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Afro-Ásia, 34 (2006), 189-235 189 FOI CONTA PARA TODO CANTO: AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS NAS LETRAS DO REPERTÓRIO MUSICAL POPULAR BRASILEIRO* Rita Amaral ** Vagner Gonçalves da Silva *** Olorum se mexeu Rompeu-se a guia de todos os santos Foi Bahia pra todos os cantos [...] E onde quer que houvesse gente Brotavam com sementes As contas desse colar Hoje a raça está formada Nossa aventura, plantada. Nossa cultura é raiz Gilberto Gil, “Bahia de todas as contas”, 1983. Introdução Neste artigo analisamos as múltiplas relações entre os valores e símbo- los religiosos afro-brasileiros e a música popular nacional. Uma vez que a música é uma linguagem privilegiada na expressão dos valores destas religiões e, também, um elemento marcante na concepção da identidade brasileira, os termos comuns ou intercambiáveis destes campos semân- * Este artigo é resultado do projeto “Religiões afro-brasileiras e cultura nacional: uma aborda- gem em hipermídia”, desenvolvido pelos autores com patrocínio da FAPESP e do CNPq. Agradecemos a estas instituições e aos pesquisadores bolsistas de Iniciação Científica que deste projeto participaram, especialmente a Rachel Rua Baptista, encarregada do levantamen- to de dados sobre religião e música popular brasileira. ** Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pesquisadora-orientadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP. ***Professor de Antropologia da Universidade de São Paulo e vice-coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana (USP). rita e vagner.p65 6/9/2006, 18:17 189

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    FOI CONTA PARA TODO CANTO:AS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS NAS LETRAS

    DO REPERTRIO MUSICAL POPULAR BRASILEIRO*

    Rita Amaral**Vagner Gonalves da Silva***

    Olorum se mexeuRompeu-se a guia de todos os santosFoi Bahia pra todos os cantos [...]E onde quer que houvesse genteBrotavam com sementesAs contas desse colarHoje a raa est formadaNossa aventura, plantada.Nossa cultura raiz

    Gilberto Gil,Bahia de todas as contas, 1983.

    IntroduoNeste artigo analisamos as mltiplas relaes entre os valores e smbo-los religiosos afro-brasileiros e a msica popular nacional. Uma vez quea msica uma linguagem privilegiada na expresso dos valores destasreligies e, tambm, um elemento marcante na concepo da identidadebrasileira, os termos comuns ou intercambiveis destes campos semn-

    * Este artigo resultado do projeto Religies afro-brasileiras e cultura nacional: uma aborda-gem em hipermdia, desenvolvido pelos autores com patrocnio da FAPESP e do CNPq.Agradecemos a estas instituies e aos pesquisadores bolsistas de Iniciao Cientfica quedeste projeto participaram, especialmente a Rachel Rua Baptista, encarregada do levantamen-to de dados sobre religio e msica popular brasileira.

    ** Doutora em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo, pesquisadora-orientadorado Ncleo de Antropologia Urbana da USP.

    ***Professor de Antropologia da Universidade de So Paulo e vice-coordenador do Ncleo deAntropologia Urbana (USP).

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    ticos constituem um locus privilegiado de trocas simblicas e constitui-o do que se poderia chamar de ethos nacional. Este ethos incorpora eprivilegia a musicalidade e tudo o que ela permite de extravasamentoemocional e utilizao do corpo de modo comunicativo e sensual. Nopretendemos discutir neste trabalho o papel da msica na religio, masseu dilogo com a cultura nacional.1 Alm disso, embora estejamos ci-entes do papel fundamental que os ritmos e melodias de inspirao afri-cana desempenharam para o xito das canes analisadas, priorizaremos,para os fins deste texto, as mensagens contidas nas letras das msicas,deixando de lado seu aspecto meldico.2

    No terreiro de ` preto-vio, Iai, vamos sarav!. Religioe os primrdios da msica popular brasileiraNas religies afro-brasileiras3 a msica desempenha um papel funda-mental. um dos principais veculos por meio dos quais os adeptosorganizam suas diversas experincias religiosas e invocam os orixs,caboclos e outras entidades espirituais que os incorporam em festas,giras, sesses e outras cerimnias coletivas. Nesses rituais a msica produzida por diversos instrumentos (atabaques, cabaas, chocalhos,agogs, ganzs etc.),4 que variam segundo os ritos, acompanhados por

    1 Sobre o papel da msica nas religies afro-brasileiras, veja, entre outros, Rita Amaral e VagnerGonalves da Silva, Cantar para subir um estudo antropolgico da msica ritual no can-dombl paulista, Religio e Sociedade, vol. 16, no 1-2 (1992), pp. 160-84, tambm dispon-vel em: http://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.html; Jos Jorge de Carvalho, Ritual and Musicof the Shango Cults of Recife, Brazil, (Tese de Doutorado, The Queens University, 1984) eCantos sagrados do Xang do Recife, Braslia, Fundao Cultural Palmares, 1993.

    2 As letras analisadas foram coletadas por meio de pesquisa em encartes dos discos e CDs e audiodestes quando o material impresso era inexistente ou apresentava dvidas em relao letra efeti-vamente cantada pelos intrpretes. A pesquisa abrangeu consultas em acervos de vrias institui-es, entre as quais destacamos o Museu da Imagem e do Som (MIS), de So Paulo e Rio deJaneiro; a Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural So Paulo e o Instituto de EstudosBrasileiro (IEB) da USP, alm de sites na Internet dedicados musica popular brasileira.

    3 Para uma viso geral sobre o processo de formao das religies afro-brasileiras, veja, entreoutros, Roger Bastide, As Religies Africanas no Brasil, So Paulo, Pioneira, 1985 e VagnerGonalves da Silva, Candombl e Umbanda Caminhos da Devoo Brasileira, So Paulo,Selo Negro, 2005.

    4 A importncia da msica pode ser percebida, inclusive, pelos nomes que as religies afro-brasileiras adquiriram com o tempo, como batuque, no sul; macumba (nome de instrumentomusical de origem banto), no sudeste, e tambor de mina, no norte e nordeste.

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    cantos5 que so considerados formas de oraes que unem o homem aosagrado.

    A musicalidade dos terreiros, marcada pela herana africana, foium dos pontos que mais atraiu a ateno para a diferenciao dessascrenas, servindo como elemento aglutinador e difusor de estilos musi-cais profanos que participaram da formao da cultura musical brasi-leira sob diferentes formas ao longo dos vrios contextos histricos.Exemplos bem conhecidos destes processos so os ritmos maxixe e lundu.

    Em fins do sculo XIX, como atestam os jornais e outros docu-mentos da poca, havia grave rejeio, por parte de segmentos domi-nantes da sociedade, s prticas religiosas afro-brasileiras. Atribua-se aeles o carter de selvageria, cujos exemplos, constantemente citados,eram a lascvia das suas danas e o estrondoso barulho de suas ba-tucadas.6

    Esta situao de rejeio e conseqente represso aos cul-tos afro-brasileiros colocou-os, do mesmo modo que sua msica, nasituao de quase clandestinidade at meados do sculo XX. Entretan-to, esta situao no impediu a incorporao dos ritmos africanos aorepertrio musical brasileiro em vrios pontos do Brasil, influenciandoa criao de estilos musicais populares como o lundu, maxixe, coco,lel, tambor-de-crioula, sotaques de bumba-meu-boi, jongo, maculel,maracatu, afox e o samba, entre muitos outros.

    No caso do samba bom exemplo por sua relevncia e presenacomo um dos elementos constitutivos do gosto nacional e da identidadebrasileira , sabe-se que sua origem est ligada religiosidade dos gru-pos bantu trazidos para o Brasil. Esse ritmo, tocado sobretudo em terrei-ros de candombl de angola (que enfatizam uma identidade de origembantu) e, posteriormente, na umbanda, constitui um dos principais ele-mentos de identidade de ambas as religies. Sendo msica religiosa, o

    5 Essas letras utilizam uma lngua ritual composta de expresses de origem africana mescladas,ou no, ao portugus.

    6 Veja, entre outros, Raimundo Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, So Paulo, CompanhiaEditora Nacional, 1977, e Joclio Teles dos Santos, Divertimentos estrondosos: batuques esambas no sculo XIX, in Lvio Sansone e Joclio T. dos Santos (orgs.), Ritmos em transeScio-antropologia da msica baiana (So Paulo, Dynamis Editorial, 1997), pp. 15-38.

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    samba enredou-se, apesar disso, nos espaos profanos, num intenso fluxode trocas simblicas entre as religies afro-brasileiras e a sociedade.

    No Rio de Janeiro este entrelaamento perceptvel pelo menosdesde as primeiras dcadas do sculo XX, quando dos ncleos religio-sos surgiram compositores que consolidaram esse estilo musical e o dis-seminaram entre o grande pblico.7 Alguns destes compositores eramfilhos das famosas tias8 em torno das quais a colnia de migrantesbaianos no Rio Janeiro se reunia para danar, cantar, comer comidasbaianas e cumprir as obrigaes rituais para com seus orixs. Assim,nesses espaos reuniam-se, entre outros, compositores que se tornariamfamosos na histria da msica popular brasileira como Donga (ErnestoJoaquim Maria dos Santos), Joo da Baiana (Joo Machado Gomes),Sinh, o Rei do samba9 (Jos Barbosa da Silva,) e Pixinguinha (Alfredoda Rocha Vianna Jr.).10 Donga, por exemplo, dizia que seus pais:

    7 Sobre esse processo, veja Roberto Moura, Tia Ciata e a Pequena frica no Brasil, Rio deJaneiro, Funarte, 1983; Hermano Vianna, O mistrio do samba, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1995; Letcia Reis, Na batucada da vida samba e poltica no Rio de Janeiro (1889-1930),(Tese de Doutorado, Universidade de So Paulo, 1999); entre outros.

    8 Termo pelo qual eram conhecidas as mes-de-santo e outras ebmis (iniciadas que atingiram asenioridade) nos candombls e na umbanda.

    9 Sinh est entre os mais importantes sambistas da primeira fase da MPB. Suas msicas eram

    bem recebidas e ele circulava por ambientes luxuosos e favelas. Dizia-se que levava seussambas ao terreiro para serem rezados por uma me-de-santo. Manuel Bandeira, no texto Oenterro de Sinh, registra estas relaes por meio das presenas no velrio do compositor:Seu corpo foi levado para o necrotrio do Hospital Hahnemanniano, ali no corao do Estcio,perto do Mangue, vista dos morros lendrios... A capelinha branca era muito exgua paraconter todos quantos queriam bem ao Sinh, tudo gente simples, malandros, soldados, mari-nheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (l estava o ve-lho Oxun da Praa Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todosos sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Jlio do Carmo e Bene-dito Hiplito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essagente no se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora doenterro. [...] Bebe-se desbragadamente. Um vaivm incessante da capela para o botequim. Osamigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquelechoro?). [...] No tem ali ningum para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, segura-mente o mais genuno que j se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingnua de umpovo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foipor excelncia intrprete de sua alma estica, sensual, carnavalesca: Manuel Bandeira, OsReis Vagabundos e mais 50 crnicas, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1966, p. 11.

    10 Cujo apelido era Ogum Bexiguento por ser filho do orix Ogum e ter a pele marcada pelavarola que contrara na infncia. Veja Marlia T. Barboza da Silva e Arthur L. de OliveiraFilho, Filho de Ogum Bexiguento, Rio de Janeiro, Funarte, 1979.

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    [...] cantavam muito, pois sempre estavam dando festas de candombl;as baianas da poca gostavam de dar festas. A Tia Ciata tambm davafestas. Agora, o samba era proibido e elas tinham que tirar uma licenacom o Chefe de polcia. Era preciso ir at a Chefatura de Polcia eexplicar que ia haver um samba, um baile, uma festa enfim. Daquelesamba saa batucada e candombl, porque cada um gostava de brincar sua maneira.11

    A convivncia nesses espaos permitia que a comunidade com-partilhasse tradies importantes para sua manuteno como grupo deidentidade e para a valorizao de sua auto-imagem, alm de constituiruma das estratgias de sobrevivncia material na sociedade marcadapor discriminaes e desigualdades econmicas e sociais. O pequenocomrcio, ambulante ou nas quitandas, garantia s mulheres uma certaindependncia em relao aos homens. As tias vendiam, por exem-plo, artigos afro-brasileiros e, especialmente, comida baiana. Aos ho-mens geralmente restavam os trabalhos braais pouco remunerados comoa estiva, ou, pior: a situao de desemprego. Essa vida margem impul-sionava-os, muitas vezes, a adotar, entre as estratgias de sobrevivn-cia, a de arriscar a sorte nas vrias formas do jogo de azar ou em peque-nos golpes e expedientes escusos, cuja prtica ficaria conhecida comomalandragem, caracterizando seu praticante, o malandro, como per-sonagem reconhecida entre os tipos populares deste perodo.12

    As letras dos sambas, cantadas ao fim das rodas de santo nascasas das tias baianas, ou nos encontros festivos populares, como aFesta da Penha, refletiam o cotidiano dos grupos negros do Rio de Ja-neiro e a prpria importncia da msica neste cotidiano. Descrevem,entre outros temas, a pobreza, os amores, traies, a malandragem, acomida, o jogo, a poltica, e, permeando tudo isso, freqentemente, opapel da macumba e do feitio como instrumentos de interferncia emfavor prprio nas vicissitudes do dia-a-dia.

    , portanto, coerente, que desde as primeiras gravaes seja pos-svel identificar nas letras das msicas esses temas, como no caso do

    11 Moura, Tia Ciata, p. 63.12 Muito cantada na msica brasileira, de Noel Rosa a Zeca Pagodinho, de Moreira e Bezerra da

    Silva a Chico Buarque.

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    samba Pelo Telefone (de Donga e Mrio de Almeida), gravado porBahiano (Manoel Pedro dos Santos), em 1917, em cuja lrica a disputaamorosa entremeia-se com o feitio:

    O chefe da folia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que com alegria / Nose questione / para se brincar / [...] / Tomara que tu apanhes / Pra notornar a fazer isso / Tirar amores dos outros / Depois fazer teu feitio.Os temas relacionados religio no aparecem apenas incidental-

    mente nas letras das msicas destas primeiras dcadas; ganham tambmlugar de destaque, como acontece em Sete Flechas (composio deFreitas Guimares), gravada em 1928 por Francisco Alves, um dos maispopulares cantores brasileiros. interessante notar, na letra dessa msica, apresena de termos como corpo fechado e santo forte desde esse pero-do, transmitindo a noo de que essa religiosidade era capaz de oferecerproteo espiritual e estabelecer poderosos mecanismos de autoconfiana.13

    At meu nome / J botaram na macumba / Pois me contaram / L nofui nem vi / Que a macumba da boa / No ponto de Catumbi. / At meunome / J botaram na macumba / macumbeiro, / Tu tens poucasorte / O meu corpo fechado / O meu santo muito forte./ At meunome / J botaram na macumba / Tu tens cara de bobo / O ditado tocerto / Que lobo no come lobo!Os candombls e umbandas surgem, nas canes deste perodo, ain-

    da, como ambientes significativos para a sociabilidade e auto-afirmaodos grupos pobres, negros e mestios, associados aos morros e subrbios.Alm do bairro do Catumbi, a Pavuna tambm foi cantada como reduto demacumbeiros e sambistas. Em Na Pavuna (1929), de Candoca da Anun-ciao e Almirante, que seria um enorme sucesso na voz de Almirante e doBando de Tangars em 1930, percebe-se claramente a simbiose entre essesgrupos (gente reina),14 as religies afro-brasileiras e o samba. Na Pavunafoi, ainda a primeira msica na histria da msica popular brasileira a sergravada com instrumentos de percusso. Esses instrumentos (timba, pan-13 Francisco Alves era grande amigo de notrios macumbeiros compositores como Bahiano,

    Sinh, Pixinguinha, Assis Valente e outros, de cujas composies foi intrprete.14 De baixa qualidade; inferior, ruim. O termo tambm era empregado em relao a tudo que

    dizia respeito aos soldados: farda reina, bota reina, no sentido de farda ou bota militar:Joo Mximo e Carlos Didier, Noel Rosa uma biografia, Braslia, Linha Grfica, 1990, p.103.

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    deiro, ganz, reco-reco, tamborim, atabaques e surdo, entre outros) no eramusados nos estdios, permanecendo restritos s escolas de samba e gruposde sambistas. Segundo Edigar de Alencar,15 outra inovao de Na Pavuna o uso, pela primeira vez, da expresso batucada. A palavra j era usadanas rodas de samba e, embora em 1925 Sinh j intitulasse de batucada suacomposio Oju Burucu, o termo, com a significao de conjunto deinstrumentos de percusso, dana, e gnero musical associado aos terreirosparece ter sido gravada, ento, pela primeira vez.

    Na Pavuna, / Na Pavuna / Tem um samba, que s d gente reina / Omalandro que s canta com harmonia / Quando est metido em sambade arrelia /.Faz batuque assim no seu tamborim / Com o seu time enfe-zando o batedor / E grita a negrada vem pra batucada / Que de sambana Pavuna tem doutor / Na Pavuna tem escola para o samba / Quem nopassa pela escola no bamba / Na Pavuna tem canjer tambm / Temmacumba, tem mandinga e candombl / Gente da Pavuna s nasceturuna16 / por isso que l no nasce mulh.17

    Esta centralidade da religio tambm como espao de sociabili-dade18 dos grupos de negros e de brancos pobres aparece, com nfase,na letra de Ya, composta por Gasto Vianna e Pixinguinha, e grava-da por este em 1938.

    Akik no terreiro / Tem uma adi / Faz inveja a essa gente / Que notem mui / No jacut de preto veio / H uma festa de ya / L tem negade Ogum / de Oxal, de Iemanj / Mocamba de Oxssi ( caador!) /Ora, viva Nan, Nan Boroc! / Ki , Ki / No terreiro de preto veio,Iai / vamos sarav / A quem meu pai? / Xang.

    Esta msica, gravada num perodo em que as religies afro-brasi-leiras eram reprimidas at com violncia,19 refere-se a uma festa de ia

    15 Edigar de Alencar, O carnaval carioca atravs da msica, Rio de Janeiro, Francisco Alves,1985, pp. 194-95.

    16 Corajosa, aguerrida.17 Homem mole, covarde, fraco. Srgio Cabral, No tempo de Almirante, Rio de Janeiro, Francis-

    co Alves, 1990, p. 67.18 Rita Amaral, Povo-de-santo, povo de festa: estudo antropolgico sobre o estilo de vida dos

    adeptos do candombl paulista, (Dissertao de Mestrado, Universidade de So Paulo, 1992).19 Um exemplo disso foi a Misso de Pesquisas Folclricas, concebida por Mrio de Andrade,

    que percorreu o norte e o nordeste brasileiros e para gravar as msicas dos terreiros, em 1938,teve de exibir uma autorizao policial.

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    (cerimnia inicitica do candombl) aludindo sociabilidade que se esta-belece nos terreiros. Usa para isso termos africanos como ia (iniciada),akik (galo), adi (galinha), jacut (terreiro) e nomes de orixs e outrasentidades espirituais como Oxal, Ogum, Preto-velho, Xang etc. Ela in-sinua que nos terreiros, nas festas, ningum est s; at o galo tem suacompanheira. Percebe-se, ainda, nessa composio, valores religiosossendo afirmados para o prprio grupo e para a sociedade mais ampla, umdos processos pelos quais parcelas de significado religioso foram, aospoucos, transmitidas para outros espaos, mais abertos, da cultura.

    As opes de convivncia social eram bastante restritas para es-ses grupos, por no terem acesso livre a espaos pblicos quaisquer (ouserem desestimulados a freqenta-los), como magazines, restaurantes,teatros e cinemas, embora o fizessem na condio de empregados e deartistas. Portanto, os terreiros, com sua sacralidade festiva e musical,receptividade e comensalidade, terminaram por desempenhar o papelde ncleo de sociabilidade e de lazer que at hoje representam paracertos grupos pobres, migrantes, muitas vezes estigmatizados e desam-parados socialmente. Passaram a ser, tambm, lugares de divertimento ede encontro e, conseqentemente, de busca de parceiros para a amizadeou para o amor.20

    A trajetria de um dos importantes compositores da poca, JooPaulo Batista de Carvalho, conhecido como J. B. de Carvalho paradigmtica da relao contraditria de aceitao e negao da religi-osidade afro-brasileira tanto nos espaos pblicos como nos privados.O Batuqueiro Famoso, como tambm era conhecido, liderava o Con-junto Tupi (nome que, significativamente, faz referncia ao ndio? ca-boclo? nas representaes religiosas afro-brasileiras) com o qual se apre-sentava em programas de rdio chegando a ter, inclusive, seu prprioprograma dedicado divulgao da umbanda. No rdio, fez sucessocantando pontos de macumba, como Cad Viramundo, de sua autoria,lanada em 1931:

    Sino bateu, Ave Maria / O galo cantou, dia / Vamos salvar Ave Maria/ , cad Vira Mundo, Pemba / , cad Vira Mundo, Pemba/ Ta na

    20 Rita Amaral, Xir! O modo de crer e de viver do candombl, Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2002.

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    terrra, Pemba / Com seu cambono, Pemba / [...] / Veado no mato cor-redor / Cad meu mano caador? / Cad caboclo Ventania? / Esse cabo-clo nosso guia / [...] / Galinha de preta na encruzilhada / Gato de pretode madrugada / Azeite de dend / Farofa amarela / Com trs vintm /Numa panela.

    Caboclo Vira Mundo e Ogum Rompe-Mato eram as entidades queJ. B. de Carvalho cultuava na umbanda. Antes de se converter a esta reli-gio, no entanto, o cantor fora policial e dizia ter participado de muitasdiligncias feitas aos terreiros. Numa delas teria sido baleado e, a partirdesse episdio, passado a sentir sensaes pelo corpo, sinais de suamediunidade, que foi, ento, desenvolvida num terreiro de umbanda daPraa Onze, no Rio de Janeiro. Destas entidades afirmava ter recebido aincumbncia de ser o porta voz da umbanda, papel que desempenhavapor meio da msica. Durante seu programa de rdio algumas pessoas noauditrio entravam em transe em razo das oraes e dos pontos deumbanda cantados. Por este motivo, o cantor chegou a ser preso.21 Nasdcadas de 1930 e 1940, J. B. de Carvalho gravou grandes sucessos decarnaval, mas foram os batuques de terreiro que marcaram sua carreira.Cad Vira Mundo, por exemplo, foi executada no filme Uma Noite noRio de Janeiro e gravada pelo pianista Carmen Cavallaro. Em 1941, gra-vou Ponto de Caboclo Rompe-Mato e Pai Xang e em 1943 SoJorge Guerreiro. A partir da dcada de 1950 reuniu suas composies ouadaptaes de pontos de umbanda nos LPs Terreiros e Atabaques, (c.1955); Batuque (c. 1958), com as gravaes de Cad Vira Mundo eYa, de Pixinguinha e Gasto Vianna; O Rei da Macumba XangDzakut (c. 1960) e J. B. de Carvalho e seu terreiro (1978). O registro dognero musical, atribudo pelas gravadoras aos fonogramas de J. B. de Car-valho com temtica umbandista os indica como sendo macumba, batu-que ou jongo.22 Ainda que passvel de polmicas, o registro destes gne-ros demonstra o reconhecimento e a importncia que vinham assumindocomo estilos prprios no mercado fonogrfico a partir dos anos de 1930.

    21 Informaes da entrevista de J.B. de Carvalho concedida a Gazeta de Notcias (7/7/1968).Veja tambm Enciclopdia da Msica popular Brasileira.

    22 Agradecemos a Marcelo Nastari e a Arthur Rovida de Oliveira pelas informaes sobre ocantor.

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    O Rio de Janeiro, por seu carter cosmopolita, teve o papel de cen-tro propulsor neste processo. Na msica Cais Dourado (composta porSinh e gravada por Mrio Reis, em 1929), v-se, inclusive, a populaocarioca ser enaltecida como a articuladora pioneira de vrias tradiesartstico-musicais (samba, embolada, cateret, coco etc) e religiosas (man-dinga e jongo). A Bahia, por sua vez, tendo sido o local de origem dastias e de muitos compositores, tambm surge com seu valor exaltado.

    ligeiro o carioca, / Quando sabe pontear, / De seu pinho faz viola, / Edecide sem parar / Que no samba ou desafio, / Embolada ou batucada, /Na mandinga e no coco, / Vai at a madrugada, / No cateret falado / E nojongo disputado, / Dentro do Brasil inteiro / Carioca o primeiro. / Ai,como bom saber cantar, / E da viola pontear. / Se consagro a Bahia, / porque tem seu valor, / terra da folia, / Onde l fui cantador, / No faladoCais Dourado, /Onde samba tem calor / Tem o gunga23 no bailado / Des-crevendo a minha dor / Bem no fundo do tant, / Ouo o grito da canaia,/ Na funga24 de fandango, / Da baiana de sandaia. / Ai, como bom...25

    Com o advento do rdio no Brasil, em 1922, tornando-se um pri-vilegiado meio de comunicao, gneros populares, inclusive o samba,passaram a ser veiculados gradativamente em mbito nacional. A divul-gao destes gneros, se por um lado encontrava um pblico disposto aconsumi-los, causava, por outro, indignao em certos segmentos soci-ais, como se v nesta carta enviada a um programa de rdio: Nossosouvintes j se acham fatigados de tantas emboladas, rumbas, fox e sam-bas, que mais parecem msica de negros em dia de candombl.26

    23 Berimbau de som grave usado em rodas de capoeira, tambm conhecido como berra-boi.24 Mais conhecido como punga, uma modalidade de samba-de-roda cantado, com solo coreogr-

    fico e umbigada, tambm chamado de ponga ou tambor-de-crioula. Em alguns lugares expressaexclusivamente a umbigada com a qual se convoca algum para entrar no samba-de-roda.

    25 As circularidades culturais entre a Bahia e o Rio de Janeiro se intensificaram ao longo dasdcadas. Quase setenta anos mais tarde, outra msica (Onde o Rio mais baiano), de outrobaiano (Caetano Veloso), expressaria o vigor dessa afinidade como um espelho onde Rio eBahia se reconhecem: A Bahia, / Estao primeira do Brasil / Ao ver a Mangueira nela inteirase viu, / Exibiu-se sua face verdadeira / Que alegria / No ter sido em vo que ela expediu / AsCiatas pra trazerem o samba pra o Rio / (Pois o mito surgiu dessa maneira) / E agora estamosaqui / Do outro lado do espelho / Com o corao na mo / Pensando em Jamelo no RioVermelho / Todo ano, todo ano / Na festa de Iemanj / Presente no dois de fevereiro / Ns aquie ele l / Isso a confirmao de que a Mangueira / onde o Rio mais baiano.

    26 Enciclopdia Nosso Sculo, 1930/1945, So Paulo, Editora Abril Cultural, 1980, vol. 3, p. 62.

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    Nessa poca, as reformas polticas e econmicas que ficaram conhe-cidas como perodo do Estado Novo buscavam estabelecer as bases de umEstado genuinamente nacional. Isso inclua a valorizao e promoodas prticas culturais brasileiras capazes de congregar o sentimento deunidade nacional.27 Essas proposies encontraram na radiodifuso o me-lhor meio de propaganda e divulgao. Operando de forma seletiva sobrealguns elementos da cultura afro-brasileira, promoveu-os ao status de valo-res nacionais. Esse projeto obteve ampla ressonncia, dadas as condiesdo momento histrico em que os vrios grupos sociais procuravam con-quistar espaos de legitimidade; especialmente as camadas pobres, majo-ritariamente negras e mestias. No campo das artes, em que a criatividade o patrimnio principal, estes grupos obtiveram maior reconhecimento esouberam capitalizar seus talentos em proveito da mobilidade social.28

    nesse perodo que a cultura popular, permeada de elementosafro-brasileiros, comea a ser desestigmatizada, ainda que de forma con-traditria. O carnaval, por exemplo, recebe apoio oficial, mas deve exaltartemas da histria oficial em seus enredos; a capoeira se torna esportenacional, mas de uma forma disciplinada. Tambm o papel social des-tas prticas culturais ganhou destaque no meio acadmico brasileiro eestrangeiro.

    Neste contexto, a msica popular parece constituir uma espciede fio que enreda as vrias experincias das classes pobres, expres-sando valores que lhes so prprios e caros como a ginga do corpo, amalcia, a astcia, a seduo, a beleza e a magia. Os arqutipos da baiana,da mulata e do malandro simbolizaram estes valores em mbito nacio-nal e internacional, forjando, com a ajuda do rdio, do disco e do cine-ma, a prpria imagem do Brasil e do South American Way. CarmenMiranda e o Bando da Lua foram, provavelmente, a mais conhecidaexpresso desses arqutipos no campo das artes musicais populares.

    27 Essa busca pelo Brasil e seu jeito de ser e viver tem suas bases no movimento modernista dadcada anterior, no qual o interesse pelo nacional inspira uma renovao artstico-intelectualque procura fugir aos cnones europeus de produo em termos de novos temas e tcnicas.

    28 Muitos cantores e compositores que obtiveram grande xito poca eram negros. Nesse pro-cesso foi significativo o fato de a divulgao de suas composies e de suas belas vozes se darnum veculo sem imagem, o rdio, o que permitia, muitas vezes, eludir da avaliao do pbli-co consumidor a condio racial destes artistas.

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    O que que a baiana tem?. Religio e consolidao damsica popular brasileira.A Bahia e as baianas foram temas recorrentes na msica popular e quese projetaram nacionalmente a partir do Rio de Janeiro, onde se encon-travam as grandes casas de espetculo, boates, cassinos, gravadoras,estaes de rdios etc. Essa exaltao Bahia pode ser entendida pelapresena massiva de baianos migrados para o Rio de Janeiro, atradospelo processo de desenvolvimento urbano e econmico da ento capitalfederal. A figura das tias baianas (com suas roupas tpicas) nos terrei-ros, no carnaval (desde a formao dos primeiros ranchos e, posterior-mente, na formao da ala das baianas nas escolas de samba), nas festaspopulares e nas ruas da cidade, foi sintetizada em Carmen Miranda cons-tituindo a imagem que se tornaria um dos smbolos do Brasil. Tendosido convidada para cantar a msica de Dorival Caymmi O que que abaiana tem?, no filme Banana da Terra, de 1939, o figurino de baianacom a qual surgiu nas telas foi extremamente apreciado e da em dianteCarmen tornou a baiana internacional, recriando a imagem das filhas-de-santo do candombl em mltiplas estilizaes.29 A partir de ento, noprocesso de consolidao visual dessa representao, a cantora usoumltiplos signos sados do universo simblico dos terreiros e cantadospor ela nos versos de O que que a baiana tem?, de 1939:

    O que que a baiana tem? / [...] / Tem toro de seda, tem! / Tem brincosde ouro tem! / Corrente de ouro tem! / Tem pano-da-costa, tem! / Sand-lia enfeitada, tem! / Tem graa como ningum / Como ela requebra bem!/ Quando voc se requebrar / Caia por cima de mim / [...] / S vai noBonfim quem tem / [...] / O que que a baiana tem? / Um rosrio de ouro,uma bolota assim / Quem no tem balangands no vai no Bonfim / [...]

    Entre os recursos estilsticos usados por Carmen estava a exagera-o de alguns elementos tpicos do traje tpico da baiana filha-de-santo.As contas dos colares e pulseiras se tornam maiores em tamanho e nme-29 Em fins de 1938 Carmen Miranda teria se apresentado pela primeira vez vestida de baiana no

    Cassino da Urca, cantando Na Baixa do Sapateiro, de Ari Barroso. O figurino para a apre-sentao teria sido um presente e marcaria a imagem da mulher brasileira em todo o mundo:Marcos Antnio Marcondes (org.), Enciclopdia da Msica popular brasileira: erudita, fol-clrica e popular, So Paulo, Art Editora/Publifolha, 1999, 2 edio, p. 489.

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    ro e o toro recebe adornos diversos, dos quais os mais conhecidos so asfrutas tropicais. quase como se ela prpria representasse o Brasil e estessmbolos representassem a fora da religiosidade de origem africana naconstituio de nossa identidade. Outro recurso foi a minimizao dosvolumes da saia (ajustando-a ao quadril) e da bata (encurtando-a paradeixar ver a cintura) sublinhando as linhas do corpo e a sensualidade dadana. Podemos pensar numa reduo daquilo que na roupa da baiana de influncia portuguesa: as muitas e longas saias engomadas que escon-diam o corpo feminino. At os gestos com as mos, que ficaram imortali-zados em seus filmes30 lembram a dana em que Oxum, a deusa do amore da riqueza, levanta os braos e exibe dengosa e orgulhosamente aspulseiras e adornos que ela diz que tem. Por meio dessa representaoda baiana, associada ao ritmo contagiante de suas canes, geralmenteacompanhadas pelo Bando da Lua,31 Carmen Miranda moldou uma ima-gem da alma brasileira de natureza mestia e vibrante, reconhecvelde norte a sul:

    Ela diz que tem / tem cheiro de mato / tem gosto de coco / tem samba nasveias / tem balangands / [...] / tem a pele morena e o corpo febril / edentro do peito o amor do Brasil / Cantei em So Paulo / Cantei no Par/ Tomei chimarro e comi vatap / Eu sou brasileiro / Meu todo revela /Que a minha bandeira verde-amarela / [...] / Eu digo que tenho / Quetenho muamba / Que tenho no corpo um cheiro de samba / S falta paramim um moreno fagueiro / Que seja do samba e bom brasileiro.A afinidade com a magia expressa em Eu digo que tenho

    muamba, foi um tema cantado por Carmen Miranda em diversas msi-cas. Na letra do samba Etc. (de Assis Valente, 1933), essa afinidade sev nos versos em itlico:

    Bahia, que terra do meu samba / Quem nasce na Bahia bamba, bamba, / Bahia, terra do poeta, / Terra do doutor e etecetra./ Eu tenho

    30 Veja, entre outros, Banana da Terra (direo de Joo de Barro, Sonofilmes / Metro GoldwynMayer, Brasil, 1939), Serenata Tropical (Down Argentine Way, direo de Irving Cummings,20th Century Fox, EUA, 1940) e Uma Noite no Rio (That Night in Rio, direo de IrvingCummings, 20th Century Fox20th Century Fox, EUA, 1941).

    31 Conjunto musical que se apresentava vestido com camisetas listradas e chapus de palhinha,ou ternos e chapus brancos, trajes comumente usados pelos cariocas das classes pobres, squais era associada a malandragem.

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    tambm o meu valor (Ora se tenho) / E vivo com muita alegria, / Osamba meu av, macumba minha tia, / Sou prima do grande violo/ Sou bamba no batuque e no pandeiro, / Meu pai o homem da muamba,/ O grande e conhecido candombl (Bahia).

    Outro tema escolhido por ela e que tem ntima relao com ocandombl foi o da comida vendida pelas baianas, que inclua os mes-mos quitutes oferecidos aos orixs e conhecidos como comida de san-to. Nos tabuleiros das baianas havia o acaraj com vatap (comida votivade Ians), a canjica, o ek, o eb e o mungunz (de Oxal), o abar (deXang), o amal ou caruru (de Xang e de Ibeji), entre outras. Os no-mes dessas comidas, anunciados pelas baianas, muitas vezes em formade prego, aparecem em vrias letras cantadas por Carmen Miranda,inclusive no ttulo, como acontece em Canjiquinha quente (de RobertoMartins) e A preta do acaraj (de Dorival Caymmi). A mais conhecidadelas, no entanto, foi No tabuleiro da baiana, de Ary Barroso, gravadaem 1936 juntamente com Luiz Barbosa:

    No tabuleiro da baiana tem / Vatap, oi, caruru, / Mungunz, oi, temumbu... pra ioi. / Se eu pedir voc me d / O seu corao / Seu amor deiai? / No corao da baiana tem / Seduo, oi, canjer, / Iluso, oi,candombl / Pra voc / Juro por Deus, pelo Senhor do Bonfim, / Querovoc baianinha, inteirinha pra mim / E depois, o que ser de ns dois?/ Teu amor, to fugaz, enganador. / Tudo j fiz, fui at num canjer, /Pra ser feliz, meus trapinhos juntar com voc / E depois? Vai ser maisuma iluso / No amor quem governa o corao.

    Carmen Miranda gravou muitas composies do baiano DorivalCaymmi, que tambm cantou suas prprias canes com grande aceita-o nacional. Alm da Bahia, os temas da vida litornea, do cotidianodos pescadores, dos mistrios do mar e da religiosidade a eles associa-da, como a devoo a Iemanj, aparecem em alguns dos mais lricosversos da msica popular brasileira. o caso de doce morrer nomar (1943) e Quem vem pra beira do mar (1954). Em Dois de feve-reiro (1957), ttulo que se refere data de comemorao de Nossa Se-nhora dos Navegantes, associada Iemanj, Caymmi mostra a profundadevoo deusa do mar e registra uma das mais populares festas baianas.

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    Dia dois de fevereiro / Dia de festa no mar / Eu quero ser o primeiro / Asaudar Iemanj / [...] / Escrevi um bilhete a ela / Pedindo pra ela meajudar / Ela ento me respondeu / Que eu tivesse pacincia de esperar /O presente que eu mandei pra ela de cravos e rosas vingou / Chegou,chegou, chegou / Afinal que o dia dela chegou.

    Dorival Caymmi foi um dos responsveis, tambm, pela introdu-o de artistas, posteriormente, no universo do candombl, do qual fa-zia parte na honrosa condio de ministro (ob) de Xang do terreirobaiano Ax Op Afonj. O Canto de Ob (gravado por ele em 1972,com letra de Jorge Amado, tambm ob de Xang), expressa essa con-dio e a reverncia aos orixs como deuses do povo: Meu pai Xang, meu pai Xang, meu pai / meu pai Xang, meu pai/ [...] / Protegeteu filho Ob de Xang / Seu Ob Otum Onikoyi32 / Que tanto precisa,precisa de ti.

    Entre as dcadas de 1930 e 1950 o crescimento das indstriasfonogrfica e cinematogrfica e da radiodifuso trouxe consigo um gran-de impulso na produo da msica popular brasileira. Neste contexto asreferncias ao universo religioso afro-brasileiro cresceram e praticamentetodos os grandes intrpretes gravaram alguma cano aludindo ao tema.Orlando Silva gravou Despacho (de Ari Barroso) em 1940; DircinhaBatista, em 1950, gravou Salve Ogum (de Mrio Rossi e Pernambuco),Macumba Geg (de Sinh) e, em 1953, Feitiaria (de Custdio Mesqui-ta e Evaldo Rui); Dalva de Oliveira gravou Babal33 (de MargaritaLecuona e Humberto Porto, em 1943); gravada tambm por ngela Mariaem 1958 e Luiz Gonzaga, Rei Bantu (dele e Z Dantas, em 1950),entre outros.

    A letra de Pisei num despacho (1947), de Geraldo Pereira eElpdio Viana, interpretada inicialmente por Ciro Monteiro e regravadapor Roberto Silva (1963) e Jackson do Pandeiro (1981), ilustrativa darelao entre as religies afro-brasileiras e o universo da msica popu-

    32 Os obs de Xang so ogs escolhidos entre celebridades, do mundo religioso ou no, que tmcomo atribuio auxiliar o culto de Xang e estabelecer relaes diplomticas com a comuni-dade. Oba Otum Onikoyi refere-se ao cargo ocupado pelo compositor como brao direito doOb Onikoyi.

    33 Nome do orix Obaluai em Cuba.

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    lar desse perodo ao contar as conseqncias negativas, para um sam-bista, de um incidente ocorrido no plano religioso.

    Desde do dia em que passei / Numa esquina e pisei num despacho /Entro no samba meu corpo t duro / Bem que procuro a cadncia e noacho / Meu samba e meu verso no fazem sucesso / H sempre umporm / Vou gafieira fico a noite inteira / No fim no dou sorte comningum / Mas eu vou num canto / Vou num pai-de-santo / Pedir qual-quer dia / Que me d uns passes / Uns banhos de erva e uma guia / Estaqui no endereo / Um senhor que eu conheo / Me deu h trs dias / Omais velho batata / Diz tudo na exata / uma casa em Caxias.Nesse perodo as msicas abordam a religiosidade afro-brasileira

    em termos de seu carter extico, instrumental e misterioso. Esse uni-verso, quando visto nas letras das msicas, aparece ainda desorganiza-do e fragmentado, mas deixando-se pressentir pelas aluses, pelo ritmo,pelo tom, pelas entrelinhas. Nas dcadas seguintes essa religiosidade,impulsionada pela crescente visibilidade adquirida pela umbanda, so-bretudo no sudeste, e pela continuada e crescente tematizao do can-dombl, sobretudo nos meios artstico e acadmico, foi, aos poucos,conquistando legitimidade entre as classes mdias e brancas sendo can-tada em novas verses.

    Upa, Neguinho. Religio e ideologia.Nos anos de 1960, a msica popular brasileira se encontrava num pontoprivilegiado de seu desenvolvimento. Absorvendo musicalidades de vri-as origens e gneros (como o rock, pop, black music, baladas italianas,etc.) e diversificando seus prprios caminhos, surgem os movimentos daJovem Guarda, Bossa Nova, Tropicalismo, a msica de protesto e devanguarda dos Festivais, entre outros. Os elementos das religies afro-brasileiras aparecem nas msicas de praticamente todos esses movimen-tos. Mesmo na Jovem Guarda, que recebeu influncia norte-americana dorock e do i-i-i, em um dos seus sucessos nacionais, Feitio de broto(1966), de Carlos Imperial, ouvia-se, na voz de Rosemary, conhecida comoA fada loira, os versos:

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    Sexta-feira enluarada / Bem na sua encruzilhada / Um feitio novo euvou botar / Meu feitio vai ser forte / Vai mudar a minha sorte / Vaifazer voc de mim gostar / Uma rosa amarela, dentre todas a mais bela,para o meu feitio enfeitar/ Vou pedir ao pai-de-santo / Muita reza emseu quebranto / E fazer voc pra mim voltar / Oxal vai me ajudar [...]Sendo broto ento eu acho / Moderninho o meu despacho / Eu garantoque no vai falhar / Amarrei o seu retrato / No bigode do meu gato / Eleno parou mais de miar / Suas cartas eu rasguei / E os retratos eu joguei/ Onde voc vai ter que passar / Vou pedir ao pai-de-santo / Muita rezaem seu quebranto / E fazer voc pra mim voltar / Oxal vai me ajudar.A partir de 1964, com a instaurao do Regime Militar, o meio

    artstico musical mais engajado politicamente usou os temas da religio-sidade afro-brasileira como forma de falar s classes populares, seja emtermos de potencial de unio e mobilizao dessas religies, seja comoreferncia para ao transformadora mais efetiva.

    Em Dia de Festa, composta pelos militantes esquerdistas Ge-raldo Vandr e Moacyr dos Santos, a devoo a Iemanj aparece comopossibilidade de encontro renovador das esperanas em dias melhores:

    Hoje dia de festa! / Todos vo se encontrar / Toda dor, todo pranto /Hoje vai se acabar / Vai sentir a beleza / Joga as flores no mar / Deixatoda tristeza / Nos seios de Iemanj / vai que Nossa Senhora / Pode nosproteger / Vai e no te demora / Que j vai amanhecer / Vai e voltacontente / Todos vo te esperar / Traz amor pra essa gente / C da beirado mar.

    Em Upa, Neguinho, cano de Edu Lobo e GianfrancescoGuarnieri, composta para a pea Arena Conta Zumbi (encenada nocontestador Teatro de Arena de So Paulo, em 1964), a capoeira, a ma-gia e a valentia so vistas como formas negras de luta, mesmo quando aliberdade s pode ser vislumbrada.

    Upa!, neguinho na estrada / Upa!, pra l e pra c / Virge, que coisa maislinda! / Upa!, neguinho comeando a and / Comeando a and, come-ando a and / E j comea a apanh / Cresce, neguinho e me abraa /Cresce e me ensina a cant / Eu vim de tanta desgraa / Mas muito teposso ensin / Capoeira, posso ensin / Ziquizira, posso tir / Valentia,posso emprest / Mas liberdade s posso esper.

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    Nessa msica, a utilizao de expresses como ziquizira (ter-mo que na umbanda significa feitio) e a omisso de erres no final daspalavras (ensin em vez de ensinar, por exemplo), incomum emgravaes da poca, indica a opo por um tipo popular de fala quepode ser associada linguagem e experincia dos pretos-velhos, con-cebidos na umbanda como espritos de ex-escravos. Com sua magia eensinamento, eles orientam os necessitados com aconselhamento e es-perana.

    Outras letras, contudo, expressam pontos de vista mais aguerri-dos como formas de ao para modificar a realidade social. Na letra deEsse mundo meu (de Sergio Ricardo e Ruy Guerra), o orix guerrei-ro Ogum saudado e invocado, nas vozes marcantes de Elis Regina eJair Rodrigues, para combater a escravido em todos os sentidos e seapropriar do mundo para todos.

    Esse mundo meu / Esse mundo meu / Escravo no mundo em que sou/ Escravo no reino em que estou / Mas acorrentado ningum pode amar/ Mas acorrentado ningum pode amar / Sarav, Ogum / Sarav, Ogum/ Mandinga da gente continua / Cad o despacho pra acabar? / Santoguerreiro da floresta, / Se voc no vem, eu mesmo vou brigar / Sevoc no vem, eu mesmo vou brigar.

    Da mesma poca, Maria Moita, cano de Carlos Lyra e Vinciusde Moraes, feita para o musical Pobre menina rica, tambm pede ainterferncia de Xang, orix da justia, contra as desigualdades soci-ais: O rico acorda tarde / J comea a rezingar / O pobre acorda cedo /J comea a trabalhar / Vou pedir pro meu babalorix / Pra fazer umaorao pra Xang / Pra pr pra trabalhar / Gente que nunca trabalhou.

    A cosmologia dos orixs, associada a categorias culturais, comoa guerra, justia, valentia etc., permitiu que Canto de Ossanha (deBaden Powell e Vincius de Moraes) fosse usada nos anos de 1960 deforma emblemtica. O canto desse orix, tido como feiticeiro e mestrena arte da iluso, serviu como advertncia contra os vrios discursos epromessas pelos quais no se deve deixar seduzir.

    O homem que diz dou, no d / Porque quem d mesmo no diz / Ohomem que diz vou, no vai / Porque quando foi j no quis / O homem

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    que diz sou, no / Porque quem mesmo no sou / O homem quediz t, no ta / Porque ningum t quando quer / Coitado do homemque cai / No canto de Ossanha traidor / Coitado do homem que vai atrsde mandinga de amor / [...] / Amigo, senhor, sarav / Xang me man-dou lhe dizer / Se canto de Ossanha, no v / Que muito vai se arre-pender / Pergunte pro seu orix / Amor s bom se doer.

    nessa poca tambm que surgem Os Afro-sambas, num discoconsiderado um marco da presena das religies afro-brasileiras na MPB.Reunindo um conjunto de msicas de inspirao religiosa, compostaspor Baden Powell e Vincius de Moraes, nele constam, entre outros,cantos aos orixs (Exu, Ossanha, Xang e Iemanj), ao caboclo Pedra-Preta34 e pombagira Labareda. Esse disco surgiu a partir do contatodos autores com os toques de berimbau e a musicalidade dos terreiros.Baden reinterpretou para violo os ritmos aprendidos, em composiess quais Vincius de Moraes acrescentou letras. Para Vincius o contatocom os ritos e ritmos do candombl representou uma virada em suatrajetria marcada pelo mundo de classe mdia urbana carioca de ondesurgira a Bossa Nova.35 A aproximao destes j conceituados artistasdo universo religioso afro-brasileiro ampliou sua visibilidade e legiti-midade a partir da dcada de 1960, momento em que estas religiesconquistavam novos espaos, sobretudo entre a classe mdia dos cen-tros urbanos. No final desta dcada surgiu, por exemplo, o LP Gente daantiga, Pixinguinha, Joo da Baiana e Clementina de Jesus, reunindoum conjunto de regravaes de msicas inspiradas em ritmos e temas deterreiro como a j mencionada Ya e Mironga36 de moa branca.

    Vincius de Moraes, dizendo-se o branco mais preto do Brasil epedindo a bno a um Brasil branco, preto, mulato, lindo como a pelemacia de Oxum,37 exemplificava a possibilidade de converso da clas-

    34 Caboclo de Joozinho da Gomia, pai-de-santo baiano, famoso no Rio de Janeiro neste per-odo. Veja Raul Lody e Vagner Gonalves da Silva, Joozinho da Gomia, o ldico e o sagra-do na exaltao do candombl, in Vagner Gonalves da Silva (org.), Caminhos da alma.Coleo Memria afro-brasileira, vol 1 (So Paulo, Summus/Selo Negro, 2002), pp. 153-81.

    35 Jos Castelo, Vincius de Moraes. O poeta da paixo, uma biografia, So Paulo, Companhiadas Letras, 1994, p. 252.

    36 Mironga, corruptela de milonga, que no idioma quimbundo significa feitio, sortilgio, con-flito.

    37 Verso de Samba da Bno, de Vincius de Moraes e Baden Powell (1963).

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    se alta, escolarizada e branca a uma religio at ento tida como denegros e pobres. Em parceria com Toquinho, comps, nas dcadas se-guintes, muitas letras sobre os orixs e seus ritos. Em guas de Oxa-l, Vincius narra uma desiluso amorosa por meio do mito da traiode Ians (deusa das tempestades) que seduz Xang (deus do trovo),irmo de seu marido, Ogum. como se o poeta sentisse a tristeza deOgum (impiedoso deus da guerra), que chora diante da morte deste amor,representada pelas figuras de Obaluai e Omolu (avatares associados sdoenas e aos cemitrios). A cena da traio se passa durante o ritual dasguas de Oxal,38 no qual as filhas-de-santo em procisso carregamquartinhas brancas com gua para lavar os assentamentos (representa-es materiais) de Oxal. O poeta parece invocar a natureza dos orixse de seus elementos naturais para delinear as emoes do drama:

    Atot, Obaluai / Atot, Bab / Vem das guas de Oxal / Essa mgoaque me d / Ela parecia o dia / A romper da escurido / Linda no seumanto todo branco / Em meio procisso / E eu que ela nem via / AoDeus pedia amor e proteo / Meu pai Oxal o rei / Quer me valer / Eo velho Omolu / Atot, Obaluai / Que vontade de chorar / No terreirode Oxal / Quando dei com minha ingrata / Que era filha de Ians /Com a sua espada cor de prata / Em meio multido / Cegando Xangnum balanceio / Cheio de paixo / Atot, Obaluai / Atot, Bab.

    O deslumbramento do poeta com o mundo do candombl expres-sa-se, tambm, no samba A bno, Bahia, em que so saudadas asmes-de-santo: Senhora, do terreiro Op Afonj, Menininha do Gantoise Olga do Alaketo, ao lado dos orixs:

    Olor! Bahia / Ns viemos pedir sua beno, sarav / Eparrei, meuguia / Ns viemos dormir no colinho de Iemanj / Nan Boroko fazerum buland / Ef, caruru e alu / Pimenta bastante pra fazer sofrer /Bastante mulata pra amar / Fazer junt / Meu guia, h / Seu guia, h /

    38 Este ritual rememora o mito no qual Oxaluf (avatar ancio de Oxal) preso por engano noreino de seu amigo (ou filho, em alguns mitos) Xang, causando um perodo de infortnios aolugar. Ao saber disso, Xang liberta seu amigo, ordenando aos seus sditos que fossem, vesti-dos de branco e em silncio em sinal de respeito, buscar gua trs vezes seguidas a fim debanhar Oxal. O ritual das guas de Oxal revive este mito: Pierre Verger, Orixs, Salvador,Corrupio, 1981, p. 260.

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    Bahia! / Sarav, Senhora / Nossa me foi se embora pra sempre doAfonj / A rainha agora / Oxum, a me Menininha do Gantois / Pedi me Olga do Alakto, h / Chama Inhans para danar / Xang, reiXang, Kabueciel / Meu pai Oxal,39 Epa Bab! / A bno, me /Senhora me / Menina me Bahia / [...]

    Em outra cano, Maria vai com as outras, Vincius e Toquinhocontam a histria de uma filha-de-santo do terreiro do Gantois que, poresquecer de levar perfume e flores para o seu orix, Iemanj, punidacom a perda de seu amor. Os orixs so complacentes com as fraquezashumanas, mas nem sempre perdoam quem se esquece de cultu-los.

    Maria era uma boa moa / Pra turma l do Gantois / Era Maria vai comas outras / Maria de coser, Maria de casar / Porm o que ningum sabia/ que tinha um particular / Alm de coser, alm de rezar / Tambm eraMaria de pecar / Tumba-, caboclo, tumba l e c / Tumba-, guerreiro,tumba l e c / Tumba-, meu pai, tumba l e c / No me deixe s,tumba l e c / Maria que no foi com as outras / Maria que no foi promar / No dia dois de fevereiro / Maria no brincou na festa de Iemanj/ No foi jogar gua de cheiro / Nem flores pra sua orix / A, Iemanjpegou e levou / O moo de Maria para o mar.

    No final da dcada de 1960, o considervel aumento do nmerode msicas que usavam de alguma forma termos do universo religiosoafro-brasileiro constituiu um amplo repertrio que, visto em conjunto,pode ser entendido como uma forma de pedagogia das religies afro-brasileiras. Esse processo, que se prolongou pelas dcadas seguintes,estendeu para a sociedade pelos meios de comunicao que tambmse expandiam rapidamente signos, smbolos, valores, cdigos, pre-ceitos, enfim, termos da linguagem religiosa proveniente do mundo dosterreiros constituindo, desse modo, palavras-chaves para a compreen-so destas crenas.

    39 Sobre seu pai Oxal Vincius de Moraes comps o Canto de Oxaluf (1972), cujo contedoda letra versa sobre a sabedoria do orix da criao e da vida nas religies afro-brasileiras:Voc que sabe demais/Meu pai mandou lhe dizer/Que o tempo tudo desfaz/A morte nuncaestudou/ E a vida no sabe ler/Porque amor/No d pra ningum saber/Por que que h /Quem l e no sabe amar/Quem ama e no sabe ler/Voc que sabe demais/Mas que no sabeviver/Responda se for capaz: /Da vida, quem sabe mais? /Da morte, quem quer saber?.

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    Esta tendncia passou, ento, a ser explorada em diferentes seto-res da msica popular. Por exemplo, em S o Hme, de EdenalRodrigues, interpretado por Noriel Vilela, a letra reproduz uma consultade Preto-Velho, que ensina a um consulente, em sua linguagem tpica,como desfazer um feitio. Este s pode ser desfeito por Exu (o Home),dono da encruzilhada onde deve ser depositada a oferenda de uma gar-rafa de marafo (cachaa). A letra explica as razes do feitio (umacandonga, isto , uma fofoca) e mostra que nas religies afro-brasilei-ras, diferentemente de outras religies, possvel conseguir ajuda, mes-mo quando no se teve um comportamento exemplar. A letra dessamsica explicita detalhadamente como desfazer uma ziquizira:

    Ah, mo fio do jeito que sunc t / S o home que pode te ajud / Ah, mofio do jeito que sunc t / S o home que pode te ajud / Sunc compraum garrafa de marafo / Marafo que eu vai diz o nome / Meia noitesunc na encruziada / Destapa a garrafa e chama o hme / O galo vaicant, sunc escuta / Reia tudo no cho que t na hora / E se gualdanotuno vem chegando / sunc ia pra ele que ele vai andando / [...] / Euestou ensinando isso a sunc / Mas sunc num tem sido muito bo /Tem sido mau fio, mau marido / Inda puxa-saco de patro / Fez candongade cumpanheiro seu / Ele bot feitio ni sunc / Agora s o hme meia-noite / que seu caso pode resolv!Essa pedagogia das religies afro-brasileiras teve, na dcada

    de 1970, dois grandes mestres: Clara Nunes e Martinho da Vila quegravaram os maiores sucessos entre as msicas com esse tema.

    Macumba l minha casa tem galinha preta, azeite dedend. Religio e reconhecimento nacional.Clara Nunes surgiu como uma espcie de reedio da baiana de Car-men Miranda, imprimindo-lhe um contedo religioso mais evidente.Apresentava-se, freqentemente, descala e vestida de filha-de-santoestilizada, usando saia rodada de renda branca, colares e figas, pulseirase, na cabea, diademas de conchas, palhas e flores.40 A Deusa dos40 Sobre esta cantora, veja Rachel Rua Baptista, Tem orix no samba, Clara Nunes e a presena

    do candombl e da umbanda na msica popular brasileira, (Dissertao de Mestrado, Uni-versidade de So Paulo, 2005).

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    Orixs (de Romildo e Toninho) foi seu maior sucesso e, provavelmen-te, sua mais conhecida cano. Nela, conta-se uma verso do mito, jreferido acima, que envolve o tringulo amoroso formado por Ogum,Ians e Xang. Nesta variante, Xang vence a disputa e faz de Ians arainha de sua coroa.

    Ians, cad Ogum? / Foi pro mar / Mas, Ians, cad, Ogum? / Foi pro mar / Ians penteia os seus cabelos macios / Quando a luz dalua cheia / clareia as guas dos rios / Ogum sonhava com a filha deNan / E pensava que as estrelas / Eram os olhos de Ians / [...] / Naterra dos orixs / O amor se dividia / Entre um deus que era de paz / Eoutro deus que combatia / Como luta s termina / Quando existe umvencedor / Ians virou rainha / Da coroa de Xang / [...]

    Em outro sucesso, Afox pra Logun (de Nei Lopes), Clara Nunesnos ensina quem esse orix: menino, filho de Oxssi (deus das matase da caa, que se veste de azul) com Oxum (deusa do ouro e dos rios).Considerado uma divindade que alterna sua existncia vivendo ora nasmatas, ora nas guas doces dos rios, Logun expressa a fuso dos atribu-tos de seus pais. Para conseguir o ax da beleza e da riqueza, do qualLogun detentor, preciso oferecer-lhe seus pratos preferidos: axox eonj (feitos de coco e milho) e omolucum (feito com feijo fradinho eovos). O ritmo desta cano o ijex, ao som do qual Logun dana nosterreiros, sendo saudado com a expresso: Fara, Logun!.

    Menino caador / Flecha no mato bravio / Menino pescador / Pedra nofundo do rio / Coroa reluzente / Todo ouro sob o azul / Menino onipo-tente / Meio Oxssi, meio Oxum / , , / Quem que ele ? / Ah, ah,ah, ah / Onde que ele est? / Ax, menino, ax! / Fara Logun!, FaraLogun f! / Menino, meu amor / Minha me, meu pai, meu filho / Tomateu axox / teu onj de coco e milho / Me d o teu ax / Que eu te douteu omulucum / Menino doce mel /Meio Oxssi, meio Oxum.

    Cantando a temtica afro-brasileira, Clara Nunes, inevitavelmen-te, aproximou-se da infinidade de elementos mgicos presentes nas pr-ticas msticas do cotidiano brasileiro. A msica Banho de manjerico,de Joo Nogueira e Paulo Csar Pinheiro, mostra uma sntese das maisconhecidas maneiras de se livrar do mal e obter proteo:

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    Eu vou me banhar / De manjerico / Vou sacudir a poeira do corpobatendo com a mo / E vou voltar l pro meu congado / Pra pedir prosanto pra rezar quebranto e cortar mau-olhado / Eu vou bater na madei-ra trs vezes com o dedo cruzado / Vou pendurar uma figa no ao domeu cordo / Em casa um galho de arruda que corta / Um copo dguano canto da porta / A vela acesa e uma pimenteira no porto / [...] / Ecom vov Maria que tem simpatia pra corpo fechado / com Pai Bene-dito que benze os aflitos com o toque de mo / E Pai Antnio curadesengano e tem a reza de So Cipriano / E tem as ervas que abre oscaminho pro cristo.

    Clara Nunes gravou, alm destas canes, muitos outros suces-sos, tendo sido a primeira brasileira a ultrapassar a cifra de cem mildiscos vendidos, quebrando um velho tabu reverenciado pelas grava-doras.41 A marca de sua obra o elogio mestiagem,42 naturezabrasileira e exaltao do misticismo de origem africana. Alm do reco-nhecimento nacional, teve acolhimento pelo povo-de-santo como umaautntica porta-voz de sua viso de mundo. Sua morte prematura, em1983, em razo de uma complicao cirrgica, foi interpretada pelo povo-de-santo como conseqncia de feitios e/ou punio religiosa por que-bra de princpios rituais.

    Martinho da Vila, por sua vez, surgiu nesse perodo enfatizando,desde os seus primeiros sucessos, os valores da ascendncia africana noBrasil. Sua perspectiva se tornou, com o passar do tempo, a de um usopoltico afirmativo desses valores. Em Casa de Bamba, de 1969, pr-ticas estigmatizadas das religies afro-brasileiras (macumba com gali-nha preta e azeite de dend) so assumidas com orgulho ao lado daalegria do samba, da devoo aos santos catlicos e da solidariedadenos bons e maus momentos.

    Na minha casa todo mundo bamba / Todo mundo bebe todo mundosamba / Na minha casa no tem bola pra vizinha / No se fala do alheio,

    41 Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, A Cano no Tempo: 85 anos de msica brasileira,vols. 1 e 2, So Paulo, Editora 34, 1997, p. 160.

    42 Clara utilizou com freqncia este tema em seus trabalhos, como no LP Brasil Mestio(1980) e no show Clara Mestia (1981). Sobre a relao artstica e pessoal de Clara Nunescom as religies afro-brasileiras, veja Baptista, Tem orix no samba.

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    nem se liga pra Candinha / Na minha casa ningum liga pra intriga /Todo mundo xinga, todo mundo briga / Macumba l minha casa / Temgalinha preta, azeite de dend / A ladainha l da minha casa / Tem rezabonitinha e canjiquinha pra comer / Se tem algum aflito / Todo mundochora, todo mundo sofre / Mas logo se reza pra So Benedito / PraNossa Senhora e pra Santo Onofre / Mas se tem algum cantando /Todo mundo canta, todo mundo dana / Todo mundo samba e ningumse cansa / Pois minha casa casa de bamba

    Martinho tambm levou para fora dos terreiros pontos (cantigas)de umbanda que louvam Exu, caboclos, pombagiras e outras entidades.A msica Festa de Umbanda, de 1969, reuniu alguns deles:

    O sino da igrejinha / Faz belm blem blo / Deu meia-noite / O galo jcantou / Seu Tranca Rua / Que dono da gira / Oi corre gira / QueOgum mandou. (Ponto de Exu Tranca Rua)Tem pena dele / Benedito tenha d / Ele filho de Zambi / , SoBenedito tenha d / Tem pena dele Nan / Tenha d / Ele filho deZambi / , Zambi tenha d. (Ponto de Nan)Foi numa tarde serena / L nas matas da Jurema / Que eu vi o caboclobradar / Qui / Qui, qui, qui, quiera / Sua mata est em festa / Sarav,seu Mata Virgem / Que ele rei da floresta / [...] / Sarav, seu Cachoei-ra / Que ele rei da floresta. (Ponto dos Caboclos Mata Virgem e Ca-choeira)Vestimenta de caboclo / samambaia / samambaia, samambaia /Saia, caboclo / No me atrapalha / Saia, do meio / Da samambaia. (Pontode chamamento de Caboclo)

    So dele, tambm, as msicas Camafeu (1971), em homena-gem ao famoso capoeirista baiano Camafeu de Oxossi, e Jubiab,(1972) provavelmente a primeira cano intitulada com o nome de umpai-de-santo. O nome deste sacerdote, que viveu na Bahia, foi ttulo,anteriormente, de um dos mais famosos romances de Jorge Amado.43

    43 Este romance publicado em 1935 foi posteriormente filmado por Nelson Pereira dos Santos(1985) com trilha sonora composta por Gilberto Gil da qual consta a cano tambm intituladaJubiab.

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    O homem tem dois olhares / Um enxerga e o outro v / Tem o olho damaldade / E o olho da piedade / Tem que ter olho bem grande / Prapoder sobreviver / Jubiab, , Jubiab / Faz um feitio bem feito / Praminha nega voltar / [...] / No morro do Capa-Nego / Quero lhecambonear44 / Se secar o olho da maldade / O homem vai sofrer / Sementender a ruindade do mundo / Que seu lado bom vai ver / E sem oolho da piedade / Vai fazer gente sofrer / Magoar, ferir, sem refletir / Ebem mais cedo vai desencarnar / Subir / [...] / Quero meus olhos aber-tos / Quero bem longe enxergar / Vendo o errado e o certo / Possodiferenciar / [...]

    Essa letra se refere aos ensinamentos de Pai Jubiab sobre os doislados do homem, revelando a cosmoviso das religies afro-brasileirasna qual o bem e o mal constituem valores morais relativos, simtricos ecomplementares. O bem, que se pede aos orixs, por exemplo, pode vira ser o mal de algum. E mesmo o mal presente pode tornar-se um bemfuturo. Saber reconhecer a bondade e a maldade humanas fundamen-tal para nortear as escolhas. Para estas religies, privilegiar apenas umdos lados pode levar ao engano ou ao sofrimento, uma vez que o serhumano ambguo e s pode ser visto de uma perspectiva tambm dual.

    Martinho da Vila gravou muitos outros sambas nos quais os valo-res afro-brasileiros so enaltecidos, procurando vincular sempre quepossvel sua obra s origens africanas, sobretudo as dos pases bantos,como Angola e Moambique. Em seu trabalho a religio vista comoum elemento de construo e valorizao da identidade negra, como seviu no projeto Kizomba (festa, em quimbundo) e nos Encontros Inter-nacionais de Arte Negra por ele liderados nos anos de 1980. Os encon-tros foram desenvolvidos junto escola de samba Vila Isabel, da qual ocompositor membro, e com a participao de personalidades como aex-senadora e governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, osatores Antnio Pitanga, Milton Gonalves, Jorge Coutinho e outros.Nesse projeto, divulgou-se a cultura afro-brasileira, tendo como eixocentral a msica popular de origem africana (caxambu, jongo, calangoetc.) e o festejar a ela relacionado.

    44 Auxiliar uma entidade espiritual durante sesso de atendimento aos fiis.

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    Ao lado de Clara Nunes e Martinho da Vila, nas dcadas de 70 e80, multiplicaram-se as gravaes comerciais com temas afro-brasilei-ros. So deste perodo as msicas que imprimiram um carter secular elegtimo a essa religiosidade, pelo menos do ponto de vista musical. Emgeral, tratava-se de sambas retomando termos j utilizados em outraspocas, como feitio amoroso e fortalecimento pessoal; agora, porm,de forma mais explcita. Tornou-se comum os cantores gravarem com-posies com menes a suas entidades protetoras, fossem eles conver-tidos, ou no, s religies afro-brasileiras. Ronnie Von, por exemplo,que alcanou o sucesso cantando verses das baladas romnticas dosBeatles, surpreendeu o pblico quando gravou, em 1972, Cavaleiro deAruanda na qual homenageia seu orix, Oxossi: Quem o cavaleiro /Que vem l de Aruanda45 / Oxssi em seu cavalo / Com seu chapu debanda / [...] / Ele filho do verde / Ele filho da mata / Sarav, NossaSenhora / A sua flecha mata.

    O cantor Luiz Amrico comps, juntamente com Braguinha, Fi-lho da Via,46 (1976) referindo-se sua orix Nana.

    Sou filho da via / Eu no pego nada / A via tem fora, / Na encru-zilhada / No bati mais meu carro / Tem sempre uma grana e mulher demonto / T sempre coberto dos ps cabea / Nego me encosta caiduro no cho / Com sete pitada da sua cacimba / Marafo e dend / Umbanho de arruda todinho cruzado / Na minha horta s tem que chover /Quem quiser que acredite / Ou ento que deixe de acreditar / A foraque ela me deu / S ela quem pode tirar / Veno e no sou vencido /Aqui neste reino e em qualquer lugar / Os zio de inveja de boimandingueiro / A via levou pro fundo do mar.

    Ruy Mauriti tendo entrado em contato com alguns terreiros demacumba cariocas47 utilizou alguns pontos para compor as msicasXang, o vencedor (dele e de Jos Jorge), na qual cantou seu orix(Por detrs daquela serra / Tem uma linda cachoeira / de meu paiXang / Que arrebentou sete pedreiras) e Nem ouro, nem prata (1976),

    45 Pas mtico onde vivem certas entidades cultuadas nos ritos de origem banto e na umbanda.46 Forma carinhosa de se referir a Nan, orix feminino tido como uma anci ancestral.47 Severiano e Mello, A Cano no Tempo, p. 222.

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    em homenagem a Oxssi (Eu vi chover, eu vi relampear / Mas mesmoassim o cu estava azul / Samborepema folha de Jurema / Oxssi reinade norte a sul).

    Alguns artistas se envolveram mais profundamente com a religio,mostrando sinais pblicos de converso, como Clara Nunes e LuizAmrico. Este chegou a se apresentar em shows, durante um certo pero-do, vestido de branco e protegendo a cabea, raspada por preceito religi-oso, sob um bon. A atitude desses cantores, tornando ou no pblica suaconverso, reproduzia um comportamento comum na sociedade brasilei-ra, em que as pessoas nem sempre revelam sua aproximao das religiesafro e os diferentes graus de envolvimento que com elas mantm.

    As msicas com esse tema tiveram diferentes influncias na car-reira dos cantores e compositores. Alguns tiveram grande e fugaz suces-so com ele, abandonando-o em seguida; outros o incorporaram definiti-vamente ao seu repertrio. Entre os primeiros, podemos citar CludioFontana, que comps, com Tio da Vila, o samba Santo Forte (c. 1977),gravado pelo grupo Garra Brasileira; o trio Os Tincos que gravouPromessa ao Gantois (1976), de Mateus e Dadinho, alm de vriasoutras com temas afro-religiosos; Maria Creuza com Odum (1980),de Walter Queirz, Catend (1972) e Ossain (Bambox) (1972), deAntonio Carlos e Jocafi, os quais por sua vez gravaram Oxossi Rei(1977), Or mi mai (1980) e outras; Wando com Nga de Obaluai(1975); Alcione gravou Canto do mar (1982), de Totonho e PaulinhoResende; entre muitos outros. Entre os vrios cantores que incorpora-ram o tema sua carreira, alm dos j citados Clara Nunes e Martinhoda Vila, esto Joo Bosco, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethniae Gal Costa.

    Joo Bosco, em parceria com Aldir Blanc, comps um repertriocujas canes em geral aludiam diretamente ao cotidiano popular, espe-cialmente o carioca. Neste contexto, o ethos e a magia afro-brasileirossurgem necessariamente com fora em meio s intrigas amorosas, pai-xes por times de futebol, jogo do bicho, escolas de samba etc. Incom-patibilidade de Gnios (1976), por exemplo, mostra o feitio amoroso,conhecido como amarrao, como explicao dada pelo marido paramanter-se preso mulher com quem se declara incompatvel: Dot /

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    Jogava o Flamengo / Eu queria escutar / Chegou / Mudou de estao /Comeou a cantar. / [...] / Levou / As minhas cuecas prum bruxo rezar/ Coou / meu caf nas calas pra me segurar.

    J em Coisa Feita, de 1982, (sinnimo de feitio, macumba edespacho) a mulher quem enaltece seu poder de seduo pela magiade origem africana (vodum) o que a torna um avatar da Princesa doDaom: Sou bem mulher / de pegar macho pelo p / [...] / Fao man-dinga / Fecho os caminhos com as cinzas / Deixo biruta, lel da cuca, /Zureto, ranzinza / [...] / Sou avatar, Vodu / Sou de botar fogo / Princesado Daom.

    A msica Boca de Sapo (1979), por sua vez, mostra novamenteo envolvimento entre o amor e a magia, desta vez com o objetivo demorte como vingana pela traio. Nessa magia, a vtima personifica-da num sapo que no pode se alimentar, at morrer. A vingana perpe-trada sob a inspirao de Exu Caveira (associado morte).

    Costurou / Na boca do sapo / Um resto de angu / A sobra do prato queo pato48 deixou / Depois deu de rir feito Exu Caveira: / Marido infielvai levar rasteira / E amarrou / As pernas do sapo com a guia de vidro/ Que ele pensava que tinha perdido / Depois deu de rir feito Exu Ca-veira / Marido infiel vai levar rasteira / Tu t branco, Honorato, quenem cal, / Murcho feito o sapo, Honorato, / No quintal / Do teu riso,Honorato, nem sinal / Se o sapo dana, Honorato, / tu babau49 / De-finhou / e acordou com um sonho / contando a mandinga, / e falou pradoida: meu santo me vinga. / Mas ela se riu feito Exu Caveira: / / Ma-rido infiel vai levar rasteira / Implorou: Patroa, perdoa. / Eu queroviver. / Afasta meus olhos de Obaluai / Mas ela se riu feito Exu Ca-veira: / Marido infiel vai levar rasteira / T virando, Honorato, vara-pau, / seco como o sapo, Honorato / No quintal / Figa, reza, Honorato,o escambau / Nada salva o sapo, Honorato, / desse mal.

    Joo Bosco amplia os usos do tema mostrando, mais do que osimples feitio, as vrias dimenses da religio na vida das pessoas. EmGenesis (1977), composta com Aldir Blanc, v-se a presena e influ-ncia dos orixs no destino humano desde o nascimento.48 Gria que significa pessoa tola, ingnua.49 Acabou-se, foi-se. Nos babaus e batuques, chefe de terreiro e imolador ritual.

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    Quando ele nasceu / foi no sufoco... / Tinha uma vaca, um burro e umlouco / que recebeu Seu Sete...50 / Quando ele nasceu / foi de teimoso /com a manha e a baba do tinhoso / Chovia canivete... / Quando ele nasceu/ Nasceu de birra... / Barro ao invs de incenso e mira, / Cordo cortadocom gilete / Quando ele nasceu / Sacaram o berro, / Meteram faca, / Ergue-ram ferro... / Exu falou: ningum se mete! / Quando ele nasceu / Tomaramcana, / Um partideiro puxou samba.../ Oxum falou: esse promete!

    possvel pensar, ainda, que essa letra faz uma analogia com agnese da prpria sociedade brasileira na qual a pobreza impe estrat-gias de sobrevivncia e a convivncia de conflitos e oposies. Apesardisso, pautada pelas paixes e pela festa 51 a sociedade que se mantmnesta dura realidade parece promissora, nas palavras da deusa do amor eda riqueza, Oxum.

    Em Tiro de Misericrdia (1983) e De frente pro crime (1975),ambas compostas com Aldir Blanc, Joo Bosco canta as mltiplas rela-es, em vrios nveis, entre a magia e o dia-a-dia brasileiro, marcadopelas noes de premonio, destino, vingana, violncia, crime e pai-xo, imponderveis aos quais a religio capaz de atribuir sentido. Naprimeira cano, uma espcie de pera afro-brasileira, o menino nasci-do no morro, criado no er [segredo] da macumba, com corpo fechadopor babalas, enfrenta a polcia, numa guerra real e mstica, auxiliadopelos orixs que trazem seus exrcitos de foras sobrenaturais repre-sentados por flechas, lanas, abelhas, cobras, doenas etc. O menino re-presenta os excludos aos quais s resta a vida rasteira (das ratazanas elagartixas), dentro da qual se torna lder (reizinho nag, p-de-chinelo)da contraveno. Ao mesmo tempo sintetiza todo o sofrimento e luta dosexcludos em geral, fazendo o mesmo papel dos mrtires, escravizados eresistentes contra a ordem dominante (arcanjos velhos e coveiros do carna-val). Na guerra pela sobrevivncia alia a violncia (com a qual responde prpria violncia dos tiros inimigos) f inspirada pelos orixs e a confian-a no corpo fechado. Questionando a violncia de seu abandono pela soci-

    50 Nome de um Exu na umbanda.51 Sobre o significado da festa na cultura brasileira veja Rita Amaral, Festa Brasileira. Senti-

    dos do festejar no pas que no srio, (Tese de Doutorado, Universidade de So Paulo,1998); disponvel on-line no URL: www.aguaforte.com/antropologia/festaabrasileira/festa.html.

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    edade e a necessidade de se lutar ainda mais contra o auto-abandono, ele sacrificado como os animais que, no candombl, representam a vida que seentrega em troca de uma vida melhor para os humanos e que tambm repre-sentam, diariamente, a esperana na mudana da sorte no jogo do bicho.

    O menino cresceu entre a ronda e a cana / correndo nos becos que nemratazana / entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha / subindo empedreira que nem lagartixa / Borel, Juramento, Urubu, Catacumba, / Nasrodas de samba, no er da macumba / Matriz, Querosene, Salgueiro,Turano, / Mangueira, So Carlos, menino mandando, / dolo de poeira,marafo e farelo, / Um deus de bermuda e p-de-chinelo, / Imperador dosmorros, reizinho nag, / O corpo fechado por babalas / Baixou Oxalufcom as espadas de prata, / com sua coroa de escuro e de vcio / BaixouCo-Xang com o machado de asa, / com seu fogo brabo nas mos decorisco / Ogunh se plantou pelas encruzilhadas / com todos seus ferros,com lana e enxada / E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos / e suasabelhas na beira da mata / E Oxum trouxe pedra e gua da cachoeira / emseu corao de espinhos dourados / Iemanj, o alumnio, as sereias domar / e um batalho de mil afogados. / Ians trouxe as almas e os venda-vais, / adagas e ventos, troves e punhais / Oxumar largou suas cobrasno cho / soltou sua trana, quebrou o arco-ris / Omolu trouxe o chumboe o chocalho de guizos / lanando a doena pra seus inimigos / E Nana-Buruqu trouxe a chuva e a vassoura / pra terra dos corpos, pro sanguedos mortos / Exus na capa da noite soltaram a gargalhada / e avisaram acilada pros Orixs / Exus, Orixs, menino, lutaram como puderam / masera muita matraca e pouco berro./ E l no horto maldito, no cho do /Pendura-Saia, / Zumbi, menino, Lumumba tomba da raia / mandandobala pra baixo contra as falanges do mal, / arcanjos velhos, coveiros docarnaval / Irmos, irms, irmozinhos, / por que me abandonaram? /Por que nos abandonamos / em cada cruz? / Irmos, irms, irmozinhos,/ nem tudo est consumado / A minha morte s uma: / Ganga, Lumumba,Lorca, Jesus... / Grampearam o menino do corpo fechado / e barbarizaramcom mais de cem tiros / Treze anos de vida sem misericrdia / e a mise-ricrdia no ltimo tiro / Morreu como um cachorro e gritou feito umporco / depois de pular igual a macaco / Vou jogar nesses trs que nemele morreu: / num jogo cercado pelos sete lados.Na segunda cano, um crime o epicentro em torno do qual

    cenas do cotidiano se sobrepem, banalizando-o em favor das oportuni-

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    dades que oferece. A analogia do tiro certo como um gol de futebol, osopostos que se tocam (malandro com trabalhador), o trabalho informal(do camel e da baiana), a fuso do sagrado com o profano (o santoincorporado numa personagem do carnaval), parecem compor um qua-dro visto com indiferena, da janela.

    Ta l o corpo estendido no cho / Em vez de rosto uma foto de um gol /Em vez de reza uma praga de algum / E um silncio servindo de amm/ O bar mais perto depressa lotou / Malandro junto com trabalhador / Umhomem subiu na mesa do bar / E fez discurso pra vereador / Veio camelvender anel, cordo, perfume barato / E baiana pra fazer pastel / e umbom churrasco de gato / Quatro horas da manh / baixou / o santo naporta-bandeira / E a moada resolveu / parar / e ento... / Sem pressa foicada um pro seu lado / Pensando numa mulher ou num time / Olhei ocorpo no cho e fechei / Minha janela de frente pro crime / [...]Alm destas canes, o repertrio de Joo Bosco e Aldir Blanc

    inclui muitas outras que utilizam as referncias afro-brasileiras como cen-trais na constituio de seus argumentos musicais. Esse repertrio, na lri-ca e na melodia, abre-se para as influncias das vrias religies afro-bra-sileiras que menciona, esboando, porm, uma proeminncia do ethoscarioca, presente nas citaes constantes malandragem, escolas de sam-ba, jogo do bicho, jocosidade, mestiagem etc. Como contraponto a estaviso das religies afro, alguns cantores baianos cantaram sob outras pers-pectivas, o mundo das heranas africanas na cultura brasileira.

    Eu vim da Bahia, mas algum dia eu volto pra l Ocandombl dos baianos na msica popular.At aqui vimos que a msica popular brasileira foi aos poucos incorpo-rando elementos da religiosidade afro-brasileira provenientes dos vri-os universos que a compem. inegvel a presena predominante deelementos que remetem umbanda, explicvel pelo maior nmero dereferncias religiosas que a constituem,52 tais como as tradies africa-

    52 Para uma introduo a estes aspectos da religiosidade afro-brasileira, veja Silva, Candombl eumbanda.

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    nas bantos, catlicas populares, indgenas, orientais etc. Inclusive o rit-mo de grande parte destas msicas o samba. Segue, paralelamente,outro movimento, iniciado pelo tropicalismo, de valorizao da fusode elementos culturais no qual o candombl baiano de tradio nagsurge como referncia privilegiada por sua antiguidade e disseminaoenquanto uma tradio que se pensa como pura e autntica. Nessapoca o candombl acentua o lento processo de legitimao iniciadonos anos de 1930, quando Dorival Caymmi e Carmen Miranda apresen-taram os orixs para o grande pblico como um elemento de identidadebrasileira. Como lembra Jos Jorge de Carvalho:

    Com o risco de levar o argumento muito longe, podemos algumas ve-zes falar de um paradoxo musical: os msicos populares querem com-por canes que se referem aos orixs da tradio iorub, mas quandoadotam o idioma da MPB, esto de fato trabalhando com uma gramti-ca mais intimamente ligada s razes estticas angolanas: variaes desamba, ritmos binrios, melodias que tm uma grande afinidade com orepertrio portugus, estrofes mais prximas de modelos ibricos; e atmesmo a harmonia, j efeito desse longo processo de fuso que ocor-reu durante todo o sculo XIX e que resultou no vasto, porm reconhe-cvel, mundo da msica popular brasileira.53

    Neste campo musical sobressaram os baianos Gilberto Gil, Cae-tano Veloso, Maria Bethnia e Gal Costa cantando o candombl do pon-to de vista de quem vive num ambiente social marcado por valores destareligio. Em Eu vim da Bahia, Gilberto Gil expressou alguns deles:

    Eu vim / Eu vim da Bahia cantar / Eu vim da Bahia contar / [...] / Como que se faz pra viver / Onde a gente no tem pra comer / Mas de fomeno morre / Porque na Bahia tem me Iemanj / De outro lado o Senhordo Bonfim / Que ajuda o baiano a viver / Pra cantar, pra sambar pravaler / Pra morrer de alegria / Na festa de rua, no samba de roda / Nanoite de lua, no canto do mar / [...]

    O candombl que eles cantam , sobretudo, o do rito queto, con-sagrado nas artes pelas obras de Jorge Amado e Caryb, entre outros, e,53 Jos Jorge Carvalho, Um panorama da msica afro-brasileira: dos gneros tradicionais aos

    primrdios do samba, Braslia, Universidade de Braslia, Departamento de Antropologia, S-rie Antropologia, 275, 2000, p. 5.

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    na academia, pelos trabalhos de inmeros autores, entre eles RogerBastide e Pierre Verger que enalteceram esta tradio em termos de suassupostas fidelidade e pureza em relao s suas origens africanas.54

    O tratamento dado por Gilberto Gil e Caetano Veloso a esta temticasignificou uma sofisticao textual em consonncia com suas posiesestticas de inserir a msica popular brasileira num contexto mais exten-so, incorporando influncias rtmicas da poca como o rock, o pop, o i-i-i etc. A msica Batmakumba (1968) pode ser vista como emblemticadeste momento, tanto por sua letra concretista como por sua melodia.Brincando com as palavras bat (morcego em ingls, mas tambm alu-so ao verbo bater), Batman (o Homem morcego, super-heri nor-te-americano), makumba (variao de macumba), yy (saudao aOxum e tambm uma aluso ao ritmo i-i-i) e ob (referncia ao reiXang e aluso interjeio oba!) o verso Batmakumbayybatmakumbaoba adquire mltiplos sentidos. Entre eles, o de que no Bra-sil todo mundo bate macumba sejam mulheres ou homens, rainhas oureis. A palavra batmakumba, por sua vez, formada pelos termosBatman e macumba, sugere que a magia o super-heri a quem invo-camos nas adversidades. A forma em K dos versos da msica poderemeter, ainda, a um ox (machado bifacial) de Xang e, quando lido navertical, a forma em M alude ao smbolo do Batman (um morcego deasas abertas) ou letra inicial da palavra Macumba ou Morcego:

    BatmakumbayybatmakumbaobaBatmakumbayybatmakumbaBatmakumbayybatmakumbaBatmakumbayybatmakumBatmakumbayybatmanBatmakumbayybatBatmakumbayybaBatmakumbayyBatmakumbay

    54 Vagner Gonalves da Silva, O Antroplogo e sua Magia. Trabalho de campo e texto etnogrficonas pesquisas antropolgicas sobre as religies afro-brasileiras, So Paulo, EDUSP, 2000;Idem, Religies afro-brasileiras. Construo e legitimao de um campo do saber acadmico(1900-1960), Revista USP, 55 (2002), pp. 82-111.

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    BatmakumbaBatmakumBatmanBatBaBatBatmanBatmakumBatmakumbaBatmakumbayBatmakumbayyBatmakumbayybaBatmakumbayybatBatmakumbayybatmanBatmakumbayybatmakumBatmakumbayybatmakumbaBatmakumbayybatmakumbaoba

    Gilberto Gil e Caetano Veloso continuariam a cantar os elemen-tos do candombl nas vrias fases de suas carreiras, at mesmo quandose voltaram para as religies orientais, como o hindusmo e o zen-bu-dismo. Nesses casos, estabeleceram paralelos e mostraram semelhanasentre os pantees citados em suas msicas, buscando as afinidades entreesses universos religiosos. Blues (1981), de Caetano, e Extra (1983),de Gil, entre outras,55 mostram isso:

    Tem muito azul em torno dele / Azul no cu, azul no mar / Azul nosangue flor da pele / Os ps de ltus de Krishna / Tem muito azul emtorno dela / Azul no cu, azul no mar / Azul no sangue flor da pele /As mos de rosa de Iemanj / O p na ndia / A mo na frica / O p nocu / A mo no mar.

    [...] Baixa / Cristo ou Oxal / Baixa / Santo ou orix / Rocha / Chuva,laser, gs / Bicho / Planta, tanto faz / Brecha / Faa-se abrir / Deixa /Nossa dor fugir / [...]

    55 Em Buda Nag (1991), Gilberto Gil homenageia Dorival Caymmi comparando-o a Xang ea Buda: Dorival um Buda nag / Filho da casa real da inspirao / Como prncipe, princi-piou / A nova idade de ouro da cano / Mas um dia Xang / Deu-lhe a iluminao / L nabeira do mar (foi?) / Na praia de Armao (foi no).

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    Em suas letras, os orixs aparecem ou como contedos a seremapreendidos por um pblico que toma contato com seus mitos e caracte-rsticas, ou como forma de expressar contedos mais amplos, como asnoes de justia, equilbrio, destino etc. Em Loguned (1979), Gil-berto Gil canta as qualidades de seu prprio orix, tornando-o conheci-do do grande pblico:56

    de Loguned a doura / Filho de Oxum, Loguned / Mimo de Oxum,Loguned - ed, ed / Tanta ternura / de Loguned a riqueza / Filhode Oxum, Loguned / Mimo de Oxum, Loguned - ed, ed / Tantabeleza / Loguned demais / Sabido, puxou aos pais / Astcia de caa-dor / Pacincia de pescador / Loguned demais / Loguned depois /Que Oxossi encontra a mulher / Que a mulher decide ser / A me detodo prazer / Loguned depois / pra Loguned a carcia / Filho deOxum, Loguned / Mimo de Oxum, Loguned - ed, ed / delcia.E na cano Orao ao Tempo (1979), Caetano Veloso reflete

    sobre a passagem do tempo cantando para esse inquice (divindade dorito angola), pouco conhecido fora dos terreiros.

    s um senhor to bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo, Tempo,Tempo, Tempo / Vou te fazer um pedido / [...] / Compositor de destinos /Tambor de todos os ritmos / [...] / Entro num acordo contigo / [...] / Porseres to inventivo / E pareceres contnuo / [...] / s um dos deuses maislindos / [...] / Que sejas ainda mais vivo / No som do meu estribilho / [...] de Caetano tambm Milagres do Povo (1985), uma das mais

    significativas canes sobre o papel e o valor da presena negra na for-mao da cultura brasileira. O valor da religiosidade na resistncia cul-tural dos grupos negros submetidos escravido comparado a ummilagre e visto nessa cano como uma fora positiva, reconhecidaat mesmo por um ateu,57 que se ergue para alm do sofrimento e pro-

    56 Significativamente, foi possvel observar em nossas pesquisas de campo desse perodo (Amaral,Xir!; Silva, Orixs) uma crescente valorizao desse orix no candombl do sudeste e oaumento do nmero de pessoas para ele iniciadas.

    57 Caetano Veloso conta, em vrios momentos, que foi convidado pelo jornal O Pasquim parafazer uma pergunta em uma entrevista concedida por Jorge Amado e que sua pergunta foi se oescritor tinha f no candombl. Jorge Amado respondeu que no, porque era um materialista,e que gostaria de ser mstico como Dorival Caymmi. Mas que j vira o candombl fazer mui-tos milagres; e que eram milagres do povo. Da veio a inspirao para esta msica.

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    duz a esperana na qual os brasileiros, como diz outro compositor, An-tonio Maria, so profissionais:

    Quem ateu e viu milagres, como eu, / Sabe que os deuses sem Deus / Nocessam de brotar, / nem cansam de esperar / E o corao que soberano eque senhor / No cabe na escravido, / no cabe no seu no / No cabe emsi de tanto sim / pura dana e sexo e glria, / e paira para alm dahistria / Ojuob ia l e via / Ojuobahia / Xang, manda chamar; / Obatalguia / Mame Oxum chora / lagrimalegria / Ptalas de Iemanj / Ians-Oiia / Ojuob ia l e via/ Ojuobahia / Oba / no xaru / que brilha a prata, aluz do cu / E o povo negro entendeu / que o grande vencedor / Se erguealm da dor / Quando chegou / sobrevivente num navio / Quem descobriuo Brasil / Foi o negro que viu / a crueldade bem de frente / E ainda produziumilagres de f no extremo ocidente / Ojuob ia l e via / Ojuobahia.Gilberto Gil tambm intitulou alguns trabalhos com nomes de

    referncia religiosa como os LPs Gil Jorge Ogum Xang, de 1975(em cuja capa se vem dois enormes bzios as conchas sagradas dojogo divinatrio do candombl guisa de dois grandes olhos), e UmBanda Um, de 1982. A msica Filhos de Gandhi, gravada no primei-ro deles, uma sntese de sua viso da importncia da presena dasreligies afro na vida profana dos homens:

    Omolu, Ogum, Oxum, Oxumar / Todo o pessoal / Manda descer praver / Filhos de Gandhi / Ians, Iemanj, chama Xang / Oxossi tambm/ Manda descer pra ver / Filhos de Gandhi / Mercador, Cavaleiro deBagd / Oh, Filhos de Ob / Manda descer pra ver / Filhos de Gandhi /Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim / Chama o pessoal / Mandadescer pra ver / Filhos de Gandhi / Oh, meu pai do cu, na terra carnaval / Chama o pessoal / Manda descer pra ver / Filhos de Gandhi.

    Na msica Bab Alapal (1977), Gilberto Gil canta um tematabu no candombl, que o culto aos espritos ancestrais chamados deEgunguns. Gil revela, dessa forma, sua profunda intimidade com o uni-verso religioso deste culto secreto de origem ioruba, enfatizando, ainda,a busca das razes msticas da identidade cultural afro-brasileira.

    Aganju, Xang / Alapal, Alapal, Alapal / Xang, Aganju / O filhoperguntou pro pai: / Onde que t o meu av / [...] / O pai perguntou

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    pro av: / Onde que t meu bisav / [...] / Av perguntou bisav: /Onde que t tatarav / [...] / Tatarav, bisav, av / Pai Xang, Aganju/ Viva egum, bab Alapal! / [...] / Alapal, egum, esprito elevado aocu / [...] / Corpo eterno e nobre de um rei nag / Xang.

    Gilberto Gil e Caetano Veloso tambm gravaram cantigas rituaisoriginais ou releituras destas. o caso de menina (de Joo Donato& Gutemberg Guarabira, de 1982), uma releitura de cantiga dedicada aOxum, gravada por Gil, e de Ia Omim Bum (1987) e Marinheiros58 (1969) gravadas por Caetano: Eu no sou daqui / Marinheiro s /Eu no tenho amor / Marinheiro s / Eu sou da Bahia / Marinheiro s /De So Salvador / [...].

    Expresses do universo afro-brasileiro, como sarav (sauda-o), ax (fora e energia vital) e odara (belo, bom e positivo) ga-nharam maior popularidade por seu constante uso na msica popularbrasileira. O adjetivo ioruba odara, particularmente, tornou-se conhe-cido em todo o pas a partir desta cano, de mesmo ttulo, compostapor Caetano Veloso: Deixa eu danar / Pro meu corpo ficar odara /Minha cara / Minha cuca ficar odara / Deixe eu cantar / Que pro mun-do ficar odara / Pra ficar tudo jia rara / Qualquer coisa que se sonhara/ Canto e dano que dar.

    Intimamente relacionadas com esses dois compositores pela ori-gem baiana, Maria Bethnia (irm de Caetano Veloso) e Gal Costa cons-truram um repertrio no qual as religies afro-brasileiras tambm fo-ram marcantes. Foi na voz delas que o Brasil ouviu a msica com queDorival Caymmi reverenciou o cinqentenrio da mais popular me-de-santo baiana, Menininha do Gantois. Talvez por abordar o tema damaternidade, bastante privilegiado na cultura brasileiro, como se perce-be no culto s Nossas Senhoras e Me Preta, essa msica obteve am-plo sucesso, contribuindo para o reconhecimento do Gantois como umareferncia nacional de candombl a partir de 1972.

    Ai, minha me / Minha me Menininha / Ai, minha me / Menininha doGantois / A estrela mais linda, hein? T no Gantois / E o sol mais bri-

    58 Essa cantiga tambm cantada em rodas de capoeira e em sambas-de-roda, no sendo poss-vel, at onde sabemos, identificar a direo das trocas.

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    lhante, hein? T no Gantois / [...] / Olorum quem mandou / Essa filhade Oxum / Tomar conta da gente / E de tudo cuidar / Olorum quemmandou e / Ora i i ... / Ora i i ...59

    Ind