plstica da cano, mas tambm de suas peculiaridades de gnero e das especificida-
des das trajetrias dos artistas que protagonizam os vdeos. Assim, podemos pensar o
videoclipe no s enquanto um objeto que espelha as especificidades dos sistemas
produtivos da cano, mas, tambm, que atualiza, problematiza e tensiona as prprias
configuraes das canes. Ou seja, videoclipes enquanto performances das canes
reconhecem da virtualidade atualidade os princpios que regem os meandros concei-
tuais do mercado musical.
O uso do conceito de performance prev o entendimento de que o videoclipe se situa
num contexto cultural em que um fenmeno atravessado, traz inscrito e se situa
em consonncia com as ordens histrico-sociais. atravs desta perspectiva que po-
demos construir relaes no s entre videoclipes, canes e gneros musicais, mas
empreender a visualizao de reas em que estes trs conceitos operam enquanto
formas significantes. Perceber o clipe enquanto uma performance da cano discutir
a noo de reconhecimento, a partir de um contexto de produo e consumo, no se
atendo apenas s especificidades de uma gramtica de produo ou de reconhecimento
(VERN, 2004), mas debatendo como estas gramticas so tensionadas tambm pelos
gneros musicais e pelos produtos que orbitam em torno dos eventos e aes do mer-
cado musical.
Para Zumthor, a performance seria um ato comunicativo que prev obra e pblico,
dessa forma, ela designa um ato de comunicao como tal; refere-se a um momento
tomado como presente (ZUMTHOR, 1997, p. 59). Assim, identificamos, a partir dos ma-
teriais expressivos contidos na cano, uma srie de inferncias, modos de ver, danar
e sentir a msica. O autor problematiza ainda mais a questo da performance como
reconhecimento, uma vez que indica formas de se perceber como, performatizando um
objeto, determinada performance o marca.
A performance e o conhecimento daquilo que se transmite esto ligados naquilo que a na-
tureza da performance afeta o que conhecido. A performance, de qualquer jeito, modifica
o conhecimento. Ela no simplesmente um meio de comunicao: comunicando, ela o
marca (ZUMTHOR, 1997, p. 37)
A perspectiva delineada por Zumthor complexifica as relaes construdas na per-
formatizao do objeto, na medida em que prope uma marcao do objeto pela
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performance. Este aporte conceitual parece debater uma espcie de jogo-de-foras
na constituio das relaes performticas, uma vez que, marcando o objeto, de
alguma forma, a performance se configura numa extenso tambm deste objeto, com-
pondo uma mxima relacional que se edifica a partir da constituio entre objeto e per-
formance-do-objeto. Neste sentido, entende-se tambm que a performance se volta
para o objeto, na medida em que, marcando-o, constitui um contnuo deste performati-
zvel. O clipe gerado a partir de uma determinada faixa musical presentifica uma idia
de nova marcao, construo, edificao conceitual sobre a cano. Este audiovisual,
portanto, se situa num campo em que marca, tatua, constitui uma aparncia para a
cano: marca a msica com uma codificao imagtica que, muitas vezes, problema-
tiza a sua prpria natureza musical.
Pensando a performance numa perspectiva relacional, entendemos trs apontamentos
necessrios para a sua apropriao: 1. a necessidade de produzir efeitos, entendendo
o efeito enquanto uma prtica discursiva que convoca a presena ativa de um corpo;
2. a ao de uma gestualidade ou de uma oralidade presentificada a partir de uma re-
ferncia de imagem; 3. a visualizao no s de um corpo como de um espao, sendo
fundamental a perspectiva de que performances, em si, problematizam uma ideia de
espao. Estes trs apontamentos visam, aqui, serem discutidos na compreenso dos
elos existentes entre cano e videoclipe, uma vez que a criao de um clipe de uma
faixa musical , fundamentalmente, uma produo de efeito e a gerao da idia de
que o vdeo poderia ser encarado como um corpo da cano que o origina - entendendo
corpo como uma atualizao, revestimento, exterioridade desta cano. O videoclipe,
tambm, se constitui na presentificao de gestualidades e oralidades presentes na
cano, sendo um frtil campo para a composio e a criao de recursos de ordens
udio e visual para a materialidade musical.
PERFORMANCE MIDITICA E PRODUO DE SENTIDO
Pensemos, primeiramente, o videoclipe como uma camada visual (VALENTE, 2003,
p. 96) sobre a cano. Enquanto camada, articula uma forma de enxergar a cano
dentro dos seus sistemas produtivos. Tomando-o como uma performance da cano, o
videoclipe no pode ignorar dinmicas discursivas dos objetos, ou seja, que condies
de produo e reconhecimento geraram tambm gramticas de produo e reconheci-
mento nas canes e nos clipes. Discutindo estes aspectos, estaremos nos direcionando
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constituio da ampliao da relao empreendida entre videoclipe e gneros musi-
cais, uma vez que, atravs do conceito de performance, possvel localizar as consti-
tuies entre clipe, cano e estratgia de endereamento genrica. Esta problemtica
genrica discutida no esteio da performance como um ato de comunicao. Segundo
Jeder Janotti Jr,
a performance aponta para uma espiral que vai das codificaes de gnero s especifici-
dades da cano. Mesmo que de maneira virtual, a performance est ligada a um processo
comunicacional que pressupe uma audincia e um determinado ambiente musical. Assim,
a performance define um processo de produo de sentido e conseqentemente, de comu-
nicao, que pressupe regras formais e ritualizaes partilhados por produtores, msicos e
audincia, direcionando certas experincias frente aos diversos gneros musicais da cultura
contempornea. (JANOTTI JR, 2005b, p. 9)
preciso destacar que, sendo registrada em suporte miditico, a cano tem sua per-
formance inscrita: seja nas condies de registro vocal, na dinmica de audio (an-
corada na repetio), na organizao em torno de lbuns fonogrficos, no alcance de
circulao e nas configuraes que regem o star system da msica. As execues midi-
ticas das canes no s permitem tornar as vozes dos cantores familiares ao cidado
comum, como tambm resultam na identificao destes cantores. Ou seja, a perfor-
mance passa a ser dotada de camadas e os artistas, com isso, passam a estar dispon-
veis em inmeros signos em circulao.
Helosa Valente (2003) atesta que o descolamento mais ou menos parcial da identifica-
o ator-cantor/personagem s iria acontecer a partir do momento em que a tecnolo-
gia, por meio do universo das mdias, pudesse desmembrar as diversas camadas da per-
formance, tornando o artista mais acessvel ao seu pblico (signicamente). (VALENTE,
2003, p. 46) O corpo do artista ganha formas de estar em circulao e de ocupar es-
paos. A metfora de que, num perodo em que no havia a configurao miditica, a
performance do artista ao vivo era seu objeto de criao passa a ser substituda por
uma regra em que o objeto de criao passa a criar outros objetos.
O videoclipe se situa como um desdobramento da performance da cano uma vez que
integra a cadeia de produo de sentido que articula o sonoro e o visual, sendo regido
por uma sistemtica de construo de imagens que opera com signos visuais inseridos
na cano. Entende-se o videoclipe como uma nova camada de mediao sobre a can-
o, sendo esta nova camada articulada construo de um objeto (o videoclipe) que
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seja o mais prximo ao universo do objeto que sintetiza (a cano) e, portanto, estando
articulado ao gnero musical e narrativa particular do artista.
O CLIPE COMO PERFORMANCE DE UMA GESTUALIDADE: A DANA SOBRE A CANO
Expresses musicais da cultura popular indicam modos especficos de corporificao,
que incluem modos de danar. Segundo Jeder Janotti Jr, dana no significa somen-
te uma expresso pblica de certos movimentos corporais diante da msica e, sim, a
corporificao presente na prpria msica, mesmo para os gneros musicais que pres-
supem uma audincia passiva em termos de movimentos corporais. (JANOTTI JR,
2005b, p. 10) A corporificao da msica est atrelada s dices dos gneros e can-
es, ou seja, a execuo musical implica fazer alguns questionamentos: Qual a voz que
canta (ou fala)? Quais corpos tocam e danam a msica? A perfomatividade da voz ou do
ato de tocar descrevem um senso de personalidade, um modo peculiar de interpretar
no s a msica como as prprias convenes de gnero, um modo caracterstico de
corporificao das expresses musicais. O videoclipe, em si, pode ser uma dana sobre
a performance inscrita na cano. Neste sentido, cabe perceber de que forma fluxos,
ciclos, disperses presentes nos audiovisuais so frutos de configuraes presentes nas
canes e nos gneros musicais.
Entendemos, portanto, a dana como um movimento musical que reverbera num corpo.
Emerge a questo: o que significa se mover com a msica? A problemtica disposta
por Simon Frith (1996) na medida em que o autor situa uma continuidade entre ouvir
e ser movido pela msica. Ou seja, perceptvel a naturalizao do ser movido
e danar a msica: ambos indicam modos de responder, corporalmente, a impulsos
musicais. Neste caso, podemos sintetizar conceitualmente o argumento de Frith ates-
tando que danar desejar um movimento mas tambm um movimento desneces-
srio cujo fim significa uma escolha esttica mais do que, simplesmente, um motivo
funcional. (FRITH, 1996, p. 221) A dana, de alguma forma, pode ser resumida como
a estetizao de um gesto que se dirige para outrem, para um espectador mesmo
que este espectador seja o prprio danante. Na dana, os movimentos so gerados,
carregados pela msica, acarretando numa noo de continuidade, de lgica das
formas. Problematizamos: a dana uma resposta a determinada msica ou expresso
desta? Para Frith, a dana traz, em si, o senso da msica, uma vez que danar (e no
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simplesmente assistir a algum danando) uma forma de incrementar, potencializar
a audio (FRITH, 1996, p. 221). O sentido de danar o da expresso atravs de um
corpo dos impulsos musicais, ocupando uma idia de espao. Vamos em direo ideia
de dana e espao.
Nos videoclipes, as relaes entre dana e performance podem ser problematizadas
porque estamos diante da encruzilhada em que artista e pblico se imbricam. Portanto,
as convenes corporais dos gneros musicais podem trazer indcios dos aparatos dis-
cursivos em clipes. Se pensarmos a corporalidade do heavy metal - o bater cabea
dos headbanggers, das guitarras e baterias no ar - e a diferena que existe entre as
inscries corporais presentes na ax music - o pulo, o salto e as coreografias marca-
das possvel trazermos tona pistas para tratar a performance inscrita nos gneros
musicais como um importante aparato de reconhecimento de matrizes estticas. At
num pblico que assiste a um show de um artista da Bossa Nova, por exemplo, e que
muito provavelmente est sentado, num teatro, temos a noo de dana articulada a
um princpio de que o corpo, embora em repouso, responde a uma forma de executar a
sonoridade. A observao da platia que assiste a um show uma interessante maneira
de perceber as codificaes da dana, podendo o videoclipe incorporar certas formas
de danar uma cano, tambm, a partir de cdigos genricos.
Videoclipes de artistas de rock podem ser vistos como uma forma de danar este g-
nero, a partir da identificao, em suas gramticas de produo e de reconhecimento,
de incorporaes estticas no mbito audiovisual. comum, por exemplo, em alguns
clipes de rock, a tremulncia no uso de cmeras, sujeira nos planos imagticos, certo
descaso proposital na edio, acarretando, muitas vezes, em audiovisuais que que-
rem se parecer toscos, sujos. Videoclipes desta natureza podem ser encarados como
uma forma de danar o rock, uma vez que temos uma srie de codificaes audiovisu-
ais, de aspectos que so extenses da maneira de responder corporalmente ao rock.
O clipe pode ser, portanto, uma forma de se construir como uma performance sobre a
msica de um gnero notadamente codificado.
Na dance music, onde comum a ausncia de vocais nas msicas (sendo a cano, mui-
tas vezes, a juno e a criao de atmosferas das batidas eletrnicas), o conceito de
videoclipe como performance da cano que dana e corporifica este material faz-se
ainda mais esclarecedor. Sem uma referncia lrica da letra, cabe, em muitos casos, aos
diretores de videoclipes de dance music, o trabalho de pensar a imagem como textura,
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como ambiente para a unio entre base musical e imagem, entre edio e batidas sin-
copadas. Neste caso, soa evidente que o videoclipe se configura numa dana sobre a
cano, at porque os procedimentos de edio de clipes de dance music, de maneira
geral, se do a partir de aleatoriedades na montagem, sendo, o processo de cobertu-
ra da faixa sonora na ilha de edio, um trabalho de resposta s batidas sonoras.
Podemos sintetizar a noo de que o clipe uma performance sobra a cano a partir
de dois princpios basilares:
1) O videoclipe apresenta gestuais, modos de danar e de agir de artistas que so respos-
tas corporais de uma trajetria particular e das configuraes de gneros musicais. Neste
caso, entendemos que o conceito de dana se aplica aos protagonistas e figuras humanas
que transitam no audiovisual. Identificar como os corpos articulam as respostas corporais s
msicas, codificam formas de expressar uma identidade artsticas e agem sob as balizas das
configuraes dos gneros musicais so tarefas prementes na anlise de clipes.
2) O videoclipe apresenta recursos de cmera, de edio e de ps-produo, gerando gram-
ticas produtivas que representam formas de danar uma cano a partir das expressividades
udio e visuais. O conceito de dana, portanto, vai permear os recursos tcnicos presentes
nas gramticas do videoclipe. Neste sentido, por exemplo, as canes de dance music sem
vocais podem ser contempladas atravs deste conceito, na medida em que, atmosferas de
bases musicais, batidas, estouros, entre outros recursos sonoros sero incorporados no
audiovisual como uma forma de dan-los. O videoclipe, portanto, se coreografa ao som
das batidas eletrnicas, muitas vezes, ignorando contedos das imagens articuladas na edi-
o. O preceito, portanto, o do bailar das imagens e da edio proporcionando um efeito
de dana das imagens que acompanham os arranjos das cano originria do videoclipe.
O CLIPE COMO PERFORMANCE DE UMA ORALIDADE: ASPECTOS DA VOZ
Vimos que o clipe pode ser a performance de uma ao de uma gestualidade ou de
uma oralidade. No terreno da oralidade, como j alertou Paul Zumthor (1997), a voz
emitida, pensada e apreciada iconicamente. Ou seja, ao nos determos na audio de
uma determinada voz, somos impelidos a registrar de maneira imagtica as operaes
executadas pelo intrprete. As inflexes das execues dos cantores podem ser uma
porta de entrada para o universo dos intrpretes da msica que se utilizam do video-
clipe como aporte conceitual de suas carreiras. Pensar a execuo da cano tomando
como pressuposto a vocalizao encontrar na voz uma materialidade analtica que,
por exemplo, Roland Barthes (1990) j alertava ser possvel atravs da visualizao do
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que o autor chama de o gro da voz: O gro seria a materialidade do corpo falando
a sua lngua materna: talvez a letra; quase que certamente a significncia. (BARTHES,
1990, p. 239)
A idia de voz como escritura empreende uma possibilidade de apreenso terica do
fenmeno. Como uma escritura, a voz uma marca pessoal de contedo fundamental-
mente biogrfico, que se articula e remete a um corpo. O gro o corpo na voz que
canta, descreve Barthes, levando-nos a perceber que a o conceito de gro, a que o
autor se refere, significa a busca por uma materialidade analtica na dinmica da voz
e do canto.
Pensando especificamente a noo de voz na msica popular, Richard Middleton (1991)
afirma que a musicalidade popular essencialmente uma msica de voz. O prazer de
cantar, de escutar os cantores, fundamental para este tipo de msica e h uma forte
tendncia dos vocais atuarem como foco unificador da cano. (MIDDLETON, 1991, p.
261) O debate sobre a questo da voz tem a perspectiva de dizer respeito aos embates
na relao do que dito nas letras diante das formas meldicas e das especificidades
artsticas. Assim, nos encaminhamos para as abordagens sobre a voz na msica popular
a partir da perspectiva de Simon Frith (1996) e Roy Shuker (1999). Para Shuker, nos es-
tudos sobre msica pop, h um debate que recai sobre as estratgias de autenticidade
de artistas e suas instncias produtivas, a partir das modulaes vocais. Por exemplo, a
voz no educada daria uma noo de tenso, naturalidade e falta de artifcio que
se constituiria numa das principais ferramentas de constuo de autenticidade do rock.
Poderamos problematizar ainda mais esta premissa e discutir, por exemplo, como os
gneros musicais constrem um pressuposto de autenticidade e cooptao a partir das
apresentaes vocais.
Simon Frith atenta para o fato de que, alm dos gneros musicais, possvel discutir os
gneros naturais (masculino e feminino) na anlise dos produtos musicais. A voz femini-
na, a variar de timbre, volume e entonao, desperta para a composio de uma srie
de imagens previamente inscritas e que, muitas vezes, so incorporadas em materiais
de divulgao - incluindo videoclipes. O mesmo acontece com as vozes masculinas.
Vale a pena chamar a ateno para a composio de vozes que ficariam no limiar entre
o masculino e o feminino, evocando uma certa ambigidade que poderia ser tradu-
zida numa construo de uma androginia no esteio da indstria do entretenimento.
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Detectamos, portanto, que o modo como se canta na msica popular massiva funda-
mental para entender o fascnio que certos artistas exercem sobre os pblicos.
No caso da msica popular massiva, essa personalizao do canto permite no s a
identificao de uma expressividade atravs da voz, como serve de ponto de partida
para a identificao de imagens que estejam associadas a estes determinados modos
de cantar. Como exemplo, podemos pensar em formas de fazer visualizar um grito
num audiovisual ou um sussurro, entre outros aspectos vocais que teriam a propriedade
de serem traduzidos no mbito do videoclipe. Ainda segundo Frith, interrogar como se
apresenta a voz perceber que podemos aproxim-la, pensando a voz como um ins-
trumento musical, com um corpo, uma pessoa e um personagem. (FRITH, 1996, p. 187)
A discusso em torno da forma com que podemos problematizar a questo da voz no
videoclipe pode se delinear na forma com que o clipe, por exemplo, iconiza esta voz
do artista protagonista do audiovisual. de fundamental relevncia classificar a voz de
quem canta e ver de que forma os aparatos miditicos sintetizam imageticamente esta
voz. Gritos, sussurros, especificidades vocais podem ser configurados imageticamente
atravs de movimentaes de cmera, recursos de edio ou registros de gestuais do
artista. Assim, os gneros naturais podem se discutidos partindo da performance ins-
crita na cano em direo ao videoclipe: como o conjunto (voz, atos performticos,
corpo) de um artista o localiza numa determinada configurao de homem ou mulher.
Deve ser inteno do analista tensionar as configurao do masculino e do feminino
nas acepes audiovisuais e localizar momentos de interpenetraes: o masculino mais
prximo do feminino e vice-versa, entendendo que situar a problemtica no terreno da
androginia tambm de fundamental importncia para entendimento das estratgias
de consumo da indstria fonogrfica.
O CLIPE COMO PERFORMANCE DE UM AMBIENTE: OS CENRIOS INSCRITOS
Ouvir msica uma experincia localizada numa determinada cultura, o que requer
uma srie de inferncias acerca das relaes construdas num contexto scio-histrico.
A relevncia da abordagem da performance para discutir conceitualmente o videoclipe
acontece em funo da necessidade de compreender como os apontamentos plsticos
da cano so configurados em relao s perspectivas de gnero e das especificidades
dos prprios artistas. Sob este espectro, propomos problematizar e tensionar mais uma
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questo dentro da nossa abordagem da performance: os cenrios inscritos nas canes
populares massivas. Discutir esta construo de cenrios significa, fundamentalmente,
inserir o ouvinte na dinmica da msica popular massiva, entendendo que o seu posicio-
namento advm de uma localizao scio-cultural. Para Jeder Janotti Jr,
parte do consumo musical ligado aos DJs da msica eletrnica ou ao ltimo lanamento das estrelas
da ax-music, incorporam imaginrios e cenrios diversos, bem como diferentes modos de lidar com
a circulao destas canes na cidade contempornea e, por conseguinte, com os cenrios musicais
pressupostos nestas expresses sonoras (JANOTTI, 2005c, p. 4)
Trazemos, portanto, um ponto relevante nos trajetos sonoros da msica popular massiva:
o fato de que a apreenso da msica tambm depende do modo como as sonoridades
habitam os espaos inscritos em suas performances. A estrutura musical evoca sensa-
es no ouvinte que esto conectadas imaginariamente a determinadas atmosferas,
atesta Janotti Jr. O estudo das conexes entre msica e entorno scio-cultural um dos
alicerces do trabalho de autores que se preocuparam com a delimitao do que seria a
paisagem sonora, termo to controverso, no entant, matriz conceitual para a nossa idia
de cenrio. R. Murray Schafer (1992) sistematizou as perspectivas de construo de uma
paisagem a partir do material sonoro, levando em conta, desde a dinmica da execuo
de uma determinada partitura numa sala (evocando, por exemplo, questes como a mor-
fologia do som, a reverberao, a noo de declnio, etc) at o que o autor chamou de
nova paisagem sonora (SCHAFER, 1992, p. 187), compreendendo que, fora das salas de
concerto, nas ruas, nos becos, nas cidades, havia uma dinmica espeffica de sons que
poderia ser entendida tambm a partir da noo de paisagem. O mundo de sons
nossa volta tem sido investigado e incorporado s msicas produzidas pelos compositores
de hoje. A tarefa estudar e compreender teoricamente o que est acontecendo ao longo
das fronteiras das paisagens sonoras do mundo. (SCHAFER, 1992, p. 188)
Esta forma de imbricamento dos sons dos instrumentos musicais com os sons do mundo
representa uma nova etapa nas relaes sonoras, plsticas e contextuais. Num pri-
meiro momento, os estudos sobre as perspectivas pictricas presentes nos sons abre
espao para uma compreenso mais sociolgica do fenmeno musical, buscando criar
elos entre msica e contexto, som e mundo. Parte-se, portanto, para uma espcie de
retroalimentao sonoro-musical: a cidade em sua dimenso sonora seria um manan-
cial para compositores, artistas, cantores. Helosa Valente (2003) desdobra o conceito
de paisagem sonora, inserindo a perspectiva das mdias nesta elaborao. Entre o final
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do sculo XIX e incio do sculo XX, com a fotografia, o cinema, o disco, o rdio, entre
outros meios, temos uma adaptao perceptiva, uma reorganizao sgnica e uma
caracterizao da cidade como este espao de confluncias de sons, a comunicao
cada vez vai assumindo um carter mais ttil. (VALENTE, 2003, p. 36) Esta tactilidade
a que a autora se refere, pode ser compreendida atravs da idia de que ampliam-se as
possibilidades de constituio sonoro-musical. A cidade, em seus sons cotidianos, passa
a caracterizar e a ser caracterizada pelas canes que dela emanam, que dela falam,
que dela se constituem. A cultura urbana passa, portanto, a ser identificada por gneros
musicais, por formas especficas de cantar, de sotaques, de modos de apropriao da
cano e da musicalidade da fala no ambiente social.
Todas essas novas configuraes apontam para a marcao da produo musical con-
tempornea a partir das relaes entre o que as canes trazem como memria so-
cial. (JANOTTI, 2005c, p. 6) Entendemos, com isso, que uma cidade marcada pelas
formas com que os grupos se propriam no quesito sonoro-musical, seja diante das casas
de shows, dos pontos de encontro e dos aparelhos de som, acrescidos pelas linguagens
do rdio, da TV e dos aparelhos de telefonia mvel.
A maioria das vezes, a constituio de um cenrio numa cano se d em funo de
estratgias genricas ou de localizaes de aspectos construdos midiaticamente como
estratgia de consumo dos produtos da indstria fonogrfica. Podemos falar, portanto,
de um Rio de Janeiro do samba; de um Recife do Manguebeat; ou da Salvador da ax
music. Nestes casos, compreendemos que h especificidades nas apreenses dos fe-
nmenos musicais e as estratgias de construo das regras genricas, muitas vezes,
condiciona a aproximao entre artistas localizados numa determinada cidade.
Vale ressaltar que, como as tessituras urbanas se constituem como um espao de
construo de configuraes reais e imaginrias, os cenrios inscritos nas canes no
obedecem, obrigatoriamente, a uma cartografia geogrfica e tradicional. Como ates-
ta Janotti, possvel falar dos cenrios picos do heavy metal, do serto do baio,
da Jamaica do reggae ou da metrpole do rap; na verdade no esses exmplos no so
referncias a territrios em sentido tradicional, e sim, espaos associados a certas so-
noridades, ou melhor dizendo, paisagens (com suas contradies, anseios e faltas) pre-
sentes na msica popular massiva. (JANOTTI, 2005c, p. 8) Dessa forma, entendemos
que, adentrar esfera do videoclipe a partir das constituies e elos entre performance
e cenrios, significa:
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1) Partir para a verificao de especificidades que podem estar sinalizadas nas formas dos
tratamentos sonoros da canes e sua correlao e constituio de um ambiente no clipe
que se associe, de maneira sinestsica imagem. Ou seja, o uso de sons de ordem orgnica
ou acstica pode agir como constituinte de um cenrio que apele para as relaes memo-
rialistas, buclicas, etc; j a utilizao de sons sintticos, como indicador de um cenrio
futurista, igualmente sinttico. Os instrumentos musicais utilizados nas canes tambm po-
dem indicar formas de associar cenrios na constituio de videoclipes: a presena do piano
e a remisso a ambientes clssicos; a guitarra e a referncia aos espaos jovens, urbanos,
ermos do rock; o saxofone e a implementao de um ambiente de teor sexual, associado a
espaos romnticos, etc.
2) O exame da sonoridade e da articulao vocal do intrprete conecta-se a uma dico1
ligada a determinados traos imagticos. Segundo Tatit (1997, 1999, 2001, 2004) pode-se,
a princpio, estruturar as diferentes formataes da cano popular brasileira, em trs dic-
es diferenciadas: 1) a tematizao, caracterizada por uma regularidade rtmica centrada
nas estruturas dos refres e de temas recorrentes, como, por exemplo, as canes da Jovem
Guarda e pela msica ax; 2) a passionalizao, caracterizada por uma ampliao meldica
centrada na extenso das notas musicais, exemplificada pelo samba-cano, sertanejo e
baladas em geral e 3) figurativizao, em que h uma valorizao na entoao lings-
tica da cano, valorizando os aspectos da fala presentes nessas peas musicais, tal como
acontece no rap e no samba de breque. Dessa forma, a localizao da cano dentro de
uma dessas dices especficas pressupe a caracterizao de um determinado cenrio, na
medida em que esta dico est intimamente associada a um gnero musical. Portanto, uma
cano da Jovem Guarda, tendo uma tematizao to marcada, dificilmente cria ambientes
que no estejam associados s imagens previamente estabelecidas sobre os anos 60, os ce-
nrios e figurinos da poca; uma balada romntica, de dico passionalizada, se edifica num
pressuposto de cenrio idealizado, romntico, idlico e o rap, de contedo figurativizado,
a partir de uma forte referncia de gnero musical, tambm ter suas imagens associadas,
compostas diante de pressupostos genricos.2
3) A configurao biogrfica do artista um pressuposto para a localizao de cenrios ins-
critos nas canes. Este tpico aponta para o fato de como a construo miditica de certas
carreiras da indstria fonogrfica se configuram em estratgias de construo de aparatos
conceituais. Tais aparatos esto em consonncia com as dinmicas do star system da inds-
tria fonogrfica.
4) As perspectivas de cenrios se articulam s geografias reais e imaginrias dos artistas da
msica popular massiva. Dessa forma, ter os clipes do rapper Marcelo D2 filmados na cida-
de do Rio de Janeiro no se configura apenas numa extenso das particularidades sonoras
inscritas na cano, antes uma estratgia de endereamento do prprio artista e a cons-
truo de uma dinmica de autenticidade ligada s prticas da metrpole carioca. Clipes
de banda dspares do Manguebeat, como Devotos (punk) e Mundo Livre S.A. (rock) e que
tinham como cenrio a cidade do Recife se instituem a partir de uma relao com a cena
local, uma vez que problematiza a noo de que um simples determinante (classe, gnero,
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raa) agiria como princpio organizador da expresso cultural coletiva (FREIRE FILHO e FER-
NANDES, 2005, p. 5) As geografias imaginrias ligadas a artistas e gneros musicais tambm
estariam compostas neste princpio. Dessa forma, o nosso estudo se edifica na noo de que
as performances inscritas nas canes trazem tona cenrios associados, em alguns casos, a
apontamentos internos e textuais das cano em consonncia com referncias e construes
miditicas destas.
CONSIDERAES FINAIS
Apesar do vasto lastro conceitual da noo de performance, seja a partir de referncias
da Sociologia, da Antropologia e das Artes Cnicas e Plsticas, props-se neste artigo um
recorte em torno de uma dimenso lingstica do termo com extenses para o campo
musical. A premissa o reconhecimento de zonas de aproximao entre dois materiais
expressivos: a cano e o videoclipe. Neste entrelugar, a noo de performance emerge
como importante articulador analtico: o que h de performtico na cano? Como esta
performance se apresenta no audiovisual produzido para fazer ver a faixa musical?
Postula-se que o videoclipe uma camada performtica sobre a cano que o origina
possibilitando o reconhecimento de corporalidades que se traduzem em disposies
audiovisuais. Videoclipes seriam, portanto, materializaes de gestos, formas de dan-
ar e agir dos corpos dos artistas que os originam. Neste sentido, cabe complexificar as
trajetrias dos artistas no campo musical, suas referncias biogrficas, encenaes no
palco, ou seja, debater o corpo que se constitui como materialidade audiovisual. E lo-
calizar a performance de uma expresso musical como um importante elo investigativo
da comunicao e cultura contemporneas.
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(ENDNOTES)
1 O conceito de dico da cano advm dos estudos do semioticista Luiz Tatit (2004), que considera como dico o encontro entre letra e melodia na cano popular massiva brasileira e que aqui estendido cano popular massiva em sentido amplo. A dico caracteriza tanto um canes especficas, bem como traos estilsticos dos diversos gneros musicais presentes na msica popular massiva.
2 Sobre a relao entre videoclipe e gnero musical, consultar: SOARES, Thiago. O Videoclipe no Horizonte de Expectativas do Gnero Musical. Revista E-Comps, 2005. Acesso em 25 de dezembro de 2005.
Artigo recebido: 31 de maio de 2014
Artigo aceito: 29 de julho de 2014