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Fepal - XXIV Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis - Montevideo, Uruguay “Permanencias y cambios en la experiencia psicoanalítica" – Setiembre 2002 CONTANDO HISTÓRIAS: UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO / APRENDIZAGEM DA PSICANÁLISE AUTORAS: Aruza do Carmo Ribeiro Carelli Carolina Ulrich Álvares da Silva Juliana Sitônio Maia Sabrina Féres Bergamini Montes Profª Regina Murat Melanie Anna

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CONTANDO HISTÓRIAS: UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO /

APRENDIZAGEM DA PSICANÁLISE

AUTORAS: Aruza do Carmo Ribeiro Carelli

Carolina Ulrich Álvares da Silva

Juliana Sitônio Maia

Sabrina Féres Bergamini Montes

Profª Regina Murat

Melanie Anna

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Agradecimentos:

À Eliane Lobo (Susi), bibliotecária da

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro.

À turma da disciplina “Enfoque Psicanalítico

da Subjetividade: Escola Inglesa”, realizada na

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no

2º semestre de 2000.

“Sua demanda de que a análise das crianças

seja uma verdadeira análise, inteiramente

independente de qualquer medida educativa, parece-

me tão infundada teoricamente quanto inadequada na

realidade. Quanto mais tomo conhecimento das

coisas, mais acredito que Melanie Klein está no mau

caminho, e Anna, no bom.” (S. Freud, 22 de fevereiro

de 1928, carta inédita a E. Jones).

“Há mais divergências entre a concepção de

Anna Freud e minha concepção da primeira infância

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do que entre os pontos de vista de Freud, tomados em

seu conjunto, e os meus.” (M. Klein, 1951).

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INTRODUÇÃO Regina Murat*

Encontrei-me diante de uma tarefa muito especial ao oferecer a alunos do

curso de graduação do Departamento de Psicologia da PUC-Rio algum

conhecimento sobre as idéias psicanalíticas que se desenvolveram na Grã-Bretanha,

na disciplina denominada “Enfoque Psicanalítico da Subjetividade: Escola Inglesa”.

Especial por sua amplitude e diversidade devido à coexistência de várias correntes

do pensamento psicanalítico produtoras de uma riqueza efervescente e pela

possibilidade de seu confronto.

Retomando as origens históricas que permitiram a implantação e o

desenvolvimento da psicanálise na Grã-Bretanha, fui levada ao encontro de Ernest

Jones que, em fevereiro de 1919, funda a British Psychoanalytical Society.

Juntamente com Joan Rivière, Alix e James Strachey iniciam a tradução dos

textos freudianos que, a partir de 1920, são divulgados no International Journal of

Psychoanalysis, primeira revista de psicanálise em língua inglesa. Quatro anos

depois, o empenho e a dedicação de John Rickman contribuem para instauração

do Instituto e, em 1926, inaugura-se a Clínica de Psicanálise de Londres para

atendimento a “pacientes necessitados”.

Nosso cenário está montado, nossos personagens se movimentam

construindo a história que, hoje, estamos contando!

Nos bastidores surgem murmúrios decorrentes das discussões de John

Rickman, Edward Glover e Ernest Jones com a imprensa e com o Conselho

Nacional de Higiene Mental, que se manifestavam contrários à psicanálise. A

Sociedade Britânica de Medicina investiga as atividades exercidas pelos * Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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psicanalistas médicos. Jones é sabatinado durante vinte e quatro reuniões e,

ajudado por Glover, responde às críticas recebidas. Finalmente, as reivindicações

de “Freud e seus seguidores quanto ao uso e definição do termo [psicanálise] são

consideradas justas e devem ser respeitadas”. (BMA Report, 1928; conforme

citado por King & Steiner, 1998). Pela primeira vez, a psicanálise obtém o

reconhecimento de uma associação nacional da profissão médica, que passa a

aceitar as qualificações estabelecidas pelos membros da International

Psychoanalytical Association. Parabéns, Jones, pela vitória! Mas... e a análise

leiga sugerida por Freud? E os analistas não-médicos? Os burburinhos e as

confusões continuam... Os acordos e os desacordos também...

No palco principal, os membros da Sociedade discutiam sobre a escolha de

seus analistas. Uns preferiram Freud e deslocaram-se para Viena. Outros foram

para Berlim e dividiram-se entre Hanns Sachs e Karl Abraham. Alguns outros

partiram para Budapeste indo ao encontro de Sandor Ferenczi.

O entusiasmo era grande. Os psicanalistas ingleses aplicavam as idéias de

Freud a outros campos. Seus interesses incluíam “o papel da ansiedade, da

hostilidade e da agressão, a teoria do simbolismo, problemas de caráter, origem e

estrutura do super-ego, questões relativas à técnica psicanalítica, uma teoria

psicanalítica das psicoses e a psicanálise de crianças”. (King & Steiner, 1998).

Assim, tal qual uma contadora de histórias, fui apresentando os pioneiros e os

valorizando pela luta que travaram em busca da validação deste novo campo de

saber que surgia.

Nós, participantes do curso, também nos envolvíamos e atingíamos, pouco a

pouco, um de nossos objetivos: enfatizar a importância daqueles que se envolveram

no movimento de implantação da psicanálise na Grã-Bretanha.

Entristecida com a perda de seu incentivador e analista K. Abraham,

Melanie Klein se afasta da Sociedade de Berlim onde predominavam as idéias de

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Anna Freud. Em 1926, chega a Londres, recebendo acolhimento e estímulo para

dar prosseguimento às suas idéias sobre o tratamento de crianças.

Os pontos de vista e formulações teóricas apresentados por Jones tinham

semelhanças com os de Klein. A técnica de análise de crianças despertava grande

interesse em Sylvia Payne e Nina Searl, que já haviam escrito artigos sobre este

assunto. Alix e James Strachey conheciam e admiravam o trabalho feito por

Melanie. Enfim, pouco a pouco, ela foi desempenhando um dos papéis principais

em nossa história.

Em 1927, com a publicação no International Journal of Psychoanalysis das

críticas feitas por M. Klein, J. Rivière, N. Searl, E. Sharpe e E. Jones ao trabalho

“Introdução à técnica de análise de crianças”, de Anna Freud, deflagra-se o início

das controvérsias no âmago da Sociedade. Freud escreve a Jones mostrando sua

insatisfação com tal atitude que considerou como um ataque à sua filha Anna.

Entremeando histórias, leitura de cartas e os conteúdos teórico-técnicos

desenvolvidos por Anna Freud e Melanie Klein fui dando continuidade ao nosso

curso.

Por considerar os textos kleinianos densos e sua leitura pouco estimulante,

procurei evitá-los sem, no entanto, deixar de mencionar minha crítica pessoal. Para

que, a partir de um primeiro contato, se reconheça a importância das idéias

kleinianas, penso ser necessário imprimir-lhes uma certa leveza. Uma certa leveza

winnicottiana, talvez... “A característica essencial do que desejo comunicar refere-se

ao brincar como uma experiência, sempre uma experiência criativa, uma experiência

na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver.” (Winnicott, 1975).

Desta forma, alcançávamos outros objetivos: valorizar as diferentes correntes

do pensamento psicanalítico desenvolvidas na Grã-Bretanha e transmitir a

psicanálise de forma atraente e agradável para alunos tão jovens e cheios de

curiosidade.

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Com o desenvolvimento e a aceitação das idéias kleinianas, as

divergências entre os membros da Sociedade Britânica e os da Sociedade de

Viena iam se tornando muito evidentes no que se refere ao “desenvolvimento

inicial da sexualidade, principalmente na mulher; à gênese do superego e sua

relação com o Complexo de Édipo; ao conceito de instinto de morte e à técnica de

análise de crianças”. (Jones, 1935; conforme citado por King & Steiner, 1998).

Com o intuito de compreender estas discordâncias, Jones e Federn combinaram o

intercâmbio de uma série de conferências, em Londres e Viena, durante 1935/36.

A ascensão do nacional-socialismo alemão ao poder pressiona os analistas

judeus a se retirarem de Berlim, a partir de 1933. Paula Heimann, Heinz Foulkes,

Kate Friedlander e, mais tarde, Eva Rosenfeld e Hans Thorner vão para Londres,

onde já se encontravam Melitta (filha de Klein) e Walter Schmideberg. Começam,

então, a surgir algumas discordâncias no próprio interior da Sociedade.

Em 1938, Viena é invadida pelas tropas alemães e Freud, seus familiares e

colegas passam a correr sério risco. Ernest Jones, apoiado pela Sociedade

Britânica de Psicanálise e pelo Ministério Interior do governo britânico, assume

grande responsabilidade na retirada de Freud de Viena. Com a ajuda da princesa

Marie Bonaparte e do embaixador americano em Paris, Freud abandona sua

Áustria tão querida e chega a Londres em 06 de junho de 1938, acompanhado de

aproximadamente dezoito adultos e seis crianças.

Melanie Klein, prevendo dificuldades e o acirramento das divergências, fica

descontente com a ação de Jones. Menciona este fato, em carta a Jones, no

outono de 1941:

“... Naquela época eu me ressenti da vinda de Anna

juntamente com uma parte considerável e representativa do grupo

de Viena e pensei que o senhor tinha dado muito pouca

importância à perturbação que causaria a nosso trabalho, e

também que o senhor nos confrontou com um ‘fait accompli’ [...]

Alguns desses vienenses que, em seguida, foram para os EUA (o

que, naturalmente, ninguém podia prever) logo ofereceram,

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voluntariamente, a mim e a outros a informação de que tinham

tido todas as possibilidades de ir para a América e assim o teriam

feito se o senhor não os tivesse convidado e encorajado a vir para

a Inglaterra.” (King & Steiner, 1998).

Anna Freud menciona que, em breve, surgiria a questão sobre qual teoria e

técnica psicanalíticas deveriam ser ensinadas aos estudantes, o que realmente

ocorrerá. Em 23 de setembro de 1939, Freud morre deixando campo aberto para a

luta que seria travada entre Melanie Klein e Anna Freud.

Mas... interferências externas mudam o rumo das controvérsias. A

expansão do nacional-socialismo e a crescente agressão do exército alemão

precisavam encontrar maior oposição. Após a invasão da Polônia, a Grã-Bretanha

e seus aliados declaram guerra à Alemanha, em 03 de setembro de 1939.

Apesar das críticas voltadas para os dirigentes da Sociedade Britânica de

Psicanálise referentes ao pequeno papel desempenhado pela instituição durante a

guerra, muitos psicanalistas participaram ativamente junto à comunidade: no

Emergency Medical Service (criado para tratar das vítimas de guerra), nos

serviços psiquiátricos do Exército, na Clínica de Psicanálise de Londres (que

colaborou com o plano oficial para tratamento das vítimas de guerra), nas

Hampstead War Nurseries (criadas por Anna Freud, Dorothy Burlingham e outros),

com crianças removidas de áreas bombardeadas (Donald e Clare Winnicott e

outros), em pesquisas relacionadas às conseqüências de um tempo de guerra,

etc... Muitos destes trabalhos são apresentados e discutidos nas reuniões

científicas que continuaram a ocorrer na primeira e terceira quartas-feiras de cada

mês.

Alguns analistas, como M. Klein, J. Rivière e S. Isaacs, saem de Londres.

Começam a retornar em fins de 1941 após a queda da França, a evacuação do

exército britânico em Dunquerque e durante a batalha da Grã-Bretanha enfrentada

pela Royal Air Force.

As reuniões científicas passam a ser freqüentadas por um maior número de

analistas, contribuindo para que as divergências fossem retomadas e provocando

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um clima desagradável e preocupante. Os grupos freudiano e kleiniano se

constituem com maior definição.

Em 23 de abril de 1940, James Strachey escreve a Edward Glover,

presidente do Comitê de Formação:

“Caro Glover:

Estou celebrando a chegada da primavera na cama, com

um tipo de resfriado febril – de modo que não me será possível ir

a Londres amanhã à reunião do Comitê de Formação. Gostaria

que você soubesse (para sua informação pessoal) que, se a

reunião resultar num diálogo aberto e direto sobre as

divergências, estou firmemente a favor de um acordo a todo

custo. O problema me parece ser o de extremismo de ambas as

partes. Minha opinião pessoal é que a Sra. Klein fez algumas

contribuições importantes à psicanálise, mas é absurdo pretender

que: a) estas contribuições abranjam toda a matéria ou b) que sua

validade seja axiomática. Por outro lado penso que é igualmente

ridículo que a Srta. Freud sustente que a psicanálise é uma

‘Reserva de caça’ pertencente à família Freud e que as idéias da

Sra. Klein sejam totalmente subversivas.

É claro que essas atitudes de ambas as partes são de

natureza religiosa e a antítese da ciência. Também estão (ambas

as partes) infundidas, creio eu, por um desejo de dominar a

situação e particularmente o futuro – e é por isso que ambos os

lados enfatizam tanto a formação de candidatos; na realidade, é

evidente que é uma miragem megalomaníaca supor que seja

possível controlar as opiniões das pessoas que analisamos, além

de um ponto muito limitado. Mas, naturalmente, o objetivo de uma

análise didática deveria ser o de colocar o candidato em condição

de chegar as suas próprias decisões sobre assuntos controversos

– e não o de inculcar-lhe dogmas pessoais do analista.

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De fato, sinto-me como Mercutio a esse respeito. Por que

esses miseráveis fascistas e comunistas (malditos estrangeiros)

invadiram nossa ilha pacífica e cordata? – Vejo que estou com

mais febre do que supunha. De qualquer modo, penso que

qualquer sugestão de uma ‘cisão’ dentro da sociedade deveria ser

condenada e combatida até o fim.

Sinceramente,

James Strachey”

(Arquivos da Sociedade Britânica de Psicanálise, conforme citado por King

& Steiner, 1998).

As disputas se intensificam decorrentes também de questões institucionais

que provocavam insatisfações num grupo de analistas que solicitava a revisão dos

estatutos “visando limitar o tempo de mandato dos cargos e a possibilidade de

ocupar múltiplos cargos na sociedade”. (King & Steiner, 1998). Além disso,

ressentiam-se pelas precárias relações que eram mantidas com outras entidades

profissionais. Críticas feitas a Ernest Jones e Edward Glover.

Após um debate caloroso feito durante três reuniões científicas, é marcada

para fevereiro de 1942 uma Reunião Executiva Extraordinária onde serão

discutidos os problemas da sociedade. Seguem-se dez reuniões para debate das

divergências científicas (a partir de quatro comunicações feitas por: Susan Isaacs,

Paula Heimann, Susan Isaacs e Paula Heimann e, finalmente, Melanie Klein) e

oitos Reuniões Executivas Extraordinárias. Em junho de 1944, os analistas se

encontram para a alteração das normas e estatutos.

Sylvia Payne é eleita presidente em outubro de 1944, substituindo Ernest

Jones, até então único presidente da sociedade. Ele é eleito presidente honorário.

Como em toda luta, há também perdas, tristes perdas decorrentes destas

desavenças internas. Edward Glover pede demissão. O grupo freudiano deixa de

comparecer às reuniões a partir da Segunda Série de Discussões de Diferenças

Científicas. Volta a participar em 1945.

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Coube à habilidade de Sylvia Payne a reorganização no âmbito científico e

administrativo. O estabelecimento de três grupos distintos (freudiano, kleiniano e

independente) foi a solução encontrada para evitar uma cisão institucional.

Haveria igual representação dos três grupos nos principais comitês da Sociedade

e em suas principais atividades.

Nosso curso alcançava um momento importante: a necessidade de uma

avaliação. Aproveitando a oportunidade para estimular a criatividade, a associação

de idéias, a atividade do pensar, e enfatizar a importância da inserção da psicanálise

no meio social, foi proposta a seguinte questão:

SUPONHAM QUE ANNA FREUD E MELANIE KLEIN MANTIVERAM SUAS

CONTROVÉRSIAS DESDE 1927 ATÉ 1960, ANO DA MORTE DE M. KLEIN. IMAGINEM

TAMBÉM QUE VOCÊS ERAM MEMBROS DA SOCIEDADE BRITÂNICA DE PSICANÁLISE,

DURANTE ESTE PERÍODO, E TIVERAM UMA PARTICIPAÇÃO ATUANTE NESTAS

DISCUSSÕES. CONSTRUAM, ENTÃO, UMA HISTÓRIA ABORDANDO UM DEBATE

TEÓRICO-TÉCNICO ENTRE MELANIE KLEIN E ANNA FREUD, DE 1927 A 1960, NO

CONTEXTO DA SOCIEDADE BRITÂNICA DE PSICANÁLISE.

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UMA CARTA

À Sociedade Britânica de Psicanálise 114 Shirland Road, Londres, W9 2EQ

Londres, 30 de outubro de 1960.

Ao Dr. Willi Hoffer, Presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise,

Nós, Aruza Carelli e Sabrina Féres, como membros da Sociedade Britânica

de Psicanálise, estamos preocupadas com o rumo que as controvérsias teórico-

técnicas entre as senhoras Anna Freud e Melanie Klein estão tomando desde

1927. Receamos que a comunidade científica não dê o merecido reconhecimento

e respeito à Psicanálise devido às cisões dentro do movimento psicanalítico. A fim

de esclarecer os pontos de vista de cada uma, propomos um debate entre seus

seguidores sobre as divergências existentes, para que ambos os grupos deixem

de disputar pelo monopólio da verdade da Psicanálise e possam se fortalecer e

desenvolver como diferentes teorias.

Sendo assim, pretendemos explicitar a seguir tópicos teóricos e técnicos

elaborados a partir de 1927, quando as primeiras divergências começaram a ser

estabelecidas. Em 1925, o Dr. Ernest Jones, então presidente da Sociedade Britânica de

Psicanálise, convidou a Sra. Klein para fazer, diante da mesma, uma série de seis

conferências sobre o desenvolvimento psicológico da criança. Foi neste momento

que as divergências começaram a se agravar. Resolvemos tomar esta iniciativa de

propor um debate a exemplo do Dr. Jones, que, em 1935-6, decidiu fazer uma

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síntese sobre as idéias das duas correntes de pensamento. Para isto, foram

convidados alguns membros da Sociedade de Psicanálise de Viena para irem a

Londres expor suas idéias, enquanto alguns membros da Sociedade Britânica

foram a Viena.

Explicitaremos pontos divergentes de ambas as teorias a fim de mostrar-lhe

o quão confusa e dividida está a Sociedade, apesar da importante participação

dos analistas pertencentes ao Middle Group (Grupo Independente). A Sra. Klein

fez algumas modificações na obra do Dr. Sigmund Freud que o desagradaram. Ela

antecipou o período em que ele havia estabelecido o complexo de Édipo. Ela

explicita isto no trabalho “The Early Stages of Oedipus Complex”, publicado em

fevereiro de 1928. Diz a teoria freudiana que o complexo de Édipo só ocorre

depois de todas as fases libidinais, ou seja, aproximadamente dos três aos cinco

anos. A Sra. Anna Freud segue a teoria de seu pai. A Sra. Melanie Klein, no artigo

citado acima, fundamenta a existência do complexo de Édipo no primeiro ano de

vida do bebê. Posteriormente, ela diz que este complexo ocorre nos três primeiros

meses. Ela muda também o conceito de fases libidinais, quando afirma que os

bebês demonstram uma mistura de pulsões orais, anais e genitais, que se

ordenam em torno das primeiras relações de objeto. É elaborada então a teoria

das posições. Há duas posições que organizam a vida psíquica: a esquizo-

paranóide e a depressiva. A posição esquizo-paranóide é considerada como uma

estrutura que organiza a vida mental nos três primeiros meses de vida.

Caracteriza-se pela relação com objetos parciais e pela angústia paranóide, isto é,

ameaça de forças hostis atacarem o ego decorrentes das pulsões agressivas

projetadas no seio. Há prevalência de mecanismos de defesa como divisão

(dissociação), identificação projetiva, idealização e negação. A posição

depressiva, por sua vez, surge quando a mãe é reconhecida pela criança como

objeto total. Esta se percebe como alguém que ama e odeia a mesma pessoa.

Surge a angústia depressiva onde o ego sente culpa e teme pelo dano que fez ao

objeto amado devido às pulsões agressivas. Então, o principal mecanismo de

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defesa utilizado é a reparação onde o bebê se preocupa com o estado do objeto

(interno e externo).

Em 1945, a Sra. Klein publicou o artigo “The Oedipus Complex in the Light

of Early Anxieties”, em que ela continua esta idéia. Neste momento, a teoria das

posições já estava bem mais desenvolvida e serviu como base para que

desenvolvesse estudos sobre o complexo de Édipo. Diz ela que este complexo

está relacionado à posição depressiva quando surgem as pulsões amorosas pelos

pais. A renúncia pulsional ocorre diante da luta travada entre os sentimentos

agressivos e os sentimentos amorosos para com os pais. Isto acontece por volta

dos três meses de idade.

O período do estabelecimento das relações objetais é outro ponto de

divergência entre a Sra. Freud e Sra. Klein. Esta última diz que as relações de

objeto começam com o nascimento ou logo após seu acontecimento, ou seja, o

bebê estabelece, assim que nasce, uma relação com a mãe – objeto parcial –

seio. Conseqüentemente, o bebê já nasce com um ego incipiente, podendo ter

certos sentimentos pela mãe (objeto parcial – seio), como amar, odiar, atacar,

destruir.

De acordo com a Sra. Freud, as relações de objeto vão sendo construídas

vagarosamente. Após o nascimento, existe uma fase narcísica e auto-erótica. A

libido do bebê é voltada para ele mesmo; ele tem a preocupação com o seu

próprio bem estar. Ele não é capaz de ter nenhum sentimento pela mãe, devido ao

seu narcisismo. Para ela, existem os narcisismos primário e secundário. Para a

Sra. Klein não há narcisismo primário, pois o bebê já nasce estabelecendo uma

relação objetal. A Sra. Klein diz que a relação narcisista é uma relação com um

objeto idealizado interno, em que o ego se confunde com este objeto.

Dentro deste mesmo aspecto, as duas senhoras ainda divergem quanto às

características das relações de objeto: para a Sra. Klein, nos primeiros meses de

vida, as relações de objeto são diferenciadas, parte libidinais, parte agressivas.

Para a Sra. Freud, nesta época, há rudimentos mais incipientes de relação de

objeto, sendo esta fase governada pelo desejo de gratificação instintual.

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A Sra. Klein acrescenta também que a agressividade é causa da angústia

existente desde o começo da vida. Mais tarde, em 1957, a este respeito, ela cria o

conceito de inveja primária. A pulsão de morte se revela através de pulsões

sádicas e agressivas. A frustração provocada pelos objetos é coadjuvante, mas

não causal para as pulsões agressivas. Ela enfatiza o inato, ao dizer que as

pulsões agressivas são inatas e o bebê nasce com um ego incipiente. A Sra. Anna

Freud, por sua vez, segue o conceito de séries complementares, criado pelo Dr.

Freud, que designa a complementação entre o externo e o interno, ou seja, os

fatores congênitos e fatores adquiridos se complementam. Para ela, não há

evidência direta das fantasias primárias no primeiro ano de vida devido à limitada

expressão verbal do bebê. No processo analítico, não são feitas interpretações

iniciais. Ela enfatiza a resistência do ego em detrimento das pulsões do id.

No que se refere mais especificamente à técnica, o doutor pode observar

que as duas senhoras propõem práticas diferentes, envolvendo aspectos distintos.

A questão da neurose de transferência também é controversa. A Sra. Klein afirma

que a criança desenvolve neurose de transferência com o analista assim como o

adulto, mudando apenas a forma de comunicação, que é através do jogo (técnica

do jogo infantil), por causa do tipo peculiar de expressão da mente infantil. Através

do brincar, a criança transfere para o terapeuta seus conflitos iniciais paternos e

os vivencia no setting. A Sra. Klein é contrária a qualquer medida reeducativa e de

apoio na análise. Já a Sra. Freud acredita que a criança ainda é muito ligada aos

pais para desenvolver transferência com o analista. Vale ressaltar ainda que as

senhoras tinham outra divergência relacionada à técnica. Para a Sra. Freud, a

importância da análise dos sonhos, recordações, chistes, etc. era evidente, além

de mencionar uma relação real, terapêutica. De acordo com a Sra. Klein, a ênfase

está na relação transferencial, ou seja, as associações verbais ficam em segundo

plano.

O doutor se recorda que, em 1943, a Sra. Freud fez um pronunciamento ao

Comitê de Formação no qual argumentou um quesito muito importante de

divergência entre ela e a Sra. Klein. Ela questionava se os novos achados e a

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teoria da Sra. Klein levavam a transformações e inovações do procedimento

técnico. A Sra. Freud partia do princípio de que uma mudança na teoria implicava

uma mudança na técnica e vice-versa.

Parece-nos que o objetivo da proposta de análise das duas senhoras é

distinto. Enquanto a Sra. Freud pretende tornar consciente o inconsciente e

propõe como objetivo da psicanálise a restauração da capacidade do ego, a Sra.

Klein objetiva interpretar as fantasias para, assim, obter resultados positivos na

relação entre o mundo externo e o mundo interno. É importante sublinhar que,

segundo a Sra. Klein, as fantasias inconscientes são os elementos básicos do

mundo interno, formado através dos mecanismos de projeção e introjeção.

Tendo em vista todos os tópicos nesta apresentados, pedimos ao doutor

que convide os seguidores das senhoras Klein e Freud para uma grande

conferência, para que eles possam debater frente a frente, esclarecer questões,

dando maiores explicações, e, até mesmo, através destas reflexões em conjunto,

aperfeiçoar e desenvolver conceitos teórico-técnicos.

Agradecemos a atenção e esperamos um posicionamento da Sociedade

Britânica de Psicanálise.

Aruza do Carmo Ribeiro Carelli e Sabrina Féres Bergamini Montes

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Fepal - XXIV Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis - Montevideo, Uruguay “Permanencias y cambios en la experiencia psicoanalítica" – Setiembre 2002

UM CONTO

Carolina Ulrich Álvares da Silva

Juliana Sitônio Maia

A estória narrada abaixo data de 1945. Nesse ano, ocorreu a cisão da

Sociedade Britânica de Psicanálise em três grupos distintos: o grupo “A“, cujos

membros defendiam as idéias freudianas; o grupo “B“, cujos membros defendiam

as idéias kleinianas e o “middle group“ ou grupo independente, em que os

membros não defendiam particularmente nenhum dos dois grupos.

Assim, estava eu sentada à mesa do “Psycho Coffee” lendo calmamente

um artigo do International Journal of Psycho-analysis, quando reparei no debate

interessante entre duas psicanalistas. Essas buscavam manter um diálogo

pacífico (como se isso fosse possível!) no que tange às idéias de Melanie Klein e

Anna Freud. Uma delas, Ms. Juliana, pertencia ao grupo de Anna Freud enquanto

a outra, Ms. Carolina, ao de Melanie Klein.

J – Não consigo conceber como a senhorita pode defender uma teoria na qual as

relações de objeto iniciam com o nascimento ou logo após este! Acredito que após

o nascimento inicia-se uma fase narcísica e auto-erótica. As relações de objeto

vão sendo construídas paulatinamente...

C – Posso defendê-la sim, visto que o bebê possui um ego incipiente, ou seja, ele

nasce capaz de estabelecer relações e desenvolver sentimentos sem necessitar

passar por uma fase “preparatória”. Divergindo da senhorita, que considera que a

criança está apenas preocupada com seu bem estar, penso que a criança já é

capaz de desenvolver sentimentos de ataque, ódio, destruição, entre outros.

J – Continuo acreditando que nos primeiros meses de vida o bebê é guiado pelo

desejo de gratificação instintual. Não acredito nas relações de objeto

diferenciadas, em partes libidinais e partes agressivas, porque as relações de

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objeto estão ainda se formando, compreende? Isso sem falar de como Melanie

Klein interpreta o brincar da criança! Que absurdo!

C – Penso que a senhorita está equivocada. Por obséquio, alcance-me o chá.

Ocorre que a Senhora Klein comparou o brincar da criança, durante a análise,

com o método da associação livre possibilitando a neurose de transferência.

Semelhante ao ocorrido nos adultos. Ela percebeu que, na análise com crianças,

as ansiedades surgidas estavam relacionadas com os impulsos agressivos da

criança. Klein preocupou-se muito com a questão da agressão! Tendo isso em

vista, o jogo seria utilizado como uma técnica terapêutica, a fim de diminuir um

pouco a angústia do bebê por ter se sentido destrutivo em relação à mãe.

J – Primeiramente, devo dizer-lhe que a criança ainda é muito nova e tem um

contato muito forte com os pais para desenvolver uma relação transferencial com

o analista. Em segundo lugar, fica óbvio que se deve favorecer uma resposta

positiva à criança, aos seus aspectos amorosos, facilitando o vínculo e fazendo

com que essa confie no analista. Além disso, a Sra. Klein fez uma abordagem

muito mais interpretativa e eu também acredito numa abordagem explicativa.

C – Indubitavelmente, é muito mais interessante a interpretação das fantasias do

que fazer uma análise que corresponda à construção do ego e verifique as

resistências que impedem essa construção!

J – Fico extremamente indignada com o grau de veemência com o qual a Sra.

Klein defende suas idéias, visto que algumas delas modificam-se praticamente de

um ano para o outro.

C – Isso não é verdade!

J – Posso citar como exemplo o complexo de Édipo. Agora, em 45, com o texto “O

complexo de Édipo à luz das ansiedades primitivas”, ela antecipa o mesmo, bem

como o superego, para os três meses de vida do bebê. Além disso, comenta que

os impulsos amorosos e agressivos começam a ser elaborados pelo bebê, nesse

período. Como se os amorosos fossem se mesclando com os agressivos. Diz ela

que o complexo edípico é formado na conjunção dos impulsos agressivos e de

amor (e que bom que parou de pensar apenas na questão da agressão!). Esse

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impulso de amor é dirigido ao genitor e modelado pelos impulsos agressivos. Em

contrapartida, por volta de 28, a senhorita recorda que o mesmo ocorria ao redor

do primeiro ano de idade. A criança tendia a apresentar culpa e remorso devido às

pulsões agressivas dirigidas à mãe. Depois antecipa para os seis meses de idade,

com a influência de Abraham (que Deus o tenha!), começando a fazer uma

relação do sadismo com a dentição e com o desmame. E imagina que

exatamente, há dez anos, ela já falava que o superego iria sendo formado com a

introjeção de dois objetos contraditórios. Ou seja, as qualidades benevolentes e as

qualidades destrutivas.

C – A senhorita discorda das idéias de minha amiga Klein, uma vez que, segundo

seu ponto de vista, o complexo edípico tão precoce não deveria ser examinado

profundamente na criança por falta de maturidade do super ego.

Naquele momento, já havia eu tomado seis xícaras de chá, bem como

saboreado um número considerável de amanteigados. No entanto, apenas a partir

daquela escuta pude compreender o porquê da ruptura da Sociedade. Meu Deus!

As divergências são muitas. E mais, vinham de longa data. Vinham desde 1927.

Distraí-me por um minuto e quando voltei minha atenção para elas

novamente, já não estavam mais lá. Creio que Sylvia Payne já as havia

convocado para a reunião que iria começar!

Em 1960, estava eu no velório da Sra. Klein, juntamente com os membros

da Sociedade Britânica de Psicanálise e muitas outras pessoas, quando deparei-

me com Ms. Carolina e Ms. Juliana. Eram duas psicanalistas tão voltadas para a

psicanálise que discutiam as divergências entre Melanie Klein e Anna Freud até

mesmo nesse velório! Falavam agora à respeito das posições esquizo-paranóide e

depressiva. Percebi que mencionavam divergências advindas do ano de 46.

C – Quando Klein formulou a teoria das posições (1946,1952), ela definiu um

objetivo terapêutico central: elaborar a posição depressiva para obter a integração

do objeto e do ego. O insight consistiria em juntar emoções carinhosas e hostis em

relação a um mesmo objeto, com os conseqüentes sentimentos de culpa e

responsabilidade.

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J – Pois bem, pois bem. Mas fale-me dos mecanismos de introjeção e de

projeção.

C – Inicialmente, devo lembrar-lhe da teoria do mundo dos objetos internos,

partindo do desenvolvimento psíquico precoce. Klein definiu a mente da seguinte

maneira: “a mente é o espaço onde os objetos interagem produzindo significados

e motivações”. (Nasio,1995). As fantasias inconscientes são os elementos básicos

do mundo interno ou realidade psíquica, formada através dos processos de

projeção e introjeção. Digo, ainda, que o conflito mental se dá entre os

sentimentos de amor e ódio que se enfrentam no vínculo com os objetos. Isso

modula a ênfase dada anteriormente à agressividade.

J – Mas para nós, freudianos, o conflito é a luta entre a pulsão sexual e a defesa.

C – Como estava eu dizendo, duas posições organizam a vida psíquica: a

esquizo-paranóide e a depressiva. Essa é fundamental para o equilíbrio psíquico!

J – Mas a senhorita não respondeu ainda minha questão em relação aos dois

mecanismos. (Esses kleinianos...) – sussurrou Ms. Juliana.

C – Como?! O que a senhorita disse?

J – Absolutamente nada.

C – Para Klein, as pulsões agressivas e as pulsões libidinais, que fazem parte do

mundo interno, estão sempre em conflito. O conflito está aí: entre amor e ódio. As

pulsões se relacionam com o objeto (externo) através dos mecanismos de

introjeção e de projeção. Para elucidar o que mencionei, posso dar como exemplo

o seio da mãe, que seria visto como objeto parcial. Assim, o bebê projetaria

pulsões agressivas no seio que seria percebido como seio mau. Isso geraria nele

a chamada ansiedade persecutória por medo dos ataques hostis provenientes

deste seio. O objeto parcial pode ser bom ou mau, e a posição esquizo-paranóide

refere-se justamente à divisão entre o mau e o bom. Já a posição depressiva

trataria da integração do bom e do mau; aqui a culpa e o remorso estariam

evidentes.

Breve silêncio. Muita tristeza...

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C – Que mulher inteligente! E hoje, 22 de setembro, falece por ter sido neste mês

operada de um câncer do cólon. Setenta e oito anos... quantas contribuições... A

senhorita provavelmente recorda de 1949 quando ela postulou a concepção do

término do tratamento como uma experiência de luto, não!?

J – Lembro-me bem de 1952, quando a Sra. Klein completou setenta anos e

Ernest Jones organizou um banquete em sua homenagem. Nesta ocasião ocorreu

o lançamento do livro “Os Progressos da Psicanálise”: uma coletânea de artigos

escritos pela própria Sra. Klein e outros colegas...

C - Ora, uma mulher brilhante! Por exemplo, em 1955, foi a fundação do “Melanie

Klein Trust”. No Congresso de Genebra apresenta seu trabalho “Um estudo sobre

inveja e a gratidão” que contribuiu para seu rompimento com Paula Heimann.

J – Mas a publicação de “Inveja e Gratidão” foi em 1957, um ano antes da morte

do Sr. Jones.

C – É verdade. Com essa obra, prestou uma última homenagem a Karl Abraham,

passados uns 30 anos de sua morte: uma homenagem pelas contribuições que

ele fizera no tocante às pulsões de destruição ligadas à oralidade e à inveja.

Lembro que o livro foi também uma espécie de síntese...

J – Acho que Melanie Klein adquiriu o hábito de sintetizar suas idéias a partir dos

anos 50...

C – Mas... acho admiráveis suas idéias sobre as noções de inveja e gratidão. A

inveja está ligada ao complexo de Édipo: fala-se em inveja do pênis na menina ou

em inveja da feminilidade e da gravidez no menino, nos casos de inversão do

Édipo. Para Melanie Klein, esse desejo é complexo. Pois a inveja do pênis do pai,

que tem existência própria, é reforçada por duas fontes: inveja do corpo da mãe e

inveja de tudo que ele contém: o pênis e os bebês. Mas a inveja deriva, na

verdade, de uma forma originária, que é a inveja do seio: essa é a primeira

emoção fundamental na relação do sujeito com o seio materno e com a mãe. Essa

relação, aliás, provem de uma inversão: “Ter feito parte do corpo materno”,

escreveu Melanie Klein, “durante a gestação por certo contribui para o sentimento

inato da criança de que existe, fora dela, alguma coisa capaz de satisfazer todas

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as suas necessidades e todos os seus desejos. O seio bom, incorporado, é desde

então parte integrante do eu; a criança, que inicialmente se achava no interior da

mãe, agora coloca a mãe em seu próprio interior”. (Nasio,1995). Como sabemos,

o seio se faz ausente e um elemento de frustração é necessariamente introduzido

na primeiríssima relação da criança com o seio materno. A inveja do seio tanto

pode ser provocada pela gratificação do seio bom, já que a gratificação é a prova

dos recursos infinitos do seio, quanto pela frustração ou pela perda do seio. A

inveja se realiza pela depredação, pela danificação do seio e pela introdução, no

seio materno de tudo que é mau: os “maus excrementos” ou as “partes más” de si.

A criatividade do seio – e, nesse ponto, Melanie Klein pensava nas interpretações

com que alimentava seus pacientes – fica reduzida a nada, pelo aspecto

destrutivo da identificação projetiva. A inveja significa, literalmente, “lançar o olhar

mau”.

J – Não nos referimos a uma pulsão invejosa equivalente no homem. Tampouco

atribuímos à inveja do pênis finalidade destrutiva qual a inveja kleiniana possui.

Por obséquio, finalizemos aqui nossas questões!

Voltando para casa e ainda envolvida pela tristeza com a morte de Melanie

Klein, lembrei-me de um comentário feito por um dos seus discípulos: “Certa vez,

a Sra. Klein me disse – Graças a Deus, Dr. Gammil, o senhor não interpretou a

inveja nesse material, pois não havia nada que se ligasse a ela. Durante toda essa

semana, tive várias pessoas que me trouxeram material e interpretaram a inveja,

embora não houvesse nenhuma prova clínica para isso. Sabe, não sei se minha

obra será destruída por meus partidários mais fervorosos ou por meus piores

inimigos! ...” (Nasio, 1995).

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Bibliografia:

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Melanie Klein and Anna Freud: 1927-1932. International Journal of

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BLEICHMAR, Norberto & BLEICHMAR, Celia L. (1992). A psicanálise

depois de Freud; teoria e clínica. Porto Alegre: Artes Médicas.

COUCH, Arthur S. (1995). A técnica psicanalítica de adultos de Anna Freud:

uma defesa da análise clássica. Livro Anual de Psicanálise. XI. São

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GREENBERG, Jay R. & MITCHELL, Stephen A. (1994). Relações objetais

na teoria psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.

KING, Pearl & STEINER, Riccardo. (1998). As Controvérsias Freud – Klein:

1941-45. Rio de Janeiro: Imago.

NASIO, Juan D. (org). (1995). Introdução às obras de Freud, Ferenczi,

Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

WINNICOTT, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

Fontes das fotos da capa:

Anna Freud – http://www.mala.bc.ca/~mcneil/freuda.htm

Melanie Klein – http://www.psiconet.org/klein/index.htm