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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
Consumo, Afeto e Subjetividade nas Novas Paisagens do Capitalismo: As
Representações do Amor Romântico em “Educação”1
Mayara Luma Maia Lobato2
ESPM/SP
Resumo
Neste artigo, pretendemos analisar algumas transformações ocorridas nas sociedades
industriais do século XX, principalmente no que diz respeito ao consumo e aos
relacionamentos afetivos. Por meio de um apanhado teórico, baseado em autores como
Luc Boltanski e Ève Chiapello, Anthony Giddens, Eva Illouz e Roberta Sassatelli,
mostramos como o consumo e os relacionamentos estão bastante interligados. Ambos
são parte de um mesmo movimento de valorização de prazeres imediatos e de uma
cultura da afetividade, na qual a subjetividade ganha importância. Como objeto de
estudo, foi selecionado o filme “Educação” (2009), ambientado na década de 1960. A
história é sobre uma estudiosa garota de classe média baixa, que encontra a saída para
sua vida enfadonha em um relacionamento apaixonado e em produtos de consumo. Ao
final, nota-se que o filme é uma representação prática das ideias dos autores
mencionados e pode, ainda, ser explorado a partir de vários outros enfoques, como o
feminista.
Palavras-chave: Transformações sociais; Capitalismo; Consumo; Relacionamentos;
Cultura da afetividade.
Introdução
Ainda no século XIX, as revoluções industriais estimularam a saída do campo
para as cidades, impulsionando em grande medida o crescimento delas. O resultado foi
que no início do século passado, nas nações europeias, a população urbana já era maior
do que a rural – cenário que se mantém hoje e se replicou em muitos outros países. Nos
grandes centros, é impossível que haja economia de subsistência, portanto, é necessário
que se estabeleçam relações de consumo, proporcionadas exatamente pelas indústrias
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 6 – Comunicação, Consumo e Subjetividade, do 5º
Encontro de GTs – Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM/SP.
Professora dos cursos de Comunicação Social do FIAM-FAAM – Centro Universitário. Integrante do
Grupo CNPq de Pesquisa em Subjetividade, Comunicação e Consumo (GRUSCCO), liderado pela Profa. Gisela G. S. Castro (PPGCOM ESPM/SP). E-mail: [email protected].
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– não mais concentradas no meio urbano – que se dedicam a produzir aquilo de que
necessitamos. Acontece que, com o passar do tempo, o crescimento das cidades, o
desenvolvimento da indústria e as mudanças nos costumes, o comportamento em
relação ao consumo mudou, passando a estar mais associado ao prazer – e não apenas
à necessidade.
Essas mudanças na atividade do consumo acompanharam todas as
transformações sociais que marcaram o século XX, quando também a relação das
pessoas consigo mesmas mudou profundamente. A visão utilitarista, típica de um
período em que se buscava estabilidade e segurança, passa a dar lugar a uma valorização
do prazer mais imediato, o que gera mudanças profundas, principalmente no âmbito
dos relacionamentos. Para tratar desses assuntos, vamos buscar embasamento em
alguns autores, como Boltanski e Chiapello (2009), Giddens (2002), Illouz (2009;
2011) e Sassatelli (2010), que tratam de temas como a construção do eu nas sociedades
capitalistas, as relações de consumo que se estabeleceram ao longo do século XX e as
novas expectativas quanto aos relacionamentos afetivos/amorosos.
Como objeto de estudo, selecionamos o filme “Educação” (2009), por ter uma
afinidade grande com os tópicos de estudo propostos por este trabalho. Ambientado no
início dos anos 1960, o longa-metragem retrata uma sociedade em transformação, com
uma protagonista que rompe com alguns paradigmas, mas mantém outros,
principalmente no que diz respeito aos relacionamentos amoroso - o que é típico de
períodos de transição. Ela desenvolve, ainda, uma nova relação com objetos de
consumo, associando-os ao ócio, ao prazer, ao tempo livre e a um relacionamento
amoroso satisfatório – aspectos que serão trabalhados nas próximas páginas.
O terceiro espírito do capitalismo: novas paisagens para as relações produção-
consumo
A partir da primeira metade do século XIX, a Europa, principalmente, começou
a passar por um intenso processo de mudanças, levado em especial pela revolução
industrial que se iniciava naquele período. Pela primeira vez, a mão de obra humana
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era substituída por máquinas e as grandes indústrias, estabelecidas nas cidades,
provocavam um êxodo rural nunca antes visto. O capitalismo ganhou um grande
impulso, com uma quantidade crescente de trabalhadores assalariados e um número
maior de produtos no mercado. Esse aspecto foi importante também para o
desenvolvimento da imprensa informativa e da publicidade, que ajudava a vender as
mercadorias produzidas, agora em grande escala, pelas indústrias (TRAQUINA, 2005).
Embora as condições de trabalho ainda fossem precárias e não tenham sido
significativas as melhorias nas condições de vida, o capitalismo naquele período foi
importante porque estabeleceu uma noção de liberdade, apresentando-se ele próprio
como um modelo “libertador” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.424). Em
primeiro lugar, o capitalismo se opunha à escravidão, afinal esse sistema é baseado na
compra e venda de produtos, o que só é possível em sociedades fundamentadas no
trabalho assalariado; depois, porque se mostrou “favorável à realização das promessas
de autonomia e autorrealização” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.425):
A ampliação das possibilidades formais de escolher (a própria vinculação
social), redefinida essencialmente em referência ao local de habitação e à
profissão exercida – em vez de ser ligada pelo nascimento a uma localidade ou a um estado -, foi um dos atrativos do primeiro capitalismo. Em vista da
importância da família nas sociedades tradicionais, essa forma de libertação
apresenta-se primeiramente como uma alforria do peso dos vínculos domésticos (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.425).
Para os dois autores citados acima, o que se vive na segunda metade do século
XIX é o primeiro espírito do capitalismo, marcado pela noção de que era possível ser
quem se desejasse ser por meio mercado de trabalho. Nas palavras deles, “o mercado
de trabalho mostra-se assim como um dispositivo favorável à realização de um ideal de
autonomia” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.425). No entanto, não demorou
para que esse fator de libertação prometido passasse a ser questionado, em primeiro
lugar, na visão dos autores, pela concorrência que se estabeleceu entre os trabalhadores
para a venda de sua força de trabalho. Em segundo, porque “o consumidor,
aparentemente livre, na verdade está inteiramente submetido ao império da produção”
(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 427):
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Ele deseja aquilo que querem que ele deseje. O efeito da oferta subjuga e determina a demanda ou, como diz Marx (1957, p. 157), “a produção não
produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o
objeto”. Ora, visto que a oferta de bens, por meio da qual se realiza o lucro, é
por natureza ilimitada no contexto do capitalismo, o desejo deve ser estimulado incessantemente para se tornar insaciável (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009,
p.427).
Sendo assim, “a libertação prometida é substituída, de fato, por uma nova forma
de escravidão” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 427). Contestado, o primeiro
espírito do capitalismo, segundo os autores, foi superado e, hoje, estaríamos vivendo o
terceiro espírito, marcado por uma ideia de sociedade “em rede”, autocontrole – em
oposição ao controle exercido por um chefe, por exemplo – trabalho em equipe e
flexibilização das garantias empregatícias – conquistadas no segundo espírito do
capitalismo – e das relações de trabalho, diante de uma promessa de maior autonomia.
Apesar das mudanças, ainda observamos algumas características do primeiro espírito,
como a promessa de autorrealização por meio do mercado de trabalho, o que ganhou
especial força, já que hoje não se vê mais uma fronteira muito clara entre as esferas
profissional e pessoal.
Outras esferas que também ficam com os limites bastante turvos são as da
produção e do consumo. Embora essa ideia não seja exatamente nova, podemos buscar
autores recentes, como Sassatelli (2010), para explicá-la. Para a autora, a sociedade do
consumo em que vivemos hoje se estabeleceu no mundo ocidental no pós-segunda
guerra e tem como uma de suas características não ser dicotômica, pois produção e
consumo se encontram numa esfera só, a da troca e da comercialização (SASSATELLI,
2010, p.4).
O pensamento de Sassatelli encontra sintonia com o terceiro espírito do
capitalismo de que falam Boltanski e Chiapello (2009), pois a promessa de libertação
que acompanha esse sistema há dois séculos, hoje, é oferecida exatamente pelo
consumo: “Seria possível mostrar que quase todas as invenções que alimentam o
desenvolvimento do capitalismo foram associadas à proposta de novas maneiras de
libertar-se” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 439). Portanto, no terceiro espírito
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do capitalismo, a compra e o uso de bens se tornam atos de consumo que têm não apenas
a função de satisfazer nossas necessidades diárias, mas que ganham implicações
culturais e simbólicas: “o consumo pode ser mais bem considerado como um complexo
conjunto de práticas econômicas, sociais e culturais” (SASSATELI, 2010, p.5-6)3.
Identidades contemporâneas: o projeto reflexivo do eu e a cultura da afetividade
E, exatamente pelo consumo assumir diferentes feições e permear todas as
esferas de nossas vidas, ele assumiu também particular importância na construção das
identidades sociais. Se, num período anterior, o mercado de trabalho se apresentava
como libertador, pois viabilizava uma ruptura com padrões previamente estabelecidos
e prometia autonomia, hoje, é o consumo que assume essas funções. Os produtos e os
serviços que se consome, assim como os espaços frequentados, podem dizer muito
sobre uma pessoa, o que acaba revelando que a noção de identidade hoje está muito
mais flexível.
No novo paradigma das sociedades contemporâneas, afirma Stuart Hall, a
identidade deixou de ser “fixa, essencial ou permanente” para se tornar uma
“celebração móvel”. Os sujeitos assumem, assim, “diferentes identidades em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (HALL,
2001, p.13). A antiga subjetividade, vinculada às construções simbólicas e culturais da
ordem da tradição e do psiquismo individual, cedeu lugar às identificações sucessivas;
com isso, os sujeitos perderam um “sentido de si estável” (HALL, 2001, p.9).
Em momentos anteriores, a identidade era definida principalmente pela família
de que se fazia parte. Depois, o mercado de trabalho passou a ser importante nesse
sentido e, hoje, a identidade é muito mais uma construção, que perpassa o consumo, do
que algo previamente estabelecido por convenções sociais. O caráter aberto da
construção identitária acabou fazendo com que a subjetividade se tornasse uma questão
de preocupação nas sociedades capitalistas modernas:
3 No idioma original: “consumption is best considered as a complex economic, social and cultural set of practices”.
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Na Europa medieval, a linhagem, o gênero, o status social e outros atributos relevantes da identidade eram relativamente fixos. Eram necessárias transições
entre os vários estágios da vida, mas elas eram governadas por processos
institucionalizados e o papel do indivíduo neles era relativamente passivo. [...].
Só com o surgimento das sociedades modernas e, mais particularmente, com a diferenciação da divisão do trabalho, foi que o indivíduo separado se tornou
um ponto de atenção (GIDDENS, 2002, p.74).
Nesse sentido, o eu passou a ser “visto como um projeto reflexivo, pelo qual o
indivíduo é responsável”, prevalecendo a ideia de que “somos não o que somos, mas o
que fazemos de nós mesmos” (GIDDENS, 2002, p. 74). Não à toa, Giddens (2002) se
vale do termo auto-identidade, que fortalece a ideia de que ela é uma construção
conduzida pelo indivíduo ao longo de sua vida, o que muitas vezes envolve aspectos
como família, status social e gênero, mas já não é mais determinada por nenhum deles.
Para o autor, o ideal de auto-identidade está associado à descoberta da essência do
sujeito, da autenticidade, do conhecer bem a si mesmo. Esses aspectos acabaram por
estimular uma cultura terapêutica na sociedade, tanto no sentido reflexivo, da
autoterapia, como com o crescimento da importância da psicologia no meio social,
aspecto de tratam autores como Illouz (2011).
Para Illouz (2011), a marca dessa cultura terapêutica é ter dado vazão aos
sentimentos nas mais diferentes esferas, principalmente no mundo do trabalho, com o
objetivo de aumentar a produtividade, ao garantir que os trabalhadores estivessem
comprometidos “por inteiro” com a empresa, se sentissem valorizados e com direito de
voz. Com isso, lealdade, confiabilidade e capacidade de compreensão, entre outros
atributos, passaram a ser valorizados pela empresa. O oposto, por sua vez, também se
verifica – as relações afetivas estão permeadas de aspectos econômicos: “o afeto se
torna um aspecto essencial do comportamento econômico, e no qual a vida afetiva –
especialmente a da classe média – segue a lógica das relações econômicas e da troca”
(ILLOUZ, 2011, p.12). Por conta dessas questões, a autora cunhou o termo
“capitalismo afetivo”, no qual “repertórios culturais baseados no mercado moldam e
impregnam as relações interpessoais e afetivas, e as relações interpessoais encontram-
se no epicentro das relações econômicas” (ILLOUZ 2011, p.13).
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Essa “cultura da afetividade” (ILLOUZ, 2011) também trouxe implicações aos
relacionamentos amorosos, com o surgimento, ao longo do século XX, do ideal de amor
romântico. Illouz (2009) também trata desse tema, mostrando que a transformação do
amor está bastante ligada ao modelo capitalista, tendo relação com o mercado de
trabalho, as atividades de consumo e os hábitos de vida de diferentes classes sociais.
Essa nova noção de amor nasce ainda na primeira metade do século passado, em
especial com o surgimento de uma “indústria do ócio”, como chama a autora, que gera
uma mercantilização do romance, levando à criação de novas definições para os
relacionamentos. Mudam, portanto, os objetivos esperados de um namoro e também os
espaços utilizados para os encontros amorosos. Nas palavras de Illouz (2009, p.89):
A mercantilização do romance designa o processo mediante o qual as novas
indústrias e tecnologias do ócio (como o automóvel, o cinema, etc.) começam
a definir novas noções de sexualidade e intimidade. De forma especial, os encontros românticos são enquadrados dentro dos limites temporais, espaciais
e materiais que definem as tecnologias e as formas do ócio oferecidas por certas
indústrias cada vez mais poderosas.4
Assim, observa-se de forma clara a influência da esfera econômica no mundo
subjetivo dos afetos, ideia também trabalhada por Illouz (2011) e da qual tratamos mais
acima. Segundo a autora, é a partir do estabelecimento dessa indústria do ócio, que
segue os preceitos do modelo capitalista, que se passa a difundir a noção de que, assim
como o consumo, o amor é para todos. Segundo a autora, “assim como a participação
no mercado do ócio se associa cada vez mais com o romance, a experiência romântica
se associa cada vez mais com o consumo” (ILLOUZ, 2009, p. 104). 5 Essa nova
característica dos relacionamentos acabou levando a uma mudança nos espaços
utilizados para os encontros amorosos, que passaram a acontecer muito mais nos novos
4 No idioma original: La ‘mercantilización del romance’ designa el proceso mediante el cual las nuevas
industrias y tecnologías del ocio (como el automóvil, el cine, etc.) comienzan a definir las nociones
incipientes de la sexualidad y la intimidad. Más concretamente, los encuentros románticos quedan
enmarcados dentro de los limites temporales, espaciales y materiales que definen las tecnologías y las
formas del ocio ofrecidas por ciertas industrias cada vez más poderosas. 5 No idioma original: Así como la participación en el mercado del ocio se asocia cada vez más con el romance, la experiencia romántica se asocia cada vez más con el consumo.
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ambientes públicos de lazer oferecidos pela indústria do ócio, como cinemas e
restaurantes, do que em casa.
Na verdade, os encontros das classes operárias já costumavam acontecer nos
espaços públicos, pois normalmente não havia possibilidade de privacidade em suas
casas, por conta da quantidade de pessoas que abrigavam. Eles também desfrutavam de
uma liberdade maior para escolher seus parceiros. Diferentemente do que acontecia nas
classes mais elevadas, nas quais os casamentos eram determinados pelas famílias com
o objetivo de proteger suas fortunas e os encontros aconteciam no ambiente doméstico,
sob os olhares atentos dos pais. Ao longo do século XX, os mais ricos passaram a exigir
uma liberdade maior, como a da classe operária, que, por sua vez, passou a imitar os
hábitos refinados dos primeiros: “a vida é uma invenção dos abastados que os menos
favorecidos imitam da melhor maneira possível”, como diz Kracauer (2009, p.318).
Portanto, segundo Illouz (2009, p. 115):
Está claro que a fórmula romântica da classe média não é própria dela,
tratando-se, na verdade, de uma transação entre as forças culturais “altas” e “baixas”. O mercado massivo do ócio incorpora as práticas amorosas dos
estratos mais altos e mais baixos da sociedade. O denominador comum que
impulsiona ambos os movimentos é a expansão do mercado [...].6
Várias das ideias trabalhadas aqui são ilustradas no longa-metragem intitulado
“Educação”, do diretor Lone Scherfig, não à toa objeto de estudo deste trabalho. O
filme é uma produção britânica que conta a história de uma garota de classe média baixa
que vive em um subúrbio de Londres, em 1961. Narrando uma história de amor, o filme
consegue retratar bem algumas das questões que marcaram o século XX – e que
estavam presentes de forma emblemática em um período de transformação social como
os anos 1960 –, muitas das quais tratamos aqui, como a libertação por meio do
consumo, os questionamentos em torno da auto-identidade e as novas expectativas em
relação ao amor romântico, valorizado pela protagonista.
6 No idioma original: Está claro que la fórmula romántica de la clase mediana no es propia de dicha clase,
sino que se trata de una transacción entre las fuerzas culturales “altas” y “bajas”. El mercado masivo del
ocio incorpora las prácticas amorosas de los estratos más altos y bajos de la sociedad. El denominador común que impulsa ambos movimientos es la expansión del mercado [...].
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“Educação” e as conexões consumo-amor-subjetividade
O filme aqui analisado se destacou entre as produções do final dos anos 2000,
período em que foi lançado. Baseado em um livro de memórias autobiográfico de uma
jornalista britânica, o enredo consegue ilustrar com qualidade as transformações e os
questionamentos sociais que se intensificavam nos anos 1960. Além disso, a atriz que
viveu a protagonista, Carey Mulligan, foi bastante elogiada por sua atuação. A história
se concentra no relacionamento entre Jenny, uma jovem de 16 anos, de uma família de
classe média baixa, e David, um homem mais velho e de boa condição econômica, por
quem a protagonista se apaixona.
Se o filme retrata uma sociedade em transformação, como foi aquela dos anos
1960, a personagem de Jenny é construída como uma figura representativa dessa
transição, já que ela rompe com alguns paradigmas, mas conserva outros. Por exemplo,
a garota é apresentada como inteligente, dedica-se bastante aos estudos e costuma
questionar os pais e a educação rígida – e, em sua visão, muitas vezes inútil – que
recebe. Ao mesmo tempo, ela não deseja ingressar na universidade, contrariando as
expectativas dos pais, pois espera se casar e viver um relacionamento apaixonado. Na
verdade, Jenny é apresentada como alguém sem muitas expectativas, que considerava
sua vida enfadonha, até conhecer David, que conquista a garota principalmente pela
vida que poderia oferecer a ela.
David é mais velho, tem hábitos sofisticados e passa a integrar amplamente
Jenny aos programas e aos produtos da “indústria do ócio” de que fala Illouz (2009):
os dois frequentam bons restaurantes, leilões de arte, clubes noturnos, bares e teatros,
consomem os melhores vinhos e viajam. Para Jenny, portanto, a experiência amorosa
estava diretamente relacionada à experiência de consumo, que passou a marcar sua vida
de diversas formas. Entre elas, está uma viagem a Paris, que marcou o aniversário de
17 anos de Jenny e sua primeira relação sexual. Desse modo, o filme se conecta às
ideias de Sassatelli (2010, p.2) de sociedade de consumo, na qual “nós não apenas
satisfazemos nossas necessidades diárias por meio de mercadorias, como também
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conceituamos a compra e o uso de bens como atos de consumo”7. Ao que podemos
somar a ideia de Illouz (2009, p.120):
[...] a zona de controle do capitalismo se transferiu da esfera da produção para
a esfera da cultura. Portanto, o ideal de romance na era pós-moderna está
firmemente assentado nos discursos e nas instituições criadas pelos empresários culturais do capitalismo.8
A maneira como o casal se relaciona, associando amor e lazer, se enquadra nos
ideais de amor romântico. A protagonista demonstra, ao longo do filme, insatisfação
com o relacionamento dos pais, visto por ela da maneira como Illouz (2009) descreve
os relacionamentos de um momento anterior: prático, chato, sem emoção. Jenny, em
oposição, busca para si uma relação apaixonada, intensa, divertida e prazerosa. E é a
possibilidade de viver essa relação com David que a faz se apaixonar por ele, tanto que,
num trecho, Jenny confessa ao namorado: “você não tem noção de como tudo era chato
antes de te conhecer. [...] nunca fiz nada antes de conhecê-lo”. O diálogo ilustra a ideia,
construída ainda na primeira metade do século XX, de que “o tédio mata o amor [...], o
casamento pode e deve se sustentar na diversão e no prazer” (ILLOUZ, 2009, p.87)9.
Todos os pontos trabalhados mostram como Jenny passa, durante seu namoro
com David, a associar o capitalismo a um modelo libertador da vida enfadonha que
considerava levar, nos mesmos moldes apontados por Boltanski e Chiapello (2009).
Esse aspecto fica mais evidente quando, em uma pequena discussão que os dois têm,
David ameaça Jenny a voltar a sua antiga vida caso termine com ele: “você pode voltar
para Twickenham10 e aprender sobre seus afazeres domésticos, e fazer sua lição de
latim. Mas estes fins de semana, os restaurantes e os concertos não crescem em
árvores”. A discussão, portanto, acaba com Jenny dando um tímido sorriso, revelando
que aquela vida atendia a seus ideais de autonomia e autorrealização. Para Jenny, o
7 No idioma original: […] not only satisfy our most elementary daily needs through commodities; we
also conceptualize the purchase and use of goods as acts of consumption. 8 No idioma original: [...] la zona de control del capitalismo se ha trasladado de la esfera de la producción
a la esfera de la cultura. Por lo tanto, el ideal de romance en la era posmoderna está firmemente asentado
en los discursos y las instituciones que crearon los empresarios culturales del capitalismo. 9 No idioma original: el aburrimiento mata al amor [...], el matrimonio puede y debe sostenerse en al
diversión y el placer. 10 Subúrbio de classe média baixa onde a família de Jenny vivia.
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capitalismo oferecia a possibilidade de “desenraizamento voluntário”, fazendo com que
ela se afastasse dos ideais determinados por seus pais e passasse a ter a “possibilidade
de escolher o próprio estado social (profissão, lugar e modo de vida, relações etc.),
assim como os bens e os serviços possuídos e consumidos” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p.425).
Outra característica de David que impressiona Jenny é a valorização que ele dá
ao ócio, reservando tempo e dinheiro para as atividades recreativas. O cultivo do tempo
livre é uma das marcas das sociedades a partir da primeira metade do século XX,
segundo Ilouz (2009), mas, ao mesmo tempo, para desfrutar da cultura era preciso ter
conhecimento para isso:
[...] Conforme transcorria o século XX, o amor se entrelaçava cada vez mais
com as novas formas de distinção social: por um lado, a disponibilidade de
ingressos e tempo livre para investir em atividades recreativas e, por outro lado, o conhecimento e a prática das normas de cortesia adequadas para cada tipo de
atividade consumida no âmbito da classe média alta (ou seja, o que Bourdieu
denomina ‘capital cultural’) (ILLOUZ, 2009, p. 112).11
Esses aspectos fazem com que novos questionamentos surjam para Jenny, em
especial quanto à educação formal que recebia. Como os pais tinham grandes
expectativas quanto à vida profissional da filha, eles fazem significativos investimentos
em seus estudos, o que contribui para formar o capital cultural de que ela dispunha,
construído também por seu interesse por outras culturas, música, artes etc. No entanto,
o sistema rígido de educação aplicado pela escola e pelos seus pais, dentro de casa, faz
com que Jenny quase não tivesse tempo livre para as atividades culturais e recreativas,
o que é reforçado também pela condição econômica mais restrita de sua família.
Quando conhece David, que cultivava tempo livre e dispunha de dinheiro para investir
na indústria do lazer, a protagonista passa a se questionar porque também não pode ter
aquela vida.
11 No idioma original: [...] a medida que transcurría el siglo XX, el amor se iba entrelazando cada vez
más con las nuevas formas de ‘distinción’ social: por un lado, la disponibilidad de ingresos y tempo libre
para invertir en actividades recreativas y, por otro lado, el conocimiento y la práctica de las normas de
cortesía adecuadas para cada tipo de actividad consumida en el marco de la clase media-alta (o sea, lo que Bourdieu denomina ‘capital cultural’) (ILLOUZ, 2009, p.112)
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Sustentando-se no prazer e na diversão oferecidos pela indústria do ócio, o
namoro de Jenny e David é, em “Educação”, sempre representado nos espaços públicos,
onde os dois desfrutam de uma liberdade maior do que se tivessem que se encontrar
sob os cuidados de seus pais. O carro é um dos espaços bastante explorados pelo filme
para o encontro deles: é onde os dois se conhecem, depois de Jenny aceitar uma carona
durante uma tempestade, enquanto voltava do colégio. É também onde eles se dão o
primeiro beijo. Segundo Illouz (2009), os automóveis nas classes mais elevadas têm
especial importância na transformação nas maneiras de se relacionar:
Ao facilitar a busca da privacidade, os carros substituíam a sala das casas como palco para o cortejo, sobretudo na classe média alta e, ao mesmo tempo,
permitiam que os casais recém-formados se distanciassem mais do que nunca
das redes nas varandas, das poltronas nas salas, das mães curiosas e das irmãs
importunas (ILLOUZ, 2009, p.93).12
David consegue desfrutar de tanta liberdade com Jenny por conquistar a
confiança dos pais dela, com seus bons modos e sua condição econômica confortável,
provando o que Illouz (2009, p.110) afirma sobre as novas exigências nos
relacionamentos estabelecidos na primeira metade do século XX: “A fórmula legítima
do romance exigia não só certo toque econômico, como também certa familiaridade
com os bons modos”. 13 Assim, o casal aproveita o máximo possível todas as
possibilidades oferecidas por essa liberdade, investindo, entre outros programas, em
viagens - aquela a Paris, da qual tratamos mais acima, não é a única que eles fazem.
Esses passeios acabam funcionando muito mais como programas para o próprio bem
do casal do que para que eles fruam a sensação de espaços estranhos (KRACAUER,
2009, p.82). Além disso, possibilitam um afastamento da realidade que os dois viviam,
uma possibilidade de colocar a vida “real” em suspenso por um breve período. Nas
palavras de Kracauer (2009, p. 82), ao discutir os mecanismos da indústria do lazer e
12 No idioma original: Al facilitar la búsqueda de privacidad, los autos reemplazaban la sala de los
hogares como escenario para el cortejo, sobre todo en la clase media-alta, y a su vez permitían que las
parejas recién formadas se alejaran ‘mucho más que nunca de las hamacas colgadas en los porches, los
sillones de las salas, las madres curiosas y las hermanitas molestas. 13 No idioma original: “La fórmula legítima del romance exigía no sólo cierta holgura económica sino también cierta familiaridad con los ‘buenos’ modales.”
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das viagens, “a ênfase cai sobre o desligamento enquanto tal que a viagem oferece e
não sobre o interesse que se procura neste ou noutro lugar”.
Conforme expusemos em vários trechos, Jenny é construída como uma
personagem questionadora e que nega os padrões de comportamento impostos por sua
família e pela escola. Desse modo, ela se recusa a “reconhecer-se no nome que [lhe] é
oferecido” (ROSE, 2001, p.52), negando os julgamentos normalizadores e as
“tentativas para incorporar esses julgamentos aos procedimentos e julgamentos que os
indivíduos utilizam a fim de conduzir sua própria conduta” (ROSE, 2001, p.38). O que
Jenny queria era ter a oportunidade de construir, ela própria, sua identidade, num
processo, portanto, de auto-identidade, da maneira de que trata Giddens (2002).
Em seu projeto reflexivo, Jenny se dedica a buscar seu verdadeiro eu, sua
essência, o que imagina ter encontrado ao lado de David e da vida que levavam juntos,
ligada ao consumo. No entanto, como o próprio Giddens (2002) afirma, esse “eu
verdadeiro”, muitas vezes, é uma ilusão, pois há “uma pluralização de mundos de vida.
[...] Os ambientes da vida moderna são muito mais diversos e segmentados”
(GIDDENS, 2002, p. 81).
A grande decepção de Jenny acontece quando o relacionamento dos dois acaba,
pois ela descobre que David era casado. Todo o ideal de vida por ela construído, assim,
vem abaixo e ela se vê obrigada a voltar à vida regrada de estudos como única
alternativa para, um dia, chegar a ter tempo e dinheiro para usufruir da indústria do
ócio. Em uma conversa com a diretora de sua escola, Jenny chega a dizer: “para a vida
que eu quero, não há atalho”, concordando, dessa vez, que não há outra alternativa a
não ser o trabalho: “o mercado de trabalho mostra-se assim como um dispositivo
favorável à realização de um ideal de autonomia” (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009,
p.425).
Por fim, vale ressaltar que o namoro, conforme análise, se enquadra nos novos
tipos de relacionamentos estabelecidos na primeira metade do século XX, que
buscavam combinar a liberdade da classe operária com o refinamento das classes mais
altas. Entre os trechos do filme nos quais é possível fazer essa constatação, merece
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destaque o momento em que o casal se separa, pois fica claro que, embora Jenny
almejasse um casamento, o objetivo de David era “alcançar certo grau de intimidade
temporal, com o qual o ato de consumo podia se repetir (e de fato se repetia) com mais
de um parceiro” (ILLOUZ, 2009, p. 108)14.
Considerações finais
Ao longo deste artigo, discutimos algumas mudanças que marcaram as
sociedades industriais do século XX, quando o capitalismo deixou de ser um modelo
apenas econômico para se consolidar como peça essencial nas dinâmicas e trocas do
universo da cultura. Nesse sentido, o filme “Educação” se mostrou um interessante
objeto de análise por representar as sociedades de consumo do século XX, nas quais os
objetos, mais do que valor econômico, assumem aspectos culturais e subjetivos. O filme
é também um retrato dos costumes em transformação no mundo ocidental dos anos
1960 e da ascensão de uma cultura da afetividade.
Chama atenção, ainda, o fato de ser baseado em um livro de memórias
autobiográfico – embora o enredo não seja fictício, não podemos crer que representa
exatamente o que aconteceu, já que, no âmbito das representações e enunciações do eu,
“a história é reescrita da maneira como o indivíduo gostaria que ela tivesse acontecido,
com novos diálogos, sentimentos e resolução do episódio” (GIDDENS, 2002, p.72).
O filme trouxe a possibilidade de conectar as ideias dos diferentes autores
trabalhados aqui, em especial a partir de Illouz (2009), texto no qual o longa-metragem
se enquadrou muito bem. A autora, por sua vez, agrega muitas das ideias tratadas pelos
outros autores, por exemplo, como a indústria do ócio contribui para os ideais de
libertação difundidos pelo capitalismo, ideia trabalhada por Boltanski e Chiapello
(2009); os aspectos subjetivos que os produtos dessa referida indústria assumem na
sociedade de consumo, o que podemos conectar às ideias de Sassatelli (2010); e, ainda,
dentro dessas sociedades, os produtos e serviços oferecidos pela indústria do ócio
14 No idioma original: “lograr cierto grado de intimidad temporal, con lo cual el acto de consumo podía repetirse (y de hecho, se repetía) con más de una pareja”.
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desempenham papel fundamental na construção da auto-identidade de que fala Giddens
(2002), entre outros aspectos. Nossa análise concentrou-se em apenas alguns pontos do
filme, sendo possível também analisá-lo sob vários outros enfoques, como o
feminismo, que ganhava força nos anos 1960 e está presente de diferentes maneiras na
história.
Referências
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