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set 2008 | itaucultural.org.br 14 ITAÚ CULTURAL Os meus, os seus, os nossos

Continuum 14 - Os Meus, os seus, os nossos

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Uma carta ao irmão morto. Um sobrenome. Fotografias. As memórias familiares podem estimular ou assombrar o artista, mas é impossível que não o influenciem. A Continuum Itaú Cultural de setembro visita o tema família: sua interferência sobre o trabalho criativo e sua constante presença em obras de ficção são alguns dos assuntos abordados.

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ITAÚ CULTURAL

Os meus, os seus, os nossos

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Visita ao território das subjetividades

Os olhos são iguais aos da mãe, o físico saiu ao pai, já o bom humor é fruto da convivência diária com o avô... Não tem jeito, ao se descrever uma pessoa, as referências familiares são o primeiro e mais óbvio recurso, uma espécie de classificação identitária que faz com que cada um seja diferente, mas, parafraseando o slogan publicitário, “com alguma coisa em comum”.

A Continuum Itaú Cultural de setembro, com o título Os meus, os seus, os nossos, propõe um retorno aos primórdios por meio da arte. Com base em vários trabalhos que remetem a situações familiares ou que têm os laços parentais como tema ou referência, a revista faz a seguinte indagação: até que ponto a obra de arte, independentemente do suporte ou da abordagem, é um resgate da história de seu criador, de suas memórias, de seu passado?

O entrevistado especial do mês, o ator Matheus Nachtergaele, acredita que “a obra de arte é uma tentativa do artista de mostrar para o mundo sua subjetividade. Uma tentativa ‘desesperada’ de traduzi-la”. Ele se prepara para lançar nacionalmente seu primeiro filme como diretor, A Festa da Menina Morta, o qual não escapa de ter alguma correlação com sua própria história.

Nesse sentido, por mais paradoxal que seja, a família, um coletivo, diz muito da individualidade de um criador – mesmo

aquela nascida da afinidade artística, como mostra o perfil do sambista paulistano Oswaldo

dos Santos, que formou uma nova família na Escola de Samba Camisa Verde e Branco.

Para garantir uma reserva de humor ao tema, o jornalista Xico Sá assina crônica com base na sugestiva provocação: o Brasil ainda é uma grande família, como no

tempo das capitanias hereditárias? Luiz Ruffato ocupa a Área livre com uma carta ao irmão ausente, retomando, sob outra perspectiva, o enredo de

seu livro De Mim Já Nem se Lembra. E, em artigo, Eder Chiodetto analisa o conteúdo artístico de séries fotográficas que

remetem ao universo da família.

Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected] Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Allan Sieber, Beto Figueirôa, Cia de Foto, Eder Chiodetto, Luiz Ruffato, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Pabllo De Lá Cruz, Ricardo Bolognini, Xico Sá Agradecimentos Antonio Loureiro e Marcelo Silva (Via Treze Antiguidades), Chico Daviña e Marcos Gallon (Galeria Vermelho), Eustáquio Neves, Hilton Lacerda, Leda Stopazzolli (Bananeira Filmes), Luisa (Paleo TV), Marcelo Mammana (Império Romano), Miriam Juvito, Sandra e Tânia (Chácara Santa Cecília), Vinícius (Comunicação CDN)

errata o nome correto do autor da Área livre da edição do mês de agosto é Eduardo Burger

capa a família simbolizada em cena do cotidiano | imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)

A imagem da página 4 está sob licença do Creative Commons Attribution 2.5

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sumário

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Rupturas e reencontrosA estirpe e sua influência na arte

Coleções de casamentos, nascimentos, aniversários...A realidade e a ficção dos álbuns de família

Na batucada da vidaAs afinidades que aproximam e unem sambistas

O novo vôo do pássaro da noiteEm entrevista, Matheus Nachtergaele fala da presença familiar em sua obra

O menino de seu avôA jornada do neto para tirar um cineasta do esquecimento

Do talento & de outras heranças malditasDe pai para filho: se o traquejo não basta, o sobrenome disfarça

Nós que nos amávamos tantoO que os Buendía, os Corleone e os Flintstone têm em comum

Continuum on-lineA revista na internet e seus conteúdos exclusivos

Área livreO escritor Luiz Ruffato manda uma carta para o irmão falecido

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Auto-retrato (1887), de Vincent van Gogh | imagem: Creative Commons

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Rupturas e reencontrosReferência constante ou citação tênue, válvula de escape ou acerto de contas: a obra de arte está impregnada das relações familiares

Por Mariana Sgarioni

Que a família é algo determinante na estrutura da vida de todos nós – seja para o bem, seja para o mal – ninguém duvida. Desde que o mundo é mundo, intelectuais e pesquisadores se debruçam sobre o tema para tentar entender qual é exatamente essa influência sobre o ser humano. Tanto que uma das principais teorias que estabelecem a formação de nossa sociedade como ela é hoje está baseada justamente na família, ou melhor, no tabu do incesto. Para Sigmund Freud, o pai da psicanálise, se não fosse esse tabu nossa sociedade não estaria de pé. Em sua teoria sobre o complexo de Édipo, criada com base em uma tragédia grega escrita por Sófocles há cerca de 450 a.C., o filho mata o pai e se casa com a mãe sem saber de quem se tratam. Com isso, causa uma maldição que só desaparece quando ele descobre a verdade e fura os próprios olhos. Segundo Freud, mães e filhos têm o impulso natural de manter a intimidade que desenvolvem desde o nascimento. Surge aí a figura do pai, responsável pela quebra desse vínculo, o que, no fim das contas, vai permitir que o novo indivíduo ande com as próprias pernas. Para ele, se o tabu do incesto deixasse de existir, a sociedade tenderia a se desorganizar e voltar à barbárie, ou seja, ao domínio pela força.

No campo das artes, nem sempre esse tema é a idéia principal na concepção de uma obra. Mas artistas das mais variadas expressões concordam com um ponto: a família, seja ela biológica, afetiva, escolhida, ou até mesmo a dos outros, é sempre o pano de fundo para qualquer criação. “Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”, escreveu Franz Kafka, em 1919, no emocionante livro Carta ao Pai (Cia. das Letras, 2001), uma obra-prima de auto-análise. Insatisfeito com a fria recepção paterna diante do anúncio de seu noivado, Kafka escreveu ao pai, o comerciante judeu Hermann Kafka, uma longa carta – mais de cem páginas manuscritas que nunca foram entregues ao seu destinatário. Kafka tinha então 36 anos e seus escritos são impressionantes: ele coloca toda a sua mágoa em relação ao pai autoritário, que ele chama, alternadamente, de “tirano”, “regente”, “rei” e “Deus”, mostrando de que forma o jugo paterno minou-lhe a auto-estima, condenando-o a uma personalidade fraca e assustada. Com base nesse livro fica mais fácil entender os perturbadores trabalhos futuros do escritor austríaco – A Metamorfose (Cia. das Letras, 2001), conto escrito em 1915, e O Processo (Cia. das Letras, 2005), romance escrito em 1920 e publicado postumamente em 1925.

reportagem

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Outros manuscritos que rasgaram a intimi-dade familiar do artista, fazendo com que todos entendessem melhor sua obra, foram as Cartas a Théo, escritas pelo pintor Vincent van Gogh a seu irmão, entre os anos de 1873 e 1890 (e reunidas em livro, publicado no Brasil pela L&PM, em 2002). Nesse caso, não havia conflito entre os dois, pelo con-trário: Theodore van Gogh sempre apoiou o irmão e, como marchand, financiou sua arte. Ainda assim, algumas passagens mos-tram que nem tudo eram flores entre os dois: “Até certo ponto você se tornou um estranho para mim, e eu talvez o seja para você mais do que você imagina; talvez fos-se melhor para nós dois não continuarmos assim. É possível que nem mesmo agora eu lhe tivesse escrito, não fosse o fato de eu me sentir na obrigação, na necessidade de lhe escrever; não fosse o fato de você mesmo me fazer sentir esta necessidade. Soube em Etten que você tinha me enviado cinqüenta francos. Pois bem, eu os aceitei. Certamente a contragosto, certamente com um senti-mento bem melancólico, mas estou numa espécie de beco sem saída ou de atoleiro, como fazer de outro modo?”.

Laços de família

Mesmo quando os trabalhos não são auto-biográficos, como os de Kafka e Van Gogh, as relações parentais são uma idéia recorrente nas artes, sobretudo na literatura. O francês Honoré de Balzac fazia isso com perfeição. Sua triste história pessoal – ele foi marcado pela frieza e falta de afeto da mãe – apare-cia indiretamente nos romances, em que a família vai sendo minada pelo descrédito: pais e filhos se estranham, irmãos ignoram irmãos. Em Ilusões Perdidas (L&PM, 2007), Sechard é um velho avarento que explora todo mundo, alegando que precisa arrancar o dinheiro dos outros para ajudar seu filho, o poeta David. Quando David lhe comunica que vai se casar, Sechard o explora, fazen-

do-o assinar promissórias que o compro-metem pelo resto da vida. O casamento

também sofre um crescente despres-tígio. O personagem Henri de

Marsay, sabendo que

seu amigo Paul de Manerville iria se casar, tenta argumentar con-tra a decisão: “Quem se casa, atual-mente? Comerciantes, no interesse do seu capital. Camponeses, para serem dois a empurrar o arado. Agentes de câmbio ou tabeliões, que são obrigados a pagar pelo cargo. E reis infelizes, para continuar dinas-tias desgraçadas”. E, quando Manerville fala em amor, o outro o adverte: “O amor é ape-nas uma crença, como a da imaculada con-cepção da Santa Virgem”.

No romance O Pai Goriot, também de Balzac (Martin Claret, 2004), o personagem que dá título ao volume vive numa pensão ordiná-ria, depois de ter gasto toda a sua fortuna no dote de suas duas filhas, assegurando a ascensão social de ambas. E morre na soli-dão, porque as moças não podiam perder uma festa que lhes dava oportunidade de aparecer em sociedade. “Esse livro mostra a paixão do pai pelas duas filhas, que o traem. É uma história de desencanto, e esse senti-mento normalmente acontece nas relações familiares”, lembra o escritor Milton Hatoum. Em sua obra, a família é referência constan-te – não apenas a sua própria, como a dos outros. No primeiro caso, ele costuma dizer que seu gosto pela literatura vem do avô manauara, um exímio contador de histórias. “O primeiro livro que eu li foi pela voz dele”, conta. A figura do avô de Hatoum foi usada diversas vezes em seus livros, não só pela ha-bilidade de contar casos mas também pela paixão incondicional que nutria pela esposa – sentimentos vividos pelo personagem pai dos gêmeos, do livro Dois Irmãos (Cia. das Letras, 2000). Em Cinzas do Norte (Cia. das Letras, 2005), Hatoum usou como inspiração os parentes de um amigo, cujo pai o tirani-zava. “Boa parte dos nossos personagens é uma projeção da gente mesmo: o que mais odiamos ou quem gostaríamos de ser.”

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A família dos outros também é o objeto de fascínio do fotógrafo alagoano Jonathas de Andrade. Em seu projeto intitulado Amor e Felicidade no Casamento (2007-2008), ele apresenta imagens cotidianas envelhecidas artificialmente. A idéia partiu de um antigo livro sobre moral e bons costumes encontra-do na biblioteca de seus pais. Andrade quis transformar aquelas palavras em imagens e assim propor ao espectador uma discussão sobre a moralidade. “Algumas pessoas acham que as imagens são elogio; outras, que são crítica. Eu não tenho essa clareza.” Para ele, a família está no núcleo da criação, mesmo quando o artista não tem dimensão disso. “Pode ser a biológica ou quem quer que ocupe esse lugar”, diz. Até porque, quando se pensa no assunto, não necessariamente estamos falando somente em genética.

O trabalho do cineasta Kiko Goifman é um bom exemplo. No documentário 33 (2003), Goifman discute o tabu da adoção com base em sua própria experiência – ele filmou a busca por sua mãe biológica com o aval e a ajuda da adotiva. “Trata-se de uma homena-gem, um filme dedicado à minha mãe que mostra uma total cumplicidade entre mim e ela”, diz. Em sua última obra, Filmefobia (cuja primeira apresentação pública ocorreu em agosto, no Festival de Locarno, Suíça), Goifman faz menção à família ao contar que sua própria fobia de sangue o impede de brincar sozinho com o filho Pedro, de 5 anos, pois teme ao pensar que o menino possa se machucar e ele não consiga ajudá-lo. O diretor afirma que o tema não é o foco exclusivo de seu trabalho, porém acaba apa-recendo em tudo o que faz. Isso porque tra-balha em família. A mulher, Cláudia Priscilla Andrade, é sua companheira em todos os filmes que realiza. Sem contar os amigos que trabalham com ele, que não deixam de ser família tanto quanto. Como dizia o es-critor Carlos Drummond de Andrade: “O indivíduo interroga, sem alegria, mas sem sentimentalismo, a estranha realidade familiar, a família que existe nele próprio”.

Cena do filme 33 (2003), de Kiko Goifman

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Retratos da série Máscara de Punição (2002-2003) | imagens: Eustáquio Neves

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Coleções de casamentos, nascimentos, aniversários...Fotografias de família são a prova inegável da nossa existência, ainda que possam, apresentadas como realidade, ser uma ficção

Por Eder Chiodetto

Antepassados sem rosto. Netos que nunca viram a fisionomia dos avós. Filhos que desconheciam a aparência dos pais quando jovens. Pais que não tinham como reter o sorriso infantil dos filhos. A invenção da fotografia, em 1839, conseguiu aplacar a angústia do homem diante da impossibilidade de ter sua imagem e dos seus parentes fixada em uma superfície por toda a eternidade.

Antes de tal descoberta, o retrato era feito por pintores, mas poucos eram os que podiam pagar por isso. No mais, a verossimilhança propiciada pelo novo invento seduziu de forma entusiástica as pessoas que, ávidas, acorriam aos estúdios fotográficos para poder finalmente se ver num suporte tal como um espelho, com a diferença que a imagem desde então não desapareceria mais do “espelho mágico”.

O desejo de ser retratado, que perpassa toda a história da humanidade, pode ser explicado pelo fato de que, simbolicamente, com esse gesto, o homem ganha uma sobrevida para além da morte, que sabemos inevitável. Ao fazer emergir de forma enfática o passado no presente, a fotografia cria um paradoxo temporal e se torna uma das mais preciosas aliadas da nossa memória. É por isso que alguns teóricos dizem que a fotografia tem um flerte constante com a morte. Afinal, nada mais é do que a marca, o vestígio de algo que já se extinguiu, se modificou, foi engolido pelo fluxo contínuo do tempo. Tudo o que vemos nela está, inevitavelmente, morto.

No entanto, mesmo sendo a prova material de uma ausência definitiva, a fotografia, por sua ambigüidade, tem a capacidade de ativar nossa percepção e nos remeter a uma intrépida viagem ao passado. Em se tratando de retratos de família, age no sentido de desenhar vidas em perspectiva, em que nos tornamos personagens de uma história enredada nos álbuns (ou fôlderes) que colecionamos.

artigo

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Saudade do futuro

Na série Máscara de Punição (2002-2003), o artista mineiro Eustáquio Neves recupera um antigo retrato de sua mãe, uma mulher negra, sobre a qual aplica a imagem de uma máscara de punição tal qual era utilizada para castigar os escravos. Na série, a máscara ora oculta o rosto, deixando a mulher cega e muda, ora ganha uma transparência, tra-zendo de volta sua expressão. Dependendo da seqüência como a série é vista, a “escrava” pode estar se libertando ou sendo punida. De forma pungente, o artista faz com que o retrato de sua mãe vire símbolo não apenas da memória dela, mas de todos os seus an-tepassados, de toda a raça.

É fato que os álbuns de família revelam inva-riavelmente uma narrativa pontuada apenas por bons momentos. Festas de aniversário, casamentos, baladas, viagens, nascimento e crescimento das crianças etc. As vidas conti-das nessas fotografias foram suprimidas de todas as dores, tristezas, depressões, desen-tendimentos, brigas, desaforos, choros, rai-vas, ingredientes que, naturalmente, fazem parte do dia-a-dia de toda e qualquer rela-ção, sobretudo as familiares.

Os álbuns de família, esses acervos foto-gráficos que mais se aproximam da idéia de um documento que guarda estreita re-lação com a nossa noção de realidade, que nos soa como uma contraprova inegável da nossa existência, são, portanto, uma cons-trução idealizada do que somos ou fomos, uma narrativa que tende à mistificação, à ficcionalidade da vida. O que colecionamos e deixamos como testemunho da nossa his-tória para as gerações vindouras é uma edi-ção em ritmo de filme açucarado de sessão da tarde, em que todo o atrito, tudo o que impeça a felicidade plena, deve ser extirpa-do. Amnésia para os momentos infelizes e eternidade para a felicidade, essa é a lógica que permeia os álbuns de família.

Desde o momento em que a fotografia pas-sou a ser utilizada de forma mais intensa por artistas plásticos, principalmente nos últimos 20 anos, essas questões ligadas a memória, identidade e genealogia, no que tange aos retratos de família, passaram a ser um terre-no fértil para discussões que se desdobra-

ram em obras de arte e ampliaram as pos-sibilidades da linguagem fotográfica no

contemporâneo. Abordaremos aqui dois trabalhos de artistas brasilei-

ros, entre vários possíveis.

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Já na série Dê Forma (2004-2005), o casal de artistas paulistanos Gisela Motta e Leandro Lima não utiliza o retrato de família como ponto de partida para citar a memória e o passado, mas, sim, para falar de uma estra-nha saudade do futuro. Para tanto, eles pro-curam duas pessoas adultas que tenham afi-nidade afetiva (casais hétero ou homossexu-ais, amigos, sócios etc.) e lhes propõem gerar um filho virtual. Após fazerem o retrato dos candidatos a pais, utilizam programas de tra-tamento com os quais os rejuvenescem até a adolescência, alteram proporções faciais e fundem as fotografias gerando, assim, a ima-gem do filho virtual. É perturbador perceber a semelhança desse ser, que não existe, com seus pais.

Gisela e Leandro promovem assim um nó conceitual tanto na linguagem fotográfica, que foi inventada para certificar a existência das coisas visíveis, quanto na lógica que encerram os álbuns de família, nos quais estão segredadas nossas histórias passadas e jamais aquilo que pode vir a existir num futuro imprevisto. Antepassados sem rosto no século XIX. Parentes inexistentes, com a nossa imagem e semelhança, no século XXI.

Eder Chiodetto é jornalista, curador de fo-tografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) e autor do livro O Lugar do Escritor (CosacNaify, 2003).

Fotos de filhos virtuais geradas para a série Dê Forma (2004-2005) | imagens: Gisela Motta e Leandro Lima

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Na batucada da vidaA inseparável irmandade que se forma numa roda de samba

Por Mariana Lacerda

Uma atmosfera, um jeito de andar, de falar, até. Meu irmão, meu camarada, meu querido, expressões que afinam a comunicação, que aproximam as pessoas. A postura sempre elegante ao elogiar uma mulher. Um petisco compartilhado, um prato de comida servido, para que a cerveja ou a cachaça nunca inflamem. Confraternização ao redor da música para dividir as dores. Para se juntar, para ser feliz. “Tudo isso é coisa de sambista”, diz a cantora Fabiana Cozza. “É o que revelam as letras das músicas”, continua, ela mesma sambista cuja cartilha seguida, e não poderia ter existido melhor, se encontrava nas rodas de samba do pai, Oswaldo dos Santos, paulistano nascido no dia 4 de abril de 1944 na Maternidade de São Paulo, na Rua Frei Caneca, arredores da Avenida Paulista.

Seu Oswaldo, diferentemente de Fabiana, não foi filho de peixe. A rua, as amizades, a queda pela farra, aí, sim, foram aproximando-o da música. “Gostava de dançar e de cantar”, diz ele. “Bossa nova, rock, acompanhei todos esses movimentos.” Nessa época em que o samba já era samba, ele começou a estudar ciências contábeis na PUC/SP. E para lá levou, mais especificamente para o diretório acadêmico da faculdade, a sua roda, que já iniciara acordes em bares da cidade, “e ninguém sabia nem o que era cachê”, conta, “tocávamos para comer feijoada”.

Na faculdade, os alunos do curso de direito começaram a organizar “um tal de baile branco”. Algo que seu Oswaldo achou meio esquisito. Motivo pelo qual tentou arregimentar um conjunto na Camisa Verde e Branco para promover não uma roda, mas, sim, um sambão na universidade. “Foi quando comecei no Camisa.” O que significava estar entre os músicos de uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo.

reportagem

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Música de bambas

O samba ainda dava seus primeiros passos na capital paulista no início do século quan-do as ruas do bairro da Barra Funda viram, durante o Carnaval, rapazes que vestiam camisas verdes e calças brancas desfilando. Era o início do que seria o Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco, fundado oficialmente em 1953. E foi na quadra verde-e-branca que seu Oswaldo se aproximou da nata dos músicos paulis-tanos. Menesguini Marcos, vulgo Menezes, que já era amigo, tornou-se irmão. Seu filho, Odair Marcos, a quem seu Oswaldo costu-mava buscar no futebol de salão para par-ticipar das rodas (primeiro como pandeirista e depois como cavaquinista), virou espécie de sobrinho. Com Menezes e Talismã (com-positor de músicas como Festa das Flores e Negros Maravilhosos, famosas na voz do gru-po Originais do Samba, e, segundo o mestre, “um dos maiores poetas de samba”) criou um conjunto. Com Hélio Bagunça, também tido como um dos grandes, formou outro.

Da quadra da esco-la, seu Oswaldo demorou a

sair. Foram 16 anos dedicados ao grupo liderado por seu Inocêncio de

Oliveira, de quem recebeu o convite para ser puxador de samba-enredo. “Ou seja,

o intérprete de sambas da escola, como o Jamelão preferia ser chamado”, arremata o músico, tetracampeão pela Camisa. Estava formada a família, que se reunia ao redor de uma mesa para tomar cerveja, dividir refei-ções, cantar e batucar “porque traz alegria e afasta a tristeza”.

A carreira então decolou. Mas aí veio o ca-samento, nasceram as duas filhas, Fabiana e Juliana. O sambista se formou contador, montou um escritório, precisava pagar as contas, correr menos riscos, “para que as filhas crescessem bem”. Escolheu deixar a música profissionalmente? “Não foi bem isso”, diz. “O dinheiro precisava ser garantido todos os meses. E, como nem tudo são flo-res, chegaram as decepções com gravado-ras, empresários, gente que quer enriquecer com o seu trabalho, entende?”

Roda de samba formada pela “família” de Oswaldo dos Santos | imagem: Cia de Foto

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Saudosa maloca

“Com o escritório funcionando a todo va-por, o samba foi ficando um pouquinho de lado”, conta ele. Mas só um pouquinho, por-que as rodas continuaram, como continu-am até hoje. Também porque as lembran-ças ficaram para sempre, embora tantos companheiros já tenham morrido ou, sim-plesmente, estejam distantes, levados pelas andanças da vida.

“Um pouco de saudade não vou dizer que não sinto”, conta seu Oswaldo. De algo caro ao ritmo. De um elemento que, como disse a filha Fabiana, é “inerente ao samba, sem isso ele não existe”. Ela fala da irmandade que se forma em uma roda, dos laços afeti-vos fortes vindos com as experiências com-partilhadas em noites adentro de música. “Porque pegamos os momentos tristes e felizes de nossa vida e transformamos em

música, que, por isso, aproxima, congre-ga pessoas”, diz ele. E faz de seus poe-

tas e instrumentistas irmãos.

São muitos os exemplos dos quais ele se re-corda. Uma vez, ainda moço, estava desem-pregado. Era estudante, precisava pagar a matrícula e a primeira mensalidade da fa-culdade. E estava sem dinheiro. Os amigos, sem que ele precisasse falar alguma coisa, perceberam a situação, se cotizaram e ga-rantiram a continuidade dos estudos do companheiro. “Pagaram sem saber quando eu poderia devolver o valor. E nunca aceita-ram um tostão de volta.”

Oswaldo (centro) e sua “família”: do sambão da universidade às passarelas da Camisa Verde e Branco | imagem: Cia de Foto

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Quando montou seu escritório – que hoje funciona numa sala repleta de pastas e ar-quivos no 10º andar de um prédio na Rua Sete de Setembro, centro de São Paulo –, tornou-se o contador dos amigos. “Antes mesmo que eles me pedissem que declaras-se o imposto de renda, eu já o fazia”, conta. “Sem nem avisar, pois eu sabia quanto cada um tinha de salário, que bens adquiriram no último ano, enfim, tinha conhecimento de tudo e eles não precisavam se preocupar com nada”, emenda.

Em seu escritório, o sambista torna-se contador | imagem: Cia de Foto

E também houve momentos em que os mais velhos do grupo, atentos à juven-tude do músico, lhe puxaram a orelha. “Exatamente em situações em que eu pre-cisava daquele cuidado.” Como na vez em que ele tinha uma prova importante na fa-culdade. “Respondi tudo a toque de caixa, porque tinha um show do meu conjunto em Piracicaba.” Hélio Bagunça estranhou sua velocidade ao resolver a prova. Não deu outra. Chamou o jovem no canto e passou-lhe a bucha. “Disse-me”, lembra agora seu Oswaldo, “algo como ‘você tem a voz boa,

é bonitinho... mas é preciso garantir a vida. Que história é essa de não fazer

a prova direito?’ ”. “Isso é reclama-ção de família, não é?”

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O novo vôo do pássaro da noite

Por Mariana Lacerda e Marco Aurélio Fiochi

Matheus Nachtergaele integrou o elenco de algumas das mais interessantes produções do cinema brasileiro atual, como O que É Isso, Companheiro? (Bruno Barreto, 1997), Central do Brasil (Walter Salles, 1998), O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000) e, mais recentemente, Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2007). Arte mais freqüente em sua carreira, o ator contabiliza a média de participação em duas produções cinematográficas por ano, há uma década. Sem falar no trabalho na TV, em novelas e minisséries, como A Muralha (2000) e Os Maias (2001). Nos palcos, ganhou o Prêmio Shell como melhor ator, com a montagem O Livro de Jó (Teatro da Vertigem, 1996). Agora, Nachtergaele, sobrenome flamengo que significa pássaro da noite, alçou um novo vôo: seu primeiro filme como roteirista e diretor, A Festa da Menina Morta, mostrado no Brasil pela primeira vez no Festival de Cinema de Gramado em agosto, quando ganhou seis prêmios – o longa estreou internacionalmente na mostra Un Certain Regard, no prestigiado Festival de Cinema de Cannes. Sejam personagens criados, sejam encenados, um aspecto permeia sua arte: a visita (sempre fabular) ao passado e, com isso, o toque corajoso, às vezes amargo, às vezes doce, naquilo que temos de mais pessoal. Porque “quanto mais você puder entrar em contato genuíno com a sua pessoalidade, mais você estará no coletivo”, diz Nachtergaele nesta entrevista.

entrevista

Matheus Nachtergaele: “Meu passado habita todos os meus personagens” | imagem: Cia de Foto

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Você concorda que o histórico familiar, seja a família biológica, seja a afetiva, interfere no trabalho artístico? Em qual medida esse seria um aspecto caro à criação artística?

Concordo com isso, mas acrescentaria algo. Não acho que nosso trabalho de arte este-ja ligado exatamente ao passado familiar, mas, sim, à impressão do mundo como um todo. Essa visão se dá não só por meio das experiências que vivemos na infância com a família, mas também com as experiências que nos dão uma visão do que seria o uni-verso. Parece-me que esse desenho da rea-lidade, sim, passa a ser algo que persegue e que habita a obra de arte para sempre, se acreditarmos que ela é uma tentativa de dizer para os outros algo sobre a sua subje-tividade. Creio que as grandes obras de arte são uma tentativa de falar algo como “esse é o mundo que eu vi”. Independentemente da área artística, o que se procura é reviver o passado para dividir com os outros essa sensação tão única.

Você já utilizou alguma situação familiar para compor um personagem?

Nunca me remeti à família diretamente. Mas acredito que meu passado habita todos

os meus personagens. Mas nunca, pelo menos conscientemente, mesmo es-

crevendo um roteiro, reproduzi uma cena completa.

De que forma, então, o passado habita seus personagens ou roteiros?

Ele tinge, macula, permeia o discurso. Acho que não só o discurso artístico, mas o de vida. Acredito que o passado, e aí não só o familiar, tinge de uma certa coloração até os meus relacionamentos amorosos, ou a ma-neira como me encaixo na sociedade como cidadão, como artista. Obviamente, passa-mos a vida procurando refazer caminhos, resolver traumas e celebrar fatos, situações, afetos. Mas não poderia dizer que, concreta-mente, já tenha reproduzido alguém em um personagem. Já percebi em uma ou outra cena algo como “nossa, isso se parece quan-do o meu pai está bravo, ou isso se parece com aquela cena no sítio em tal data”. Não trabalho com uma reprodução do passado, mas revisitando-o de uma maneira um pou-co mais abstrata. Acredito que o artista passa a vida fazendo fábulas da sua existência. Ele procura, por meio dessas metáforas, com-partilhar com os outros a sensação de mun-do que tem ou teve. Não sei exatamente em que momento, e não sou nem capacitado para falar disso, se dá uma visão de mundo concreta, uma impressão indelével. Acredito que seja na infância.

Talvez nos ritos de passagem, em um rompimento, daí em diante passa-se a ter uma visão de mundo diferente...

Em alguns momentos pode-se ter esta con-cepção: “O mundo me parece ou me pare-ceu assim”. Mas acredito que essa imagem disforme, abstrata, que é quase uma impres-são, nos persegue. Vejo isso nas obras que admiro muito. Os grandes cineastas, os gran-des escritores, mesmo os artistas plásticos me parecem que ficam rondando uma certa região, procurando revê-la, reconhecê-la e transmiti-la.

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Isso seria de alguma forma um processo que passa pela racionalização?

Acredito que existem várias maneiras de isso acontecer. Pode-se ter desde uma tentativa incrível de voltar à infância, como o Miró, que quanto mais evoluía, mais voltava para um primeiro traço, uma primeira impressão, ou tentativas mais racionais de mostrar aos outros o seu mundo. Isso acontece em Ing-mar Bergman, em Woody Allen, só para dar alguns exemplos. Deve haver um quê de construção racional e um quê de despejo de coisas inconscientes. Porque em arte se trabalha e trabalha e trabalha para que algum milagre aconteça. Alguma coisa no meio disso tudo, em algum momento, ex-plode e é um pouco maior do que você. Por isso é complicado assumir que é a sua pes-soalidade que está ali o tempo todo. Acredi-to que, quanto mais você puder entrar em contato genuíno com a sua pessoalidade, mais estará no coletivo. Talvez os grandes traumas sejam mesmo de todos. Talvez as grandes dores possam ser compartilhadas por todos, e as grandes alegrias também. Agora não é raro uma tragédia dar origem a um artista. Ou pelo menos um fato brus-co, uma quebra grande. Em geral, grandes artistas sofreram traumas ou ficaram muito impressionados por eles.

Quanto de sua história de vida está con-tido no filme A Festa da Menina Morta?

Posso dizer, sem estar mentindo, que todos os personagens são um pouco de mim e que as situações são fábulas de coisas que vi, ou que pressenti, ou intuí. Mas não po-deria dizer que é uma narrativa baseada na realidade.

Qual é o enredo do filme?

O filme conta a história de um rapaz con-siderado santo numa comunidade do Alto Rio Negro [na Amazônia] pelo fato de ter encontrado os restos do vestido de uma menina. A comunidade considera isso um milagre. E ele mesmo tem uma vida marca-da por algumas tragédias: sua mãe come-teu suicídio, é o que dizem. Ele está casado com o seu pai, ou seja, vive de maneira in-cestuosa com ele... e é considerado santo. O filme se passa num dia de festa, no 20º aniversário da menina morta. Eu mostro um pouco da intimidade desse personagem, de seu pai, das beatas, do irmão dessa menina. É uma tentativa de superação do luto, que me parecem ser as religiões. É um retrato dos participantes de uma pequena seita, que idolatra os restos de um vestido de uma menina. Como alguém que amasse as coisas de um parente morto. Ou como um ser humano, que quase sempre adota um mártir para adorar. Creio que chorar pelo mártir poupa alguma coisa do ciclo infernal, ou pelo menos irmana as pessoas, todos nesse espanto que o homem tem pelo fato de, independentemente de qualquer coisa, saber que vai morrer. Outro dia me falaram uma coisa bonita, que a Clarice Lispector, quando descobriu que tinha câncer, escre-veu algo como: “Deus, eu sabia que todos nós morríamos, mas até eu?”. Então, em A Festa da Menina Morta, as pessoas estão, por meio de um ritual, tentando salvar algo do ciclo infernal. Existem coisas muito pessoais no roteiro, não só minhas, mas também de Hilton Lacerda [roteirista de Amarelo Manga (2003) e Baixio das Bestas (2007)], que o es-creveu comigo. E também depoimentos de cada participante. Trabalhei com a perspec-tiva do depoimento pessoal, quer dizer, o personagem é outro mas é você. Essa dor

é sua. Senão não faz sentido, é represen-tação. Foi uma tentativa de que todos

nós aproveitássemos o filme para fazer algum luto que preci-

sasse ser feito.

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Como você chegou até essa história?

Fui a uma festa parecida com a que aca-bei retratando no filme, que aconteceu no interior da Paraíba. Nela, as pessoas ado-ravam o vestido rasgado de uma criança. Fiquei chocadíssimo. Eu estava fazendo O Auto da Compadecida, em 1999. Aquilo me perturbou, pois achei muito triste que o milagre fosse materializado no trapo de uma pessoa. A criança se fora, mas alguma coisa ficou. As pessoas choravam, rezavam e depois houve uma grande festa, que se transformou num forró, com cachaça, lou-cura, tudo num local bem pequeno. Esse fato começou a me rondar e, algum tempo depois, parei para escrever o roteiro. Algo sem nome me perturbou e começou a virar um grito que tinha de sair, até o momen-to da escrita. Não deixa de ser uma febre a hora em que você senta para escrever, é quase como ajoelhar ao lado de uma pri-vada e vomitar o que lhe fez mal. Foi assim que saiu a primeira versão do roteiro. De-pois, chamei Hilton Lacerda para retirar do roteiro um perigo que o rondava, que era o excesso de pessoalidade. Julguei que aqui-lo não diria respeito a mais ninguém que não fosse eu; e que outra pessoa poderia me ajudar a fazer daquilo uma fábula.

No roteiro, onde estariam essaspessoalidades?

Apesar da fabulação que fiz, uma vez que utilizei a festa como um ponto de partida, os personagens eram como se fossem eu ou pedaços de mim e da minha família es-palhados. Achei que tinha de chegar a uma coisa mais aberta do que isso, no sentido de tornar a fábula mais generosa. Estava procurando um segundo olhar, para tirar o roteiro do meu umbigo e jogá-lo no mun-do. E o Hilton pôde fazê-lo com delicadeza e ao mesmo tempo me mostrar trechos totalmente “umbigados”.

Isso não significa que em trabalhos futu-ros você não volte a essa pessoalidade.

Confesso que deixei até perigosamente al-guns aspectos bem pessoais no filme. Ele é bem autoral. Não é exatamente a minha vida, mas o meu universo está contido ali, pelo menos uma parte dele. Quando penso em escrever, sempre parto do pessoal. O Ozu [cineasta japonês Yasujiro Ozu] fez sete filmes com a mesma história: uma noiva que vai se despedir do pai. Não sei se consigo fazer coi-sas tão diferentes. São pontos que se podem chamar de alicerces emocionais. Quando penso em um segundo roteiro, imagino que a história será bem diferente de A Festa da Menina Morta, mas os es-teios serão os mesmos.

A atriz Dira Paes em cena do filme A Festa da Menina Morta (2008) | imagem: Alexandre Baxter

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Que passagem do filme você sente como uma referência direta à sua vida familiar?

O mais óbvio é o fato de que essa história acontece porque a mãe desapareceu, ela se matou. Isso é o que aconteceu comi-go também. Mais concreto do que isso eu não consigo ir. Quer dizer, A Festa da Meni-na Morta retrata uma casa em que os ho-mens ficaram abandonados. As beatas são mães postiças. O carisma aos santos é uma tentativa desesperada de sobreviver dessa forma. Isso eu sei o que é... É ficar com seu pai numa casa sozinho, e outras mulheres entrarem para substituir um pouco aque-la ausência insubstituível. Porque a casa é da mãe. A casa, em geral, é uma tentativa maternal de manter os homens livres do chamamento terrível que o mundo é para eles. Os homens têm a tendência à evasão, à aventura. E a casa é uma forma de a mulher mantê-los seguros. Casa sem mãe é aquela em que tudo pode acontecer. Um cenário de liberdade, de falta de afeto, de masculini-dade. Acho que esse é o primeiro cenário de A Festa da Menina Morta, a casa invadida por mulheres incompletas que tentam substi-tuir alguém que se foi. A casa habitada por dois homens magoados, abandonados. Isso é superpessoal e nunca se modificou desde a primeira escrita. Não há mais por que eu não falar sobre o suicídio da minha mãe. Até porque ele é, provavelmente, o motivador do roteiro. Talvez, quando vi o vestido ras-

gado, tenha pensado algo como: “Nossa, eles continuam adorando alguém que

já foi”. Essa é a base de tudo. O vômito a que me referi anteriormente é

isso. Eu vi no vestido aque-la que partiu.

Como está formada sua família atual, seja ela natural ou por afinidade?

A minha família atual é uma combinação des-sas duas. Algumas pessoas da minha família convivem comigo de uma maneira menos in-tensa do que no fim da adolescência. Outras se tornaram meus amigos, são familiares que per-manecem perto de mim, o que é bem bonito. Meus irmãos estão muito perto de mim. Minha avó é a minha maior amiga. Meu pai se sepa-rou da minha madrasta, o que significa que o núcleo familiar foi um pouco rompido. Aliás, já venho de um núcleo rompido, porque meu pai se casou de novo depois da viuvez, e fui criado pela minha madrasta, que se chama Carmem. Participo de uma família bastante instável, que há poucos anos se desfez novamente. E o que sobrou mesmo foram os amigos. Estou com 40 anos, então tenho amizades de 30, 20 anos com pessoas que são a minha família, tanto como aqueles com o meu sangue.

Qual a origem do sobrenome Nachtergaele?

É um sobrenome flamengo, e nós somos da Bélgica. Não sei muito do passado re-moto desse sobrenome; meu pai veio com os meus avós para o Brasil logo depois da Segunda Guerra. Somos Nachtergaele, o que significa pássaro da noite. Uma família de artistas. Meu avô cantava ópera. Minha mãe era poetisa. Meu pai foi um dos fun-dadores da Traditional Jazz Band, tocava banjo na primeira formação e acompanhou o conjunto por alguns anos. Ele se formou em engenharia na USP e foi trabalhar, mas toca violão com maestria... Foi ele quem me ensinou tudo o que sei de música. Há outros artistas na família materna, pessoas que escrevem bastante.

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Você chegou à arte por esse caminho?

Na verdade, existia muita música em casa. Tive sorte de nascer num lar com livros de arte, com boa literatura. Os primeiros bons livros que li estavam na biblioteca caseira. Acho ma-ravilhoso estender a mão e ler Albert Camus. E alguém ao seu lado lhe falar “isso é bacana”. Meu avô me iniciou em Elia Kazan, e isso é uma honra. Não que ele fosse um intelectual, mas gostava de ler. Interessava-se por cinema, era um cinegrafista amador e havia muita coi-sa de cinema em sua casa. Meu avô, depois que chegou ao Brasil, se tornou alfaiate e te-celão. Ele morava num sítio e fazia artesanato como atividade auto-sustentável. Produzia ta-peçarias, panôs, roupas, era uma pessoa liga-da à arte. Mas, quando anunciei que ia ser ator, por incrível que pareça, foi um grande choque para todos.

Por quê?

Não sei... Meu pai é engenheiro, e minha ma-drasta, dona de casa. Creio que o objetivo dele era ter os filhos na faculdade, algo mais convencional. Quando você anuncia que vai ser ator, vira um pacotão de horror na frente da família. Isso foi em 1988, 1989, e eu já esta-va fazendo desenho industrial na Faap, mas não gostava e então me transferi para artes plásticas. Isso já tinha sido um pouco grave, eu já estava contrariando. Quando disse que ia ser ator foi uma loucura lá em casa. Inicial-mente, eles não aceitaram: “Se você vai fazer, então, vire-se”. Inclusive acho muito impor-tante o rompimento, pelo menos no meu caso. Tive de fazer sozinho, querendo fazer. Tive de criar outras famílias, conhecer outras pessoas e nelas me apoiar. Claro que depois de um tempo eles começaram a entender que eu não estava delirando e que aquilo não era um desejo adolescente, aquilo era verdade. E hoje é comovente, eles não dei-xam de assistir a nenhum filme e a nenhuma peça minha. Eles vão em massa e é muito legal. Mas no começo houve, sim, um blo-queio, que acho natural e até saudável. Ninguém me deu a mão e me levou a algum lugar ou me arranjou uma vaga num lugar qualquer.

Esse talvez tenha sido um rito de passagem.

Exatamente. É quando você fica sozinho dentro de casa. Ou seja, você está com os seus mas está só.

Você está pensando em um novo roteiro, já começou a trabalhar nele?

A Menina... tem de estrear. O filme não se completa antes da estréia. Ele tem de ser vis-to, tem de nascer para o mundo, para que eu fique livre, para que eu possa respirar, enten-der o que ele disse e o que ele não disse.

A exibição em Cannes trouxe um pouco dessa experiência?

Foi bem bonita a sessão. A sala estava re-pleta. Existia uma expectativa em torno do filme, o que me deixou bastante comovido. Claro que havia brasileiros e amigos lá. Mas também estrangeiros falando sobre a obra. E a sessão mostrou o que eu imaginava que o trabalho fosse. Ou seja, ele é uma fábula difí-cil sobre a superação de um luto que talvez seja insuperável. Algumas pessoas acharam que era um delírio barroco, no sentido de um filme aberto, que não é cartesiano. E ou-tras se perturbaram, talvez justamente pelas amarras pessoais, e disseram: “Nossa, para que isso?”.

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O menino de seu avôItinerário afetivo revela a trajetória ímpar de um homem das artes

Por Micheliny Verunschk

Josias Saraiva Monteiro Neto foi batizado com o nome de um avô e tem fascinação pela vida e obra do outro, que ele praticamente não conheceu, mas que mobiliza sua atividade criativa atual. Pedro Teófilo Batista, pai de sua mãe, morreu quando o menino tinha apenas 2 anos, mas as histórias em torno dele foram suficientes para que estivesse sempre presente na vida de Josias. “Todos na família falavam desse homem inventivo, criativo, quase fabuloso. E também me falaram que éramos muito apegados. Que quando eu chorava só ele conseguia me acalmar”, conta.

Quem vê Josias, aos 21 anos de idade, ainda com seus longos cabelos de adolescente, nem imagina a empreitada que ele abraçou. Com amor, obstinação e, sobretudo, disciplina, esse estudante de jornalismo vem resgatando a trajetória de Batista, uma espécie de Leonardo da Vinci pernambucano, ao mesmo tempo que revela uma página esquecida, e pitoresca, do cinema nacional. “Meu avô foi uma das pessoas, talvez a única, que trabalharam em praticamente todos os níveis da cadeia do audiovisual em Pernambuco desde o fim da década de 1950. Ele fundou e administrou um cinema, foi diretor, cenógrafo e repórter cinematográfico, trabalhou com animação e também em comerciais, entre outras coisas. Foi um dos responsáveis pela montagem da TV Gazeta, em Maceió, Alagoas, em 1975. Quando se fala, porém, em registros históricos, não existe uma linha sequer sobre sua importância.”

perfil

Em família: Batista (o primeiro à esquerda) posa para foto do aniversário do neto | imagem: arquivo pessoal

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Aviador de formação, cineas-ta, fotógrafo, inventor, dese-nhista e arquiteto, mas, sobretudo, um apaixonado por cinema, Batista fundou no Recife, em 1967, a Nacional Filmes do Brasil, estúdio que produziu, naquele mesmo ano, seu primeiro longa-metragem, A Virgem dos Lábios de Mel. Anos antes, em 1955, Batista já havia projetado e fundado, no bairro do Arruda, o Cine Olym-pia, que exibiu na capital pernambucana clássicos como Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, Os Três Mosqueteiros (1948), com Gene Kelly e Lana Turner no elenco, entre outros filmes.

Em 1969, o cineasta dirigiu mais um longa, sobre a história do Brasil, intitulado O Gi-gante que Desperta. Para esse filme chegou a construir uma caravela em tamanho real num estúdio no Bairro do Recife. Nenhum de seus filmes chegou a ser exibido, no en-tanto Batista deixou um arquivo impressio-nante. São roteiros, storyboards, panfletos, centenas de croquis de cenários, diagramas de composição cênica, recortes de jornais, fotografias. A única coisa que seu neto ain-da não encontrou foram os negativos das obras, embora saiba, por meio da documen-tação existente, que elas foram realizadas. Os dois filmes foram fotografados por Firmo Neto, referência do cinema nacional da fase conhecida como Ciclo do Recife [ver box].

No fim dos anos 1970, Batista criou mais uma produtora, a Filmerama. Não chegou a produzir nenhum filme com o novo empre-endimento, mas deixou roteiros adaptados de A Ilha Perdida, romance de Maria José Du-pré, autora também de Éramos Seis, e outro intitulado Fausto, o Amor e o Diabo, baseado na obra de Goethe. Seu fascínio por ficção científica extrapola a grande tela, tanto que planejou invenções que, na época, seriam dignas de Os Jetsons, famosa série de ani-mação futurista da década de 1960. Uma delas foi uma lanchonete inteiramente au-tomatizada, desde a produção até o aten-

dimento. Localizada na Avenida Conde da Boa Vista, uma das mais movimentadas

da capital pernambucana, tornou-se um ponto agitado durante al-

guns meses de 1974.

Josias, hoje: desejo de reencontro com o avô | imagem: Beto Figueiroa

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Listas de inventos de Pedro Teófilo Batista, avô de Josias | imagem: Ricardo Bolognini

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Paixões em comum

Há cerca de três anos, Josias realiza um tra-balho minucioso de pesquisa e catalogação do material deixado por Batista. Ele conta que, no início, a visão que tinha do avô era mitificadora, chegando mesmo a colocá-lo na categoria de “gênios injustiçados” da humanidade. No entanto, à medida que foi aprofundando sua investigação, pôde ter uma postura mais crítica e realista. Para Jo-sias, a personalidade excêntrica de Batista, que também propagou uma filosofia espi-ritualista denominada Cosmocracia, o desa-creditava. E isso talvez explique seu esqueci-mento até aqui.

“Todo esse empreendimento tem como ponto de partida o desejo de reencontro com meu avô e o reconhecimento de mim nele. Tudo o que faço são formas de manter contato, de dialogar com essa pessoa refe-rencial. Reconheço-me nele. Somos muito parecidos. Uma das grandes surpresas foi descobrir que muitos dos livros que li ele leu também. Gostaria de assistir com ele aos filmes de Tarkovski, como Solaris (1972), por exemplo. Saber o que ele acharia de Soy

Cuba, o Mamute Siberiano (Vicente Ferraz, 2005). Medir até onde iriam nossos interes-ses comuns.”

As paixões compartilhadas por avô e neto já sinalizam que irão render frutos. Mesmo sem Batista ter sido conhecido ou finalizado seus projetos, Josias conseguiu como pou-cos chamar a atenção da imprensa do seu estado. Organizou, em junho, uma coletiva com os principais veículos de mídia impres-sa e apresentou Batista a Pernambuco. Os passos seguintes não são menos ousados. Josias escreve um livro a seu respeito e pre-tende, em 2009, quando se comemoram os 80 anos do cineasta, montar uma exposição com o vasto material que tem em mãos. A produção de um documentário também está em pauta. Muito embora ainda não disponha dos recursos e parceiros necessá-rios para dar vida aos projetos, Josias pare-ce ter herdado a energia de Batista. “Sua história tem uma enorme capacidade de mobilização. Acredito nisso e farei tudo como ele faria.”

Croquis desenhados por Batista | imagem: Ricardo Bolognini

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Sociedade do cinema silencioso

Audiovisual pernambucano do início do sécu-lo XX: história a descobrir

Imagine a seguinte cena: homens de cha-péu, mulheres elegantes, fila na porta de um cinema. Dia de estréia e todos ansiosos pelo filme que daí a pouco vai começar. A fachada enfeitada de bandeirolas e, pelo chão, folhas de canela espalhando um perfume adocica-do no ar. Uma bandinha entretendo o públi-co antes do início da película. O que parece ter sido retirado de um filme como Um Dia para Relembrar (James Foley, 1995) aconte-cia, de fato, no Cine Royal, em Pernambuco do início do século XX, e é apenas um indi-cativo de como é antiga a relação de amor entre o pernambucano e a sétima arte.

Produzir filmes no Brasil nunca foi uma tare-fa fácil. Menos ainda nos tempos do cinema mudo. Portanto, não é difícil imaginar as di-ficuldades de fazer cinema em Pernambuco naquela época. Mas era feito e com qualida-de. O chamado Ciclo do Recife, iniciado em 1923, produziu, ao longo de oito anos, nada menos do que 13 longas-metragens de en-redo e mais sete filmes de flagrantes da rea-lidade. Desses longas, um dos mais conheci-dos foi Aitaré da Praia (1925), com direção de Gentil Roiz.

Aitaré foi uma obra pioneira em levar os te-mas nacionais para o cinema, pois, até então, o Brasil tentava copiar o star-system america-no. A narrativa do filme gira em torno de um pescador, sua amada e os conflitos entre va-lores tradicionais e modernidade, embates ainda presentes no imaginário do atual cine-ma pernambucano. Outro êxito de bilheteria e de crítica, A Filha do Advogado (1926), de Jota Soares, chegou a ser exibido em mais de 20 cinemas do Rio de Janeiro, então ca-pital federal.

Durante esse período dourado, as produtoras se multiplicaram. Aurora-Film, Vera Cruz-Film, Planeta-Film são alguns dos nomes que fize-ram essa história, além de diretores e produ-tores como o próprio Gentil Roiz, Firmo Neto, Jota Soares, Edison Chagas. Eclético, esse ci-clo produziu desde Filho sem Mãe (1925), fil-me perdido de Tancredo Seabra sobre a saga de um cangaceiro, até História de uma Alma (1925), de Eustórgio Wanderley, baseado na biografia de Santa Teresa de Lisieux. Encerra-do em 1931, com filmes inacabados de Alfre-do Carneiro, o Ciclo do Recife é só a ponta de um roteiro que se iniciava e que iria mostrar sua cara novamente no Ciclo do Super-8, de 1973. Mas aí já é outra história.

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Do talento & de outras heranças malditasAs vantagens e benesses de ter sangue azul nesta terra de encantos mil

Texto Xico SáCartuns Allan Sieber

Nessas plagas, amigo, mesmo quando o filho é adotivo, o talento é hereditário. O sucesso aqui é como um latifúndio, um imóvel, passa-se em cartório. Claro que se a sua cria levar jeito para as artes, mesmo as ludopédicas, melhor ainda. Futuro asseguradíssimo.

Seja na Vieira Souto, aquela cobertura dos rolos da Embrafilme, seja à sombra quatrocentona das raparigas em flor dos jardins paulistanos. Como um Pêro Lopes, um Duarte Coelho ou um Martim Afonso das velhas Capitanias, vale o brasão heráldico no frontispício. Nada como um século atrás do outro para reafirmar a nossa gloriosa tradição de um batismo bem composto.

Sabes com quem está falando? Um bom sobrenome, amigo, acende automaticamente o foguetório da glória e da fama. Disso já sabia o velho Pestana, músico frustrado, ainda no século XIX, protagonista do conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis (no livro Várias Histórias, Garnnier, 1994). Faltou-lhe uma marca sanguínea mais decente, o que o levaria aos píncaros – seu sonho era ser um Schumann, um Mozart. Jamais, porém, para seu desgosto-mor, o artista passou de um festejado autor de polcas e outras chulas modinhas da praça.

Coitado! Do mundo de Machadão aos teledramas, com um bom batismo vai-se longe, avançam-se sempre umas seis casas sem carecer da sorte no jogo de dados ou nos lances cruéis do destino e do acaso.

A não ser que o amigo se contente em ser apenas uma celebridade-miojo, aquelas que fervem e viram gases de três a cinco minutos. Seja qual for o ramo de atuação, recomendo um mantra sagrado nos tristes trópicos: eu tramo, tu conspiras e nós assinamos embaixo. Faça você um biscoito fino ou um pão bolorento para as massas.

Na falta total de um bom sobrenome, colar, grudar mesmo em quem ostenta uma marca sanguínea impoluta pode ser uma ótima idéia. Ser da “turma”, de alguma forma, é adquirir, sob módica bajulação diária, um parentesco distante.

crônica

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Eu tramo, tu conspiras e nós assinamos to-dos embaixo. Feito! Aí é só mandar o moto-bói reconhecer a firma em cartório. Mais fá-cil do que empurrar bêbado ladeira abaixo.

“Se liga”, amigo, nas técnicas modernas de alpinismo social e cultural da nova era. “Fazes por ti que eu te ajudarei”, eis o eco bíblico que bafeja no teu cangote montanha arriba.

Além do sobrenome ou da aliança baju-latória gratuita da “turma”, mira-te, ó alma miserável, no exemplo do Janjão, o donzelo aconselhado pelo pai na Teoria do Meda-lhão, outro conto sobre boa conduta do nobre bruxo supracitado (faz parte do livro Papéis Avulsos, Martins Fontes, 2005). Para triunfar na vida, seja na magistratura, na im-prensa, na lavoura, na indústria, no comér-cio, nas letras ou nas artes – alerta o pai ao filhão que acabara de alcançar a maioridade –, além de bom bajulador e publicitário de si mesmo, tens que possuir sempre na man-ga do paletó uma função de reserva, para o caso de não prosperar no ramo profissional desejado: “[...] assim como é de boa econo-mia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição”, receitou o ve-lho para o jovem fofo e almofadinha.

O sonho maior é ser um medalhão, mas, se não

der, por que não tornar-se apenas um bom advogado? Se não der um

bom advogado, por que não ganhar a vida como um rábula de porta de cadeia,

ainda mais no mundo de tantos corruptos à procura de habeas corpus?

O mesmo vale nos dias de hoje nas raias da política, da cultura, do entretenimento e da fama. Não conseguiu emplacar como um bom ator? Ora, grave um disco. Não con-seguiu brilhar como cantora? Não faz mal. Tente ser apresentadora de programa in-fantil... Faltou financiamento para o cinema? Bem-vindo ao jornalismo.

Só não me venham com boas idéias. “O me-lhor será não as ter absolutamente”, como aconselha o pai do abestalhado Janjão. Mas, se tens mesmo um bom sobrenome, agar-ra-te, com todas as barbatanas e guelras, ao batidíssimo e valioso adágio do “filho de peixe peixinho é”.

Por mais que assombrado pelo temor de não fazer valer o sangue que corre nas tuas veias, vale a pena seguir o dom de família. Por mais que não tenhas dez por cento do talento do velho ou da velha, não titubeies.

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Boterinha

Existem criaturas, porém, vá entender a na-tureza humana e suas sete quedas para a anormalidade!, que trocariam toda a fortuna sanguínea e os dotes embutidos em uma pa-tente familiar de responsa por um corpinho dito perfeito, como o das atrizes/modelos.

É o caso da minha amiga quatrocentona L., legítima Álvares Penteado, que, uma vez possuída pelos sintomas vazios dos novos tempos, alardeia, não por chiste ou graça, à vera mesmo, que trocaria séculos de tradi-ção e herança pela bunda durinha de uma cachorra do funk ou algo do mesmo naipe.

Ê mundão sem porteiras e rechonchudo de contradições!

A amiga, linda e sábia boterinha, do tipo que ainda lê Flaubert, com ares de século XIX, passou toda a sua curta existência, pouco mais de um quarto de século, entregue às artes, inclusive às excelências de farta gas-tronomia. Mesmo com a perda de força no bombeamento monetário do seu sangue quatrocentão, nunca lhe faltou à mesa o manjar que edulcora o seu bom-gostismo.

Ao saber, por este portador dos acepipes da crônica de costumes, que as gostosas – aí in-cluídas as gazelas da moda – almejam, como nunca, a filosofia e as cápsulas milagrosas dos clássicos literários e dos cursos rápidos, L. colocou-se numa tristeza bovina. Ah, esse mundo de tanto inconformismo. Espirituosa, reergueu-se, com os seus olhinhos amendo-ados a sugerir uma traquinagem.

Disse-me, então, que anunciaria, em tradi-cionais classificados de gazeta paulistana, a seguinte proposta de escambo: “Troca-se uma arroba e meia de conteúdo por um corpinho de gazela sem cérebro”.

L. sempre tratou com zombaria e escárnio as obrigações da magreza e os padrões em voga. Agora, porém, nos primeiros calores da estação, resolveu tomar medidas austeras às quais autoriza este amante das boterinhas, mesmo a contragosto, dar-lhes publici-dade – vê se posso com inusitado e tresloucado gesto!

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Esse luxo, porém, até de fazer uma certa graça, embo-

ra bata o pezinho gordo reafirmando a seriedade da proposta, é para quem

pode. Não tente, amiga, imitá-la. Melhor apostar mesmo no seu pendor artístico e consistente. Seja você cação ou lambari, vale a pena insistir.

Lembre-se que, pelo menos em reencarna-ções passadas, você pode ter sido de san-gue nobre. Ninguém foi miserável e vira-lata vagabundo nas vidas anteriores. Só não caia nessa lorota de que as coisas mudaram, tão-somente porque temos um Silva na cume-eira do poder da República.

Nas artes é diferente e o caso acima é uma exceção da história, que tem uma queda pelo irônico. Entre agora mesmo naqueles sites que pesquisam árvores genealógicas e descubra o caminho das pedras, uma boa ligação sanguínea com a elite cultural mo-derna. O que conta é a sua defesa, a sua nar-rativa, afinal de contas todos fomos filhos do mesmo casal de macacos um dia.

Se Darwin é por nós, quem será contra nós nessas hereditárias e bravíssimas capitanias?

Xico Sá, escritor e jornalista, é sobrinho terceiro do tataraneto do tio do bisavô de Mem de Sá, entre outros mandatários da mesma alcunha.

Allan Sieber é cartunista, trabalha com dese-nho animado e adora atirar em pombos.

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Nós que nosamávamos tantoA rede de intrigas, amores e desamores das famílias da ficção

Por Marco Aurélio Fiochi

A avó desalmada escraviza a neta; a demarcação de fronteiras territoriais se dá com muito sangue, manchando a saga de dois clãs por mais de 200 anos; a mãe dominadora é a principal causa do alcoolismo da filha e da falta de iniciativa do filho; e para satisfazer o desejo de uma menininha tímida que quer participar de um concurso infantil pai, mãe, tio, avô e irmão improvisam uma viagem rumo à Califórnia. Esses são alguns argumentos que mostram como os laços familiares não só estão presentes mas são a essência de muitas obras de ficção. Nos casos acima citados estamos falando primeiro de um clássico da literatura latino-americana (o conto A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez, Record, 1972); depois de outro clássico, agora brasileiro (a trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, publicada entre 1949 e 1961 e reimpressa inúmeras vezes); de uma telenovela que marcou época nos anos 1980 (Vale Tudo, de Gilberto Braga, pela TV Globo); e de um recente sucesso do cinema americano (Pequena Miss Sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris, 2006).

Mas os exemplos não podem e nem devem parar por aí, já que o drama, o suspense, o terror, a comédia e tantos outros gêneros de uma boa ficção certamente ganham muito mais força quando tratados sobre a moldura de um lar. Que o digam os filhos, noras, genros e netos que, em um inocente encontro natalino, expõem suas sutis diferenças, mesquinhez e individualismo, tramando o tragicômico extermínio dos patriarcas, no longa italiano Parente... É Serpente (Mario Monicelli, 1992). E esse estado de coisas se complica quando há dinheiro na mão. Aí é vendaval, cada um trata de si, irmão desconhece irmão, ensina Paulinho da Viola no samba Pecado Capital, e reforça Woody Allen em sua última obra lançada, O Sonho de Cassandra (2008).

resenha

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Destilando o fel

Posto que ninguém vive só, que atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, que manda quem pode e obedece quem tem juízo, que os fins justificam os meios e que sempre impera a lei do mais forte, está instalado o conflito nas telas, nos palcos, nos livros, e em todo e qualquer su-porte à ficção: Júlio César é morto por seu suposto filho Brutus, numa conspiração real levada à tela no clássico Cleópatra (Joseph L. Mankiewicz, 1963); o ódio entre duas ir-mãs, em O que Terá Acontecido a Baby Jane? (Robert Aldrich, 1962), não seria menos in-tenso se as protagonistas Bette Davis e Joan Crawford se tolerassem na vida real. A de-savença entre irmãos, aliás, é um dos prin-cipais conflitos em novelas, a exemplo das rusgas vividas pelas gêmeas Ruth e Raquel (interpretadas em 1973 por Eva Wilma e em 1993 por Glória Pires) na novela Mulheres de Areia, de Ivani Ribeiro. Depois de inú-meras crueldades de Raquel, a bondo-sa Ruth assume a personalidade da malvada para recuperar o amor roubado pela irmã.

Um parágrafo à parte deve ser aberto para Bette Davis, já que sua longa filmografia apresenta um arsenal de personagens com traumas e recalques que dariam trabalho para Freud analisar, vide A Madrasta (Larry Cohen, 1989), última encarnação da atriz. Nesse caso, é ocioso estender-se: a madras-ta é personagem paradigmático desde o inocente conto de fadas Branca de Neve e os Sete Anões (Irmãos Grimm, levado às telas em 1937 pelos Estúdios Disney).

O teatro é definitivamente o território do acerto de contas entre membros de uma mesma dinastia. Mary Stuart (Friedrich Schil-ler, 1800) mostra a disputa pelo trono da In-glaterra, protagonizada pela escocesa Mary e por sua prima, Elisabeth I. Prisioneira a mando da rainha, Mary cai em desgraça ao confiar que sua situação seria resolvida com a intervenção do sobrinho Mortimer. Doce ilusão, pois Mortimer, aliado de Elisabeth, sela o destino da prisioneira, a decapitação.

As tragédias de Shakespeare são tramas familiares por excelência: Romeu e Julieta (adaptada pelo bardo inglês de um poema narrativo de 1562) escancara as rivalidades entre os Capuleto e os Montecchio, e Ham-let (1600?) mostra o sofrimento do príncipe da Dinamarca ao descobrir a trama sórdida de seu tio para obter o trono.

Frame do filme Parente... É Serpente (1992)

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Papai, mamãe, filhinho...

Sagas familiares que atravessam gerações rendem bons livros, como Cem Anos de Solidão (García Márquez, 1967, várias edi-ções brasileiras). Sempre presente na lista dos melhores romances de todos os tem-pos, a história dos Buendía é tão repleta de acontecimentos e tão ramificada que gerou um exercício no mínimo lúdico: muitos se aventuram a montar a árvore genealógica do clã, tarefa difícil devido à infinidade de Aurelianos e Arcádios que vão surgindo nas diversas fases da narrativa. A convivência entre personagens vivos e mortos, já que essa é uma das principais obras do realismo fantástico latino-americano, aumenta a sen-sação de profusão de personagens.

Na pintura, cenas familiares podem conter duplo significado: por trás de certa pompa, inerente a essas representações, questio-namentos sociais e políticos se ocultam. As famílias pintadas pelo colombiano Fernando Botero trazem pessoas roliças, que, apesar da solenidade com que são representadas, os-tentam um aspecto triste. Engana-se quem acha que a melancolia é fruto da compleição física das figuras. Ela é o reflexo de uma so-ciedade estática, sem força mobilizadora, e aí está a crítica do pintor em seus trabalhos.

Expediente diverso fizeram os pintores reais, como o espanhol Diego Velázquez, artista ofi-cial da corte no século XVII. Sua obra-prima, A Família de Filipe IV, também conhecida como As Meninas, data de 1656 e retrata, com toda pompa e glória, a infanta Margarida, filha do monarca, cercada de damas de companhia e criados. Obviamente, nenhuma crítica social ou política cabia à representação.

Desenhos animados mostram que a família é sempre igual, só muda de cenário... ou de épo-ca. Nesse terreno, Os Flintstones e Os Jetsons, séries de enorme sucesso desenvolvidas pelo estúdio americano Hanna Barbera nos anos 1960, têm a mesma estrutura, só que uma se passa na idade da pedra, e a outra num futuro impreciso, provavelmente os anos 2000, pois a crença de que a tecnologia revolucionaria a vida humana era comumente associada, na ficção, com a virada do século (vide 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrik, 1968). Ambas apresentam um pai boa-praça, meio atrapalhado e patético, uma mãe muito mais inteligente que o marido, mas conformada à vida do lar, e filhos igualmente enquadrados. A diferença é que Os Jetsons contam com o auxílio luxuoso de Rosie, a robô faz-tudo, espe-cializada em resolver as encrencas familiares. A crítica leve ao american way of life, que perme-ava os dois desenhos, ganha um tom desca-radamente satírico e mordaz em Os Simpsons, série criada por Matt Groening em 1989, em que Homer Simpson, o pai, funcionário de uma central nuclear, é muito mais patético do que Fred Flintstone e George Jetson.

Os Flintstones: estrutura recorrente em famílias de desenhos animados | imagem: Warner Home Vídeo

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Poderosos chefões

O papel reservado aos pais nas ficções nem sempre se iguala ao das mães. Bondosas ou execráveis, essas são sempre personagens fortes, e são inúmeras as obras que as enal-tecem ou as exorcizam – Mãe Coragem e Seus Filhos (Bertolt Brecht, 1939), A Casa de Bernarda Alba (Federico Garcia Lorca, 1936), entre as peças de teatro, ou a mãe judia do personagem de Woody Allen, no episódio dirigido pelo próprio no filme Contos de Nova York (1989). Em outro clássico, Psicose (Alfred Hitchcock, 1960), o comportamento do protagonista, Norman Bates (Anthony Perkins), tímido e estranho, é decorrente da forte dominação da mãe em sua vida, que o reprime e o obriga a encobrir um grande segredo do passado.

Agora ao pai são comumente reservados papéis que manifestam fraquezas ou dubie-dades comportamentais. Mesmo quando esse pai é um forte, no fundo sua atuação exterioriza certa fragilidade, como no caso do patriarca Aureliano Buendía, de Cem Anos

de Solidão, “que promoveu 32 revoluções armadas e perdeu todas”. Bem diferente de Don Vito Corleone, o patriarca inter-pretado por Marlon Brando em O Pode-roso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972), com seu jeito muito particular de solucio-nar contendas e manter sob seu controle a máfia nova-iorquina.

Essas são apenas algumas histórias, entre milhões de outras que poderiam ser citadas. Talvez elas tenham entrado nesta resenha da mesma forma que entraram no incons-ciente coletivo do público, devido a seus personagens de características exacerbadas (quando são maus, costumam ser péssimos; quando raramente são bons, sua bondade pode ser o apanágio de uma personalidade manipuladora). A exacerbação, espécie de lente de aumento, e ainda por cima num contexto familiar, onde geralmente im-pera o salve-se quem puder, contribui para fazer, desses exemplos, clássi-cos inesquecíveis da ficção.

A família Corleone: um jeito peculiar de resolver problemas | imagem: Paramount Home Entertainment

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A sua foto de famíliaCada um tem sua idéia de família. Para alguns, ela remete a comemorações, fartura ou felicidade. Para outros, a solidão, despesas ou nostalgia. Mas, seja qual for sua concepção de ambiente familiar, ela pode ser fotografada.

Mostre a Continuum Itaú Cultural que uma foto de família nem sempre se limita a apresentar uma porção de parentes, que se abraçam e sorriem diante do fotógrafo. Tire sua foto de família (seja lá o que isso represente para você) e participe da ação Outros Retratos. Os melhores trabalhos serão publicados na versão on-line da revista, em www.itaucultural.org.br/continuum, e a foto mais criativa estará na edição de outubro da Continuum impressa. O primeiro colocado ganhará, ainda, um exemplar do livro Itaú Contemporâneo – Arte no Brasil, 1981-2006, com imagens das mais de 3.500 obras do acervo do Grupo Itaú e textos de Teixeira Coelho, curador-coordenador do Masp e professor titular da ECA/USP.

O convite é voltado a todos – fotógrafos ou não. As fotos podem ser enviadas até o dia 21 de setembro (somente por e-mail: [email protected]). Mas, se você tiver alguma dúvida antes de enviar seu trabalho, entre em contato utilizando o endereço [email protected].

Os seguintes pontos devem ser observados:

• A imagem enviada precisa ser criação própria. O participante é responsável por danos ocorridos a terceiros e assume toda e qualquer responsabilidade civil e penal. Caso isso ocorra, responderá isoladamente, ficando o Itaú Cultural isento de qualquer obrigação.• A foto tem de ser inédita, ou seja, não poderá ter sido publicada anteriormente em outro veículo.• O trabalho deve ser enviado em alta resolução (300 dpi) e nos formatos jpeg ou tiff. O maior lado da fotografia deve medir, no mínimo, 15 cm.•O participante deve concordar com a difusão de seu trabalho nas versões impressa e on-line da revista Continuum Itaú Cultural.• Não haverá qualquer tipo de retribuição financeira, apenas menção da autoria da imagem.•Cada participante deve enviar apenas uma foto.• O participante deve indicar, no e-mail, os seguintes dados: nome civil, nome artístico (quando houver), título da obra, e-mail e telefone.

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O meu pai era paulista, meu avô pernambucano...

Se a MPB não pode ser vista como uma grande e bastante heterogênea família, ela é, ao menos, constituída de várias famílias. Em setembro, a revista on-line traz, semanalmente, programas musicais dedicados a quatro delas.

A seleção que dá início à série entra no ar no dia 1º e apresenta uma viagem pelo itinerário musical da família Buarque de Hollanda, com canções interpretadas por Chico, Cristina, Miúcha, Ana e outros nomes que fazem parte, direta ou indiretamente, desse clã. O segundo programa (dia 8) concentra-se na produção de artistas ligados – por laços sanguíneos ou de afinidade – ao músico paulista Itamar Assumpção – ou “Benedito João dos Santos Silva, Beleléu, vulgo Nego Dito, Nego Dito, cascavel”, como se apresenta na música Nego Dito. Nas duas últimas semanas do mês, são lançados os especiais dedicados aos Caymmi (dia 15) e aos Veloso (dia 22).

Os programas podem ser acessados em www.itaucultural.org.br/continuum. No mesmo endereço, veja atualizações exclusivas do conteúdo virtual.

www.itaucultural.org.br/continuum

A família representada em objetos do cotidiano | imagem: André Seiti

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área livre15 de março de 2008.

Célio,

Acordei às 7 da manhã com um telefone-ma da Lu lembrando que hoje faz 30 anos da sua morte. Comovida, chorou, mistu-rando, talvez, à sincera saudade de alguém que amou a tristeza pelas privações que a vida lhe vem impondo ao longo desse tempo, que, acredite, não são poucas nem fáceis. Desliguei o aparelho, sentei-me no sofá da sala e, uma década após ter largado o cigarro, novamente senti uma vontade imensa de fumar, à qual resisti, com extre-ma dificuldade.

Lamento termos convivido tão pouco. Eu tinha 10 anos quando você tomou o rumo de Diadema, assim como centenas de ou-tros recém-formados no Senai. Uma legião de adolescentes de espinhas na cara, que nunca havia ultrapassado os morros que cercam Cataguases, enchia os ônibus alu-gados por firmas de São Paulo, abandonan-do desconsoladas mães e namoradas, que, contraditoriamente, ansiando pelo sucesso da iniciativa, suspiravam por uma volta que nunca ocorreria. Retornar era fracassar, e aqueles jovens, que de seu nada possuíam, definitivamente não podiam frustrar seus sonhos. No começo, ainda visitavam os fa-miliares com certa regularidade, mas, pou-co a pouco, os laços com a cidadezinha sem perspectivas iam se esgarçando: muitos le-vavam embora irmãos, pais, amigos, outros envolviam-se em novas relações de amiza-de ou amorosas, diluindo a freqüência com que apareciam em Cataguases nos feria-

dos prolongados ou nas festas de fim de ano. Dividíamo-nos, por essa época,

em “os que já haviam ido embora” e “os que ainda não tinham

idade para isso”...

Eu pertencia ao segundo grupo e orgulho-samente me preparava para seguir seus passos. Ia à escola, jogava pelada, fazia man-dados e, em todas as incursões à Rua, para-va no Bar do Auzílio e especulava se tinha carta sua, que lia com avidez para a mãe, tropeçando nas palavras e gaguejando nos trechos mais embaraçosos. Uma delas pro-vocou uma verdadeira revolução lá em casa – aquela em que, de férias, você anunciava a visita da Nena, sua namorada, da Eliane, irmã dela, e da mãe delas, cujo nome me foge agora, para conhecer nossa família. Aqueles dias de março de 1973 foram talvez os mais agitados da nossa vida. A mãe, atarefada, corria de um lado para outro, dando ordens desencontradas, “Luizinho, vai no Beira-Rio e compra isso”, “Luizinho, vai na Rua e compra aquilo”, estocando mantimentos como azei-tona, petipoá, salame, maionese, maçã, essa fartura toda a que você estava acostumado em São Paulo e que nunca havia entrado na nossa despensa.

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Aflita, se penitenciava, “Será que a mãe da Nena gosta de torta-de-biscoito?”, “E a Nena? Será moça luxenta?”, “Será que a caçula come verdura?”. No fim, as coisas se ajeitaram. Ela e a mãe da Nena passavam o dia na beira do fogão, cada uma querendo exibir mais co-nhecimento de cozinha que a outra, numa dissimulada disputa. O pai, nervoso, ainda convalescente da tuberculose que alguns anos mais iria obrigá-lo a arrancar um pul-mão, mantinha-se afastado, invisível. E a Lu, revoltada, caprichosa, briguenta, “Será que vai aprontar?”, perguntávamo-nos todos, angus-tiados, se comportou muito bem, aproximan-do-se de forma amigável da Nena e maternal da Eliane. Ah, Eliane, minha primeira paixão!... Eu andava abobado, disposto a antecipar-me a todos os seus desejos... Ensantificado, ne-nhuma malcriação nasceu dos meus lábios, atento a corresponder minha imagem à do filho ideal que todos percebiam em você... Quando partiram, passei dias pelos cantos, emburrado. Subia para o campinho do Para-íso, o Rio Pomba lá embaixo, as serras azuis ao longe, ávido para que o tempo escorresse depressa e chegasse minha vez de também me desgarrar, ir para São Paulo, ficar rico, nun-ca mais dar as caras naquela terra que me es-migalhava os sonhos... Abril, no entanto, me acenou outros interesses, rapidamente a vida tornou ao seu curso...

A última vez que nos reu-nimos foi em agosto de 1977. Nós

ainda não sabíamos que nunca mais iríamos tornar a vê-lo, nem mesmo es-

tendido no caixão, para desgosto da mãe, impedidos que fomos de abri-lo, devido ao estado em que ficou o corpo, após aquele estúpido acidente, quase um ano depois, em que você enfiou o seu Fusca debaixo de um caminhão que vinha do Recife. Aquele agosto cristalizou-se numa fotografia, a úni-ca em que aparecemos juntos, um retrato meio desfocado tirado não sei por quem na Praça Rui Barbosa, e que hoje adorna a estante da minha sala. De pé, braços dados com a Celeste, que você havia conhecido recentemente, ambos sorridentes, eu na frente de vocês, atrás uma sibipiruna, meio carrinho de picolé.

Nunca mais soubemos da Nena, da mãe dela, da Eliane... Engraçado que, para mim, ficou a impressão de que elas nunca exis-tiram no tempo, mas apenas naquele mo-mento específico, como se criadas para co-adjuvar uma rara ocasião de felicidade em nossa família, tão afeita a tragédias. Não me lembro de rostos, indumentárias, situações, nada, somente vozes que ecoam suspensas num universo sem relógios nem idades. Na fotografia em que estamos juntos, entretan-to, o tempo está presente: seus olhos miram o retratista e o que vemos é a imagem de al-guém que parecia saber que nunca iria fru-tificar. A Celeste casou, mudou para Vitória, teve dois filhos, envelheceu... Envelheci, en-velhecemos todos... Menos você, que per-manece com 26 anos, ardendo inexoravel-mente em nossas lembranças, mágoas que não dissolvem, chagas que não cicatrizam...

Saudades, do seu irmão,

Luiz

Luiz Ruffato é escritor, autor de Eles Eram Muitos Cavalos (Record, 2007) e De Mim Já Nem se Lembra (Moderna, 2007).

ilustração Pabllo De Lá Cruz

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