145
A CANÇÃO POPULAR PORTUGUESA EM FERNANDO LOPES-GRAÇA ÍNDICE Prefácio (Mário Vieira de Carvalho) ................................................................. I INTRODUÇÃO ............................................................................................. II Textos de Fernando Lopes-Graça sobre o folclore e a música popular portuguesa .................................................................................... Conceituação ..................................................................................................... 1. Sobre o conceito de popular na música (1947) .......................................... 2. Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa (1949) ...................................................................................... 3. Folclore autêntico e contrafacção folclórica (1952) .................................. 4. O problema da canção popular portuguesa (1953) .................................... 5. Uma definição de música folclórica (1953)............................................... Problematização 6. É a música folclórica uma deformação da música culta? (1953)............... 7. Música e regionalismo (1956) ................................................................... 8. Notas para um possível ideário do folclorista musical português (1957)........................................................................................ 9. Sobre o actual cultivo da canção folclórica portuguesa (1959) ................. 10.Tradicionalismo e folclorismo quantitativo (1965) ...................................... Caracterização 11. Algumas características da canção portuguesa (1953) .............................. 12.Esboço de classificação (1953)..................................................................... 13.Constantin Brailoiu e a música folclórica portuguesa (1959) ...................... 14.Algumas considerações sobre a música folclórica portuguesa (1963) 15.Garrett e o Romanceiro (1954) 16.Sobre as toadas dos romances populares portugueses (1964) Tratamento 17.Sobre a canção popular portuguesa e seu tratamento erudito (1942) 18.Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas (1956) 19.Acerca da harmonização coral dos cantos tradicionais portugueses (1965) Regiões 20.Apontamento sobre a canção alentejana (1946) ........................................... 21.Cantos do Alentejo (1965) ............................................................................ 22.Acerca do canto alentejano (1968) ............................................................... 23.Apontamento sobre a canção popular da Beira Baixa (1947) ....................... 24.Uma experiência de prospecção folclórica (1953)........................................ 25.Cantos da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral (1970) ............................ 26.Cantos de Trás-os-Montes (1960) ................................................................ 27.Cantos do Algarve (1961)............................................................................. 28.Cantos do Minho (1963) ............................................................................... Crítica 29.Folclore musical português (1937) ............................................................... 1

Conteudo Livro FLG CPP

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Conteudo Livro FLG CPP

A CANÇÃO POPULAR PORTUGUESA EM FERNANDO LOPES-GRAÇA

ÍNDICE

Prefácio (Mário Vieira de Carvalho) ................................................................. I INTRODUÇÃO ............................................................................................. II Textos de Fernando Lopes-Graça sobre o folclore e a música popular portuguesa .................................................................................... Conceituação ..................................................................................................... 1. Sobre o conceito de popular na música (1947).......................................... 2. Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa (1949)...................................................................................... 3. Folclore autêntico e contrafacção folclórica (1952) .................................. 4. O problema da canção popular portuguesa (1953) .................................... 5. Uma definição de música folclórica (1953)............................................... Problematização 6. É a música folclórica uma deformação da música culta? (1953)............... 7. Música e regionalismo (1956) ................................................................... 8. Notas para um possível ideário do folclorista musical português (1957)........................................................................................ 9. Sobre o actual cultivo da canção folclórica portuguesa (1959) ................. 10.Tradicionalismo e folclorismo quantitativo (1965) ...................................... Caracterização 11. Algumas características da canção portuguesa (1953) .............................. 12.Esboço de classificação (1953)..................................................................... 13.Constantin Brailoiu e a música folclórica portuguesa (1959) ...................... 14.Algumas considerações sobre a música folclórica portuguesa (1963) 15.Garrett e o Romanceiro (1954) 16.Sobre as toadas dos romances populares portugueses (1964) Tratamento 17.Sobre a canção popular portuguesa e seu tratamento erudito (1942) 18.Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas (1956) 19.Acerca da harmonização coral dos cantos tradicionais portugueses (1965) Regiões 20.Apontamento sobre a canção alentejana (1946) ........................................... 21.Cantos do Alentejo (1965)............................................................................ 22.Acerca do canto alentejano (1968) ............................................................... 23.Apontamento sobre a canção popular da Beira Baixa (1947)....................... 24.Uma experiência de prospecção folclórica (1953)........................................ 25.Cantos da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral (1970) ............................ 26.Cantos de Trás-os-Montes (1960) ................................................................ 27.Cantos do Algarve (1961)............................................................................. 28.Cantos do Minho (1963)............................................................................... Crítica 29.Folclore musical português (1937) ...............................................................

1

Page 2: Conteudo Livro FLG CPP

30.Sobre o Cancioneiro Minhoto, de Gonçalo Sampaio (1945)........................ 31.Sobre o Cancioneiro de Cinfães, de Vergílio Pereira (1951) ....................... 32.Lembrando Francisco Serrano (1982) .......................................................... (III ANTOLOGIA ..............................................................................................) IV LETRAS ...................................................................................................... V ÍNDICES DA ANTOLOGIA............................................................................. Índice por canção....................................................................................... Índice por região........................................................................................ Índice por fonte ........................................................................................ Índice numérico Bibliografia de Fernanado Lopes-Graça............................................................

2

Page 3: Conteudo Livro FLG CPP

PREFÁCIO

O ambiente cultural em Lisboa, à época em que Fernando Lopes-Graça se diplomou em Piano e Composição, no Conservatório Nacional, era marcado por intensos debates de ideias, em que tudo se cruzava. Talvez nunca como então – em plena década de 20 – houve uma tal quantidade de publicações periódicas (jornais diários, semanários, e outras) e uma tal pluralidade de vozes e tendências com presença na esfera pública. Esta vitalidade da discussão e da polémica nos meios cultos de quem lia livros e jornais e que, em larga medida, resultava já dos impulsos recebidos do programa de reformas educativas da República, contrastava com o País profundo, um País onde as «luzes» não haviam chegado, com níveis de analfabetismo e de iliteracia que nos colocavam na cauda da Europa, e onde precisamente o exercício do espírito crítico – do pensamento autónomo, sem submissão à tutela de uma auctoritas baseada em dogmas ou crenças arreigadas – era ostracizado e demonizado. Num período em que as elites urbanas se envolviam, pela leitura e pela escrita, em acesas controvérsias políticas, ideológicas, estéticas, não faltavam as vozes que se manifestavam contra o «excesso» de «letrados» e denunciavam o perigo que os livros e outras publicações, circulando assim «à deriva», sem licença de imprimatur, representavam para a Ordem. O manifesto da chamada «Cruzada Nacional Nun’Álvares Pereira», subscrito entre outros pelo general Gomes da Costa, não podia ser mais claro, no seu apelo fundador, em 1921: «Ordem nas ruas! Ordem nos espíritos! Ordem em casa!».

O período de estudos musicais em Lisboa, entre os 17 e os 21 anos (1923-1927), proporciona a

Lopes-Graça um estreito contacto com esse ambiente de confrontação exacerbada. Assim, por um lado, o jovem aprendiz de pianista e compositor deixa-se influenciar pela tendência de valorização da música popular como «fonte de inspiração», então dominante no Conservatório, veiculada nos escritos, no magistério e nas obras de Alexandre Rey Colaço e de outros docentes (como, por exemplo, Eugénio Vieira), precedida pela tradição representada por Alfredo Keil e Viana da Mota e, entretanto, reforçada pela publicação do livro de Armando Leça (Da Música Portuguesa, 1922). A sua primeira obra, Variações sobre um tema popular português, para piano (1927), por ele próprio interpretada em público no ano seguinte, reflecte, numa abordagem já marcadamente pessoal (a qual, no entanto, pode ter sido acentuada por ulteriores revisões da peça), a herança técnica e artística incorporada na sua formação. Representa o fim de um ciclo, a cúpula do seu trabalho de aprendizagem, de aquisição do ofício de compositor e intérprete, da mestria técnica na escrita para o seu instrumento (o piano). E representa também a assimilação duma opção estética de escola: explorar o filão das tradições musicais do povo português – em convergência, de resto, com outros jovens compositores da época, como Ruy Coelho (por exemplo, na ópera Inês de Castro, de 1926). O que cabia então, para o jovem autor das Variações, nesse filão não seria muito diferente do consenso da época, dominante no meio musical e no Conservatório. Tendo aplaudido com entusiasmo a ópera de Ruy Coelho por ocasião da sua estreia, é possível que Lopes-Graça não tivesse relutância em admitir em tal acervo, para além das melodias rústicas (fonte das suas Variações), o fado – consagrado na imprensa, desde a viragem do século, como «a canção nacional» e como tal glosado em obras do mesmo Ruy Coelho e de Rey Colaço, entre outros.

Contudo, por outro lado, Lopes-Graça faz a sua iniciação política. Nesse aspecto, os anos de

1926 (ano do golpe militar do 28 de Maio, liderado por Gomes da Costa) a 1928, passados entre Lisboa e Tomar, devem ter sido decisivos. Há uma tomada de consciência e um envolvimento militante na acção tão avassaladores que transformam o jovem músico num director de jornal, com um projecto político. A sua vigorosa escrita, de feição camiliana, e a orientação global que imprime ao periódico – A Acção, jornal «político-regionalista», fundado em Tomar (1928) – não deixam dúvidas quanto à natureza avançada, dir-se-ia mesmo, radical, desse projecto. Ali convergem republicanismo,

3

Page 4: Conteudo Livro FLG CPP

socialismo, comunismo, anarquismo, anticlericalismo. O jornal é encerrado em 1930, em ligação com o processo da «Organização Comunista de Tomar», no qual Lopes-Graça é arguido como um dos «principais dirigentes». E, na verdade, o que sobressai nos seus artigos e editoriais é a defesa dos ideais de internacionalismo (sem dúvida, inspirados no internacionalismo proletário), contra todas as formas de nacionalismo: político, étnico, cultural, estético. A contradição com a sua primeira obra – baseada num tema «nacional», susceptível de ser inscrita numa corrente artística «nacionalista» – torna-se manifesta. A partir de 1928, Lopes-Graça não esconde o seu desprezo e a sua hostilidade por todas as tentativas folclorizantes, mesmo quando elas vêm de um Manuel de Falla ou de um Luís de Freitas Branco. É o pano de fundo político que está na origem duma tão radical mudança de posição. A partir da sua perspectiva internacionalista, Lopes-Graça passa a zurzir implacavelmente o caldo ideológico nacionalista, onde a arte e a música também estão presentes. Por essa altura, dir-se-ia mesmo que é mais compatível à sua posição ter relações de colaboração profissional em iniciativas do grupo do Renascimento Musical (apesar das ligações deste ao Integralismo Lusitano) – iniciativas que visavam a recuperação da «música antiga», não apenas portuguesa, cuja memória se perdera no século XIX – do que pactuar com o nacionalismo musical na sua dimensão folclorizante.

Paradoxalmente (ou talvez não!), é o afastamento do País – o exílio em Paris, a partir de 1937 –

que o faz rever, de novo, a sua posição. Toma conhecimento das recolhas de música tradicional portuguesa de Kurt Schindler e Rodney Gallop, é confrontado com o desafio da cantora Lucie Dewinsky, interessada no repertório de canções de origem folclórica, alarga os seus horizontes através do contacto intensivo com diferentes culturas (no âmbito da imensa oferta de espectáculos proporcionada pela Exposição Universal), encontra-se com Bartók e o folclore húngaro, e tudo isso opera uma transformação na sua atitude. Em Paris, Lopes-Graça descobre, enfim, o potencial de modernidade que se contém no arcaico do material de proveniência tradicional e o contributo deste para o plasmar da sua própria linguagem de compositor, da sua própria individualidade artística.

Essa viragem converge com o início da sua teorização sobre a canção tradicional «autêntica»,

por oposição à «contrafacção folclórica»: aquela, dinâmica e sujeita a transformações e variantes, mais ou menos interessantes do ponto de vista que lhe interessava como compositor (que era o estético, e não o etnomusicológico), mas sempre vinculada à terra, às funções do quotidiano, à vida comunitária nas suas diversas dimensões (religiosa, festiva, laboral, etc.), isto é, parte integrante e inextricável do mundo vivido das populações rurais; esta, estereotipada segundo os clichés mais banais da música de entretenimento comercial, mera reprodução de um pseudofolclore de feira, de teatro de revista ou de salão, ou ainda de «rancho folclórico», como os que se desenvolvem com o apoio do Estado Novo desde os anos 30. O interesse estético que Lopes-Graça reconhecia nas canções rústicas ditas autênticas não era assim redutível a um critério superficial de gosto subjectivo por tal ou tal característica meramente formal do material sonoro, mas antes fundado exactamente nas mesmas motivações que o entusiasmavam numa obra representativa da tradição culta europeia, inclusive nas suas manifestações mais modernas. O que o comovia em ambas e o que ele procurava também incorporar na sua música era o valor delas como testemunho de uma experiência telúrica, de uma experiência profunda do ser, individual ou colectivo: a música como «expressão fremente da vida». Eis o que autenticidade significava para Lopes-Graça.

Daí o abismo que o separava do programa folclorizante do Estado Novo. Enquanto, para este, o

povo era o Outro inferior, cujos usos e costumes pitorescos podiam servir de cartaz de propaganda turística e alimentar a uma indústria do entretenimento, para Lopes-Graça o povo era o Outro contra-hegemónico, depositário da integridade de uma cultura que importava redescobrir, rica em momentos em que a alegria e a dor, a angústia e a folia, o luto e a esperança, o inconformismo e o desengano se condensavam em testemunhos musicais de rara consistência. Testemunhos que o compositor «trazia

4

Page 5: Conteudo Livro FLG CPP

para outro plano», num diálogo ou num pulsar entre identificação e distância, a partir de então incessante, entre a proposta tradicional e a subjectividade do artista – do artista em busca da sua própria autenticidade, agora mais no sentido que lhe empresta Adorno: o da crítica imanente do material, produto da dialéctica sujeito-objecto.

Ao reunir os textos e fragmentos que Lopes-Graça dedicou à canção popular portuguesa,

reagrupando-os, situando-os num processo de conceptualização ou teorização e analisando do mesmo passo a presença do elemento tradicional na obra musical do compositor, Alexandre Branco Weffort presta um valioso serviço aos especialistas, aos músicos e ao público em geral. Enriquecida com esse aparato crítico, esta incluindo as numerosas transcrições de melodias tradicionais, preenche uma lacuna na documentação disponível para o estudo e a divulgação de uma área particularmente importante do património imaterial – a das práticas musicais – e não deixará de as influenciar. O corpus de documentos coligidos contribuirá ainda, enfim, para reabrir o debate em torno dos problemas abordados.

Mário Vieira de Carvalho

Cascais, 14 de Maio de 2006

5

Page 6: Conteudo Livro FLG CPP

I INTRODUÇÃO

Lopes-Graça, figura marcante da música e da cultura portuguesa do século XX, deixou-nos uma vasta obra musical e literária1, um exemplo de cidadania e, naqueles que com ele privaram, a impressão de uma forte personalidade – de um homem empenhado na vida do seu tempo, que assim se definia a si mesmo:

Sou apenas um profissional da música, que se tem esforçado até hoje por desempenhar o seu ofício o melhor possível, sem trair nenhum dos imperativos que lhe fazem amar a sua arte e defendê-la contra tudo e todos que, dentro e fora dela, tentam aviltá-la; vendendo-a e vendendo a sua consciência a troco de mesquinhas satisfações de ordem pessoal: o interesse, a vaidade, a consagração oficial e pública. Se algum título eu aqui posso invocar, é apenas este: o de artista – um artista que sem deixar, é certo, de ser homem, e sem separar a sua arte do homem e de tudo quanto ao homem diz respeito ou interessa profundamente: os seus problemas, as suas lutas, o seu destino, a sua condição social –, só se acha contudo, qualificado para falar das questões referentes à sua arte e dar a esta o melhor da sua actividade ou alguns dons que acaso a Natureza lhe concedeu em graça2.

Uma das características marcantes da obra de Lopes-Graça consiste na busca de uma identificação profunda com o povo e a cultura portuguesa.

Para Lopes-Graça, «toda a arte tem de ser em primeiro lugar nacional, só depois do que, ou só mediante o que, poderá aspirar à ambicionada, e nem sempre alcançada, categoria de universal»3.

Em A Canção Popular Portuguesa, Lopes-Graça marca um ciclo de pesquisas, encetadas com a primeira série de Canções Populares Portuguesas.

O livro foi dedicado

aos jovens amigos e colaboradores do Coro da Academia de Amadores de Música, que, com dignificante sentido patriótico e cultural me [a ele, Lopes-Graça] têm devotadamente acompanhado na causa da divulgação e reabilitação da nossa canção popular.

Lopes-Graça deixa aberta a possibilidade de A Canção Popular Portuguesa vir a conhecer uma próxima edição, «mas esta certamente já não em vida do seu autor».

E assim ficou lançado o repto:

será de crer que quem dela tomar conta disponha dos dados que futuras investigações possam proporcionar-lhe, de sorte a que a obra se apresente mais rica de informação e com perspectivas sobre a matéria até agora insuspeitadas, não obstante os largos e muito significativos passos que em tal sentido foram dados de há umas três ou quatro décadas a esta parte.4

Cremos que, no âmbito em que Lopes-Graça situava a investigação sobre a música tradicional, não foram assim tantos os avanços registados, embora os haja, sendo de assinalar os trabalhos mais recentes publicados por José Alberto Sardinha e outros, produzidos sob a esfera académica5, como a 1 Sempre que fizermos citação ou remetermos para textos de Lopes-Graça reproduzidos nesta colectânea, indicaremos o seu título com o respectivo número colocado entre parêntesis rectos (v. Bibliografia). 2 Em «Sobre o conceito de popular na música» [1]. Palestra feita em Évora, em 1947, na Escola do Grupo de Amadores de Música Eborense, por ocasião do 5.o aniversário desta colectividade. 3 Em «Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas» [18]. Introdução a um concerto do Coro da Academia de Amadores de Música (Secção de Folclore), realizado no Tivoli, de Lisboa, por iniciativa da Juventude Musical Portuguesa. 4 Em «Nota à 4.a Edição de A Canção Popular Portuguesa» (Editorial Caminho, 1991). 5 Há vários trabalhos a considerar nesse âmbito, ao nível do trabalho de campo ou da pesquisa histórica, tais como os dois volumes (Romances du Trás-os-Montes e Le Chant du Pain) da pesquisadora Anne Caufriez e o ensaio O Essencial Sobre a Música Tradicional Portuguesa, de José Bettencourt da Câmara, diversos trabalhos académicos onde as tradições populares são modernamente perscrutadas no seu processo de mudança, a monografia sobre Artur Santos, de Cristina Brito da Cruz, e, ainda, a dissertação sobre a questão da tradição em Lopes-Graça, de Teresa Cascudo (estes últimos trabalhos não tiveram ainda a necessária sequência editorial).

6

Page 7: Conteudo Livro FLG CPP

colectânea de textos sobre o folclorismo e a folclorização, agrupados sob o sugestivo título de Vozes do Povo6, onde se realça o entendimento da cultura – e, dentro desta, do folclore – como produto histórico e se procura analisar o processo da folclorização e o contributo específico dos seus artífices.

Na ocasião do centenário do seu nascimento, surgiu a oportunidade de se disponibilizar ao público uma colectânea de textos de Lopes-Graça sobre a música tradicional, textos que se encontravam dispersos pelos vários volumes das suas Obras Literárias.

E o projecto começou a tomar forma enquanto ampliação da última edição de A Canção Popular Portuguesa. Ampliação porque o número de textos crescia consideravelmente e porque havia também condição de acompanhar aquilo que de facto ocorreu com as edições anteriores, onde a generalidade das músicas tradicionais coligidas por Lopes-Graça haviam sido objecto de tratamento na obra musical, pelo que se afigurou plausível extrair dessa mesma obra musical a indicação ou o critério para a ampliação pretendida.

Que esta edição não cumprirá de maneira cabal o que Lopes-Graça havia idealizado, estamos seguros. E aquilo que ela traz de novo não é, certamente, o que o autor de A Canção Popular Portuguesa colocaria numa quinta edição do seu livro, pois aqui resultou um enfoque personalizado, procurando realçar o contributo de Lopes-Graça para a criação de uma concepção de música tradicional: a música popular portuguesa em Fernando Lopes-Graça.

Sobre os textos de Fernando Lopes-Graça

A selecção de textos que se apresenta contém, pensamos nós, o essencial da intervenção escrita

de Fernando Lopes-Graça sobre o folclore e a canção popular portuguesa. Nestes, Lopes-Graça, ressalvando sempre não se considerar um folclorista, apresenta-nos o seu entendimento sobre a matéria.

Os conceitos de folclorismo e folclorização aparecerão nos diversos textos e notas que seguem. O folclorismo corresponde ao modo como, num momento histórico específico, o folclore foi entendido e valorizado. Já a folclorização consistirá no «processo de construção e de institucionalização de práticas performativas, tidas por tradicionais, constituídas por fragmentos retirados da cultura popular, em regra rural»7.

A par da problematização do folclore proposta em Vozes do Povo, podemos referir ainda a abordagem do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes8: trata-se de um questionamento simultaneamente convergente e sincrónico com Lopes-Graça (isto é, produzido no mesmo período em que este desenvolve o essencial do seu trabalho no âmbito do folclore); uma leitura que procura relacionar a vertente científica com a vertente estética, característica central da questão no que refere a Lopes-Graça.

Segundo aquele autor, serão três as orientações em que se desenvolvem as preocupações essenciais dos folcloristas: «a subordinação dos estudos folclóricos a critérios de investigação fornecidos pelas ciências sociais; a aspiração de converter o folclore em disciplina científica autónoma»; e, finalmente, «o recurso a critérios estéticos de reconstrução e de apresentação das

6 Castelo-Branco, Salwa (org). Vozes do Povo. Celta Editora (Oeiras, 2003). Não deixa todavia de ser relevante que, sendo a questão do folclorismo tratada em toda a sua extensão em Vozes do Povo, Lopes-Graça seja citado praticamente em todos os artigos e não haja um que, especificamente, seja dedicado à análise do contributo deste autor. O estudo da participação de Lopes-Graça no processo de folclorização está ainda por fazer. A simples constatação do uso que Lopes-Graça fazia da música tradicional portuguesa e dos conceitos que, a respeito dela, exprimia nos seus escritos e intervenções não permite fazer o alinhamento directo deste autor junto dos demais artífices da folclorização. Há diferenças assinaláveis de sentido quando conceitos como «autenticidade» ou «qualidade estética» são utilizados por Lopes-Graça ou por outros intervenientes da sua geração. 7 Castelo-Branco, ibidem. 8 Fernandes, Florestan (1956). O Folclore em Questão. Editora Huitec (São Paulo, 1978). A referência à proposta deste autor vem aproveitada de um trabalho intitulado F. Lopes-Graça e o Folclorismo Musical (Alexandre B. Weffort e Eli Camargo Jr.; 1999, texto inédito).

7

Page 8: Conteudo Livro FLG CPP

manifestações folclóricas». Cremos que é precisamente esta última a que melhor enquadra o posicionamento particular de Lopes-Graça9.

Podemos hoje, dispondo da necessária distanciação, tentar reconhecer no folclorismo as margens e seu sentido. Da mesma forma que os conceitos de povo, cultura e folclore são construções históricas, a intervenção de Lopes-Graça no âmbito do folclore é historicamente datada (e este será um factor a reter para a interpretação do sentido dos seus textos).

Nos seus escritos, Lopes-Graça combate de forma sistemática e incisiva o processo de folclorização encetado pelo Estado Novo e contrapõe, na sua prática enquanto compositor e músico actuante, uma visão própria do valor da música popular enquanto «expressão e documento da vida, sentimentos, aspirações e afectos do nosso povo»10, afirmando que:

ela nos define e integra na nossa realidade psicológica e social. Amá-la, é conhecermo-nos no que em nós existe de mais fundo e enraizado no solo natal; defendê-la, é defender portanto uma parcela de nós mesmos, da nossa individualidade, da nossa história íntima11.

O folclore é, no pensamento de Lopes-Graça, produto de evolução e de transformação. Combatendo a tendência dominante do processo de folclorização, Lopes-Graça intervém também nesse processo. Mas a sua intervenção realiza-se integrada num «movimento de busca e descoberta de um País, ele próprio atravessado pelas crises da sua história política e social»12 – de «um Portugal antigo, rural, depauperado, mas também de um Portugal ocultado pelo discurso do regime»13 – movimento em que Lopes-Graça participa, em busca de «um conhecimento mais crítico, mais liberto, que o revele através daquilo que poderiam ser as suas manifestações mais arcaicas, de vozes e gestos»14.

Há em Lopes-Graça um prisma ideológico que informa o sentido das suas acções.

O povo de Lopes-Graça não é nem nunca foi o povo de que falavam o Estado Novo e o SNI [Secretariado Nacional de Informação]. Assim como a chamada política do espírito tinha para o seu povo a música que convinha, assim Lopes-Graça se esforçava por desmascarar a imagem ínsita nessa operação de propaganda. Daí que rejeitasse o pitoresco e procurasse nas canções do povo o que nelas havia de mais representativo da sua luta pela sobrevivência, da sua sabedoria da vida, do seu humanismo religioso, do seu anseio de amor, de paz e de progresso, da sua capacidade de resistência, da sua energia criadora, da sua irreverência, do seu potencial subversivo15. Lopes-Graça intervém no âmbito do folclore enquanto artista e enquanto cidadão do seu tempo.

Os seus escritos destinavam-se à intervenção na realidade, e não apenas à reflexão distanciada da mesma, mas, não obstante, a sua acção era informada por um esforço de distanciação, para o qual recorria ao conhecimento científico disponível. À medida em que se amplia o leque de informação,

9 Florestan Fernandes aprofunda a questão considerando que «o critério estético permite conhecer aspectos da realidade que são inacessíveis à indagação histórica e à investigação experimental. No estudo do folclore, esse critério abre perspectivas para a descrição de conexões psicoculturais das actividades humanas que só são acessíveis, vistas através de situações concretas de existência, à exposição intuitiva. Daí o contraste que se pode estabelecer entre a orientação estética e a orientação científica na reconstrução do folclore. A pesquisa folclórica, de orientação científica, visa reconstruir o objecto e a explicá-lo por meio da abstracção dos elementos formais, estruturais ou funcionais que se repetem com certa regularidade ou que variam dentro de um intervalo reconhecível de flutuação. Ela é incapaz, portanto, de reunir evidências que permitam representar o objecto através dos elementos cuja variação não possa ser compreendida nos limites comuns: a) do que se repete com regularidade; b) do que se altera dentro de um intervalo definido de flutuação. A abordagem estética, ao contrário, comporta a reconstrução do folclore a partir desses elementos. Pela observação e pela compreensão endopática, ela pode estabelecer dentro de que limites os efeitos irregulares,que transcendem à capacidade média ou comum de percepção social e da reacção condicionada, se inserem no contexto das ocorrências folclóricas, caracterizando-as de modo profundo. Com isso, o excepcional é excluído da esfera do contingente e passa a servir como fonte de reconstrução e de explicação das condições ou das situações em que possa ocorrer». 10 Em Lopes-Graça, F. «Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa» [2]. 11 Idem, ibidem. 12 Pais de Brito, Joaquim. Onde Mora o Franklin? Um Escultor do Acaso. MNE (Lisboa, 1995). 13 Idem, ibidem. 14 Idem , ibidem. 15 Viera de Carvalho, Mário. O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça. INCM (Lisboa, 1989).

8

Page 9: Conteudo Livro FLG CPP

regista-se uma transformação do seu pensamento, o que na maior parte das vezes é noticiado pelo próprio16.

O assentamento das bases em que ocorre a indagação científica a respeito da cultura popular é um processo em permanente evolução, com correntes e modas, algumas mais perenes, outras passageiras. Lopes-Graça revelou acompanhar atenta e criticamente este processo, a ele reagindo e nele intervindo constantemente.

E, embora Lopes-Graça afirmasse sempre não ser um folclorista,

nem por isso deverá a dimensão científica do seu contributo ser omitida. [...] deve-se-lhe um significativo legado em matéria estritamente etnomusicológica, seja pela reflexão produzida sobre a nossa música tradicional [...], seja por algum trabalho de campo a que também procedeu, só ou acompanhando Michel Giacometti, seja ainda pelo apoio musicológico que a este último não regateou»17.

Do conjunto dos escritos de Lopes-Graça seleccionados para esta colectânea, podemos desde já referenciar algumas preocupações recorrentes: a delimitação do conceito de música tradicional (essencialmente rural, que Lopes-Graça diferenciava da música popular urbana); o reconhecimento da música tradicional enquanto parte integrante de uma identidade cultural nacional; a valorização estética da música tradicional e o sublinhar da relação entre a música e a vida social.

Assim definia Lopes-Graça a canção popular18:

companheira da vida e trabalhos do povo português, a canção segue-o do berço ao túmulo, exprimindo-lhe as alegrias e as dores, as esperanças e as incertezas, o amor e a fé, retratando-lhe fielmente a fisionomia, o género de ocupações, o próprio ambiente geográfico, de tal maneira ela, a canção, o homem e a terra, onde uma floresce e o outro labuta, e ama, e crê, e sonha, e a que entrega por fim o corpo, formam uma unidade, um todo indissolúvel19.

Os textos de Lopes-Graça adiante reproduzidos foram agrupados da seguinte forma, de acordo com o enfoque que assumem: conceituação (n.os 1 a 5), problematização (n.os 6 a 10), caracterização (n.os 11 a 16), tratamento (n.os 17 a 19), regiões (n.os 20 a 28) e crítica (n.os 29 a 32), sendo que, dentro de cada grupo, a ordenação seguida é a da data da sua primeira publicação20.

Dos textos incluídos, alguns merecem especial atenção: trata-se das entradas relativas à música popular da Beira Baixa e do Alentejo constantes da primeira edição de A Canção Popular Portuguesa, que foram retiradas na segunda edição e seguintes do livro.

Lopes-Graça explica a razão da alteração:

os dois estudos que na 1.a edição se estamparam como apêndices («Apontamentos sobre a canção alentejana e Apontamentos sobre a canção popular da Baira Baixa) foram [...]

16 Vejam-se, por exemplo, os textos «Apontamentos sobre a canção alentejana» [20] e «Acerca do canto alentejano» [22] ou «Apontamentos sobre a canção popular da Beira Baixa» [23] e «Cantos da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral» [25] das primeira e quarta edições de A Canção Popular Portuguesa ou em «Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa» [2]. 17 Bettencourt da Câmara, José. O Essencial Sobre a Música Tradicional Portuguesa. INCM (Lisboa, 2001). Assinalando a «relação multímoda» de Lopes-Graça com a música tradicional portuguesa, este autor refere ainda, em Lopes-Graça, a «definição da música popular portuguesa como a do património das nossas comunidades rurais, exagerando certamente no seu combate à “mitologia fadista”». A questão do fado foi objecto de tratamento por Lopes-Graça em alguns textos específicos. Optamos por não os inserir por entendermos ser esta uma questão marginal ao conceito de música popular praticado por Lopes-Graça e, por outro lado, por considerarmos que a compreensão da posição de Lopes-Graça a respeito do fado requer uma abordagem mais extensa do que o adequado neste contexto. 18 Para Lopes Graça, «por canção popular portuguesa se deve entender, antes de tudo, a nossa canção rústica» (em «Folclore autêntico e contrafacção folclórica» [3]). 19 A mesma fonte referida na nota anterior. 20 Tendo por critério fazer uso apenas dos textos editados por Lopes-Graça, ficaram de fora os guiões para programas de rádio e outros textos avulsos. É de assinalar também a ausência do prefácio de Lopes-Graça ao livro de José Alberto Sardinha sobre a Estremadura, o texto sobre Giacometti, gravado aquando de um diaporama em homenagem a este pesquisador, e algumas entrevistas concedidas por Lopes-Graça onde a questão da música popular portuguesa é também tratada.

9

Page 10: Conteudo Livro FLG CPP

suprimidos, tanto por deslocados no contexto geral, como porque o seu teor desdizia em parte certas conclusões a que nos foi possível entretanto chegar».

Cabe-nos explicar a razão que justifica recuperar esses escritos: dar ao leitor a oportunidade de apreciar a transformação do pensamento do autor, em conteúdo e estilo, ao longo das quase cinco décadas em que, neste âmbito específico da escrita sobre a canção popular portuguesa, Lopes-Graça intervém.

Os textos que seguem mostram-nos não apenas o pensamento do autor sobre a temática em apreço mas também o modo como aproveitava a oportunidade para, partindo dessa temática específica, alargar o horizonte das preocupações e questões específicas da música e cultura populares aos problemas do seu país, do seu povo, do seu tempo.

Como oportunamente assinala Mário Vieira de Carvalho21 ao sublinhar o carácter nacional da obra musical de Fernando Lopes-Graça, este «jamais escreveu uma nota alheado das formas de existência social da sua música, conscientemente assumida como “produto de uma equação entre o artista e o seu meio”». Esta afirmação, que Mário Vieira de Carvalho faz tendo em vista a obra musical22, estendemo-la nós aos escritos sobre a música popular.

Os exemplos musicais

Os textos sobre a canção popular portuguesa foram aqui considerados com base num critério de

alargamento do material apresentado por Lopes-Graça em A Canção Popular Portuguesa. Já os exemplos musicais seguem uma lógica menos linear.

Há uma alteração substancial de critério a assinalar no alargamento dos exemplos apresentados por Lopes-Graça na obra referida e nesta colectânea, que passa das sete dezenas para a centena e meia.

Em A Canção Popular Portuguesa, Lopes-Graça expõe, no terreno da indagação científica, as suas descobertas e ideias a respeito do folclore musical e, na selecção dos exemplos, procura atender aos critérios científicos da época. Afirmando sempre não ser folclorista, vai entrando no terreno e marcando de forma determinante o desenvolvimento do folclorismo em Portugal. Todavia, cotejando os exemplos musicais expostos em livro com os que utiliza como material para a composição, podemos observar haver na obra composta um critério mais aberto que o observado no livro em referência.

Sem querer cair num vício de anacronismo, que resultaria da apreciação da obra fora do seu tempo, é sobretudo na utilização da fonte folclórica enquanto matéria para a criação musical, que Lopes-Graça manifesta a sua plena modernidade.

Assim, fomos à procura na obra composta, na criação musical de autor, das fontes que, muito provavelmente, foram por ele utilizadas para a composição de mais de cinco centenas de peças musicais de raiz tradicional. Daquelas que foi possível descortinar a fonte, seleccionamos centena e meia, baseados sobretudo em duas grandes colecções: as canções para voz e piano e as canções corais a capella.

A razão dessa escolha prende-se com o facto de, nessas duas colecções, ser mais evidente o propósito de Lopes-Graça em gerar instrumentos de divulgação de traço etnográfico. Assim, nas canções para voz e piano, os temas populares são expostos pelo canto quase sem modificação em relação à fonte, sendo o trabalho composicional realizado na parte do piano.

Nas canções corais a capella o propósito da divulgação do folclore é de ordem programática: nas palavras de Lopes-Graça, «as canções regionais portuguesas [foram] o sucedâneo obrigatório das

21 Viera de Carvalho, Mário. O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça. INCM (Lisboa, 1989). 22 Diz Vieira de Carvalho (no texto já referido): «Se [Lopes-Graça] dedicou numerosos textos à canção popular portuguesa (alguns reunidos em livro, outros dispersos nomeadamente pelos diversos volumes da Antologia) não é essa leitura que dela faz a que mais interessa à nossa perspectiva: é a leitura do compositor ao trabalhar sobre o documento original, repensando-o, transformando-o, recriando-o, trazendo-o para outro plano.»

10

Page 11: Conteudo Livro FLG CPP

canções heróicas [...]. Tinham a sua missão também de reavivar de recordar ao povo as suas canções originais»23.

Tanto no material editado por Lopes-Graça em livro como, obviamente, nas suas criações musicais, manifesta-se sempre presente o critério do músico, em parceria com o do folclorista (que, recordemos, Lopes-Graça afirmava não ser). E esse facto tem aparentemente levado o meio científico, sobretudo o de vinculação académica, a evitar de certa forma fazer uso do legado de Lopes-Graça para uma abordagem disciplinar no âmbito da etnomusicologia.

O critério de selecção dos exemplos musicais aplicado por Lopes-Graça, tendo definido nele um parâmetro estético, tem chocado com as perspectivas metodológicas hoje predominantes no âmbito da etnomusicologia, onde esse mesmo critério se apresenta como uma contaminação, a priori, dos dados pela perspectiva do observador.

Mas, se essa reserva for pertinente (o que não está para nós em questão), então importará conhecer intimamente esse critério estético para, conhecendo o filtro utilizado, melhor discernir sobre a significação dos dados.

A obra musical de Lopes-Graça apresenta-nos o critério mais amplo do autor face à questão estética. Assim, procuramos constituir uma colectânea de temas musicais populares que, em nossa opinião, estabelecem uma ideia abrangente da música popular portuguesa, socorrendo-nos novamente da formulação de Mário Vieira de Carvalho quando afirma que quem

se familiariza com a arte de Lopes-Graça (sobretudo com as suas recriações de canções regionais para o Coro da Academia de Amadores de Música ou em versões para canto e piano) é induzido a formar uma determinada concepção do carácter nacional da nossa música24.

Trata-se pois de uma determinada concepção, aquela que é proposta, da música popular portuguesa em Fernando Lopes-Graça.

Procurámos um critério de ordenação também correspondente ao gesto do autor. Seguimos, assim, as datas de publicação dos cadernos das canções populares para voz e piano e das canções corais. Exceptuando as colectâneas como as Cantatas de Natal, as Encomendações das Almas e o caderno sobre as cantigas de Linhares, dedicado a Vergílio Pereira e baseado em recolhas deste último, a ordenação resulta, nos planos temático e regional, «desordenada». Mas esse foi efectivamente o critério editorial praticado por Lopes-Graça25. Cada caderno de canções apresenta-se, antes de mais, como uma proposta de programa de recital, contemplando uma diversidade de regiões e temas.

Procurámos apresentar os exemplos tal qual Lopes-Graça os encontrou e, sempre que surgiram dúvidas (sobretudo de notação), diligenciámos resolvê-las recorrendo, caso a caso, à solução apresentada por Lopes-Graça.

Por outro lado, juntámos numa colectânea anexa as letras que o autor seleccionou para acompanhar a composição musical. Nelas podemos observar também as tendências estéticas e ideológicas do compositor que, repetindo citação anterior, «jamais escreveu uma nota alheado das formas de existência social da sua música, conscientemente assumida como “produto de uma equação entre o artista e o seu meio”26.

Fontes folclóricas em Fernando Lopes-Graça

23 Registo sonoro, ao vivo, de Lopes-Graça numa apresentação do Coro da Academia de Amadores de Música (Lisboa, 1976). 24 Viera de Carvalho, Mário. O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça. INCM (Lisboa, 1989). 25 Em abono da verdade, tivemos algumas dificuldades quanto ao critério de ordenação temática utilizado por Lopes-Graça para, mantendo aquela ordenação, realizar um alargamento quantitativo do material. O critério apresentado no Cancioneiro Popular Português (1981) é mais profícuo, mas sendo da autoria de Giacometti, não faria sentido aplicá-lo a Lopes-Graça até porque este, na 4.a edição de A Canção Popular Portuguesa (1991), não faz dele uso. Nos guiões de programas de rádio já referidos, o critério utilizado por Lopes-Graça é mais consistente, mas subordinado ao discurso expositivo inerente ao meio radiofónico. Optamos, assim, pelo critério editorial da obra composta, procurando colmatar a ausência de uma ordenação regional ou temática através da adição de índices específicos. 26 Ver nota 22.

11

Page 12: Conteudo Livro FLG CPP

A constituição da antologia de canções populares portuguesas extraídas da obra musical composta

por Lopes-Graça observou, como critério elementar, descobrir a sua fonte provável27. E, encontrada essa fonte, passou-se a um processo de selecção com vista à obtenção de uma antologia minimamente equilibrada na sua diversidade, que correspondesse à imagem que fazemos da sua obra musical28.

Se, da antologia agora publicada, não é possível retirar ilações conclusivas quanto à natureza do critério estético de Lopes-Graça, o mesmo ocorrerá em relação às fontes utilizadas, pois não foram estas esgotadas. Mas é possível, contudo, propor uma hipótese quanto ao trajecto da integração dessas fontes no manancial de material folclórico que Lopes-Graça foi progressivamente acumulando.

A primeira peça para voz e piano, aquela com que Lopes-Graça abre a primeira de quatro séries de vinte e quatro canções populares portuguesas29, foi a canção No figueiral, figueiredo. A Canção do Figueiral aparece em várias fontes a que Lopes-Graça poderia plausivelmente ter recorrido. O tema foi utilizado por Viana da Mota30, foi reproduzido no Cancioneiro de César das Neves, ao qual Lopes-Graça poderia ter acedido na Biblioteca do Conservatório Nacional, assim como, também, no Cancioneiro Musical Português, de Francisco de Lacerda.

Pelo título adoptado por Lopes-Graça para essa canção, poderíamos sugerir que a fonte foi Lacerda, mas um pequeno detalhe de transcrição da letra sugere César das Neves como fonte também provável31. Entende-se todavia mais consentâneo com a sua maneira de ser que Lopes-Graça tivesse percorrido todas essas diversas fontes.

A busca à volta da hipótese de ser Francisco de Lacerda a fonte revela-se profícua. Lopes-Graça faz também uso de outras peças editadas por Lacerda no seu Cancioneiro Musical Português32. E Lacerda pode muito provavelmente ter sido o ponto de partida para Lopes-Graça na sua abordagem sistemática do material folclórico, pois quase todos os autores ali representados foram por ele perscrutados e alguns deles efectivamente utilizados, o que podemos dizer, quase certamente, através de citação de Lacerda.

Um dos autores mais utilizados por Francisco de Lacerda no seu cancioneiro é Pedro Fernandes Tomás. Deste último, Lopes-Graça conheceu em detalhe e utilizou material dos seus três livros: Velhas canções e Romances Populares (1913), Cantares do Povo (1919) e Canções Populares da Beira (2.a ed., 1923). Deste último trabalho, o mais extenso, Lopes-Graça fez menor uso, talvez devido à preponderância das canções coreográficas, que considerava musicalmente menos interessantes33.

Outro autor, que Lacerda cita apenas duas vezes e que Lopes-Graça aproveita uma, é Felipe Pedrell, do qual é utilizada uma versão do Romance de Santa Iria estampada no Cancionero Musical Español34. E não se tratará, certamente, de uma manifestação do conhecido iberismo de Lopes-Graça, mas de se saber que muitos dos registos mais antigos da música portuguesa encontram-se guardados em arquivos espanhóis35. 27 Para isso recorremos à comparação sistemática dos textos e desenhos melódicos dos temas utilizados por Lopes-Graça com os editados em diversos cancioneiros e documentos similares. Para validar a hipótese, além da necessária coincidência da «solfa», a data de publicação da fonte teria de ser anterior à da sua utilização. 28 Fica, assim, o leitor alertado para os limites de validade que decorrem dos aspectos subjectivos do processo de escolha desta proposta antológica, a qual representa, grosso modo, a quarta parte do conjunto dos temas populares utilizados por Lopes-Graça na sua obra musical. 29 São ao todo 103 canções. 30 Em Cenas Portuguesas, Op. 18, para piano, que datam de 1908. 31 Ou, mesmo a fonte indicada por César das Neves: o livro intitulado Epopeas da Raça Mosarabe, de Teófilo Braga. 32 Nos seis fascículos até agora editados. Não sabemos se, por alguma circunstância, Lopes-Graça conheceria em detalhe, no todo ou em parte, o restante material inédito que, esperamos, será brevemente editado, conforme informa José Bettencourt da Câmara. 33 Lopes-Graça considerava as recolhas de Pedro Fernandes Tomás «sem dúvida mais prestantes (comparando com as de César das Neves) mas ainda longe de se alicerçarem em critérios esclarecidos e esclarecedores» (em «O problema da canção popular portuguesa» [4]). 34 Lopes-Graça faz uso desta versão para uma canção de voz e piano, mas não a utiliza no seu livro A Canção Popular Portuguesa, preferindo, primeiro uma de António Joyce e depois, em substituição desta, uma de Francisco Serrano. 35 Diz Lopes-Graça a propósito do romanceiro popular português: «No geral, enfeuda-se este ao romance espanhol. Não nos compete a nós discutir esta teoria, ou terçar armas pela sua pertinência ou impertinência. Mas antolha-se-nos que algo se poderia adiantar numa questão em que as peças processuais são desigualmente sopesadas, se se considerasse que as toadas dos romances portugueses não são de modo algum uma réplica das toadas dos romances espanhóis, que, na variedade dos seus giros melódicos, rítmicos e tonais, elas observam uma individualidade própria (sem que por isso as tenhamos por estanques), que, em suma, as

12

Page 13: Conteudo Livro FLG CPP

Nas fontes de Lopes-Graça encontramos utilização de dois outros autores que, embora tenham editado ainda em vida do ilustre compositor e maestro açoriano, não chegaram a Lopes-Graça por essa via: Francisco Serrano (1921) e Firmino Martins (1928).

É provável que o conhecimento destes dois autores seja mais tardio. Firmino Martins torna-se referência quando edita Folclore de Vinhais36, obra onde, além do seu mérito próprio, são estampadas algumas das recolhas de Kurt Schindler. O livro de Francisco Serrano, Romances e Canções Populares da Minha Terra37 terá sido apresentado a Lopes-Graça, já nos anos 50, por um elemento do Coro da Academia de Amadores de Música, curioso destas questões38. Sobre este livro Lopes-Graça escreve um artigo em 1982, que integra na quarta edição de A Canção Popular Portuguesa sob o título «Lembrando Francisco Serrano».

As recolhas de Kurt Schindler são referência obrigatória na obra musical de Lopes-Graça. A canção de embalar Ó, ó, menino, ó, para voz e piano, ou a peça intitulada Quatro laços da dança de paulitos, para coro a capella – adiante reproduzidos –, são dois exemplos, entre muitos, do aproveitamento que Lopes-Graça fez deste autor. Um exemplar de Folk Music and Poetry from Spain and Portugal, de Kurt Schindler, consta da biblioteca de Lopes-Graça, com evidentes sinais de uso39.

Mas, dos contributos de autores estrangeiros, o livro que mais marcou o horizonte de Lopes-Graça foi, certamente, Cantares do Povo Português, de Rodney Gallop. Editado em 1936, Lopes-Graça faz dele uma extensa e profunda análise crítica, fixada num artigo de 1937 (artigo que aparece citado por António Joyce no Relatório do Júri Provincial da Beira Baixa, publicado na Revista Ocidente, em 1939). Sobre este livro, e da leitura que dele fez Lopes-Graça, remetemos o leitor para o texto intitulado «Folclore musical português» [29], incluído nesta compilação. E passamos assim a outra fonte.

O texto, acima referido, de António Avelino Joyce é de importância crucial. Trata-se do relatório que resulta do processo de apuramento do concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, uma das iniciativas determinantes do processo de folclorização encetado pelo Estado Novo. Vários dos exemplos musicais fixados por Joyce são utilizados, entre outros compositores, por Cláudio Carneyro, Joly Braga Santos e, naturalmente, Lopes-Graça40.

Já na década de 40, é editado o Cancioneiro Minhoto de Gonçalo Sampaio, sobre o qual Lopes-Graça escreve uma crítica em 194541 e do qual aproveita vários espécimes.

Em 1947, Lopes-Graça desenvolve trabalho de campo na Beira Baixa, dando disso notícia em artigo intitulado «Apontamentos sobre a canção popular da Beira Baixa». Em 1949, procede a recolhas na região de Évora, na companhia de Luís de Freitas Branco42, e em Pegarinhos, na região de Trás-os-Montes. Em 1953 realiza uma prospecção folclórica na Beira Baixa, com apoio de um magnetofone. Os registos efectuados nessa ocasião só agora foram recuperados43. Nos anos de 1966, 1969, 1970 e 1971 participa em trabalhos de campo na companhia de Michel Giacometti.

toadas dos romances portugueses são... portuguesas, sem prejuízo da diversidade dos materiais carreados para o caldeamento daquilo que definimos por “português”.» (em «Sobre as toadas dos romances populares portugueses» [16], texto incluso no Romanceiro Geral do Povo Português de Alves Redol, editado em 1964). 36 O primeiro volume em 1928 e o segundo em 1938. 37 Editado em 1921, em Braga. 38 Assim nos relata Albino Martins Faria, que assevera ter oferecido a Lopes-Graça um exemplar de Romances e Canções Populares da Minha Terra. Albino Faria, membro mais antigo do Coro da Academia de Amadores de Música, hoje Coro Lopes-Graça, conserva uma bela colecção de cancioneiros e obras similares que, sugerido pelas obras cantadas no coro ou pelas referências dadas pelo seu maestro, ia adquirindo sempre que possível (exemplares que foram, alguns deles, gentilmente cedidos para a nossa pesquisa). 39 Consultado na biblioteca do Museu da Música Portuguesa-Casa Museu Verdades de Faria, no Monte-Estoril, Cascais, onde se encontra depositado o espólio de Lopes-Graça. 40 Uma dezena deles vai reproduzida nesta colectânea. 41 «Sobre o Cancioneiro Minhoto de Gonçalo Sampaio» [30]. 42 Em Reguengos de Monsaraz. 43 Giacometti dava estes registos sonoros como extraviados (1981: Vértice n.os 444-445). Foram recentemente identificados e digitalizados no Museu da Música Portuguesa-Casa Museu Verdades de Faria. Alguns destes registos integram o suporte multimédia que acompanha este livro.

13

Page 14: Conteudo Livro FLG CPP

Em 1953, o próprio Lopes-Graça publica A Canção Popular Portuguesa, fazendo uso intensivo dos exemplos musicais ali consignados. Nesse mesmo ano Margot Dias publica o resultado das suas pesquisas com Jorge Dias A Encomendação das Almas e Rio de Onor.

De Artur Santos, Lopes-Graça utiliza alguns temas que haviam sido integrado nos Álbuns de Música Portuguesa, publicados por Luís de Freitas Branco em 1944 (e revela ter conhecimento dos registos posteriores por este efectuados nos Açores e nas Beiras), o mesmo acontecendo com Cláudio Carneiro, de quem Lopes-Graça chegou a gravar algumas peças, entre elas a canção Ó meu amorzinho para voz e piano44, da qual (ou, antes, tema do qual) fez uma versão para coro a capella.

Na década de 50, Vergílio Pereira desenvolve diversos trabalhos de pesquisa. Os mais conhecidos, editados em livro, foram os cancioneiros de Cinfães (1950) e de Arouca (1959). Vergílio Pereira ainda realizou pesquisa na Beira Baixa, já na década de 60. Lopes-Graça conheceu-o pessoalmente, tendo escrito, em 1951, um artigo sobre o Cancioneiro de Cinfães. As pesquisas realizadas por Vergílio Pereira nas regiões beirãs, algumas sob os auspícios da Fundação Gulbenkian45, serviram também de base ao trabalho de campo de Michel Giacometti, quem, com Lopes-Graça, dedicou expressamente a Vergílio Pereira o volume respectivo da Antologia da Música Regional Portuguesa46.

Michel Giacometti é, certamente, a fonte decisiva para Lopes-Graça. Com o trabalho de Giacometti, criaram-se as condições para um contacto sonoro mais amplo e sistemático com a fonte da música tradicional. Como refere Lopes-Graça em «O problema da canção popular portuguesa», a Antologia da música regional portuguesa

oferece-nos já um panorama largo e vivo da nossa canção popular, do mesmo passo revelando-nos preciosos e insuspeitados aspectos desta, que vêm ampliar consideravelmente os conceitos que dela se poderiam formar através dos sós documentos escritos.

Lopes-Graça preconizava ser «a recolha e estudo sistemático da nossa canção popular uma tarefa que importava realizar com a maior urgência, com vista sobretudo à organização e publicação de um Cancioneiro Popular Geral que, de uma forma tanto quanto possível completa, compendiasse, por províncias, regiões, zonas de afinidade ou qualquer outro método que mais conveniente se julgasse, o rico e pela sua maior parte ignorado tesouro do nosso folclore musical»47. Foi essa a tarefa que Giacometti procurou concretizar ao longo de trinta anos de vida em Portugal, em permanente e estreita colaboração com Lopes-Graça.

É também em colaboração com Lopes-Graça, que Giacometti edita em 1981 o Cancioneiro Popular Português, obra que se tornou referência incontornável no conhecimento da música popular portuguesa. Nesse cancioneiro – onde encontramos muitas das canções originais utilizadas por Lopes-Graça – são reproduzidos e recuperados para o público diversos autores menos conhecidos. Para alguns desses, o nosso caminho de acesso foi também mediado pelo cancioneiro de Giacometti48.

De Giacometti há ainda a registar uma fonte de informação preciosa: a série televisiva Povo que Canta, onde «os valores do registo sonoro são alargados à integral captação do fenómeno musical, no seu contexto, no gesto mesmo que ele representa»49.

44 Interpretada por Arminda Corrêa, com Lopes-Graça ao piano, num álbum que integra, além de obras do já referido Cláudio Carneiro, canções da autoria de Artur Santos, de Francisco de Lacerda e do próprio Lopes-Graça. 45 Que, só agora, passadas três décadas, irão conhecer a luz do dia. As gravações realizadas por Vergílio Pereira na Beira Baixa integram actualmente o acervo do Museu Nacional de Etnologia. 46 Edição discográfica, em cinco volumes, da música tradicional portuguesa, abrangendo respectivamente, as regiões de Trás-os-Montes, do Algarve, do Minho, do Alentejo e, finalmente, da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral. Dessa colectânea ficou por editar um último volume com exemplos musicais da Estremadura e Ribatejo. 47 Em «O problema da canção popular portuguesa» [4]. 48 As notas relativas a cada entrada são, no cancioneiro de Giacometti, referência enriquecedora e indispensável. Fazendo explanação detalhada da fonte citada e de outras comparadas, as notas constituem um guia para a integração do material musical (e também um guia para o acervo que constitui a biblioteca especializada de Giacometti – que consta de cerca de 4000 títulos – em tempo adquirida pela Câmara Municipal de Cascais e disponibilizada ao público no Museu da Música Portuguesa). 49 Bettencourt da Câmara, José. O Essencial Sobre a Música Tradicional Portuguesa. INCM (Lisboa, 2001).

14

Page 15: Conteudo Livro FLG CPP

Estão assim referidas as principais fontes do material folclórico utilizadas por Lopes-Graça e que são aqui também citadas ou, em parte, reproduzidas, tendo como objectivo, antes de mais, focar a relação dessa fonte com a obra de Lopes-Graça.

A obra musical de raiz tradicional

Encontramos no catálogo50 da obra musical de Fernando Lopes-Graça mais de três dezenas de

entradas de obras onde a temática folclórica é explícita. Nestas, podemos relacionar mais de cinco centenas de canções recriadas para diversas instrumentações, desde o piano solo, passando para a voz e piano, variadas formações camerísticas até à orquestra sinfónica.

A primeira obra conservada51 no catálogo de Lopes-Graça data de 1927: as Variações sobre um tema popular português – para piano. Lopes-Graça não indicou a proveniência do tema original. Em conversa, chegou a aventar a possibilidade de ter o tema proveniência espanhola (por outro lado, Constança Capdeville indica ser o tema «extraído de uma canção alentejana»52). Nós encontrámos semelhanças de contorno melódico e ritmo no romance Dom João vai à caça, registado por Pedro Fernandes Tomás e que Lopes-Graça reproduz no Romanceiro Popular Português, de Alves Redol.

Entre 1927 e 1939 não há a registar passos significativos nesta área. Em 1939, Lopes-Graça inicia a composição das Canções Populares Portuguesas para Voz e Piano (Versão de Concerto). Estas canções, organizadas em séries de 24 canções, apresentam-se como o primeiro passo, e passo decisivo, na assimilação da fonte tradicional.

Aquando de uma apresentação pública das suas canções, com a interpretação a cargo de Olga Violante e o próprio Lopes-Graça ao piano, Santiago Kastner publica na revista Seara Nova53 uma crítica onde, manifestando embora o seu menor agrado face a alguns traços da liguagem musical de Lopes-Graça (Kastner considera que Lopes-Graça «abusa dos seus já típicos cachos de segundas [...]»54), reconhece desde logo a qualidade e o alcance da obra afirmando que «a utilidade para a música portuguesa deste trabalho ainda se há-de estimar em anos vindouros; criou-se uma base em que pode assentar uma música portuguesa autónoma e de sentido universal»55. Destas canções, que tiveram diversos intérpretes vocais, há um registo discográfico na voz de Arminda Correa, com Lopes-Graça ao piano.

As canções populares para voz e piano foram para Lopes-Graça também um espaço de pesquisa (que não deixou de ser explorado com regularidade pelo compositor até aos anos 80) – um laboratório também para outras abordagens –, tendo algumas dessas canções sido transportadas para a música de câmara ou para a orquestra. E foi para orquestra a obra seguinte.

Em 1941, Lopes-Graça compõe Trois Danses Portugaises, desta feita baseada em dois temas instrumentais e uma canção dançada (Fandango, Dança dos pauliteiros, Malhão). Os temas escolhidos refletem ainda o imagiário dominante da música tradicional praticado por outros compositores como, por exemplo, Luís de Freitas Branco ou Viana da Mota, mas o tratamento revela já o prisma específico de Lopes-Graça.

Em 1943 inicia a composição das canções corais a capella56. As canções corais constituem não só um espaço de exploração criadora mas também de intervenção cívica. Tanto nas canções para voz e piano como nas corais é assinalável a intenção do autor em conservar a fonte. No caso das canções corais, há uma natural contenção do compositor, atendendo à condição amadora do seu intérprete 50 Cascudo, Teresa. Fernando Lopes-Graça. Catálogo do espólio musical. Colecção Museu da Música Portuguesa 2. Cascais: 1997. 51 Dizemos conservada porque há obras que não se encontram no catálogo e algumas que foram inutilizadas pelo autor. 52 Nas notas para o disco Lopes-Graça – Obras para piano. EMI (Lisboa, 1994). 53 No n.o 760, de 7 de Março de 1942. 54 Idem, ibidem. 55 Idem, ibidem. 56 Há ligeira discrepância entre as datas no Catálogo do Museu da Música Portuguesa e na tábua da obra indicada por Mário Vieira de Carvalho, que, neste âmbito da obra coral a capella, é mais detalhada.

15

Page 16: Conteudo Livro FLG CPP

privilegiado – foram elas destinadas ao repertório do Coro da Academia de Amadores de Música. Esse esforço de contenção perdura ao longo de 22 dos 24 cadernos das canções tradicionais portuguesas. Pode assinalar-se, contudo, uma maior liberdade (e consequentemente maior dificuldade) nas obras que integram os últimos dois cadernos, compostas quando o compositor já não desempenhava o cargo de maestro do coro.

O repertório coral é de uma plena diversidade e abrangência, tanto regional como temática. Além dos 24 cadernos assinalados, há mais dois de referência temática: as primeira e segunda Cantatas de Natal.

A primeira dessas cantatas, composta, na sua versão inicial, em 1945, destinava-se a ser interpretada pelo Coro Clássico da Academia de Amadores de Música e a segunda já foi dedicada ao Coro da Academia de Amadores de Música, que se designava diferenciadamente do primeiro com a aposição da indicação «(secção de folclore)». Tratava-se, na verdade, do Coro do Grupo Dramático Lisbonense, criado em 1945 e que tinha como repertório programático as Marchas, Danças e Canções, também conhecidas por canções heróicas. A proibição, pela censura política, dessas canções (e outras contingências), levaram o coro a procurar refúgio na Academia, o que veio a acontecer, passando a fazer parte dessa instituição – onde se mantém até ao presente.

Ainda na década de 40, mais precisamente em 1945, Lopes-Graça compõe quatro Canções Populares Portuguesas para voz solista e grupo instrumental. Tratava-se de uma primeira experiência de orquestração de temas já trabalhados para voz e piano. A obra foi entretanto inutilizada pelo autor.

Em 1948, Lopes-Graça enceta nova experiência de orquestração de temas inicialmente compostos para voz e piano. Desta feita, as Nove Canções Populares Portuguesas chegaram ao público na sua versão orquestral, em 1953, pela Orquestra Sinfónica da Radiodifusão Francesa.

Em 1949 surgem as Canções e Rodas Populares Infantis, para coro a capella – dedicada aos «canaritos» de Francine Benoît –, e os Sete Fragmentos de Velhos Romances Populares Portugueses, novamente em orquestração de canções originalmente para voz e piano, havendo registo da sua iterpretação por Dulce Cabrita e um ensamble instrumental sob a direcção de Lopes-Graça.

Em 1950 surge a Suíte Rústica n.o 1, para orquestra sinfónica. Composta sobre seis melodias tradicionais portuguesas, foi estreada em 1951 e posteriormente gravada pela Orquestra Sinfónica Nacional Húngara. No mesmo ano surgem as Glosas sobre Canções Tradicionais Portuguesas para Piano. No texto já citado de Constança Capdeville, assinala esta compositora: Glosas «reflecte a rica personalidade do seu autor e faz com que, em síntese, estas surjam como um autêntico hino à vida, com tudo o que ela possa conter de belo ou de sereno, de doloroso ou de amargo»57.

Em 1951, Lopes-Graça compõe para orquestra Cinco Velhos Romances Portugueses e, em 1953, Três Velhos Fandangos Portugueses para piano. Mas a obra mais referenciada surgirá acabada no ano seguinte: trata-se das Viagens na Minha Terra – Dezanove peças para piano sobre melodias tradicionais portuguesas, dedicada ao pianista brasileiro Arnaldo Estrela que, segundo José Eduardo Martins58, «comungava de ideais sócio-políticos com o compositor português». E continuando a citar José Eduardo Martins,

Viagens na Minha Terra, servem como homenagem ao grande escritor [Almeida Garrett] e pretexto para o compositor penetrar Portugal em uma das suas essencialidades [...]. Sente a grandeza de Portugal, como escreve [Lopes-Graça] em Fevereiro de 1959: “[...] estímulos para novas partidas, para novas viagens neste continente ainda tão mal conhecido que é a música portuguesa”»59. Ainda em 1953, são compostas as Três Canções Populares Portuguesas para violoncelo e piano,

uma das várias explorações instrumentais do repertório inicial para voz e piano, enquanto em 1954,

57 Ver nota 52. 58 Pianista brasileiro que, recentemente, gravou parte da obra de Lopes-Graça para piano. 59 Martins, José Eduardo. Nas notas do CD Viagens na Minha Terra. Portugaler (Leiria, 2003)

16

Page 17: Conteudo Livro FLG CPP

compõe para voz e piano Sete Canções Castellano-Portuguesas de Rio de Onor, um ano após a publicação do livro Rio de Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, de Jorge Dias60.

Nos anos de 1955 e 1956 surgem, a par de novas canções corais, Dois Embalos para piano, obra que veio a conhecer uma edição em 1960, em separata da Gazeta Musical e de Todas as Artes. Enquanto em 1956 surge o primeiro caderno de Melodias Rústicas Portuguesas, para piano, que conheceu registo discográfico pelo próprio autor, logo seguido do segundo caderno, também para piano, este inédito. O terceiro caderno de Melodias Rústicas Portuguesas surge apenas em 1979, desta feita para piano a quatro mãos (estreado por Lopes-Graça e Olga Prats), e o quarto caderno surge no mesmo ano, mas instrumentado para flauta e guitarra.

Retrocedendo a 1965, nesse ano é composta a suíte rústica n.o 2, para quarteto de arcos, sendo a suíte rústica n.o 3 datada de 1979 e destinada a banda filarmónica.

De permeio, em 1969, Lopes-Graça realiza a orquestração de Viagens na Minha Terra, tendo como dedicatória: No primeiro centenário da morte de Almeida Garrett.

Lopes-Graça conclui, ou organiza, nos anos os seguintes e até 1988, os cadernos 17 a 24 das canções regionais portuguesas para coro a capella, encerrando assim a sua gesta de música de raiz tradicional.

Na obra musical, Lopes-Graça conservou-se coerente com as suas palavras:

Há que restituir ao povo a sua música. Há que restituir-lha por dever e por necessidade: por dever humano e por necessidade estética. Por dever humano, porque a música é um bem comum, uma riqueza que por todos deve ser partilhada, uma eucaristia que todos têm o direito de comungar; e por necessidade estética, porque, desde sempre, e sobretudo nas épocas de crise, a música se foi retemperar nas fontes vivas da arte popular do perigo que corria de se esterilizar no afinamento extremo dos meios técnicos e especulativismo das questões teóricas, com prejuízo da verdade, da força e da humanidade da sua mensagem.61

Alexandre Branco Weffort Queluz, Janeiro de 2006

60 Obra fundamental da antropologia portuguesa, que contempla um cancioneiro da autoria de Margot Dias. 61 Lopes-Graça, F. «Sobre o conceito de “música portuguesa”». Em Seara Nova, n.os 740-742 (Outubro-Novembro de 1941).

17

Page 18: Conteudo Livro FLG CPP

II TEXTOS DE FERNANDO LOPES-GRAÇA SOBRE O FOLCLORE E A MÚSICA POPULAR PORTUGUESA CONCEITUAÇÃO Sobre o conceito de popular na música O qualificativo «popular» ligado a concerto não pode, não deve ter senão uma significação: a de

tornar o mais democrática possível a participação nessa superior manifestação da vida civilizada, a de prporcionar a todos os que dela tenham necessidade o gozo de uma das mais subidas formas da cultura artística...

Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa Expressão e documento da vida, sentimentos, aspirações e afectos do nosso povo, a canção

portuguesa faz parte do património espiritual da nação portuguesa. Mais do que qualquer outra manifestação do nosso temperamento, da nossa cultura ou das nossas capacidades criadoras, ela nos define e integra na nossa realidade psicológica e social...

Folclore autêntico e contrafacção folclórica Por toda a parte se formam «ranchos folclóricos», os fornecedores do repertório musical ligeiro

inundam o mercado com os seus «arranjos folclóricos», as vedetas da rádio brilham no «estilo -folclórico», os restaurantes anunciam os seus «pratos folclóricos», há os trastes e adornos caseiros folclóricos – enfim, o folclore invadiu tudo, o folclore tornou-se uma tineta, uma doença, um modo de vida...

O problema da canção popular portuguesa Já por mais de uma vez se tem afirmado ser a recolha e estudo sistemático da nossa canção

popular uma tarefa que importava realizar com a maior urgência, com vista sobretudo à organização e publicação de um Cancioneiro Popular Geral que, de uma forma tanto quanto possível completa, compendiasse, por províncias, regiões, zonas de afinidade ou qualquer outro método que mais conveniente se julgasse, o rico e pela sua maior parte ignorado tesouro do nosso folclore musical...

É a música folclórica uma deformação da música culta? Se é certo que, em países de cultura evolucionada, é possível fazer remontar um grande número

de canções populares a determinados arquétipos cultos (o que não constituiria necessariamente uma degradação mas sim um simples fenómeno de conservação), a verdade é que não são estes casos que informam basicamente as modernas teorias sobre a génese da música folclórica, as quais assentam numa exploração e num estudo mais cerrados da realidade musical espontânea, tal como esta se pode encontrar nos povos primitivos ou nas populações rurais de certos países civilizados ou semi-civilizados...

18

Page 19: Conteudo Livro FLG CPP

1. SOBRE O CONCEITO DE POPULAR NA MÚSICA62 (1947)

Já não é a primeira vez que me sucede receber o amável convite para vir falar a uma destas tão

simpáticas festas associativas, e, como sempre, eu sinto-me um pouco interdito sem saber como dar cumprimento a um desejo a que, como músico, como pedagogo e como cidadão, me seria grato poder corresponder. É que eu não sou orador, um destes espíritos brilhantes e fáceis – quantas vezes por de mais brilhantes e por de mais fáceis! – que têm o condão de cativar e entusiasmar um auditório com a fluência e o calor da sua palavra, ainda que esta muitas vezes possa correr o risco de não ser aquilo que constitui a sua mais nobre missão: a de veículo das ideias. Depois, não sou também uma pessoa oficial e representativa, cuja só presença basta para emprestar brilho e honra a estas reuniões. Não, meus amigos, eu não sou nada disso. Sou apenas um profissional da música, que se tem esforçado até hoje por desempenhar o seu ofício o melhor possível, sem trair nenhum dos imperativos que lhe fazem amar a sua arte e defendê-la contra tudo e todos que, dentro e fora dela, tentam aviltá-la; vendendo-a e vendendo a sua consciência a troco de mesquinhas satisfações de ordem pessoal: o interesse, a vaidade, a consagração oficial e pública. Se algum título eu aqui posso invocar, é apenas este: o de artista – um artista que sem deixar, é certo, de ser homem, e sem separar a sua arte do homem e de tudo quanto ao homem diz respeito ou interessa profundamente: os seus problemas, as suas lutas, o seu destino, a sua condição social –, só se acha contudo, qualificado para falar das questões referentes à sua arte e dar a esta o melhor da sua actividade ou alguns dons que acaso a Natureza lhe concedeu em graça.

É verdade que nos encontramos numa casa cuja razão de ser é, precisamente, a música, e que neste dia comemora mais um dos seus aniversários, facto que deve merecer sempre a simpatia dos que à causa da música se dedicam. E é esta também, certamente, a única razão de eu aqui me encontrar, promovido pela sua direcção à categoria um tanto pomposa, e nada adequada à minha pessoa, de orador oficial. Dir-se-á, pois, que estou no meu elemento – não no da oratória, está bem de ver, mas no da música. E é verdade. Simplesmente, não me parece que a ocasião seja a mais indicada para que, como peixe no seu elemento próprio, eu me ponha para aqui a nadar tranquila e afoitamente, isto é, desate, grave e professoralmente, a fazer uma erudita e fastidiosa dissertação sobre a música, em qualquer dos seus aspectos técnicos ou teóricos. Que vos direi, pois, visto que aceitei de boamente vir dizer-vos qualquer coisa nesta vossa festa? Pouca coisa, além das felicitações e votos de larga vida que vos são devidos. Eu venho aqui, antes de mais nada, testemunhar-vos o meu grande respeito e a minha grande ternura por instituições como a vossa. Faço-o, primeiro, pela fraternidade que, como filho do povo, a estas me liga. Somos da mesma estirpe, temos sangue comum, a sua seiva e o que alimenta o que acaso de melhor em mim possa haver; e, embora os nossos destinos e o nosso campo de acção sejam diferentes, eu não me esqueço de que uma coisa há que nos identifica e nos irmana: a paixão e o desinteresse que ambos temos pelo mesmo objecto. Paixão e desinteresse que em vós, meus caros amigos, será uma virtude ingénua e em mim uma actividade reflectida, mas que, em todo o caso, brotam da mesma fonte: a sinceridade do acto e a idealidade do propósito. E estas são virtudes eminentemente populares. Na verdade, só o povo, ou aqueles que no povo se reconhecem, são capazes de se dedicar tão de alma e coração, e com uma persistência que chega por vezes a ser verdadeiro heroísmo, a tarefas de que não visam tirar interesse algum material e de que não esperam outro prémio além da satisfação íntima que lhe vem da própria dedicação ao objecto do seu amor e do seu sacrifício. Culto sem ídolos vãos, fé sem dogmas nem imposições falazes, esta atitude se poderia qualificar de autêntico idealismo, se a palavra não andasse por aí tão gasta ou, antes, tão mal gasta, encobrindo, grande parte das vezes em que é invocada, propósitos e acções de pureza e gratuitidade bem contestáveis.

Apraz-me declarar aqui que todas estas manifestações de cultura popular espontânea e desinteressada obtêm a minha inteira adesão e simpatia de democrata convicto. Mas entendamo-nos.

62 Palestra feita em Évora, na Escola do Grupo de Amadores de Música Eborense, por ocasião do 5.o aniversário desta colectividade, e publicada na revista Vértice, n.o 46, Maio de 1947. [Nota do Org.]

19

Page 20: Conteudo Livro FLG CPP

Usa-se e abusa-se hoje muito da expressão «cultura popular». Suponho que todos os que me escutam me fazem a justiça de crer que, quando eu a emprego, o faço na melhor das intenções e lhe dou o seu mais elevado sentido. Digo isto porque, infelizmente, nem sempre assim acontece. Não é raro vermo-la utilizada com intuitos reservados, como verdadeiro instrumento demagógico, com o fim de lisonjear com ela o povo para melhor se servirem dele. E não há dúvida que o povo tem direito à cultura – mas tem também direito a mais coisas que são a base mesma da cultura e sem as quais esta não passa de uma palavra vazia de conteúdo. Hoje até se fala em organizar, em dirigir a cultura popular. Eu não sei – ou, por outra, sei muito bem – o que se pretende ao falar-se em organizar, em dirigir a cultura popular. Tanto a cultura popular como a arte popular, logo que são organizadas, logo que são dirigidas, deixam de ser verdadeiramente populares e passam a ser coisas artificiais, que perderam toda a sua razão de ser, todo o viço e toda a ingenuidade que lhes advém do facto de serem actividades espontâneas e desinteressadas da alma ou da vontade de expressão artística do povo. Deixam de ser um fim em si mesmas para se transformarem num meio ao serviço de interesses de outra ordem, interesses que nada têm que ver com a cultura e com a arte, e que só não revelam o seu verdadeiro nome porque aos homens, a certos homens, pelo menos, sempre agradou mascarar as suas verdadeiras ideias, ambições ou apetites com palavras bem soantes, com palavras que garantam aos seus próprios olhos e, sobretudo, aos olhos dos outros, a pureza, a sublimidade dos seus actos...

E, pois que estamos num meio musical, permitam-me que lhes conte uma pequena história, que denuncia bem os inconvenientes da cultura popular dirigida. Há quinze anos, realizou-se em Lisboa um Congresso Internacional da Crítica Dramática e Musical, que, como é tradicional neste género de reuniões, foi mais um pretexto turístico, oratório e gastronómico do que uma assembleia reunida para tratar de certos e determinados problemas. No programa turístico figurava uma excursão ao Norte do País, a não sei que terra onde existia um agrupamento folclórico de certa nomeada. Os promotores do congresso, pessoas que vieram mais tarde a exercer funções importantes como animadores e orientadores da cultura dirigida, entraram em contacto com a direcção do dito agrupamento folclórico para lhe recomendar uma recepção condigna dos ilustres visitantes. Não sei precisamente o que lhe teriam dito, que recomendações lhe teriam feito, que ideias lhe teriam inculcado; mas calculo-o, e pode calculá-lo toda a gente, pelo desfecho da história. Chegada a comitiva, que ouvem os nossos hóspedes, entre o vivório do povo e o estralejar dos foguetes? Nem mais nem menos que o cosmopolitamente famoso Danúbio Azul entoado pelo grupo folclórico, que, possivelmente, se apresentava envergando os seus pitorescos trajes regionais... Também não sei se todos os forasteiros temperaram o despautério com amável ironia de um compositor universalmente célebre (Darius Milhaud, ao que me consta), que comentou a coisa exclamando: – «É ridículo mas é encantador!»

Possivelmente, nada disto sucederia se não tivesse havido aquela desastrada intromissão dos organizadores do congresso e tivessem deixado o nosso grupo folclórico decidir por si só, com toda a simplicidade e todo o bom senso de que naturalmente seria capaz, a maneira como havia de receber os visitantes; e seria mais que certo que, em vez da absolutamente deslocada e inepta valsa straussiana, ele se tivesse saído a cantar uma ingénua mas saborosa rapsódia de cantos populares nacionais, mais de harmonia com a sua índole e com o que de um grupo folclórico naturalmente se esperava.

Já agora, deixem-me que novamente toque num assunto a que várias vezes tenho tido ocasião de me referir: a definição do que deve entender-se por «popular», tanto no campo da arte como no da cultura.

Para muita gente, «popular» é sinónimo de fácil, de imediatamente acessível, de trivial, se é que não de superficial e inferior. Pensa-se que o povo é, por condição e fatalidade, incapaz de compreender e sentir as grandes obras do pensamento e da arte, que não pode deixar de haver um divórcio entre ele e as supremas manifestações do génio humano no campo da literatura, da música, do teatro, etc. Para estas pessoas bem pensantes é um erro pôr os Balzacs, os Beethovens, os Ibsens ao alcance do povo, porque o povo – pobre dele! – só é capaz de apreciar os subprodutos do espírito; e, ainda quando se empreenda uma caridosa obra de educação, será preciso ter cuidado e dar-lhe os grandes autores em

20

Page 21: Conteudo Livro FLG CPP

pequenas doses, temperados com coisas mais fáceis e aliciadoras, não vá ele, povo, ter uma indigestão e desgostar-se irremediavelmente dos belos manjares civilizados. Nesta ordem de ideias, o que se tem por eminentemente popular é, por exemplo, no teatro, a revista bem recheada de piadas e brejeirices; no cinema, a comédia ligeira e anedótica; na música, o fadinho sentimental ou os arranjos folclóricos mais ou menos americanizados; no romance, novelescas baratas de um romantismo piegas ou os embrechados históricos à Campos Júnior, etc.

Creio que nunca será de mais denunciar este falso conceito do «popular», que não é, nunca foi, o que uma concepção aristocrática da cultura supõe ou adrede inculca. Não: popular não é o mesmo que ordinário e vulgarucho. Quem assim pensa ofende o povo nas suas capacidades de criação e compreensão, que as tem, e grandes, nas suas reservas de emoção, que também as tem, e muitas vezes mais profundas do que se julga, na sua sede de cultura, na contribuição que a sua atormentada história tem dado às grandes obras do pensamento e da arte. Estas são, por definição, essência e destino, populares. A Ilíada, a Divina Comédia, a Guerra e Paz, são obras populares. O Pártenon, a Catedral de Chartres, a Torre Eiffel, são obras populares. E populares são os Painéis de Nuno Gonçalves, o Guernica de Picasso, a Nona Sinfonia ou o Sacre du Printemps. A qualidade de popular advém-lhes das raízes profundas da sua inspiração, das aspirações largamente humanas que encarnam, das necessidades colectivas que satisfazem, do significado universal que possuem. Os seus autores, ao concebê-las e realizá-las, não só aproveitaram motivos, sugestões, incitamentos da vida, da história e da própria arte do povo, que o seu génio em seguida caldeou e magnificou, como pensaram servir a colectividade, exprimindo os anseios, dores ou alegrias desta através dos seus próprios anseios, dores e alegrias, e aspirando sempre à maior glória de uma identificação perfeita da sua obra com o povo, ainda quando circunstâncias de ordem económico-social os obrigassem a trabalhar para reis, papas ou senhores.

Mas parece-me que estou a desviar-me um pouco do que vos disse há pouco, isto é, de, como profissional da música, só me achar qualificado para falar dos problemas referentes à minha arte. Vamos, pois, falar um pouco de música e, sem abandonar o terreno da definição e alcance do popular, vejamos como, sob este aspecto, a questão se põe entre nós.

Do que acima fica dito se conclui que de maneira nenhuma podemos assimilar música popular à ladina copla revisteira ou à langorosa canção cinematográfica, aos viras mascarados de rumba ou às «sex-appealescas» cançonetas importadas da América e garganteadas pelas nossas «sex-appealescas» vedetas da rádio. Esta espécie de música nada tem que ver com o autêntico povo, não nasce do seu seio, não corresponde às suas necessidades, não traz a sua dedada. Trata-se, antes, de puros produtos comercialistas, destinados a um público de gosto pervertido, de nulo instinto estético, e a quem a música só desperta sensações superficiais, de ordem puramente animal e vegetativa. Chamar popular a esta música de baixo nível e de intenções quantas vezes duvidosas é ofender a verdadeira música popular, tal como ela se revela nas tão vivas, sinceras e recendentes manifestações da arte folclórica. É aqui que reside, em toda a sua ingenuidade, mas com todo o seu poder de sublimação, o autêntico sentimento musical do povo.

A veia que alimenta esta arte primitiva é sempre pura e cristalina. O seu lirismo é são e terso. Pode ser triste ou melancólica, mas a sua tristeza e a sua melancolia nunca são deprimentes. Pode ser graciosa ou ter o seu tanto de picante, mas a sua graciosidade e a sua malícia nunca roçam pelo deboche. Se dramatiza a vida, nunca cai na neurastenia ou no fatalismo; e se a canta com alegria, nunca a sua alegria se confunde com o estrupido de certas musiquetas que, pretendendo ser alegres, apenas conseguem ser estúpidas.

Em todos os tempos, grandes compositores reconheceram a riqueza da verdadeira música popular, as suas virtudes por assim dizer tonificantes e a incorporaram, já directamente, já por processos de transposição e decantamento, nas suas geniais criações. Haydn, Beethoven, Chopin, Mussorgsky, Falla, Ravel, Stravinsky, Béla Bartók, para não citar senão exemplos dos mais ilustres, não o desdenharam fazer, e é justamente às fontes inesgotáveis da canção e da dança populares que a

21

Page 22: Conteudo Livro FLG CPP

sua arte vai beber uma boa parte da sua vitalidade irradiante, do seu poder de comunicação, da sua generosidade humana.

Infelizmente, o comercialismo também já chamou a si mais esta fonte de receita. A música popular folclórica está-se tornando uma mina para os fabricantes de música dançante e desopilante. As belas e simples melodias que o povo canta de alma lavada por esses campos e aldeias, nos seus trabalhos ou nas suas festas, estão sendo desvirtuadas, torcidas e inferiorizadas nos inúmeros foxes, rumbas, cançonetas e «arranjos» mais ou menos disparatados ou pretensiosos que fornecem o repertório das orquestras de jazz e os programas dos saraus recreativos radiofónicos.

Preciso advertir-vos de que não sou adversário irredutível e birrento da chamada «música ligeira». Dentro do seu campo, pode esta exercer funções necessárias. Mas o que estou longe é de confundir «música ligeira» com «música popular». E ainda quando, por um vício de linguagem ou por um erro de critério, se assimile «ligeiro» a «popular», parece-me que se deve tomar em conta que, mesmo assim, pode e deve haver um certo nível no ligeiro, que o ligeiro é susceptível de categorizar-se, de alcançar uma certa qualidade, sem o que ficará reduzido ao fútil, ao banal, se é que não ao boçal, e não merecerá, portanto, a honra de se irmanar ao popular, pois que o popular não é de maneira nenhuma a futilidade, não é a banalidade, não é a boçalidade, mas algo sério e respeitável, mesmo quando ingénuo e rudimentar.

Aceitando embora a música ligeira, sob condição de que ela obedeça a um mínimo de requisitos de ordem técnica e a uma razoável decência de estilo, eu não posso deixar de denunciar o mau emprego que, neste campo, se está fazendo da música popular por parte dos compositores «ligeiros», em muitos casos apoiados e estimulados, nas suas salgalhadas folclórico-jazzificantes, por entidades oficiais ou oficiosas, a quem competia mais fomentar a verdadeira cultura musical e velar pela integridade da arte popular nacional do que alimentar o mau gosto de um sector do público de preferências medíocres e critério estético depravado.

Tocamos agora precisamente num ponto importantíssimo desta questão: a chamada cultura musical popular. Mais de uma vez tenho tido ocasião de me insurgir contra a confusão que neste campo lavra e contra o errado critério daqueles que, sincera ou sofismadamente, se têm proposto resolver o problema. O princípio de que em geral se parte é o que já há pouco foi enunciado e que agora mais explicitamente tratarei: a incapacidade do povo para compreender, aceitar e assimilar as grandes obras do pensamento musical e, por conseguinte, a necessidade de arranjar subterfúgios, expedientes que o aliciem, que o cativem, que o lisonjeiem e o tragam por fim, rendido e agradecido, ao comércio da grande arte.

Nesta ordem de ideias, duas tácticas se têm seguido. A primeira consiste em «popularizar» os concertos, entendendo-se por tal «popularizar» a confecção de programas de nível médio, fortemente eclécticos, mas com uma larga margem concedida a obras «fáceis» – páginas menores dos grandes autores ou, então, e por condescendência, páginas escolhidas, sim, mas dos autores menores. Sobretudo, nada de inovações nem de novidades: as obras representativas do nosso tempo são cuidadosamente afastadas, sob pretexto de serem complicadas, inacessíveis, se é que se não chega mesmo a insinuar o seu carácter dissolvente, a sua antimusicalidade, a sua inumanidade e quantos mais senões e máculas que as tornam pouco recomendáveis.

O outro processo seguido é o de associar o recreio à cultura, numa sobreposição absurda e disparatada de pedagogismo, ou, antes, de pretenso pedagogismo artístico e de vulgaríssimo entretenimento musical, espécie de prémio de consolação ao pagode, com estridências de jazz caseiros e gargarejos de vedetas radiofónicas não menos caseiras a adoçarem a pílula de uma prévia sinfonia de Mozart ou de um trecho de Wagner.

Estranhas concepções, uma perfeitamente demagógica, a outra nitidamente antiprogressiva, do que deve ser uma obra de cultura musical popular! Não me consta que em nenhum dos países que têm empreendido a sério essa obra, na Inglaterra, na Suíça, na Checoslováquia, nos países escandinavos, o problema tenha assim sido posto e resolvido. Em toda a parte se tem considerado que o que está em

22

Page 23: Conteudo Livro FLG CPP

causa, na questão de educar musicalmente o povo, não é a capacidade intelectual ou emotiva deste, mas sim a sua capacidade económica: donde as medidas tendentes a facilitar financeiramente o acesso do povo aos concertos, sem por isso se pensar em fazer baixar o nível estético destes.

Resolvida ou aplanada da melhor forma possível essa questão económica primordial, só há um caminho a seguir, e é o que têm seguido aqueles países, para promover a educação musical do povo: é dar a este a melhor música, executada pelos melhores artistas, pelas melhores orquestras, pelos melhores coros. Em nenhuma parte se pensa que as supremas criações de um Bach, de um Rameau, de um Beethoven, de um Schumann, de um César Franck, de um Mussorgsky, de um Debussy, sejam transcendentes de mais para o povo, que elas não sejam capazes de despertar o seu interesse, não sejam capazes de o emocionar e de o entusiasmar, não sejam, enfim, obras «populares», no sentido em que é popular tudo o que se dirige ao maior número possível de auditores, tudo o que revela um profundo e universal calor humano. Não se pensa igualmente que os grandes autores contemporâneos – os Stravinsky, os Bartók, os Hindemith, os Prokofieff ou os Britten – sejam «perigosos» para o povo e que haja que preservar este do seu contacto, estabelecendo-se assim uma barreira entre música antiga e música moderna, tão artificiosa como prejudicial, porque desconhece, ou finge desconhecer, a realidade da continuidade histórica, por um lado, e, por outro, a evidência de que a música moderna corresponde a necessidades tão imperiosas como a música antiga e, embora diferente na sua linguagem, traduz como esta, na sua essência, o mesmo propósito de exaltar e sublimar a vida.

A experiência e a prova de que a grande música obtém naturalmente a adesão daquele público aparentemente menos preparado para a assimilar está feita por artistas e instituições que ao problema têm dedicado a sua atenção. Para não ir mais longe, bastará citar-vos um exemplo daqui de ao pé da porta: é o do grande violoncelista e grande espanhol Pablo Casals com a sua Associación Obrera, que fundou em Barcelona em 1925 e que acabou, com a tragédia de 1936. Nessa notável obra, de incalculável alcance social e pedagógico, empenhou o genial artista o melhor dos seus esforços e até dos seus haveres; mas teve a satisfação de verificar que as suas ideias eram justas, porque o seu público de operários e empregados mostrou uma maravilhosa compreensão e um entusiasmo crescente pelos concertos que lhe eram destinados e cuja elaboração obedecia a normas do mais elevado critério estético. O princípio de que Casals partia era o único valido para qualquer obra séria de fomento artístico: a edução para o Belo só se faz através do Belo. Se queremos chamar o povo à música e ensiná-lo a amar as grandes obras dos mestres da arte dos sons, só há uma maneira eficiente de o fazer: é pô-lo em contacto com essas obras, sem transigências nem compromissos, e sem receio de que o povo lhes volte as costas, porque o povo sente, por intuição, onde está a verdadeira grandeza, e nunca lhe volta as costas.

Estão na moda entre nós os «concertos populares». Sim, senhores, façam-se quantos «concertos populares» quiserem, e quantos mais melhor, sob condição, porém, de que por «concertos populares» se não entenda manifestações de baixo nível artístico, com obrazinhas fáceis e aliciadoras, com lugares-comuns requentados ou xaropadas intragáveis, porque desta forma não se fará verdadeira cultura musical, mas sim um seu simples arremedo.

O qualificativo «popular» ligado a concerto não pode, não deve ter senão uma significação: a de tornar o mais democrática possível a participação nessa superior manifestação da vida civilizada, a de proporcionar a todos os que dela tenham necessidade o gozo de uma das mais subidas formas da cultura artística.

Quer isto dizer que, a par desta democratização da música, não haja toda uma larga tarefa de esclarecimento, de aprofundamento dessa arte a fazer? Que, ao lado de uma séria obra de cultura musical, não haja que empreender uma profunda obra de educação musical? De maneira nenhuma. Ela tem que se fazer, é necessário que se faça, e a partir já da própria escola primária, a partir já das próprias escolas infantis. Há que educar o gosto, há que orientar o critério musical do povo, pela ginástica rítmica, pelo canto coral, pelo concerto, pala brochura de divulgação, pela conferência, pela rádio, por todos os meios, enfim, que a moderna pedagogia tem ao seu dispor e que tão maravilhosos

23

Page 24: Conteudo Livro FLG CPP

resultados tem obtido em países que tratam a sério destas coisas – os Estados Unidos, a Suíça, a Checoslováquia, por exemplo.

Mas isto é outro aspecto do problema, que eu não me proponho tratar aqui. Bastará, para o nosso caso, frisar que não há de maneira alguma incompatibilidade, muito pelo contrário, há perfeita comunhão de propósitos, perfeita conjugação de esforços, entre a obra de educação musical esclarecida, que supõe os mais adequados meios para atingir os seus fins, e a obra consequente de cultura musical, natural coroamento daquela, e que não pode ir ao seu arrepio, organizando-se e procurando cumprir a sua missão a partir de uma ideia socialmente falsa e pedagogicamente errónea, qual é a da incapacidade do povo para aceitar a boa música.

Infelizmente, este preconceito não é, entre nós, apanágio só daqueles que encaram estes problemas através das suas próprias insuficiências, ou dos que fazem profissão de servir a causa da arte e do povo, mas que, no fundo, não pensam senão em servir-se a si mesmos, utilizando a arte e o povo para as suas satisfações pessoais. Há profissionais, pessoas esclarecidas e competentes, que partilham do mesmo ponto de vista e consideram utópico manter os «concertos populares» no mesmo nível dos outros. Esses «outros» são, naturalmente, os concertos de elite. Qual elite é que se não vislumbra lá muito bem. A da inteligência? Mas esta pertence precisamente ao povo, faz parte dele, trabalha com ele e para ele. Os «concertos populares» são também os seus concertos, e não há portanto que fazer a distinção, que, bem vistas as coisas, envolve uma certa intenção despicienda. A elite do dinheiro, a que frequenta o S. Carlos? Mas esta, sabemos nós que ali concorre mais para exibir as suas casacas de corte irrepreensível e os seus vestidos luxuosos do que para ouvir a boa música!... Esta sabemos nós qual é o seu critério, quais são as suas preferências estéticas! É a elite que, depois de uma sinfonia de Beethoven dirigida por um regente de categoria internacional, deferentemente aplaudido, dá todo o seu entusiasmo à execução de uma Dança Húngara, de Brahms, ou de uma suíte de valsas de Strauss, que esse regente não menos deferentemente lhe serve. É a elite que aprecia e valoriza os virtuosos do teclado ou do arco em função do número de notas por segundo que estes são capazes de executar ou consoante a maior ou menor teatralidade que põem nas suas exibições. É a elite que repudia toda e qualquer inovação nos programas, recebe friamente, se não hostilmente, um Béla Bartók ou um Honegger, faz caretas às obras de Stravinsky ou Walton e considera em geral malucos, degenerados ou coisa pior, e que eu agora aqui não direi, todos os grandes representantes da música do nosso tempo. Se é esta elite que se considera culta e digna dos finos manjares da música, está servida a cultura, está servida a música...

Estes profissionais, que julgam utópico aplicar um critério de elevação aos programas dos «concertos populares», estão viciados pelo conceito de cultura aristocrática, e não vêem o perigo que representa para o desenvolvimento e expansão da sua arte esta oposição de duas culturas no momento em que a cultura tende a uniformizar-se democraticamente e a satisfazer inadiavelmente as necessidades espirituais do «homem comum», que pertence, na verdade, ao povo. Temem que este não esteja à altura do que se exige dele, tornando-se por isso necessário um longo e cauteloso trabalho de preparação, sem repararem em duas coisas importantíssimas: primeiro, que não somos nós, os que propugnamos uma cultura democrática, que fazemos ao povo qualquer exigência incompatível com as suas capacidades, mas sim ele, e a evolução histórica, e o progresso social que nos ditam esse imperativo, que exigem de nós que olhemos de frente a realidade e procuremos resolver os problemas que esta nos põe de uma maneira racional; segundo, que a tal preparação lenta e cautelosa, isto é, o chegar-se até à grande música através da música fácil ou de nível estético mediano, é, no fundo, um círculo vicioso, que mais não traduz do que o desejo, consciente ou inconsciente, de adiar a solução do problema.

Se problema existe, de facto, no que eu não creio absolutamente, pois julgo poder observar – e para isso parece-me possuir certa autoridade, baseada numa experiência que, vamos indo, já não é muito pequena, nem data de ontem – que é justamente no povo – e por povo entendo não só o trabalhador, o empregado ou o funcionário, mas o médico, o estudante ou o escritor com «preparação» musical idêntica à daqueles – é no povo, digo, no homem comum, que, regra geral, se encontra a mais

24

Page 25: Conteudo Livro FLG CPP

fresca, espontânea e ardorosa disposição espiritual para aceitar e sentir a mensagem das grandes obras da arte musical de todos os tempos.

Verifico que me alonguei porventura demasiado nestas considerações e que vos não disse talvez o essencial, que era manifestar-vos os meus sinceros sentimentos de congratulação pela passagem deste vosso aniversário. Se isto não é gesto que para vós tenha grande significado, pala sua banalidade quase protocolar, uma coisa há, no entanto, que eu não posso nem quero deixar de encarecer em vós, na vossa agremiação, e que gostaria de mostrar sempre como exemplo ou como lição aos vendilhões da minha arte, aos vendilhões de todas as artes: é o vosso magnífico espírito de solidariedade, o vosso admirável esforço de continuidade, o vosso tocante culto e desinteresse pela música e o serviço que, na medida dos vossos recursos, lhe prestais, pois que servir a música não é só proporcionar o gozo dela nas suas formas mais elevadas a uma classe privilegiada, mas também manter aceso entre o povo o amor e o interesse espontâneo que, até nas suas manifestações mais simples e ingénuas, tal arte, mais do que nenhuma outra, tem o condão de despertar.

E também gostaria de vos aconselhar outra coisa: é que diligenciásseis aumentar sempre o vosso nível artístico, procurando, na medida possível e de acordo com os vossos recursos, aproximar-vos da boa arte, cultivando a vossa sensibilidade no contacto dos melhores autores e da melhor música, fugindo da banalidade e empenhando-vos em atingir aquele grau de cultura que, nem por se vos afigurar distante e de penosa consecução, constitui menos a meta ideal para que deverão tender as vossas vontades. É sempre possível um esforço nesse sentido, por maiores que sejam as dificuldades que se encontrem no caminho, por mais desfavoráveis que sejam as condições ambientes, por mais adversas que sejam as circunstâncias presentes. É nobre lutar por toda e qualquer causa superior; e o povo tem provado saber lutar pelas causas superiores, a menor das quais não tem sido a do seu aperfeiçoamento, a da sua dignificação social e espiritual.

2. VALOR ESTÉTICO E SIGNIFICAÇÃO NACIONAL DA CANÇÃO POPULAR PORTUGUESA (1949)

Os capítulos precedentes tratavam uma matéria que, a bem dizer, nos é de certo modo vedada. Tal

matéria é propriamente do domínio da ciência folclórica, e nós já por mais de uma ocasião tivemos ensejo de afirmar não sermos folclorista, mas tão-só um artista, um músico que à nossa canção popular tem dedicado alguma atenção e que, considerando o que ela significa e vale, tanto sob o ponto de vista estético como sob o ponto de vista nacional, e quase poderia dizer patriótico, se a palavra se não prestasse a tantos equívocos, entende, justamente como artista e como português, dever dizer porque a ama e fazer a sua defesa.

Por que amamos nós a nossa canção popular e por que entendemos que a devem amar os Portugueses?

Em primeiro lugar, porque ela é bela. No entanto, forçoso é reconhecê-lo, a sua beleza, a sua indiscutível qualidade estética, está ainda a bem dizer por descobrir, e não é nos espécimes correntemente tidos e apreciados na cidade como típicos e representativos do nosso folclore que podemos descobrir essa beleza, essa qualidade estética. Há que ir junto das nossas populações rurais, ao coração das nossas províncias, onde ainda não chegou a acção corruptora do fado e da canção revisteira e radiofónica, ou, se chegou, ainda felizmente não deixou fundos estigmas, há que ir aí para se ter a surpresa e a ventura de encontrar uma música popular forte e sadia, agreste por vezes, outras talvez tosca, mas de um sabor e de um perfume incomparáveis, frequentemente de uma simples mas penetrante poesia, rica de aspectos, variada de formas e sempre profundamente enraizada no solo.

Esta música era, ainda há uns quarenta ou cinquenta anos atrás, praticamente desconhecida de eruditos e letrados. Nem um Teófilo Braga, nem um Leite de Vasconcelos, iniciadores dos estudos sistemáticos do nosso folclore, vislumbraram o seu interesse, nem sei se teriam dado por ela. O que conseguiram compendiar os primeiros coleccionadores das nossas melodias populares, um César das

25

Page 26: Conteudo Livro FLG CPP

Neves ou um Fernandes Tomás, era, na realidade, e com raríssimas excepções, bem pobre e insignificativo; e não deixa hoje de nos provocar um sorriso complacente ler as expressões laudatórias com que um homem avisado e culto, como António Arroio, apreciou e comentou os espécimes recolhidos e publicados pelo em todo o caso benemérito erudito figueirense.

Já tivemos ocasião de confessar o nosso transviamento na matéria, supondo quase nulo o interesse propriamente estético da nossa canção popular, até ao momento em que começámos a ter uma noção mais justa do seu valor, graças às pequenas mas reveladoras colecções de Rodney Gallop e António Joyce, a que depois se juntaram as de Diogo Correia e do P.e Firmino Martins, infelizmente circunscritas estas, como a de Joyce, a uma determinada região do País. Algumas excursões que subsequentemente empreendemos, poucas, pouquíssimas, para o nosso enorme desejo de conhecer e colher in loco a nossa canção popular, mais nos penetravam da convicção de que esta encerrava verdadeiras preciosidades – o que subsequentemente se nos veio a confirmar, mormente graças aos trabalhos empreendidos de parceria com Michel Giacometti.

Estes factos levaram-nos a considerar quanto importaria aos músicos portugueses tomar conhecimento do nosso folclore musical, apreender-lhe as características próprias, descobrir-lhe as virtualidades expressivas, em suma, familiarizarem-se intimamente com ele, no sentido de nele poderem vir a descobrir um apoio, um método, uma inspiração e uma linguagem que os habilitassem a criar uma música verdadeiramente nacional, música que, bem entendido, se não deixasse cair nas facilidades e ilusões duma estética meramente folclorística, mas que, pela forma e pelo espírito, traduzisse o nosso modo de ser e, no plano cultural, pudesse vir a emparceirar nobremente com o que de mais alto temos criado no domínio da literatura e das artes plásticas – e isto mau grado a desafeição comum nos nossos tempos entre os seguidores das correntes musicais ditas de vanguarda pelo folclore, o seu repúdio sistemático de todo e qualquer «nacionalismo» musical...

Já se deixa ver por estas breves considerações a razão ou uma das razões que nos levam a falar na defesa da nossa canção popular. Dizendo que a amamos e por que a amamos, defendemo-la já como artista: cumpre-nos também defendê-la como português.

Expressão e documento da vida, sentimentos, aspirações e afectos do nosso povo, a canção portuguesa faz parte do património espiritual da nação portuguesa. Mais do que qualquer outra manifestação do nosso temperamento, da nossa cultura ou das nossas capacidades criadoras, ela nos define e integra na nossa realidade psicológica e social. Amá-la, é conhecermo-nos no que em nós existe de mais fundo e enraizado no solo natal; defendê-la, é defender portanto uma parcela de nós mesmos, da nossa individualidade, da nossa história íntima. Verdadeiras e preciosas relíquias artísticas, as nossas canções populares têm jus, como as relíquias do nosso passado arquitectónico e pictural, a ser protegidas, conservadas, olhadas com carinho e respeito, porque testemunhas de uma cultura que, nas suas glórias ou nos seus desfalecimentos, é a imagem do que fomos capazes ou o estímulo para diligenciarmos ultrapassar-nos.

Nos tempos que vão correndo, em face da importação crescente de banalidades a que sofregamente se atiram as vedetas da rádio e que os seus fornecedores nacionais gostosa e desaforadamente imitam, essas canções e musiquetas deliquescentes e estúpidas que invadem os nossos lares e as nossas escolas, que a nossa mocidade trauteia com cómicas inflexões de voz que tanto se assemelham a ânsias do estômago, em face dessa aluvião de produtos incaracterísticos de uma indústria musical organizada com todas as artimanhas da publicidade e todos os recursos da divulgação em larga escala, em face desta invasão de mau gosto que ameaça subverter-nos e transformar-nos em macacos cantantes – o recurso, o refúgio na nossa canção popular, podia ser a salvação. Ela podia ser não só um meio de educação artística, como uma flâmula de combate e de afirmação de espírito verdadeiramente nacional. Nós, que estamos sempre a inventar campanhas disto e daquilo, por que não temos a ideia de fazer e lançar a campanha da canção popular?

Cuidado, porém, com os aproveitadores de campanhas! O que seria preciso evitar acima de tudo era que qualquer movimento neste sentido se transformasse em negócio ou modo de vida para uns

26

Page 27: Conteudo Livro FLG CPP

quantos. O nosso reaportuguesamento pela canção popular só poderia ser confiado a folcloristas, músicos e educadores que à sua missão se entregassem com um espírito verdadeiramente evangelizador, almas fortes e conscientes, dispostas a arrostar com os contratempos, as incompreensões e as insídias que espreitam sempre qualquer tentativa séria de reforma de costumes e de mentalidade.

E uma coisa importantíssima urgia, antes de mais nada, empreender: a organização de um Cancioneiro Geral que, com critério e inteligência, compendiasse o que de melhor, mais belo e mais vital oferecesse o nosso folclore – canções, danças, jogos e rodas infantis, tudo devidamente arrumado, apurado nas suas diversas versões e até restaurado, se tanto fosse necessário. E havia depois que utilizar essas canções, divulgá-las, fazê-las cantar. E então se impunha uma obra das mais meritórias e de alto alcance pedagógico, artístico e nacional: a introdução do canto popular obrigatório nas nossas escolas e em todos os graus de ensino. Familiarizando-se desde cedo com a nossa canção popular, as nossas crianças e a nossa juventude adquiririam um repertório que, continuado a ser praticado e enriquecido pela vida fora, constituiria para os Portugueses um tesouro de alegrias e estímulos que, a todas as horas e em todas as ocasiões, no lar, na escola, nos ofícios, em reuniões e festas, os identificariam consigo mesmo e com a terra-mãe.

3. FOLCLORE AUTÊNTICO E CONTRAFACÇÃO FOLCLÓRICA (1952)

Tal como certas formas do trajar ou do pentear, tal como certas cores, certos móveis, certas frases

e até certas maneiras de falar e de andar, há palavras que, em determinado momento, caem na moda. «Folclore» é uma dessas palavras. Até há relativamente pouco tempo era ela entre nós a bem dizer apenas conhecida e utilizada por uns tantos «maduros», que se davam à coleccionação e estudo de umas quantas velharias, que a ninguém interessavam. Mas não há que ver: o folclore entrou decididamente na berra. Hoje anda na boca de toda a gente e a palavra «folclore» emprega-se muito correntemente para aí, mas desconfiamos que não só sem se saber o que ela verdadeiramente significa como dando-lhe um sentido que não anda longe de ser caricatural.

Por toda a parte se formam «ranchos folclóricos», os fornecedores do repertório musical ligeiro inundam o mercado com os seus «arranjos folclóricos», as vedetas da rádio brilham no «estilo folclórico», os restaurantes anunciam os seus «pratos folclóricos», há os trastes e adornos caseiros folclóricos – enfim, o folclore invadiu tudo, o folclore tornou-se uma tineta, uma doença, um modo de vida.

Ora o folclore que se reconhece e apregoa como tal (e aqui referimo-nos directamente ao folclore musical, talvez a mais insigne vítima desta folclorite aguda), o folclore que sai do seu âmbito próprio, que são os campos e as aldeias, e exorbita das suas funções próprias, que são as de exprimir a vida e os trabalhos do homem rústico, esse folclore assim posto em evidência e assim utilizado deixa precisamente de ser folclore para se transformar em divertimento banal ou servir de mero cartaz turístico; do mesmo modo que o folclore que se fabrica em série, e de que se tira patente, nunca foi de toda a evidência folclore, mas puro negócio, pura especulação comercial.

Cremos que vai sendo altura de reagir contra este uso e abuso do folclore, libertando-o de toda a casta de deturpações e apropriações ilegítimas, e isto em todos os seus domínios.

No da música, por exemplo, julgamos não fazer afirmação muito arriscada dizendo que a maioria dos Portugueses possuem da nossa canção popular – ou, antes, da nossa canção folclórica, entendida esta no seu legítimo sentido, no sentido que adiante se dilucidará – uma noção que não prima nem pela elevação nem pelo discernimento com que a encaram; e isto, porventura, mais entre as pessoas de educação e cultura superior ou média do que entre aquela gente simples para quem ela, a canção, é uma necessidade e uma companhia. Com efeito, o que em geral se pensa da nossa canção popular é que ela é meramente uma manifestação do pitoresco regional – desse pitoresco assimilado impropriamente ao folclore e que faz as delícias do cidadão, letrado ou iletrado, que, cansado, desiludido dos requintes de

27

Page 28: Conteudo Livro FLG CPP

uma vida e de uma arte «civilizadas», busca no «exotismo» indígena novas sensações, novos estímulos para o paladar e para os nervos; desse pitoresco ainda que, com uma tal ou qual dose de ironia complacente, tem servido de pretexto a certa arte edulcorada e fútil, pinturrilhada e falsa que, não sem alguma pretensão, se usa rotular de nacionalista.

É claro que o folclore não é nada disso, e nada disso é a canção popular. Será necessário lembrar, insistir, em que o folclore é, no fundo, um capítulo da etnografia e, implicitamente, da antropologia – portanto, um modo de conhecimento do homem nas suas manifestações artísticas, literárias e culturais tradicionais (além de outras), não sendo assim a canção popular senão um aspecto, na verdade dos mais ricos, sugestivos e reveladores, desse conhecimento? Se algum pitoresco existe na canção popular portuguesa (e decerto existe em tantíssimos casos), não é ele contudo que a define e a informa substancialmente. Digamos mesmo que o pitoresco, quando o há, pode ser de qualidade e constituir também por si revelação ou expressão da fisionomia irónica, folgazã ou ladina do nosso povo. No entanto, não há dúvida que o pitoresco, assimilado ao fácil, ao superficial, ao garrido, ao meramente exterior e anedótico, é o conceito que mais tem prejudicado a exacta apreciação e compreensão da canção popular portuguesa e que mais tem contribuído para a caricatura a que nós hoje a vemos reduzida pela fauna inumerável dos fornecedores e utilizadores do repertório ligeiro, a que, deploravelmente, certas directrizes e certos proteccionismos têm dado mais amparo e expansão do que artística e educativamente seria para desejar.

Ora a primeira e mais urgente tarefa que se impõe para chegarmos à justa avaliação do que é e significa verdadeiramente a nossa canção popular é combater esse falso, fácil e nocivo conceito de pitoresco. A canção popular portuguesa, afirmamo-lo, é mais e melhor do que isso: ela é realmente a crónica viva e expressiva da vida do povo português – quer dizer: da vida rústica do povo português, visto que por canção popular portuguesa se deve entender, antes de tudo, a nossa canção rústica. Com efeito, só as populações dos campos, serras e aldeias de Portugal são depositárias de um tesouro inexaurível de melodias, que, na sua pureza, na sua frescura, na sua autenticidade étnica, na variedade e naturalidade das suas formas, nas suas surpreendentes características estéticas, enfim (a que não falta, como se tem suposto e afirmado, a profundeza, a gravidade, o alor da altura), têm jus a ser consideradas como espelhando inequivocamente a nossa psique. Quer criando propriamente, quer modificando ou adaptando, consoante a teoria sobre a génese da canção popular que se perfilhar, só as gentes da Beira ou do Alentejo, só o sisudo transmontano ou o vivaz ribatejano revelam, através dos seus cantares, o nosso génio musical espontâneo. Não é na cidade que o iremos encontrar, não. A canção urbana é pobre e incaracterística, banal e incolor, sem força sugestiva nem originalidade de contornos. Ou é o execrando fado, produto de corrupção da sensibilidade artística e moral, quando não indústria organizada e altamente lucrativa, como se verifica hoje em dia, ou é a banal copla revisteira, a insulsa marcha bairrista, a desengraçada cançoneta radiofónica e até o que hoje para aí se rotula, um tanto equivocamente, de «nova canção portuguesa», que, sem lustre nenhum para si mesmas, nem para quem as confecciona e as utiliza, substituíram a sentimental modinha e romanza de salão do século passado, que também por sua vez, embora fossem de outra qualidade, nenhum título possuíam para apresentar-se como mera canção popular.

Companheira da vida e trabalhos do povo português, a canção segue-o do berço ao túmulo, exprimindo-lhe as alegrias e as dores, as esperanças e as incertezas, o amor e a fé, retratando-lhe fielmente a fisionomia, o género de ocupações, o próprio ambiente geográfico, de tal maneira ela, a canção, o homem e a terra, onde uma floresce e o outro labuta, e ama, e crê, e sonha, e a que entrega por fim o corpo, formam uma unidade, um todo indissolúvel.

Nasce uma vergôntea na família, e logo a mãe acalenta o novo nado, cantando-lhe suavemente:

Vai-te embora, ó papão, De cima desse telhado, Deixa dormir o menino

28

Page 29: Conteudo Livro FLG CPP

Um soninho descansado...

– uma dessas terníssimas canções de embalar, maravilhas de candura que constituem verdadeiramente uma das expressões mais profundas da nossa música popular.

Povo essencialmente agrícola, o homem cava a terra, semeia-a, cultiva-a, recolhe-lhe os frutos, donde tira, quantas vezes a custo de dificuldades sem conto, a magra subsistência e um ganho incerto. E para todas as fainas, e para todas as estações, e para todas as horas, lá tem a canção dolorida ou álacre, estimulante ou resignada, que, no alvor da manhã, no pino do dia ou no crepúsculo do anoitecer, ecoa por devesas, vales e outeiros, dizendo a secular comunhão ou a secular luta do homem com a terra.

E são as lentas e compassivas «toadilhas de aboiar», em que o homem se dirige ao boi, que mansamente puxa a charrua e que ele toca e incita com fraterna solicitude:

Lavra, boi, lavra, Na chã da Portela; Repica, repica, Na vaca amarela.

E são as canções de ceifa, arrastadas e não raro dolorosas, traindo o ardor e a brutalidade da canícula:

Já são horas da merenda, Vamo-nos a merendar Gaspachinho com vinagre, Para o peito refrescar.

E são as canções de sacha, que dizem:

O milho da nossa terra É tratado com carinho; É a riqueza do povo, É o pão dos pobrezinhos.

E são as canções de monda:

Não quero que vás à monda, Nem à ribeira lavar, Não quero que vás à monda, Que vás à monda, Que vás mondar.

E as cantigas da azeitona:

Os amores da azeitona São como os da cotovia; Acabada a azeitona, Fica-te com Deus, Maria...

e tantas outras em que frequentemente a referência ao trabalho se mescla de alusões amorosas, sérias ou irónicas, como nesta alegre e travessa canção de vindima:

Não se me dá que vindimem Vinhas que eu já vindimei; Não se me dá que outros logrem

29

Page 30: Conteudo Livro FLG CPP

Amores que eu rejeitei. E são as canções em que se exprime um altivo amor à região ou lugares que o homem habita:

Borda-d’Água, Borda-d’Água, Borda-d’Água, Santarém, Mais vale uma Borda-d’Água Que quanto Lisboa tem...

ou a saudade infinita dos ares pátrios:

Pena triste, pena triste, Oh, quem não há-de chorar! Ver-me assim em terra alheia, Fora do céu natural...

ou o desdém pela sumptuosidade dos grandes empórios:

Lisboa, com ser Lisboa E ter navios no mar, Não é como a minha terra A mais linda em Portugal...

ou uma apóstrofe poética contra os naturais, culpados de não sabemos que ofensas ou traições ao solo nativo, como nesta admirável cantiga:

Ó Serpa, pois tu não ouves Os teus filhos a cantar? Enquanto os teus filhos cantam, Tu, Serpa, deves chorar.

Como o homem da cidade, mas certamente sem as complicações literárias ou os requintes patológicos deste, o homem rústico ama – e todo um tratado de psicologia amorosa do nosso povo se poderia escrever através das suas canções amorosas, tão variada, tão imprevista, tão rica de cambiantes, tão reveladora é a gama dos sentimentos, ideias e situações que estas traduzem. Todas as expressões do amor, desde o madrigal cavalheiresco à paixão absorvente, desde a dor da separação e da ausência à exultação da reconciliação e do reencontro, desde a idolatração da criatura amada à sua amaldiçoação, o desejo, o ciúme, a saudade, o sofrimento, a ternura, a ironia, a troça, o desdém – tudo se encontra na canção amorosa portuguesa e tudo ela traduz em formas não raro de grande propriedade conceitual e de não menor beleza musical.

Ele é a galanteria quase trovadoresca da linda e certamente muito antiga cantiga transmontana da Faixinha verde:

Faixinha verde Não ma désteis vós. Olhinhos verdes Bem lhes mirais vós. Faixinha verde, Do paninho fino, Não ma deu cunhado, Nem primo.

Faixinha verde Do paninho claro, Olhinhos verdes

30

Page 31: Conteudo Livro FLG CPP

Bem lhes mirais vós, Não ma deu primo, Nem cunhado. Olhinhos verdes Bem lhes mirais vós.

Ele é a «imortal declaração de amor», no dizer de António Joyce, contida na conhecida cantiga de Monsanto da Beira, certamente uma das mais preciosas jóias do nosso folclore:

Era ainda pequenina, Acabada de nascer, Inda mal abria os olhos Já era para te ver.

Ele é a mágoa, a um tempo excruciante e resignada, do abandono, e a danação pelo amor, que se cristalizam nestas duas quadras de absoluta genialidade:

Não choro por me deixares, Que o jardim mais flores tem; Choro por não encontrares Quem te queira tanto bem.

Por te amar perdi a Deus, Por teu amor me perdi; Agora vejo-me só, Sem Deus, sem amor, sem ti.

Ele é o rompante dom-joanesco da cantiga da Zebreira, recolhida por Rodney Gallop:

Eu sou como o gavião Que no ar faze firmeza, Quando me abaixo plo chão, Nunca levanto sem presa...

ou a compaixão pelo futuro negro do matrimónio em

Rapariga tola, tola, Olha o que vais fazer; Vais casar com um soldado, Mais te valera morrer.

A saudade que recorda o bem perdido ou que reconstitui, num halo de tristeza, a imagem do ente amado, e tal como ela se traduz na tão bela canção alentejana de O lenço:

Meu amor me deu um lenço Pelas suas mãos bordado; Numa ponta tem a Lua, Noutra tem o Sol pintado; No meio leva um letreiro Do nosso tempo passado.

contrapõe-se a malícia leve, eufemisticamente envolta, como tantas vezes se nos depara na nossa poética popular, numa saborosa imagética, da Amora madura:

Ó minha amora madura, Diz-me quem te amadurou.

31

Page 32: Conteudo Livro FLG CPP

– Foi o Sol e a geada E o calor que ela apanhou.

E o calor que ela apanhou Debaixo da silveirinha; Ó minha amora madura, Minha amora madurinha.

Teríamos de dispor de dilatado espaço para focar ainda outras das muitas expressões da canção amorosa portuguesa, mas fá-lo-íamos com prejuízo de outros aspectos da nossa lírica popular, para que convém chamar a atenção.

Assim, por exemplo, os romances, preciosas relíquias da poesia e, quiçá, da música trovadoresca, alguns deles porventura de confecção mais recente mas que naqueles entroncam, relíquias essas conservadas até há pouco no fundo das nossas províncias, em Trás-os-Montes e no Algarve principalmente, e hoje recordados apenas por alguma velhinha que, a voz trémula e a memória já um tanto confusa, as canta à lareira nos longos serões de Inverno. Lá desfia ela, em melodias de um arcaísmo precioso e de uma fina poesia, a trágica história do conde de Alemanha:

Já lá vem o Sol nascendo, Já lá vem o claro dia, E o conde de Alemanha Com a rainha dormia. Não o sabe nem el-rei, Nem quantos na corte havia: Sabe-a só a Dona Infanta, Filha da mesma rainha, ...

a maliciosa e bem-aventurada história de Gerinaldo:

Gerinaldo, Gerinaldo, Pajem de el-rei tão querido, Bem puderas, Gerinaldo, Dormir a noite comigo, ...

a pungente história de Santa Iria:

Estando eu a coser Na minha almofada Com agulha de ouro E dedal de prata, Chegou um estrangeiro Pedindo pousada. ...

as tristes andanças do cativo de Argel:

Os mouros me cativaram Entre a paz e a guerra; Me levaram a vender Pra Argelim, que é sua terra. Não houve perro nem perra Que o comprar-me quisera;

32

Page 33: Conteudo Livro FLG CPP

Só o perro de um mouro A mim só comprar havera. Dava-me tanta má vida, Tanta má vida me dera. ...

a escabrosa e cruel história de Silvaninha:

Passeava Silvaninha Pelo corredor acima; Levava viola d’oiro, Oh que tão bem a tangia! Seu pai que lhe aparece Estas falas lhe dizia: – Bem puderas tu, Silvana, Uma noite seres minha. ...

e o Bernal Francês, e o D. Martinho, e o Lavrador da Arada, e a D. Mariana e o Romance do Homem-Rico, e o Conde Ninho, tantos, tantos outros: o Romance do Conde Alberto, que justamente entusiasmou Garrett, com a sua sublime despedida maternal:

....

– Mama, mama, meu filhinho, Este leite de amargura, Amanhã por estas horas Tens a mãe na sepultura.

– Mama, mama, meu menino, Este leite de agonia: Que a tua mãe vai morrer, Ela que tanto te queria. ...

o romance do príncipe e da pastorinha, certamente de uma idade menos provecta mas encantador e rescendente de bucolismo:

– Pastorinha mana, Do vale da ribeira, Tira-te daí, Do sol que te queima.

– Não me queima, não, Que eu estou calejada Do vento e da chuva, Do rigor da calma. ...

E, para terminar esta simples e sucinta enumeração das preciosidades do nosso Cancioneiro, o gracioso romance de O cego, na lição transmontana conhecida por Mineta:

Levanta-te, Mineta, Do doce dormir, Está um cego à porta,

33

Page 34: Conteudo Livro FLG CPP

De lindo pedir. Dá-lhe uma esmola Ao pobre ceguinho, Dá-lhe do teu pão E dá-lhe do teu vinho. ...

O homem rústico, em contacto com as forças terríficas ou benfazejas da Natureza, emocionado pelo mistério da vida e da morte e familiarizado com as seculares doutrinas, práticas e símbolos da Igreja, possui um marcado fundo religioso. A sua religiosidade, simples, directa e por assim dizer realista, revela-se das mais variadas maneiras, reveste-se dos mais heterodoxos aspectos, manifestando-se à margem de subtilezas teológicas, não raro associando as manifestações de um paganismo ancestral aos ritos e alegorias da fé católica, ou resvalando daquelas para estes com toda a ingenuidade e sem a menor ideia de conflito ou heresia. No plano poético-musical, esta religiosidade primitiva e sui generis encontra expressão numa variedade infinita de canções e melodias, que constituem sem dúvida uma das maiores riquezas do nosso folclore.

Além das canções imediatamente ligadas às cerimónias, tradições e maravilhoso da Igreja, como as que se referem ao culto da Virgem, os benditos, as jaculatórias, as ladainhas, etc., que, em nosso entender, e sem com esta reserva querer suscitar quaisquer melindres, são, pela sua maior parte, de origem profana, compostas por amadores ou semiprofissionais da música e de valor artístico restrito, outras, muitas outras, traduzem um sentimento religioso mais profundo, mais puro, mais vivo ou mais telúrico, qualquer que seja a feição que este revista – inspiração panteísta ou inspiração cristã – e encerram verdadeiras preciosidades de inspiração melódica ou, mais geralmente e com dobrada força expressiva, revelando-se mediante vetustas polifonias.

Temos, por exemplo, o ciclo das canções da Natividade. Em primeiro lugar, as que se referem directamente à vinda ao mundo do Deus-Menino, umas vezes puras e místicas, como tela de pintor primitivo:

Entrai, pastores, entrai, Por este portal sagrado; Vinde ver o Deus-Menino Entre palhinhas deitado...

outras vezes humanizadas por cenas e traços da mais terna e íntima familiaridade:

Eu hei-de dar ao Menino Uma fita prò chapéu; Também Ele nos há-de dar Um lugarzinho no Céu...

outras, ainda, folgazãs, quais danças rústicas animadas pelos tocadores de sanfona dos presépios de Machado de Castro:

Olé, rapazes pimpões, Cantemos à desgarrada, Para alegrar o Menino Mai-la sua Mãe sagrada

Depois, as festivas e congratulatórias, não raro trocistas, Janeiras:

Deus lhe dê cá boas-noites, Boas-noites de alegria, Que lhas manda o rei da glória,

34

Page 35: Conteudo Livro FLG CPP

Filho da Virgem Maria.

E, por fim, os pedinchões Reis:

Acabadas são as festas, Chegados são os três Reis; Olhem lá por suas casas Se há alguma coisa que deis.

Vêm depois, pela Quaresma, aquelas impressionantes, às vezes terríficas mesmo, Encomendações das almas, ou Amentar das almas, cantos nocturnos entoados nas encruzilhadas, em frente dos edículos das alminhas, evidente reminiscência do ancestral culto dos mortos, e que constituem um dos aspectos porventuras mais curiosos do nosso folclore religioso:

Alerta, alerta, Vida é curta, morte é certa! Ó irmãos meus, filhos de Maria, Pelas almas do Purgatório, Um padre-nosso, Uma ave-maria!

Chega a Páscoa e, com o Deus morto e ressuscitado, toda a Natureza floresce, a Primavera garrida expulsa o carrancudo Inverno; e são então as cantigas de alvíssaras, vibrantes e rescendentes das flores campestres, entoadas tradicionalmente à meia-noite de Sábado de Aleluia, junto da Igreja Matriz:

Cachopas, levantai-vos cedo, Vinde colher a flor à giesta, Que os anjos já vêm cantando: – Aleluia já é festa.

Entra o Verão, que traz o calor, a abundância. A Natureza apresenta-se pletórica de vida e de seiva. A 21 de Junho, o Sol atinge o solstício e entra em toda a sua glória e esplendor; e por todo o país se festeja então o S. João com as alegres cantigas das fogueiras63, que recordam o imemorial culto do fogo e a que o próprio santo, um dos mais venerados dos Flos Santorum, sem prejuízo da divina missão lustral do Baptista, e certamente para desempenhar mais cabalmente a sua outra missão, mais terrena, de casamenteiro e protector de namorados, não se dedigna concorrer.

Onde estará S. João, Que não o vejo na igreja? Anda a correr as fogueiras, Para ver quem o festeja.

Esta noite deito sortes, S. João vai declarar O nome do namorado Que comigo há-de casar.

Vem depois, em Agosto e Setembro, terminadas as mais importantes fainas agrícolas, o tempo das romarias, em que moços e moças, velhos e velhas, escorreitos e aleijadinhos, se encaminham, por montes e vales, às vezes durante léguas e léguas, ao santuário da sua devoção, em grande concurso de povo, que, feitas as preces, cumpridas as promessas ou dados os louvores ao orago, se liberta, numa

63 Nem sempre alegres, porém. No Alentejo, nas Beiras, por exemplo, os cantos do S. João são com frequência num ritmo lento, se é que não dolente, de acordo com a idiossincrasia do Alentejano ou o misticismo de raiz do Beirão. [Nota de F. Lopes-Graça.]

35

Page 36: Conteudo Livro FLG CPP

alegria rútila e saudável, de cuidados e canseiras, folgando, mercadejando, comendo e amando em toda a simplicidade de espírito e sem qualquer ideia de ofensa aos lugares sagrados.

É a romaria da

Senhora da Póvoa, Minha Senhora da Póvoa, Minha boquinha de riso, ...

e a romaria à

... Senhora Mãe dos Homens Que estás a meia ladeira, ...

e a romaria à Senhora do Amparo:

Ó Senhora do Amparo, Ela lá em cima vem, Com seu menino ao colo E seu cabelo ao desdém...

e a romaria de

A Senhora d’Aires, De ao pé de Viana,

que

Tem o seu altar Feito à romana...

e a romaria do Senhor da Serra (tantos que há por esse Portugal fora!):

Foste ao senhor da Serra, Nem um anel me trouxeste, Nem os moiros da Moirama Faziam o que tu fizeste...

e a romaria à Senhora Santa Combinha:

Senhora Santa Combinha, De lá venho eu agora, Em manguinhas de camisa Tocando uma viola...

e a romaria à Senhora do Livramento, a quem se impetra favor de suma importância:

Senhora do Livramento, Que estais numa vidraça, Livrai o nosso António De ter de ir assentar praça...

e a romaria à senhora da Encarnação, protectora de pescadores:

De Buarcos à Figueira – Lindo bem,

36

Page 37: Conteudo Livro FLG CPP

Senhora da Encarnação, Lá vem o meu amorzinho – Lindo bem, Naquela embarcação...

e outras, e outras: a romaria da Senhora das Dores, a da Senhora das Neves, a do Senhor da Piedade, a da Senhora S.ta Luzia, numes milagreiros ou tutelares, dos quais tudo se espera e tudo se confia, e que ouvem gostosamente as mais lindas cantigas do nosso folclore, algumas delas de recuada antiguidade e acompanhadas de primitivos instrumentos de percussão, adufes, pandeiros, ferrinhos.

Seria um nunca mais acabar de canções, apropriadas às mais diversas circunstâncias, ou a circunstância nenhuma e apenas existindo porque o povo canta não só para acompanhar os seus trabalhos e as suas folganças, para exprimir as suas dores e as suas alegrias, como porque, sendo instintivamente artista, todas as ocasiões lhe são boas para, gratuitamente, se manifestar como tal, através da mais espontânea e comunicativa das artes: a música e, dentro desta, da mais imediata das suas expressões: o canto.

4. O PROBLEMA DA CANÇÃO POPULAR PORTUGUESA (1953)64

Já por mais de uma vez se tem afirmado ser a recolha e estudo sistemático da nossa canção

popular uma tarefa que importava realizar com a maior urgência, com vista sobretudo à organização e publicação de um Cancioneiro Popular Geral que, de uma forma tanto quanto possível completa, compendiasse, por províncias, regiões, zonas de afinidade ou qualquer outro método que mais conveniente se julgasse, o rico e pela sua maior parte ignorado tesouro do nosso folclore musical.

As contribuições que, para cima há de três decénios a esta parte, têm sido fornecidas a tão importante obra por beneméritos eruditos, quase sempre desacompanhados e só num que noutro caso especialistas do assunto, por valiosas que sejam, acham-se limitadas, quanto ao escopo aqui em mente, pelo facto de se referirem exclusivamente a uma determinada região do País. Só o inglês Rodney Gallop tentou, na sua pequena, embora muito prestimosa, colectânea Cantares do Povo Português (1937), algo que se aproxima de um Cancioneiro Popular Geral ordenado por províncias (não figura na colectânea nenhuma canção do Algarve), mas é evidente que as próprias reduzidas dimensões do seu trabalho lhe diminuem o alcance e estão longe de satisfazer ao desiderato apontado.

Isto é tanto mais para lamentar quanto é certo algumas destas contribuições terem revelado aspectos da canção popular portuguesa praticamente ignorados e que vêm modificar grandemente as ideias nem sempre, e com justa razão, optimistas que, sobre a nossa música folclórica, era possível formular através das anteriores recolhas, como a de César das Neves, pobríssima e de todo incaracterística (não obstante as suas vastas dimensões), ou as de Pedro Fernandes Tomás, sem dúvida mais prestantes mas ainda longe de se alicerçarem em critérios esclarecidos e esclarecedores. Excepção deve, no entanto, fazer-se ao valioso livrinho de Francisco Serrano: Romances e Canções Populares da Minha Terra (1921), apenas referente, contudo, ao concelho de Mação, na Beira Baixa.

O que há ainda a fazer no capítulo da compendiação por escrito da nossa canção popular é considerável. Atentemos em que as monografias mais recentemente vindas a lume, e baseadas em cuidadosa posto que nem sempre rigorosamente científica investigação, nos põem apenas em contacto com o Minho (Gonçalo Sampaio: Cancioneiro Minhoto, 2.a ed., 1944) ou as duas regiões desta província (Vergílio Pereira, Corais Geresianos, 1957; Alexandre de Lima Carneiro: Cancioneiro do Monte Córdova, 1958), parcialmente com Trás-os-Montes (P.e Firmino A. Martins: Folclore de Vinhais, 2 vols., 1928 e 1938; Margot Dias: «Cancioneiro», em Rio de Onor, 1953; Vergílio Pereira: Corais Mirandeses, 1959), com três concelhos do Douro Litoral (Vergílio Pereira e Rebelo Bonito: Cancioneiro de Cinfães, 1950; Vergílio Pereira: Cancioneiro de Resende, 1957, e Cancioneiro de

64 Título atribuído por F. Lopes-Graça em A Canção Popular Portuguesa, este texto é a Introdução. [Nota do Org.]

37

Page 38: Conteudo Livro FLG CPP

Arouca, 1959), com um concelho da Beira Alta (Jaime Pinto Pereira: Alegrias Populares – Cancioneiro Folclórico do Concelho de Seia, s/d), com uma região da Beira Baixa (António Joyce: «Acerca das Canções Populares de Monsanto e Paul», em Ocidente, vol. IV, 1938) ou uma localidade desta mesma província (Diogo Correia: Cantares de Malpica, s/d) – sem esquecer, contudo, outros trabalhos, quanto a nós ou demasiado especulativos, se é que não confusos (Edmundo Arménio Correia Lopes: Cancioneirinho de Fozcoa, 1926), um tanto discursivos e incompletamente documentados (Armando Leça: Música Popular Portuguesa, s/d) ou então bastante discutíveis (Dr. Jaime Lopes Dias: Etnografia da Beira, vols. II, 1927, e IV, s/d; Eurico Sales Viana: «Cancioneiro Monsantino», em Monsanto, s/d; e P.e António Marvão: Cancioneiro Alentejano, 1955).

Não nos é possível, pois, uma visão de conjunto da canção popular portuguesa, fornecida por publicação em que se desse conta de todas as suas espécies, modalidades, géneros, etc., organizados, como dissemos, consoante critério que se tivesse por mais conveniente ou científico – algo afim do inacabado mas ainda assim fundamental Cancionero Musical Popular Español, de Felipe Pedrell, da vasta Anthologie des Chants Populaires Français, de Joseph Canteloube, ou do monumental Corpus Musicae Popularis Hungaricae, cujas bases foram lançadas por Béla Bartók e Zoltan Kodaly.

Observemos, no entanto, que se os documentos escritos escasseiam, são parcelares ou contestáveis65, alguma coisa se ganhou, porém, no conhecimento mais íntimo e, digamos, objectivo da música folclórica portuguesa, graças aos documentos gravados ultimamente aparecidos, dentre os quais releve-se-nos destacar os cinco discos-álbuns da Antologia da Música Regional Portuguesa, consagrados às províncias de Trás-os-Montes, Minho, Algarve, Alentejo e Beiras. Devida às investigações de Michel Giacometti (com a cooperação do autor deste livrinho), a Antologia, embora ainda incompleta, oferece-nos já um panorama largo e vivo da nossa canção popular, do mesmo passo revelando-nos preciosos e insuspeitados aspectos desta, que vêm ampliar consideravelmente os conceitos que dela se poderiam formar através dos sós documentos escritos.

Todavia, muitíssimo há decerto ainda a fazer neste capítulo da recolha in loco e mediante o magnetofone (o único processo hoje mundialmente reconhecido como válido) e que talvez já se vá tornando tarde para fazer, dada a influência descaracterizante cada vez mais acentuada do disco, da rádio, da televisão e do repertório chamado ligeiro que aquele e estas profusamente distribuem e que já agora penetram nos mais recuados cantos das nossas províncias. Que o folclore, por esta e outras razões de ordem social e material, tenda a desaparecer como realidade viva, é coisa que nos não deve surpreender em demasia. No entanto, da mesma maneira que se preservam as relíquias literárias, plásticas e arquitectónicas do passado, não só pelo seu valor intrínseco, como por constituírem testemunhos de cultura e de civilização, também a canção popular, como produto e documento da actividade estética, que de toda a evidência é, tem jus a ser recolhida, arquivada e estudada, e tanto mais quanto ela pode na realidade prestar incalculáveis benefícios de ordem educativa e artística.

A pessoa, entidade ou empresa que lançasse ombros à organização e publicação do nosso Cancioneiro Popular Geral empreenderia trabalho de magno alcance nacional. Os pedagogos conscientes e de boa vontade teriam aí material idóneo e são para empreenderem uma reforma da «mentalidade musical» da nossa gente, ameaçada de perversão do gosto e da sensibilidade pela avalanche de baixa música mercantilista, já importada, já confeccionada no País e, com essa reforma, a afirmação do sentido da terra e do espírito de comunidade pátria. Por seu turno, os nossos compositores poderiam dele, desse Cancioneiro, extrair o material, as sugestões ou premissas estilísticas necessárias e eficientes para a criação de uma música culta que, pela linguagem e pelo conteúdo (e sem com isso se cair no puro folclorismo nem se iludirem as exigências do ofício), afirmasse o seu autêntico carácter nacional, coisa que até agora só como ideal se tem posto, sem que os meios de o realizar (e não vai

65 Sem querer estabelecer um paralelo descabido com as três fundamentais publicações que acabamos de citar, seria todavia uma falta não dar notícia de algo ainda não há muito aparecido e que, de certo modo, nos dá o panorama mais completo da nossa canção popular até hoje vindo a lume. Trata-se do Cancioneiro Popular Português, da autoria de Michel Giacometti com a colaboração de F. Lopes-Graça, saído em 1981 dos prelos do Círculo de Leitores. (Nota de F. Lopes-Graça de 1990.)

38

Page 39: Conteudo Livro FLG CPP

nestas palavras menospreço das generosas tentativas e realizações de alguns artistas nossos de reconhecido valor) se tenham afirmado com a força de um credo, de uma doutrina ou de um método.

Este livrinho não pretende, nem por sombras, preencher tão deplorável lacuna na nossa cultura artística. Teoricamente, não faz mais do que abordar um certo número de problemas que continuarão aguardando quem deles se ocupe com mais proficiência e mais vasto conhecimento de causa. Documentalmente, não pode senão apresentar uma pequena selecção do rico corpus da nossa canção popular, selecção que procurámos, em todo o caso, fosse tão variada e característica quanto possível.

Que, apesar das suas deficiências e das suas forçadas exíguas dimensões, ele possa ser de alguma utilidade e cumpra a missão pedagógica que sobretudo tem em vista, são os nossos mais ardentes votos.

5. UMA DEFINIÇÃO DE MÚSICA FOLCLÓRICA (1953)

Acaba de nos chegar às mãos o 6.o Boletim do International Folk Music Council (Conselho

Internacional de Música Popular, ou, mais propriamente, da Música Folclórica), que insere o relatório provisório do V Congresso Internacional daquela instituição, de que é actual presidente o ilustre compositor e folclorista inglês Vaughan Willams.

Julgando impossível, na actual fase de conhecimento, definir música folclórica a contento de todos os estudiosos, este Congresso aceita a seguinte declaração provisória: – Música folclórica é a música que tem estado sujeita ao processo da transmissão oral. É produto de evolução e acha-se dependente de circunstâncias de continuidade, variação e selecção.

Este texto é extremamente significativo. Deixa ele perceber a variabilidade e flutuação dos critérios quanto ao que se deve entender por música folclórica66, e ao mesmo tempo a necessidade de se assentar numa definição que, afastando na medida possível o que possa ser do domínio hipotético e contraditório, alcance uma certa objectividade.

Neste sentido, não pode deixar de se nos antolhar sintomático o facto de, da definição, terem sido excluídas as ideias de imitação, influência, deformação ou degradação, pelas quais se tem caracterizado a essência e delimitado a posição e âmbito da música folclórica em relação à música culta.

Apesar de todas as aparências em contrário, o fenómeno da música folclórica é por demais complexo, tanto sob o ponto de vista estético como sociológico para poder admitir soluções que, se satisfazem o nosso natural desejo de explicação racional das coisas, não deixam muitas vezes de se revestir de um simplismo confortável.

Nos seus múltiplos aspectos, a teoria da derivação ou filiação da música folclórica na música culta não se tem revelado grandemente fecunda e, pelos becos sem saída a que de ordinário conduz, pelas zonas obscuras que deixa na observação do processo, vem de há tempos tornando-se suspeita aos investigadores dotados de espírito verdadeiramente científico.

É claro que música culta e música folclórica não são dois compartimentos estanques: em certos aspectos, em certas fases da sua evolução, em certos modos do seu comportamento estético, técnico e histórico implicam-se mutuamente, relacionam-se, e esta sua relacionação é até precisamente um dos pontos mais atraentes do facto musical, a que, valha dizer-se, raros historiadores ou ensaístas, por preconceito ou rotina, têm prestado a devida atenção.

Ora há reconhecer que, neste processo de relacionação, nestas implicações recíprocas, tem sido até mais fácil determinar o que é que a música culta deve à música folclórica do que precisar,

66 Evitamos deliberadamente neste escrito a expressão «música popular», mais comummente empregada não só entre nós como noutros países latinos mas de conteúdo um tanto equívoco, embora reconheçamos, por outro lado, que a expressão «música folclórica» também é susceptível de ser mal interpretada, em virtude do uso e abuso que em Portugal se tem feito da palavra folclore e do adjectivo folclórico, adulterados, caricaturados, no seu verdadeiro sentido. [Nota de F. Lopes-Graça.]

39

Page 40: Conteudo Livro FLG CPP

objectivamente, documentalmente, aquilo em que esta se apresenta como subsidiária daquela... Sendo assim, e pondo de lado, como não interessando ao problema, a questão de valor ou de plano ontológico de cada uma delas, como não encarar a música culta e a música folclórica como actividades ou modos de expressão do sensível que, embora contactantes, constituem dois mundos diferentes no que toca às razões internas e necessárias da sua formulação e das suas manifestações históricas?

É isto, pelo menos, o que nos parece poder concluir-se, sem grande margem de arbítrio, ou apenas com um pequeno esforço de aprofundamento, das condições assinaladas ao fenómeno da música folclórica na resolução do V Congresso do IFMC, na qual os termos de evolução, continuidade, variação e selecção exprimem os conceitos justos que garantem autonomia (relativa embora, como tudo neste universo de relacionações) a qualquer organismo vivo e historicamente actuante.

40

Page 41: Conteudo Livro FLG CPP

PROBLEMATIZAÇÃO Uma definição de música folclórica Apesar de todas as aparências em contrário, o fenómeno da música folclórica é por demais

complexo, tanto sob o ponto de vista estético como sociológico para poder admitir soluções que, se satisfazem o nosso natural desejo de explicação racional das coisas, não deixam muitas vezes de se revestir de um simplismo confortável...

Música e regionalismo ... os ranchos ou grupos folclóricos que pelo País existem devem ser, de facto, grupos populares.

O que cantam, bom ou mau, do povo há-de vir e será portanto erro de orientação, uma adulteração da sua essência e finalidade próprias fazerem-nos cantar seja o que for expressamente escrito para eles por compositores profissionais ou semiprofissionais. Cantem as suas próprias cantigas, dancem as suas próprias danças, façam-no sem mistura e sem artificialismos...

Notas para um possível ideário do folclorista musical português Como esclareceu Béla Bartók (e outros investigadores na peugada deste grande mestre), a

origem das melodias rústicas, quer se firme num autor conhecido, quer na música de outra classe, não é matéria essencial ao estudo da canção folclórica. O que importa é a fisionomia específica desta, o seu comportamento, digamos, a maneira como a função que desempenha age sobre a sua expressão e a sua estrutura...

Sobre o actual cultivo da canção folclórica portuguesa A quem tem pugnado pela valorização da canção folclórica portuguesa como elemento básico

para a formação musical da nossa grei, por um lado, e, por outro, como material que, idoneamente tratado, poderá e deverá enriquecer o repertório dos nossos grupos corais, quer os de amadores, quer os mais ou menos profissionais, não pode deixar de se lhe antolhar bom prenúncio o facto verificado ultimamente de esses grupos (cujo número vai em boa hora aumentando, se bem que ainda não na proporção que seria para desejar) virem prestando a ela, a canção folclórica portuguesa, uma atenção que, em princípio, não merece senão encorajamento...

Tradicionalismo e folclorismo quantitativo Muitas e variadas considerações (a começar pela beleza do português) se poderiam tecer sobre

este singular documento que, uma vez mais, denuncia o singular uso que, de há uns tempos a esta parte, se está a fazer do folclore nacional, considerado não como matéria de estudos etnográficos e sim como pretexto para competições regionalistas, ou transformado em cartaz de atracção turística, numa espécie de folclorite aguda, a atingir por vezes as raias do caricato...

41

Page 42: Conteudo Livro FLG CPP

6. É A MÚSICA FOLCLÓRICA UMA DEFORMAÇÃO DA MÚSICA CULTA? (1953)

Num artigo sobre a nossa música antiga, da autoria de Humberto de Ávila, publicado na página

literária de O Primeiro de Janeiro de 11 de Fevereiro passado, lêem-se os seguintes períodos:

No que respeita à arte dos sons, a nossa formação não só é pouco original, é estrangeira. Não basta, pois, segundo se nos antolha quanto ao estado de coisas actual, assegurar a criação de um estilo nacional a partir do conhecimento, truncado para sempre do nosso filão folclórico. O folclore é a deformação popular duma tradição, dum passado. E esse passado é o que nos falta.

Estas afirmações afiguram-se-me muitíssimo discutíveis. Ponhamos de lado a de que a nossa formação musical é estrangeira, certamente um tanto abusiva mas, enfim, talvez aceitável em parte, e fixemo-nos apenas nas que se referem ao folclore nas suas relações com a música culta.

Humberto de Ávila acha problemático que se possa estruturar um estilo nacional «a partir do conhecimento, truncado para sempre do nosso filão folclórico». Por mais que me esforce, não consigo compreender a asserção e duvido que alguém lhe possa encontrar algum sentido. Que se hesite em considerar viável a criação de um estilo nacional, de qualquer estilo nacional, baseado na música folclórica, ainda se poderá aceitar como princípio estético, embora os factos demonstrem o contrário. Mas que significará a frase: «o conhecimento, truncado para sempre do nosso filão folclórico?» Se existe um filão folclórico, como é que o seu conhecimento se nos pode apresentar truncado? Truncado porquê, e como? E ainda por cima «para sempre»... Que fatalidade é esta? Em que altura e devido a que estranhos factores, a que catastrófico fenómeno social ou cósmico se deveu o irremediável corte no nosso filão folclórico que «para sempre» nos torna inacessível o seu conhecimento? Terá de facto algum sentido lógico a afirmação? Terá ela alguma probabilidade de comprovação científica?

Quanto à proposição de que «o folclore é a deformação popular duma tradição, dum passado», há que reconhecer achar-se Humberto de Ávila singularmente atrasado nas suas ideias acerca da matéria. A teoria do gesunkenes Kulturgut da escola de Meier foi há muito abandonada como explicação suficiente da formação da música popular. Como havia ela de ser aplicável, por exemplo, ao folclore dos inúmeros povos primitivos sem passado cultural e em que de facto a única música existente é a popular? Como havia ela de dar conta das várias particularidades rítmicas, tonais e estruturais observadas em tantas músicas populares, particularidades que não têm correspondência nas formas históricas de música culta? Como havia ela de explicar as influências recíprocas que em tantos casos se patenteiam entre os dois tipos de música, o que prova bem a existência de duas correntes de certo modo autónomas e que um natural processo dialéctico aproxima em determinadas circunstâncias e momentos? E não se chegou mesmo já a formular a teoria inversa, e não tão arrojada como isso, de que toda a música culta tem a sua origem na música popular, ou, para o dizer menos equivocamente, na música folclórica?

Se é certo que, em países de cultura evolucionada, é possível fazer remontar um grande número de canções populares a determinados arquétipos cultos (o que não constituiria necessariamente uma degradação mas sim um simples fenómeno de conservação), a verdade é que não são estes casos que informam basicamente as modernas teorias sobre a génese da música folclórica, as quais assentam numa exploração e num estudo mais cerrados da realidade musical espontânea, tal como esta se pode encontrar nos povos primitivos ou nas populações rurais de certos países civilizados ou semi-civilizados.

Pelo que diz respeito à nossa canção folclórica, e tanto quanto se podem fazer afirmações em domínio ainda insuficientemente estudado, a teoria despicienda e aristocrática da «deformação popular» parece não ter muitas probabilidades de encontrar terreno sólido. Muito mais original e forte do que a nossa música culta do passado, ou do que aquilo que nesta lhe poderia servir de hipotético modelo, a nossa música folclórica constitui, de facto, não a «deformação», a caricatura de uma tradição, mas uma realidade viva, e, portanto, aquela tradição, aquele passado actuante e dinamizador

42

Page 43: Conteudo Livro FLG CPP

que Humberto de Ávila lamenta faltar-nos e cuja falta nos inibiria de podermos chegar à criação de um estilo nacional.

Ao fazer estas simples considerações não me move qualquer vão intuito polemizante mas sim o de, mais uma vez, trazer uma modesta contribuição para o esclarecimento de um problema que se me afigura não ser em geral encarado entre nós com o discernimento necessário, sobretudo por parte dos teorizadores que dele, desse problema, mostram andar um tanto afastados.

7. MÚSICA E REGIONALISMO (1956)

A um jovem da província que recentemente se nos dirigiu (e não é a primeira vez que tal sucede)

a solicitar de nós música para uma canção, cuja letra nos enviava, destinada ao repertório de determinado rancho regional em que se achava interessado, respondemos pouco mais ou menos o seguinte:

Eu considero que os ranchos ou grupos folclóricos que pelo País existem devem ser, de facto, grupos populares. O que cantam, bom ou mau, do povo há-de vir e será portanto erro de orientação, uma adulteração da sua essência e finalidade próprias fazerem-nos cantar seja o que for expressamente escrito para eles por compositores profissionais ou semiprofissionais. Cantem as suas próprias cantigas, dancem as suas próprias danças, façam-no sem mistura e sem artificialismos – o que é uma questão de são critério por parte de quem os orienta ou estimula – e eles serão tanto mais genuínos e serão tanto mais apreciados do ponto de vista que mais interessa – o ponto de vista folclórico, autenticamente folclórico.

Não sei, nem prevejo, qual terá sido a reacção do simpático moço ao ler estas palavras. Possivelmente de desilusão. Pois então uma pessoa, um músico, que tem mostrado interessar-se não só pelas manifestações artísticas do povo português como pelo próprio levantamento do seu nível cultural, essa pessoa, esse músico recusa assim ajudar os que se lhe dirigem, precisamente no sentido de pôr a sua arte ao serviço desse mesmo povo?

É claro que uma coisa é pôr a arte ao serviço do povo, outra é interferir directamente na arte do próprio povo, num compromisso ou hibridismo de intenções e resultados que só pode, na realidade, desservir a arte e o povo. Por mais bem intencionado que se seja, por muito que haja o sincero desejo de acertar, é difícil não cair num certo número de ideias falsas, de equívocos postos entre nós a circular, de há uns anos a esta parte, acerca da maneira de utilizar, estimular e valorizar o folclore nacional nos seus vários aspectos, e mormente no aspecto musical. Os erros cometidos à sombra de uma mal-entendida ingerência nas manifestações artísticas espontâneas da nossa gente são por de mais evidentes e desastrosos, para que aquela meia dúzia de pessoas que possuem a consciência clara do problema e seus melindres percam qualquer oportunidade de os denunciar, pondo, do mesmo passo, as coisas no são.

Ora, uma das mais melindrosas questões que neste campo se nos depara é, precisamente, a do repertório musical dos grupos folclóricos – se é que, na realidade, podemos chamar grupos folclóricos a tantos dos inúmeros ranchos populares que na nossa província têm vindo ultimamente a formar-se num propósito em princípio louvável, mas que pecam razoavelmente pelo seu tal ou qual artificialismo e, mais ainda, por um vício de orientação artística, que tem a sua raiz numa mal compreendida noção do que seja verdadeiramente a música popular. (Não será descabido acentuar neste momento a parte de responsabilidade que, neste capítulo, cabe à rádio e à perniciosa influência que ela tem exercido, com a sua propagação pseudomúsica folclórica, que ao comercialismo das intenções alia o mais deplorável mau gosto, o mais ridículo pretenciosismo de estilo da parte de quantos cantadores e tocadores disso têm feito vida fácil e irresponsável modo de vida.)

43

Page 44: Conteudo Livro FLG CPP

O que tais ranchos populares cantam deixa quase sempre muito a desejar, pela sua flagrante inautenticidade – pobres e incaracterísticas cantiguinhas confeccionadas em geral por modestos amadores ou «mestres de música» locais, certamente bem intencionados, mas incapazes de achar o «tom» que conviria mesmo a um folclore espúrio, e ainda há pouco o crítico musical do jornal República delicadamente denunciava o despropositado se semelhantes produtos da musa individual regionalista, ao apreciar a actuação na capital de determinado rancho ou sedicente grupo folclórico alentejano.

Naturalmente que há toda uma importante tarefa a realizar no sentido de uma urgente preservação da música folclórica e, mais ainda, no de uma necessária e consciente reactivação, digamos assim, das manifestações da arte popular. Impunha-se a criação de centros regionais de folclore, não, evidentemente, com a intenção de transformar abusiva e arbitrariamente este, mas com o propósito de coligir, estudar e depurar as criações espontâneas da arte popular e estimular o culto desinteressado desta. Tarefa para etnólogos tanto como para artistas que, acima das suas fantasias ou intromissões pessoais, pusessem a compreensão nítida do problema e dos objectivos a atingir. Assim o folclore e, neste, a sua porventura mais vital e, digamos, prática: a música e a dança, seria, não orientando, dirigindo, coisas sempre de temer, mas apenas preservando e vivificando, no que, evidentemente, seria necessário unir a paixão à inteligência. E então os ranchos ou grupos folclóricos regionais poderiam ser, de facto, uma expressão autêntica, não artificiosa e banalizada, da arte popular. Por agora, e salvo raras excepções, são isto mesmo tão-somente.

8. NOTAS PARA UM POSSÍVEL IDEÁRIO DO FOLCLORISTA MUSICAL PORTUGUÊS (1957)

Conviria certamente fazer a destrinça entre canção popular e canção rústica (ou regional) e

empregar de preferência esta segunda expressão quando se tratasse dos espécimes do verdadeiro folclore – o das populações rurais –, reservando a primeira para os produtos espúrios da música urbana que, de certo modo, obtiveram vulgarização mais ou menos duradoira.

O estudo da canção popular portuguesa (empreguemos ainda a consagrada terminologia) de modo nenhum pode, nem deve, transformar-se numa questão de bairrismo, ou, por outra, de particularismo provincial, isto é, não se deve, nesta matéria, prejulgar apaixonadamente, subjectivamente, da excelência, primazia de qualquer região geográfica, como se se tratasse da defesa e honra das próprias instituições locais. Se alguma das nossas províncias sobreleva a outra em riqueza folclórica, é coisa que só se poderá concluir objectivamente, cientificamente, sem que para tal haja mister entrar em liças polémicas ou em emulações dignas das guerras do alecrim e da manjerona.

Não confundir folclore musical com a arqueologia musical. O primeiro surpreende um processo de criação evolutivo, sim, mas em todo o caso vivo e funcional; o segundo estuda um «documento» morto, fixando-o no tempo e no espaço e procurando descobrir-lhe ou assinar-lhe um certo número de relações históricas – trabalho que pode ser meritório, mas que é também certamente limitado, unilateral. Digamos que o folclore é dinâmico, enquanto a arqueologia musical é estática.

Como esclareceu Béla Bartók (e outros investigadores na peugada deste grande mestre), a origem das melodias rústicas, quer se firme num autor conhecido, quer na música de outra classe, não é matéria essencial ao estudo da canção folclórica. O que importa é a fisionomia específica desta, o seu comportamento, digamos, a maneira como a função que desempenha age sobre a sua expressão e a sua estrutura.

Não pode deixar de se antolhar bem singular a posição daqueles folcloristas que começam por negar a canção popular como entidade estética autónoma (o que não quer dizer «pura», pois que o conceito de «pureza» é, sem dúvida, um dos mais ilusórios que existem).

Se a canção popular (entendida no seu mais lídimo sentido) não é mais que uma «deformação», uma «degradação» da música culta, não há que estudá-la: há que denunciá-la e condená-la, como se

44

Page 45: Conteudo Livro FLG CPP

denunciam e se condenam todos os subprodutos artísticos, todas as contrafacções das actividades superiores do espírito. Também, se assim é, não se compreendem muito bem os hinos de louvor que lhe tecem frequentemente esses mesmos que teoricamente a negam, o lirismo entre o amoroso e patriótico de que por via de regra a rodeiam.

Decerto que é necessária a intervenção do critério estético na apreciação, na avaliação do que vale ou não vale na canção popular. Produto de arte (arte sui generis, é certo, mas arte em todo o caso, e dêem-lhe as voltas que lhe quiserem dar), reduzi-la a um mero «documento» etnográfico será amputá-la no seu principal significado, que é o de traduzir em formas belas (ainda aqui: beleza sui generis, mas beleza sem dúvida, e quantas vezes bem pura e bem forte) a psique do povo, que a cria ou não cria, não importa grandemente, mas que dela se serve, dela se impregna e a ela confere individualidade que teoria alguma é capaz de denegar, de invalidar, e que constitui um verdadeiro ethos.

9. SOBRE O ACTUAL CULTIVO DA CANÇÃO FOLCLÓRICA PORTUGUESA (1959)

A quem tem pugnado pela valorização da canção folclórica portuguesa como elemento básico

para a formação musical da nossa grei, por um lado, e, por outro, como material que, idoneamente tratado, poderá e deverá enriquecer o repertório dos nossos grupos corais, quer os de amadores, quer os mais ou menos profissionais, não pode deixar de se lhe antolhar bom prenúncio o facto verificado ultimamente de esses grupos (cujo número vai em boa hora aumentando, se bem que ainda não na proporção que seria para desejar) virem prestando a ela, a canção folclórica portuguesa, uma atenção que, em princípio, não merece senão encorajamento. Todos eles a cantam e todos eles simpática e avisadamente lhe consagram uma parte do programa das suas exibições públicas, com manifesto agrado e aplauso de quem os escuta. Sobeja razão, julgamos, para não calarmos alguns reparos ou objecções de ordem a um tempo artística e pedagógica, que este bem-vindo cultivo da nossa canção e certos dos seus resultados nos sugerem, sem que pretendamos com isto outra coisa que não seja contribuir, precisamente como artista e como pedagogo com alguma experiência na matéria, para a melhor consecução do objectivo em vista.

O nosso primeiro reparo diz respeito às harmonizações ou arranjos das canções. É imediatamente intuitivo que estas harmonizações ou arranjos têm de obedecer às condições necessárias da obra de arte, tanto mais quando são destinadas a figurar em programas ao lado dos bons modelos da literatura coral clássica. Ora, sem menosprezar as boas intenções e boa vontade dos autores de tantas harmonizações que frequentemente se ouvem, deve reconhecer-se que estas estão longe de alcançar um nível técnico e estético sequer médio que as possa definir como obras de arte. A harmonização ou arranjo de uma canção folclórica não é assim coisa tão fácil e irresponsável como à primeira vista poderá parecer, e, ainda que se persiga um ideal de simplicidade, convém advertir que, em arte, simplicidade nunca foi sinónimo de facilidade e irresponsabilidade. (Recordemos, neste ponto, as palavras de um mestre como Bartók: «tratar melodias folclóricas é uma das mais difíceis tarefas: tão difícil, se não mais, do que escrever uma grande composição original».) Praticadas por «curiosos» ou semiprofissionais, as harmonizações das canções folclóricas portuguesas, se podem agradar a um público fracamente exigente, não podem satisfazer um critério artístico desperto e afinado.

O nosso segundo reparo concerne a escolha do próprio material folclórico. Nem todo o documento etno-musical, só porque o é, possui qualidade ou virtude artística impositiva, nem todo ele oferece presa a um tratamento que queira aliar a autenticidade étnica à exigência estética. No folclore musical português (como no de todos os povos) topa-se de tudo: espécies do mais alto valor expressivo e morfológico ao lado de espécies pobríssimas, banais e incaracterísticas. Se desejamos obter com ele resultados artisticamente válidos no plano de transposição que todo o arranjo musical implica, há que proceder a uma selecção, a uma hierarquização do material primitivo, o que só pode ser determinado por um critério ele mesmo artístico. Afigura-se-nos que esse critério nem sempre preside à escolha do

45

Page 46: Conteudo Livro FLG CPP

material operado por muitos dos harmonizadores das nossas canções folclóricas e que eles preferem (por sistema? por menos capacidade de destrinça? por desconhecimento?) as espécies inferiores às espécies superiores, isto é, preferem trabalhar com aquilo que já tivemos ocasião de apelidar de «lugar-comum» do folclore nacional, com lamentável subestima do que neste se impõe (e muito é) como dotado de caracteres e virtualidades estéticas mais ricas e profundas.

O terceiro reparo relaciona-se, de certo modo com o anterior e refere-se ao estilo de interpretação da nossa canção folclórica corrente na maioria dos agrupamentos corais. Por defeito ou viciação de concepção estética, tende-se no geral a imprimir à canção uma expressão e um movimento amaneirados e artificiosos, daquele jeito arrebicado e puladinho que a rádio e quem nela se exibe tanto e tão desgraçadamente vulgarizam. Essas interpretações são um saricoté permanente (que desvirtua até o carácter das próprias canções graves) como se no nosso folclore não houvesse outra e melhor coisa, e como se o bom povo português não soubesse senão saracotear-se... Ofensa à verdade da nossa canção folclórica constitui na realidade um dos primeiros obstáculos à compreensão do seu behaviour, da sua fisionomia autêntica.

Finalmente, o nosso quarto reparo é atinente à ideia muito espalhada de que os arranjos ou harmonizações das canções folclóricas devem ser coisa de imediata acessibilidade, evitando toda e qualquer «complicação» técnica, toda e qualquer veleidade de «procura» harmónica ou contrapontística, todo e qualquer prurido de «estilização» desdizente da espontaneidade dela, da canção, pois de contrário se frustra a possibilidade de a cantarem os agrupamentos não profissionais e a possibilidade de a aceitar o comum do público. Errada a ideia do ponto de vista artístico, ela não o é menos do ponto de vista pedagógico. Para o afirmar, seja-nos lícito invocar a nossa um tanto longa experiência da questão, precisamente com um agrupamento não profissional e precisamente com auditórios não especificamente cultivados. Essa prática e essa experiência dizem-nos que não há em princípio dificuldades, «complicações», refinamentos de ordem técnica, harmónica ou contrapontística (logo que não sejam, claro, transcendentes) que um agrupamento não profissional não possa vencer, logo que compreensivamente se disponha a isso, o que depende em parte da atitude de quem o orienta e muito da propriedade, da correcção, da eficiência da escrita do arranjo ou harmonização da canção que se trabalha. Quanto ao auditório, observaremos que com frequência nos foi dado verificar serem justamente os arranjos mais «complicados», tecnicamente mais elaborados (e desde que esteticamente logrados, já se deixa ver) que mais espontaneamente obtinham a sua aceitação e os seus sufrágios.

Prevemos que a estas objecções se oporão, por sua vez, outras objecções. Da pertinência ou impertinência de umas e outras julgará quem, despreconcebidamente e com alguma vontade de ver claro, meditar na questão, que, julgamos, vale a pena ser meditada.

10. TRADICIONALISMO E FOLCLORISMO QUANTITATIVO (1965)

Do Diário do Alentejo, de 4 do mês de Agosto, transcrevemos, com a devida vénia, o

regulamento do concurso de canto popular alentejano promovido pela Câmara Municipal de Beja, e que nesta cidade deveria realizar-se (ignoramos se, de facto, se realizou, e com que resultados) a 14 do mesmo mês:

«Os Prémios – Serão atribuídos os seguintes prémios: 1.a categoria, 2 prémios de 2000$00; 2.a categoria, 2 de 1500$00; 3.a categoria, 3 de

750$00; 4.a categoria, 2 de 500$00; e 5.a categoria, 1 de 400$00. As deslocações dos ranchos serão subsidiadas com 300$00. Normas da classificação dos ranchos concorrentes – Para a classificação foram

estabe1ecidas as seguintes normas:

46

Page 47: Conteudo Livro FLG CPP

1.a categoria – A moda mais tradicional e antiga, bem cantada, no rancho mais completo, de indumentária mais caracteristicamente regional.

2.a categoria – A moda mais tradicional e mais antiga, bem cantada, no rancho mais completo, de indumentária menos caracteristicamente regional.

3.a categoria – A moda mais tradicional e mais antiga, no rancho constituído exclusivamente de vozes masculinas, de indumentária menos caracteristicamente regional.

4.a categoria – A moda fora dos esquemas atribuídos às 1.a e 2.a categorias, bem cantada e bonita.

5.a categoria – A moda fora dos esquemas atribuídos à 1.a, 2.a e 3.a categorias. Por moda tradicional entende-se a que pertença ao modo mixolídico (sic) como por

exemplo, «O Lírio Roxo», «Ao Romper da Bela Aurora», etc.; a de escalas sucessivas e independentes, como por exemplo, «Água leva o Regador», «No Alto daquela Serra», etc.; a que tenha o trítono, como por exemplo «Ao romper da Bela Aurora», e as de 4.a dominante, como por exemplo, «Eu Esta Manhã Achei», «Meu Lírio Roxo», etc., respectivamente.

Por rancho mais completo entende-se o que é constituído por vozes mistas, de rapazes ou de raparigas, juntamente com as vozes masculinas.

Por indumentária mais regional entende-se a que e adequada a um específico trabalho do campo ou os reúne quase todos num conjunto harmonioso.

Por indumentária menos característica entende-se o traje domingueiro.» Muitas e variadas considerações (a começar pela beleza do português) se poderiam tecer sobre

este singular documento que, uma vez mais, denuncia o singular uso que, de há uns tempos a esta parte, se está a fazer do folclore nacional, considerado não como matéria de estudos etnográficos e sim como pretexto para competições regionalistas, ou transformado em cartaz de atracção turística, numa espécie de folclorite aguda, a atingir por vezes as raias do caricato.

Bastara tão-só chamar a atenção para aquela incrível farândola de mais e de menos, para aquele delírio quantitativo a valorizar ou a desvalorizar (segundo que critério, segundo que estalão?) as manifestações da cultura e da arte populares. Farândola que culmina no esquipático conceito de «mais tradicional» – o que, naturalmente, faz supor o conceito oposto de «menos tradicional». O que será uma coisa mais tradicional ou menos tradicional? E não será ainda bem esquipática a expressão, ou o que ela poderá significar, de «mais tradicional e mais antiga», aplicada a uma moda ou aplicada seja ao que for? E porque se há-de entender por moda tradicional (mais, ou menos?) a que «pertencer ao modo mixolídico» (resic)? Porque há-de ter o modo «mixolídico» (leia-se mixolídio, que assim é que se diz e escreve...) o privilégio de ser «mais tradicional» do que qualquer dos outros modos? Então se no certame aparecer um rancho a cantar uma cantiga no modo dórico ou no modo lídio, será esta cantiga desclassificada por «menos tradicional» ou «menos antiga» do que a privilegiada cantiga no modo «mixolídico»? E o que serão modas de «escalas sucessivas e independentes», e porque hão-de estas misteriosas «escalas sucessivas e independentes» assinalar as modas «mais tradicionais e antigas»? Singular musicologia! E porque há-de ser também privilegiada a moda que «tenha o trítono»? E o que será igualmente uma «moda de 4.a dominante»? E, mais genericamente, o que será uma «4.a dominante»? Re-singular musicologia!...

Fica entendido, pois, que moda alentejana que não pertença ao «mixolídico» (isto é: ao mixolídio), que não seja de «escalas sucessivas e independentes», que não «tenha o trítono» (podia ter o sarampo...), que não seja de «4.a dominante», não tem direito a ostentar pergaminhos de antiguidade, como aqueloutras que gozam desses inestimáveis embora um tanto esdrúxulos atributos... E haverá aí quem decida de tudo isto? Haverá aí mortal ou mortais na posse de tais arcanos etnomusicológicos para

47

Page 48: Conteudo Livro FLG CPP

decidir do «mais» ou do «menos» tradicional em matéria de modas alentejanas, concedendo a palma às de sinal positivo e refugando irremissivelmente as de sinal negativo?

Pode ou não pode o folclorismo certamista e turístico, pode ou não pode a folclorite aguda tocar as raias do caricato?

48

Page 49: Conteudo Livro FLG CPP

CARACTERIZAÇÃO Algumas características da canção portuguesa Digamos agora, sem entrar em pormenorizações técnicas ou em divagações eruditas porventura

fastidiosas, alguma coisa sobre as particularidades mais relevantes da nossa canção popular, tal como estas se podem deduzir dos melhores exemplares, que estão longe de ser os mais divulgados, pois que, neste campo, toda uma tarefa de revisão de conceitos e de valores se acha por fazer, a ponto de quase se poder afirmar que, na realidade, a canção popular portuguesa é uma coisa que permanece ignorada dos Portugueses...

Esboço de classificação Cremos que a primeira tentativa de classificação das nossas canções se deve a António Arroio,

no 2.o volume das Notas sobre Portugal, classificação reproduzida na sua Introdução às Velhas Canções e Romances Portugueses, de Pedro Fernandes Tomás. Dividindo o mapa folclórico de Portugal em quatro zonas diferenciadas…

Constantin Brailoiu e a música folclórica portuguesa Embora de há muito eu conhecesse de nome Constantin Brailoiu, e houvesse lido alguns escritos

seus, só em 1954, encontrando-me em Paris, sucedeu vir a conhecê-lo pessoalmente por intermédio de Luís Heitor Corrêa de Azevedo, que, sabedor do meu interesse pela música popular portuguesa, -desejava pôr-me em contacto com o ilustre folclorista, para que sobre a matéria trocássemos algumas impressões...

Algumas considerações sobre a música folclórica portuguesa A noção que se tinha ou a imagem que em geral se fazia de uma arte musical popular de formas

predominantemente rudimentares, de expressão singela, de idiossincrasia essencialmente amorosa, docemente amorosa, ou ingenuamente folgazã, no fundo mais pitoresca do que profunda, mais sedutora do que impressiva, tal noção ou imagem, sem deixarem de possuir alguma verdade, porque nos dão um aspecto, mas tão-só um aspecto (na realidade, ainda o mais correntemente esteriotipado), da música folclórica portuguesa, há agora que corrigi-los, e quase radicalmente, em presença de tantos outros aspectos que esta música nos desvenda, aspectos bem mais significa...

GARRETT e o Romanceiro Com todas as críticas que se lhe possam fazer, e que de facto lhe têm sido feitas (sobretudo do

ponto de vista metodológico), não há que negar o inestimável valor histórico do Romanceiro de Garrett, nem que deixarmos de estar reconhecidos, ainda agora, a cento e tal anos de distância, ao ilustre autor do Frei Luís de Sousa pelo incalculável serviço prestado às letras nacionais...

Sobre as toadas dos romances populares portugueses Convém porém não esquecer desde já uma coisa, que tem sido muitas vezes esquecida, ou, se não

esquecida, pelo menos encarada com menos atenção. Vem a ser que o romance é um género poético-musical, que nele, portanto, letra e toada são aspectos solidários, formando unidade estética...

49

Page 50: Conteudo Livro FLG CPP

11. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA CANÇÃO PORTUGUESA (1953)

Digamos agora, sem entrar em pormenorizações técnicas ou em divagações eruditas porventura

fastidiosas, alguma coisa sobre as particularidades mais relevantes da nossa canção popular, tal como estas se podem deduzir dos melhores exemplares, que estão longe de ser os mais divulgados, pois que, neste campo, toda uma tarefa de revisão de conceitos e de valores se acha por fazer, a ponto de quase se poder afirmar que, na realidade, a canção popular portuguesa é uma coisa que permanece ignorada dos Portugueses.

A verdade é que não é por enquanto empresa fácil de levar a cabo a rigorosa determinação e caracterização dos vários tipos, formas e géneros que constituem o vasto corpus da nossa canção. E não é empresa fácil por duas razões principais: uma por assim dizer extrínseca, a outra intrínseca da própria canção. A primeira cifra-se no facto de esse corpus, o nosso Cancioneiro Popular Geral, se não achar ainda infelizmente organizado, e isto por deficiência de investigação e de estudo sistemático (não obstante o muito que, ainda assim, da matéria se tornou possível arquivar e perscrutar de há uns tantos anos a esta parte) e, pior do que isso, por indiferença e incompreensão dos poderes públicos. A outra razão desta dificuldade, a razão intrínseca, reside em que a canção portuguesa apresenta, regra geral, uma tal mobilidade, uma tal flutuação – mobilidade e flutuação resultantes da variabilidade e permutabilidade das letras –, que tornam na realidade incertas as suas fronteiras e frustram quase sempre os esforços para a fixar dentro de determinado esquema tipológico.

Reconhecendo-se embora as numerosas excepções, cremos poder assentar como norma geral que a canção popular portuguesa é no fundo e essencialmente do tipo voix-de-ville, isto é: melodias a que constantemente se adaptam letras diferentes, novas ou velhas, e isto não só no decorrer do tempo, como de região para região.

Nem os próprios romances escapam inteiramente a esta condição, visto não ser raro encontrarmos a mesma toada servindo dois ou três poemas diferentes ou, vice-versa, o mesmo poema cantado com diversas toadas. Se nestes, nos romances, a melodia ou o seu núcleo primitivo (pois é evidente que as melodias populares estão sujeitas a transformações), se nos romances, dizemos, a melodia é, se não contemporânea do poema, em todo o caso de uma antiguidade incontestável em muitos deles, já o mesmo se não poderá afirmar com respeito a tantíssimas outras canções, em que a letra é manifestamente muito mais recente do que a música. Sem que a coisa se possa provar objectivamente, visto nos faltar e ser quase impossível escrevê-la, por ausência de códices impressos ou manuscritos, uma história da canção popular portuguesa, intuitivamente nos parece poder afirmar-se estar em tal caso, por exemplo, aquela linda canção alentejana «Ó vizinha tem lá lume», compendiada por Gallop a p. 45 dos seus Cantares do Povo Português, com a sua larga, flexível e assimétrica melodia mixolídia, em que dificilmente, ou só graças a uma tortuosa prosódia, cabe a regularidade métrica das suas duas pouco significativas quadras.

Outro exemplo de disparidade entre letra e música parece deparar-se-nos na canção por nós recolhida em Canas de Senhorim67: quanto a melodia é na verdade expressiva, no seu ritmo enérgico e quase heróico, quanto os versos são incaracterísticos, a ponto de se poder aconselhar substitui-los por outros mais adequados.

Com excepção ainda dos romances e de certos cantos religiosos (Encomendações das almas, Martírios), a ausência de poemas desenvolvidos, narrativos, líricos ou dramáticos, é outra das facetas peculiares da nossa canção. No geral, é a quadra, esse produto tão genuíno da nossa lírica popular, e que não raro alcança um poder de síntese e uma grandeza onde se cristaliza toda a experiência, toda a capacidade emotiva e mesmo toda a filosofia do nosso povo, é a quadra, dizemos, que serve de fundo à melodia. É claro que a quadra nem sempre é poeticamente superior: a uma infinidade de quadras perfeitamente vulgares, produto da facilidade mecânica de versejar que o Português adquiriu, correspondem melodias não menos vulgares, que constituem a parte menos interessante, mas não

67 Lopes-Graça refere-se à canção Vira-te pr’aqui, ó Rosa. [Nota do Org.]

50

Page 51: Conteudo Livro FLG CPP

diminuta, nem muitas vezes a menos apreciada, do nosso folclore. E se, nos mais felizes exemplos, quadra e melodia se casam harmoniosamente, não raro é, por outro lado, depararem-se-nos canções em que a melodia leva a palma à quadra em beleza e plasticidade.

Por este aspecto, o da raridade de poemas desenvolvidos e o da quase exclusiva associação com a quadra, a canção portuguesa conserva, como poucas, a essência, o aroma da terra, a marca da sua origem rústica, o selo da sua autenticidade e inspiração populares. É quase sempre um produto verdadeiramente nativo, e não uma transformação ou adaptação (para não dizermos uma degradação, como pretende a teoria um tanto despicienda dos folcloristas alemães da escola de Meier), da criação culta. A urbe portuguesa, onde, aliás, a arte musical rarissimamente atingiu quaisquer culminâncias, pouco ou nada parece ter influenciado a canção rústica; por outro lado, apesar de um conhecedor destes assuntos, Rodney Gallop, nos afirmar que a canção popular portuguesa teria sido moldada, no século XVIII, por influências italianas e francesas, e posto não contestemos que isto possa ser em parte verdadeiro, como verdadeira pode ser a influência espanhola, também assinalada pelo mesmo erudito – temos para nós que a nossa canção, nas suas espécies mais características, é um produto mais antigo e de uma individualidade autóctone perfeitamente acentuada. Com efeito, uma canção dançada como Ó malhão, triste malhão (I) (n.o 10), recolhida em Mira pelo mesmo Gallop, com o seu estribilho rítmica e melodicamente diferenciado, o que constitui uma das peculiares feições deste género de canções, tão profuso entre nós, e não só por este aspecto, na verdade quase acidental, senão que também pela tonalidade, pelas inflexões, pelos ethos tão característico da própria melodia, parece-nos nada dever a influências imediatas italianas, francesas ou espanholas e ser, realmente, bem portuguesa.

Em que consistirá este autoctonismo, esta individualidade étnica, não diremos de toda a canção portuguesa mas de muitos dos mais belos espécimes ultimamente recolhidos (vejam-se, para mais não citar, os n.os 72, 139, 1668, 19, 129, 51, 23, 21, 53 e 54 da Antologia), é coisa evidentemente difícil de definir e ainda mais de demonstrar. Consistirá porventura naquele «halo popular» a que se refere o escritor e musicólogo francês Henri Davenson a propósito da canção francesa, não, é certo, para lhe garantir propriamente o autoctonismo, para a isolar de quaisquer influências, coisa que ele não aceita, mas para lhe reconhecer precisamente o carácter de produto artístico que do povo recebe a marca e o destino decisivo – «critério subjectivo», segundo a sua opinião, mas que nem por isso deixa de ser o «único legítimo» e que ele «tem tanto menos escrúpulo em adoptar quanto vê os teóricos do folclore incapazes de elaborar um conceito mais positivo».69

É certo que a canção portuguesa não possui a perfeição formal, a elaboração larga, o classicismo da canção francesa, da canção inglesa, da canção alemã, nem mesmo porventura da canção espanhola. Aproxima-se, pelo seu primitivismo, da canção daqueles outros povos europeus ou ásio-europeus que permaneceram, durante séculos, culturalmente e socialmente mais «atrasados» (conceito este já em si bastante discutível, é certo), como os Russos, os Húngaros ou os Gregos. Isto não invalida o seu interesse folclórico, pois que, se esta música primitiva, ou, talvez menos equivocamente dito, não suficientemente depurada e subtilizada, segundo um critério «civilizado», apresenta as suas fraquezas sob o ponto de vista de uma estética formal, escolástica, o certo é que não deixa, em contrapartida, de apresentar as suas virtudes sob o ponto de vista do carácter e da expressão: o que perde em organização e cristalização ganha em força sugestiva e em possibilidades de enriquecimento e renovamento do vocabulário musical culto, como abundantemente o provaram um Chopin, um Mussorgsky ou um Béla Bartók.

Revertendo à questão das influências, ou o que tal se afigura aos especialistas, o facto é que, além de uma outra também já assinalada por eles, a da música eclesiástica, outras bem mais estranhas se poderão descortinar na canção popular portuguesa, como a influência grega, notada por Gonçalo Sampaio, ou a influência eslava, para a qual até já se aventou a hipótese de uma longínqua migração de 68 As canções n.os 16, 19, 23, 53 e 54 não têm correspondente na presente Antologia. As restantes são apresentadas com a numeração actual. [Nota do Org.]. 69 Henri Davenson, Le livre des chansons ou Introduction à la chanson populaire française, p. 25, Collection des Cahiers du Rhône (Éditions de la Baconnière, Neuchâtel, Suíça). [Nota de F. Lopes-Graça.]

51

Page 52: Conteudo Livro FLG CPP

povos eslavos a leste da Beira Baixa, onde essa influência marcaria mais decididamente o folclore; e, por aí fora, teríamos ainda mais influências: oriental, africana, brasileira, etc. Mas onde iríamos nós parar neste capítulo? A verdade é que todo o problema de influências é, bem vistas as coisas, obscuro, vago, fugidio; e cremos bem que seria muito mais cómodo, e menos arriscado de fazer-nos cair em labirintos de conjecturas e de teorias, perfilhar, em vez da ideia de influência, a ideia de afinidade e similitude. Não assentou a ciência linguística em que quase todas as línguas faladas na Europa e em grande parte da Ásia são provenientes do mesmo e venerável ramo comum: o indo-europeu? De semelhante modo, não se poderá admitir, no campo do folclore musical, a existência de um fundo comum, de uma fonte, jazigo ou veio primordiais que, por expansão e consequente evolução e adaptação a meios geográficos e sociais diferentes, a modos de vida particulares, e até em resultado da própria diferenciação das línguas, com as quais a música popular está em íntima relação, teria dado os «dialectos» musicais nacionais?

É claro que não estamos formulando uma teoria nova, julgamos nós, mas admitindo simplesmente um ponto de vista que nos permite encarar e avaliar certos aspectos ou propriedades da canção popular portuguesa de uma maneira mais clara e racional, se bem que talvez um tanto orgulhosa, do que mediante a vaga e viciosa teoria das influências directas. Pois se nós já vimos quão pouco parece dever a nossa canção rústica à contribuição musical da cidade, pelo quase completo isolamento em que, pelo menos até meados do século passado, o habitante das aldeias e dos campos se encontrou, e ainda em virtude do secular divórcio verificado entre as elites letradas urbanas e o povo – se isto é assim, quanto mais problemáticas se apresentam quaisquer relações imediatas da nossa música com a de outros povos, dado que nenhuns movimentos migratórios, nenhuns cruzamentos raciais, nenhumas assimilações culturais aborígenes, se têm verificado no nosso país desde que ele se constituiu em nacionalidade!

12. ESBOÇO DE CLASSIFICAÇÃO (1953)

Cremos que a primeira tentativa de classificação das nossas canções se deve a António Arroio, no

2.o volume das Notas sobre Portugal, classificação reproduzida na sua Introdução às Velhas Canções e Romances Portugueses, de Pedro Fernandes Tomás. Dividindo o mapa folclórico de Portugal70 em quatro zonas diferenciadas, Arroio fazia depender o carácter das canções pertencentes a essas zonas das condições geográficas e climáticas ambientes, tese em que desenvolvia com maior vigor sistemático o ponto de vista de Lambertini na sua monografia Chansons et Instruments.

O critério mesológico é sem dúvida interessante e tem certamente algo de verdadeiro, mas é também perigoso e susceptível de nos fazer cair em generalizações que os factos não raro invalidam. Estabelecer que a canção de toda a parte alta do País ao norte do Tejo é «variadíssima e profunda» e as danças «vivas, alegres e rudes»; que as da zona das terras baixas (parte do Douro e a Estremadura) são «leves e doces de expressão»; que o Alentejo é caracterizado por canções «lentas, profundas e tristes», e por danças «rudes, por vezes vivas, alegres»; que, enfim, na província algarvia predomina a canção «viva, alegre, por vezes erótica, pouco profunda» – estabelecer isto assim, sistematicamente, afigura-se-nos confiar demasiado no rigor científico de sistemas que, no fundo, não podem ser mais do que esquemas ou hipóteses de trabalho, e tanto mais ousado quanto é certo nós ainda hoje termos um

70 Ou o que ele julgava como tal, um tanto aventurosamente, convenhamos, posto não se haver ainda procedido nessa altura – como até hoje se não procedeu – ao levantamento etnomusicológico geral do País, ao estabelecimento de uma carta folclórica baseada numa prospecção tanto quanto possível exaustiva, que determine as principais zonas, manchas ou «afloramentos» da nossa música popular. Tarefa esta imprescindível para se poderem tirar conclusões de ordem genérica sobre a fisionomia ou comportamento da canção portuguesa. Acresce a isto que o conhecimento sem dúvida mais vasto que no presente se possui da nossa canção regional, suas modalidades, suas características morfológicas e expressivas, não raro empece as conclusões de Arroio ou, pelo menos, limitam-lhe consideravelmente o alcance sistemático. [Nota de F. Lopes-Graça.]

52

Page 53: Conteudo Livro FLG CPP

conhecimento apenas parcelar da nossa canção, regiões existindo mesmo que são para nós uma quase incógnita, como, por exemplo, a Estremadura e o Ribatejo.

Um critério menos ambicioso do que o mesológico, e tendo sempre presentes as referidas limitações, aconselhar-nos-ia a tentarmos uma classificação partindo das características formais ou estruturais das espécies compendiadas ou observadas.

Nesta ordem de ideias, podíamos porventura estabelecer uma primeira divisão, qual seja:

a) Canções monódicas; b) Canções polifónicas.

As canções monódicas constituem possivelmente a parte mais avultada do nosso folclore e, até recentes tempos, eram elas as mais conhecidas e divulgadas, as que de preferência solicitavam as atenções dos folcloristas e dos antologistas, cabendo no seu acervo naturalmente os romances e os cantos de embalar, a generalidade das canções amorosas, das canções dançadas e de um certo número de cantos de trabalho. Todavia, as canções polifónicas não são raras, muito pelo contrário, e uma das grandes surpresas das últimas investigações (Vergílio Pereira, Artur Santos, Michel Giacometti) foi a revelação de espécies polifónicas do mais alto interesse e que vêm outorgar à música folclórica portuguesa um lugar privilegiado no complexo das músicas populares europeias. Podemos já agora aventar a afirmação de que o mais significativo da música folclórica de certas regiões das províncias do Minho, do Douro Litoral, da Beira Alta, da Beira Baixa e do Alentejo são os seus cantos polifónicos (mormente os seus cantos religiosos e os seus cantos de trabalho), em que, além do vulgar canto em terceiras, se nos deparam polifonias mais desenvolvidas no estilo das antigas formas do organum e do fabordão, polifonias em «patamares» (isto é, de «entradas» sucessivas, o que as aproxima da chamada polifonia imitativa), e mesmo polifonias que comportam o movimento oblíquo e contrário das vozes.

Outra possível classificação seria a seguinte:

a) Canções tonais; b) Canções modais; c) Canções cromáticas.

O primeiro grupo, o das canções baseadas no clássico dualismo maior-menor e que designamos restritivamente por tonais em obediência a uma terminologia consagrada de que se pode discordar, constitui certamente a porção do nosso folclore sobre que, em tempos ainda não muito recuados (e em parte ainda hoje), mais informação se possuía, aquela que, de certo modo, servia de padrão aquilatador da «estética» da nossa música popular. Nem sempre tais canções são as mais belas e grande quantidade delas são francamente de diminuto interesse, devido à banalidade das melodias, à estereotipia das cadências, à enfeudação do seu âmbito tonal ao descaracterizante acorde de 7.a da dominante. Do que não poderá todavia concluir-se que o maior-menor inferioriza irremediavelmente todas as canções por ele informadas. Os tradicionais modos maior e menor nem sempre viveram à sombra da 7.a da dominante, podem mesmo ser-lhe estranhos ou preexistir-lhe; e que eles são capazes de estruturar belas e expressivas melodias provam- -no bom número de canções da nossa Antologia, como, por exemplo, as canções de embalar Vai-te embora, ó papão (n.o 15) e José embala o menino (n.o 78), os cantos de trabalho Sete varas tem (n.o 89), e O milho da nossa terra (n.o 53), Meu amor me deu um lenço (n.o 74), os romances O conde de Alemanha (n.o 13), Mineta (n.o 69), O cativo (n.o 120), a canção alentejana, Ó Serpa, pois tu não ouves (n.o 64).

O segundo grupo, o das canções modais, é mais apreciável e compreende porventura os exemplares mais preciosos da nossa canção. Neste capítulo, os factos trazidos a lume, de há uns três decénios a esta parte, por investigadores como Kurt Schindler, Rodney Gallop e António Joyce, bem como os que nos são fornecidos pelas publicações dos Arquivos Sonoros Portugueses, vieram modificar de forma considerável as ideias que até então era possível formular sobre a matéria. Em

53

Page 54: Conteudo Livro FLG CPP

oposição ao a bem dizer prevalecente conceito de maior-menor, a descoberta de um rico filão de canções vazadas nos modos chamados «arcaicos» (também por vezes designados, embora restritivamente, «litúrgicos», ou «eclesiásticos») trouxe-nos uma nova e mais larga concepção das características tonais da canção portuguesa.

Não é aqui o lugar para entrar no algo complicado assunto da definição dos modos. Destes, parece predominarem no nosso folclore o mixolídio71, de que são bons exemplos as canções Ó Malhão, triste malhão I (n.o 10), Chamaste-me extravagante (n.o 57) e Aldeia da Caridade (n.o 58); o frígio72, representado pelas belas espécies da Oração do pobrezinho (n.o 145) e de Oh! Senhora do Amparo (n.o 87); o eólio puro, tal como se nos depara em Rosinha, vem-te comigo (n.o 114), em Oh, bento airoso (n.o 130), ou frequentemente alterado, como se observa em Não se me dá que vindimem (n.o 19), Faixinha verde (n.o 65) ou no romance de D. Varão (n.o 33). Outras canções são alicerçadas em modos não tão rigorosamente determináveis (mas certamente afins daqueles), como é o caso da Era ainda pequenina (n.o 23) e dos romances de Gerinaldo (n.o 6) e de O homem rico (n.o 3073).

Quanto ao terceiro grupo, o das canções cromáticas, havemos de reconhecer-lhe o tanto ou quanto vago e impreciso da designação. Trata-se ainda certamente de modos, mas estes modos não são propriamente identificáveis com os modos litúrgicos (empreguemos a consagrada terminologia), em virtude da frequência das «alterações» (ou o que tal se pode chamar), com os correlativos e «estranhos» intervalos de 2.a aumentada e de 3.a diminuta – circunstância segundo a qual se lhe poderia porventura aplicar a designação de modos exóticos. Predominantes na Beira Baixa, são as mais raras e quiçá das mais antigas canções do nosso folclore, verdadeiras preciosidades, como o atestam os dolentes cantos de trabalho Já são horas da merenda (n.o 1274) e Minha roda ’stá parada (n.o 128), ou o formoso canto de romaria Ai, ó divina Santa Cruz (n.o 12).

Seria ainda possível organizar um quarto grupo com aquelas melodias estruturadas num simples núcleo tetracordal ou pentacordal mais ou menos reiterado e de que a Antologia oferece, respectivamente, dois curiosos exemplos: a encomendação das almas Alerta, alerta (n.o 44) e o canto de trabalho Lavra, boi, lavra (n.o 20). Este género de melodias (ou, talvez melhor dito, de melopeias), que os etnomusicólogos têm em geral como o de maior primitividade e, por isso mesmo, corrente entre os povos de estádio civilizacional elementar, é possível hoje assinalá-lo com bastante frequência na nossa música folclórica e dele temos exemplos frisantes na maioria das canções de romaria e mais «cantigas de adufe» da Beira Baixa, em numerosos cantos religiosos da Beira Alta e certos cantos de trabalho, malhas e cegadas de Trás-os-Montes.

13. CONSTANTIN BRAILOIU E A MÚSICA FOLCLÓRICA PORTUGUESA (1959)

O vol. XVLIII (Julho de 1959) da Revue de Musicologie, há pouco distribuído, insere em fundo, como homenagem à memória do eminente folclorista romeno o ano passado falecido, uma Bibliograpbie des travaux de Constantin Brailoiu, devida à pena de André Schaeffner.

Na parte propriamente bibliográfica do escrito de Schaeffner, no capítulo «Éditions de disques», secção «Collection universelle de musique populaire enregistrée», encontra-se a seguinte referência:

39. PORTUGAIS. Province de Beira Baixa. «Recommandation des ames», chant de carême; danse chantée; (Enr. Fern. Lopes-Graça, 1953) – Danse chantée; chant pour la cueillette dês olives; danse chantée (Id.). Matr: AJ 122 et 123.

71 Escala com os semitons do 3.o para o 4.o graus e do 6.o para o 7.o [Nota de F. Lopes-Graça.] 72 Escala com os semitons do 1.o para o 2.o graus e do 5.o para o 6.o [Nota de F. Lopes-Graça.] 73 Nesta página, as canções n.os 57, 58, 33 e 53 não têm correspondente na presente Antologia. As restantes são apresentadas com a numeração actual. [Nota do Org.] 74 A canção n.o 6 não temcorrespondente na presente Antologia. As restantes apresentam a numeração actual. (Nota do Org.)

54

Page 55: Conteudo Livro FLG CPP

A existência deste disco na colecção patrocinada pelos Archives Internationales de Musique Populaire anexos ao Museu de Etnografia da cidade de Genebra e por Brailoiu fundados, era por mim ignorada. Até ao presente e talvez não venha fora de propósito esclarecer como os espécimes de música folclórica portuguesa por mim recolhidos mereceram, sem eu disso ser ciente, honra de serem incluídos na dita colecção.

Embora de há muito eu conhecesse de nome Constantin Brailoiu, e houvesse lido alguns escritos seus, só em 1954, encontrando-me em Paris, sucedeu vir a conhecê-lo pessoalmente por intermédio de Luís Heitor Corrêa de Azevedo, que, sabedor do meu interesse pela música popular portuguesa, desejava pôr-me em contacto com o ilustre folclorista, para que sobre a matéria trocássemos algumas impressões.

Apesar das diligências feitas, Brailoiu não lograra até então obter qualquer documento gravado de autêntica e significativa música folclórica portuguesa, e não me escondeu o seu desgosto pelo que de ordinário lhe chegava às mãos75, na maior parte dos casos o famoso e desacreditador fado (ou produtos afins), a que ele naturalmente não poupou os seus doestos. E com inteira razão, ou apenas com alguma, expressou-me também as suas ideias sobre o estado pouco satisfatório dos estudos de etnografia musical no nosso país (num exemplo típico que com acerada ironia criticou, creio que, de facto, com inteira razão).

Tudo isto me confrangia, devo confessá-lo, por partir de alguém que era uma reconhecida autoridade na matéria e que, suposto não estivesse a par dos honestos esforços feitos recentemente em Portugal, tanto no capítulo da recolha como no de teorização, ainda assim o que a este respeito argumentava era, de uma maneira geral, bastante pertinente e não podia sofrer contestação por parte de quem nunca teve a pretensão de dominar um assunto que afiara apenas como músico, e não propriamente como folclorista.

Ora sucedia que, pouco tempo antes, eu havia feito uma pequena recolha de cantos folclóricos em determinada região da Beira Baixa. Fosse porque Luís Heitor falara nela a Brailoiu, fosse porque eu próprio o fizesse na nossa conversa (já me não posso recordar), o certo é que Brailoiu mostrou desejo de a conhecer. Aquiesci, não sem o advertir de que não era folclorista (creio, aliás, que Brailoiu o não julgava) e de que a recolha não era grandemente recomendável sob o ponto de vista da qualidade da gravação, por haver sido feita com um modesto magnetofone, que ainda por cima me havia pregado a partida de se desafinar, devido certamente à minha imperícia no seu manuseio.

Brailoiu pediu-me cópia da minha fita magnética, que eu de facto enviei de Lisboa directamente, segundo sua recomendação, para o Museu de Etnografia da cidade de Genebra. Estava longe de calcular que ele viria a aproveitar cinco das canções por mim recolhidas para a Colecção Universal de Música Popular Gravada; daí a minha surpresa de agora, ao ler a referência bibliográfica de começo citada.

Não me glorio do facto. Satisfaz-me apenas saber que, por fim, uma responsável colecção de música folclórica gravada das mais diversas regiões conta com um disco dedicado a autêntica música folclórica de Portugal76.

Que fosse eu, ou outrem, a fornecer o material, não importa. Mas o que não posso deixar de lastimar é que, dadas as precárias condições técnicas em que, no geral, é feita a recolha folclórica entre nós, não houvesse sido possível oferecer a Brailoiu e à colecção por ele orientada uma documentação mais vasta e de melhor qualidade da nossa música popular e quiçá, conhecendo eu o seu propósito, encontrasse maneira de o satisfazer mais cabalmente.

75 Lembra-me, a propósito, outro caso sintomático: o espanto, o enleamento, de uma pedagoga suíça, que, encarregada de organizar uma antologia universal de canções populares infantis, e havendo-se dirigido, para obter material idóneo do nosso país a determinado departamento cultural português, recebeu, como documentação, um álbum de cantos da Mocidade Portuguesa... [Nota de F. Lopes-Graça.] 76 Ignoro qual a extensão e qual a acessibilidade da colecção organizada pela BBC, de Londres; mas sei que a música folclórica portuguesa está nela condignamente representada pela recolha expressamente feita por Artur Santos a quem muita, importante e criteriosa documentação gravada se deve já (sobretudo dos Açores, Beira Alta e Beira Baixa), infelizmente pouco ou nada conhecida do público e dos nossos estudiosos. [Nota de F. Lopes-Graça.]

55

Page 56: Conteudo Livro FLG CPP

14. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A MÚSICA FOLCLÓRICA PORTUGUESA (1963)

O que vai ler-se não pretende ser um apuramento final daquilo que constitui a problemática da

música folclórica portuguesa, por três razões principais. A primeira, é não ser quem subscreve estas linhas, como várias vezes o tem afirmado, um

especialista na matéria – no caso, um etnomusicólogo, como cumpria – mas tão-só um artista que, como tal, e na sua qualidade de português, pela música folclórica portuguesa se tem interessado e que algo parece dever-lhe debaixo do ponto de vista da formação do seu estilo de compositor. A segunda razão, é que se nos antolha prematuro formular quaisquer juízos ou conclusões de ordem geral e mais ou menos sistemática sobre tal matéria, visto ela nos ser ainda imperfeitamente conhecida, por falta de uma investigação que a surpreenda em todos os seus múltiplos aspectos. Por fim, última razão, e razão de princípio, é que, em domínio tão movediço, tão precautório, como é o da etnomusicologia, toda e qualquer mise au point não pode ser senão precária, todas as conclusões não podem deixar de se apresentar como provisórias, sempre sujeitas a correcção, não só em face do facto folclórico, de sua mesma natureza cambiante, se é que não evolutivo, como em face das interpretações dos seus estudiosos, em regra e por força das circunstâncias discordes entre si.

Posto isto, postas estas reservas, abalançar-nos-emos (porque somos solicitados) a exarar aqui meia dúzia de observações acerca do comportamento da música folclórica portuguesa, observações decorrentes dos testemunhos que dela nos últimos tempos têm chegado ao nosso conhecimento. Digamos desde já que, embora ainda pouco volumosa, a massa desses testemunhos obriga a uma revisão dos conceitos tradicionais sobre a matéria, tal como era possível deduzi-los dos documentos compendiados pelos primeiros colectores da nossa música folclórica: um Neves e Melo, um César das Neves ou um Pedro Fernandes Tomás, para só lembrar estes três ainda assim beneméritos pioneiros. Graças porém aos que, estrangeiros e nacionais, na sua cola vieram, e de que de justiça será salientar, entre outros, os nomes de Kurt Schindler, Rodney Gallop, Francisco Serrano, Gonçalo Sampaio, Artur Santos e Vergílio Pereira; graças a algumas prospecções por nós efectuadas e, mormente, às efectuadas por Michel Giacometti, de que dão conta os dois discos já publicados da Antologia da Música Regional Portuguesa (Trás-os-Montes e Algarve) e um terceiro em preparação (Minho), graças a tudo isto (que ainda não é muito), modificaram-se grandemente as ideias ou juízos que sobre a nossa música folclórica se podiam adiantar há uns trinta anos atrás, a análise dos documentos de então para cá obtidos fornecendo-nos dados para uma estimativa dessa música inteiramente imprevisíveis para os seus primeiros investigadores.

Dessa análise – ainda precária, repetimo-lo –, resulta um notável alargamento das perspectivas da música folclórica portuguesa no que toca à sua natureza, modalidades, estruturas e outras particularidades, com uma consequente e não menos imprevisível revalorização do que ela significa ou representa debaixo do triplo ponto de vista estético, psicológico e sociológico.

A noção que se tinha ou a imagem que em geral se fazia de uma arte musical popular de formas predominantemente rudimentares, de expressão singela, de idiossincrasia essencialmente amorosa, docemente amorosa, ou ingenuamente folgazã, no fundo mais pitoresca do que profunda, mais sedutora do que impressiva, tal noção ou imagem, sem deixarem de possuir alguma verdade, porque nos dão um aspecto, mas tão-só um aspecto (na realidade, ainda o mais correntemente esteriotipado), da música folclórica portuguesa, há agora que corrigi-los, e quase radicalmente, em presença de tantos outros aspectos que esta música nos desvenda, aspectos bem mais significativos ou bem mais ricos de implicações de vária ordem – nomeadamente os aspectos dramático e místico (pontos de vista psicológico e sociológico) e o aspecto morfológico, tornal e rítmico (ponto de vista estético). Em suma, às espécies compendiadas por Neves e Melo, César das Neves ou Pedro Fernandes Tomás e estudadas, não sem proficiência, é certo, mas com limitações por eles próprios reconhecidas, por um Oliveira

56

Page 57: Conteudo Livro FLG CPP

Ramos, um Lambertini ou um António Arroio, a essas espécies mister se faz contrapor as espécies compendiadas e estudadas pelos seus continuadores já referidos (e releve-se-nos qualquer omissão), se pretendemos formar uma ideia mais completa, mais circunstanciada e mais justa da música folclórica portuguesa.

Uma prevenção imediata se impõe. Quando falamos de música folclórica portuguesa, temos em vista, antes de mais nada, a sua modalidade vocal.

Com efeito, no nosso folclore as expressões vocais sobrelevam de muito as expressões instrumentais. Ao que se nos antolha, é a canção que predomina como modo de expressão mais característico e, digamos, mais estremado, do sentir musical das nossas populações rurais, e é sobre ela que, na verdade, se poderá de preferência alicerçar qualquer teorização acerca da nossa música folclórica.

Consignemos agora, baseando-nos sobretudo nos documentos mais recentemente trazidos a lume e nos que ainda permanecem em arquivo, meia dúzia de pontos de vista sobre a nossa música vocal folclórica – pontos de vista certamente pessoais, sujeitos a discussão ou correcção, mas acaso susceptíveis de fornecer alguma ou algumas sugestões aos estudiosos da matéria.

Comecemos por afirmar que, ao que se nos afigura, é no domínio da música religiosa e no do romance que a música folclórica portuguesa encontra as suas mais altas e significativas expressões, sem postergar, é claro, outras espécies de muito valor.

Na música religiosa, impõe-se uma destrinça entre um repositório mais ou menos cultual, até certo ponto tradicional, sim, mas que atrai no geral a mão do músico semi-culto ou do amador de fraca invenção ou gosto duvidoso (Ladainhas, Benditos, Salve-Rainhas, Jaculatórias, etc.) e aqueles cantos de mais funda ancestralidade e poderosa expressão, que são, entre outros, as Encomendações das almas, os Martírios, as Alvíssaras, certos Benditos e certos cantos da Natividade (Natais propriamente ditos, Janeiras e Reis) de mais intencionalidade mística.

Juntar-lhes-emos as canções de romaria, de que a província da Beira Baixa parece deter o privilégio? Muitas dentre elas são, na realidade, repassadas da mais íntima religiosidade e, musicalmente, preciosos documentos, pelo que nos não parece ilícito irmaná-las, debaixo do ponto de vista que aqui nos interessa, aos cantos a que vimos de fazer referência. Outras porém, e acaso a maioria, sem deixarem de oferecer inegável interesse etnomusicológico, deveremos talvez aproximá-las, no seu carácter religioso sui generis, a que não é estranho um certo ressaibo de paganismo, e no seu matiz festivamente álacre, deveremos aproximá-las da música profana acaso de raiz coreográfica (ter em consideração o avultado número de canções de romaria acompanhas a adufe) – o que, em princípio, não subentende critério dispiciendo, nem hierarquização absoluta de géneros.

Quanto aos romances (tesouro inapreciável sobretudo de duas províncias: Trás-os-Montes e Algarve), sem entrarmos aqui na discussão – quiçá ociosa – da natureza e pertinência folclórica ou não folclórica do género – elucidemos que, ao inventário por nós feito na Gazeta Musical (n.o 51) e ampliado por Rebelo Bonito (ib., n.os 57 e 58), inventário que, à data, sumariava o que se conhecia ou se achava publicado em matéria de romances (letra e solfa), é possível agora acrescentar uma vintena de outras espécies, e não das menos preciosas – precisamente as que foram editadas e comentadas nos dois referidos discos da Antologia da Música Regional Portuguesa, para só fazer referência ao que, na realidade, se acha ao alcance de público e estudiosos.

Sobre os romances recolhidos em Trás-os-Montes, permita-se-nos uma observação, que acaso oferecerá algum interesse. Vários desses romances (alguns de provecta e ilustre tradição literária, como o do Conde Ninho e do Valdevinos) são utilizados funcionalmente, como cantos de trabalho (cantigas de segada ou de «malhas»), o que parece derrogação ao comportamento do romance, no geral tido como sobrevivência arcaica, só recordada em serões caseiros por pessoas idosas.

Nota-se porém o facto curioso de tais romances «funcionais» serem entoados com uma melodia de carácter inteiramente diferente, na sua expressão tanto como na sua estrutura, do das melodias «clássicas» dos romances portugueses tradicionais, não sendo porventura ousado assinalar-lhes, a essas

57

Page 58: Conteudo Livro FLG CPP

melodias, ascendência mais remota, ou dar-lhes como arquétipo certas formas da música oriental (recorde-se que vestígios de costumes e ritos judaicos são ainda preponderantes em Trás-os-Montes).

Falemos agora, embora necessariamente de maneira sumária, de três aspectos da nossa canção folclórica que as recentes investigações levam a encarar sob nova e mais reveladora luz: a polifonia, a tonalidade e o ritmo.

A polifonia (no sentido genérico do termo), praticada espontaneamente sobretudo nas províncias da Beira Alta, Beira Baixa, Alentejo e Minho (pelo menos em algumas das suas regiões), constitui uma das mais eminentes feições da nossa música vocal tradicional, que, neste particular, se apresenta na música popular europeia como um caso que poucos confrontos pode sofrer. Além das formas do gymel (canto em terceiras) e do fabordão (canto em terceiras e sextas), formas mais elaboradas deste, a três e quatro vozes, se nos deparam com não pequena frequência. Movimentos paralelos do acorde perfeito a três e quatro partes (à maneira do antigo organum) são usuais, sem deixarem de nos aparecer os movimentos divergentes. No entanto, nós cremos que, neste capítulo da polifonia, as maiores surpresas estão para nos ser reveladas com os cantos ainda inéditos recolhidos no Minho por Michel Giacometti. Trazem eles ao nosso conhecimento e à nossa meditação uma polifonia que alguns classificarão possivelmente de «bárbara», mas que nem por isso deixa de ser surpreendente na sua tal ou qual complexidade e, digamos, no seu «modernismo» ingénuo mas de tão forte poder emocional.

No ponto de vista tonal, também os conceitos se alargaram de maneira imprevista. Assim, às espécies baseadas quase que exclusivamente no tradicional maior-menor (que formam ainda, na verdade, o grosso do repositório de estratificação mais ou menos moderna e nem sempre oferecem um muito preclaro interesse melódico), há que opor um número razoavelmente avultado de outras e mais distintas espécies baseadas nos chamados modos arcaicos, eclesiásticos ou gregorianos (bem imprecisa terminologia musicológica ...), com aparente predomínio do mixolídio, do frígio e do eólio, por um lado, por outro, em modos «defectivos», em escalas que conservam nítidos vestígios do cromatismo da «música ficta», e ainda em modos nem sempre comodamente catalogáveis, nos quais transparecem ressaibos de músicas orientais (o que não significa que tais espécies sejam todas necessariamente «arcaicas» e não possam corresponder a processos de formação e estruturação ainda actuais – no folclore nem tudo é por força resíduo arqueológico...).

No capítulo do ritmo, novas perspectivas se nos oferecem igualmente. Se as aludidas espécies de estratificação moderna (mormente as derivadas da dança) se apresentam no geral subsidiárias da quadratura e da simetria do tempo, não deixam em contrapartida de aparecer com certa frequência canções que exibem uma curiosa irregularidade métrica.

O mais significativo neste campo é, porém, a descoberta – se assim nos podemos exprimir – de todo um grupo de cantos, principalmente de natureza religiosa, que esposam uma métrica singularmente livre, desligada da noção de compasso e que se evade do geometrismo do solfejo tradicional: haja vista, por exemplo, à formosa Encomendação das Almas e aos não menos formosos -Martírios, uma e outra canção por nós recolhidas em S. Miguel de Acha (Beira Baixa) e que transcrevemos no nosso livro A Música Portuguesa e os Seus Problemas, II vol.

Impunha-se porventura que estas considerações fossem quanto possível abonadas por uma documentação que ilustrasse os pontos de vista expendidos, coisa, porém, que nem índole desta publicação nem o espaço que nas suas páginas me é amavelmente outorgado consentem. Não obstante, assim mesmo as apresentamos àqueles dos seus leitores a quem o assunto aqui perfuntoriamente abordado seja susceptível de interessar e como possível contribuição para um melhor conhecimento e estudo da música folclórica portuguesa.

15. GARRETT E O ROMANCEIRO (1954)

Com todas as críticas que se lhe possam fazer, e que de facto lhe têm sido feitas (sobretudo do

ponto de vista metodológico), não há que negar o inestimável valor histórico do Romanceiro de

58

Page 59: Conteudo Livro FLG CPP

Garrett, nem que deixarmos de estar reconhecidos, ainda agora, a cento e tal anos de distância, ao ilustre autor do Frei Luís de Sousa pelo incalculável serviço prestado às letras nacionais com a primeira tentativa de compendiação sistemática da nossa poesia tradicional.

Além da parte propriamente poética (aquela que, talvez um tanto abusivamente, podemos chamar de Investigação folclórica), há que ter ainda em muita conta a admirável Introdução anteposta ao 2.o volume do Romanceiro (3.a ed., 1875), em que, feita uma subtil análise das causas psicológicas que ocasionaram o aparecimento da poesia em língua «romance» e uma severa crítica das diferentes escolas clássicas da nossa poesia naquilo em que, no entender do grande escritor, elas traíram as suas raízes nacionais, Garrett terça apaixonadas armas pelo ressurgimento desse espírito nacional na nossa literatura.

Vale a pena recordar aqui, embora com forçada dilatação do espaço, o formoso trecho inicial dessa Introdução. Escreve Garrett:

« [...] Não quero compor uma obra erudita para me colocar entre os filólogos e antiquários, e pôr mais um volume na estante dos seus gabinetes.

Desejo fazer uma coisa útil, um livro popular; e para que o seja, torná-lo agradável quanto eu saiba e possa. As academias que elaborem dissertações cronológicas e eruditas para uso dos sábios. O meu ofício é outro: é popularizar o estudo da nossa literatura primitiva, dos seus documentos mais antigos e mais originais, para dirigir a revolução literária que se declarou no país, mostrando aos novos engenhos que estão em suas fileiras os tipos verdadeiros da nacionalidade que procuram, e que em nós mesmos, não entre os modelos estrangeiros, se devem encontrar.

É obrigação de consciência para quem levanta o grito de liberdade num povo, achar as regras, indicar os fins, aparelhar os meios dessa liberdade, para que ela se não precipite na anarquia. Não basta concitar os ânimos contra a usurpação e o despotismo; destruído ele, é preciso pôr a lei no seu lugar. E a lei não há-de vir de fora: das crenças, das recordações e das necessidades do país deve sair para ser a sua lei natural, e não substituir uma usurpação a outra.

Eu, que ousei levantar o pendão da reforma literária nesta terra, soltar o primeiro grito de liberdade contra o domínio opressivo e antinacional da falsa literatura, dói-me a consciência de ver a anarquia em que andamos depois que ele foi aniquilado; pesa-me ver o bom instinto dos jovens talentos, desvairado em suas melhores tendências, procurar na imitação estrangeira o que só pode, o que só deve achar em casa.

Parece-nos que estas reflexões ainda hoje são dignas de meditação: só espíritos estreitos ou falsamente doutrinados poderão ver nelas qualquer traço de «nacionalismo» asfixiante e desconhecedor das realidades, quando o que elas encerram é uma sã regra de criação artística objectivamente válida, aplicável hic et nunc.

Mas volvamos ao Romanceiro. Um dos erros de Garrett foi o não ter percebido, ou o não ter atendido, que o Romance é uma

unidade poético-musical indissolúvel e que, nessas vetustas produções literárias, separar a letra da melodia que necessariamente forma corpo com ela é o mesmo que abstrair da rosa o perfume que lhe é peculiar ou que considerar num rosto os traços fisionómicos independentemente da expressão que anima. Recolhendo a letra dos Romances desacompanhada da respectiva música, o autor das Viagens na Minha Terra fez obra incompleta, truncada. Não o culpemos muito por isso. Poderia ele ter procedido diferentemente? Garrett era, antes de mais nada, um poeta, um escritor, certamente pouco familiarizado com o fenómeno musical. Não era folclorista (a disciplina do folclore achava-se então ainda nos limbos) para poder proceder à sua recolha (aliás feita indirectamente, através de comunicações de terceiros) com verdadeiro método científico.

Lembremo-nos, ademais, que, nos países que de certo modo o impulsionaram no estudo da literatura popular e que lhe ministraram as ideias interpretativas desta, a Inglaterra e a Alemanha, ou,

59

Page 60: Conteudo Livro FLG CPP

antes, o movimento romântico naquelas duas nações, também as coisas não principiaram doutro jeito e que só mais tarde ali se começou a prestar a devida atenção às melodias populares e a considerar em conjunto o binómio poesia-música.

No entanto, ao próprio Garrett não passou acaso despercebida a deficiência do seu trabalho e o quanto importaria, sob o ponto de vista prático, isto é, para o aproveitamento artístico dos materiais fornecidos pela nossa poesia tradicional, associar esta às melodias que com ela nasceram ou que com ela fraternamente andam de par.

Comentando, no mesmo 2.o volume do Romanceiro, o Romance da «Bela Infanta» (que classifica de chácara), diz que o introduziu, com algumas alterações indispensáveis, no 5.o acto d’O Alfageme de Santarém, fazendo-o «cantar por um coro de mulheres do povo, à hora do trabalho». E relata, entre satisfeito e pesaroso:

[...] observei o sensível prazer que tinha o público em ver recordar as suas antiguidades populares, que nem ainda agora deixaram de lhe ser caras. Mas por mais que fizesse, não consegui que as cantassem a uma toada própria e imitante, quanto hoje pode ser, da melopeia antiga com que há séculos andam casadas essas trovas. Ainda em cima, os cantores desafinavam e iam fora de tempo na música italiana e complicada que lhe puseram. Apesar de tudo, os espectadores avaliaram a intenção e a aplaudiram.

Dos Romances compendiados por Garrett conhecemos nós hoje tão-só as toadas da Bela Infanta, do Bernal-Francês, do Conde Yano (ou Conde Alberto), do Conde de Alemanha, da Silvaninha, do Reginaldo, do Conde Nilo, da Donzela que Vai à Guerra (também conhecida por D. Martinho), da Nau Catrineta, de O cego, de Linda-a-pastora (ou O príncipe e a pastorinha), do D. João e de A morena. (É possível que ainda um que outro deles haja por aí recolhido por algum curioso ou folclorista benemérito de que não temos notícia). Mas o ponto é saber-se se tais toadas são de facto as que, à altura da colação garrettiana, se cantavam com as letras que ali se referem. Não terá havido em muitas delas permutas ou transposições? Já se verificaria então o fenómeno, hoje corrente, de a uma determinada toada se poderem atribuir vários romances ou de um destes ser cantado com melodias diferentes? Que alterações ou transformações se terão produzido nessas toadas no decurso de um século?

A coisa seria importante de saber-se para a organização e estudo quanto possível documentado do nosso Romaneiro no ponto de vista poético-musical; mas crêmo-la já agora impossível de apurar-se.

A tarefa sistemática da recolha da poesia e música dos Romances nunca chegou a ser empreendida entre nós, e talvez já seja tarde para a tentar. E que prejuízo daí não resultou, a avaliar pelos belos mas desgarrados espécimes com que se consegue topar numa que outra publicação ou ouvir ainda (cada vez menos, infelizmente) da boca do próprio povo!

O cometimento de Garrett ficou incompleto; mas saibamos fazer jus ao grande escritor, hoje, no ano do seu Centenário, por haver dado o sinal de partida, ao menos num aspecto do conhecimento, resguardo e apreço do rico tesouro da nossa arte popular.

16. SOBRE AS TOADAS DOS ROMANCES POPULARES PORTUGUESES (1964)

Não está na índole desta publicação77 entrar em considerações circunstanciadas acerca das toadas

com que tradicionalmente são cantados os nossos romances. Convém porém não esquecer desde já uma coisa, que tem sido muitas vezes esquecida, ou, se não esquecida, pelo menos encarada com menos atenção. Vem a ser que o romance é um género poético-musical, que nele, portanto, letra e toada são aspectos solidários, formando unidade estética, e que o considerar-se em separado a toada só pode ser relevante de um ponto de vista puramente musicográfico, certamente legítimo logo que se reconheça

77 Redol, A. Romanceiro Geral do Povo Português. Iniciativas Editoriais: Lisboa, 1964. [Nota de F. Lopes-Graça.]

60

Page 61: Conteudo Livro FLG CPP

que na origem não há dicotomia (é este o erro do exclusivo ponto de vista literário, a bem dizer o único por que desde sempre se tem entre nós encarado o romance).

Que essas toadas remontem todas à época histórica em que o romance foi composto e com ele se achassem logo de início associadas, não é muito de crer (e está mesmo em contradição com o que se sabe a respeito do comportamento geral da matéria artística tradicional); mas não restam dúvidas de que muitas e muitas são as que apresentam um inegável cunho de vetustez.

Não há um tipo único de toada de romance; é certo, porém, que em bom número de romances – em regra os de mais provecta tradição, os «romances velhos» – as respectivas toadas observam um como que ar de família, uma tal ou qual similitude de ritmo e de giros melódicos, uma ambiência psicológica de natural afinidade. Reportando-nos apenas às solfas aqui compendiadas, não se tornará patente que toadas como as dos romances Tristes novas me vieram (n.o 66, p. 87), Soldado vai triste para a guerra (n.o 97, p. 119), O soldadinho (n.o 98, p. 120), A cativa (n.o 117, p. 143), Bernal francês (n.o 120, p. 152), Dom Martinho (n.o 192, p. 285), Reginaldo (n.o 215, p. 320), Duque d’Alba (n.o 226, p. 343), O Conde de Alemanha (n.o 257, p. 385), Dona Ângela (n.o 263, p. 394), Morena (n.o 309), Dona Mariana (n.o 335, p. 470), Santa Catarina (n.o 421, p. 570), Santa Iria (n.o 425, p. 574), O lavrador da arada (n.o 441, p. 607), O milagre da redenção da alma (n.o 443, p. 609), não se tornará patente, dizíamos, que toadas como estas as irmana algo, que reside não só na sua expressão (uma expressão de poesia «longínqua»), como nas suas particularidades estruturais e de estilo.

Que não estamos em presença de melodias de cunho verdadeiramente folclórico, no sentido em que a autêntica música folclórica, mesmo nas suas espécies mais ricas e complexas, se apresenta como de raiz essencialmente rústica e obedece por isso mesmo a específicos processos de formulação (processos que relevam do «primitivo» e do «ingénuo», tirando-se a estas expressões o que de ordinário a elas se vincula de simpleza e de imediatismo), não há porventura que discuti-lo. As melodias dos romances (referimo-nos particularmente às dos «velhos romances») traem uma arte de certo refinamento culto (o próprio romance, literariamente considerado, é na origem um género culto ou semiculto), o que não significa que, passando ao povo, seu depositário e seu transmissor ao longo dos tempos, elas não tenham sido impregnadas de algumas das características da música folclórica.

Seja porém como for, a verdade é que, tal como o conhecemos hoje, produto de evolução e de transformação, o romance (tanto texto literário como toada) acha-se inscrito àquele tipo peculiar de cultura que tem o seu foco no povo e às necessidades espirituais deste corresponde, só no âmbito dessa cultura vivendo e desempenhando alguma função. E é portanto como espécies por assim dizer folclorizadas que nós temos de considerar essas toadas que, na sua origem, são porventura produtos de arte culta.

Outras, todavia, denunciam já uma aproximação expressiva e morfológica mais cerrada com certos tipos de música folclórica ou, pelo menos, popular (a distinção entre música folclórica e música popular não é especiosa, mas pertinentemente feita pela actual ciência da etnomusicologia). Estão neste caso, por exemplo, toadas como as dos romances de Miramium se fui a la guerra, n.o 46, p. 64 (a qual põe um interessante problema de etnomusicologia comparada, pela sua estreita afinidade, literária e musical, com outros romances da mesma temática que se encontram em várias latitudes e o mais famoso dos quais é o francês Malbrouck s’en va-t-en guerre), Batalha de Lepanto (n.o 137, p. 185), A moura do Seixal (n.o 146, p. 202), Nau Catrineta (n.o 163, p. 235), Bela Infanta (n.o 171, p. 251), Claralinda (n.o 174, p. 255), Mineta (n.o 188, p. 278), Condessa de Aragão (n.o 202, p. 304), Dona Silvana (n.o 351, p. 500), Santa Luzia (n.o 428, p. 577), O caçador (n.o 437, p. 605), Ergui-me de madrugada (n.o 445, p. 610).

As toadas, tanto dos romances como das outras cantigas nesta publicação estampadas, são, na sua grande maioria, extraídas das publicações várias da música popular portuguesa que nos foi possível consultar e que indicamos em apêndice bibliográfico a esta nota. Contudo, dois esclarecimentos importa fazer. O primeiro é que as fontes indicadas no texto nem sempre coincidem com as fontes reais da solfa, como sucede com os n.os 66, 120, 122, 137, 163, 171, 174, 192, 197, 202, 215, 351, 381, 389,

61

Page 62: Conteudo Livro FLG CPP

441, 443 e 445 (qualquer omissão ressalvada), Nestes casos, procedeu-se a uma transplantação ou adaptação, já porque se preferiu uma lição diferente do texto literário, já porque determinada solfa apresentava dificuldades e contradições prosódicas ou porque uma outra se nos deparou desacompanhada de texto. O segundo esclarecimento refere-se à redacção das solfas. Em muitas delas modificámos a tonalidade consignada pelo seu colector, adoptando outra mais de acordo com as possibilidades de entoação de uma voz média. Noutras permitimo-nos alterar-lhes a grafia, que na redacção original se nos antolhava ritmicamente confusa, se é que não errada. Enfim, pelo que se refere ao compasso, também aqui e ali optámos por leituras que se nos afiguram mais práticas e metricamente mais lógicas.

Dar de tudo isto documentação exorbitaria mais uma vez da índole desta publicação, fazendo-nos entrar pelo caminho, nada aliciante, da erudição. Tenha-se apenas em consideração que o nosso procedimento não visa a menoscabar o trabalho de ninguém, de nenhum dos estudiosos que se dedicaram à recolha e notação dos romances, mas tão-somente a oferecer ao público, com uma certa arrumação e facilmente manuseável, uma parte de um dos mais preciosos tesouros da nossa tradição popular. Uma parte apenas, pois que o que aqui se compendia não esgota o que se conhece em matéria de romances e suas toadas, o que decorre tanto de um necessário critério de escolha como do facto de se ter tornado impossível, uma vez organizado o Romanceiro, Incluir nele mais que duas ou três das espécies, bem valiosas, que recentes prospecções nos vieram revelar (referimo-nos especialmente aos belos romances recolhidos em Trás-os-Montes e no Algarve e gravados nos dois primeiros discos da Antologia da Música Regional Portuguesa, àquelas províncias consagrados).

Far-se-á mister justificar as «harmonizações» da nossa lavra estampadas no Romanceiro? Tratasse-se ela de uma obra puramente erudita, e seríamos nós os primeiros a condenar o que poderá passar por uma indevida intromissão. Mas trata-se antes de mais nada de uma obra de arte, que é também uma obra de amor. Nela, as «harmonizações» de uns quantos romances figuram apenas como uma ilustração, no mesmo título que as gravuras de Maria Keil e no mesmo espírito de aformoseamento de um livro que se pretende não seja uma monografia mas sim uma companhia deleitosa para o seu leitor. Se a justificação vale alguma coisa, aqui a damos pelo que possa valer.

Uma última observação, esta de ordem geral. Cremos que se impunha fazer o estudo do nosso romance tradicional sem o dissociar daquele

elemento que com ele forma indissolúvel corpo: a toada musical. A análise dos caracteres morfológicos, expressivos e estilísticos desta, poderia acaso trazer válida contribuição para a resolução ou simples aclaramento dos nebulosos problemas da origem e evolução do romance português. No geral, enfeuda-se este ao romance espanhol. Não nos compete a nós discutir esta teoria, ou terçar armas pela sua pertinência ou impertinência. Mas antolha-se-nos que algo se poderia adiantar numa questão em que as peças processuais são desigualmente sopesadas, se se considerasse que as toadas dos romances portugueses não são de modo algum uma réplica das toadas dos romances espanhóis, que, na variedade dos seus giros melódicos, rítmicos e tonais, elas observam uma individualidade própria (sem que por isso as tenhamos por estanques), que, em suma, as toadas dos romances portugueses são... portuguesas, sem prejuízo da diversidade dos materiais carreados para o caldeamento daquilo que definimos por «português».

62

Page 63: Conteudo Livro FLG CPP

TRATAMENTO Sobre a canção popular portuguesa e seu tratamento erudito ... como compositor, vim a concluir que o tratamento artístico da canção popular portuguesa é

perfeitamente compatível com todos os recursos e conquistas da moderna técnica e gramática musicais; e direi mesmo que só aplicando-lhe, com o devido discernimento, está bem de ver, esses recursos e conquistas, é que ela se poderá valorizar completamente...

Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas As canções que ides ouvir roubei-as eu ao nosso povo, que tem um grande tesouro delas: e

roubei-lhas, não para as guardar para mim, mas com o propósito de lhas restituir, possivelmente com juro do roubo. Mandam a lei e os bons costumes que não fiquemos com os bens dos outros, mesmo quando os outros possuem tesouros. Ora, como as canções são um dos raros e preciosos bens do povo português, eu sentiria a consciência pesar-me se, apropriando-me delas, lhas não restituísse. Não lhas restituo, porém, tal-qualmente lhas roubei: fiquei com alguma coisa delas e, ao devolver-lhas, procurei que elas não ficassem diminuídas no seu valor, antes diligenciei aumentá-las com aquele pequeno juro que está nas minhas posses despender.

Acerca da harmonização coral dos cantos tradicionais portugueses Os cantos que constituem o repertório do Coro da Academia de Amadores de Música inscrevem-

se naquele aspecto da produção musical de quem vos está falando que, utilizando diversos meios instrumentais e vocais, recorre directamente ao material da musica tradicional portuguesa, no caso presente, os cantares genuínos do povo português: os seus cantos religiosos, os seus romances, os seus cantos de trabalho, as suas canções de amor, as suas canções dançadas, etc.

63

Page 64: Conteudo Livro FLG CPP

17. SOBRE A CANÇÃO POPULAR PORTUGUESA E SEU TRATAMENTO ERUDITO (1942)

Tenho que confessar que o meu interesse pela canção popular e pelos problemas do folclore

ligados à formação de uma linguagem musical erudita autónoma, isto é, individualizada sob o ponto de vista nacional, é relativamente recente. É certo que uma das minhas primeiras composições para piano (a primeira, em todo o caso, que foi executada publicamente) constava, precisamente, de umas Variações sobre um tema popular português. Embora a coisa se não tivesse passado há muito tempo (julgo que aí por 1928 ou 1929), não me lembro hoje se isso representava para mim algum propósito sistemático, ou se foi uma circunstância puramente fortuita. Pendo a crer que a segunda hipótese é mais verosimilhante. Seja como for, o certo e que as minhas «experiências» com a matéria musical popular não tiveram então continuação. Suponho que para isso deviam ter contribuído duas razões: a primeira, residia no pouco crédito que entre nós gozavam os estudos folclóricos, e o desconhecimento que em Portugal havia do que fosse uma verdadeira ciência do folclore musical e o auxílio que ela podia prestar à criação erudita; a segunda, cifrava-se no confusionismo e na exploração, nos mal-entendidos e nos oportunismos a que era pretexto, entre nós, o chamado «nacionalismo musical». As trapaças que se faziam à sombra desta infeliz expressão! Era de desgostar quem, acima de interesses pessoais e de manobras politiqueiras, pusesse um sincero amor da arte. Hoje talvez se possa dizer que o pior inimigo de um verdadeiro «nacionalismo musical», o maior obstáculo que se pôs à criação de uma autêntica «música portuguesa», que, pela qualidade e pelo estilo, se pudesse colocar decentemente ao lado das produções do «nacionalismo» espanhol, checo, húngaro ou inglês contemporâneos, foi, certamente, esse «nacionalismo» de cartaz, essa famosa «música portuguesa», que não conhecia nem técnica pró-pria, nem disciplina interna, que iludia os problemas e sofismava as intenções, que era vazia de conteúdo e nula como forma superior de arte, e só era possível porque aqui em Portugal foi tudo sempre possível àqueles que praticam o célebre «heroísmo de afirmar» queirosiano. Ainda hoje estamos a sofrer as consequências desse confusionismo político-artístico, e não sabemos quando é que o problema da «música portuguesa», sem menosprezo por uma ou outra contribuição honesta, será, de facto, posto ou resolvido nos seus devidos termos.

O meu segundo contacto com a matéria musical popular só se fez uns dez anos mais tarde, e teve como resultado a composição das 24 Canções Populares Portuguesas, iniciadas em Paris, por sugestão de uma conhecida cantora, especializada na interpretação de canções populares, Lucie Dewinski, a quem não satisfaziam, sob o ponto de vista da sua execução em concerto, as simples harmonizações ou, por outra, as harmonizações mais ou menos simplistas das canções populares portuguesas, de que tinha conhecimento.

Foi por esta razão que chamei às minhas canções «versões de concerto» – o que implica um tratamento em extensão e profundidade, digamos assim, de todas as sugestões que a canção portuguesa pode oferecer, sob o ponto de vista da expressão, do ritmo, da harmonia e mais características psicológicas e morfológicas, e que se traduzem, principalmente, na parte instrumental, visto que conservei sempre a melodia toda a sua pureza e identidade originárias. E claro que, não sendo folclorista, não me interessou saber qual seria a «versão autêntica» das canções – coisa que, aliás, me parece absolutamente mítica e paradoxal: se a canção é, de facto, popular, todas as suas versões são autênticas, como documento folclórico; sob o ponto de vista estético é que podem ser umas preferíveis às outras – mas, neste caso, estamos logo em face de um critério selectivo, que é já, propriamente, do domínio artístico, e não folclórico. É pois natural que, em presença de várias versões da mesma canção, eu não inquirisse de saber qual era a «mais autêntica» (!!), mas sim qual era a mais bela, qual era a que maiores possibilidades de tratamento oferecia, para as explorar sem atraiçoar, sem alterar o seu carácter primitivo, aquilo a que eu chamo a pureza e a identidade da canção, apresente-se esta na sua primeira (?) ou na sua milésima (?) versão. Se nós concedemos que o povo, ou alguém do povo, é capaz de criar uma melodia, por que não havemos de conceder também que esse povo, ou alguém dentre esse povo, é igualmente capaz de transformar, corrigir, afeiçoar essa melodia, até lhe encontrar a melhor forma, a

64

Page 65: Conteudo Livro FLG CPP

forma mais bela, ou, pelo menos, o que, em determinado momento da evolução da canção, podemos considerar a sua melhor, a sua mais bela forma?

Ora, o resultado mais importante e de maiores consequências a que cheguei, depois de estudar o problema (e eu queria que se considerassem estas minhas canções apenas como uma contribuição para o estudo desse problema), foi o de que a canção popular portuguesa é muito mais rica do que eu próprio supunha e do que nos podem fazer entrever os estudos, infelizmente numa fase ainda quase exclusivamente empírica e meramente descritiva, que entre nós se lhe têm dedicado78.

Repito que não fiz, nem pretendi fazer, trabalho de folclorista: procurei fazer obra de compositor, para o que me servi do material já recolhido e compendiado pelos especialistas. E, como compositor, vim a concluir que o tratamento artístico da canção popular portuguesa é perfeitamente compatível com todos os recursos e conquistas da moderna técnica e gramática musicais; e direi mesmo que só aplicando-lhe, com o devido discernimento, está bem de ver, esses recursos e conquistas, é que ela se poderá valorizar completamente.

A canção portuguesa, numa boa percentagem, é de limitado âmbito tonal: cifra-se, em geral, numa oscilação de tónica à dominante, o que tem sido considerado uma deficiência sob o ponto de vista harmónico, porquanto a incapacita para um tratamento superior. Isso é, em grande parte, verdade. Mas, além de que a canção portuguesa não é toda dessa índole, nós podemo-nos perguntar se, mesmo nos casos de limitado âmbito tonal, não será possível tirar dela qualquer partido artístico. Parece-me que sim. O maior perigo que há não é que a canção esteja escravizada a Tónica-Dominante; todos nós conhecemos belos exemplos clássicos de melodias escravizadas à Tónica-Dominante: O perigo real é que a canção seja banal, inferior, como expressão. Ora, não se pode dizer que melodias como a de Minha mãe me deu um lenço, a da Oliveira da Serra ou a do Gavião, sejam, positivamente, melodias banais, inferiores, embora nitidamente eufeudadas à relação Tónica-Dominante. Por que não as havemos de aproveitar? Elas são, vocalmente, de curto âmbito tonal? Pois bem: alarguemos, variemos, coloramos instrumentalmente o seu núcleo tonal rudimentar. A harmonia moderna oferece-nos bastos recursos para o fazer. E que mal há nisso? Que mal há em aplicar acordes formados por quintas ou quartas, ou em fazer uma imitação num tom afastado, ou em empregar uma pedal interior estranha, ou em ornar o acorde perfeito de três ou quatro apogiaturas, que mal há em utilizar estes ou outros pro-cessos em melodias de âmbito tonal limitado às funções de tónica e dominante? Merece a melodia os processos empregados? Ganha o seu tratamento com eles? Qual é, então, a dúvida? E quando isto já seja lícito em casos que, aparentemente, e sob um ponto de vista demasiado puritano e simplista, não consentem tais soluções – quanto mais lícito e defensável se não torna nos casos em que a melodia popular se apresenta com uma estrutura tonal mais rica e complexa?

Há, por exemplo, um aspecto da canção popular portuguesa a que só há pouco tempo se começou a prestar a devida atenção: o aspecto modal. Um dos erros de muitos dos nossos folcloristas foi a de desprezarem ou de atribuírem menos interesse às canções vazadas nas antigas tonalidades, sob pretexto, tácito ou confessado, de que essas canções eram «bárbaras», primitivas. O erro foi agravado nos casos em que, harmonizando-se uma que outra dessas canções, se lhe aplicaram os processos tonais clássicos do sistema maior-menor: todo o sabor, todo a carácter, toda a riqueza expressiva, todas as possibilidades harmónicas da canção eram assim frustradas.

Alguma coisa já hoje se ganhou em reconhecer que as expressões porventura mais puras da canção portuguesa eram, precisamente, as velhas canções modais, embora ainda muito haja que fazer neste campo, tanto sob o ponto de vista da investigação, da recolha, como pelo que respeita ao seu tratamento erudito. Não basta apurar que determinada canção é modal e aplicar-lhe uma harmonia que, pretendendo ser modal, é, no fundo, muitas vezes apenas o maior ou o menor disfarçados. Nem se deve supor que, pelo facto do modalismo ser antigo, as harmonizações que sobre ele se estruturarem devam ter necessariamente um carácter arcaico, ou se devam limitar aos meios de um diatonismo «conservador». O modalismo bem entendido, e tal como modernamente o têm praticado compositores

78 Veja-se o texto «Folclore musical português» [29]. [Nota de F. Lopes-Graça – adaptada.]

65

Page 66: Conteudo Livro FLG CPP

de grande envergadura (Debussy, Ravel, Manuel de Falla, Vaughan Williams), não é de maneira nenhuma uma atitude «reaccionária», mas, muito pelo contrário, um processo de renovação harmónica, que se acomoda perfeitamente com as conquistas da moderna gramática musical.

Eu sei que estes pontos de vista chocam profundamente uma certa corrente de ideias que, sobre o assunto, entre nós vigoram. Argumenta-se, em geral, que, sendo a canção popular uma coisa simples, ingénua, não pode sofrer harmonizações complicadas, transcendentes; que, ao harmonizar-se uma canção popular, se deve proceder como o povo procederia e conservar a canção de acordo com os seus processos e técnica rudimentares; que, de contrário, se desnatura a canção, etc., etc.

Ora, argumentar desta maneira e desconhecer totalmente o problema que se põe, o qual não reside em «harmonizar», mais ou menos segundo o natural, a canção popular, mas sim em descobrir-lhe as suas virtualidades artísticas e, no caso especial da «música portuguesa», descobrir-lhe e estudar-lhe as suas virtualidades psicológicas e morfológicas, como possíveis informadoras de uma linguagem musical antónoma, individualizada, que não possuímos. Além de que a canção popular nem sempre é essa coisa simples e ingénua que se pretende. A Márcia-bela, o Malhão de Mira, Era ainda pequenina, Ó divina Santa Cruz, Senhora Santa Luzia, Ó minha mãe dos trabalhos, e tantíssimas outras canções, que seria fastidioso estar a enumerar, não são nada coisas simples e ingénuas, mas belíssimas melodias, largamente elaboradas, de um equilíbrio plástico perfeito, de uma ampla «respiração», e carregadas de um potencial ora dramático, ora patético, ora simplesmente lírico, que faz delas pequenas maravilhas de expressão e musicalidade. Depois, nem todas as harmonizações que saem fora das regras escolás-ticas são, necessariamente, complicadas e transcendentes; uma harmonização bitonal pode ser tão simples e clara como o diatonismo puro da canção a que ela se aplica. Diga-se, ainda, que o povo não «harmoniza», regra geral, as suas canções. Tirante os casos de polifonia instintiva, o sentimento musical do povo é monódico. Quando sucede harmonizar os seus cantos, fá-lo artificialmente e segundo modelos estereotipados dos processos harmónicos eruditos. Ou haverá aí alguém que pretenda que a relação harmónica Tónica-Dominante, ou o acorde de 5.a diminuta, ou a modulação ao tom relativo são dados musicais naturais, e que o povo, empregando-os, não faz mais que obedecer a um instinto elementar, congénito do que lhe dita as suas «simples» melodias?

Quanto à questão da desnaturação, temos que conversar. Uma canção popular ou é um documento folclórico (com o seu interesse artístico sui generis, que, por vezes, bem grande é) – e, nesse caso, não há que tocar-lhe, não há que sujeitá-la a qualquer tratamento estilístico –; ou, logo que se lhe toque, logo que a harmonizemos, logo que a tratemos, só podemos ter em vista o tirarmos dela o máximo partido artístico, explorando-lhe todos os recursos e valorizando-os em função das virtualidades estéticas nela implícitas. De contrário, pode dar-se este caso, que, de facto, tantas vezes se verifica: o documento folclórico tem em si mesmo muito mais interesse e o seu valor artístico é muito maior do que o das paráfrases que se lhe fazem, do que os arranjos que pretendem valorizá-la, do que o molho mais ou menos estilizado com que ela, a canção, é servida.

Claro está que nem de longe me passa pela cabeça a ideia estulta de ter achado a solução dos problemas aqui aflorados, nem que não tenha havido por parte de um que outro compositor português um sincero, se bem que, por vezes, algo tímido desejo de fazer sair a canção portuguesa do beco sem saída em que pretende encafuá-la uma mentalidade rotineira, incapaz de conceber a arte e os seus problemas em termos que ultrapassem as fronteiras de um comezinho caso familiar ou paroquiano. Repito que as 24 Canções Populares Portuguesas são apenas uma tentativa (porventura aqui e ali falhada) de resolver esses problemas, tentativa que outros hão-de ver, certamente, coroada de absoluto êxito, mas que seria excessivamente modesto não considerar que, possivelmente, encerra uma que outra direcção mais ou menos aproveitável. Acrescentarei, ainda, que me parece ser através do estudo e da utilização consciente e reflectida das características psicológicas e morfológicas da canção popular (como, aliás, da sua irmã gémea: a dança), que nós havemos de chegar à criação de um idioma musical individualizado, capaz de, superada a necessária fase folclorizante inicial, traduzir e dar expressão superior e universal às ideias e aos sentimentos do primeiro músico que tenha suficiente génio para tirar

66

Page 67: Conteudo Livro FLG CPP

dele, desse idioma, qualquer coisa que se possa verdadeiramente apresentar como «música portuguesa» – dando, evidentemente, a esta expressão o seu profundo significado étnico-cultural, e não o corrente e banal significado pitoresco-regionalista.

18. Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas (1956)79

As canções que ides ouvir roubei-as eu ao nosso povo, que tem um grande tesouro delas: e

roubei-lhas, não para as guardar para mim, mas com o propósito de lhas restituir, possivelmente com juro do roubo. Mandam a lei e os bons costumes que não fiquemos com os bens dos outros, mesmo quando os outros possuem tesouros. Ora, como as canções são um dos raros e preciosos bens do povo português, eu sentiria a consciência pesar-me se, apropriando-me delas, lhas não restituísse. Não lhas restituo, porém, tal-qualmente lhas roubei: fiquei com alguma coisa delas e, ao devolver-lhas, procurei que elas não ficassem diminuídas no seu valor, antes diligenciei aumentá-las com aquele pequeno juro que está nas minhas posses despender.

Que retirei eu do roubo das canções? Eu vo-lo confesso. Revelaram-me elas melhor a alma do povo português, ensinaram-me a conhecê-lo mais intimamente, ajudaram-me a procurar uma mais funda identificação com ele e eu considero isto um benefício muito importante para um artista, para um músico, que deseja e se esforça por que a sua arte, mais do que uma aventura ou uma confissão pessoal, seja um meio de comunicação, melhor, um meio de comunhão com o povo a que pertence. O que só conseguirá, segundo penso, se empregar uma linguagem enraizada na realidade comum, realidade que ele, o artista, o músico, poderá e deverá transformar, enriquecer e exaltar, mas que não poderá, não deverá trair na sua essência, nos seus valores, na sua significação, se deseja verdadeiramente encontrar eco no coração e no espírito dos seus irmãos de raça, única forma de alcançar eco no coração e no espírito dos seus irmãos de outras raças.

Vale isto dizer, e já o tem sido dito e redito, embora muitos artistas e muitos teóricos, nem sempre por surdez, o não compreendam, o não aceitem, vale isto dizer que a arte, toda a arte, tem de ser em primeiro lugar nacional, só depois do que, ou só mediante o que, poderá aspirar à ambicionada, e nem sempre alcançada, categoria de universal. Na verdade, como um valor universal não é, nunca foi, uma coisa abstracta, forjada deliberadamente antes de qualquer experiência vivida num dado meio, com as suas determinantes, as suas ideias e as suas aspirações próprias, segue-se muito naturalmente que, antes de se ser universal, força é que se seja nacional (não digo nacionalista porque o nacionalismo, quando não é uma caricatura do nacional, é campo de muita e desnorteante confusão) e que só o que é profundamente nacional tem probabilidades de obter significação e ressonância universal80.

Não é, contudo, propósito meu entrar numa discussão que nos levaria muito longe e nos faria esquecer o que mais importa neste momento, que é o falar-vos, embora rapidamente, das canções que vão ser cantadas.

Já vos disse que não as restituí a quem elas pertencem de direito sem que delas houvesse retirado alguma coisa como artista, e já vos dei a entender que, ao restituí-las, lhes dei eu próprio um pouco do que estava em mim poder dar-lhes.

Com efeito, repito-o, vós não ouvireis as canções como o nosso povo as canta, mas sim através de arranjos, adaptações ou harmonizações – o que, com pouca diferença, significa o mesmo –, isto é, ides

79 Introdução a um concerto do Coro da Academia de Amadores de Música (Secção de Folclore), realizado no Tivoli, de Lisboa, por iniciativa da Juventude Musical Portuguesa. [Nota de F. Lopes-Graça.] 80 Será necessário esclarecer que, quando me refiro ao «nacional», não assimilo ou limito este ao «folclórico»? O «folclórico» é apenas um aspecto do «nacional», e, por muito significativo que possa ser, não basta por si só para o definir. Em arte – neste caso na música – o «folclórico» pode ser ou uma matéria a explorar ou um método de descoberta e afirmação do nacional a tentar. No primeiro caso, tem de ser transcendido, se não nos queremos ficar numa arte de segunda mão; no segundo, tem de ser analisado com discernimento, para dele extrairmos as premissas de uma linguagem e de um estilo que, sendo embora nacionais, alcancem validade universal. Pode ainda conciliar as duas coisas: a sugestão da matéria e a exigência do método; mas seja como for, do que não resta dúvida é de que o «folclórico» é, a um tempo, uma sedução e um perigo, sedução quantas vezes ilusória, perigo só raramente evitado... [Nota de F. Lopes-Graça.]

67

Page 68: Conteudo Livro FLG CPP

ouvir um trabalho artístico pessoal (meu, se me permitis referir-me a mim próprio como autor desses arranjos, adaptações ou harmonizações), um trabalho artístico, em suma, que tem o seu ponto de partida nas canções populares, ou, dito com mais propriedade, nas canções rústicas portuguesas, ou de que estas constituem, como se diz em linguagem da técnica musical, o material imediato.

– Mas por que não comunicar as canções assim como o povo as canta? – perguntareis acaso vós, com alguma perplexidade que, em princípio, se não poderá qualificar de absurda. Eu vos respondo:

Em primeiro lugar, porque o Coro da Academia de Amadores de Música, embora se subintitule Secção de Folclore, não é um grupo folclórico, na acepção própria e genuína da expressão: e, não o sendo, não está no seu propósito competir com os nossos autênticos grupos folclóricos ou regionais (e muito menos com os falsos) cantando as suas espontâneas cantigas – o que, além de artificioso se arriscaria a ser ridículo, por poder redundar, por vir certamente a redundar, numa pura macaqueação, a exemplo do que, infelizmente, tanta vez se observa entre nós.

Em segundo lugar, porque o Coro, dedicando-se muito embora tão-só por gosto e por programa, à interpretação e divulgação da canção popular portuguesa, é também ele um organismo popular que aspira a cultivar-se musicalmente através do canto coral – e entende quem o orienta que, para alcançar semelhante fim, nada melhor do que entregar-se à prática das nossas canções, o que de toda a evidência, e para se alcançar o objectivo pedagógico e cultural em vista, impõe uma adaptação, um arranjo especial dessas mesmas canções. E, neste ponto, não posso perder a ocasião de, mais uma vez, tornar público o meu pensamento de que o meio certamente mais prático e eficiente de se fazer a necessária educação musical da gente portuguesa é fazê-la cantar as nossas canções, já na sua simplicidade primitiva, já, num grau mais elevado de cultura, em arranjos ou harmonizações que saibam aliar os imprescindíveis requisitos técnicos ao bom gosto, sem concessões à vulgaridade e ao bonitinho, arruinadores de todo o trabalho de séria fomentação da cultura artística.

Finalmente, e acaso razão capital por que as canções não são cantadas na sua versão puramente folclórica: é que, ao restituí-las ao povo, eu quis apresentá-las num escrínio, numa moldura que possivelmente as valorizasse, as enriquecesse do ponto de vista artístico, pondo-lhes em evidência todas as suas virtudes expressivas, revelando-lhes as suas mais preciosas facetas, acusando-lhes os con-tornos, aprofundando-lhes e prolongando-lhes a sua significação estética, psicológica e social, como documentos ou testemunhos inapreciáveis que são do sentir e do viver da nossa gente.

As cantigas, ora graciosas ora apaixonadas, ora comoventemente místicas ora honestamente maliciosas, que se cantam por esses campos e aldeias e fazem parte integrante da vida e das labutas do nosso povo, essas cantigas respeitei-as na sua fisionomia própria, na sua autenticidade rústica, não as alindei, não as edulcorei, não as transformei em produtos comerciais para uso e proveito de fornecedores e consumidores do repertório ligeiro da rádio, antes procurei que, revestindo-as com umas simples e apropriadas roupagens, elas se exprimissem ainda em melhor português, se assim posso dizer, elas fossem ainda mais convincentemente portuguesas, elas, sem nada perderem da sua expressão popular, ganhassem uma expressão de certo modo vernácula e, para tudo dizer, clássica.

O que eu pretendi (sem afirmar que o haja alcançado cabalmente) foi tornar mais sensível a emoção dolorosa, o pungente dramatismo dessas maravilhas melódicas tão medularmente portuguesas, que são a canção de ceifa; Oh, que calma vai caindo (de Casegas) e a canção da colha da azeitona do Paúl; foi tornar mais intensa a impressionante melopeia da Encomendação das almas (de S. Gens de Calvos), mais grandioso o puro misticismo da Senhora d’Aires alentejana, mais saborosa e álacre a alegria sã das monsantinas Canção da vindima, Eu venho da macelada e Maria da Conceição, de A rolinha da calçada (de Cercosa) ou de Ao passar em Vilarinho. Pretendi tornar mais melancólica a melancolia vesperal de São horas de emalar as troixas, mais veemente a veemência apaixonada de Ó ladrão que te vais embora, mais terna a ternura cândida de Ó meu amorzinho, mais eloquente o adeus de Os homens que vão para a guerra. Pretendi tornar mais agreste a rudeza transmontana de Oh que janela tão alta, mais folgazã a ida para as romarias beirãs da Senhora Santa Cat’rina e da Senhora da Atalaia, mais graciosa e ao mesmo tempo mais indolente a alentejana Moda da Rita, mais altaneiro o

68

Page 69: Conteudo Livro FLG CPP

garbo de Ó ladrão, ladrão, que vida é a tua, mais aliciador o chamamento de Na estrada de Braga, mais arrebatado o desafio heróico de Canta, camarada, canta.

É este o juro com que eu me esforcei por restituir ao Povo português as belas canções que lhe roubei. Ganharam elas de facto alguma coisa? Perderam, pelo contrário? Haverá quem pense que ganharam, haverá quem pense que perderam... Livre cada qual de julgar consoante os seus critérios e os seus gostos próprios, vamos lá cantar-vo-las, permitindo-me eu apenas chamar a vossa atenção, não para o profissionalismo do Coro da Academia de Amadores de Música, que o não tem, tratando-se de pessoas que, com duas ou três excepções, não conhecem uma nota de música, mas para a sua boa vontade, para o seu entusiasmo e para aquilo que não será talvez muito forçado chamar o seu fervor missionário.

19. ACERCA DA HARMONIZAÇÃO CORAL DOS CANTOS TRADICIONAIS PORTUGUESES

(1965)

Os cantos que constituem o repertório do Coro da Academia de Amadores de Música inscrevem-

se naquele aspecto da produção musical de quem vos está falando que, utilizando diversos meios instrumentais e vocais, recorre directamente ao material da música tradicional portuguesa, no caso presente, os cantares genuínos do povo português: os seus cantos religiosos, os seus romances, os seus cantos de trabalho, as suas canções de amor, as suas canções dançadas, etc.

Trata-se, portanto, de arranjos ou, como correntemente se diz, de harmonizações corais desses cantares, arranjos ou harmonizações que só poderão considerar-se trabalho original na medida em que o «harmonizador» haja logrado transformar o documento etno-musical em obra de arte mais ou menos individualizada, marcada por alguma ou algumas das características da sua técnica e do seu estilo próprios. Se tal se verifica ou não nestas nossas harmonizações, não nos competirá a nós dizê-lo. Mas talvez que não seja inoportuno da nossa parte – e sem que com isto pretendamos advogar uma causa pro domo nostra – bordar algumas considerações sobre a melindrosa questão das harmonizações dos cantos populares.

Tem-se discutido a legitimidade de tais harmonizações, chegando certos artistas e certos teóricos a denegar-lhes toda e qualquer pertinência ou idoneidade no plano da criação musical. Os argumentos aduzidos neste processo, tais como o de que a canção popular encerra em si mesma a sua razão estética suficiente, o de que ela é um mundo concluso que não admite ser refeito ou, ainda, o de que as suas possibilidades sintácticas são limitadas e não oferecem, portanto, presa a um tratamento artístico superior – tais argumentos não podem deixar de se antolhar especiosos a um exame objectivo e desprevenido da questão, e tem contra si, antes de mais nada, a própria historia da arte dos sons, que sempre viu, desde os antigos mestres polifonistas e organistas até um mestre moderno musicalmente tão heterodoxo, como é Arnold Schönberg, sempre viu os mais ilustres compositores glosarem a canção popular por meio de arranjos ou harmonizações. Fácil e inglória tarefa essa, objectarão aqueles mesmos contendores. Possivelmente. Escutemos, no entanto, o que sobre essa inglória facilidade diz outro mestre moderno, Béla Bartók, que, como poucos, conhecia o assunto e sobre ele tinha toda a autoridade para falar, na sua dupla qualidade de sábio folclorista e de compositor de génio. Opina ele algures:

Muita gente julga coisa relativamente fácil escrever uma composição sobre melodias folclóricas – no fundo um feito de somenos, comparado com uma composição sobre temas «originais». Esta maneira de pensar é absolutamente errada. Tratar melodias folclóricas é uma das mais difíceis tarefas que existem: tão difícil, senão mais, do que escrever uma grande composição original. Se tivermos em mente que aproveitar uma melodia significa estarmos a ela vinculados pela sua peculiar individualidade, compreenderemos uma parte da dificuldade. A outra, surge do carácter específico de uma melodia folclórica. Há que penetrar nela, senti-la, revelar-lhe os agudos contornos mediante um apropriado engaste. Uma composição sobre uma

69

Page 70: Conteudo Livro FLG CPP

melodia folclórica deve ser feita em «hora propícia» ou – como geralmente se diz – deve ser, tanto como qualquer outra composição, uma obra de inspiração.

Revertamos às nossas harmonizações, não para estultamente as abonarmos com as palavras de Bartók, mas porque, sobre elas, algo se nos oferece ainda dizer.

Naturalmente que num trabalho desta índole (entrando mesmo em linha de conta com a parte que nela possa considerar-se como relevando do plano da criação individual), o emprego dos recursos próprios do compositor acha-se limitado pela natureza mesma do material utilizado: a canção regional, e logo que, mais do que fazer alarde desses recursos, se tenha como primeiro objectivo servir a canção, apresentando-a numa como que moldura apropriada, que lhe amplie e reforce a sua fisionomia autêntica – no fundo, obediência ao material primo que ela é e ao que nesse material existe explícito ou latente. Mas há também não cair no extremo oposto, qual é o de considerar que, pelo facto da canção regional ser, por definição – aliás nem sempre justa, e muito haveria a dizer sobre isto – um produto «ingénuo» da inspiração popular, nos devamos tão-só recorrer, no seu tratamento «artístico», a processos simples, que facilmente caem no simplismo e que, em vez de a transfigurarem, muito pelo contrário com frequência lhe fazem perder a sua seiva e a sua força originais.

Acrescentaremos que nestes, como na maioria dos cantos regionais portugueses por nós harmonizados, as limitações no seu tratamento, a que nos acabamos de referir, outras vêm sobrepor-se – estas por assim dizer de ordem pedagógica, decorrentes da circunstância de tais harmonizações se destinarem, antes de mais, a recreio e educação artística de agrupações de amadores, como e o caso do Coro da Academia de Amadores de Música, cujos componentes, com duas ou três excepções, não se acham familiarizados sequer com o solfejo, cantando pura e simplesmente de ouvido. Semelhante circunstância impõe-nos, de toda a evidência, um certo número de precauções, sem que ainda aqui, contudo, a precaução deva necessariamente redundar em cautela timorata, caindo-se num pedagogismo primário, aniquilador do seu próprio escopo.

Aceitando embora de boamente estas limitações, não nos furtamos todavia a utilizar os recursos de ordem harmónica, contrapontística e rítmica de que o nosso modesto arsenal técnico se acha provido, com vista a conseguir obra artística, pois que, se a canção regional, nas suas mais lídimas espécies, é uma expressão de arte – arte sui generis, certo, mas arte – o transplantá-la do plano da sua espontaneidade natural para o plano da criação culta não pode significar negação das virtudes artísticas que ela encerra em si, mas sim a sua sublimação ou cristalização em formas que satisfaçam as exigências da obra de arte organizada. Permita-se-nos que, a este propósito, recordemos as palavras por nós algures escritas.

É imediatamente intuitivo que os arranjos ou harmonizações das canções folclóricas têm que obedecer às condições necessárias da obra de arte, têm que ser, afinal, obra de arte, tanto mais quanto podem ser destinadas a figurar em programas ao lado dos bons modelos da literatura coral clássica. Ora, sem menosprezar as boas intenções e a boa vontade dos autores de tantas das harmonizações que frequentemente se ouvem (e acrescentarei aqui: não só de autores nacionais como estrangeiros), deve reconhecer-se que essas harmonizações estão longe de alcançar um nível técnico e estético sequer médio que as possa definir como obras de arte. A harmonização ou arranjo de uma canção folclórica não é assim coisa tão fácil e irresponsável como à primeira vista poderá parecer (isto é quase uma glosa de Bartók), e, ainda que se persiga um ideal de simplicidade, convém advertir que, em arte, simplicidade nunca foi sinónimo de facilidade e irresponsabilidade. Praticadas por «curiosos» ou semiprofissionais, as harmonizações das canções folclóricas portuguesas, se podem agradar a um público fracamente exigente, não podem satisfazer um critério artístico desperto e afinado.

Obra de arte, pois, condicionada embora pela própria natureza do material utilizado ou pelo objectivo que se propõe atingir mas nem por isso devendo abdicar dos recursos técnicos e da

70

Page 71: Conteudo Livro FLG CPP

imaginação artística própria do compositor que a ela se entrega – tal se nos deve apresentar um arranjo ou uma harmonização de uma canção folclórica.

Também neste ponto nos não cabe dizer se esse desiderato foi por nós alcançado ou não (estamos em que não, e que apenas conseguimos aqui e ali alguns acertos). Mas caber-nos-á porventura esclarecer que as durezas harmónicas, os choques polifónicos, as complexidades rítmicas (oh! nada disto por aí além insólito ou levado longe de mais), que acaso ouvidos ou sensibilidades mais conservadores, digamos assim, denunciarão no tratamento destes cantos, não são de modo algum produto de gratuitidade mas sim consequência de uma determinada concepção estética que, não obstante as peias já apontadas e deliberadamente aceitas, parte dos dados, das premissas ou das sugestões oferecidas pelo próprio material, original; – concepção que entende ainda não dever declinar de si a responsabilidade de um mínimo de liberdade criadora, de descoberta pessoal, de afirmação artesanal, em suma, sem o que a tarefa não valeria a pena ser tentada, porque não se atingiria o alvo em vista: fazer, não obra de simples enfeite ou pura preservação museológica da canção regional, mas sim, partindo desta, e com mira a magnificá-la, fazer obra de arte – arte menor, possivelmente, mas não arte mínima, isto é, abaixo do que ela, a canção regional, a substância de que é formada e o espírito que a vivifica, podem oferecer.

71

Page 72: Conteudo Livro FLG CPP

REGIÕES Apontamento sobre a canção alentejana Tem de ir ao coração do Alentejo, a Serpa e seu termo, quem quiser conhecer uma das mais

genuínas e curiosas manifestações do génio do nosso povo: as canções corais que os íncolas da região, na sua maioria rudes trabalhadores do campo e pequenos mesteirais, cantam com uma admirável musicalidade nata e a compenetração de quem cumpre um velho ritual.

Cantos do Alentejo Na roda das províncias portuguesas, o Alentejo é acaso aquela de cuja música possuíamos mais

largo e documentado conhecimento. Pelo menos de uma parte ou de um aspecto dela, dessa música: os cantos corais, de que a região do Baixo Alentejo, e mormente as terras definidas pela bacia do Guadiana médio (referindo-nos ao troço português do seu curso), detém certamente o privilégio.

Acerca do canto alentejano A música folclórica do Alentejo, tanto como a do resto do País, é de formação essencialmente

europeia. Porventura ainda mais do que a das restantes províncias, devido à presença, real ou latente, nela de múltiplos vestígios e sobrevivências da arte que constitui o tronco venerável donde partiu a grande cultura musical europeia: o canto da Igreja romana (qualquer que seja a remota ou a imediata origem deste) e, particularmente, o chamado canto gregoriano.

Apontamento sobre a canção popular da Beira Baixa Desejando novamente surpreender ao vivo e integradas no seu meio geográfico e humano

algumas expressões musicais das nossas gentes, que conhecia apenas dos traslados dos compiladores, empreendi uma infelizmente curta digressão pela Beira Baixa, propiamente pelas regiões circunvizinhas de Castelo Branco e do Fundão...

Uma experiência de prospecção folclórica Convicto de há muito de que todo o trabalho de recolha da nossa música popular ou, antes, e

para evitar confusões, da nossa música folclórica (embora a expressão não seja ainda muito própria, convindo talvez substitui-la pela de música rústica) não pode deixar de se apresentar sujeito a caução quando realizado pelo velho método da anotação de ouvido, foi-me possível, por fim, realizar um sonho velho de alguns anos: uma pequena excursão de prospecção. Munido de um aparelho de gravação...

Cantos da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral A música das províncias beirãs é acaso aquela que, dentre as nossas músicas regionais, mais

cedo e com relativa continuidade foi e tem sido objecto da curiosidade de investigadores ou simples colectores. O sinal de partida foi dado pelo erudito Pedro Fernandes Tomás...

Cantos de Trás-os-Montes A música regional da província de Trás-os-Montes era muito mal conhecida até ao presente. As

riquezas que, por escassos indícios, nela se suspeitavam vêem-se agora largamente confirmadas [...]. O falar-se em riquezas não pode antolhar-se um exagero a quem atentar bem nos dois aspectos essenciais das espécies arquivadas nesta colectânea: por um lado, os textos literários, no seu inapreciável valor poético e documental, frisante nos «romances», de que Trás-os-Montes parece ser mina única; por outro lado, as melodias, na preciosa variedade dos seus géneros e expressões.

Cantos do Algarve A província do Algarve era outra das incógnitas maiores da música regional portuguesa. Menos

ainda do que sobre Trás-os-Montes, dela possuíamos informações ou documentos que nos permitissem formar um juízo mais ou menos seguro acerca da musicalidade própria das suas populações –, o que se tornava tanto mais desesperante quanto é certo não escassearem os testemunhos da rica literatura tradicional algarvia: contos, lendas, romances, etc.

Cantos do Minho Apelidámos nós em certa ocasião a canção popular minhota de «lugar-comum da canção

popular portuguesa», coisa que não caiu bem em certos estudiosos do nosso folclore e nos valeu, por tabela, alguns remoques...

Que queríamos nós significar na nossa? Simplesmente que, a julgar pelas espécies mais conhecidas e mais gabadas, a canção minhota, sobre não oferecer características morfológicas e

72

Page 73: Conteudo Livro FLG CPP

expressivas muito de tomar em consideração, constituía ainda por cima disso – ou por causa disso mesmo – o padrão pelo qual se aferia e exalçava a excelência da canção regional portuguesa tomada na sua generalidade, a ela tudo nesta se referindo, tudo se reduzindo.

73

Page 74: Conteudo Livro FLG CPP

20. APONTAMENTO SOBRE A CANÇÃO ALENTEJANA (1946)

Tem de ir ao coração do Alentejo, a Serpa e seu termo, quem quiser conhecer uma das mais

genuínas e curiosas manifestações do génio do nosso povo: as canções corais que os íncolas da região, na sua maioria rudes trabalhadores do campo e pequenos mesteirais, cantam com uma admirável musicalidade nata e a compenetração de quem cumpre um velho ritual.

É vê-los, concentrados e um tanto bisonhos, formar os seus grupos, cerrados uns aos outros, muitas vezes as raparigas os braços nos braços, e, numa cadenciação suave do corpo, como messe de altas espigas tocadas pela brisa, darem início à função. Uma voz entoa a melodia: canta sozinha os primeiros compassos; em geral, outra lhe dá uma como que réplica – e logo as restantes se lhes juntam, numa harmonização instintiva, em que um que outro gostoso arcaísmo lembra a arte medieva do Organum e do Discantus.

Esta gente canta com verdadeira paixão e todas as ocasiões lhe são boas para dar largas ao seu lirismo ingénito. Não há trabalho, folga, festa ou reunião de qualquer espécie sem um rosário infindo de cantigas. A alma do alentejano é profundamente musical e o canto é o elo vital que liga aqueles seres primitivos no sentimento de uma fraternidade de destinos, na afirmação de uma comunidade telúrica. Em qualquer parte o alentejano se reconhece e identifica, reconhecendo e identificando do mesmo passo os seus irmãos em sangue e espírito, mediante o viático das suas canções.

O ar e a paisagem vibram constantemente de melodias. É, porém, no silêncio da noite, da vasta e profunda noite alentejana, que estas ganham toda a sua altura e projecção anímica; e Serpa, na sua quietação, no seu cenário a um tempo humilde e fascinante de velho burgo parado e esquecido, constitui a moldura perfeitamente adequada, a atmosfera própria onde as vozes dos seus noctâmbulos cantadores adquirem o relevo e a ressonância necessários e ideais.

O estudo da canção alentejana está ainda por fazer, tanto por escassez da necessária documentação como por falta de especialistas perfeitamente habilitados que a analisassem no triplo ponto de vista musical, psicológico e sociológico. Não sou eu, longe disso, esse especialista, competindo-me aqui fazer mais uma vez a prevenção de que não sou folclorista, e que apenas afloro de quando em onde os problemas folclóricos em função da minha qualidade de português a quem não podem ser estranhas todas as manifestações da vida e dos sentimentos do povo português, favorecido, neste capítulo específico, pela circunstância de ser músico de profissão.

O que aqui deixo escrito é, pois, como o título o indica, apenas uma breve nota sobre o assunto, na qual haverá porventura erros de interpretação, mas que poderá acaso servir de ponto de partida para trabalho estruturado, como a matéria o merece.

A canção alentejana é, por via de regra, larga, dolente e triste, de uma tristeza nada depressiva, antes nobre e serena, de um colorido sóbrio, de uma linha severa, nisto reflectindo a monotonia grandiosa, hierática e, por assim dizer, ensimesmada da própria planura alentejana. Não é que ela desconheça a alegria ou disposições de ânimo pelo menos sorridentes; mas essa alegria, esse sorriso são temperados não se sabe por que pudor, por que melancolia, que eliminam dela todo e qualquer elemento de exaltação dionisíaca. Talvez isto explique em parte a raridade no Alentejo de canções dançadas, tão abundantes nas outras regiões do País, e que mesmo as que traem evidente proveniência coreográfica adocem a sua vivacidade, percam o seu frenesim rítmico, ao sofrerem o tratamento coral e ao adaptarem-se à taciturna idiossincrasia do alentejano.

Um exame mesmo perfunctório da canção alentejana revela nela duas sedimentações: uma, moderna ou, em todo o caso, relativamente recente (talvez não ultrapassando o século XVIII); outra, antiga, de uma antiguidade que não é fácil determinar, que abrange naturalmente por sua vez diferentes épocas, mas que não será muito aventuroso levar nalguns espécimes até aos tempos medievais.

O primeiro tipo compreende canções de estrutura tonal maior-menor, ritmicamente simétricas, morfologicamente rudimentares, não fugindo nisto à fisionomia da parte mais comum do nosso folclore musical, embora preservadas, nos melhores casos, de contaminações impuras (revisteiras, filarmónicas, operísticas e outras), que banalizam irremediavelmente tantas e tantas das canções portuguesas

74

Page 75: Conteudo Livro FLG CPP

consideradas, em geral, por um lamentável vício de critério estético, como autenticamente representativas da nossa música popular81.

O segundo tipo, embora mais raro, é, sem sombra de dúvida, o que encerra os espécimes mais característicos da canção alentejana, as melodias porventura mais belas de todo o nosso folclore. Na sua generalidade modais, libertas dos estereotipados apoios cadenciais da harmonia funcional e consequente simetria rítmica, a linha melódica apresenta-se com uma grande flexibilidade, largamente elaborada e dotada de acentos que lhe dão uma força de expressão surpreendente. Uma das suas mais singulares feições reside na ornamentação variada (apojecturas, ornatos, grupetos, portamentos), que, sem alterar profundamente a curva melódica, a diversificam e enriquecem ritmicamente e constituem um verdadeiro quebra-cabeças para quem tiver a veleidade de as anotar exactamente. Aliás, esta ornamentação tem carácter nitidamente improvisado e a sua luxuriança e perfeita vocalização são uma das galas dos cantores solistas, que competem entre si e se categorizam segundo este virtuosismo sui generis e altamente apreciado.

Falar das letras (constantemente renovadas) das canções alentejanas constituiria capítulo dificilmente exaustivo, em matéria que dava para suculento e apaixonante livro. Não resisto, porém, à tentação de consignar aqui uma meia dúzia de documentos da riquíssima poética popular alentejana, permitindo-me chamar para eles a atenção dos nossos poetas eruditos, em cata de expressões renovadoras da sua por vezes tão cansada musa.

Primeiro, esta maravilha, tão medularmente portuguesa:

Aqui tens meu coração, se o queres matar, podes... Olha que estás dentro dele: se o matas, também morres.

Que irmão ignorado de Bernardim pôde conceber esta quadra de puro recorte clássico?

Pus-me a chorar saudades ao pé duma fonte, um dia. Mais choravam-(n)os meus olhos que a própria fonte corria.

E que poeta do Cancioneiro de Rezende inventaria mais graciosa expressão do amor palaciano do que esta?

Ó olhos da minha cara,

81 Permita-se-me referir o seguinte caso, que me parece elucidativo. Encontrando-me certa vez em Serpa, foi-

me gentilmente oferecido por um apaixonante serpense, o Sr. João Bentes (irmão do pintor Manuel Bentes, que a minha boa estrela ali me fez encontrar e me andou mostrando os encantadores recantos dessa tão castiça vila alentejana), uma boa porção de exemplares de uma interessantíssima revista de estudos etnográficos, A Tradição, que naquela localidade era editada à roda de novecentos. Percorrendo-os, verifiquei, com alguma surpresa, que as canções alentejanas neles recolhidas ofereciam, de uma maneira geral, muito menos interesse musical do que as que ali me tinha sido dado ouvir ao vivo. Tanto quanto estas se me haviam imposto pela sua riqueza expressiva, pelo seu carácter inconfundível, pela sua integridade, se me afiguraram aquelas anódinas, vulgares, não andando muito longe da modalidade espúria atrás referida, como a dar razão à ainda hoje reinante concepção de um folclore saltitante, garrido, folião e engraçado, de que são protótipo conclamado o Vira e a Caninha verde.

A que será devido o fenómeno? A qualquer acção pedagógica empreendida no sentido de fazer revivescer as melhores tradições do folclore musical alentejano? A um destes golpes de intuição, de clarividência profética, de sentimento do belo e do verdadeiro de que o povo dá por vezes admiráveis provas? A um simples acaso ou conjunção de circunstâncias fortuitas? Não o sei eu dizer, embora muito me interessasse apurá-lo. Mas o que não será difícil concluir é que os folcloristas que colaboraram em A Tradição, ou não conheceram os melhores espécimes da canção alentejana, ou sofreram de um erro de visão, fruto, sem dúvida, do estado primitivo e da concepção simplista que presidia então (e, infelizmente, ainda hoje...) aos estudos folclóricos. [Nota de F. Lopes-Graça.]

75

Page 76: Conteudo Livro FLG CPP

não olhai para ninguém; já que perderam a graça, percam-(n)o olhar também.

E o cinismo, a velar não se sabe que premências de ordem social, contido nestes quatro versos?

Anda cá, amor, que eu inda te aceito. O que os mais não querem é que eu aproveito.

E a ironia sorridente destes dois tercetos?

Olha a noiva se vai linda, no dia do seu noivado. – Também eu queria ser casado.

Ser casado e ter juízo, acho que é bonito estado. – Também eu queria ser casado.

Por último, atentem neste inapreciável quadro de um tão perfeito realismo impressionista:

Eu ouvi, mil vezes ouvi, lá nos campos rufar os tambores. Das janelas me bradam as damas: já lá vêm, já lá vêm meus amores!

Já agora, não deixarei igualmente de fazer notar aos músicos, aos folcloristas e aos amantes das autênticas expressões da arte popular que a audição e o estudo de algumas das canções a que aqui me refiro se encontram facilitados, graças à pequena mas valiosa colecção de discos do Rancho Coral de Serpa, postos no mercado pela firma «His Master’s Voice», feito que se deve à feliz iniciativa do editor Valentim de Carvalho. Gravados in loco, em condições técnicas naturalmente pouco favoráveis, estes discos, além do prazer real que proporcionam, já nos dão, apesar de tudo, uma clara ideia das preciosidades de inspiração musical em que é fértil o Alentejo, província eleita do folclore português, a qual, entretanto, continua esperando, como outras regiões do País, que um trabalho sistemático e esclarecido de exploração e investigação folclórica acabe (ou comece) de a desvendar em toda a sua extensão e profundidade, para formar, com os documentos apurados, a parte porventura mais substancial do por ora incerto e caótico corpus da música popular portuguesa.

21. CANTOS DO ALENTEJO (1965)

Na roda das províncias portuguesas, o Alentejo é acaso aquela de cuja música possuíamos mais

largo e documentado conhecimento. Pelo menos de uma parte ou de um aspecto dela, dessa música: os cantos corais, de que a região do Baixo Alentejo, e mormente as terras definidas pela bacia do Guadiana médio (referindo-nos ao troço português do seu curso), detém certamente o privilégio.

Muito se tem falado destes cantos e, naturalmente, forçoso nos é também algo dizermos a seu respeito. Evitaremos, porém, todos os lugares-comuns sobre eles postos a circular, desde a impropriedade do termo substantivado coral, com que é frequente designá-los, até às expressões de

76

Page 77: Conteudo Livro FLG CPP

uma retórica duvidosa tendentes a exalçá-los, que não raro nos são fornecidos – para não tocarmos já na esquipática teoria do seu «arabismo» primordial...

A verdade é que nem todos estes cantos constituem espécies de um valor ou um interesse etnomusicológico indisputável. Muito de escassamente relevante neles com frequência se nos depara. A tendência para um certo esteriotipismo morfológico e expressivo torna-se aqui e ali evidente – tendência reforçada, se é que não provocada, pela actual e malfadada balda da organização dos cantadores regionais em «ranchos folclóricos» e pelo não menos nefando morbo das competições mais ou menos turísticas entre eles, criadoras de prejuízos e complexos de ordem social e psicológica, de que a música folclórica, como fenómeno estético imediato e gratuito que é, não pode de toda a evidência beneficiar, muito pelo contrário.

Contudo, nas suas espécies mais lídimas, aquelas que se nos revelam imunizadas de influências espúrias e que se inserem, na realidade, num conceito não artificioso do «tradicional», não restam dúvidas de que os cantos corais alentejanos constituem uma das mais assinaláveis expressões do sentir musical da gente portuguesa – na espécie, a gente alentejana, cuja índole a um tempo altaneira, caprichosa e ensimesmada, e cujo estépico habitat eles reflectem de uma maneira inequívoca – do mesmo passo que testemunham de uma formação e de uma vivência estética colectivas, que muito podem prender a atenção da sociologia e da etnomusicologia.

No entanto, a música tradicional do Alentejo (que parece vir confirmar o quase axioma de que a música regional portuguesa tem a sua vera fisionomia no domínio vocal) não se reduz aos cantos corais de que temos vindo a falar. Ela compreende outras espécies, a que porventura se tem prestado menos reparo mas que nem por isso deixam de ser eminentemente reveladoras. Talvez ao invés, encaradas estas espécies de um ponto de vista puramente etnomusicológico e ponderadas as considerações ou as hipóteses a que a seu respeito semelhante ponto de vista nos pode levar. Cantos de trabalho como a Tralhoada (face A, n.o 1), cantos religiosos monódicos como Já lá gritam no Calvário (face A, n.o 6), O vos omnes (face A, n.o 8) ou São João se adormeceu (face A, n.o 2), os preciosos fragmentos do Auto da criação do mundo (face A, n.o 9), por exemplo, em razão das reflexões formuladas nas notícias que se lhes consagram, são indubitavelmente documentos que sobremodo enriquecem e completam o âmbito dimensional mais ou menos consabido da música alentejana, do mesmo modo que ampliam o conhecimento e as noções sobre o corpus da música regional portuguesa que esta antologia gravada tem vindo a proporcionar, não sem certas oposições e mal-entendidos, releve-se-nos o tocar em tal...

Feitas porém estas observações, atinentes a delinear uma perspectivação da música alentejana mais consentânea com a realidade (realidade ainda possivelmente fragmentária), não constituirá acaso grande temeridade o definir o povo alentejano como sendo o mais «musical» da gente portuguesa – entendendo-se por aí a sua natural capacidade para se traduzir e consciencializar em canto, a sua rara espontaneidade mélica, enfim, aquilo a que poderemos chamar a sua temperamental disponibilidade lírica, que o leva a achar boas todas as ocasiões, todas as horas, para dar largas à sua inata musicalidade. E, porventura, mais do que isso: a gravidade que põe no acto de cantar, para ele verdadeiro acto de identificação colectiva, de comunhão espiritual com os do seu sangue e da sua pátria, para onde quer que vá, onde quer que se encontre. Em roda, os olhos cerrados, expressão concentrada do rosto, o mais das vezes ombro a ombro ou braços com braços em ondulada movimentação, assim entoam os ganhões alentejanos os seus cantos. E é como se cumprissem um antigo e necessário ritual.

22. ACERCA DO CANTO ALENTEJANO (1968)

(Pequena palestra)

Foram os senhores convidados a escutar alguns cantos folclóricos de uma das nossas províncias

mais ricas e características neste capítulo: a província do Alentejo, ou seja, a província que se estende

77

Page 78: Conteudo Livro FLG CPP

para lá do rio Tejo, vasto planalto ao sul do País onde predomina a cultura dos cereais, e, sobretudo, da parte mais meridional e interior da mesma província, a que se chama o Baixo Alentejo.

Seria tentador, num congresso de especialistas da cultura árabe, o poder-se assinalar nos cantos de uma região de Portugal por cerca de cinco séculos dominada pelos Árabes, ou gentes da sua etnia, qualquer influência da música de uma civilização que grandemente prezou esta arte e que dela deixou acentuados vestígios na música de outros povos, da própria Europa mesmo – sem ir mais longe, na da nossa vizinha Espanha. Pretendeu-se, é certo, vislumbrar esta influência no canto popular do Alentejo. Deve, contudo, dizer-se que não se tratava de mais do que de teorias românticas, visionárias ou poéticas, como se queira, sem qualquer correspondência com a realidade e que investigação alguma musicológica verdadeiramente consistente veio corroborar, um que outro arabismo fortuito não podendo formar lei nem estruturar teoria. Tanto pior, não decerto para os estudos árabes, que possuem um vasto e fecundo campo de investigação, mas decididamente para os visionários e os fantasistas do folclore...

Na realidade, a música folclórica do Alentejo, tanto como a do resto do País, é de formação essencialmente europeia. Porventura ainda mais do que a das restantes províncias, devido à presença, real ou latente, nela de múltiplos vestígios e sobrevivências da arte que constitui o tronco venerável donde partiu a grande cultura musical europeia: o canto da Igreja romana (qualquer que seja a remota ou a imediata origem deste) e, particularmente, o chamado canto gregoriano. Com efeito, em nenhuma outra música folclórica portuguesa são estas sobrevivências gregorianas tão sensíveis como na música do Alentejo – pelo menos naquelas das suas manifestações que, sob o ponto de vista da etnomusicologia, podemos justamente considerar mais impressivas e significativas, e de que espero podereis ouvir algumas amostras da boca dos cantadores alentejanos que se deslocaram expressamente de Beja para vos regalar.

Digamos algumas palavras sobre o canto alentejano. A primeira particularidade que nele se pode assinalar é o tratar-se de um canto colectivo. Na sua

mais eminente expressão étnica e artística, a música folclórica alentejana é uma música coral, de formulação polifónica (por aqui diverge ela já radicalmente da música árabe), o mais geralmente cantada por indivíduos do sexo masculino, factores que conferem a estes cantos uma expressão de gravidade, até mesmo de grandeza por vezes épica, não obstante o sentimento nostálgico, o lirismo repassadamente «saudoso» de que se acham impregnados.

O mecanismo desta polifonia coral instintiva, simples nos seus lineamentos, é, por via de regra, o seguinte: uma voz solista, o ponto, propõe o canto, não raro de uma certa exuberância melismática; a proposta do ponto, ou solista, é continuada pelo tutti, ao qual outra voz solista, o alto, vem sobrepor-se, formando a sua parte terceiras (ou quintas, nos apoios cadenciais) com o cantus firmus, podendo, no entanto, variá-la à vontade consoante o princípio da improvisação, como acontecia no antigo discantus – e, com efeito, chama-se por vezes no Alentejo descantes a este género de cantos. Trata-se, pois, de uma variedade do antigo gymel, ou canto a duas vozes. Parece que em tempos ainda não muito recuados se praticava uma polifonia a três vozes, assentando ainda nas mesmas bases e possivelmente em estilo de fabordão; mas o certo é que tal polifonia se encontra hoje obliterada.

Eis aqui já um dos traços consoante os quais o canto alentejano denuncia a sua descendência do canto gregoriano nas suas formas já historicamente evoluídas, ou, então, com algo que constitui um dos possíveis fundamentos destas formas e que poderiam muito bem preexistir-lhes – a questão ainda se não acha perfeitamente dilucidada em musicologia. Contudo, outros traços de familiaridade podem ser assinalados, quer pelo que respeita à tonalidade, quer pelo que se refere ao ritmo, em numerosos casos de uma grande liberdade e de uma grande flexibilidade prosódica, tal como sucedia no cantochão. Eu não desejo alongar esta introdução à música folclórica da província do Alentejo, e desejo, sobretudo, evitar o perigo de cair em considerações demasiado técnicas ou especializadas. Os senhores não vieram a Portugal para um congresso de musicologia ou de etnomusicologia, e esta sessão não é mais do que uma diversão, um hors-d’oeuvre – que, em todo o caso, espero seja agradável e até certo ponto

78

Page 79: Conteudo Livro FLG CPP

instrutivo – nos vossos trabalhos. Seja-me todavia permitido, para terminar, acrescentar duas ou três reflexões de ordem primeiro que tudo pessoal, a fim de, em vossa intenção, tentar situar melhor estes cantos na sua ambiência humana e no seu contexto mesológico e psicológico, para assim me exprimir.

O canto alentejano reflecte incontestavelmente o génio a um tempo altaneiro, caprichoso e, digamos, introvertido das populações que habitam o planalto, do mesmo modo que o seu habitat, que não deixa de se assemelhar a uma vasta e simultaneamente severa estepe. Testemunha ele uma vivência estética colectiva, que pode atrair a atenção tanto do sociólogo como do musicólogo. Já o escrevi, e permita-se-me que o repita aqui:

Em meu parecer, o povo alentejano é o mais «musical» da gente portuguesa, entendendo-se por ai a sua disposição ou a sua capacidade natural para se traduzir e consciencializar em canto, a sua rara espontaneidade mélica, enfim, aquilo a que poderemos chamar a sua temperamental disponibilidade lírica, que o leva a achar boas todas as ocasiões, todos os pretextos, para dar largas à sua inata musicalidade. E, porventura, mais do que isso: a gravidade que põe no acto de cantar, para ele verdadeiro acto de identificação colectiva, de comunhão espiritual com os do seu sangue e da sua pátria, para onde quer que vá, onde quer que se encontre. Em roda, os olhos cerrados, expressão concentrada do rosto, o mais das vezes ombro a ombro ou braços com braços em ondulada movimentação, assim entoam os ganhões alentejanos os seus cantos. E é como se cumprissem um antigo e necessário ritual. E agora têm a palavra – a palavra cantada, decerto mais aliciante do que a palavra falada – os

amigos do grupo coral Capricho Bejense. 23. APONTAMENTO SOBRE A CANÇÃO POPULAR DA BEIRA BAIXA (1947)

Seria na realidade motivo para formarmos um fraco conceito das capacidades artísticas do povo

português se tomássemos como índice da sua musicalidade as canções que, com raras e louváveis excepções, os nossos folcloristas vêm recolhendo e dando à estampa de há uma meia dúzia de lustros a esta parte.

Naturalmente que no folclore de todos os povos se encontram espécies musicais de valor muito desigual, umas de alto interesse artístico, outras de nível médio e uma boa percentagem de canções totalmente destituídas de qualquer significação, sem falar já dos produtos espúrios, fruto de influências e cruzamentos de proveniência duvidosa. Mas, justamente, a grande tarefa de todos aqueles investigadores que acerca do problema do folclore possuem noções seguras tem sido a de fazer a destrinça do que na música popular dos seus respectivos países pode interessar como profundamente representativo da fisionomia artística da colectividade, das suas capacidades de criação, da sua psique, enfim.

Na verdade, toda a ciência do folclore – no que esta tem de metódica investigação e de esclarecedora formulação de hipóteses e leis acerca da génese, comportamento e valor da música popular – será completamente vã, se não partir do princípio que os produtos folclóricos são efectivamente produtos de arte: de uma arte sui generis, é certo, de uma arte ingénua e primitiva, como é costume considerá-la, mas arte, em todo o caso, isto é, manifestação sensível do Belo. Nesta ordem de ideias, é óbvio que a ciência do folclore, particularmente no capítulo que nos interessa, o da música, tem de ser encarada, antes de mais nada, como um aspecto particular da estética musical, evitando-se assim muitos mal-entendidos e diminuindo-se as probabilidades de intromissões indevidas numa matéria em que a inteligência observadora, os conhecimentos eruditos e a intuição artística devem entrar em partes iguais.

O encarar-se o folclore do duplo ponto de vista científico e estético é o que distingue, pois, o verdadeiro folclorista do simples coleccionador de melodias populares. Ora, sem melindre para ninguém, e ressalvando ainda as meritórias excepções, pode afirmar-se que a tarefa de recolher e

79

Page 80: Conteudo Livro FLG CPP

estudar a nossa música popular82 tem sido praticada sobretudo por estes, pelos coleccionadores – pessoas cujo afã, boa-vontade e sacrifícios nem sempre suprem nelas a carência de visão do problema e de intuição artística, necessárias, uma e outra, para cavarem fundo no chão ainda quase completamente virgem da música nacional e dele extraírem o que ele certamente não pode deixar de guardar como eminentemente representativo do génio artístico da grei, mais rico, mais profundo e, digamos, mais «humano» do que no-lo dão a perceber a generalidade das recolhas feitas.

Estas considerações, porventura sujeitas a correcção, dada a incerteza do terreno que se pisa, são-me sugeridas por uma instrutiva experiência que acabo de fazer.

Frequentes vezes tenho tido a ocasião de afirmar que não sou folclorista e que, se a nossa música popular me interessa – e sem dúvida interessa –, é, em primeiro lugar, como artista que procura uma identificação da sua arte com a realidade íntima do povo, e na medida ainda em que tal música é susceptível de fornecer elementos necessários à construção de uma arte nacional individualizada no estilo e conteúdo.

Já doutra ocasião, um contacto directo, embora breve, com a canção alentejana, num dos seus mais característicos focos, o de Serpa, constituiu para mim uma experiência valiosa, de que tive oportunidade de dar notícia. Desejando novamente surpreender ao vivo e integradas no seu meio geográfico e humano algumas expressões musicais das nossas gentes, que conhecia apenas dos traslados dos compiladores, empreendi uma infelizmente curta digressão pela Beira Baixa, propiamente pelas regiões circunvizinhas de Castelo Branco e do Fundão, que constituem, no parecer de alguns estudiosos do nosso folclore (Rodney Gallop e António Joyce, por exemplo), dois dos mais ricos e característicos depósitos da canção popular portuguesa.

Tanto quanto o conhecimento imperfeito e parcelar que tenho da nossa música popular me autoriza a pronunciar-me nessa matéria, afigura-se-me ser aquele modo de ver perfeitamente justo, mas estarem os resultados obtidos na exploração daquelas regiões ainda longe de revelar todos os aspectos, e, muito menos os mais significativos, da sua abrangente e variada flora musical.

Os lugares que me foi dado visitar – Monsanto, Malpica, Paul, Silvares, Donas – oferecem, com efeito, matéria vasta aos investigadores do folclore, e creio bem que abririam perspectivas imprevistas nas concepções dominantes acerca da nossa música popular, quando explorados a fundo, com o tacto, a persistência e os meios técnicos indispensáveis num trabalho que requer tanto clarividência como completa ausência de prejuízos estéticos.

Preciso explicar-me sobre este último ponto. Eu creio que muitos dos nossos folcloristas, ou simples curiosos da arte popular, estão viciados

por uma noção errada da fisionomia própria ou, pelo menos, do aspecto mais inapreciável da canção popular portuguesa. Essa noção é a que lhes faz ter como eminentemente típicas aquelas canções de contornos melódicos simples, de ritmos regulares e mais ou menos enformados pela dança, de um diatonismo elementar, de um maior-menor básico ou, quando muito, aqui e ali matizado de modalismo, aquelas canções, enfim, ora saltitantes e levemente maliciosas, ora de um lirismo amoroso ingénuo e docemente sentimental, que ultimamente têm alimentado o repertório das nossas vedetas e orquestras da rádio, em aproveitamentos e arranjos de gosto muito duvidoso, mas que nem por isso deixam de se inculcar como de inspiração «muito portuguesa»...

Ora, essa errónea concepção da nossa música popular exclui, a priori, manifestações de uma arte que se afigura a esses folcloristas e curiosos tosca, bárbara e primitiva, mas que é justamente a que revela, a quem sabe compreendê-la, as verdadeiras virtualidades estéticas do povo português. E o que é 82 É claro que quando falo em música popular me refiro à música rústica, à música anónima cantada e dançada pela gente dos nossos campos e aldeias, e não aos produtos comercialistas da revista ou do cinema da capital, cuja popularidade é puramente artificiosa e, por falta de vitalidade, não consegue resistir ao tempo. Por isso, não deve assustar sobremodo a relativa voga que semelhantes importações adquirem ainda assim fora dos centros urbanos. Contarei, a este respeito, o seguinte caso elucidativo. Notando eu o favor de que estavam gozando umas famosas «Marchas» de recente e jubilatória fabricação entre certas populações rurais que visitei, chamei a atenção de duas ou três pessoas do sítio para o facto, estranhando-lhes que havendo ali canções tão belas e genuínas se dessem a cantar aquelas insonsas e incaracterísticas banalidades. «Não tenha receio, me foi respondido, isto é engodo passageiro. Daqui a alguns meses já ninguém se lembra destas “Marchas”, como sucede sempre com as canções que não são daqui.» [Nota de F. Lopes-Graça.]

80

Page 81: Conteudo Livro FLG CPP

curioso de notar é que as próprias populações desses lugares têm disso, da autenticidade profunda e radical dessas canções, uma consciência perfeita. Não foi raro observar eu que os cantadores de Monsanto, do Paul ou das Donas repudiavam ou menosprezavam, como não correspondendo ao seu íntimo sentir, esta ou aquela canção mais fácil e correntia, para lhes preferir, com evidente satisfação quando percebiam a mesma preferência por parte das suas visitas, aquelas outras que estavam longe das fórmulas simplistas e de responderem aos conceitos esterotipados da música folclórica.

É certo que a captação e fixação pela escrita de muitas dessas canções não é tarefa fácil, e que algumas delas parecem mesmo, à primeira vista, furtar-se a qualquer tentativa de notação rigorosa. Estão neste caso, por exemplo, certas canções de Malpica, com as suas entoações microcromáticas, ou certas outras das Donas, com a sua luxuriança de vocalizações. E que apurada retentiva não será preciso para fixar e transmitir ao papel um espécime preciosíssimo, como é a Canção da roda, do Paul, na sua impressionante e quase onomatopaica polifonia?

Duas influências ancestrais parecem predominar nos mais curiosos tipos melódicos que por estas paragens se topam: a influência árabe e a influência gregoriana, frisantes, a primeira, na bela cantiga do S. João, de Malpica, por exemplo, e, a segunda, na admirável canção da Paixão, das Donas, entre outras. (É curioso observar que a influência espanhola é a bem dizer quase inexistente, ao contrário do que se tem pretendido). Pode ser, aliás, que tais influências sejam apenas um modo nosso de referenciação ou identificação histórica, mas não há dúvida que constituiria trabalho de grande alcance o estudo sintáctico e comparativo destas canções, com o fim de lhes determinar o grau de originalidade ou a sua possível dependência ou filiação em modos arcaicos ou exóticos. António Joyce já chamou a atenção para os raros e preciosos «lídios» e «mixolídios» em que se vasam algumas das mais puras melodias de Monsanto e do Paul. No entanto, eu tenho a impressão de que, neste campo, muito ainda há que investigar e que um estudo cuidadoso do modalismo da canção beirã seria uma fonte inesgotável de surpresas. Assim, e para só citar dois exemplos já apontados por Joyce, em que modos filiar propriamente a curiosíssima Divina Santa Cruz, de Monsanto, ou a estranha Canção da roda, do Paul, com o seu âmbito hexacórdico, os seus intervalos de sabor oriental, a sua tonalidade incerta? E quantas outras canções a furtarem-se às nossas tradicionais concepções acerca de modalismos e tonalidades!

Outro problema curioso a encarar seria o da autoctoneidade local das canções. Não obstante o facto de algumas delas, como a Senhora da Póvoa, a Senhora Santa Luzia, o Lavrador da Arada, a Canção das sachas ou a Canção da azeitona, serem – por vezes, é certo, com notáveis variantes – comuns a toda a região, a verdade é que cada terra possui o seu repertório e o seu estilo próprios, e que o folclore musical de Monsanto diverge notoriamente do do Paul, como deste se apresenta com características bem diferentes do de Malpica, o qual, por sua vez, pouco tem de comum com o das Donas. Pode quase afirmar-se que estes diferentes folclores constituem compartimentos estanques, o que é sem dúvida um fenómeno digno de atenção, dada a relativa proximidade destes povos.

Assim, em Monsanto, as melodias são, por via de regra, de tonalidades claras e francas, de contornos nítidos, predominantemente diatónicas, pouco ou nada ornamentadas, e cantam-se na generalidade a uma voz com acompanhamento de adufe.

Se passarmos a Malpica, o estilo das canções apresenta-se-nos com um carácter mais primitivo, de tonalidades mais incertas, a linha melódica mais vocalizada e com insistentes inflexões cromáticas; cantam-se ainda a uma voz, mas ao acompanhamento surdo dos adufes vem juntar-se o timbre penetrante e brônzeo dos almofarizes, instrumento verdadeiramente exótico que não vi empregado em mais parte alguma.

A paisagem muda completamente no Paul. Aqui só raramente se emprega o adufe. As canções são mais lentas, a expressão mais concentrada, o estilo ornamentado sem exuberância, mas já se canta a várias vozes e com perfeita afinação.

Em Silvares predominam as tonalidades alegres e os ritmos de dança. A linha melódica é simples, nua, salvo numa que noutra canção de romaria, como essa preciosa Santa Luzia, de um estranho melodismo oriental, sublinhado pelo troar dos enormes bombos, percutidos com uma verdadeira fúria,

81

Page 82: Conteudo Livro FLG CPP

a ponto de as mãos dos tocadores ficarem dervichicamente sangrando, e tendo por complementos obrigatórios os tambores e o pífaro.

Com o paganismo álacre de Silvares apresentam as Donas um contraste absoluto. Tudo aqui é ascético e de certo modo dramático. As canções apresentam uma linha barroca, devido à abundância de melismas. A polifonia é mais evolucionada e qualquer espécie de acompanhamento se acha banida.

Ainda neste aspecto é curiosa a consciência que estes diferentes povos mostram das canções que lhe são próprias, que são quase, pode dizer-se, pertença exclusiva sua, a pontos de se acusarem frequentemente de latrocínio uns aos outros.

A que é devida tal diversidade e particularismo? Não será, certamente, a puros motivos de ordem estética. Compete ao folclorista, de mão dada com o sociólogo, investigá-lo. Como não sou nem uma coisa nem outra, limito-me a registar o facto, sem procurar-lhe uma explicação causal.

Falar do interesse propriamente dito musical das canções ouvidas, isso é que já está ao meu alcance. Direi, a este respeito, que me foi dado escutar canções de uma beleza verdadeiramente surpreendente e que me parece poderem sofrer cotejo com os melhores espécimes do folclore russo, húngaro ou espanhol, considerados, em geral, como os mais característicos da Europa.

Canções de trabalho como a já citada Canção da roda, do Paul, a Ceifa ou a Canção da vindima, de Monsanto, a Cantiga das regas ou a Descamisada, das Donas, a Sacha do milho ou a Canção da azeitona, de Silvares; canções religiosas, como o extraordinário Menino Jesus, do Paul, a Encomendação das almas, das Donas, ou a de Monsanto, os Benditos, frequentes em diversos pontos; canções de romaria, como a Senhora das Neves ou o S. João, de Malpica, a Senhora das Dores, do Paul, a citada Senhora Santa Luzia, de Silvares; canções embalo, como a formosíssima Canção de berço, de Monsanto, ou as de Silvares; romances como o precioso Lavrador da Arada, de Monsanto, ou na versão de Malpica, que, quanto a mim, suplanta aquela; a Pastorinha, ainda de Monsanto, a Silvaninha, de Malpica – que inapreciável riqueza, que valiosos testemunhos das capacidades musicais do nosso povo, que inesgotável filão para os estudiosos do folclore! E que abundância de sugestões, que possibilidades de transmutação para o plano superior da música culta não jazem latentes nesta música, que só espera o músico de génio – o nosso Bartók ou o nosso Falla – que dela saiba extrair uma arte à nossa medida e à medida universal!

Não tendo empreendido propriamente uma viagem de exploração folclórica, não pude recolher, nem era essa a minha intenção, nenhum destes belos espécimes da canção beirã83. Embora alguns deles já se achem recolhidos e publicados aqui e ali por estudiosos como Joyce, Sales Viana, e J. Diogo Correia, o que urgia de toda a evidência era organizar um corpo de toda esta música, em versões o mais fiéis possível, para o que naturalmente não basta a simples e sempre contingente anotação de ouvido, há muito abandonada pelo folclorismo científico, tornando-se necessária a sua fixação por meio do disco, sobre o qual os eruditos poderão então fazer à vontade os seus estudos.

É claro que, devido a factores inelutáveis – o cosmopolitismo crescente, a facilidade de comunicações, a influência da rádio –, muitas destas canções vão desaparecendo, e só por sorte e a poder de alguma insistência se pode encontrar uma ou outra pessoa já entrada em anos que as recordam ainda. É isso certamente coisa para deplorar, pois que a maior parte das canções modernas que vão substituindo aquelas estão longe de possuir idêntico valor. No entanto, se é humanamente impossível lutar contra um fenómeno que está na ordem natural das coisas, não é, por outro lado, inviável, nem contraditório com as ideias de evolução e progresso, proceder-se à recolha e estudo deste património artístico, não só com o fim de conhecer melhor a índole do nosso povo, como para alcançar fins práticos, quais sejam os de fornecer estímulo e inspiração tanto aos nossos compositores de música culta, como aos de música popular, sem falar de uma desejável, mas sem dúvida delicada efectivação, reactivação das artes populares, mediante uma campanha de valorização do folclore, encarado na sua função estética e social, que não no seu aspecto meramente pitoresco e turístico.

83 Salvo a Canção das sachas, ouvida no Fundão e que figura como n.o 7 [sem correspondente na presente Antologia] na Antologia [A Canção Popular Portuguesa, 1.a ed.]. [Nota de F. Lopes-Graça – adaptada].

82

Page 83: Conteudo Livro FLG CPP

24. UMA EXPERIÊNCIA DE PROSPECÇÃO FOLCLÓRICA (1953)

Convicto de há muito de que todo o trabalho de recolha da nossa música popular ou, antes, e para

evitar confusões, da nossa música folclórica (embora a expressão não seja ainda muito própria, convindo talvez substituí-la pela de música rústica) não pode deixar de se apresentar sujeito a caução quando realizado pelo velho método da anotação de ouvido, foi-me possível, por fim, realizar um sonho velho de alguns anos: uma pequena excursão de prospecção. Munido de um aparelho de gravação cedido pela gentileza de um amigo.

Iniciado no essencial do seu mecanismo, botei-me ao caminho, escolhendo para teatro de operações três localidades da Beira Baixa, região privilegiada nesta matéria. Foram elas: S. Miguel de Acha, aldeia situada a norte de Castelo Branco, nas proximidades de Idanha-a-Nova, cujo interesse folclórico me havia sido assinalado por um jovem amigo natural dali; Donas, sítio co-vizinho do Fundão; e o Paul, a trinta e tal quilómetros desta vila, já metido na Estrela, terras que, numa primeira visita, há-de haver uns sete anos, me haviam surpreendido pela riqueza das suas canções polifónicas.

Não posso deixar de confessar que esta experiência se me revelou razoavelmente fecunda em ensinamentos; quanto aos resultados, sem ter a pretensão de os considerar definitivos em matéria tão complexa e de que de modo nenhum sou especialista, ouso dizer que se me antolham preciosos, tendo eu regressado com um pequeno pecúlio de canções saborosíssimas, umas, outras de uma profundidade de expressão rara, todas oferecendo mais ou menos, por este ou aquele aspecto, matéria de meditação aos estudiosos do assunto.

S. Miguel de Acha não desmentiu as informações, algumas até já documentadas, que me haviam sido comunicadas. É na verdade um jazigo folclórico de grande interesse que merecia ser explorado mais funda e metodicamente. Fértil em música popular religiosa, bastariam duas preciosidades ali recolhidas: a impressionante Encomendação das almas e os verdadeiramente surpreendentes Martírios, ambas entoadas monodicamente só por mulheres (e isto sem esquecer outras canções valiosas: o Bendito chamado «das trovoadas», entoado antifonicamente por homens e mulheres, e a Senhora Santa Cat’rina, com acompanhamento de adufes), bastariam aquelas duas preciosidades, digo, para justificarem plenamente a não muito cómoda viagem e me fazerem esquecer o calor abrasador das jornadas em S. Miguel.

Nas Donas e no Paul, verdadeiro ou imaginado, senti um pequeno desencanto. Sem terem decaído no seu invulgar interesse musical, afigurou-se-me porém que, nos sete anos decorridos entre a minha primeira e segunda visitas, algo se haveria passado (o próprio desgaste do tempo? Qualquer influência estranha? Alterações sociais locais?) que tinha feito perder às suas canções um pouco da sua força primitiva, da sua espontaneidade, da sua riqueza polifónica. Era certamente um quase nada, mas, repito, impressão verdadeira ou imaginada, foi para mim o bastante para me levar a deplorar o facto de não se haver procedido ainda, com rigor sistemático, à exploração e compendiação da nossa música rústica.

No entanto, que enorme satisfação a minha em poder desta feita trazer comigo, gravadas na milagrosa fitinha magnética, algumas das tão características expressões musicais daquelas gentes! Do Paul, lá vêm, entre outras, a bela Senhora das Dores e o belo Menino Jesus, a angustiante Canção da roda, a dolente Canção da azeitona, o gracioso Coletinho, uma imponente Encomendação das almas, cantada antifonicamente. Nas Donas, por motivos de ordem técnica, a colheita não pôde ser muito abundante, com bastante mágoa minha, pois que a música e o estilo de cantar daquele povo é do que de mais inapreciável se me tem deparado. Apenas quatro canções: uma Encomendação das almas, a Sacha do milho, a Colha da azeitona e a Senhora do Souto, mas estas de uma extraordinária intensidade de expressão, de uma altura e de uma gravidade aliadas a uma qualidade, a uma plasticidade na execução verdadeiramente singulares.

Permitam-se-me algumas observações a respeito do processo da recolha mecânica.

83

Page 84: Conteudo Livro FLG CPP

Naturalmente que a utilização de um aparelho gravador supõe, da parte do prospector folclórico, uma técnica e um método de trabalho específicos, não propriamente no que se refere ao manejo da máquina, que é coisa meramente exterior, mas no que concerne à observação das condições ambientes, ao tacto psicológico imposto pelo material com que tem de se lidar, o homem rústico, com o seu comportamento e as suas reacções características. Não sendo folclorista, parti para a aventura desprovido de tal técnica, de tais métodos de trabalho, fiado apenas num certo instinto, numa certa capacidade nata para tirar algum partido das circunstâncias. Não é porém de aconselhar semelhante atitude a quem queira fazer verdadeira investigação folclórica e pretenda obter neste capítulo resultados positivos.

Direi, contudo, que um dos óbices por mim previstos, a desconfiança, a prevenção dos cantores rústicos a respeito da máquina, se não verificou em parte nenhuma. Pelo contrário: a perspectiva de cantarem diante do microfone parece até tê-los de certo modo entusiasmado e estimulado. A misteriosa maquineta já não era encarada com um produto de malas-artes diabólicas. Não posso deixar de atribuir o facto à relativa familiaridade que as nossas populações rústicas já têm com a rádio; é sintomático o haverem sempre imaginado que lhes estava registando as canções para depois serem transmitidas pela Emissora... Isto, que por um lado tem o seu inegável interesse sociológico, tem sob o ponto de vista folclórico, evidentes contras, a que o folclorista deve atender na sua tarefa de investigação e recolha. E aqui não posso deixar de os pôr de sobreaviso a respeito dos chamados «Ranchos Folclóricos» que entre nós há uns tempos se desenvolveram abundantemente, congregações artificiais e artificiosas de cantores e dançadores populares, cultivando um folclorismo de contrafacção, inimigo do verdadeiro e espontâneo folclore, como me foi dado verificar, por exemplo, no Souto da Casa, outra das localidades perto do Fundão que visitei. Contra o que me havia sido anunciado e contra o que, de certo modo, me era lícito esperar, as canções aqui ouvidas revelaram-se-me absolutamente incaracterísticas, daquela modalidade puladinha e arrebicada a que, dada a sua generalização e a corrente apreciação como padrão e matriz da nossa música popular, tive já ocasião de chamar lugar-comum do nosso folclore. Vim a saber que existia, ou existira ali ainda recentemente, um dos tais ranchos, por sinal triunfante numa competição folclórica em Castelo Branco – e tudo se me tornou claro...

Creio que um dos principais, se não o principal problema, a principal dificuldade que se apresenta ao colector da música folclórica, e mormente àquele que pretende gravá-la, é surpreender esta ao vivo, isto é, integrada funcionalmente nas actividades ou momentos que a exprimem ou lhe são pretexto: as canções de trabalho durante as fainas agrícolas ou quejandas, as canções religiosas nos actos do culto, as canções de embalar junto do berço, as canções de romaria nos locais de peregrinação ou a caminho destes, etc. Para fazer a recolha, há que convocar os cantadores (coisa nem sempre cómoda), reuni-los em qualquer local e levá-los a cantar sob determinado pretexto, fora portanto do seu ambiente e das suas solicitações naturais. Procede-se deste modo, e, por assim dizer, a uma operação laboratorial, agravada pela impossibilidade de renovar à nossa vontade as observações e de introduzir nelas os necessários índices de correcção. O que se obtém não pode deixar de ser considerado um produto transposto ou derivado, fatalmente maculado de certa artificialidade.

Um exemplo típico dos inconvenientes desta desintegração foi-me fornecido pela recolha da tão dramática Procissão dos penitentes, do Paul. A cerimónia realiza-se tradicionalmente em Sexta-Feira de Paixão; o canto fúnebre, entoado apenas por homens, é sublinhado pelos ruídos da flagelação dos penitentes e pelo das cadeias que arrastam nos pés. No «laboratório» tiveram estes ruídos de ser inventados, «fabricados» artificialmente, o que, além de desnaturar o complexo melodia-ruído, que, sob o ponto de vista documental, importaria captar, foi de molde a despertar nos «flagelados» um sentimento caricatural, que levou por vezes à hilariedade, frustrando-se portanto desta forma a seriedade do acto e, consequentemente, a fidelidade da recolha.

Outro percalço ainda, sucedido no Paul: as curiosas Janeiras que ali se cantam são acompanhadas de adufes, pandeiretas e campainhas. Como fosse impossível encontrar estas de momento, tiveram de

84

Page 85: Conteudo Livro FLG CPP

ser substituídas por garfos e facas chocalhando no gargalo de garrafas, o que evidentemente falseou a sonoridade instrumental.

Já agora observarei que, em matéria de música instrumental, nada me foi dado topar por estes povos, fora dos acompanhamentos rítmicos das canções pelos instrumentos já referidos. (Nas Donas, contudo, este costume parece que é desconhecido, preferindo-se ali as manifestações do canto puro.)

Em S. Miguel de Acha falaram-me de um pastor, exímio tocador de frauta, mas não foi possível havê-lo à mão. Seria uma manifestação de música instrumental pura curiosa de registar, tanto mais quanto, na verdade, a música instrumental, por menos imediata do que a música vocal ou, em geral, associada sobretudo à dança, mais dificilmente e mais contingentemente pode encontrar momento para se nos revelar.

A transcrição destas melodias nem sempre é tarefa cómoda. Muitas das particularidades do seu estilo, como certas acentuações, certas inflexões da voz, com os seus ataques e portamentos característicos, são de difícil notação. O ritmo pode constituir, por vezes, um verdadeiro problema. Duas das canções que a seguir apresentamos são disso um exemplo flagrante: a Encomendação das almas e os Martírios de S. Miguel de Acha que, na sua grande liberdade, na complexidade dos seus melismas, na sua flutuação métrica, no seu rubato, frustram o rigor geométrico do nosso solfejo tradicional. A nossa transcrição não pode ser considerada senão como uma aproximação e, mesmo assim, deu-nos penas infinitas. Quanto às canções polifónicas do Paul e das Donas, já porque materialmente não seria possível transcrevê-las aqui na íntegra, já porque, confessamo-lo, não nos achamos habilitados para o fazer (talvez que com bastante tempo ao nosso dispor pudéssemos chegar a algum resultado), temos que nos contentar em dar delas apenas a melodia, de resto tão expressiva só por si.

Como complemento, consignamos, além da que ficou registada, algumas das letras mais curiosas que com elas é costume cantar.

25. CANTOS DA BEIRA ALTA, BEIRA BAIXA E BEIRA LITORAL (1970)

A música das províncias beirãs é acaso aquela que, dentre as nossas músicas regionais, mais cedo

e com relativa continuidade foi e tem sido objecto da curiosidade de investigadores ou simples colectores. O sinal de partida foi dado pelo erudito Pedro Fernandes Tomás (não especificadamente músico) quando, em 1896, publicou as suas Canções Populares da Beira, prefaciadas pelo ilustre Leite de Vasconcelos (também nada familiarizado com as disciplinas propriamente musicais). A partir de então, as compendiações escritas dessa música constituem um pequeno corpo de publicações de valor certamente desigual mas que, não obstante, colocaram a música beirã (e mormente a da Beira Baixa, que, neste capítulo, devemos considerar levar a palma às suas irmãs) numa situação de privilégio em relação às outras províncias portuguesas, pelo que se refere à sua divulgação no público e, digamos, ao seu «aproveitamento» por parte dos próprios músicos, profissionais ou amadores.

No entanto, todas estas publicações, irregulares já de si (com uma que outra excepção relevante) nos critérios propriamente etnomusicológicos que as informavam, pecavam ainda por uma deficiência fundamental: a de nos oferecerem uma imagem unilateral da música beirã, reduzida ao monodismo, quando o que faz o interesse e o valor mais inapreciável desta é sem dúvida a sua a bem dizer predominante estruturação polifónica.

Sem desconhecermos trabalho já anteriormente feito, mas pouco acessível, no campo da fixação por meio de gravação da fisionomia própria da música beirã (referimo-nos aos discos realizados por Artur Santos por incumbência da BBC de Londres), cremos que o presente volume da Antologia da Música Regional Portuguesa vem trazer um contributo essencial ao conhecimento e estudo de uma música que se revela possivelmente como a mais rica, quanto a aspectos, e no plano morfológico e estilístico, entre as nossas músicas folclóricas.

85

Page 86: Conteudo Livro FLG CPP

Talvez em nenhuma outra região portuguesa como nas Beiras (com alguma reserva para a Beira Litoral e certas zonas da Beira Alta – e se é que é cientificamente legítimo operar dicotomias em províncias que, geográfica e etnograficamente, se interpenetram), se nos depare uma tal variedade, uma tal sobreposição de estratos de música folclórica, o «primitivo» vizinhando o «evolucionado», o «antigo» a par do «moderno». Claro que «primitivo» e «evolucionado», «antigo» e «moderno» são aqui conceitos puramente relativos e sem significação imediatamente valorativa: nem o «primitivo» ou o «antigo» são sinónimo de rudimentar, inferior, nem o «evolucionado» e «moderno» implicam polimento, superioridade.

Não há dúvida porém que, debaixo de um ponto de vista prioritariamente etnomusicológico, as espécies «primitivas» ou «arcaicas» (o que talvez se possa classificar de «estilos antigos» da música beirã) no disco reunidos – citemos, por exemplo, além das várias cantigas de romaria, os Martírios e a Cantiga da azeitona, respectivamente n.o 2 e n.o 3 da face A, a Cantiga da ceifa, o Olé, ó senhora mãe e o canto de Aleluia, n.os 4, 7 e 11 da face B – não há dúvida que tais espécies oferecem propostas de vária ordem, que fazem delas, para além da sua beleza própria, documentos de raro interesse, certamente destinados a enriquecer os aliciantes horizontes da musicologia comparada.

26. CANTOS DE TRÁS-OS-MONTES (1960)

A música regional da província de Trás-os-Montes era muito mal conhecida até ao presente. As

riquezas que, por escassos indícios, nela se suspeitavam vêem-se agora largamente confirmadas neste disco, a essa música inteiramente consagrada, embora, forçosamente, longe de lhe esgotar todas as suas modalidades. O falar-se em riquezas não pode antolhar-se um exagero a quem atentar bem nos dois aspectos essenciais das espécies arquivadas nesta colectânea: por um lado, os textos literários, no seu inapreciável valor poético e documental, frisante nos «romances», de que Trás-os-Montes parece ser mina única; por outro lado, as melodias, na preciosa variedade dos seus géneros e expressões. E isto sem esquecer a música instrumental, essas tão saborosas danças, nomeadamente as dos pauliteiros, com os seus verdadeiros virtuosos da gaita-de-foles – embora pareça tornar-se evidente ser propriamente no domínio vocal que a música regional de Trás-os-Montes alcança a sua maior significação, podendo-se talvez desde agora afirmar que os cantos transmontanos constituem uma das mais profundas e originais expressões da música regional portuguesa.

Nós não iremos, nesta breve notícia, embrenhar-nos em considerações acerca da filiação ou influências, remotas ou próximas, desses cantos –, problema (se de problema se trata) capaz de fazer perder a cabeça a qualquer, e nomeadamente a etnomusicólogos e arqueólogos, sem que, por via de regra, a nenhuma conclusão se chegue ou sem que nos não vejamos arrastados num puro ciclo vicioso. Mas não há dúvida que, em múltiplas das suas feições, a música regional de Trás-os-Montes levanta perplexidades e interrogações que hão-de certamente apaixonar os estudiosos do folclore comparado. É possível que estes vislumbrem nela ecos ou reminiscências de expressões ou formas musicais pretéritas, medievalismos, exotismos, a Igreja, a Sinagoga, os Gregos, os Árabes, tudo o que forma, ou se supõe formar, o protoplasma do homem português e da sua cultura. Não o discutamos. Para nós, e para quantos possam sentir a força e a beleza seivosa desta música, bastar-nos-á descobrir ou testemu-nhar o «facto» dessa força e dessa beleza.

A música folclórica é – e a de Trás-os-Montes é de uma maneira singular, inconfundível, que se faz evidência e presença. Ela situa-se e situa-nos. Situa-se num determinado ambiente geográfico e social, com que parece formar corpo, ou de que parece ser emanação directa. E situa-nos a nós numa vivência, que se nos impõe pelo que nos comunica como sentimento de uma autenticidade.

Note-se a extrema severidade desta música, destes cantos, o seu carácter despido de todo e qualquer sentimento ou preocupação de «agradabilidade», o seu «desenfeitamento», a sua cor terrosa, o que tão bem vai com uma paisagem de linhas e volumes duros, ensimesmados, com o génio rude, inteiro, da gente transmontana e o patriarcalismo dos seus costumes. No seu lirismo sóbrio e

86

Page 87: Conteudo Livro FLG CPP

penetrante, Manhaninha de S. João, Valdevinos, Malva, malveta, o Perdigão, o Bendito, e outros cantos repassados de vozes ancestrais, são ou não uma «presença» do homem, do homem transmontano, parcela do homem universal nos seus momentos de funda identificação com o espírito da Terra e das Horas?

A província de Trás-os-Montes apresenta-nos sem dúvida um dos mais ricos filões da nossa

música folclórica, a bem dizer desconhecida, ou mal conhecida, até à altura da revelação que dele nos fez o primeiro disco da Antologia da Música Regional Portuguesa, que lhe é inteiramente consagrado.

São múltiplos e altamente significativos, do duplo ponto de vista literário e musical, os aspectos que os cantos transmontanos nos patenteiam, aspectos sobremodo relevantes nos preciosos romances e nas não menos preciosas cantigas de segada e de malhas. A característica principal desses cantos, o que no-los impõe como expressão única de autenticidade e de pureza, reside na sua extrema severidade, no seu lirismo despojado de quaisquer enfeites ou alindamentos, dando-nos assim uma imagem fiel das gentes e da terra transmontanas, dos costumes patriarcais, do género altaneiro daqueles, e da dureza, do rigor, da fisionomia por assim dizer ensimesmada desta.

Do ponto de vista estritamente musical, muitas e extremamente interessantes são as contribuições, ou as sugestões, que os cantos transmontanos trazem à ciência, ainda incipiente entre nós, da etnomusicologia, com relevância do que se refere às filiações ou reminiscências de modalidades, estruturas ou expressões ancestrais, tão fascinantes no estudo do folclore comparado. Porém, sempre e acima de tudo, o que nos toca nessa música, o que ela nos comunica, é a quentura de uma presença humana fortemente enraizada no seu humo próprio, a qual, em quem a escuta com ouvidos e espírito despreconcebidos, se faz vivência poética inconfundível. Os cantos aqui oferecidos84, recolhidos da boca do cantador popular Francisco Domingues, dão-nos forçosamente apenas uma ideia parcelar do vasto e valiosíssimo pecúlio da música folclórica transmontana, mas não deixam por isso de a representar, por exemplo, nos lindos trechos que são A Primavera, O Maragato, Rosinha, e a Adoração do Menino.

27. CANTOS DO ALGARVE (1961)

A província do Algarve era outra das incógnitas maiores da música regional portuguesa. Menos

ainda do que sobre Trás-os-Montes, dela possuíamos informações ou documentos que nos permitissem formar um juízo mais ou menos seguro acerca da musicalidade própria das suas populações –, o que se tornava tanto mais desesperante quanto é certo não escassearem os testemunhos da rica literatura tradicional algarvia: contos, lendas, romances, etc.

A presente recolha vem dizer-nos algo, sem dúvida de interesse, sobre a música tradicional algarvia. A primeira coisa que ela nos revela é ser o cliché do Corridinho, como tipo mesmo da música popular algarvia, sua imagem e sua superior floração, inteiramente falso. No Algarve há mais e infinitamente melhor do que o Corridinho, que as suas populações pela sua maior parte desconhecem, como já o notou Michel Giacometti. Há mais e melhor, dentro daquilo que ainda foi possível salvar do desgaste do tempo, que aqui parece acusar-se mais do que em qualquer das outras províncias.

Há um primeiro tipo, o mais precioso e certamente o de mais antiga sedimentação, de música tradicional, constituído por velhos romances e velhos cantos religiosos, afortunadamente ainda conservados na retentiva das pessoas idosas; e há um segundo tipo, porventura de formação mais

84 O albunzinho em questão incluía um minidisco com oito cantos gravados. Destes cantos, três figuram na Antologia do presente volume das nossas Obras Literárias, embora com títulos diferentes, de acordo com a metodologia adoptada por Michel Giacometti no Cancioneiro Popular Português. Trata-se de Rosinha, vem-te comigo (n.o 114), A Primavera passada (n.o 20 [sem correspondente na presente Antologia]) e Oh, bento airoso (n.o 130), que na primitiva publicação era designado por Adoração do Menino. [Nota de F. Lopes-Graça – adaptada.]

87

Page 88: Conteudo Livro FLG CPP

recente, que engloba canções e danças de um carácter vivo, galhofeiro, e não raro licencioso, que nos transmitem uma imagem mais comum da psicologia e do comportamento do povo algarvio.

Sem desprezar inteiramente este segundo tipo, as nossas preferências, ao organizar esta colectânea, foram naturalmente para o primeiro tipo, porque musical, poética e sociologicamente mais significativo.

Novamente, o que predomina é a música vocal, como que a comprovar o acerto dos que consideram ser esta, na verdade, a mais significativa manifestação do sentir musical do povo português, a música instrumental (aqui representada apenas por três singelos documentos) só excepcionalmente atingindo similar importância.

Revelação única, esta música algarvia? Talvez não. Mas uma meia dúzia de espécies no disco arquivadas, por exemplo: o dramático Leva, leva!, os belíssimos romances Dona Mariana, do D. Varão, de Os três «Cavalheiros», de O Cativo, a preciosa Oração das almas, as jubilantes Boas-Festas, dão-nos uma imagem das gentes algarvias inteiramente à margem de qualquer lugar-comum turístico e, pelo sentimento de seriedade e de altania que nos comunicam, as integram a elas, e nos integram a nós, na unidade fisionómica de um povo, cuja psique, nas suas mais fundas manifestações espirituais, acaso um dia possa vir a provar-se (e esta Antologia da Música Regional Portuguesa para tal porventura será útil contributo) se não compadece com fáceis, gratuitas e apressadas conclusões.

28. CANTOS DO MINHO (1963)

Apelidámos nós em certa ocasião a canção popular minhota de «lugar-comum da canção popular

portuguesa», coisa que não caiu bem em certos estudiosos do nosso folclore e nos valeu, por tabela, alguns remoques...

Que queríamos nós significar na nossa? Simplesmente que, a julgar pelas espécies mais conhecidas e mais gabadas, a canção minhota, sobre não oferecer características morfológicas e expressivas muito de tomar em consideração, constituía ainda por cima disso – ou por causa disso mesmo – o padrão pelo qual se aferia e exalçava a excelência da canção regional portuguesa tomada na sua generalidade, a ela tudo nesta se referindo, tudo se reduzindo. Perspectiva falsa e de molde a descorçoar qualquer critério etnomusicológico de alguma exigência, convidando assim à ironia.

Que a canção minhota não é apenas esse lugar-comum por nós denunciado podemo-lo agora verificar pela recolha levada a efeito por Michel Giacometti na província do Minho ou, talvez dito com mais justeza, na parte dessa província, a parte setentrional, que felizmente tem escapado à atenção e à exploração dos prosélitos do lugar-comum. Isto, todavia, sem esquecer trabalho idêntico, embora de menor âmbito, já realizado por Vergílio Pereira por aqueles sítios, trabalho de que nos dá parcial conta na sua pequena publicação intitulada Corais Geresianos.

Com efeito, algumas das espécies compendiadas neste terceiro disco da Antologia da Música Regional Portuguesa, consagrado, na sua quase totalidade, à província do Minho, estão muito longe do lugar-comum, são mesmo o contrário do lugar-comum, na sua invulgaridade, na sua raridade como documentos propostos à etnomusicologia, nas surpresas de vária ordem que oferecem à nossa curiosidade de conhecimento ou à nossa apetência de autenticidade. O garrido, o pitoresco, o «folclórico» (no sentido deturpado da palavra, já se vê, que é o sentido corrente entre nós), estão aqui excluídos, já por não perfilhados pelas populações de cuja boca se ouviram os cantos, já por deliberado critério de escolha por parte dos organizadores da Antologia.

O que no disco se nos depara é, sim, uma boa dezena de impressionantes testemunhos, cujo significado humano iguala, se é que não excede, o seu puro interesse etnomusicológico. Escutemos, por exemplo, a Canção de malhadas (n.o 2), a Senhora do Alívio (n.o 3), Rosinha (n.o 9) o Aboio (n.o 10), Alegres cantemos (n.o 16), Ai, sim (n.o 18). Compadecer-se-ão estes cantos, no que nos revelam dos recessos profundos da psique das populações que os cantam, com o repisado cliché de um Minho despreocupado, beatífico, edénico?

88

Page 89: Conteudo Livro FLG CPP

Na sua grande maioria, as espécies recolhidas são polifónicas, ao invés das que ficaram compendiadas nos dois primeiros volumes da Antologia, que, com uma excepção (Algarve, n.o 21), eram exclusivamente monódicas. Os aspectos que esta polifonia reveste são por vezes de uma singularidade que porventura lhe acarretará o desdém de algumas pessoas, que a apodarão de «bárbara», mas que será também certamente saboreada com prazer por outras, aquelas a quem o seu «primitivismo» («primitivismo» que, por vezes, e muito naturalmente, vem a lindar com o «modernismo»), não agastará.

Os dois últimos cantos apresentados não provêm da província do Minho, mas sim da província do Douro Litoral. Não se havendo recolhido nesta mais espécies cujo interesse etnomusicológico justificasse a edição de um disco equitativamente consagrado às outras duas províncias, entendemos no entanto não enjeitar os ditos cantos, emparelhando-os com os do Minho, com os quais, na verdade, guardam afinidades de estilo e de estrutura.

89

Page 90: Conteudo Livro FLG CPP

CRÍTICA Folclore musical português (sobre Cantares do Povo Português, de Rodney Gallop A colectânea do Sr. Gallop, mesmo na sua relativa brevidade, prova-nos que idêntica riqueza se

pode observar no folclore português. Ao lado de canções em maior-menor, que constituem, é certo, a maioria, depara-se-nos bom número de melodias nos saborosos modos arcaicos (genérica e abusivamente denominados gregorianos), e até em modos bastante indefinidos, de difícil filiação e classificação...

Sobre o Cancioneiro Minhoto, de Gonçalo Sampaio É quase sempre assim em Portugal. Quando aparece alguém com decidida capacidade para

tratar qualquer problema, que, em geral, anda aos baldões por mãos de curiosos, raro é que a sua obra, ou o que podia ser a sua obra, se não frustre, devido a circunstâncias várias, já de ordem pessoal, já de ordem social (aliás tantas vezes correlativas)…

Sobre o Cancioneiro de Cinfães, de Vergílio Pereira Não é fácil falar deste livro (não o é a nós, pelo menos), o primeiro, segundo julgamos, em que,

sobre uma recolha de canções populares peculiares a uma determinada região do país (o concelho de Cinfães), se procura, de um modo exaustivo, estabelecer uma teoria sobre a origem, características, estrutura tonal, etc., da canção popular portuguesa, partindo da análise directa das espécies recolhidas.

Lembrando Francisco Serrano É de supor que em raras estantes de músicos ou de etnógrafos nossos se encontre um livrinho

que tem por título Romances e Canções Populares da Minha Terra e cujo autor é um quase desconhecido natural da vila de Mação, chamado Francisco Serrano. O livrinho foi impresso e editado em 1921, em Braga…

90

Page 91: Conteudo Livro FLG CPP

29. FOLCLORE MUSICAL PORTUGUÊS (1937)

O livro Cantares do Povo Português, do Sr. Rodney Gallop, que o Instituto para a Alta Cultura

acaba de editar, em tradução de António Emílio de Campos, abre com as seguintes palavras do autor:

Tem-se estudado desigualmente o folclore de Portugal. Ao passo que se versaram as crenças tradicionais, superstições, medicina popular, bruxedos e amuletos tão exaustivamente que pouco haverá por fazer neste campo, as danças, festas e representações populares não foram objecto de tanta atenção. Analogamente, estudou-se a fundo a literatura do povo: coleccionadores como Almeida Garrett, Teófilo Braga, Tomás Pires e Leite de Vasconcelos recolheram romances e quadras em inúmeras variantes; mas, por outro lado, a música popular foi votada a imerecido abandono. Deve apontar-se que a notação rigorosa de melodias, pelo cantar de cantores rústicos, é tarefa que requer aptidões especiais e experiência de ordem técnica. Não deve por isso surpreender que a não tenham tentado os literatos portugueses acima mencionados. Além disso, para classificar e estudar cientificamente os produtos de tal tarefa, é indispensável certo conhecimento geral, comparativo, da música popular. O facto de haver tanto que fazer neste sentido, e de eu possuir em certo grau as aptidões e conhecimentos especiais, mais necessários do que o perfeito conhecimento da língua e do país, encorajaram-me, durante os dois anos e meio que permaneci em Portugal, a dedicar muitas das minhas horas de folga à recolha e notação dos deliciosos cantares regionais.

De todas estas circunstâncias resultou um trabalho em que pela primeira vez, segundo nos quer parecer, é a canção popular portuguesa recolhida e estudada com verdadeiro critério científico.

A primeira consequência da aplicação de um tal critério a uma matéria em geral observada através das lentes deformadoras da fantasia, da imaginação, do sentimento, e até da paixão, é o desmoronamento da teoria, tão cara às doutrinas racistas e nacionalistas, da absoluta originalidade da canção portuguesa, da sua inconfundível individualidade, do seu rigoroso etnicismo.

Seguindo na esteira das modernas correntes dos estudos folclóricos, que negam a incomunicabilidade dos produtos da arte popular dos diferentes países entre si, e sustentam, pelo contrário, não só um fundo comum a todos os folclores, mas, outrossim, uma incessante permuta de in-fluências entre uns e outros, e mesmo entre a arte popular e erudita – o Sr. Gallop analisa a canção popular portuguesa e faz muito bem a destrinça dos vários elementos que a compõem.

Três influências, principalmente: a francesa, a italiana e a espanhola, teriam modelado a fisionomia da canção portuguesa, tal como a conhecemos depois do século XVIII, época em que, segundo o Sr. Gallop, «o folclore português assumiu a sua forma definitiva».

É evidente que se não pode abstrair de um certo fundo primitivo, sobre o qual se teriam vindo enxertar os elementos e as influências estranhas. Mas este fundo torna-se difícil de apreender, de isolar, no complexo de estratificações sucessivas que é a canção popular. Estas estratificações, afinal, é que vêm a conferir- -lhe não a sua realidade definitiva, porque tal coisa estaria em contradição com o pretendido carácter evolutivo da canção, mas a sua realidade actual, ou que nos parece mais actual.

E aqui nós observaremos que se nos afigura relevarem de um critério menos científico as apreensões e as advertências do Sr. Gallop, a respeito do destino da canção popular portuguesa, quando pretende preservá-la da contaminação de influências modernas, que lhe desnaturariam o sabor e pureza integral. Se esta, no fundo, não existe, e se a canção popular é, na verdade, um produto de cruzamentos, de sedimentos e de simbioses sucessivos, sujeita, portanto, a evolucionar ou, melhor: a transformar-se no tempo e no espaço – não vejo razão para que se lancem os gritos de alarme, que, por vezes, destoam no em geral tão ponderado, tão sensato, tão positivo ensaio de Sr. Gallop.

Os chorosos fados da capital e as coplas de revistas desalojam desgraçadamente, com rapidez, as flores mais singelas da canção popular» – observa com mágoa o Sr. Gallop. Mas a

91

Page 92: Conteudo Livro FLG CPP

verdade é que ele próprio reconhece a importância da canção urbana na formação ou na mo-delação da fisionomia da canção regional quando escreve: «Algumas das minhas canções (da colecção) são claramente relacionadas com o fado, e talvez até sejam fados, simplificados na transplantação para a província. É certamente difícil dizer até que ponto as canções regionais e urbanas se entreinfluenciaram, mas não há dúvida que tal intercâmbio existiu, existe, e oferece exemplo particularmente valioso da minha teoria sobre a origem e desenvolvimento da música popular.

Esta teoria afigura-se-nos outro dos pontos mais curiosos e mais inteligentes de livrinho do Sr. Gallop.

O autor repudia, e com muita razão, a teoria (hoje, aliás, completamente morta) da criação colectiva, segundo a qual os produtos da arte popular seriam uma emanação espontânea e inconsciente da chamada alma do povo, e mostra-se partidário da moderna teoria de gesunkes Kulturgut, a qual considera a arte folclórica não uma criação, uma invenção de génio popular, mas uma deformação e uma adaptação pelo povo dos produtos culturais. Adverte, porém, que é certo haver no povo (tomada a palavra não no sentido colectivo, evidentemente) um mínimo de criação musical, certos rudimentos embrionários de melodia, como melopeias, lengalengas, gritos modulados e ritmos primários, a maior parte das vezes estimulantes e adjuvantes nos ofícios e nas fainas rurais. Desta música embrionária teria surgido por intervenção do especialista, do profissional, do artista individual, toda a música superior erudita. Daqui a conclusão do Sr. Gallop de que a música popular é uma como que fusão de duas correntes opostas: «uma, que eleva as criações rudimentares do povo e as transforma em música erudita; outra, que transporta de novo ao povo as criações mais complexas da arte erudita, devolvendo-lhe e disseminando entre ele os seus próprios germes melódicos...».

A hipótese não é inteiramente nova, mas é absolutamente sensata. Igualmente sensatas, mesmo sensatíssimas, são as considerações sobre o fado, cuja questão o Sr.

Gallop não podia, naturalmente, deixar de abordar. Ainda aqui, de encontro as concepções racistas, por um lado, e as pseudocientíficas, por outro,

que tem procurado explicar a origem do fado, o Sr. Gallop, denegando a pura autoctonidade deste, como querem as primeiras, ou o seu absoluto exotismo, como pretendem as segundas, vê nessa canção urbana um produto de estratificações sucessivas, tal como ó o caso das canções regionais. Não podemos deixar de transcrever os seguintes períodos do Sr. Gallop, que se nos antolham de uma clareza, de uma lógica, de uma evidência absolutamente definitivas:

Acerca das suas origens (do fado) e dos seus méritos vai travada acesa batalha. Atribuíram-lhe origem portuguesa, francesa, africana, moura, árabe, celta e cigana. As mais das teorias emitidas sobre tal assunto denotam antes entusiasmo do que senso, além de completa ignorância da música das raças a que se atribui a paternidade do fado.

«Pela minha parte não posso considerar o fado senão como síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afectaram o povo de Lisboa. A tradição nacional é evidente, pelo parentesco já apontado com certos cantares regionais, ao qual ainda voltarei. No ritmo sincopado pode discernir-se a influência de danças exóticas, da África ou do Brasil, populares em Lisboa desde que o batuque foi introduzido, no século XVIII, nos dias do oitavado, da arrepia, do guinéu, do zabel macau, do charamba, do sarambeque, do canário e da fofa, até ao «doce lundum chorado» de Tolentino. Este, como dança e como canção, parece haver sido o predecessor imediato do fado. O charamba, a fofa e o lundum ainda hoje se cantam e dançam nos Açores, onde Francisco de Lacerda os recolheu do povo.

Por outro lado não há nada, absolutamente nada, de exótico no que respeita à construção formal, linha melódica e base harmónica do fado, cujas afinidades vão todas para a música da Europa Central. A forma estritamente geométrica do fado, talhado simetricamente em frases de quatro versos, liga-o sem possibilidade de dúvida à arte musical da França, Alemanha e Itália. A

92

Page 93: Conteudo Livro FLG CPP

sua cadência bastante banal e pobre, e os tons maior e menor nos quais está invariavelmente construído, denunciam a segunda metade do século XVIII, responsável por tais características. A confirmar esta suposição podemos apontar a grande popularidade gozada em Lisboa nesse período pela ópera italiana e música afim, executada nos teatros do Salitre e da Rua dos Condes.

Sob o ponto de vista estético, é o Sr. Gallop de opinião que «valor ou interesse puramente musical, tem o fado evidentemente muito pouco». Toda a sua importância é meramente psicológica e folclórica, e neste sentido por ser um dos raros exemplos de «canção popular urbana, espontânea e livre».

O que já nos parece mais discutível é a tese do Sr. Gallop, de que o acompanhamento instrumental do fado existiu anteriormente à melodia. Que o esquema harmónico do fado preexistia à sua manifestação melódica, é indubitável. Mas é esta uma condição que se pode observar a respeito de quase toda a música do período homófono. Contudo, da mesma maneira que se não pode afirmar que nas composições do estilo vocal acompanhado dos séculos XVII e XVIII a melodia precedeu o acom-panhamento instrumental, também se não poderá dizer que «no caso do fado o acompanhamento precedeu a melodia» – embora tanto num como noutro caso a base harmónica condicionasse as relações intervalares melódicas.

A análise morfológica e psicológica das canções portuguesas é feita pelo Sr. Gallop com bastante discernimento, embora não com o desenvolvimento e a sistematização que seriam para desejar e que, cremos, o Autor estava em condições de poder fazer.

Quanto às canções que formam os bons dois terços do livro do Sr. Gallop, há que registar o facto importante de ser a primeira vez, em nosso conhecimento, que as melodias populares portuguesas são recolhidas e anotadas com sistemática observância das suas particularidades tonais e rítmicas.

Regra geral, quase todos os folcloristas nacionais têm reduzido a tonalidade das canções ao dualismo maior-menor, e encerrado o seu ritmo em compassos de cadência uniforme e regular. Nos países onde os estudos folclóricos são feitos com o máximo rigor cientifico, por especialistas bem apetrechados técnica e culturalmente (Inglaterra, Rússia, Espanha, Checoslováquia, França e outros), já se tinha chegado ao apuramento da extraordinária variedade e riqueza tonal e rítmica da canção popular. A colectânea do Sr. Gallop, mesmo na sua relativa brevidade, prova-nos que idêntica riqueza se pode observar no folclore português. Ao lado de canções em maior-menor, que constituem, é certo, a maioria, depara-se-nos bom número de melodias nos saborosos modos arcaicos (genérica e abusivamente denominados gregorianos), e até em modos bastante indefinidos, de difícil filiação e classificação, como, por exemplo, a Cantiga de S. João, da Covilhã (54), o Vira de Arganil (34) e a melodia recolhida em Sércio, que tem o número 115. Pelo que diz respeito ao ritmo, se é certo que também a maioria destas canções observam uma cadência regular, não é menos verdade que muitíssimas delas são de uma variedade e de uma flexibilidade métricas verdadeiramente notáveis. Frequente nelas as combinações de 3/4 e 6/8, assim como a alternação de 3/4 e 2/4. Algumas de combinações mais complexas. Outras, ainda, de ritmo livre. E umas duas ou três em compassos impropriamente chamados irregulares ou mistos, como 5/4 e 7/885.

85 Neste capítulo de tonalidades e compassos, permita-se-nos fazer algumas observações de somenos sobre pontos que me

parecem controversos na colectânea do Sr. Gallop. Assim, por exemplo, não nos parece que possam ser considerados autênticos mixolídios os modos das

canções 3 e 6, como o Autor supõe. O facto do 7.° grau distar da tónica 1 tom, no tetracórdio superior, e 1/2 tom, no tetracórdio inferior (digamos assim, por comodidade), invalida, segundo se nos afigura, aquela suposição. Será quando muito, se o não quisermos considerar um modo especial, sui generis, uma flutuação entre maior e mixolídio. Por outro lado, parecem-nos autênticos mixolídios os tons das canções 4 e 81, por exemplo, que o Sr. Gallop anotou com a armação na clave de Maior, necessitando, depois, de um acidente no 7.o grau para o 8.o, quando, afinal, esse 7.o grau não é alterado, mas natural. Igualmente nos parece superfetatório o ré bemol à clave, no autêntico dórico da canção 63, que assim passa por fá menor. E na canção 77, estaremos em presença de um ponto eólio, podendo, portanto, colocar-se um si bemol na clave (1.o grau: Ré), ou, na verdade, trata-se ainda de

93

Page 94: Conteudo Livro FLG CPP

30. SOBRE O CANCIONEIRO MINHOTO, DE GONÇALO SAMPAIO (1945)

Mais uma vez solicitado para me pronunciar sobre uma obra de folclore musical, novamente me

compete advertir que não sou folclorista, e que tenho a verdadeira ciência do folclore num conceito por de mais elevado, para não ver quanto pode haver de abusivo no facto de os seus problemas serem levianamente discutidos por um não especializado na matéria. Bem sei que a canção popular em si mesma interessa, e profundamente, o problema da criação musical portuguesa, e sobre o assunto já eu tenho tido ocasião de me pronunciar, embora as minhas considerações nem sempre tenham sido interpretadas de acordo com o meu verdadeiro pensamento. Mas aquilo em que a canção popular interessa ao compositor (a alguns compositores, pelo menos) não é propriamente um ponto de vista folclórico, se bem que o folclorismo, quero dizer, a ciência folclórica, possa oferecer fecundas sugestões e perspectivas a quem procure resolver o problema da criação de uma linguagem musical autónoma.

Neste sentido, nem tudo o que os nossos folcloristas nos têm fornecido oferece absoluta confiança, ou por de mais ingénuo e amatório, ou por condimentado com doutrinas, que nem sempre serão de uma grande limpidez e objectividade de pensamento.

Não estará precisamente neste caso a compilação de cantos populares minhotos de Gonçalo Sampaio, que, acrescentada com alguns estudos dispersos do mesmo ilustre erudito, forma o que os seus editores chamaram o Cancioneiro Minhoto, dado à estampa em 2.a edição86, depois de, conforme informação sua, se haver esgotado, em menos de três anos, a 1.a.

A parte musical do Cancioneiro consta de 105 espécies, divididas em seis grupos: modas de terno, modas de romaria, cantos coreográficos, cantos dos velhos romances, toadas, música religiosa.

Esta é a arrumação do índice. Infelizmente, não se observou a mesma divisão no corpo do Cancioneiro, onde sucede as espécies dos vários grupos baralharem-se umas com as outras. Isto diminui um pouco o interesse da colectânea sob o ponto de vista tipológico. Um dos seus organizadores, o Sr. José Vilaça, adverte-nos no antelóquio que «a ordem, ou melhor, a desordem em que são publicadas as músicas é mais ou menos a que guardavam nos cadernos do Mestre». Parece-me que não constituiria desacato, antes pelo contrário, dar-lhes a arrumação que consta do índice, tanto mais quanto é certo esta ser da inspiração do próprio Gonçalo Sampaio.

É claro que não basta recolher e arrumar as canções populares de determinado povo ou região para se fazer obra sólida de folclorismo. É preciso mais: é preciso criticar, isto é: analisar, comparar, seriar, determinar características morfológicas, psicológicas e sociológicas – que sei eu! – coisas que exigem um arsenal de conhecimentos e um espírito verdadeiramente científico, que se não compadecem apenas com a curiosidade amatória, a boa vontade e o patriotismo.

um modo indefinido, em virtude da ausência de bemol no si dos 2.o e 3.o compassos – o que pode passar por erro de notação, mas que, ao mesmo tempo, é perfeitamente aceitável, embora nada vulgar, sob o ponto de vista musical?

Pelo que toca a notação rítmica, parece-nos que nem todas as combinações e alterações de compassos correspondem a variedades e a assimetrias métricas reais, isto é: organicamente musicais. Algumas parecem-nos antes provocadas por respirações do cantor inculto, introduzidas numa linha melódica de frequência rítmica absolutamente regular. Estão neste caso, por exemplo, as canções n.os 13, 32 e 61. Mas é claro que com isto nada tinha o folclorista, que deve anotar as canções tal como elas são cantadas pelo Povo. Ele, no entanto, parece ter tido aquela mesma impressão, ao registar o 5/4 da canção 40, o qual acha que «não pode ser natural». Confessamos, por nossa parte, que, pelo contrário esse compasso nos parece naturalíssimo. Mas o que é sem dúvida alguma um erro de notação é o 3/2, que aparece intercalado nas canções n.os 7, 63 e 91. Sendo a unidade de tempo neste compasso a mínima, o movimento que ele produz está em contradição flagrante com o do contexto dessas canções, no qual a unidade de tempo é a semínima. Pelo que tal notação devia ser feita em 6/4. Ou seremos nós quem erra? [Nota de F. Lopes-Graça.] 86 Livraria Educação Nacional, Porto, 1944. [Nota de F. Lopes-Graça.]

94

Page 95: Conteudo Livro FLG CPP

Não há dúvida de que, a avaliar pelos ensaios dispersas que figuram no Cancioneiro Minhoto, e que, quanto mim constituem porventura a parte mais interessante da obra, Gonçalo Sampaio era uma das pessoas que entre nós podiam abordar o folclorismo científico com melhor conhecimento de causa, objectividade e preparação científica, virtudes que lhe vinham em primeira linha da sua qualidade de naturalista.

Trata-se de cinco breves escritos, onde se estudam vários aspectos da canção popular minhota. O primeiro é como que um conspecto geral desta. Nele se faz a definição de alguns dos grupos acima citados, e se caracteriza o género de polifonia usada pelos cantores minhotos, assim como as respectivas vozes. A distinção entre cantos em fá-bordão e cantos em bordão, aqueles característicos da canção alentejana, estes da canção minhota, parece-me especiosa. A noção harmónica de fabordão87 já é musicologicamente bastante flutuante, para se complicar ainda com a de bordão, que nunca vi perfilhada por nenhum especialista e que introduz ainda maior confusão no problema.

O segundo estudo versa as Toadilhas de aboiar, quer, dizer, as melodias, ou, antes, as melopeias com que, nas vessadas minhotas, se incitam os bois ao trabalho. É um dos ensaios mais curiosos da colectânea, na sua sábia argumentação para provar a remota antiguidade de tais cantilenas. A tentativa de as assimilar à música dos antigos gregos pode parecer um tanto ingénua, visto que, na realidade, pouco ou nada se conhece, no domínio prático, da música helena, e tudo quanto neste campo se aventa ser puramente conjectural.

O terceiro escrito é igualmente de grande interesse. Nele se caracteriza sociologicamente e se historia a origem dos famosos Coros das maçadeiras, ou seja as canções de trabalho entoadas outrora pelas mulheres que maçavam o linho. Gonçalo Sampaio novamente pretende relacionar estas canções com a antiga música grega; a argumentação produzida é brilhante, mas é claro que a nenhuma conclusão positiva se pode chegar sobre o assunto. O quarto artigo limita-se a um estudo tipológico do vira minhoto, que o autor considera como não tendo afinidades algumas com os viras das outras províncias portuguesas.

O quinto e último ensaio, intitulado Cantos populares a Nossa Senhora, trata, como é óbvio, da música religiosa minhota. Nele se faz uma caracterização dos diferentes tipos de canções dedicadas à Virgem, como sejam a Salve-Rainha, a Ave-Maria, a Aleluia, os Romeiros e as Canções redondas. Sem ser dos mais ricos em sugestões, este escrito é ainda assim bastante interessante sob o ponto de vista folclórico, revelando-se nele a boa preparação musicológica do erudito minhoto.

Todos estes ensaios são do que de mais probo e inteligente em Portugal se tem escrito sobre a matéria. Conhecimentos, espírito crítico, estilo limpo, visão larga (quem há por aí que, a propósito da canção popular, tivesse a coragem de se revoltar contra as «caturrices» dos escolásticos da harmonia, citando, ao mesmo tempo, Schönberg, Stravinsky e Ravel?) – tudo concorre para tornar os escritos de Gonçalo Sampaio sumamente atraentes e instrutivos. Infelizmente, porém, eles não formam a obra de conjunto que seria de desejar, além de que só de uma maneira indirecta dizem respeito à colectânea em vista.

É quase sempre assim em Portugal. Quando aparece alguém com decidida capacidade para tratar qualquer problema, que, em geral, anda aos baldões por mãos de curiosos, raro é que a sua obra, ou o que podia ser a sua obra, se não frustre, devido a circunstâncias várias, já de ordem pessoal, já de ordem social (aliás tantas vezes correlativas). E cuja determinação constituiria a dramática história da nossa incapacidade científica. Tudo é feito aos arranques, fragmentariamente, sem espírito de continuidade, sem plano, sossobrando as melhores boas vontades e os melhores entusiasmos no meio da indiferença e do cepticismo gerais.

Que excelente e larga obra de folclorismo não poderia ter realizado Gonçalo Sampaio se as circunstâncias tivessem permitido, ou o tivessem forçado a orientar decididamente a sua actividade de investigador naquele sentido! Não sei (nem tenho autoridade para me pronunciar sobre o assunto) qual

87 Preferimos esta forma (do francês faux-bourdon, designação primitiva do género), à de fá-bordão, que dá à palavra uma etimologia e uma significação completamente diferentes. [Nota de F. Lopes-Graça.]

95

Page 96: Conteudo Livro FLG CPP

o valor e alcance da sua obra de botânico. Como folclorista, poderei dizer que me parece ser um dos raros que em Portugal seria porventura capaz de realizar meditado e consciente sobre a nossa música popular, que por ora não temos.

É claro que posso nem sempre estar de acordo com os seus pontos de vista e afirmações. Não o estou, por exemplo, quando o ilustre erudito afirma ser «o Minho a mais rica das nossas províncias em música popular». Rica, no sentido quantitativo, é possível; no sentido qualitativo, creio que duas outras lhe levam a palma, e de uma maneira quase esmagadora: o Alentejo e a Beira Baixa.

A julgar pelos documentos recolhidos e publicados e por alguma experiência que da matéria tenho, parece-me perfeitamente fundamentada a opinião comum de albergarem aquelas duas províncias as mais profundas e autênticas expressões da musicalidade popular nacional. Em contraposição (e aqui sei que vou melindrar a susceptibilidade «bairrista» dos minhotos) parece-me que uma certa imagem muito generalizada do que seja a canção popular portuguesa «típica», e que não representa esta na sua forma mais elevada, antes, pelo contrário, no-la dá num aspecto bastante banal, parece-me, digo, que tal imagem é de ordem inteiramente minhota. O Minho é o lugar-comum do folclore português.

É possível que esta minha opinião de há muito tempo seja sujeita a revisão, com o conhecimento mais pormenorizado do folclore minhoto. No entanto, creio que a colectânea de que me estou ocupando quase se poderá considerar exaustiva neste aspecto; mas não será ainda ela que me fará encarar a canção popular minhota através de um prisma mais favorável...

De uma maneira geral, as espécies reunidas no Cancioneiro do Minho afiguram-se-me de origem relativamente recente. Remontarão, quando muito, a meados do século passado. O seu âmbito melódico é pobríssimo e em regra escravo do famoso acorde de sétima da dominante, que inferioriza confrangedoramente a maioria das produções musicais populares portuguesas mais ou menos influenciadas pelo italianismo decadente dos fins de Setecentos e princípios de Oitocentos. A sétima da dominante e a quadratura rítmica produziram os terríveis efeitos que, melhor do que em qualquer outra parte, se patenteiam exuberantemente nos viras e fandangos que figuram no Cancioneiro Minhoto. É difícil conceber-se maior rudimentarismo, maior chateza, sob o ponto de vista da expressão e da morfologia. Compare-se, sob este aspecto, qualquer dos fandangos ou viras (para não falar de outras produções) da colectânea de Gonçalo Sampaio com a canção recolhida em Serpa que figura a p. 45 dos Cantares do Povo Português, de Rodney Gallop, ou com aquela preciosa Santa Cruz, de Monsanto, estudada por António Joyce num ensaio inserto no n.o 10 da revista Ocidente, e ver-se-á o abismo que separa as produções folclóricas recentes, baseadas no sol-e-dó, daquelas cuja data não é fácil determinar, mas que devem remontar a uma época em que a malfadada sétima da dominante e a simetria rítmica não entravavam e enfraqueciam a livre expansão da linha melódica.

Desta mesma comparação resulta, quanto a mim, a necessidade de os nossos estudos folclóricos orientarem mais os seus pontos de mira para aquelas canções consideradas, ainda há não muito tempo, rudes, bárbaras e primitivas, mas que são, afinal, as que revelam uma riqueza formal e expressiva que deixa na sombra o interesse muito reduzido, para não dizer nulo, das que se têm como representando a vera feição da nossa música popular. São essas canções «rudes» e «bárbaras», e não as ensossas Caninhas verdes e Ora vai tu, de procedência e autenticidade muito duvidosas, e que, estou certo, um folclorismo atilado havia de rejeitar como produtos espúrios, são essas canções primitivas, é a sua recolha, é o seu estudo, ainda quase totalmente por fazer, que, a constituir-se um dia um corpo da música popular portuguesa, lhe hão-de dar significação e alcance étnico-estético, fornecendo do mesmo passo o melhor, o mais valioso, o mais estimulador contributo para a criação de uma linguagem musical erudita autónoma.

Nem tudo, porém, no Cancioneiro Minhoto pertence a esta categoria de canções. O sol-e-dó abunda e dá o tom geral à colectânea, é certo, mas, por entre ele, lá viceja uma que outra flor não contaminada pelo vírus e que conserva a graça e a frescura da verdadeira musa popular.

Canções como, por exemplo, o formoso Coro das maçadeiras (p. 3), O cego (p. 144), Conde Nino (p. 145), Conde Albano (p. 148), as Toadilhas de aboiar (pp. 170 e 171), pertencem

96

Page 97: Conteudo Livro FLG CPP

indiscutivelmente a uma data mais remota, e algumas, como os Benditos das pp. 188 e 189, e Misericórdia, Senhor, da p. 203, afiguram-se-me mesmo vestígios bem conservados do antigo canto gregoriano.

O modalismo, tão característico das canções da Beira Baixa e do Alentejo, e que é, em geral, garantia da nobreza e vernaculidade da canção popular, não abunda na música minhota. Sob o ponto de vista da métrica, também esta me parece bastante pobre. Tenho a impressão de que as misturas de compassos, que Gonçalo Sampaio distribuiu com certa profusão por todo o Cancioneiro, correspondem não tanto a estruturas métricas reais, como são provocadas por suspensões no fim das frases ou motivos, necessárias para a respiração. A irregularidade métrica é, neste caso, de ordem meramente fisiológica, e não intrinsecamente musical.

Seria certamente possível catar na colectânea um certo número de pontos sujeitos a debate mais ou menos caturra; mas, como já afirmei, eu não sou propriamente um folclorista e não posso, portanto, entrar numa análise pormenorizada do Cancioneiro Minhoto. Forçoso é ficar-me pelas generalidades, e do estudo da colectânea extrair tão-somente aqueles aspectos que mais me interessam como músico, e que mais interessam ao problema geral da música portuguesa. Não posso, contudo, deixar de abordar um ponto que, ao mesmo tempo que envolve matéria de investigação folclórica, interessa ainda como problema musical genérico, e também ao caso particular da música portuguesa.

Refiro-me à harmonização, feita pelo próprio povo, das suas canções, harmonização que obtém nos famosos coros minhotos uma das suas manifestações mais curiosas.

A questão que se pode pôr de início é de saber se o povo harmonizará de facto espontaneamente, por uma predisposição inata, ou se o fará devido a qualquer estímulo, a qualquer modelo, a qualquer iniciação exteriores, de origem culta. Por outro lado, se a primeira cláusula se observasse, conviria apurar em que é que, ou em que medida, a harmonia culta aproveitou das experiências da harmonia popular. A história da harmonia é quase muda sobre o assunto. Quando muito, fala-nos da origem popular do fabordão medieval, que era uma harmonização em terceiras. Enquanto as harmonizações populares se mantêm nesta forma simples e primitiva de polifonia, não é talvez difícil aceitá-las como um produto espontâneo. Mas, como sucede com os cantos minhotos, a coisa nem sempre se fica por umas inofensivas terceiras: envolve formas de harmonização mais complexas, como o acorde perfeito, e até retardos e antecipações, o que parece indicar proveniência erudita. Em contraposição, são vulgares os acordes de quinta paralelos, em manifesta derrogação às leis da harmonia clássica, erudita. Reminiscências do antigo organum, o que, invertendo a ordem histórica do fenómeno, atribuiria a este uma origem popular?

Seja como for, a questão é do mais alto interesse musicológico. É-o também sob o ponto de vista folclórico, embora eu neste ponto tenha de fazer mais umas observações que, porventura, não agradarão aos admiradores incondicionais do folclore minhoto. Quero eu dizer que, por muito curioso que seja o fenómeno da harmonização dos cantos populares, isso nem sempre basta para dar a estes um interesse musical superior. As harmonias que os cantores minhotos ajuntam, espontânea ou imitativamente, às suas melodias, não basta para remir a maior parte destas dos defeitos de estrutura e expressão, da rudimentaridade de invenção, acima apontados. Quando muito, atenuam-nos, iludem-nos. Tal harmonização é como que uma espécie de compensação à quase genérica banalidade e pobreza da inspiração melódica. Na grande maioria das canções harmonizadas não se sente aquela força, aquele carácter autêntico, aquele sabor agreste característicos dos produtos da arte popular verdadeiramente enraizados no humo, antes nos soam como um alindamento artificioso de uma natureza despreocupada e garrida, em que o homem esqueceu o seu drama e a sua condição, e nem sequer ri e folga de um riso e de uma alegria onde estruge a animalidade primitiva do velho Dioniso.

97

Page 98: Conteudo Livro FLG CPP

31. SOBRE O CANCIONEIRO DE CINFÃES, DE VERGÍLIO PEREIRA (1951)

Não é fácil falar deste livro (não o é a nós, pelo menos), o primeiro, segundo julgamos, em que,

sobre uma recolha de canções populares peculiares a uma determinada região do país (o concelho de Cinfães), se procura, de um modo exaustivo, estabelecer uma teoria sobre a origem, características, estrutura tonal, etc., da canção popular portuguesa, partindo da análise directa das espécies recolhidas. Consignemos, antes de mais, os nomes dos dois beneméritos que puseram mãos à obra: são eles o maestro Vergílio Pereira, que recolheu as canções, e o musicólogo Rebelo Bonito, que as estuda. (O trabalho dos outros colaboradores da valiosa monografia: o Dr. Bertino Daciano, que escreve as «Nótulas histório-etnográficas sobre o concelho de Cinfães», e o Dr. Augusto César Pires de Lima, que faz a «Análise poética» das espécies recolhidas, por interessante que possa ser, está fora do âmbito desta pequena nótula crítica, que pretende ser exclusivamente de ordem musical.)

Dissemos não ser fácil falar deste livro. A razão está em que, sobre não ser cómodo, de um modo geral, falar da canção popular portuguesa, cujo estudo está numa fase incipiente, neste caso a dificuldade aumenta precisamente porque estamos em presença de uma tentativa a todos os títulos inédita. Agarrar num punhado de canções (e não tão pequeno como isso: 301 espécies), classificá-las, analisá-las uma a uma, apurar-lhes as variantes, determinar-lhes as raízes temáticas, o tipo melódico, o género, as modalidades, as cadências, observar-lhes as particularidades formais e estilísticas, etc., e fazer tudo isso com o apoio de ampla documentação musicológica, que vai desde a música grega à música italiana e francesa do século XVII, passando pelas salmodias gregorianas, o organum e as primitivas formas polifónicas, a música trovadoresca e os velhos corais germânicos, buscando ainda analogias imprevistas (Lully, Haydn, Mozart, Grétry, Schubert, Strauss, Copland, Chostakovitch, etc.) – tudo isto é evidentemente novo entre nós e representa um esforço deveras louvável para encaminhar a investigação folclórico-musical num sentido verdadeiramente científico.

No entanto, algumas dúvidas se nos apresentam, dúvidas que forçoso nos é resumir em meia dúzia de linhas, visto o espaço limitado de que podemos dispor. Digamos desde já o que, em nosso entender, consideramos o ponto vulnerável (ou discutível, se se preferir) da laboriosa colectânea: o pouco interesse especificamente artístico das canções compendiadas. Releve-se-nos a repetida opinião: até prova em contrário, continuamos a crer que a canção minhota é o mais banal dos nossos produtos folclórico-musicais. Certamente que algumas cantas e cramóis (especialmente estes) não são de todo para menosprezar, como exemplos de polifonia espontânea; mas estão longe do valor de outras espécies polifónicas, como os corais alentejanos e, sobretudo, certas preciosidades da Beira Baixa (propriamente da chamada Cova da Beira), infelizmente ainda por registar (será altura para o fazer?). Meia dúzia de outras canções podem ainda apresentar alguma graciosidade e frescura na sua ingénua simplicidade, tais como as cantigas de Reis n.os 119 e 125, as cantigas de trabalho n.os 161, 166 e 181, as Chulas n.os 229 e 254. A grandíssima maioria, porém, são espécies pobres, tanto sob o ponto de vista da estrutura, como da expressão, e constituem exemplo frisante daquilo a que não será talvez impróprio chamar o lugar-comum do nosso folclore musical – o que vai de par, aliás, com a quase geral pobreza e banalidade dos textos literários.

Sendo assim, ocorre perguntar se o paciente e laborioso trabalho de análise das espécies em questão, com todo o aparato erudito de que ele se rodeia, não redundará, de facto, numa tarefa inglória, ao mesmo tempo que não podemos deixar de lamentar que tanto saber e tanta boa vontade não tenham sido postos ao serviço de uma causa musicalmente, folcloricamente, mais valiosa.

Mas, enfim, isto pode ser apenas uma questão de critério pessoal, e admitimos perfeitamente que boas razões se possam aduzir em favor do trabalho tal como se acha realizado. No entanto, não desejaríamos encerrar esta pequena nota crítica sem apontar à atenção do Sr. Rebelo Bonito mais as seguintes observações, resumo do muito que se poderia dissertar sobre trabalho tão complexo:

De uma maneira geral, parece-nos que ele se deixou apaixonar pela ideia (ou tese) de filiar as espécies do Cancioneiro de Cinfães na música medieval, o que só nos quer parecer justo (e com as

98

Page 99: Conteudo Livro FLG CPP

necessárias cautelas) para um reduzidíssimo número delas. Correlativa desta ideia ou tese, aparece-nos a sua preocupação em classificar de modais grande número de canções que a nós se nos afiguram correntemente (e podemos dizer banalmente) escritas em tonalidade maior (ex: n.os 45, 125, 169, 187, 188, 209). Confessaremos muito sinceramente que autêntico, característico, modalismo só muito dificilmente se nos afigura poder-se vislumbrar no Cancioneiro de Cinfães? A cantiga de trabalho n.o 167, apontada como um raro lídio? É possível, se o si for, de facto, natural. Mas o estribilho em 3.a não o desmente? (Confessamos a nossa hesitação.) Apetecia-nos apontar ainda muitos outros pontos que se nos antolham controversos, por exemplo: a escala heptafónica em que se basearia a canção n.o 440, e que a nós se nos afigura uma banal estruturação nas funções acórdicas de tónica e de 7.a de dominante; o mesmo quanto à canção n.o 262, que a nós nos parece antes um vulgar processo mecânico de harpejo acórdico; os exemplos apontados de música ficta, como o da canção n.o 241, que serão talvez apenas vestígios de escalas primitivas «cromáticas» ou simples ornatos; a citação de melismas, que temos por rudimentares processos de vocalização rítmica; a anotação, quanto a nós errónea, do compasso das canções n.os 100 e 101: não se tratará, na 1.a, de um 3/8 e, na 2.a, de uma alternação de 3/4 e 4/4? Mas

onde iríamos nós parar por este caminhar? Embora o Cancioneiro de Cinfães e o trabalho dos seus dois principais colaboradores mereçam ampla referência, a verdade é que a sua crítica tem que ser limitada pelo espaço de que pode dispor a Gazeta Musical e pela competência de quem subscreve esta notícia. É matéria para discussão, que oxalá provocasse debate sobre os problemas do nosso folclore musical, tão pouco ventilados entre nós.

32. LEMBRANDO FRANCISCO SERRANO (1982)

É de supor que em raras estantes de músicos ou de etnógrafos nossos se encontre um livrinho que

tem por título Romances e Canções Populares da Minha Terra e cujo autor é um quase desconhecido natural da vila de Mação, chamado Francisco Serrano. O livrinho foi impresso e editado em 1921, em Braga, na Tipografia de A. Costa & Matos, a sua tiragem tendo sido certamente limitada, como era uso neste género de publicações. Isto sem impedimento de tratar-se de uma espécie de muito apreciável valor no acervo da nem sempre grandemente significativa investigação e recolha da nossa música folclórica.

Quem era Francisco Serrano? De origem humílima – o que não obstou a que, graças a uma pertinácia, uma força de vontade

invulgares, houvesse chegado a desempenhar cargos burocráticos de certa importância –, ele próprio se encarrega de nos dar saborosos informes sobre a sua pessoa e as suas actividades na carta autobiográfica, com data de Janeiro de 1919 (Serrano nascera em 1862), que, a rogo do Dr. António Lino Neto, professor do Instituto Superior do Comércio, seu conterrâneo, figura apensa ao livrinho e a quem este é dedicado.

Destes informes, interessa aqui consignar os que se referem à sua formação musical. Citemo-lo:

[...] Havia neste tempo em Mação uma sociedade filarmónica de amadores e eu, que sempre tivera grande paixão pela música, fui pedir ao director para me admitir na sociedade.

– Não há vaga, a não ser para tocar tambor, disse-me ele. Aceitei logo, e no Verão seguinte acompanhei a filarmónica em todas as festas a que

assistiu pelos arredores, de tambor às costas. Os rapazes que na banda tocavam instrumentos de sopro, julgando-se em plano superior ao

meu, tratavam-me com certo desprezo e olhavam-me sobranceiros. Um dia – lembra-me como se fosse hoje – estávamos numa festividade em Envendos. À

hora do descanso, foram todos os músicos dançar com as moçoilas que se saracoteavam no arraial, e quando eu pretendia entrar com eles em uma dança de roda, fui por eles repelido, que simultaneamente diziam às moças: não queiram dançar com este que é o do tambor.

99

Page 100: Conteudo Livro FLG CPP

O meu amor próprio ficou altamente escandalizado com esta desconsideração, e por virtude dela jurei por Deus que eles me haviam de pagar. E pagaram! Passados tempos todos eles serviram debaixo das minhas ordens como director da filarmónica. Para tanto comprei um compêndio de música e agarrei-me à solfa com tanta vontade, que, passados três meses, fui promovido a músico de sopro. Animado com esta conquista, que só a mim devia, por não ter mestre que me ensinasse, continuei a estudar música e, passados mais três anos, já compunha uns originais que fazia executar na banda. Daí em diante escrevi bastante para a banda, para a igreja e para o teatro, fazendo da divina arte de Mozart o melhor dos meus passatempos [...]

Digamos alguma coisa acerca dos Romances e Canções Populares da Minha Terra e do que se nos afigura constituir o seu principal mérito em relação a publicações congéneres anteriormente feitas – não muitas.

Abre o livrinho com uma sorte de prefácio em que o autor expende judiciosos conceitos sobre o romanceiro e o cancioneiro populares, referindo-se sobretudo à tradição da sua terra natal e respectiva região, não escondendo as dificuldades com que deparou no que respeita à notação dos cantos coligidos, mormente no que se refere à reprodução dos portamentos e arrastados de certos cantos, nomeadamente os de carácter religioso. Era esta, na realidade, uma atitude inteiramente nova para a época e problema que ainda hoje pode constituir matéria de enleio para os etnomusicologistas mais experimentados. Novidade ainda, de certo modo, as notícias mais ou menos desenvolvidas que acompanham muitos dos cantos, notícias de carácter não apenas descritivo, senão que também, e principalmente, de interpretação e integração, digamos, sociocultural.

Os cantos compendiados distribuem-se por três secções: 1) Romances, doze espécies sem dúvida de grande interesse, mas que, sob o ponto de vista da

estrutura e da expressão, devemos considerar tão-só como uma extensão dos romances já anteriormente publicados por Pedro Fernandes Tomás nas suas duas colectâneas, Velhas Canções e Romances Populares Portugueses, de 1913, e Cantares do Povo, de 1919;

2) Canções Religiosas, sem dúvida a parte mais valiosa e, para assim dizer, inédita, do trabalho de Francisco Serrano. Aqui é que nada se nos depara a bem dizer semelhante nem nas duas colectâneas já referidas de P. F. Tomás (a que há a acrescentar o voluminho das Canções Populares da Beira, de 1896), nem nos três grossos volumes do Cancioneiro de Músicas Populares, de César das Neves e Gualdino de Campos, respectivamente de 1893, 1895 e 1898. Com efeito, estes cantos, na finura dos seus contornos melódicos, na flexibilidade dos seus ritmos, na sua formulação ora modal, ora tonal, ora modal-tonal, na variedade das suas expressões, desvendam-nos uma dimensão insuspeitada na música religiosa tradicional portuguesa, bem longe das espécies mais ou menos esteriotipadas de um sentimentalismo devocional de raiz semiculta ou amatória no geral compendiadas por Pedro Fernandes Tomás e César das Neves. Reproduzamos aqui dois desses formosos cantos, tal como Serrano os notou. O primeiro é um Terço de Domingo de Ramos e de Sexta-Feira da Paixão; o segundo é o julgamento da Alma.

Terço de Domingo de Ramos e de Sexta-Feira de Paixão Mação (Ribatejo)

Julgamento da alma (pauta) Mação (Ribatejo)

A terceira secção é formada de várias canções. Trata-se certamente de espécies de muito menor

interesse etnomusicológico, quando comparadas com os Romances ou as Canções Religiosas de que acima se falou. Não obstante, raro se cai na quase nulidade das canções profanas mais comummente vulgarizadas e recolhidas por boa parte dos nossos folcloristas. Algumas delas possuem inegável graciosidade ou carácter jocoso, e uma delas, pelo menos, merece que a reproduzamos pelo seu

100

Page 101: Conteudo Livro FLG CPP

caprichismo virtuosístico. É a canção intitulada O rouxinol, sobre a qual F. Serrano tece algumas considerações, cujos dois últimos parágrafos transcrevemos:

Persuadiam-se os rapazes do meu tempo de que percebiam, no canto dos rouxinóis, as palavras que estes diziam aos filhos, e cantando pretendiam, debalde, imitar os lindos gorjeios dos tão afamados cantores dos bosques e jardins.

É muito difícil, se não impossível, trasladar para aqui os sons empregados pelos rapazes para imitar o canto do rouxinol. No entanto, os que pude concretizar em notas definidas aí vão:

O rouxinol Mação (Ribatejo)

Além dos já mencionados trabalhos de Pedro Fernandes Tomás e de César das Neves-Gualdino de Campos, nada praticamente há a considerar entre nós em matéria de investigação etnomusicológica até ao aparecimento do livrinho de Francisco Serrano. Aliás, o termo de etnomusicologia só com grandes reservas se poderá aplicar quanto a P. F. Tomás, e é quase de todo inaplicável a respeito de C. das Neves-G. de Campos. E isto porque, com diminuto número de excepções, as espécies compendiadas por estes obreiros (e mormente as que figuram no Cancioneiro de Músicas Populares) não apresentam a vera fisionomia da música folclórica, sendo antes como que produtos (ou subprodutos) de uma arte menor não propriamente popular mas sim popularizada.

De sorte que nos cumpre ver nos Romances e Canções Populares da Minha Terra de Francisco Serrano a primeira tentativa de uma etnomusicologia consciente (acaso talvez apenas intuitiva), que dá conta da riqueza e especificidade da música tradicional portuguesa, muito embora circunscrita a uma pequena zona do País.

(Tenha-se tudo quanto fica dito apenas como meras hipóteses de trabalho, que possíveis e muito desejáveis investigações futuras poderão confirmar, corrigir ou invalidar.)

101

Page 102: Conteudo Livro FLG CPP

Letras das Canções

1. No figueiral, figueiredo

No figueiral, figueiredo, A no figueiral entrei: Seis ninhas encontrara, Seis ninhas encontrei. Pera ellas andara, Pera ellas andei. Chorando as achara, Chorando as achei. Logo lhes pescudara, Logo lhes pescudei. Quem las maltratara, Ya tão mala ley. No figueiral, figueiredo, A no figueiral entrei. Una repricara: Infançom nom sei. Mal haja la terra, Que tene o mal Rey. S’eu las armas usara, Ya mi fé nom sei, Se hombre a ,i, levara, De tão mala ley. A Deos vos vayades, Garçom cá nom sey, Se onde me falades, Mais vos falarei. No figueiral, figueiredo, A no figueiral entrei. 2. Bendito «das trovoadas»

Bendito e louvado seja O Santis’smo Sacramento Da Eucaristia. Fruto do ventre sagrado Da Virgem puris’sma

Santa Maria. Glória seja ao Pai, Ao Filho, Ao Amor também. Três pessoas divinas Seja agora e sempre, Sempre, Amen. 3. Márcia Bela

Desejo viver contigo, sem ti não posso viver. Ai Márcia bela, tem dó, tem dó, foge a teus pais e vem p’ra mim só. Viver sem ti, não é vida, viver sem ti é morrer. Ai Márcia bela, tem dó, tem dó, foge a teus pais e vem p’ra mim só. Tão triste, triste me vejo, sem a tua companhia. Ai Márcia bela, tem dó, tem dó, foge a teus pais e vem p’ra mim só. Tão triste, que já não sei se fui alegre algum dia. Ai Márcia bela, tem dó, tem dó, foge a teus pais e vem p’ra mim só. 4. Não quero que vás à monda (I)

Não quero que vás à monda, Nem à ribeira lavar; Não quero que vás à monda, Que vás à monda, que vás mondar. Não quero que vás à monda, Nem à seara ceifar; Não quero que vás à monda, Que vás à monda, que vás mondar.

102

Page 103: Conteudo Livro FLG CPP

5. Rapariga tola, tola

Rapariga tola, tola, Olha o que vais fazer, Oh és tão linda! Olha o que vais fazer. Vai casar com um soldado, Mais te valia morrer, Oh és tão linda! Mais te valia morrer. 6. Era ainda pequenina

Era ainda pequenina, Acabada de nascer, Inda mal abria os olhos, Já era para te ver, Acabada de nascer. O ló, ai larilóléla, O ló, ai larilóló. 7. Minha mãe me deu um lenço

Minha mãe me deu um lenço, E meu pai me deu a blusa. Eu quero andar em cabelo, Pois é o que se agora usa. Eu perdi o meu lencinho, No terreiro a bailar. Minha mãe não me dá outro, Em cabelo hei de andar. 8. Romance de Santa Iria

‘Stando eu a coser Na minha almofada, Minha agulha d’ouro, Meu dedal de prata. Passou um passageiro

Pedindo pousada, Meu pai tão bom era, Que tudo lhe dava. Lá p’rá meia noite Me achei roubada, Três léguas andadas Sem me darem fala. Indo para as quatro Que me preguntaram – Tu na tua terra como te chamavas? Eu na minha terra Iria estimada; Por estas montadas Vou ser desgraçada. Palavra que deste Vais ser degolada, Entre dois penedos Vais ser enterrada. Bela pastorinha, Que gado guardais, Que ermida é aquela Que além avistais? É Santa Iria Bem aventurada, Matou-a o tirano, Morreu degolada. Iria, Iria, Meu amor primeiro, Perdoa-me tudo, Serei teu romeiro. Como hei-de perdoar-te, Ladrão carniceiro, Se de minha garganta Fizeste um carneiro. Veste-te de luto, Sobe ao deserto, Se deus te perdoar, Perdoar-te quero.

103

Page 104: Conteudo Livro FLG CPP

9. Meu lírio roxo

A morte vem e não tarda, Eu dela não me atemorizo, Meu lírio roxo! Dela não me atemorizo. À boca de uma espingarda Eu tive o primeiro aviso, Meu lírio roxo! Tive o primeiro aviso. 10. Malhão de Mira

Ó Malhão, triste Malhão, Ai, triste vida te hei de dar, Ai, nem hei de casar contigo, Ai, nem t’hei-de deixar casar, La-ri-lo-le-lá, Ló-ra-li-le-lo, Levanta a saia Que a sujas do pó La-ri-lo-le-lá, Vem cá meu amor, Quem promete e falta É enganador. 11. São João da Serra

Ó meu rio S. João, Donde vens tão coradinho? Venho do rio Jordão, De comer o pão e o vinho. La-ri-lo-le-la! Eu venho, eu venho De ver o pastor e mais o seu anho. Abaixai-vos, carvalheiras, Com a rama para o chão, Deixai passar as romeiras, Que vão para o São João. La-ri-lo-le-la!

Eu venho, eu venho De ver o pastor e mais o seu anho. 12. Ó divina Santa Cruz

Ai, ó divina Santa Cruz, à tua porta cheguei, Ai, tantos anjos me acompanhem Como de passadas dei. Ai, ó divina Santa Cruz, Quem vos varreu o terreiro? Ai, foram os vossos mordomos, Com raminhos de loureiro. Ai, ó divina Santa Cruz, Para lá vou eu andando, Ai, minha alma já lá está, Meu coração ‘sta chegando. 13. Romance do Conde de Alemanha

Já lá vem o sol nascendo, Já lá vem o novo dia, E o conde de Alemanha, Com a rainha dormia. Não o sabe nem el-rei, Nem quantos na corte havia: Sabe-o só a Dona Infanta, Filha da mesma rainha. Minha filha, se o sabes, Não o dês a descobrir, Que o conde é muito rico, De ouro te há de vestir. Não quero os seus fatos de oiro, Que tenho os meus de damasco, Inda meu pai não é morto, Já me querem dar padrasto. As mangas desta camisa Eu não as chegue a romper, Que em meu pai vindo da missa, Eu lho saberei dizer.

104

Page 105: Conteudo Livro FLG CPP

14. Malhão de Arganil

Ó Malhão, triste Malhão, Malhão, triste Malhão, Ó Malhão, triste coitado, Por causa de ti, Malhão, Ó estrela! Vou preso p’ra soldado. Ó Malhão, Malhão, Malhão não sou eu, Se fora Malhão, Roubava-te eu. Ó Malhão, triste Malhão, Malhão, triste Malhão, Ó Malhão, triste coitado, Por causa de ti, Malhão, Ó estrela! Ando roto, esfarrapado. Ó Malhão, Malhão, Vai malhar se queres, O mundo é largo, Não faltam mulheres. 15. Vai-te embora, ó papão

Vai-te embora, ó papão, De cima desse telhado; Deixa dormir o menino Um soninho descansado. 16. Ó minha amora madura

Ó minha amora madura, Diz-me quem te amadurou: Foi o sol e a geada E o calor que ela apanhou. E o calor que ela apanhou, Debaixo da silveirinha: Ó minha amora madura, minha amora madurinha.

17. Romance do cego (frag.to)

Minha mãe, acorde Do doce dormir, Venha ouvir o cego Cantar e pedir. Venha cá, ó mãe, Venha cá ouvir Um cego tão lindo Que está a pedir. 18. Nossa Senhora da Póvoa

Nossa Senhora da Póvoa, Pequenina e airosa; A gente vem de tão longe, Só por ver tão linda rosa. Nossa Senhora da Póvoa, Os vossos vales têm trigo. Bem pudéreis vós, Senhora, Tê-los de meias comigo. 19. Canção da vindima

Não se me dá que vindimem Vinhas que eu já vindimei; Não se me dá que outros logrem, Ai, amores que eu rejeitei. Fui um ano à vindima Pagaram-ma a trinta réis, Dei um vintém ao barqueiro, Ai, fui p’ra casa com dez réis. Pela folha da videira Conheço eu a latada; Faço-me desatendida, Ai, a mim não me escapa nada. ‘Stou debaixo da latada, Nem à sombra, nem ao sol; ‘Stou ao pé do meu amor, Ai, não há regalo maior.

105

Page 106: Conteudo Livro FLG CPP

20. Lavra, boi, lavra

Lavra, boi, lavra, Na chã da Portela, Repica, repica, Na vaca amarela! Ei, boi a lavrar, Ei, boi! Lavra, boi, lavra, Na chã do Vilar, Comer e beber, E toca a virar! Ei, boi a lavrar, Ei, boi! Lavra, boi, lavra, Não digas que não! Repica, repica, Rodinha no chão! Ei, boi a lavrar, Ei, boi! 21. Malhão da Beira

Não choro por me deixares, Que o jardim mais flores tem; Choro por não encontrares Quem te queira tanto bem. Ó Malhão, Malhão, Vai malhar se queres; O mundo é largo, Não faltam mulheres! Por te amar perdi a deus, Por teu amor me perdi; Agora vejo-me só, Sem deus, sem amor, sem tí. Ó Malhão, Malhão, Vai malhar se queres; O mundo é largo, Não faltam mulheres! 22. Nana, nana, meu menino

Nana, nana, meu menino, Que a mãezinha logo vem; Foi lavar os teus paninhos À pocinha de Belém. O meu menino é d’oiro, D’oiro é o meu menino; Hei-de levá-lo aos anjos, A criar que é pequenino. 23. Gerinaldo

Gerinaldo, Gerinaldo, Pagem d’El Rei tão querido Bem podias, Gerinaldo, Passar a noite comigo. – Zombais comigo, senhora, Por ser o vosso cativo. – Eu não to digo zombando, É deveras que to digo. – Pois quando qu’reis vós, senhora, Que vá pelo prometido? – Lá pela noite adeante, Quando El Rei seja dormindo. Logo ao dar da meia noite, Gerinaldo já erguido, Foi ao quarto da princesa, Deu um ai mui dolorido. – Quem dá ais à minha porta, Quem será o atrevido? – É Gerinaldo, senhora, Que vem pelo prometido. Ide abrir a minha porta, Que El Rei não seja sentido, Anda cá, ó Gerinaldo, Podes te deitar comigo. 24. Donde vens, ó Ana?

– Donde vens, ó Ana? – Venho da Junqueira. – Cheira-me o te fato, ó ai,

106

Page 107: Conteudo Livro FLG CPP

À flor da laranjeira. À flor da laranjeira, À flor do alecrim. – Donde vens, ó Ana, ó ai? – Eu venho do jardim. 25. Cantilena de abaúlar (I)

– Vai, vai, ó camarada! Vai, vai, pró pé da estrada! – Vou, vou! Companheironho! Vou, vou, pró pé do caminho. – Toca prá aqui o gado, Vamos jogar um bocado. – Vou, vou, ó companheira, Vou, vou, prá tua beira. – Vem, vem, ó companheiro, Vem, vem, pra este outeiro. – Não posso ir para aí, Vem tu, então, para aqui. – Vou, vou, e tu também, Vou, vou, olaré, meu bem! – Não posso ir agora, É tarde, vou-me já embora. 26. Cantiga do Entrudo

Lá em baixo vem o Entrudo, De gordo não pode andar; Que comeu um burro ruço, Entre o almoço e o jantar. Ó Entrudo, ó entrudo, Ó Entrudo chocalheiro, Que não deixas assentar, As mocinhas ao solheiro. 27. Do varão nasceu a vara

Do varão nasceu a vara, Da vara nasceu a flor, E da flor nasceu Maria, De Maria o redentor. Gloria in excelsis Deo. Oh, que noite tão serena, Cercada de resplendores! Nasceu da Virgem Maria, Um ramalhete de flores. Gloria in excelsis Deo. 28. Eu hei de dar ao Menino

Eu hei-de dar ao Menino Uma fita pró chapéu; Também El’nos há de dar Um lugarzinho no céu. Não façam bulha Ao Deus menino, Não o acordeis, Que está dormindo. Em vez de O brindar Com algum mimo, Dêem-lhe leite, Que é pequenino. Eu hei de dar ao Menino Ao Menino hei de dar Camisinha de Bretanha Nesta noite de Natal. Não façam bulha Ao Deus menino, Não o acordeis, Que está dormindo. Em vez de O brindar Com algum mimo, Dêem-lhe leite, Que é pequenino.

107

Page 108: Conteudo Livro FLG CPP

29. Olé, rapazes pimpões

Olé, rapazes pimpões, Cantemos à desgarrada, Para alegrar o Menino, Maila sua Mãe sagrada. Maila sua Mãe sagrada. Acabaste de cantar; Lembraste, bem, ó rapaz, Atrás não hei de ficar. Atrás não hei de ficar, Não de certo a ninguém, Faria triste figura Junto à lapa de Belém. Junto à lapa de Belém, Grande alegria tivemos, Vamos prós nossos casais, Gabar-nos do que fizemos. 30. Os pastores em Belém

Os pastores em Belém, Todos juntos vão à lenha, Pra aquecer o Deus menino Que nasceu na noite boina. Pastores que andais à lenha, Não queimeis o rosmaninho, Que donde a Virgem ‘stendia Os cueiros do Menino. Vamos a Belém, A Belém, a Belenzinho Vamos a Belém Adorar o Deus menino. 31. Nasceu, já nasceu

Nasceu, já nasceu, Meu bem, meu Menino, Amor pequenino, Nasceu, já nasceu. Nos braços de amor

Já Ele está nascido, Jesus, como belo, Jesus, como lindo! Nasceu, já nasceu, Meu bem, meu Menino, Amor pequenino, Nasceu, já nasceu. Nos braços da aurora Já ele está nascido, Jesus, tão formoso, Jesus, tão querido. 32. Visitação do menino

Oh, meu menino Jesus, Nós vos qu’remo adorar, Já lá vem o sacerdote, Já vos estão a beijar. Roxozinho, estás deitado, Em palhinhas Deus Infante, Mas não há em fresca rosa Botãozinho tão galante. Entrai, pastores, entrai. Na lapinha de Belém. Adorar o Deus Menino, Que nasceu pra vosso bem. Bem pudera Deus nascer Numa cama de ouro fino, Mas pra dar exmplo ao mundo Foi nascer num palheirinho. Entrai, pastores, entrai, Por essas portas abertas, Vinde ver o Deus Menino A receber as ofertas. 33. Adoração do Menino

Vinde e adoremos A Jesus nascido, Qu’Ele vem resgatar O mundo cativo.

108

Page 109: Conteudo Livro FLG CPP

Beijai o Menino, Beijai-o agora, Beijai o Menino De Nossa Senhora. Beijai o Menino, Beijai-o no pé, Beijai o Menino De São José. 34. Acordai, se estais dormindo

Acordai, se estais dormindo, Desse sono tão profundo, Que à porta vos estão pedindo Prás almas do outro mundo. As almas do outro mundo, Elas nos mandam pedir, Dai esmola se puderes, Que elas não podem cá vir. 35.Inda agora aqui cheguei

Inda agora aqui cheguei, Já puz o pé na escada, Logo o meu coração disse: Aqui mora gente honrada. Aquela relvinha, Que o vento gelou, É a mãe de Jesus, Que tão pura ficou. Inda agora aqui cheguei, Já puz o pé no balcão, Logo o meu coração disse: Aqui mora um bom cristão. Aquela relvinha, Que o vento gelou, É a mãe de Jesus, Que tão pura ficou. 36. Deus lhe dê cá as boas noites

Deus lhe dê cá as boas noites, Boas noites de alegria, Que lhas manda o rei da glória, Filho da Virgem Maria. Inda agora aqui cheguei, Logo puz o pé no balcão, Logo o meu coração disse: Aqui mora gente honrada. Deus lhe dê cá as boas noites, Boas noites de alegria, Que lhas manda o rei da glória, Filho da Virgem Maria. 37. Moradoras desta casa

Moradoras desta casa, Aquelas que são casadas, Ouvi os nossos descantes, Vinde nos dar janeiradas. Moradoras desta casa, Aquelas que são solteiras, Ouvi os nossos descantes, Vinde nos dar as janeiras. 38. Estas casas são mui altas

Estas casas são mui altas, Forradinhas de alegria, Viva quem nelas passeia, Que é a Senhora Maria. Estas casas são mui altas, Mas não lhes chegamos nós, Viva quem nelas passeia, Quem ‘stá a fazer as filhós. 39. Ó da casa, cavalheira

Ó da casa, cavalheira ‘Scutareis e ouvireis, Duas meninas, donzelas, Que vos vem pedir os Reis.

109

Page 110: Conteudo Livro FLG CPP

Estes Reis são aliados A uma ‘strela da guia. A ‘strelinha se escondeu Aos pés da Virgem Maria. 40. Ai, acabadas são as festas

Ai, acabadas são as festas, Ai, chegados são os três Reis. Ai, olhem lá por suas casas Se há alguma coisa que deis. Ai, senhora que estais ao lume, Ai, assentada na cortiça, Ai, levantai-vos, ó senhora, Vinde nos dar a choiriça. Ai, cá esp’ramos confiados, Ai, que que a esmola nos dareis. Ai, quer a deis, quer a não deis, Sempre vós ao céu ireis. 41. Vimos-lhe cantar os Reis

Vimos-lhe cantar os Reis, Com prazer e alegria. Que nasceu o Deus Menino, Filho da Virgem Maria. 42. Se dormis, cristãos

Se dormis, cristãos, Acordai e rezai Pelas almas do vossos irmãos. 43. Rezemos um Padre Nosso

Rezemos um Padre Nosso! E uma Ave Maria, Em louvor, em louvor Do Senhor d’Agonia! 44. Alerta, alerta

Alerta, alerta, Vida é curta, morte é certa! Ó irmãos meus, filhos de Maria, Pelas almas do Purgatório, Um Padre Nosso, ‘ma Ave Maria! 45. Recordai, ó irmãos meus

Recordai, ó irmãos meus, Nesse sono em que estais, Rezemos um Padre Nosso, Por alma de nossos pais. 46. Ó almas que estais dormindo

Ó almas que estais dormindo Nesse sono tão profundo, Rezemos um Padre Nosso P’las almas do outro mundo. Mais vos peço, ó irmãos, Um Padre Nosso, uma Ave Maria, Por essas benditas almas, Nas penas do purgatório. Seja p’lo amor de Deus, P’lo amor de Deus, seja. 47. Bendita e louvada seja

Bendita e louvada seja A sagrada morte e paixão, Paixão de Jesus Cristo, E seja pelo amor de Deus, seja, Alembrai-vos, meus irmãos, Das benditas almas, Que lá ‘stão no Purgatório, Ajudai-as a tirar, C’um Padre Nosso E u a Ave Maria E seja, pelo amor de Deus, seja. 48. Ai, recorda, ó pecador

110

Page 111: Conteudo Livro FLG CPP

Ai, recorda, ó pecador, Nesse sono em que estais, Ai, recorda e rezai Pelas almas dos vossos pais. 49. Lundu da Figueira

(Lopes-Graça faz apenas uso instrumental desta canção.) 50. Oh, que janela tão alta

Oh, que janela tão alta Feita de cal e areia, Oh, que menina tão linda, Numa janela tão feia. Oh, que janela tão alta, Eu a fiz eu a risquei, A menina que está nela, Só por morte a deixarei. Janela de pau de pinho, Que a meu respeito te abriste, Torna-te a cerrar janela, Disfarça que não me viste. 51. Fui-te ver, ‘stavas lavando

Fui-te ver, ‘stavas lavando No rio sem assabão, Lavas em águas de rosas, Fica-te o cheiro na mão. Fica-te o cheiro na mão, Fica-te o cheiro no fato, Se eu morrer e tu ficar’s, Adora-me o meu retrato. Adora-me o meu retrato, Adora o meu coração, Fui-te ver, ‘stavas lavando No rio sem assabão. 52. Cantiga da Atalaia

Indo eu para a Atalaia, Minha roupa já lá vai; O bem querer dos amores, É como de mãe e pai. Indo eu para a Atalaia, Minha roupa vai à frente; O bem querer dos amores, É como o de toda a gente. 53. O milho da nossa terra

O milho da nossa terra, Ai, o milho da nossa terra, É tratado com carinho. É a riqueza do povo, Ai, é a riqueza do povo, É o pão dos probrezinhos. Milho branco e amarelo Ai, milho branco e amarelo Sacha-o bem, ó sachadeira, Que é suor do nosso rosto, Ai que é suor do nosso rosto, O pão da nossa canseira. Milho verde, milho verde, Ai, milho verde, milho verde, Milheral do regadio. Quem tem milho todo o ano, Ai, quem tem milho todo o ano, Não passa fome nem frio.

54. Lá em baixo vem a raposa

Lá em baixo vem a raposa, Eh, lá! Com seu rabo pelo chão. Vem, vem, chega ali, Maria, meu bem. Vem perguntando aos pastores, Eh, lá! Se há cordeiros ou não. Vem, vem, chega ali, Maria, meu bem. Os pastores lhe respondem, Eh, lá!

111

Page 112: Conteudo Livro FLG CPP

Perguntai-o ao meu cão. Vem, vem, chega ali, Maria, meu bem. 55. Não segueis o trigo verde

Não segueis o trigo verde, deixai-o amadurar, Que nas ondas do mar anda Quem o ha de vir segar. Não segueis o trigo verde, Deixai-o subir, crescer, Que nas ondas do mar anda Quem o há de vir comer. 56. Na aldeia de Amareleja

Na Aldeia de Amareleja, Quem brilha são os pastores, Já querem roubar as moças, Linda rosa, Aos melhor’s trabalhadores. Aos melhor’s trabalhadores, Na aldeia de Amareleja, Na aldeia de Amareleja, Quem brilha são os pastores. 57. A Senhora d’Aires

A Senhora d’Aires, De ao pé de Viana, Tem o seu altar Feito à romana. Tem o seu altar Feito à romana, A Senhora d’Aires, De ao pé de Viana. 58. Ó ladrão, que te vais embora

Ó ladrão, que te vais embora, Ó ladrão, que te vais assim, Ó ladrão, se te vais embora, Não te lembres mais de mim.

Quem tem pinheiros, tem pinhas, Quem tem pinhas, tem pinhões, Quem tem amores, tem zelos, Quem tem zelos, tem paixões. Ó ladrão, que te vais embora, Ó ladrão, que te vais assim, Ó ladrão, se te vais embora, Não te lembres mais de mim. Se eu tivesse, não pedia Coisa nenhuma a ninguém, Mas, como não tenho, peço Uma filha a quem as tem. Ó ladrão, que te vais embora, Ó ladrão, que te vais assim, Ó ladrão, se te vais embora, Não te lembres mais de mim. 59. Já os passarinhos cantam

Já os passarinhos cantam Na oliveira do adro; Vamos nós dar as alvíçaras, Ai, à Senhora do Rosário. Já os passarinhos cantam Por cima da verde cana; Vamos nós dar as alvíçaras, Ai, à Senhora de Santana. 60. Viva o nosso patrão d’hoje

Viva o nosso patrão d’hoje, Que é um ramo de alegria. Se não ficar satisfeito, Voltaremos outro dia, Viva a nossa cozinheira, Tem uma fita amarela. Tenha conta no gatinho, Não lhe derrolhe a panela. 61. Na estrada de Braga

112

Page 113: Conteudo Livro FLG CPP

Na estrada de Braga, Don solidon, Perdi uma flor, Agora digamos, Don solidon, Viva o meu amor. Na estrada de Braga, Don solidon, Perdi uma fita, Agora digamos, Don solidon, Viva a Dona Rita. Na estrada de Braga, Don solidon, Perdi uma agulha, Agora digamos, Don solidon, Viva a Dona Júlia. Na estrada de Braga, Don solidon, Perdi um dedal, Agora digamos, Don solidon, Viva Portugal! 62. Oh, que calma vai caindo

Oh, que calma vai caindo, Ai, nos ceifadores do campo! Meu amor, que por lá andas, Ai, encosta-te ao lírio branco. Oh, que calma vai caindo, Ai, por cima dos ceifadores, Quem fora ramo de palma, Ai, que cobrira os meus amores. 63. A rolinha da calçada

A rolinha da calçada, Foi ao meu milho miúdo, Se lá a agarrasse dentro, Comia-lhe penas e tudo. A rolinha vai chorando, Que lhe roubaram o ninho, Não o fizesses tu, rola, Tanto à beira do caminho. 64. Ó Serpa, pois tu não ouves

Ó Serpa, pois tu não ouves, Os teus filhos a cantar? Enquanto os teus filhos cantam, Tu, Serpa, deves chorar. 65. Faixinha verde

Faixinha verde Não ma destes vós, Olhinhos verdes, Bem lhes mirais vós. Faixinha verde Do paninho fino, Não ma deu cunhado Nem primo. Faixinha verde Do paninho claro, Olhinhos verdes, Bem lhes mirais vós. Não ma deu primo Nem cunhado. Olhinhos verdes, Bem lhes mirais vós. 66. Na noite de São João

Ai, na noite de São João Tomei eu novos amores. Ai, depressa me arrependi: Só tive penas e dores. Ai, na noite de São João Ouvi cantar a sereia. Ai, já de mim não fazes caso, Porque dizes que sou feia. Ai, na noite de São João Vamos todas ao terreiro. Ai, venham pequenas e grandes: Toda a palha faz palheiro. Ai, na noite de São João Vou fazer à fogueira,

113

Page 114: Conteudo Livro FLG CPP

Ai, com folhas de verde louro, Com rosmaninho que cheira. 67. Nossa Senhora das Neves

da Malpica

Nossa Senhora das Neves, Já cá vamos à ladeira. Vinde apanhar uma fita, Que vos caiu da bandeira. Nossa Senhora das Neves, Tem um galo no andor. Cada vez que o galo canta, Acorda Nosso Senhor. 68. Quem tem meninos pequenos (I)

Quem tem meninos pequenos, Por força que há de cantar, Quantas vezes as mães cantam Com vontade de chorar. Uma mãe que embala o filho Ou canta ou põe-se a chorar, Só por não saber a sorte Que Deus tem para lhe dar. 69. Romance de Mineta (frag.to)

Levanta-te, Mineta, Do doce dormir, ‘Stá um cego à porta De lindo pedir. Dá-le uma esmola Ao pobre ceguinho, Dá-le do teu pão E dá-le do teu vinho. – Eu não quero do seu pão, Nem quero do seu vinho, Só quero que Mineta Me ensine o caminho. – Pega na roca E carrega a de linho,

E ao pobre cego Ensina o caminho.

70. Senhora da Encarnação

De Buarcos à Figueira, lindo bem, Senhora da Encarnação. Vá devagarinho, Vá e não vá só. Vá devagarinho, Que levanta o pó. Lá vem o meu amorzinho, lindo bem, Naquela embarcação. Vá devagarinho, Vá e não vá só. Vá devagarinho, Que levanta o pó. Nas ondas daquele mar, lindo bem, Cheirava que rescendia. Vá devagarinho, Vá e não vá só. Vá devagarinho, Que levanta o pó. Era o manto da Senhora, lindo bem, Que um marinheiro trazia. Vá devagarinho, Vá e não vá só. Vá devagarinho, Que levanta o pó.

71. Canto da Carregação

Ih! Quando o meu pai morreu, Ih! Oh ai li lâ lá lâ, Ih! Minha mãe me abandonou, Ih! Qu’ria que eu chamasse pai, Ih! Oh ai li lâ lá lâ, Ih! Ao amante que arranjou.

72. Ó, ó, menino, ó

114

Page 115: Conteudo Livro FLG CPP

Ó, ó, menino, ó, Teu pai foi ao eiró, C’uma vara d’aguilhão, P’ra matar o perdigão. Ó, ó, menino, ó, Teu pai foi ao eiró, Tua mãe à borboleta, Logo te vem dar a teta. 73. O Senhor da Serra é meu

O Senhor da Serra é meu, Que o paguei ao serão. Vira, vira do norte pró sul, Quando vira ao norte Fica o céu azul. Vira, vira, e torna a virar, Que eu nunca posso Deixar de te amar. Ó meu divino Senhor, Tende de mim compaixão. Vira, vira do norte pró sul, Quando vira ao norte Fica o céu azul. Vira, vira, e torna a virar, Que eu nunca posso Deixar de te amar. 74. Meu amor me deu um lenço

Meu amor me deu um lenço, Pelas suas mãos, Pelas suas mãos bordado. Numa ponta tem a lua, Noutra tem o sol, Noutra tem o sol pintado. No meio leva um letreiro, Do nosso tempo, Do nosso tempo passado.

75. Ó que bem baila la moura

Ó que bem baila la moura, E eu bem a vi bailar. Mourinha do Seixal, Eu bem a vi bailar. Com seu cabelo em trançado, Eu bem a vi bailar. Com seu amor pelo braço, Eu bem a vi bailar. Bailava em cabelo, Eu bem a vi bailar. Com seu amor pelo dedo, E eu bem a vi bailar. 76. Senhora do Almurtão (I)

Senhora do Almurtão, Quem vos varreu a capela?, As mocinhas da Zebreira, Com raminhos de macela. Senhora do Almurtão, Minha tão linda arraiana, Voltai costas a Castela, Não queirais ser castelhana. 77. Senhora do Almurtão (II)

Senhora do Almurtão, Oh que Senhora tão linda! Chega a vossa nomeada À cidade de Coimbra. Senhora do Almurtão, Boquinha de coral verde, Já que me destes amor, Dai-me ventura com ele. Senhora do Almurtão, Minha boquinha de riso, Minha maça camoesa, Criada no Paraíso.

115

Page 116: Conteudo Livro FLG CPP

Senhora do Almurtão, Minha rosa encarnada, Ao fundo do Alentejo Chega a vossa nomeada. 78. José embala o menino

José embala o menino, Que a senhora logo vem, Foi lavar os cueirinhos À fontinha de Belém. 79. Agora é que ela vai boa

Agora é que ela vai boa, Roubaram-me o meu rapaz; Tinha três, fiquei com quatro, ó i, ó ai, Olha a falta que me faz. O meu amor não me quer, Ora essa, olha agora, Eu tenho na minha rua, ó i, ó ai, Quem de joelhos me adora. 80. Portas d’Elvas, portas d’Elvas

Portas d’Elvas, portas d’Elvas, Portas d’Elvas, da cidade. Quem me dera ir bailando, No Senhor da Piedade. Quem me dera ir bailando, No Senhor da Piedade. Portas d’Elvas, portas d’Elvas, Portas d’Elvas, da cidade. 81. Romance de Mirandum

Mirandum se fui a la guerra, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Num sei quando benirá. Se benerá por la Páscoa, Mirandum, Mirandum, Mirandela,

Ou se por la Trênidade. La Trênidade se passa, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Mirandum num beneiá. Chubira-se a hu a torre, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Para ber se lo abistaba. Bira benir a um passe, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Que nobidades trairá? Las nobidades que traigo, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Bos ande fazer chorar. Tirai las colores de gala, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Pónei bestidos de lhuto. Que Mirandum iá é muôrto, Mirandum, Mirandum, Mirandela, You bien li bi anterrar. Ante quatro ouficiales, Mirandum, Mirandum, Mirandela, Que lo iban a lhebar. 82. Ai, ó ai, meu bem

Ai, ó ai, meu bem, ai, ó, ai, Ai, ó ai, também alivia. Pois em certas ocasiões, Se não desse um ai, morria. Ai, ó ai, meu bem, ai, ó, ai, Ai, ó ai, me sinto cercada. Só da vista dos olhos teus, Me vejo desamparada. 83. Cisirão, cisirão

Cisirão, cisirão, Cisirão, meu lindo bem. Vai-se o meu amor embora, Deixa-lo, que logo vem.

116

Page 117: Conteudo Livro FLG CPP

Deixa-lo, que logo vem, Nas manhãs de São João, Vai-se o meu amor embora, Eu fico na solidão. 84. São horas de emalar as troixas

São horas de emalar as troixas, É noite, ó tia Maria, À sombra de um acipreste, Eu pedi-te um beijo, E tu não mo deste. As troixas bem emaladas, Já não têm sabedoria. À sombra de um acipreste, Eu pedi-te um beijo, E tu não mo deste. 85. Este nosso amo d’hoje

Este nosso amo d’hoje É rico e tem dinheiro; Tem cara de homem honrado, Presunção de cavalheiro. Ó senhora cozinheira, O seu caldo cheira bem; Dê-me um pinguinho dele, Por alma de quem lá tem. 86. Meu coletinho aos ramos

Meu coletinho aos ramos, Mandei-o bordar no Porto, Deus queira que venha lindo, Que venha bordadinho ao meu gosto. Lembra-te, ó Ana, Lembra-te ainda, Aquela noite formosa e linda. Oh! não te esqueças

De novas tuas, Nem um momento Me esqueceu ainda. Toma lá colchetes d’oiro, Aperta o teu coletinho, Coração que é meu e teu, Ó ai! Deve andar conchegadinho. Lembra-te, ó Ana, Lembra-te ainda, Aquela noite formosa e linda. Oh! não te esqueças De novas tuas, Nem um momento Me esqueceu ainda. Eu tenho quatro coletes, Todos quatro por talhar, Inda a peça está na tenda, Ó ai! O dinheiro por ganhar. Lembra-te, ó Ana, Lembra-te ainda, Aquela noite formosa e linda. Oh! não te esqueças De novas tuas, Nem um momento Me esqueceu ainda. 87. Ó Senhora do Amparo

Ó Senhora do Amparo! Ela lá em cima vem, Com seu menino ao colo, E seu cabelo ao desdém. Ó Senhora do Amparo! Tem o amparo na mão, Amparai-me a minha alma, Também o meu coração. Ó Senhora do Amparo! Tem a bolsa à janela, Para pagar ao pintor Que lhe pintou a capela.

117

Page 118: Conteudo Livro FLG CPP

Ó Senhora do Amparo! Que lá ‘stais no olival, Guardai-me a minha azeitona, Que m’a comem os pardais. 88. Canta, camarada, canta,

Canta, camarada, canta, Canta, que ninguém te afronta, Que esta minha espada corta, Dos copos até à ponta. Eu hei-de morrer de um tiro, Ou de uma faca de ponta, Se hei de morrer amanhã, Morra hoje, tanto monta. Tenho sina de morrer Na ponta de uma navalha, Toda a vida hei-de dizer: Morra o homem na batalha. Canta, camarada, canta, Canta, que ninguém te afronta, Que esta minha espada corta, Dos copos até à ponta.

89. Sete varas tem

Sete varas tem, Tem a minha saia nova, Sete varas tem, E ao mais não lhe faz a roda. Bem cantada ou mal cantada, La-ra-lé, ó linda! Oh bem haja quem m’a cantou. Eu ‘stava muito rouquinha, La-ra-lé, ó linda! Oh bem haja quem me ajudou. Oito varas tem, Tem a minha saia nova, Oito varas tem, E ao mais não lhe faz a roda.

Quem me dera dar um ai, La-ra-lé, ó linda! Oh, que dentro do céu se ouvira. Que dissesse a minha mãe, La-ra-lé, ó linda! Oh, foi um ai de sua filha. Nove varas tem, Tem a minha saia nova, Nove varas tem, E ao mais não lhe faz a roda. Ó senhora nossa ama, La-ra-lé, ó linda! Oh, venha abaixo ao serão. Venha ver as segadoras, La-ra-lé, ó linda! Oh, que segaram n’o seu pão.

90. A moda da Rita (I)

Esta é que era a moda Que a Rita cantava, Lá na Praia Nova, olaré, Ninguém lhe ganhava. Ninguém lhe ganhava. Ninguém lhe ganhou, Esta é que era a moda Que a Rita cantou. De manhã à noite Suspiros e ais, Por ti, meu amor, olaré, Cada vez dou mais. Algum dia eu era, Agora já não, Da tua roseira, olaré, O melhor botão. Esta é que era a moda Que a Rita cantava, Lá na Praia Nova, olaré, Ninguém lhe ganhava. Ninguém lhe ganhava.

118

Page 119: Conteudo Livro FLG CPP

Ninguém lhe ganhou, Esta é que era a moda Que a Rita cantou. 91. Adeus, Largo do Prumal

Adeus, Largo do Prumal, Tens duas pedras de assento: Varairá, Santa da minha fé! Não ponhas assim o pé Dessa maneira. Uma é para namorar, Outra p’ra passar o tempo. Varairá, Santa da minha fé! Não ponhas assim o pé Dessa maneira. Adeus, caminho da fonte, Já de mim não é seguido: Varairá, Santa da minha fé! Não ponhas assim o pé Dessa maneira. Já quebraram as vidraças, Onde tinha o meu sentido. Varairá, Santa da minha fé! Não ponhas assim o pé Dessa maneira. 92. Andorinha gloriosa

Andorinha gloriosa, Tão perfeita como a rosa, Quando deus aqui nasceu, Toda a terra estremeceu. Quando deus aqui nasceu, Toda a terra estremeceu. Veio o anjo Gabriel Perguntar pelos pastores, – Pastorinhos, de bom dia, Aqui está Santa Maria. Co seu livrinho na mão Rezando a oração.

93. Romance do soldadinho

Entrada do mês de Maio, Saída da Primavera, Encontrei o rei Fernando Com soldadinhos p’rá guerra. Vão todos alegres cantando, Só um é que não alegra, – Que tens, triste soldadinho, Tão triste que andas na guerra? Ou te lembra pai ou mãe, Ou gente da tua terra, – Só me lembra a minha amada, É bonita e donzela! – Se te lembra a tua amada, Sete anos te eu darei, Ao cabo de sete anos Às armas te chamarei. Soldado se separou, Ao caminho se deitou, Pelo meio do caminho O inimigo encontrou. Não atolheeis, cavalo, Não tolheeis aqui, – Onde vais, ó soldadinho, Onde vais agora aí? – Vou a ver a minha amada, Há anos que não a vi. – Tua amada já morreu, É morta, que eu bem n’a vi.

94. Quatro laços da dança de paulitos

Pr’aquella cañada arriba Y una lliebre vi correr(i), Tu l’atires, yo l’atiro, Ñula pudimos coger(i). Tu l’atiraste, yo l’atiré, Ni tu la mataste, Ni yo la maté.

119

Page 120: Conteudo Livro FLG CPP

Ao lugar de Freizeneda Hay una mulher valente, Y que manda os seus filhos Que batam em toda a gente. É uma mulher perversa, Que arma ruines e questões. Não hay outra em Portugal, Nem em todas as nações. Se quiés ir a culher rozas Y ao jardim de meu senhori E a colher a branca flori, E a colher a mais de baixo, Que são de milhor olori, milhor olori. Y a la berde retamar Solito y andari, berde, derdim, Y a la sombra daquel olival, Solito andari, mi amor dormin. Reténte aqui, reténte ali, Mozo galão, pulido João, Corregidori, Corregidori, Y a las carceis me llevaram preso, Solito andari, não é por traidori. 95. Ai de mim, tanta laranja

Ai de mim, tanta laranja, Tanta silva, tanta amora, Tanta moça tão bonita E o meu pai sem uma nora. E o meu pai sem uma nora, Minha mãe nora não tem. Ai de mim, tanta laranja Que esta laranjeira tem. 96. Anda, duérmete, niño

Anda, duérmete, niño, Que viene el coco, A comere los niños Que duermen poco. Anda, duérmete, niño, E duérmete, amor, El coco já no viene,

Mi niño é u a flor. 97. Romance de Dom Jorge

Chegando o senhor Dom Jorge Das batalhas de Além-mar, Correu logo a ver esposa, Que deixara no solar. Ao chegar ao seu palácio, Em noite de São João, Achou-o todo enfeitado Com florinhas de limão. Não se eneitou p’ra Dom Jorge, Nem p’ro Santo Precursor, Enfeitou-se p´ra Dom Bento, Filho do Imperador. – Abre as portas, Branca-Linda, Abre as portas Branca-Flor, Dize-me se estais dormindo, Ou se já tens outro amor. – Ainda não ‘stou dormindo, Também não tenho outro amor, São perdidas, não achadas, As chaves do corredor. 98. Deus te guarde, pastorinha

Deus te guarde, pastorinha, E o gado que guardais, – Venhas com Deus passageiro, Salvado de Deus sejais. – Eu salvei e vós salvastes, Cumprimos nosso dever; Foi criação que nos deram, De a tudo arresponder. – Anda comigo, pastora, Anda comigo, deixa o gado, Vem comigo p’ra cidade, Passearás ao meu lado. – Eu ando no monte cô’ gado,

120

Page 121: Conteudo Livro FLG CPP

Ouvo cantar os passarinhos, Não me posso sustentar, Com abraços e beijinhos. Toda a vida fui pastor, E amiguinho das ovelhas, Das meninas que têm saia, E Almendrilhas nas orelhas. 99. Já não vou a Vendas Novas

Já não vou a Vendas Novas, Já não vejo o meu amor; Empresta-me o guarda chuva, Maquinista do vapor. Maquinista do vapor, Maquinista da ‘stação, Já não vou a vendas novas, Amor do meu coração.

100. Não quero que vás à monda (II)

Não quero que vás à monda, Nem à ribeira lavar, Só quero que me acompanhes No dia em que me eu casar. Hás-de ser minha madrinha; Não quero que vás à monda, Não quero que vás à monda, Nem à ribeira sozinha. Andas morta por saber Onde eu passo os meus serões: Na venda das vendedeiras, Encostadinho aos balcões. Adeus, ponte de Marvão, Adeu, varge do Xerez, Já me disseste o não, Ainda ateimo outra vez. 101. Romance da menina cativa

Nos campos da vila rica, Mas ai, vida minha!

Junto a los canos da água. Vida del alma! Passease un cabalero, Mas ai, vida minha! Com sua mulher Dona Ana. Vida del alma! Esses dois têm uma filha, Mas ai, vida minha! Dona Xaviele se chama, Vida del alma! Cáutivaram-la los mouros, Mas ai, vida minha! Manhacinha de Santana. Vida del alma! Sube arriba cristaninha, Mas ai, vida minha! Sube arriba àquela ventana, Vida del alma! Verá-lo Sol e a Lua, Mas ai, vida minha! E o luzeiro da manhana, Vida del alma! 102. Meu lírio roxo do campo

Meu lírio roxo do campo, Criado na primavera, Quem me dera amor, Ai, ai, O teu sentido qual era. O teu sentido qual era, Isso é o que eu qu’ria saber; Meu lírio roxo do campo, Ai, ai, Quem te pudesse colher. Não julgues por eu cantar, Que a vida alegre me corre, Eu sou como o passarinho, Tanto canta até que morre.

121

Page 122: Conteudo Livro FLG CPP

103. Se fores ao São João

Se fores ao São João, Baptista, Baptista, Trazei-me um São Joãozinho, Toma lá, dá cá, São João Baptista, Vem cá, vem cá. Se não puderes c’um grande, Baptista, Baptista, Trazei-me um mais pequenino, Toma lá, dá cá. São João Baptista, Vem cá, vem cá. São João adormeceu, Baptista, Baptista, Nas escadinhas do coro, Toma lá, dá cá, São João Baptista, Vem cá, vem cá. Deram as bruxas com ele, Baptista, Baptista, Chuparam-lhe o sangue todo, Toma lá, dá cá, São João Baptista, Vem cá, vem cá. Onde andará São João, Baptista, Baptista, Que não o vejo na igreja, Toma lá, dá cá, São João Baptista, Vem cá, vem cá. Anda a correr as fogueiras, Baptista, Baptista, Para ver quem o festeja, Toma lá, dá cá, São João Baptista, Vem cá, vem cá. 104. Passarinha trigueira

Passarinha trigueira, Das asas loiras,

Ela fugiu da gaiola, E vai em ciroilas. Passarinha trigueira, Das asas pretas, Ela fugiu da gaiola, E vai em muletas.

105. São João de Louredo de Guilhofrei

Ó meu São João Batista, A vossa capela cheira; Cheira a cravo, cheira a rosas, E a flor da laranjeira. Ó meu São João Batista, De que quereis as capelas? De cravos e mais de rosas, Com cravinas amarelas.

106. Nossa Senhora do Carmo

Nossa Senhora do Carmo, Ai, onde a foram pôr. Ai, la ri, ai, la ri lo lé la, Ai, la ri lo lé, sou tua. Lá no cabeço do prado, Onde não há outra flor. Ai, la ri, ai, la ri lo lé la, Ai, la ri lo lé, sou tua. 107. Oh, que novas tão alegres

Oh, que novas tão alegres Que trago à Virgem Maria, Ressuscitou o seu Filho, Nesta manhã de alegria. Nesta manhã de alegria, Nesta manhã do Senhor, Ressuscitou o seu Filho, O Divino Salvador.

122

Page 123: Conteudo Livro FLG CPP

Alvíss’ras, ó Virgem Santa, Pela nova que vos dou, Céus e terra já se alegram, Que Jesus ressuscitou! 108. Nossa Senhora das Neves

Ai, Nossa Senhora das Neves, Ai, à vossa porta cheguei, Ai, tantos anjos me acompanhem, Ai, como passadas eu dei. Ai, Nossa Senhora das Neves, Ai, já cá vamos à ladeira, Ai, vide apanhar uma fita, Ai, que vos caiu da bandeira. 109. Vai colher a rosa

Vai colher a rosa, Vai colhe-la, vai, Se ela te picar, Não digas ai, ai. Não digas ai, ai, Não digas ai, ui, Vai colher a rosa, Vai, vai, que eu também fui. O meu lindo amor Já me não visita, É certo que tem Outra mais bonita. Outra mais bonita, Outro bem querer. O meu lindo amor Já não me vem ver. 110. Senhora Santa Luzia (II)

Senhora Santa Luzia, Visinha do Castelejo, Dai-me vista aos meus olhos, É o que agora desejo.

111. Senta-te aqui, ó António

Senta-te aqui, ó António, Senta-te aqui ao meu lado, Nesta cadeirinha nova, Feita da raiz do cravo. Feita da raiz do cravo, Feita da folha da rosa, Senta-te aqui, ó António, Nesta cadeirinha nova. Senta-te aqui, ó António, Senta-te aqui ao meu lado, Nesta cadeirinha nova, Feita da folha da rosa. Feita da folha da rosa, Da «fe-lor» do alecrim, Senta-te aqui, ó António, Meu amor, ao pé de mim. 112. Dizes que sou lavadeira

Dizes que sou lavadeira, Que ando no mar a lavar. E eu asso uma vida inteira Na ribeira a trabalhar. Na ribeira a trabalhar, É que eu passo o meu bom tempo. Quem pudesse adivinhar Qual era o meu pensamento. Qual era o teu pensamento, O teu modo de pensar. Eu levo uma vida inteira Na ribeira a trabalhar. 113. Agora vou-me deitare

Agora vou-me deitare, Às escuras meu amor; As pedras por travesseiro, As estrelas cobertor.

123

Page 124: Conteudo Livro FLG CPP

Anda o sol atrás da lua, A lua atrás do luar; Minha alma atrás da tua, Não é capaz da alcançar. 114. Ó Rosinha!

(E) Rosinha, vem-te comigo, (E) deixa a mãe que te criou, Em que ela te deu o leite, Ó Rosinha! Não foi a que mais te amou. Coração, coraçãozinho, C’uma faca t’hei-de abrir, Que te deixaste enganar, Ó Rosinha! De quem devias fugir. 115. Vós chamais-me a moreninha

Vós chamais-me a moreninha, Isto é do pé do linho, Lá me vereis ao domingo, Como a flor do rosmaninho. O meu amor não é este, Não é este, nem o quero, O meu tem os olhos pretos, O teu tem-nos amarelos. Tu dizes que me quer’s muito, Esse teu qu’rer é engano, Cortais pela minha vida, Como a tesoura no pano. 116. Agora baixou o Sol

Agora baixou o Sol Lá pra trás daquela serra, Capinha leva vermelha, Que lha deu a Madalena. Madalena lhe escreveu Uma carta a Jesus Cristo, E o portador que lha leva

É o padre São Francisco. São Francisco vai descalço, Vestido de burel, Vai beijar as cinco chagas Ao Divino Manuel. Licifer perdeu a graça, Também perdeu o amor, Por se ir sentar na cadeira Daquel’ Divino Senhor. Licifer perdeu a graça, Também perdeu o carinho, Por se ir sentar na cadeira Daquel’ Divino Menino. 117. Dormi, menino, dormi

Dormi, menino, dormi, Que a vossa mãe logo vem, Foi lavar os cueirinhos À ribeira de Belém. Vai-t’embora, papão negro, De cima do meu telhado, Deixa dormir o menino, Um soninho descançado. 118. Nossa Senhora do Souto

S’nhora do Souto, Nossa Senhora do Souto, Arrendai-me a figueirinha. Dinheiro, Aqui tendes o dinheiro, Que a figueirinha é minha. S’nhora do Souto, Nossa Senhora do Souto, Quem vos varreu a capela, Das Dores, Foram as moças das Dores, Com raminhos de macela.

124

Page 125: Conteudo Livro FLG CPP

S’nhora do Souto, Nossa Senhora do Souto, Quem vos molhou o terreiro. Das Dores, Foram os rapazes das Dores, C’uma borracha de vinho. 119. Aproveitai a azeitona

Aproveitai a azeitona, Que tem o azeite dentro; Alumia dia e noite, O divino Sacramento. Varejai, varejadores, Apanhai, apanhadeiras; Apanhai bolinhas de oiro, Que caem das oliveiras. 120. Romance do Cativo (frag.tº)

Os mouros me cativaram Entre a paz e a guerra; Me levaram a vender, Oh, tão lindo! Pra Argelim que é a sua terra. Não houve perro nem perra Que o comprar-me quisera; Só o perro de um mouro, Oh, tão lindo! A mim só comprar havera, Dava-me tanta má vida, Oh, tão lindo! Tanta má vida me dera. 121. Segadinhas, segadinhas

Segadinhas, segadinhas, Segadinhas já lá vão, ai! Ai, larila, lariloléla! Segadinhas já lá vão, ai! Na «arrincadas» do linho

Também se ganha afeição, ai! Ai, larila, lariloléla! Também se ganha afeição, ai! 122. Ó aldeia das laranjas

Ó aldeia das laranjas, Ao pé da estrada real, Quem tem seus amor’s à vista, Passa a vida menos mal. Passa a vida menos mal, Passa a vida alegremente. Ó aldeia das laranjas, Ao pé da estrada corrente. Já no céu não há estrelas, Se não uma ao pé da lua; Tenho buscado, não acho, Cara mais linda que a tua. Há promessas prometidas Pró meu amor me deixar; Eu sou firme, ele constante, Deixai o mundo falar. 123. Romance de Dom Fernando

– Tu que tens, ó Dom Fernando, Que andas tão triste na guerra? Ou te morreu pai ou mãe Ou gente da tua terra. – Nem me morreu pai, nem mãe, Nem gente da minha terra: Ando triste pela amada, Deixei-a e vim prá guerra. – Aparelha o teu cavalo, Sete anos te dou espera; Ao cabo de sete anos, Soldado, voltas prá guerra. – A tua amada é morta, É morta, eu bem a vi; Dá-me os sinais que levava, Pra eu me fiar em ti.

125

Page 126: Conteudo Livro FLG CPP

A saia era de seda, Belusa de carmesim, O cinto que a apertava Era douro e marfim. Eu vendia o meu cavalo, Vendia-me também a mim, Pra mandar dizer missas, Tudo por alma de ti. Não vendas o teu cavalo E não te vendas a ti: Quanto mais bem me fizeres Mais pena se mete em mim. Filhas que nós tínhamos Leva-as pra junto de ti, Que não se perdam por homes Como eu por ti me perdi. 124. Os amores da azeitona

Os amores da azeitona, Ora adeus, adeus, São como os da cotovia, Acabada a azeitona, Ora adeus, adeus, Fica-te com Deus, Maria. Azeitoninha assaria, Ora adeus, adeus, Já morreu quem te apanhava. Agora ficavas toda, Ora adeus, adeus, Por esse chão espelhada. 125. Quem tem meninos pequenos (II)

Quem tem meninos pequenos Sempre lhes sabe cantar; Quantas vezes os pais cantam Com vontade de chorar. Que tua madre te parió;

Se no t’hubiera parido No te arrolaba yo. Oh, oh, oh... 126. Loureiro, verde loureiro

Loureiro, verde loureiro, Loureiro verde assim, Enganaste a donzela, Casa com ela, ó Joaquim. Casar com ela não caso, Que ela a mim não faz conta, Loureiro, verde loureiro: Verde nomeio, seco na ponta. 127. Cantilena de abaúlar (II)

Ó Aidinha, queridinha, Maria, ou! Pra onde vais amanhã? Ora dá-la-dou! Ó Aidinha, queridinha, Vou, e ou! Bem regaladinha, Ora dá-la-dou! 128. Já são horas da merenda

Já são horas da merenda, Ai, vamo-nos a merendar Gaspachinho com vinagre, Ai, para o peito refrescar. Já se vai o Sol a pôr Ai, para trás do cabecinho, Bem quisera o nosso amo Ai, prendê-lo c’um baracinho. 129. Vala, vala, vala, vala

Vala, vala, vala, vala, Vala, vala, vala, vala, Arriba ao monte, Arriba ao monte.

126

Page 127: Conteudo Livro FLG CPP

Eh! xó! xó! Vala, vala, vala, vala, Vala, vala, vala, vala, Santo António leva o monte, Santo António leva o gado, Santo António leva a mim, Santo António me levar, Santo António me levar, Ninguém tenha dó de mim. Vala, vala, vala, vala, Vala, vala, vala, vala, Xó! xó! Arriba ao monte, Arriba ao monte. Vala, vala, vala, vala, Vala, vala, vala, vala, 130. Oh, bento airoso

Oh, bento airoso, Mistério divino, Encontrei a Maria À beira do rio. Maria lavava, São José ‘stendia, O M’nino chorava C’o frio que fazia. Calai, meu menino, Calai, meu amor, (E) que as vossas verdades Me matam de dor. 131. Onde vais, ó Luisinha?

Onde vais, ó Luisinha, Com o teu cabelo à faia? – Vou a ver o meu amor, Que anda nas ondas praia.

Que anda nas ondas praia, Que anda no mar à tardinha, – Com o teu cabelo à faia, Onde vais ó Luisinha? 132. Romance de Dom João (frag.to)

Tristes novas me vieram Lá do centro de Espanha: Está Dom João à morte Com pena da sua dama. Mandou chamar três doutores, Daqueles mais afamados: Se lhe dessem com a cura, Que lhe dava o seu reinado. O mais novo deles todos Lhe falou desenganado: Deu-lhe três horas de vida, Meia hora de acabado. O seu pai me procurou, Do fundo da sua alma, Se devia alguma coisa A alguma moça honrada. – Devo à Dona Isabel Que a deixo enganada Ficam quatro mil cruzados Prá infeliz desgraçada. 133. ‘Stando à porta da Cruz Nova

‘Stando à porta da Cruz Nova Cantando a minha cantiga, Deu-me o coração pancada, Fui falar à rapariga. Fui falar à rapariga, Fui falar à minha amada, ‘Stando à porta da Cruz Nova, Deu-me o coração pancada. 134. São Macário

127

Page 128: Conteudo Livro FLG CPP

São Macário, São Macário deu à costa Ai, deu à costa, na baixa do Maranhão. Toda a gente, Toda gente se salvou, Ai, se salvou, só São Macário não. Vou partir, Vou partir com São Macário, Ai, São Macário, a bordo de um galeão. Adeus pais, Adeus pais, adeus amores, Adeus amores, lá me fica o coração. 135. Cantemos o São João

Cantemos o São João, ai, Cantemos outra vez, A moda do São João, ai, Em todo o tempo tem vez. 136. ‘Stava de abalada

‘Stava de abalada Lá pró meu montinho, Saiu-me uma rosa Dançando ao caminho. Como era linda, Como era formosa! Dançando ao caminho, Saiu-me uma rosa. 137. Senhor Galandum

Senhor Galandum, Galandum, galandaina, Madre la biscaia, Culas tres traseiras, Culas delanteiras; Dame la mano isquierda, Dame la dereita. I arredense atrás,

Que manda la reb’rência; Num bos manda I Rey, Que manda la justícia. Estes beiladores Que se caen cula risa, Que se caian, que se caian. Num bos manda I Rey, Que bos manda I alcalde. Estes beiladores Que se lebantem, i que bailen, I que bailen, i que bailen. 138. Ó meu São João Baptista

Ó meu São João Baptista, Ó meu lindo diamante, Quem me dera ir contigo, Por esses céus adiante. São João não tem capela, Nem flores para a fazeri, Vamos ao jardim dos céus, E alguma lá há de haveri. São João à minha porta, Não tenho cá que lhe dari, Darei-lhe uma cana verde, Para pôr no seu altari. 139. Tascadeiras do meu linho

Tascadeiras do meu linho, Tascaim’o meu linho bem; Ora val’ tumtum, tumtum, vale val’! Tascaim’o meu linho bem; Não olheis para o portelo, Que a m’rendinha logo vem; Ora val’ tumtum, tumtum, vale val’! Que a m’rendinha logo vem; Ao cabo, leira, ao cabo, Ao cabo, leira do linho; Ora val’ tumtum, tumtum, vale val’! Ao cabo, leira do linho.

128

Page 129: Conteudo Livro FLG CPP

Lá vem a nossa patroa, Com a cabaça do vinho; Ora val’ tumtum, tumtum, vale val’! Com a cabaça do vinho. 140. Ó Valverde, ó Valverde (II)

Ó Valverde, ó Valverde, Ó Valverde de Lisboa, Ó val! Quem inventou o Valverde Foi uma sécia bem boa! 141. Tinha um amor e deixei-o

Tinha um amor e deixei-o, Deixei-o, não o quero mais; Oh ai, lârilolela! Deixei-o, não o quero mais. Para que quero eu amores, Se eles não me são leais? Oh ai, lârilolela! Se eles não me são leais. Tenho dito aos meus olhos, Que não chorem por ninguém; Oh ai, lârilolela! Que não chorem por ninguém. Os meus olhos de chorar Já nenhuma graça têm; Oh ai, lârilolela! Já nenhuma graça têm. 142. Vai-t’embora, passarinho

Vai-t’embora, passarinho, Deixa a baga do Loureiro, Deixa dormir o menino, Que está no sono primeiro. 143. Oliveiras, oliveiras

Oliveiras, oliveiras, Ó longe e parecem rendas. Enlevem-se nas pessoas, Ai, não se enlevem nas fazendas. 144. Não quero que me dês nada

Não quero que me dês nada, Que também nada te dou, Quero que vivas lembrada Do tempo que já passou. Quero que vivas lembrada Do tempo que já passou, Não quero que me dês nada, Que também nada te dou.

145. Oração do pobrezinho

(Lopes-Graça faz apenas uso instrumental desta canção.)

146. Alvorada do gaiteiro

(instrumental)

147. Carvalhesa

(instrumental)

148. São João

(Lopes-Graça faz apenas uso instrumental desta canção.)

149. Entrai, pastores, entrai

(Lopes-Graça faz apenas uso instrumental desta canção.)

150. Lá vai Dom João prá caça.

(Lopes-Graça faz apenas uso instrumental desta canção.)

129

Page 130: Conteudo Livro FLG CPP

ÍNDICE ALFABÉTICO POR CANÇÃO 90 A moda da Rita.......................... 63 A rolinha da calçada .................. 57 A Senhora d’Aires ..................... 34 Acordai, se estais dormindo....... 91 Adeus, Largo do Prumal............ 116 Agora baixou o Sol.................... 79 Agora é que ela vai boa ............. 113 Agora vou-me deitare .................. 40 Ai, acabadas são as festas .......... 95 Ai de mim, tanta laranja ............ 82 Ai ó ai, meu bem ....................... 12 Ai, ó divina Santa Cruz ............. 48 Ai, recorda, ó pecador ............... 44 Alerta, alerta .............................. 146 Alvorada do gaiteiro .................. 96 Anda, duermete niño ................. 92 Andorinha gloriosa .................... 119 Aproveitai a azeitona................. 47 Bendita e louvada seja ............... 2 Bendito «das trovoadas»............ 135 Cantemos o São João................. 52 Cantiga da Atalaia ..................... 26 Cantiga do Entrudo.................... 147 Carvalhesa ................................. 83 Cisirão, cisirão........................... 36 Deus lhe dê cá as boas noites..... 98 Deus te guarde pastorinha.......... 112 Dizes que sou lavadeira ............. 27 Do varão nasceu a vara.............. 24 Donde vens, ó Ana .................... 117 Dormi, menino, dormi ............... 149 Entrai, pastores, entrai ............... 6 Era ainda pequenina .................. 38 Estas casas são mui altas ........... 85 Este nosso amo d’hoje ............... 28 Eu hei-de dar ao menino............ 65 Faixinha verde ........................... 51 Fui-te ver, ’stavas lavando......... 23 Gerinaldo ................................... 71 Ih! Quando o meu pai morreu.... 35 Inda agora aqui cheguei............. 99 Já não vou a Vendas Novas ....... 59 Já os passarinhos cantam ........... 128 Já são horas da merenda ............ 78 José embala o menino................ 54 Lá em baixo vem a raposa ......... 150 Lá vai Dom João prá caça.......... 20 Lavra, boi, lavra......................... 126 Loureiro, verde loureiro............. 49 Lundu da Figueira...................... 3 Márcia Bela ............................... 74 Meu amor me deu um lenço ...... 86 Meu coletinho aos ramos........... 9 Meu lírio roxo............................ 102 Meu lírio roxo do campo ........... 7 Minha mãe me deu um lenço..... 37 Moradoras desta casa.................

130

Page 131: Conteudo Livro FLG CPP

56 Na aldeia de Amareleja ............. 61 Na estrada de Braga................... 66 Na noite de São João ................. 22 Nana, nana, meu menino ........... 21 Não choro por me deixares........ 144 Não quero que me dês nada....... 4 Não quero que vás à monda (I).. 100 Não quero que vás à monda (II) 19 Não se me dá que vindimem...... 55 Não segueis o trigo verde .......... 31 Nasceu, já nasceu....................... 1 No figueiral, figueiredo ............. 108 Nossa Senhora das Neves .......... 106 Nossa Senhora do Carmo .......... 118 Nossa Senhora do Souto ............ 18a Senhora da Póvoa ...................... 18b Senhora da Póvoa ...................... 122 Ó aldeia das laranjas.................. 120 O cativo ..................................... 13 O conde de Alemanha ............... 39 Ó da casa, cavalheira ................. 127 O dá-la-dou................................ 58 Ó ladrão, que te vais embora ..... 10 Ó malhão, triste malhão (I)........ 14 Ó malhão, triste malhão (II) ...... 32 O Menino nas palhas ................. 138 Ó meu São João Baptista ........... 53 O milho da nossa terra............... 16 Ó minha amora madura ............. 72 Ó, ó, menino, ó .......................... 75 O que bem baila la moura.......... 50 Ó, que janela tão alta ................. 73 O Senhor da Serra é meu ........... 64 Ó Serpa, pois tu não ouves ........ 140 Ó valverde ................................. 46 Oh, almas que estais dormindo.. 62 Oh, que calma vai caindo .......... 107 Oh que novas tão alegres ........... 87 Oh! Senhora do Amparo............ 130 Oh, bento airoso......................... 29 Olé, rapazes pimpões................. 143 Oliveiras, oliveiras..................... 131 Onde vais, ó Luisinha? .............. 145 Oração do pobrezinho................ 124 Os amores da azeitona ............... 30 Os pastores em Belém ............... 104 Passarinha trigueira ................... 80 Portas d’Elvas, portas d’Elvas ... 94a Quatro laços da dança dos paulitos 94b Quatro laços da dança dos paulitos 94c Quatro laços da dança dos paulitos 94d Quatro laços da dança dos paulitos 68 Quem tem meninos pequenos (I) 125 Quem tem meninos pequenos (II) 5 Rapariga tola, tola...................... 45 Recordai, ó irmãos meus ........... 43 Rezemos um Padre Nosso ......... 101 Romance da menina cativa ........ 132 Romance de Dom João.............. 97 Romance de Dom Jorge.............

131

Page 132: Conteudo Livro FLG CPP

81 Romance de Mirandum ............. 69 Romance de Mineta................... 8a Romance de Santa Iria............... 8b Romance de Santa Iria............... 17 Romance do cego ...................... 93 Romance do soldadinho ............ 114 Rosinha, vem-te comigo ............ 84 São horas d’emalar as troixas .... 148 São João..................................... 11 São João da Serra....................... 105 São João de Louredo de Guilhofrei 134 São Macário............................... 42 Se dormis, cristãos..................... 103 Se fores ao São João .................. 121 Segadinhas, segadinhas ............. 137 Senhor Galandum ...................... 70 Senhora da Encarnação.............. 67 Senhora das Neves da Malpica.. 76 Senhora do Almurtão (I)............ 77 Senhora do Almurtão (II) .......... 110a Senhora Santa Luzia (II)............ 110b Senhora Santa Luzia ................. 111 Senta-te aqui, ó António ............ 89 Sete varas tem............................ 133 ’Stando à porta da Cruz Nova.... 136 ’Stava de abalada....................... 139 Tascadeiras do meu linho .......... 141 Tinha um amor e deixei-o.......... 123 Tu que tens, ó Dom Fernando ... 109 Vai colher a rosa........................ 15 Vai-te embora, ó papão.............. 142 Vai-t’embora, passarinho........... 25 Vai, vai, ó camarada .................. 129 Vala, vala, vala .......................... 41 Vimos-lhe cantar os Reis........... 33 Vinde e adoremos ...................... 88 Vira-te pr’aqui, ó Rosa ............. 60 Viva o nosso patrão d’hoje ........ 115 Vós chamais-me moreninha ......

132

Page 133: Conteudo Livro FLG CPP

ÍNDICE POR REGIÕES Generalizadas 1 No figueiral, figueiredo ............. 16 Ó minha amora madura ............. Sem indicação 92 Andorinha gloriosa .................... 27 Do varão nasceu a vara.............. 23 Gerinaldo .................................. 150 Lá vai Dom João prá caça.......... 49 Lundu da Figueira...................... 58 Ó ladrão, que te vais embora ..... 81 Romance de Mirandum 8 Romance de Santa Iria............... 70 Senhora da Encarnação.............. 76 Senhora do Almurtão (I)............ Açores 117 Dormi, menino, dormi ............... 3 Márcia Bela ............................... 134 São Macário............................... Alentejo 90 A moda da Rita ......................... 57 A Senhora d’Aires ..................... 95 Ai de mim, tanta laranja ............ 83 Cisirão, cisirão........................... 112 Dizes que sou lavadeira ............. 24 Donde vens, ó Ana .................... 149 Entrai, pastores, entrai ............... 28 Eu hei-de dar ao menino............ 51 Fui-te ver, ‘stavas lavando......... 99 Já não vou a Vendas Novas ....... 74 Meu amor me deu um lenço ...... 9 Meu lírio roxo............................ 102 Meu lírio roxo do campo ........... 7 Minha mãe me deu um lenço..... 56 Na aldeia de Amareleja ............. 144 Não quero que me dês nada....... 100 Não quero que vás à monda (II) 31 Nasceu, já nasceu....................... 122 Ó aldeia das laranjas.................. 64 Ó Serpa, pois tu não ouves ........ 143 Oliveiras, oliveiras..................... 131 Onde vais, ó Luisinha? .............. 80 Portas d’Elvas, portas d’Elvas ... 5 Rapariga tola, tola...................... 93 Romance do soldadinho ............ 111 Senta-te aqui, ó António ............ 133 ‘Stando à porta da Cruz Nova.... 136 ‘Stava de abalada....................... 109 Vai colher a rosa........................ Algarve 82 Ai ó ai, meu bem ....................... 120 O cativo ..................................... 145 Oração do pobrezinho................

133

Page 134: Conteudo Livro FLG CPP

142 Vai-t’embora, passarinho........... Beiras (sem diferenciação) 21 Não choro por me deixares........ 42 Se dormis, cristãos..................... Beira Alta 63 A rolinha da calçada .................. 79 Agora é que ela vai boa ............. 40 Ai, acabadas são as festas .......... 54 Lá em baixo vem a raposa ......... 66 Na noite de São João ................. 4 Não quero que vás à monda (I).. 14 Ó malhão, triste malhão (II) ...... 30 Os pastores em Belém ............... 148 São João..................................... 11 São João da Serra....................... 15 Vai-te embora, ó papão.............. 129 Vala, vala, vala .......................... 88 Vira-te pr’aqui, ó Rosa .............. 115 Vós chamais-me moreninha ...... Beira Baixa 34 Acordai, se estais dormindo....... 12 Ai, ó divina Santa Cruz.............. 48 Ai, recorda, ó pecador................ 119 Aproveitai a azeitona ................. 47 Bendita e louvada seja ............... 2 Bendito «das trovoadas»............ 135 Cantemos o São João ................. 52 Cantiga da Atalaia...................... 26 Cantiga do Entrudo .................... 36 Deus lhe de cá as boas noites..... 6 Era ainda pequenina................... 38 Estas casas são mui altas............ 35 Inda agora aqui cheguei ............. 59 Já os passarinhos cantam ........... 128 Já são horas da merenda............. 78 José embala o menino................ 126 Loureiro, verde loureiro............. 86 Meu coletinho aos ramos ........... 37 Moradoras desta casa ................. 19 Não se me dá que vindimem...... 108 Nossa Senhora das Neves .......... 106 Nossa Senhora do Carmo........... 118 Nossa Senhora do Souto ............ 13 O conde de Alemanha................ 138 Ó meu São João Baptista ........... 53 O milho da nossa terra ............... 46 Oh, almas que estais dormindo .. 62 Oh, que calma vai caindo........... 87 Oh! Senhora do Amparo ............ 124 Os amores da azeitona ............... 45 Recordai, ó irmãos meus............ 43 Rezemos um Padre Nosso.......... 8b Romance de Santa Iria ............... 76 Senhora do Almurtão (I) ............

134

Page 135: Conteudo Livro FLG CPP

77 Senhora do Almurtão (II)........... 18a Senhora da Póvoa ...................... 18b Senhora da Póvoa ...................... 67 Senhora das Neves da Malpica .. 110a Senhora Santa Luzia (II) ............ Beira Litoral 10 Ó malhão, triste malhão (I) ........ 29 Olé, rapazes pimpões ................. Douro litoral 39 Ó da casa, cavalheira ................. 140 Ó valverde.................................. 104 Passarinha trigueira.................... 84 São horas d’emalar as troixas .... 139 Tascadeiras do meu linho .......... Madeira 71 Ih! Quando o meu pai morreu.... Minho 44 Alerta, alerta .............................. 20 Lavra, boi, lavra......................... 61 Na estrada de Braga ................... 22 Nana, nana, meu menino............ 17 Romance do cego....................... 105 São João de Louredo de Guilhofrei 121 Segadinhas, segadinhas.............. 141 Tinha um amor e deixei-o.......... 25 Vai, vai, ó camarada .................. 41 Vimos-lhe cantar os Reis ........... 60 Viva o nosso patrão d’hoje ........ Ribatejo 32 O Menino nas palhas ................. 73 O Senhor da Serra é meu ........... 107 Oh que novas tão alegres ........... 97 Romance de Dom Jorge............. Trás-os-Montes 91 Adeus, Largo do Prumal ............ 116 Agora baixou o Sol .................... 113 Agora vou-me deitare ................ 146 Alvorada do gaiteiro .................. 96 Anda, duermete niño.................. 147 Carvalhesa ................................. 98 Deus te guarde pastorinha.......... 85 Este nosso amo d’hoje ............... 65 Faixinha verde ........................... 55 Não segueis o trigo verde........... 127 O dá-la-dou ................................ 72 Ó, ó, menino, ó .......................... 75 O que bem baila la moura .......... 50 Ó, que janela tão alta ................. 130 Oh, bento airoso......................... 94a Quatro laços da dança dos paulitos 94b Quatro laços da dança dos paulitos 94c Quatro laços da dança dos paulitos

135

Page 136: Conteudo Livro FLG CPP

94d Quatro laços da dança dos paulitos 68 Quem tem meninos pequenos (I) 125 Quem tem meninos pequenos (II) 101 Romance da menina cativa ........ 132 Romance de Dom João .............. 69 Romance de Mineta ................... 114 Rosinha, vem-te comigo ............ 103 Se fores ao São João .................. 137 Senhor Galandum ...................... 89 Sete varas tem............................ 123 Tu que tens, ó Dom Fernando.... 33 Vinde e adoraremos ...................

136

Page 137: Conteudo Livro FLG CPP

ÍNDICE PELA FONTE FOLCLÓRICA A. Valentim Coreografia Popular Transmontana O Galandum Douro Litoral (1953) 137 Senhor Galandum .....................

Abel Pires in P.e Firmino Martins Folclore de Vinhais 116 Agora baixou o Sol................... António A. Joyce Relatório do Júri Provincial da Beira Baixa, Revista Ocidente (1939) 12 Ai, ó divina Santa Cruz ............ 52 Cantiga da Atalaia .................... 26 Cantiga do Entrudo................... 36 Deus lhe dê cá as boas noites.... 38 Estas casas são mui altas .......... 46 Oh! almas que estais dormindo 87 Oh! Senhora do Amparo........... 106 Nossa Senhora do Carmo ......... 45 Recordai, ó irmãos meus .......... 67 Senhora das Neves da Malpica. António Marvão Cancioneiro Alentejano (1955) 95 Ai de mim, tanta laranja ........... 112 Dizes que sou lavadeira ............ 99 Já não vou a Vendas Novas ...... 102 Meu lírio roxo do campo .......... 56 Na aldeia de Amareleja ............ 31 Nasceu, já nasceu...................... 131 Onde vais, ó Luisinha? ............. 133 ‘Stando à porta da Cruz Nova... 136 ‘Stava de abalada...................... 109 Vai colher a rosa....................... Artur Duarte in Pombinho Júnior Cantos Populares de Portel (1943) 122 Ó aldeia das laranjas................. Artur Santos in Luís de Freitas Branco Álbuns de Música Portuguesa (1944) 110b Senhora Santa Luzia ................. Bernardo Tenreiro Registo sonoro em Lieder aus Portugal (1961) org. F. Lopes-Graça 93 Romance do soldadinho ........... C. M. Santos Trovas e Bailados da Ilha (1942) 71 Ih! Quando o meu pai morreu...

137

Page 138: Conteudo Livro FLG CPP

César das Neves Cancioneiro de Músicas Populares (1893) 1 No figueiral, figueiredo ............ 81 Romance de Mirandum ............ D. A. Correia in Francisco Lacerda Cancioneiro Musical Português (1935) 82 Ai ó ai, meu bem ...................... D. C. Bastos in Francisco de Lacerda Cancioneiro Musical Português (1935)

11 São João da Serra.........................

D. G. Pulido in M. Giacometti Cancioneiro Popular Português (1981) 144 Não quero que me dês nada...... Edmundo Lopes Cancioneiro de Fozcoa (1926) 30 Os pastores em Belém .............. F. Lopes-Graça A Canção Popular Portuguesa (1953) Acervo sonoro do Museu da Música Portuguesa (Cascais) 90 A moda da Rita [I].................... 79 Agora é que ela vai boa ............ 48 Ai, recorda, ó pecador .............. 119 Aproveitai a azeitona................ 47 Bendita e louvada seja .............. 2 Bendito «das trovoadas»........... 6 Era ainda pequenina ................. 51 Fui-te ver, ‘stavas lavando........ 23 Gerinaldo .................................. 35 Inda agora aqui cheguei............ 128 Já são horas da merenda ........... 78 José embala o menino............... 74 Meu amor me deu um lenço ..... 86 Meu coletinho aos ramos.......... 100 Não quero que vás à monda (II) 19 Não se me dá que vindimem..... 118 Nossa Senhora do Souto ........... 53 O milho da nossa terra.............. 16 Ó minha amora madura ............ 64 Ó Serpa, pois tu não ouves ....... 124 Os amores da azeitona .............. 93 Romance do soldadinho ........... 103 Se fores ao São João ................. 76 Senhora do Almortão (I)........... 89 Sete varas tem........................... 88 Vira-te pr’aqui, ó Rosa .............

138

Page 139: Conteudo Livro FLG CPP

F. Pedrell in Francisco de Lacerda Cancioneiro Popular Português (1935) 8 Romance de Santa Iria.............. Firmino Martins Folclore de Vinhais (1928) 146 Alvorada do gaiteiro ................. 69 Romance de Mineta.................. Francisco de Lacerda Cancioneiro Musical Português (1935) 117 Dormi, menino, dormi .............. 3 Márcia Bela .............................. 7 Minha mãe me deu um lenço.... 21 Não choro por me deixares....... 4 Não quero que vás à monda (I). 68 Quem tem meninos pequenos (I) 134 São Macário.............................. 42 Se dormis, cristãos.................... 77 Senhora do Almurtão (II) ......... Francisco Serrano Romances e Canções Populares da Minha Terra (1921) 34 Acordai, se estais dormindo...... 37 Moradoras desta casa................ 32 O Menino nas palhas ................ 107 Oh que novas tão alegres .......... 43 Rezemos um Padre Nosso ........ 97 Romance de Dom Jorge............ 8b Romance de Santa Iria.............. G. Cartaxo in F. Lopes-Graça A Canção Popular Portuguesa (1953) 28 Eu hei-de dar ao menino........... Gonçalo Sampaio Cancioneiro Minhoto (2.a ed., 1944) 44 Alerta, alerta ............................. 20 Lavra, boi, lavra........................ 61 Na estrada de Braga.................. 22 Nana, nana, meu menino .......... 17 Romance do cego ..................... 105 São João de Louredo de Guilhofrei 141 Tinha um amor e deixei-o......... 25 Vai, vai, ó camarada ................. 41 Vimos-lhe cantar os Reis.......... José Diogo Correia Cantares de Malpica 108 Nossa Senhora das Neves .........

139

Page 140: Conteudo Livro FLG CPP

Kurt Schindler Folk Music and Poetry from Spain and Portugal (1941) 91 Adeus, Largo do Prumal........... 147 Carvalhesa ................................ 98 Deus te guarde pastorinha......... 127 O dá-la-dou............................... 72 Ó, ó, menino, ó ......................... 50 Ó, que janela tão alta ................ 75 O, que bem baila la moura........ 94a Quatro laços da dança dos paulitos 94b Quatro laços da dança dos paulitos 94c Quatro laços da dança dos paulitos 94d Quatro laços da dança dos paulitos 101 Romance da menina cativa ....... 132 Romance de Dom João............. 33 Vinde e adoremos ..................... M. Giacometti Cancioneiro Popular Português (1981) 149 Entrai, pastores, entrai .............. 65 Faixinha verde .......................... 120 O cativo .................................... 130 Oh, bento airoso........................ 143 Oliveiras, oliveiras.................... 145 Oração do pobrezinho............... 114 Rosinha, vem-te comigo ........... 121 Segadinhas, segadinhas ............ 18a Senhora da Póvoa ..................... 123 Tu que tens, ó Dom Fernando .. 142 Vai-t’embora, passarinho.......... 129 Vala, vala, vala ......................... 115 Vós chamais-me moreninha ..... Margot Dias/Jorge Dias Cancioneiro em Rio de Onor Comunitarismo Agro-Pastoril (1953) 113 Agora vou-me deitare ............... 96 Anda, duermete niño ................ 85 Este nosso amo d’hoje .............. 125 Quem tem meninos pequenos (II) Pedro Fernandes Tomás Velhas Canções e Romances Populares Portugueses (1913); Cantares do Povo (1919); Canções Populares da Beira (2.a ed., 1923). Canções Portuguesas (1934) 92 Andorinha gloriosa ................... 27 Do varão nasceu a vara............. 59 Já os passarinhos cantam .......... 54 Lá em baixo vem a raposa ........ 150 Lá vai Dom João prá caça......... 49 Lundu da Figueira..................... 13 O conde de Alemanha ............. 58 Ó ladrão, que te vais embora .... 73 O Senhor da Serra é meu ..........

140

Page 141: Conteudo Livro FLG CPP

29 Olé, rapazes pimpões................ 70 Senhora da Encarnação............. Rodney Gallop Cantares do Povo Português (1937) 63 A rolinha da calçada ................. 57 A Senhora d’Aires .................... 40 Ai, acabadas são as festas ......... 135 Cantemos o São João................ 83 Cisirão, cisirão.......................... 24 Donde vens, ó Ana ................... 126 Loureiro, verde loureiro............ 9 Meu lírio roxo........................... 66 Na noite de São João ................ 55 Não segueis o trigo verde ......... 10 Ó malhão, triste malhão (I)....... 14 Ó malhão, triste malhão (II) ..... 138 Ó meu São João Batista ............ 62 Oh, que calma vai caindo ......... 80 Portas d’Elvas, portas d’Elvas .. 5 Rapariga tola, tola..................... 148 São João.................................... 18b Senhora da Póvoa ..................... 110a Senhora Santa Luzia (II)........... 111 Senta-te aqui, ó António ........... 15 Vai-te embora, ó papão............. Vergílio Pereira Cancioneiro de Cinfães (1950) Cancioneiro de Arouca (1959) 39 Ó da casa, cavalheira ................ 140 Ó valverde ................................ 104 Passarinha trigueira .................. 84 São horas d’emalar as troixas ... 139 Tascadeiras do meu linho ......... 60 Viva o nosso patrão d’hoje .......

141

Page 142: Conteudo Livro FLG CPP

ÍNDICE NUMÉRICO 1 No figueiral, figueiredo ............ 2 Bendito «das trovoadas»........... 3 Márcia Bela .............................. 4 Não quero que vás à monda (I). 5 Rapariga tola, tola..................... 6 Era ainda pequenina ................. 7 Minha mãe me deu um lenço.... 8 Romance de Santa Iria.............. 9 Meu lírio roxo........................... 10 Ó malhão, triste malhão (I)....... 11 São João da Serra...................... 12 Ai, ó divina Santa Cruz ............ 13 O conde de Alemanha .............. 14 Ó malhão, triste malhão (II) 15 Vai-te embora, ó papão............. 16 Ó minha amora madura ............ 17 Romance do cego ..................... 18 Senhora da Póvoa ..................... 19 Não se me dá que vindimem..... 20 Lavra, boi, lavra........................ 21 Não choro por me deixares....... 22 Nana, nana, meu menino .......... 23 Gerinaldo .................................. 24 Donde vens, ó Ana ................... 25 Vai, vai, ó camarada ................. 26 Cantiga do Entrudo................... 27 Do varão nasceu a vara............. 28 Eu hei-de dar ao menino........... 29 Olé, rapazes pimpões................ 30 Os pastores em Belém .............. 31 Nasceu, já nasceu...................... 32 O Menino nas palhas ................ 33 Vinde e adoremos ..................... 34 Acordai, se estais dormindo...... 35 Inda agora aqui cheguei............ 36 Deus lhe de cá as boas noites.... 37 Moradoras desta casa................ 38 Estas casas são mui altas .......... 39 Ó da casa, cavalheira ................ 40 Ai, acabadas são as festas ......... 41 Vimos-lhe cantar os Reis.......... 42 Se dormis, cristãos.................... 43 Rezemos um Padre Nosso ........ 44 Alerta, alerta ............................. 45 Recordai, ó irmãos meus .......... 46 Oh, almas que estais dormindo. 47 Bendita e louvada seja .............. 48 Ai, recorda, ó pecador .............. 49 Lundu da Figueira..................... 50 Ó, que janela tão alta ................ 51 Fui-te ver, ‘stavas lavando........ 52 Cantiga da Atalaia .................... 53 O milho da nossa terra.............. 54 Lá em baixo vem a raposa ........ 55 Não segueis o trigo verde ......... 56 Na aldeia de Amareleja ............ 57 A Senhora d’Aires ....................

142

Page 143: Conteudo Livro FLG CPP

58 Ó ladrão, que te vais embora .... 59 Já os passarinhos cantam .......... 60 Viva o nosso patrão d’hoje ....... 61 Na estrada de Braga.................. 62 Oh, que calma vai caindo ......... 63 A rolinha da calçada ................. 64 Ó Serpa, pois tu não ouves ....... 65 Faixinha verde .......................... 66 Na noite de São João ................ 67 Senhora das Neves da Malpica. 68 Quem tem meninos pequenos (I) 69 Romance da Mineta.................. 70 Senhora da Encarnação............. 71 Ih! Quando o meu pai morreu... 72 Ó, ó, menino, ó ......................... 73 O Senhor da Serra é meu .......... 74 Meu amor me deu um lenço ..... 75 O que bem baila la moura......... 76 Senhora do Almurtão (I)........... 77 Senhora do Almurtão (II) ......... 78 José embala o menino............... 79 Agora é que ela vai boa ............ 80 Portas d’Elvas, portas d’Elvas .. 81 Romance de Mirandum ............ 82 Ai ó ai, meu bem ...................... 83 Cisirão, cisirão.......................... 84 São horas d’emalar as troixas ... 85 Este nosso amo d’hoje .............. 86 Meu coletinho aos ramos.......... 87 Oh! Senhora do Amparo........... 88 Vira-te pr’aqui, ó Rosa ............. 89 Sete varas tem........................... 90 A moda da Rita......................... 91 Adeus, Largo do Prumal........... 92 Andorinha gloriosa ................... 93 Romance do soldadinho ........... 94 Quatro laços da dança dos paulitos 95 Ai de mim, tanta laranja ........... 96 Anda, duermete niño ................ 97 Romance de Dom Jorge............ 98 Deus te guarde pastorinha......... 99 Já não vou a Vendas Novas ...... 100 Não quero que vás à monda (II) 101 Romance da menina cativa ....... 102 Meu lírio roxo do campo .......... 103 Se fores ao São João ................. 104 Passarinha trigueira .................. 105 São João de Louredo de Guilhofrei 106 Nossa Senhora do Carmo ......... 107 Oh que novas tão alegres .......... 108 Nossa Senhora das Neves ......... 109 Vai colher a rosa....................... 110 Senhora Santa Luzia (II)........... 111 Senta-te aqui, ó António ........... 112 Dizes que sou lavadeira ............ 113 Agora vou-me deitare ............... 114 Rosinha, vem-te comigo ........... 115 Vos chamais-me moreninha ..... 116 Agora baixou o Sol................... 117 Dormi, menino, dormi ..............

143

Page 144: Conteudo Livro FLG CPP

118 Nossa Senhora do Souto ........... 119 Aproveitai a azeitona................ 120 O cativo .................................... 121 Segadinhas, segadinhas ............ 122 Ó aldeia das laranjas................. 123 Tu que tens, ó Dom Fernando .. 124 Os amores da azeitona .............. 125 Quem tem meninos pequenos (II) 126 Loureiro, verde loureiro............ 127 O dá-la-dou............................... 128 Já são horas da merenda ........... 129 Vala, vala, vala ......................... 130 Oh, bento airoso........................ 131 Onde vais, ó Luisinha? ............. 132 Romance de Dom João............. 133 ‘Stando à porta da Cruz Nova... 134 São Macário.............................. 135 Cantemos o São João................ 136 ‘Stava de abalada...................... 137 Senhor Galandum ..................... 138 Ó meu São João Baptista .......... 139 Tascadeiras do meu linho ......... 140 Ó valverde ................................ 141 Tinha um amor e deixei-o......... 142 Vai-te embora, passarinho ........ 143 Oliveiras, oliveiras.................... 144 Não quero que me dês nada...... 145 Oração do pobrezinho............... 146 Alvorada do gaiteiro ................. 147 Carvalhesa ................................ 148 São João.................................... 149 Entrai, pastores, entrai .............. 150Lá vai Dom João prá caça............

144

Page 145: Conteudo Livro FLG CPP

BIBLIOGRAFIA DE F. LOPES-GRAÇA A Canção Popular Portuguesa, Europa América, 1.a edição, 1953

Apontamentos sobre a canção alentejana 1946. [20] Apontamentos sobre a canção popular da Beira Baixa 1947. [23] O problema da canção popular portuguesa 1953. [4]

A Canção Popular Portuguesa, Editorial Caminho, 4.a edição, 1991

Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa 1949. [2] Folclore autêntico e contrafacção folclórica, 1952. [3] Algumas características da canção portuguesa, 1953. [11] Esboço de classificação, 1953. [12] Cantos de Trás-os-Montes, 1960. [26] Cantos do Algarve, 1961. [27] Cantos do Minho, 1963. [28] Cantos do Alentejo, 1965. [21] Cantos da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral, 1970. [25] Lembrando Francisco Serrano, 1982. [32]

A Música Portuguesa e os Seus Problemas I, Editorial Caminho, 1989

Folclore musical português, 1937. [29] Sobre a canção popular portuguesa e o seu tratamento erudito, 1942. [17]

A Música Portuguesa e os Seus Problemas II, Editorial Caminho, 1990

Sobre o Cancioneiro Minhoto, de Gonçalo Sampaio, 1945. [30] O Cancioneiro de Cinfães, de Vergílio Pereira, 1951. [31] Uma experiência de propecção folclórica, 1953. [24] Garrett e o Romanceiro, 1954. [15] Música e regionalismo, 1956. [7] Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesa, 1956. [18] Notas para um possível ideário do folclorista musical português, 1956. [8] Sobre as toadas dos romances populares portugueses, 1964. [16]

Nossa Companheira Música, Editorial Caminho, 1992

Sobre o conceito de popular na música, 1947. [1] Sobre o actual cultivo da canção folclórica portuguesa, 1959. [9]

Disto e daquilo, Cosmos. 1973

É a música folclórica uma deformação da música culta?, 1953. [5] Uma definição de música folclórica, 1953. [6] Constantin Brailou e a música folclórica portuguesa, 1959. [13] Tradicionalismo e folclorismo quantitativos, 1965. [10] Acerca do canto alentejano, 1968. [22]

A Música Portuguesa e os Seus Problemas, Cosmos

Algumas considerações sobre a música folclórica portuguesa, 1959. [14] Acerca da harmonização coral dos cantos tradicionais portugueses, 1965. [19]

145