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Conto de Aruanda
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Conto de Aruanda Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda
Gregorio Lucio
(2016)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 2 ]
Conto de Aruanda
Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda
Gregorio Lucio
(2016)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 3 ]
Lucio, Gregorio Fernandes
2016: Conto de Aruanda. Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda (livro
eletrônico / Gregorio Fernandes Lucio) –
São Paulo (SP), 2016
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Il.; ePUB / impresso
Umbanda – Religião – Espiritualismo - Romance
Contato pelo email:
Site:
www.umbandadenegoveio.blogspot.com
Capa:
Denise Beraldo
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 4 ]
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 5 ]
Palavras do Autor
A intenção de escrever sobre questões do espírito é
sempre um desafio. De um lado, um campo aberto de
possibilidades e sentidos a serem devassados que é a
própria alma humana; de outro, a necessidade de ir além
dos temas e lugares comuns já tão repisados - até
cansativamente - dentro da literatura espiritualista sobre
a vida além da morte, moradas no plano espiritual, etc.
Mas, ainda assim, possuía essa necessidade. A de
expressar algumas imagens, ideias, cenas, cenários,
diálogos e impressões que com certa frequência emergem
à minha consciência, seja no dia a dia, seja durante as
experiências espirituais realizadas por meio das
vivências mediúnicas às quais me dedico, mostrando-me
um mundo novo e, ao mesmo tempo, encantado.
Espiritual, porque despido de quaisquer complexidades e
necessidade de objetos exteriores. Espiritual, porque
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 6 ]
presente em meio a natureza. Espiritual, porque cheio de
presença humana, emoção e lembrança.
E, acima de tudo, espiritual, porque repleto de símbolos
da psique e da atuação marcante da anima deste autor.
Parte dessa anima é externa, imponderável e autônoma.
Dispõe de elementos e memórias próprias e concilia-os
com aqueles que pertencem ao meu interior, trabalhando-
os inteligentemente na construção literária e, por que
não, material desta dimensão imagética, intuitiva,
dinâmica - e mesmo real - do espírito humano.
Leva consigo um nome. Clara. Uma menina de
aproximados 19 anos de idade. Sorridente. Estatura
baixa, cabelos encaracolados, presos para trás, com
simplicidade. Pele morena. Olhos pretos e arredondados.
Vestido estampado em cores claras.
É assim que se me aparece. Sempre acompanhada por um
simples senhor de meia idade que lhe parece tutelar.
Paletó claro, pele escura, barba rala e já grisalha.
Chapéu panamá. Colar com crucifixo de ouro e anel
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 7 ]
brilhante na mão direita. Óculos arredondado em
armação prateada. Transmite calma em um semblante
profundo. Salvador é seu nome. Teria sido professor e
poeta nas ruas de Maceió/Alagoas, nas primeiras décadas
do século XX.
E é essa singela e encantadora menina, junto de seu
companheiro, quem vem contribuir com essa minha
jornada interior, de lançar-me por dentro de mim mesmo,
na dimensão religiosa e espiritual que se ordenam em
meu campo íntimo, e trazer para o livro parte desse
imaginário e sentimentos que tocam e pertencem ao
universo religioso da Umbanda.
São suas as memórias e emoções. São meus os símbolos e
expressão. É nossa a obra.
Espero que o amigo leitor aprecie.
O autor.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 8 ]
Se olhares no fundo de si mesmo,
Verás as belas imagens que brotam daí
E o que se encontra também na escuridão.
É o que de si mesmo desconhece,
A sua própria imensidão.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 9 ]
Dedicatória
À minha esposa, Denise Beraldo, essa tão agradável e
amorosíssima companheira de todos os momentos, a qual sempre
me apoiou, assim como no projeto do livro Umbanda de Nego
Véio – Compêndio de Estudos, em mais este projeto pessoal.
Gratidão pela sua compreensão e carinho.
Gregorio Lucio
São Paulo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 10 ]
Índice
Para ler “Conto de Aruanda” ............................................. 12
Prólogo ................................................................................ 14
Anoitecer na Aruanda ......................................................... 20
Amor e Devoção .................................................................. 30
Preparação do Caminho ..................................................... 38
Flores Acompanhadas de Espinhos ..................................... 46
Curimba é Canto Sagrado .................................................. 56
A Estrela Que Brilha Mais Forte ........................................ 66
A Cruz, a Prece e o Rosário ................................................ 75
A Imagem de São Jorge Guerreiro ..................................... 87
Santa Bárbara, rogai por nós. ............................................ 102
O Renascer das Flores ........................................................ 109
A Coroa do Divino.............................................................. 115
Quem caminha por cima da folha... ................................... 124
Encante de Mar .................................................................. 139
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 11 ]
Bandeira Branca de Umbanda ........................................... 153
Samborê, Pemba de Angola ............................................... 166
O Cruzeiro do Sul .............................................................. 184
Simiromba .......................................................................... 197
“Quando eu morrer, vou passar lá na Aruanda”.............. 207
Vitória da Luz ................................................................... 226
Sagrado Coração ............................................................... 238
O Mestre Divino ................................................................ 247
Alvorada ............................................................................ 260
Palavras Finais .................................................................. 275
Conto de Aruanda e Imaginário: Lista de Músicas, Filmes e
Exposições ......................................................................... 277
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 12 ]
Para ler “Conto de Aruanda”
Amigo leitor e Amiga leitora, em tempo, gostaria de compartilhar uma
proposta, a fim de que você possa ter a experiência de leitura da obra
“Conto de Aruanda” enriquecida e ampliada em termos de
possibilidades de imersão no universo simbólico e imaginário que o
texto lhe trará.
Sabemos hoje que a linguagem é composta das mais variadas formas
de expressão que não somente a escrita, contemplando aquelas de
caráter verbal, assim como aqueloutras de caráter não-verbal.
Portanto, compõem manifestações da linguagem, além da fala e da
escrita, também as expressões gestuais, musicais, cinéticas,
imagéticas, entre outras.
Todos esses múltiplos níveis de linguagem tomaram parte da minha
experiência criativa ao longo do período de concepção da presente
obra que está prestes a ler. Com isso, gostaria de deixar sugestões de
músicas, filmes e exposições artísticas, cuja relação consta nas páginas
finais do livro.
Dessa forma, o amigo e a amiga poderá entrar em contato com essas
outras linguagens, enquanto dure o período de leitura da obra (ou
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 13 ]
mesmo após esse) e, assim, também terá a possibilidade de
experimentar esse mesmo nível de deslocamento sensorial e mental
para outras maneiras de perceber e identificar o universo inspirador
de Conto de Aruanda.
Espero que aprecie essa vivência, assim como o livro! Não esqueça de
olhar a listagem ao final da obra antes de iniciar a leitura!
Saravá!
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 14 ]
Prólogo
Na Aruanda não há tempo, assim como há no mundo dos
homens. Mas era tempo de algumas décadas atrás. Na Terra, em
torno da década de 1950. E, naquele recanto de Aruanda, chovia
abundantemente. A paisagem verde e montanhosa, preenchida
por árvores, contorna e protege aquela comunidade que se estende
ao longo do vale. Outro mundo. Quase um mundo mágico.
Naquele dia, as claridades que vinham do céu encontravam-se
com as gotas suaves, formando uma aura dourada que iluminava
a atmosfera, como a purificar ainda mais aquele ambiente já tão
carregado de energias sutis e curadoras.
A figura de um ancião, negro retinto, sentado sob a entrada de um
casebre pitando seu cachimbo, olhando serenamente a água que
escorria tranquilamente pelo chão. Parecia meditar.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 15 ]
-Irmão José, temos chuva aqui assim, novamente.... Essa aura
dourada...
-Sim, Caetano.
-Teremos que pensar melhor no que faremos a partir de agora....
É o sinal que aguardávamos, não é?
-Sim...
-Bem...vou avisar aos demais.
-Isso, vá avisá-los...diga-lhes que teremos novos compromissos
de agora em diante.
- Nosso Vilarejo...quem diria, não é? Irmão José?
- É, meu amigo. Há quem mais for dado...
- ... mais será pedido...
A chuva parecia enfraquecer seu ímpeto, enquanto isso a
luminosidade dourada ia se dissipando pelo ar, deixando um
aroma proveniente da mata circundante, tornando-o cada vez
mais perceptível. Era como se a Natureza já soubesse – e de fato
sabia - sobre os planos da Providência Celeste para aquele lugar
e por isso preparava-se.
Agora, anoitecia. E algumas lamparinas iluminavam o conjunto
de casebres que percorriam aquela localidade. À entrada de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 16 ]
alguns deles, pequenos grupos conversavam entre si com
naturalidade. Com o passar de mais um terço de hora, mais
pessoas iam saindo de suas casas e dirigiam-se, agora, para o
centro do Vilarejo.
Silêncio absoluto. O momento soava como de grande importância
para aquela comunidade. O ancião aguardava, serenamente, a
chegada de todos para junto de si, antes de iniciar a conversa.
- Meus irmãos e amigos, peço a atenção de todos para essas
breves palavras. Hoje, recebemos o último sinal, provindo dos
Numes Celestes, com a confirmação de um novo rumo que
deveremos trilhar, diante de nosso compromisso junto a
Divindade e as Leis da Vida.
Estamos sendo convocados à tarefa de abrirmos nossas portas
para recebermos um contingente maior do que estávamos
habituados, os quais passarão ao nosso cuidado, advindos das
mais diversas regiões das zonas sombrias situadas nos campos
inóspitos de purgação. É tempo de renovação, em que muitos
receberão novas oportunidades de tratamento e ensejo de
despertar.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 17 ]
Em adição a esta tarefa que prenuncia modificações e necessidade
de darmos novas diretrizes para os destinos de nossa comunidade,
em cujas atividades passaremos a aplicar esforço e cuidados
redobrados, também estamos sendo requisitados a cumprir uma
tarefa em especial.
Conhecemos, no plano terrestre, um campo de cultura religiosa
que vêm se tornando cada vez mais popular, envolvendo um
corpo crescente de fiéis e que possuirá papel importante na
condução dos caminhos espirituais de muitos irmãos encarnados.
Nossa querida Umbanda vem promovendo uma reforma nos
níveis e estruturas espirituais estabelecidas na dimensão astral
onde a sociedade brasileira alberga-se e cumpre-nos a
responsabilidade de prestarmos auxílio aos irmãos especialmente
ligados a este caminho espiritual.
Abriremos nossas portas para os irmãos que têm feito sua
passagem para o lado de cá, identificados com as crenças e
experiências espirituais situadas neste círculo religioso. Nossos
irmãos umbandistas, não somente aqueles seus trabalhadores,
mas todos aqueles que tenham seu sentimento de fé ligado a esta
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 18 ]
religião em questão, passarão a ter aqui um lugar de amparo e
destinação para onde se dirigir após a sua desencarnação.
Estaremos, para eles, como uma “escola”, um “hospital” e uma
“sociedade”, nos quais prosseguirão sua jornada, a partir do ponto
em que se encontrarem, cada um em sua singularidade, conquanto
sempre respeitadas as Leis que regem a realidade da vida no
mundo espiritual.
Certamente, a Umbanda não lhes renderá, por si mesma, uma
condição de mérito ou de distinção aqui. Tão pouco, não serão
seus títulos, nomes, posses ou símbolos de qualquer natureza que
possam ter tido ou desfrutado enquanto na Terra, que os fará
livres das consequências e dos resgates naturais a que, porventura,
venham a obrigar-se por meio das escolhas e hábitos que tenham
construído em suas vidas.
Conforme já de há muito temos observado nas experiências
humanas em todos os tempos, certamente, raros serão os que irão
aportar aqui coroados de luz e consciência íntegra. Ao contrário,
lidaremos com os muitos que têm deixado a vida terrena chagados
e inconscientes, por ainda não entenderem as lições de grande
valor que a Sagrada Umbanda os têm a oferecer.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 19 ]
Contudo, não esteja o julgamento e a crítica gratuita em nossas
mentes e corações ao nos depararmos com estes novos irmãos.
Sejam nossas palavras para elevar a todos, agradecendo a
oportunidade que a Providência Divina nos concede para
prosseguirmos nas experiências de redenção de nós mesmos,
enquanto aguardamos, também nós, o momento de retomarmos
as experiências na Terra, da qual talvez também saiamos
necessitados de ajuda e socorro.
Oremos essa noite. Amanheçamos renovados em nossas forças,
rogando a Nosso Senhor que estejamos preparados para os novos
labores que nos aguardam.
Fiquemos todos com a Paz de Deus.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 20 ]
Anoitecer na Aruanda
“Vira-te um dia para o Céu e clama
Para que a Glória que o Azul expressa
Possa também estar em ti,
Para limpar-te do mal pensar,
E, com isso, poderes, tu também,
Espelhar a Luz que repleta
Todo esse Vilarejo”.
Não foi fácil, para mim, ter conhecido tão bela paragem.
Após muitos anos de espera, via-me ali, sem nem mesmo dar
conta do quão esplendoroso era poder tomar lugar, mesmo
que brevemente, em um vilarejo tão calmo, onde a sensação
de paz e completude refaziam em meu coração as esperanças
de recomeço a que ainda irei de lançar-me.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 21 ]
Montanhas imponentes, verdejantes e pródigas em vegetação
de variadas espécies, embelezam sobremaneira este lugar, o
qual estas circundam, dando não só testemunho das
maravilhas que Deus Pai pode conceber, quanto formam as
delimitações territoriais deste local de convivência fraterna e
refazimento. Isso porque “lá fora”, além destes limites,
sabemos que há um mundo inóspito e desconhecido,
perdendo-se ao derredor e cujo trânsito só se realiza por
poucos irmãos daqui tamanha é a dificuldade de tal intento.
Lembro que estamos ainda bem próximos da “dimensão-
Terra”, e as construções naturais que configuram o espaço
daqui, são proporcionais, e ainda mais extensas, do que as
conhecidas no plano físico. Isso porque, conforme já
sabemos, “neste lado” estão as bases de tudo o que se cria e
se manifesta no mundo corpóreo, físico. Por isso, as excursões
por estes ambientes exigem perícia e conhecimento (e
permissão, é claro), além de uma certa dose de coragem, para
nos permitirmos andar “por aí”.
Em realidade, a grande maioria de nós que ali nos
encontrávamos na condição de “alunos e pacientes” não
sabíamos ao certo como ocorrera nosso “transporte” para lá.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 22 ]
Sendo mais sincera, pouco nos lembramos também do
instante anterior ao “sono” ao qual nos entregamos quando
ainda nos encontrávamos entre os encarnados. Sabemos, tão
somente que, alguns mais outros menos, demoramos relativo
tempo até darmos conta de onde nos encontrávamos e qual
era a nossa real situação.
Mas, não pretendo adentrar, pelo menos por agora, em
detalhes quanto a minha última experiência no corpo físico,
tão pouco tecer detalhes em relação a personalidade que
carreguei na anterior romagem terrena. Deste lado, junto ao
sr. Salvador, nossa intenção será a de trabalhar o imaginário,
a afetividade, as memórias, a simbologia e a poesia que existe
nessa Aruanda Maior. Tudo isso permeado, é claro, pelas
nossas experiências “do lado de cá” ...
Mas então, eu olho, maravilhada, esse vilarejo.
E ouço, enquanto olho este céu que se vai recamando de
estrelas, as cantilenas entoadas pelo povoado humilde que se
reúne em volta de pequena fogueira, acesa ao centro do
vilarejo, trazendo em seus braços os frutos de um dia de labor.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 23 ]
Flores e frutos dos mais diversos tipos. Pães, farelos, caldos,
sucos, e temperos com sabores e aromas desconhecidos por
mim. Artesanatos, instrumentos para diversos fins, cestos,
tigelas, vasos, picuás, vestimentas, mantas. Remédios. Há
uma rocha de formato peculiar, localizada próximo a humilde
fogueira. Tudo isso é depositado em seu redor, lado a lado, de
maneira harmoniosa, em grandes cestos, vasilhames e
alguidares, que parecem ter sido confeccionados com folhas
espessas, alguns, outros em argila, e ainda outros em algum
tipo de pedra nobre com um brilho intenso.
Todo trabalho e seu resultado é compartilhado e integrado,
com respeito e carinho, ao grupo social.
Ouço mais sons, percutindo de direções variadas. Vozes,
graves e agudas, compunham uma melodia e somavam-se ao
tamborilar que parecia vir com o vento...vento de brisa mansa
e fresca que nos tocava as mãos e os dedos. Então eu me
lembro: Meu Senhor! Eu estou viva!
O que e como isso acontecera, ainda não sabia bem. Mas sabia
- e sentia - que os rostos e olhares amigos destes seres
respeitáveis e bondosos que via ali diante de mim, embora não
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 24 ]
os reconhecesse como sendo parte de minhas lembranças
afetivas, davam-me ânimo e inspiravam-me confiança e
tranquilidade para prosseguir serena. Então, rendi graças e
entreguei-me a pensar no Senhor da Vida, elevando minhas
preces e agradecimentos.
A quantidade de habitantes do vilarejo ao nosso redor
aumenta, em pouco tempo. Agora, estávamos todos ali, no
centro do povoado, sem algazarra. Sem essas expressões
exageradas e bulhentas que nós na Terra, na vida corpórea,
aprendemos a cultivar como sendo demonstrações
perturbadas de uma suposta alegria. Fomos todos ajuntando-
nos, conversando em tom moderado e jovial, acomodando-
nos em torno de pequenas chamas que passaram a ser acesas
ao longo de todo o caminho que interligava, fazendo-se via
principal, aqueles pequenos e humildes casebres, construções
singelas, embora de requintada beleza, os quais serviam de
morada para aqueles corações amorosos. Percorria, este
contínuo de luz, quase uma linha reta, e terminava à beira de
um riacho, deixando mais ou menos iluminada, mas possível
de se ver, a sua pequena margem.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 25 ]
A confraternização que ali ocorria, era para mim belíssima,
porque destituída de toda e qualquer formalidade banal. Mãos
dadas, abraços afetuosos, conversações felizes, cantigas
populares que faziam menção à Divindade, louvando a Vida
e agradecendo aos ancestrais de toda a Humanidade. Um
“rito” social sutil, espontâneo e simples...
Simplicidade. Essa é a alma da beleza.
Quando o luar alvinitente e radioso já tomava conta do céu
estrelado e as cantigas, os louvores e os risos das crianças nos
conduziam a quase um êxtase indizível, eis que,
discretamente, pequeno ancião, destaca-se de um pequeno
grupo localizado mais distante, próximo às margens
iluminadas do riacho, caminhando calmamente em direção ao
núcleo da confraternização, estampando um sorriso bondoso
e paternal. De aspecto simples e traços característicos do
homem que vive pelo emprego das próprias mãos na terra que
cultiva. Pele escura, semblante marcado pelos anos de intenso
trabalho, possivelmente desde a sua última jornada “na
matéria”. Aproxima-se tranquilamente daquela “rocha
peculiar”, de formato esférico, que se localizava próximo aos
alimentos e demais “ofertas” ali depositadas. Senta-se
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 26 ]
naquela pedra, como se, curiosamente, ela tivesse sido feita
por suas próprias mãos, a fim de servir-lhe de “cadeira”.
Ato contínuo, lança um olhar para os presentes. Mesmo de
longe, podia-se notar a profundidade e a luz que estava nele
contida. Todos reconheceram o momento e puseram-se,
gradativamente, em silêncio respeitoso, dando ensejo a que
aquele pequeno ancião pudesse trazer algumas poucas
palavras, em um discurso que jamais me esquecerei.
Passando a vista, vagarosamente, em seu redor, parecia
penetrar no coração de todos nós ali presentes, auscultando-
nos, identificando sentimentos, expectativas, dificuldades,
incertezas e esperanças.
Por fim, fita também, particularmente, a nós, que por
acréscimo de misericórdia ali nos encontrávamos e, então,
palavras saem de seus lábios, em voz firme que faz ouvir-se
ao longe:
- “Filhos Amados. Irmãos perante a Vida. Mais uma vez nos
encontramos aqui reunidos, como é de nosso costume e
preferência, sob a luz deste Luar que nos faz recordar a
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 27 ]
grandiosidade da existência, à qual estamos vinculados.
Rendamos graças ao Bom Senhor-Deus, por mais este dia.
Rumamos, todos nós, para o encontro com a Felicidade, em
suas expressões mais abrangentes, quantas possam haver, por
ação da Lei que nos direciona ao encontro e identificação com
Deus. Se há alguma fatalidade real em nosso existir, se há
alguma razão, embora ainda não totalmente conhecida por
nós, para o nosso viver, em última análise, veremos que é a
de descobrirmos e encontrarmos o nosso “Caminho de Volta
a Deus”.
Tudo é oportunidade de renovação. Tudo se converte em
meios para aprendizados. Mesmo a dor e o sofrimento
tornam-se professores habilidosos, diante dos mecanismos
das Leis da Vida, com a finalidade de nos educar para o Bem-
Viver.
Alegrias, felicidades, satisfações, dores, sofrimentos,
angústias, ansiedades, tristezas, medos, amores. Tudo é
experiência para nos tornarmos conscientes a respeito de
quem somos, como somos e o que poderemos “vir-a-ser”.
.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 28 ]
Buscamos aqui, neste vilarejo, praticar as lições do Bem-
Viver. A disciplina interior, a qual obedecemos todos os dias,
é constituída de diretrizes que nos permitem viver aqui e
sustentarmos essas paisagens de riqueza e ternura que emana
deste ambiente.
Todos os que aqui aportam, por ordem e permissão dos
Numes Celestes que vigiam e guardam esse nosso Lar
Bendito, devem também inteirar-se dessa Educação a
benefício, principalmente, de si mesmos. Os princípios são
simples e, aos poucos, pelo incentivo e pelas ocasiões que a
convivência irá propiciar, poderão ser integrados e
assimilados pelo entendimento e pelo coração de cada um de
nós que nos encontramos seja na condição de aprendiz ou de
professor, uma vez que necessitados de reabilitação e de
crescimento, todos estamos. Inicialmente, somente lembrarei
destes quatro pequenos versos:
Ao despertar, agradecer.
Ao trabalhar, agradecer.
Ao repousar, agradecer.
Ao orar, agradecer.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 29 ]
Como podem ver, a Gratidão aqui é a base que nos sustenta
em nossos objetivos de aprendizado e de cura. O sentimento
e a prática da gratidão são os princípios que emanam de
nossos pensamentos e alimentam todo esse local. Meditemos
todos e mantenhamos em nossas recordações os nossos
propósitos de amadurecimento e libertação de nossos males
interiores.
Daqui a pouco, iremos repousar para nos prepararmos para o
dia de amanhã, então levemos a gratidão pelo dia que se
encerra, conservando a alegria serena desse nosso encontro.
Estejamos todos em paz”.
E, rogando em prece, fez com que sentíssemos o abraço de
um Anjo a nos envolver a todos, tocando-nos, por breves
instantes, e clareando os mais profundos anseios dos nossos
corações, levando-nos, alguns, às lágrimas, pelo desejo de
estar em Paz.
E a noite se ia, com aquele brilho fascinante e indescritível do
Luar e dos Céus Estrelados, acompanhados pelas sonoridades
naturais do cândido e singelo Vilarejo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 30 ]
Amor e Devoção
“Caem das lindas madeixas escuras,
Que te embelezam a fronte,
Brilhos de Estrelas Pequeninas.
Ainda eras menina,
Quando entrastes neste mundo de quimeras
E conhecestes estes encantos”.
Rio de flores ornamenta determinadas épocas do ano aqui.
Sim, é um rio de flores. Árvores floridas que compõem os
sopés de montanhas próximas ao nosso Vilarejo derramam,
sazonalmente, flores perfumadas e de coloração sutil sobre as
águas límpidas desse riacho que alimenta e enriquece de paz
esse recanto.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 31 ]
Geralmente, é no entardecer que as flores começam a aparecer
nas águas, porquanto o vento leve se encarrega de ir
derrubando-as, cada vez mais, até que ao passar de hora
inteira estas aparecem completando o riacho de uma margem
à outra.
Espetáculo lindo. Belíssimo.
Quando, nestas tardes de clima ameno, avisto essas flores
banhadas pela água límpida que espelha o pensamento e o
coração desse povo que aqui vive, lembro-me do rosto de
minha mãezinha. Queria tanto que ela estivesse aqui. Eu seria
ainda mais feliz. Mas, já me fizeram compreender que nosso
encontro ainda não irá ser possível. Uma das lições que
aprendo aqui é sobre o tempo. O tempo como remédio, como
terapia e método de educação.
Saber aguardar serenamente para realizar alguma tarefa, para
pedir uma ajuda, para ajudar, para começar algo, para
terminar, para conversar, para encontrar alguém, para orar,
para obter respostas...aqui o tempo deve ser aprendido e
compreendido como elemento que determina os nossos dias,
naquilo que nos é dado saber ou fazer. Tenho, com isso,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 32 ]
conquistado o benefício de aprender a comandar meus
impulsos e ansiedades, estruturando pensamentos de maneira
clara. Algo que, em geral, nossa cabeça inquieta não nos
permite fazer com tanta facilidade...
As flores passavam e lembravam, cada uma delas, as orações
a Nossa Senhora que eu havia aprendido na infância e
carregava comigo, em meus hábitos cotidianos, nas vezes que
precisava fechar-me comigo mesma, refletindo e procurando
encontrar respostas. Percebi-me balbuciando Ave-Marias,
enquanto fitava o cortejo florido que descia pelas águas.
Sentada à margem do riacho, via que moradores do povoado
colhiam as flores, retirando-as aos punhados, depositando-as
em vasilhames. Soube que estas flores, retiradas das águas,
eram utilizadas para lavar as cabeças dos que chegavam,
como nós, para pousar por aqui, assim como para limpar os
corpos daqueles que vinham enfermos, tratando ferimentos,
cicatrizando feridas, além de vitalizá-los, recobrando as
energias e propiciando o seu “despertar” deste lado.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 33 ]
A própria Natureza fornece o remédio paras os enfermos. E
todos nós que estamos aqui somos agraciados por esse Lar
Bendito, por essa Morada Sagrada.
Em celebração a essa vida de bênçãos que aqui desfrutamos,
festejamos e adoramos as forças da Divindade, pelas graças
que recebemos e pela lucidez com que podemos nos perceber,
por influência desse ambiente de refazimento e reflexão.
Participo, também eu, destes festejos.
Reunimo-nos em um grupo de mais de quarenta pessoas.
Compunha essa pequena caravana, além dos moradores do
vilarejo, outros na mesma condição que a minha. Éramos
liderados por um grupo de cinco anciões. Todos trajados com
roupas simples, de tonalidades variadas, simbolizando
principalmente nos semblantes e no modo de se comportar
qual era a importância e a sacralidade daquele momento. Um
dos anciões parecia carregar um pequeno rosário feito com
sementes. Na ponta desse rosário, uma pedra brilhante de cor
azulada. Rapidamente, pude perceber que seria ele quem iria
nos conduzir nessa experiência.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 34 ]
Ao atravessarmos a margem do riacho, seguimos pequena
trilha que nos levaria a uma adorável paisagem. É entardecer
ainda. Aqui, assim como o amanhecer, ele demora tempo
superior ao da Terra. Preparávamo-nos para esse ato de
comunhão e agradecimento.
As flores, parte daquelas mesmas colhidas das águas, frutos e
outros objetos reluzentes que não tenho como descrever, são
levados, por alguns dos anciões, próximo de pequenas quedas
d’água, presentes na clareira onde nos encontrávamos. Podia
contar dezenas delas. Olhava para o Céu e via que uma
claridade intensa reluzia por todo o ambiente, enquanto
pequeninas libélulas e borboletas de cores azuláceas,
amarelas e avermelhadas dançavam no ar. Ao longe, cantos
de pássaros. Pequenos insetos de brilho distinto, rodeavam o
nosso grupo. Pareciam vagalumes, no entanto, muito menores
e com brilhos de coloração variada.
Formamos uma roda. As ofertas foram entregues ao lado das
quedas d’água, na parte em que estas escorriam pelas pedras.
O líder dos anciões passou então a comandar aquele rito,
pedindo que fechássemos os olhos, por breves instantes, e nos
lembrássemos daqueles que tínhamos mais saudades. Logo, o
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 35 ]
rosto de minha mãe surgiu em minha memória e algumas
lágrimas discretas rolaram de meus olhos.
O ancião mantinha-nos ligados a lembrança de alguém que
nos era caro ao coração e nos conduzia a pensar no resgate a
que deveríamos nos entregar pelo amor à Vida, em retribuição
e agradecimento por termos podido desfrutar de uma vida, ou
parte dela, ao lado de seres que tanto amamos.
Essa reflexão mexia fundo em mim e em muitos dos que ali
se encontram. E o amigo orientador, repleto de sabedoria, nos
esclarecia de que era esse o Amor de renúncia e gratidão que
movimenta as ações dos Mestres da Luz, seres ascensionados
e dos Numes Celestes que sustentavam toda a criação
universal.
Aprender a amar, agradecendo a oportunidade de poder amar.
Isso e nada mais. Amar, sem querer para si. Sem apegar-se.
Sem projetar no outro o desejo que é nosso.
Suas palavras moviam sentimentos íntimos em nós. Seguindo
o culto, fomos solicitados a realizar uma pequena dança, de
mãos dadas, em círculo, enquanto uma prece cantada era
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 36 ]
pronunciada e dirigida a Divindade e também, fazendo
memória aos nossos ancestrais.
Passei a lembrar-me de minha infância. Dos cabelos
ondulados e compridos que me caiam nos olhos. Minha mãe
sempre os afastava, carinhosamente, com os dedos,
prendendo-os de lado. Lembrei-me do rosto de meu pai, o
qual havia “perdido” ainda na juventude. Via o seu rosto
adornado pelos óculos de lentes grossas e escuras, seu terno
cinza-escuro... suas mãos estendidas como a me chamar. Via
os rostos dos meus avós. Via outras pessoas mais velhas,
outras mais novas. Destas, não me recordava, mas sentia
fortemente como se tivessem feito parte direta na minha
existência... tudo era muito intenso.
A uma ordem do sábio ancião, abrimos os olhos, e pudemos
ver um facho de luz radiosa, como um arco-íris que
contemplava um espectro de cores maior do que aquele que
havia conhecido na Terra. Belo fenômeno ocorria. Formaram-
se sobre as ofertas, uma claridade dourada que parecia se
intensificar e após poucos instantes, subia, como um raio de
sol, para os Céus, somando-se ao esplêndido arco-íris.
Sentíamos como se a própria Divindade estivesse ali,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 37 ]
recebendo as nossas rogativas, congratulando-Se conosco.
Abençoando-nos com um toque de Paz.
Fizemos, em seguida, uma prece de agradecimento e
retornamos. Ao sair da “clareira encantada” pude ver que,
enfim, anoitecia. Já conseguia ver, na outra margem do
riacho, as chamas se acenderem, iluminando, aos poucos, o
vilarejo.
Levávamos de volta os frutos, as flores e os demais objetos
ofertados. Eles seriam utilizados para outros fins que no
momento eu desconhecia.
Mais uma vez meu coração estava cheio de esperança. Senti-
me aliviada.
Saudades de minha mãezinha. Espero que um dia eu a
reencontre.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 38 ]
Preparação do Caminho
“O Caminho é Preparado
Com o que oferte de si próprio.
Surge de inopino, amedronta,
Mas um dia precisamos adormecer
Para acordar na Terra,
E reiniciarmos o ciclo”.
Mamãe me levava sempre a um pequeno terreiro localizado na
cidade onde vivi. Não sei ao certo dizer quais suas “correntes” e
“firmezas”, qual a “linha”, “tradição”, qual “Umbanda” era ali
cultuada ou seguida. Confesso que sempre fui leiga a respeito.
Mas minha mãezinha gostava muito de lá e levava-me com
grande frequência, de modo que se conservaram as minhas
lembranças daquele simpático local.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 39 ]
Era um “terreirinho”, como eu vinha dizendo. A construção, em
formato circular, situava-se bem no centro de um terreno amplo,
o qual era rodeado por canteiros. No fundo, o portãozinho que
dava acesso à casa da “Babá”.
Chegávamos sempre lá por volta das 17h. “As giras” ocorriam
aos sábados. Mas também havia “trabalho” as quartas-feiras. Isso
sem contar em outros dias que a “Babá”, sozinha, ou com a ajuda
de alguns filhos, atendia uma ou outra pessoa necessitada que
sempre aparecia. Entretanto, nesses eu nunca vim. Minha mãe
dizia que era “fechado” para algumas pessoas da casa, além de
morarmos relativamente longe.
Posso me recordar, como se estivesse lá, do portãozinho de
entrada, baixinho, com os “ferros” encurvados formando círculos
que me lembravam uma flor. Adorava balançar-me naquele
portão... até quando mamãe via e me dava uma bronca.
Dentro do quintal, nos canteiros, havia roseiras com rosas
vermelhas, amarelas e cor-de-rosa. Um pé de arruda muito grande
beirava o muro dos fundos, ao lado do portão da casa da “Babá”.
Também adorava esfregar minhas mãos nas suas folhas, para
deixá-las perfumadas (risos). Havia também uma touceira de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 40 ]
guiné, de boldo, capim-limão. Hortelã e erva cidreira. Alecrim.
Babosa. Espadas de São Jorge. Ervas-de-cheiro, outras. Era um
“cheiro” só aquele lugar.
E tinha um pé de tomate também. O chão era de terra e às vezes
subia uma poeira que formava uma “nuvem vermelha”. Eu corria
por todo aquele espação...para mim, era enorme.
Eu fazia essa “farra” até que parecia chegar a noitinha. O pôr-do-
sol vinha e os “filhos-de-fé” do terreiro chegavam com ele.
Pessoas humildes. Donas de casa, operários, pedreiros, faxineiras,
“peões”. Residiam na região, em sua grande maioria. Também
haviam aqueles que vinham de mais longe. Tinha uma moça que
era professora. E um gerente de banco também. Um médico e um
importante comerciante local também figuravam como “filhos-
de-santo” naquele “cazuá”.
Mamãe me chamava. Portas de ferro pesadas eram abertas. Toda
a gente entrava neste pequeno Templo Sagrado. A assistência
devia reunir uma média de cinquenta pessoas. Não mais do que
isso.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 41 ]
O teto do “terreirinho” era todo enfeitado de fitas coloridas. O
alto das paredes era adornado de bandeirolas, também coloridas.
O “congá” era pequeno, com as imagens dos santos. Jesus e Nossa
Senhora Aparecida ficavam ao centro. São Jorge, São Sebastião,
Iemanjá, São Lázaro, São Francisco de Assis, São Benedito, São
Jerônimo, também compunham aquele pequeno espaço,
complementado com pequenos vasos de flores e velas coloridas.
Uma vela de “sete dias” branca ficava acesa “aos pés” de Jesus.
Poucas cadeiras eram espalhadas no fundo do salão, próximo a
sua “entrada”. Não havia divisórias entre o congá e a assistência.
Tudo muito limpo, cheirando a água com alfazema. Algumas
senhoras vinham toda semana ajudar a “Babá” na limpeza e no
asseio do terreiro... Minha mãe não podia vir. Afinal, tinha que
trabalhar para sustentar quatro filhos sozinha. Por isso,
trabalhava, inclusive, aos fins de semana. Mas, sempre arrumava
um tempinho para nos levar para a “babá” benzer. Para “tomar
passe” com o Caboclo Junco Verde e aconselhar com o “seu”
Itaguaré. Pedir proteção e saúde para a Cabocla Potira. Vovô
Benedito e Mãe Rosa também “rezavam a cabeça” dela e nos
abençoavam.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 42 ]
Numa “gira” bonita, as pessoas batiam palmas. Nem sempre tinha
tambor. Babá puxava o canto e tinha duas moças, irmãs, que
ajudavam a cantar. Irmãs morenas, quase negras. Cantavam
afinado, com simplicidade. Com uma doçura e uma fé que a gente
não se esquecia mais. Tanto que estou falando delas aqui, agora.
Babá saudava os Orixás. Pedia proteção para a Casa e para os
filhos todos. Pedia consolo e conforto para o coração dos
sofredores e aflitos. Beijava os pés de Nossa Senhora. Imagem
ornada de fitinhas azuis e flores brancas colhidas dos canteiros lá
de fora.
Por instantes, parecia que o Céu, o Mundo da Luz, surgia no meio
de nós, aliviando a pobreza em que vivíamos, a miséria de tantos
outros, as doenças e as aflições. Quantos não estavam ali por
encontrarem-se, ricos ou pobres, vivendo situações tão
dolorosas...
.... Quando olho para o riacho e vejo aquelas flores passando,
colho uma delas. Retenho-a em minhas mãos. Cheiro-a. Mesmo
na água, o seu perfume não acaba. Tenho tantas memórias.
Nossos orientadores daqui são figuras paternais, bondosas e
muito sérias. Mas não menos joviais. Dizem-me, sempre, para
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 43 ]
não procurar encontrar todas as respostas de uma só vez. Por que
conhecer a vida leva tempo. E, para entender a total dimensão da
condição em que me encontrava, levaria o seu devido momento.
Lembrava-me daquele “terreirinho”, porque vejo muitas
semelhanças entre o povo do Vilarejo com a comunidade do
cazuá da “Babá”. A simplicidade e a singeleza de ambos os locais.
A lembrança das flores e das ervas.
Das brincadeiras no quintal. Assim como vejo uma criançada
correndo para cima e para baixo por aqui... A minha mãe... a
lembrança do quanto ela ficava feliz e de como seus olhos
brilhavam, feito pérolas, quando era dia de ir no terreiro.
Ela cantava as louvarias e os “pontos” pela manhã inteira. A tarde
inteira. A noite inteira. Parecia que ficava mais forte e mais bonita
nesses dias.
É como aqui. O povoado reúne-se com frequência para cultuar e
louvar a Divindade. Isso ocorre tanto em situações coletivas,
quanto com pequenos grupos, em atividades especiais, conforme
situações que já narrei anteriormente.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 44 ]
Curioso notar é que chegam aqui, às centenas, enfermos de todo
o tipo. Seres que saem das matas, os quais ainda não tivera
oportunidade de conhecer, conversam, numa língua que me é
estranha, com os nossos anciões e, depois de um tempo em que
voltavam para a floresta, regressavam transportando doentes em
padiolas. Eles ficavam recolhidos por um tempo numa gruta,
entrada de cachoeira e lá são guardados e atendidos por alguns
“mestres” que aqui residem.
Nas festas de louvor, os atos de devoção envolvem orações
coletivas, breves explanações dos nossos amparadores e um rito
ofertório. Participei de um destes ritos, em que, na ocasião, eram
utilizados mais de uma dezena de vasos contendo “água das
quedas”, daquela clareira onde nosso ancião nos levou, flores e
uma espécie de lama argilosa que era extraída da nascente do
riacho.
A consagração era feita com pequenas chamas, perfumes e óleos
feitos com a seiva de determinadas plantas, os quais eram
misturados, ao final, com a água, a “lama” e as flores, enquanto
eram entoadas cantigas e pronunciadas preces de unção e
agradecimento.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 45 ]
Corpos espirituais disformes, feridas profundas, condições de
perturbação variadas, eram tratadas com aquele “emplasto”
fabricado nos ritos devocionais. A devoção convertia-se em
medicamento para o tratamento dos enfermos.
São cerimônias breves. São medicamentos puros e eficientes. São
frutos do amor e da devoção vividas por aqueles que creem no
Criador e que tornam produtiva a sua fé, convertendo-a em favor
do próximo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 46 ]
Flores Acompanhadas de Espinhos
“As pedrinhas de Aruanda
Formam castelo no Coração
Daquele que ‘inda vivo
Cultivou amor e devoção.
Pedrinha miúda,
Como hoje lhe vejo,
Ouça o som da pedra pequena
Que atirada ao chão se pôs a rolar,
Pois não sabe, não almeja
Reconhecer que em si um Rochedo,
Construído na fé,
Um dia será”.
Sentia-me mais tranquila em relação a minha própria condição
nesta nova etapa da minha existência, vista agora como não
findada pela passagem da pulsação orgânica.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 47 ]
Interrogava-me, no meu íntimo, qual era a razão para permanecer
atada às recordações da minha infância e de outros episódios
marcantes da última encarnação. Lembrar-me ainda menina era
uma recorrência muito forte e intensa, surgindo de repentino, por
várias vezes, como se algo em mim procurasse repassar aqueles
fatos ocorridos no passado para que eu pudesse revê-los...e, mais
tarde, compreendi que o sentido dessa “projeção” de memória era
o de me fazer “olhar” para elas novamente, dando-lhes novos
significados. Afinal, eu já não estava mais, agora, na condição de
menina. Toda a experiência na encarnação apresentava-se para
mim como um acumulado de recursos e conteúdo para refletir e
repensar os acontecimentos que me marcaram a fundo,
principalmente os dolorosos e com os quais, na época, não pude
ou não soube como lidar.
Via-me de retorno às localidades humílimas e toscas da vila de
periferia em que residi. Os dias de fome, em que não tínhamos o
que comer; o rosto sofrido de minha mãe; a boneca feita de pano
e gravetos que minha irmã mais velha havia feito para mim; a
desencarnação abrupta e violenta de meu irmão; as lágrimas de
minha mãe; os sorrisos de minha mãe; a roseira no quintal; as
crianças com quem brincava na viela, correndo atrás da bola; as
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 48 ]
cantigas da minha mãe; as rezas da “babá”; o portãozinho onde
me pendurava; o nosso terreirinho...
Quando dava por mim, horas até já haviam transcorrido. E
“acordava”, como de um sonho. Estava ali, parada, diante do
riacho no Vilarejo ou me pegava, imóvel, enquanto deveria estar
colhendo frutos e ervas nas áreas de cultivo, junto aos demais
trabalhadores. Eram segundos, breves momentos, os quais, a
princípio, traziam estas recordações. Depois, passaram a vir com
mais “volume”, mais “força”.
Os Anciões haviam me orientado que este “estado de
rememoração” em que me encontrava era natural e fazia parte
ainda do processo mais amplo de despertar de minha consciência
para a condição da vida nesta realidade onde me encontro.
Entretanto, pude saber, nas alas que haviam dentro das grutas, da
existência de irmãos em tratamento que se demoravam em ligação
com suas memórias pretéritas, entregues a um estado muito
próximo ao coma (conforme conhecido no plano físico).
Um dos Mestres destas galerias, onde íamos auxiliar nas tarefas
de limpeza e preparação dos remédios utilizados nos “primeiros-
socorros”, nos informara que ali havia irmãos que padeciam, por
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 49 ]
décadas a fio, naquele estágio de letargia, trazendo perturbações
profundas, uma vez que estavam imersos em um sono profundo,
cujos sonhos eram repletos de recordações dolorosas, os quais
passam a repetir-se incessantemente... Tudo isso devido às altas
cargas de culpa e remorso que estes seres traziam consigo
decorrentes dos desatinos que experimentaram em sua última
encarnação.
Sinto por eles. Mal sabem eles que a Misericórdia da Vida é tão
grande, com a qual Deus nos envolve, que um dia, em ocasião
própria, irão despertar em um local tão belo e acolhedor como
este, onde receberão ensejo de se recuperar e iniciar seus
próximos passos no sentido da reabilitação, preparando-se para
uma nova oportunidade de habitar um corpo físico, refazendo
experiências com o intuito de corrigir e reparar seus atos que,
acreditavam, ficariam escondidos nas noites do passado.
Receberão arranjos de flores, entregues em cestinhas, como
presente e símbolo de recomeço. Serão saudados e, em seguida,
banhados com ervas medicinais para favorecer a sua
revitalização. Serão ungidos, num rito de passagem para o seu
“despertar” nesta nova condição de existência, como espíritos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 50 ]
Poderão ver e sentir o calor e o amor que irradia deste recanto e
deste povoado.
E terão, assim como todos nós, facultada a possibilidade do
trabalho para a renovação interior.
Mas, a beleza das flores também é acompanhada de espinhos...
Embora a paz e o conforto que este Lar Bendito nos proporciona,
o sentimento de culpa e remorso que muitos carregam não se
esvai. A “dor” que o sofrimento causa só pode ser aliviada, no
máximo. A dor, o sofrimento, a culpa e o remorso são os espinhos
que carregamos, todos nós, cada um à sua maneira, entre as flores
que recebemos em dádiva e ensejo para a cura de nossos males
internos.
Entre a beleza e a simplicidade deste lugar radioso e divino,
carregamos as nossas necessidades de reajuste, as quais não se
perdem em nossas memórias. Ainda vivas, não adormecidas, a
conduzir-nos ao sempre oportuno arrependimento e vontade de
nos reconduzirmos ao Bem e a retidão, para nos reconciliarmos
com as Leis Divinas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 51 ]
Nessa condição de existência, nos chamados Planos Espirituais,
podemos sentir tanto a felicidade como o sofrimento de maneira
intensa e quase indizível. Os que se encontram felizes, mostram-
se envoltos em raios luminíferos e multicoloridos, conforme o seu
estágio de consciência espiritual. Já, aqueles que padecem dos
espinhos do sofrimento, feridos gravemente em seu mundo
íntimo, pelo remorso e culpa, apresentam-se com expressões de
muita angústia, com a face deformada, envoltos em sombras,
como se uma “força” tenebrosa os atraísse para um abismo
inóspito e devorador...nossos Anciões já receberam irmãos em
tão grande sofrimento que haviam, lamentavelmente, perdido
inclusive a forma humana.
Obramos, incansavelmente, nas grutas junto aos Mestres para
tentarmos minorar os pesadelos e as dores destes seres adoecidos
e hebetados.
Óleos aromatizados com efeito medicamentoso, compostos de
ervas, seivas e minérios específicos, eram espargidos sobre os
seus corpos, têmporas e alto da cabeça. Flores perfumadas
envolviam seus leitos. Caldos e pomadas também eram
ministrados para os pacientes, com o intuito de nutri-los e
cicatrizar feridas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 52 ]
Havia casos em que intervenções mais incisivas eram necessárias.
Processos “cirúrgicos” também eram realizados com o objetivo
de remover contrapartes energéticas de tumorações
(possivelmente as mesmas que os levaram ao desencarne)
encrustadas em seu corpo espiritual e, até mesmo, para a
desvinculação de seres espirituais em forma degenerada que se
encontravam unidos ao corpo espiritual do paciente, por conta de
processos prolongados de afinidade obsessiva, ocasionados por
viciações diversas, desordens morais e desejos inconfessos de
vingança.
Medicamentos, alimentos e oração. Essa é a parte que compete
aos “primeiros-socorros” dos irmãos sofredores, visitantes
entregues aos nossos cuidados por acréscimo de responsabilidade
e compromissos com a Bondade Eterna de Deus.
Cultivamos a matéria-prima para nosso trabalho nas
proximidades do Vilarejo. Ao atravessarmos o riacho, partimos
com um grupo grande de trabalhadores, liderado por um Mestre
de Cura, ao longo de uma trilha, traçada e de conhecimento dos
Mestres, cujo caminho levava para além das quedas d’água onde
estivéramos anteriormente.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 53 ]
Após uma pequena jornada por este caminho que, apesar de claro
e fácil, parecia se esconder por entre as matas e os rochedos,
deparamos com uma nova clareira, rodeada por árvores
frondosas. O chão era de uma areia fina e alvacenta, lembrando
uma praia. Era anoitecer. O céu, como sempre, repleto de estrelas.
Archotes foram acesos e presos em fendas nas rochas que nos
fronteavam.
Acompanhamos os passos de nosso Líder, Mestre Caetano, o qual
pediu-nos que depositássemos os nossos materiais abaixo dos
archotes para que pudéssemos preparar o ambiente propício para
o trabalho que se iria iniciar.
Dispusemo-nos em volta, formando um círculo, prática muito
comum utilizada pelos instrutores e orientadores daqui.
Passamos, então, a ouvir as palavras do nosso venerando Mestre
Caetano:
- “Amados irmãos, reunimos nossos corações e pensamentos,
diante deste anoitecer de paz, nessas paragens que nos abençoam
a vida, embora sem o merecermos, para mais uma vez evocarmos
a intercessão dos Planos Superiores, onde vivem Aqueles que
habitam próximo da Celeste Presença, servindo-nos de Numes
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 54 ]
Tutelares, para conseguirmos a essência curativa que
emprestamos aos nossos medicamentos.
Nessa noite oraremos à Divindade na esperança de sermos
atendidos em nossa rogativa e com isso auxiliarmos aqueles que
hoje se encontram sob os nossos cuidados, necessitados, como
também somos, do conforto e do alívio que só pode vir das esferas
celestes.
Em nossos pensamentos, congregados, concentraremos nossas
orações a pedir que estas forças divinas recaiam sobre este
ambiente em que estamos. Como uma Luz que jorra do Alto e
clarifica, como a Lua Nova que daqui avistamos, todo esse portal
de natureza.
Vem Senhor da Luz, e abraça-nos com seu coração amoroso.
Atende ao nosso pedido humilde para alimentarmos e
medicarmos, conquanto nossas poucas possibilidades, aqueles
que como nós, precisam de amparo e refazimento!
Coroa-nos o intento, Senhor da Vida, por intercessão dos Numes
Bondosos que lhe espelham a Misericórdia e a Brandura,
distendendo-nos sua Graça, para que esse Amor que nos é
essência para a Cura possa materializar-se aqui, recolhendo-se em
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 55 ]
nós para o cumprimento de nosso labor, em favor da renovação e
do alívio do nosso sofrimento.
Permite-nos, por sua Bondade e Consentimento extrairmos de seu
pensamento luminoso as essências que nos farão cumprir nossa
tarefa!
Vem Senhor da Luz!
E nos abençoa nessa hora com a Paz e a oportunidade do trabalho
caritativo.
Vem, Senhor! ”
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 56 ]
Curimba é Canto Sagrado
“Caem as pétalas,
Suaves e Aureoladas.
Exalam perfume adocicado
Que lembranças traz.
Felizes e plenas,
Iluminando o Caminhar.
É o efeito da oração,
Do pensamento a serenar...
Com a cantiga...”
Com a noite chegada, encimada de estrelas, víamo-nos
rodeados pela luz branda e alvinitente que percebíamos
irradiar-se do venerando Mestre Caetano.
Junto de pétalas perfumadas que se derramavam pelos ares e
nos osculavam a face, víamos caindo dos Céus, fachos
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 57 ]
luminíferos que deixavam ao redor pontículos brilhantes, os
quais cercavam o local onde nos encontrávamos.
Sentia-me surpresa e não imaginava o que estava a suceder.
Percebi que outros companheiros de caravana, novos como
eu, também pareciam atônitos e, ao mesmo tempo,
encantados, com uma cena tão bela. A oração tocada de
humildade e devoção, entoada pelo Mentor, enlevava-nos a
alma e nos conduzia a acompanhá-lo na postura de súplica e
agradecimento, no interesse sincero em recebermos o auxílio
que ali era evocado junto aos Numes Celestes.
Entretanto, eu notava que uma modificação no ambiente se
operava. Podia perceber também que muitos companheiros
demonstravam compreender seguramente o que estava
ocorrendo naquele momento e a que nosso orientador e mestre
estava nos conduzindo.
Certamente, muitos deles também já haviam passado por essa
experiência em outras oportunidades.
Um silêncio profundo e comovedor parecia calar-nos a alma.
Enquanto observávamos a circunspecção de nossos amigos e
de nosso Mestre, a luminosidade ambiente tornava-se mais
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 58 ]
intensa, da mesma forma que o perfume se acentuava. A
princípio, um leve torpor foi tomando conta de mim, embora
me sentisse firme e disposta, mas uma força muito intensa me
induzia a esse estado de “sono”, como num adormecer...
...uma sensação de peso... o tempo parecia ter parado ou se
tornado mais vagaroso... ao longe, passei a ouvir sons que me
tocavam fundo, mas não os pude reconhecer de
pronto...batidas repetidas, batidas que foram tornando-se cada
vez mais nítidas. Eram palmas, batidas de mãos, seguidas de
palavras de evocação e orações.
Após, uma sequência de estalidos secos, retumbando junto às
palmas. Eram tambores...
Uma percepção muito esquisita e peculiar me tomava naquele
instante. Via-me ali, na clareira da mata, junto de Mestre
Caetano e dos demais companheiros de nossa caravana e,
concomitantemente, podia ver, como uma “segunda
realidade” que se passava como que por trás de uma vidraça,
em volta de nós, cenas muito vivas e reais de um local que
logo identifiquei como um terreiro de Umbanda, tal qual o
terreirinho que trazia na minha lembrança de menina.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 59 ]
Os tambores tocavam agora mais alto. Curiosamente, parecia
que estávamos lá no meio de tudo aquilo, mas, ao mesmo
tempo, com os pés tocando a areia e a relva verde, sob o céu
enluarado.
Vozes começaram a cantar, trazendo mensagens de amor, de
súplica e de fé. O ambiente parecia festivo, com flores por
todos os lados. Velas coloridas. As roupas brancas se
agitando. Saias rodadas, rodando. Guias e colares brilhando.
Eu vivia em dois mundos. Estávamos todos ali, presenciando
tudo, por aquela “janela” que se abrira no clarão de luz, pelo
efeito de evocação que a oração de Mestre Caetano provocara.
O ambiente deste terreiro parecia envolto em luminosidade
suave e reflexos multicoloridos pareciam espocar de vários
locais, tais como “flashes”.
Notei que Mestre Caetano passou a movimentar-se com
naturalidade, demonstrando um completo domínio e
compreensão do que ocorria naquele momento. Dirigia-se ao
ponto onde havíamos depositado os materiais que nos
serviriam de repositórios das essências que viéramos colher.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 60 ]
Espantei-me quando observei que por entre as duas pedras
grandes, nas quais estavam fixados os archotes
incandescentes e para onde Mestre Caetano se conduzia,
transportando os nossos vasos, abrira-se uma passagem onde
ao fundo era possível ver a festa que nos cercava.
Direcionando um discreto sinal para alguns companheiros, os
quais prontamente o seguiram, Mestre Caetano foi
adentrando-se por aquela passagem. Embora ele não houvesse
expedido nenhuma ordem direta, continuamos prostrados em
nossos lugares, sustentando o pensamento e as preces a que
nos entregávamos, por compreendermos, interiormente, a
gravidade do que ali estava se desenvolvendo.
Voltando-me novamente para a percepção que passei a ter,
quando concentrada no clima de preces que todos
realizávamos, comecei a ouvir os cânticos, os quais foram
tomando forma cada vez mais clara. Tratavam das matas, das
folhas. Faziam menção aos rios, a Deus, ao Orixá Oxóssi e
pediam aos Seres Espirituais, chamados de Caboclos, para
que viessem “trabalhar”, ajudar, proteger, curar,
alegrar...alguns desses “pontos” traziam uma imagem muito
próxima daquela que eu, naqueles instantes, pudera vivenciar.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 61 ]
O “clarão na mata”, o “clarão no congá”, essa luz que ilumina
a mata, vinda dos anjos, a qual era citada em muitas cantigas
entoadas com visível sentimento de fé por parte das pessoas
presentes, faz referência direta ao que acabara de ver.
Será que eles também estavam vendo, “do lado de lá”, o que
eu e os demais víamos daqui? Se não todos, creio que pelo
menos alguns podiam “ver”.
Eu estava emocionada. Aquelas palavras tão simples e aquele
ritmo cadente e simplório, características daquela “curimba”
que estava vibrando em fé e respeito, fazia-nos aproximar,
abrindo “portas” para que nos entrelaçássemos por aqueles
instantes... Nossos mundos se abraçavam, pela ação simples
da prece e da canção. Refletia, enquanto lágrimas me
escorriam dos olhos. Como era possível tamanha misericórdia
por parte de Deus, para com nossas vidas...
Eu que em momentos pensei que a morte, apesar de não ser o
fim, seria o distanciamento de tudo, estava novamente ali,
colocada diante de um fato que era produzido por uma ação
simples de comunhão, ocasionada pelos viventes de ambos os
“lados da moeda” da vida. Nossas intenções nos tocaram e,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 62 ]
pela prece e pela canção, nossos corações se uniam em torno
de uma mesma motivação: a de agradecer, de louvar a vida e
de pedir socorro para os necessitados e aflitos, que também
nós não deixamos, pelo menos em parte, de sermos.
As cantorias prosseguiam, direcionadas aos caboclos e suas
histórias. Eu podia ver como os corpos dos “filhos-de-santo”
se tornavam iluminados, como se uma luz branda, alva com
raios dourados, os envolvesse pelo alto da cabeça, pelas mãos,
pelos olhos e pelo centro do tórax, na região do coração,
estendendo-se até os pés, em alguns deles.
Seres espirituais, os quais não tenho permissão para
descrever, formavam um círculo em torno dos presentes, por
toda a extensão do ambiente, reforçando aquela luminosidade
que passava a se irradiar não só dos seus corpos, mas também
do congá e de outros pontos do terreiro.
Outras Entidades Espirituais pareciam unir-se a determinados
filhos-de-santo, os chamados “cavalos-de-santo”, formando
um clarão intenso que os envolvia, provocando as
incorporações e os fazendo girar, dançando. Neste momento,
grande luz se expandia do alto de suas cabeças, dos pés e do
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 63 ]
centro de seu corpo, mãos, peito e costas, variando a sua
expansão de acordo com os movimentos feitos. Os médiuns
em transe, tornavam-se lâmpadas acesas, estrelas brilhantes,
irradiando cores intensas e variadas.
Agora, eu ouvia e via, cantarem para os pretos-velhos.
Depois, para o Povo do Mar. A profusão de cores e luzes que
acompanhavam as falanges de espíritos que seguiam os
chamados e as evocações era fascinante e encantadora. Era
uma verdadeira corrente de luz que circulava em torno de nós.
Pude vislumbrar, à distância, Mestre Caetano e os
companheiros, parados no ponto de passagem entre nosso
local, nosso mundo, e os “do lado de lá”. Tomando uma
postura de prece, a determinada altura dos trabalhos, Mestre
Caetano foi envolvido pelos companheiros que o seguiam, os
quais permaneceram de mãos dadas. Neste momento, uma
Entidade que não pude reconhecer, envolta em claridade
muito intensa, embora pudesse notar seu semblante feminino,
dirigiu-se ao pequeno grupo, abraçando nosso Mestre,
seguida também por outras entidades. Eram os responsáveis
pelo trabalho espiritual feito naquele terreiro. Pareciam
dialogar, por alguns instantes.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 64 ]
Passado algum tempo que não saberia precisar, alguns
trabalhadores espirituais daquela casa, seguem na direção de
Mestre Caetano e do grupo, entregando-lhes vasos repletos de
um líquido que foi despejado, imediatamente, em nossos
recipientes. Após isso, a Veneranda Entidade, entrega ao
nosso orientador uma pedra, ou algo parecido, com um brilho
muito cintilante e de rara beleza, me fazendo lembrar uma
pequena estrela. Mestre Caetano envolve-a em um tecido
claro e a deposita numa pequena urna. Seguidamente, toma as
mãos nobres daquele Ser Iluminado, beija-as e retira-se,
seguido dos companheiros.
O pequeno grupo retorna pela passagem, a qual aos poucos
vai se esvaindo, conforme a luz perde sua intensidade. As
imagens e os sons vão se afastando...o perfume vai se
abrandando, o clarão da lua é mais vivo. A areia e a relva
úmida tocam-me os pés. Os estalidos das chamas, os
murmúrios da natureza retornam... o sonho... pareço
despertar...
Olho em volta, tão emocionados quanto eu, alguns amigos se
abraçam. Alguns choram. Outros rendem graças a Deus.
Mestre Caetano nos observa com seu olhar bondoso e nos
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 65 ]
abraça a todos, agradecendo pela ajuda e pela compreensão.
Promete-nos o esclarecimento adequado sobre tudo aquilo
que ocorrera, tão logo estejamos em condições de
compreendê-lo. Nos garante que isso será em breve. Ou, mais
breve do que possamos imaginar.
Quando estávamos já de retorno da nossa caminhada,
chegando à beira do pequeno riacho, Mestre Caetano pede-
nos para guardarmos em nossas lembranças tudo que vimos e
sentimos, pois, certamente, muito mais ainda iríamos
vivenciar.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 66 ]
A Estrela Que Brilha Mais Forte
“Mas, o que é isso, menina?
Que Brilho é esse
Que você traz?
Chega perto de mim,
Cantando.
E com seus olhos
Doces, que me encantam,
Pela Luz daquela Estrela.
Foi tu quem a fizestes brilhar! ”
Amanhecendo o dia que outrora se havia findado, ainda em
minhas lembranças mantinha as cenas do ocorrido naquela
clareira da mata. Naquele terreiro.
Mestre Caetano convidara-nos para, logo cedo, acompanhá-lo a
uma tarefa junto das galeras de tratamento e recuperação de
nossos irmãos sofredores e adoecidos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 67 ]
Confesso que estava apreensiva quanto ao que poderia presenciar
ali. Isso porque nunca houvera permanecido junto de pessoas
gravemente doentes, como enfermeira ou cuidadora, tão pouco
havia estagiado nestas alas que, inclusive, constituíam uma região
de trabalhos distante do nosso Vilarejo, na qual nem todos tinham
permissão para transitar. Contudo, conservava-me feliz pela
oportunidade que fora ofertada por Mestre Caetano, dando ensejo
a novas experiências para meu aproveitamento.
Sem demora, tão logo o encontramos na passagem entre o riacho
e a pequena ponte que nos levaria à entrada de uma das trilhas na
Mata, o venerando Mestre, após nos cumprimentar breve e
bondosamente, depressa nos conduziu à jornada em direção aos
postos de trabalho no atendimento àqueles que nos aguardavam o
socorro.
Transportava consigo, e também alguns de seus ajudantes, alguns
frascos que pareciam ser feitos de cerâmica, nos quais havia
determinado líquido, cujo doce perfume era possível notar com
facilidade, pela sua exalação que preenchia o ar já puro daquelas
paragens. Também carregavam sacolas de tecido rústico, cru,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 68 ]
onde transportavam alguns materiais, cuja finalidade eu
desconhecia, envoltos em folhas verdes e espessas. Nosso Mestre,
além disso, carregava um pequeno picuá, de tecido vermelho,
amarrado por um cordão ao pescoço.
Enquanto percorríamos a distância que nos separava do nosso
destino, o amigo Orientador nos dirigia algumas explicações
referentes ao trabalho que era desenvolvido naquelas localidades
e qual deveria ser nosso comportamento ao adentrarmos as
instalações de tratamento.
- “Meus filhos, reconhecemos a importância de os conduzir às
instalações de refazimento e socorro, pois que todos os que aqui
nos encontramos devemos reconhecer a responsabilidade de que
nos vemos imbuídos perante toda essa comunidade humilde e
gentil que aqui habita, compartilhando da vida conosco e
propiciando-nos nosso próprio sustento.
Aqui, ninguém vive só. E desejamos que todos os que aqui
ingressam tomem contato, dentro do possível, com todas as
atividades que vão desempenhadas, de maneira a poderem
ampliar sua visão a respeito das conexões envolvidas entre todos
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 69 ]
os tipos de labores executados por nós. Isso, segundo nosso
parecer, facilita a cooperação e a consciência de responsabilidade
sobre o todo.
Hoje, vocês irão tomar contato com uma pequena parcela de
irmãos nossos, para aqui conduzidos em nome da Misericórdia
Divina, pelas Rosas de Maria1, por meio da intercessão de nossa
Mãe Amantíssima, cujo Coração nos envolve a todos. Muitos
desses irmãos, tal como muitos de nós, chegaram ao “nosso lado”
da vida nas mais diversas condições. Geralmente, transportando
sofrimentos e dores, necessidade de repouso, de refazimento, de
orientação bondosa e fraternal. Há também aqueles que aportam
em nossa humilde comunidade, chagados pelas feridas intensas
ocasionadas pelas décadas e séculos em que se conservaram em
situação de revolta, ódio e violência contra a realidade das Leis
Divinas, das quais pretenderam se esconder, a fim de fugirem de
suas próprias consciências culpadas pelas consequências de seus
atos de insânia e crime, contra si e contra os outros.
1 Rosas de Maria: apesar da referência a esse símbolo Místico feita pelo
Mentor, sabemos da existência de uma fraternidade espiritual de servidores
dedicados ao socorro das almas em purgação que leva o mesmo nome (nota do
autor).
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 70 ]
Enlouquecidos e deformados até, carecem de muitos cuidados,
observações e carinho, uma vez que seu tratamento se desenrolará
por largo curso até a melhora (e não, necessariamente, a cura) do
seu quadro de enfermidade.
Naturalmente, vocês visitarão as alas que abrigam aqueles em
condições mais amenas, ou que já estão positivamente renovados.
De igual forma, a condição de vocês será, pura e tão somente, a
de aprendizes, não cabendo a nenhum de vocês a obrigação de
cuidar, ao menos por enquanto, destes nossos pacientes.
No entanto, não se esqueçam de, enquanto lá estiverem,
especialmente, manter seus pensamentos e suas expressões em
um padrão positivo e saudável, pois conforme vocês já bem
sabem, necessitamos das criações mentais salutares para
gerarmos um ambiente próprio para a cura e o tratamento que aqui
são desenvolvidos. Olvidem todo o tipo de expressão menos feliz.
Não se ajuntem pelos cantos para tecer comentários
desnecessários de qualquer natureza. Não se atenham à condição
dos irmãos com os quais iremos nos deparar. Aqui, somos todos
pacientes necessitados do Remédio Divino, o qual ainda estamos
tomando, em gotas (às vezes amargas), pois nos recusamos,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 71 ]
muitas das vezes, a cicatrizar as nossas próprias feridas
interiores...estamos chegando...”
Chegando em frente ao portal que nos dava passagem às Sete
Cachoeiras, por trás das quais albergavam-se as instalações de
Pronto-Socorro, nos vimos diante de uma construção de enorme
beleza.
Em meio às quedas d’água, podíamos avistar um grande
monumento, talhado nas rochas imponentes, o qual formava a
imagem de Nossa Senhora. Águas cristalinas escorriam por sobre
seu corpo, desaguando em um leito calmo e convidativo para o
nosso breve descanso, meditação e oração preparatórias para as
tarefas que estávamos prestes a desempenhar. Avistamos, à
margem direita daquela piscina de águas translúcidas, que se
formava aos pés da Santa Mãe, uma pequena capela, também
construída em pedras e adornada em folhas e arbustos, por cuja
entrada podíamos ver cintilando, enquanto nos aproximávamos,
as chamas de algumas velas acesas.
Estramos naquela Capelinha. Tudo nela era simples e encantador.
Um quadro, feito de madeira, no qual estava pintada a figura de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 72 ]
Jesus, era a única imagem ali presente. Um aroma distinto e suave
de frutos e flores tomava conta do ambiente. Fresco e arejado,
aquele cantinho de paz por si só já nos induzia, mesmo sem
percebermos, a um estado oratório e contemplativo.
Entregávamo-nos, por alguns instantes, a momento de prece
silenciosa e coletiva, junto daqueles que nos acompanhavam e
que também se encontravam no mesmo estado de paz e silêncio.
Focada nos pensamentos carregados de imagens belíssimas que
brotavam em grande volume e intensidade da minha mente,
comecei a notar um brilho intenso a surgir do pequeno altar no
qual encontram-se as velas e o modesto quadro de Jesus.
De olhos fechados sentia-me tomada por uma indizível paz
interna e, nesta condição, desejava manter-me orando e sentindo
meu coração em profunda alegria e contemplação. Parecia que eu
sentia uma mão suave e delicada a tocar-me ligeiramente os
ombros. Uma presença serena parecia adentrar e preencher todo
aquele espaço onde estávamos. Abri os olhos. Quase não pude
conter o ímpeto de me arremessar de joelhos ao chão, perante a
cena que transcorria diante de mim.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 73 ]
Uma moça belíssima, envolta em túnica azul e dourada pairava
no ar. Irradiando grande luminosidade, embora não de maneira a
nos cegar os olhos, nos tocava interiormente e nos levava a uma
sensação de plenitude e de prostração, tamanha a sua presença
bendita, numa postura quase que de veneração profunda. Para
mim, aquela bela aparição afigurava-se como um verdadeiro
Anjo que nos visitava.
Com a face encantadoramente suave, o olhar sereno e feliz, mãos
postas ao peito e que depois se distenderam em nossa direção,
como num gesto a nos envolver, disse-nos:
- “Amados, recebemos a todos com grande carinho. Sejam bem-
vindos em nossa Morada.
Lições importantes e oportunas aguardam-nos. Agradeçamos
pelo ensejo de trabalho e de esclarecimento. Necessitamos da
dedicação e do compromisso de cada um, pois estejam certos de
que aqui não estão por acaso. Olhem para cada um dos irmãos
que aqui habitam, tal como entre vocês mesmos, como se
estivessem diante do próprio Cristo. Amamos a todos. Estejam
ligados nesse Amor”.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 74 ]
A claridade que se expandia daquele ser iluminado ia se
espalhando em raios azulados e dourados, como se suas vestes
estivessem a se dissolver em meio ao clarão. Pude ver Mestre
Caetano, prostrado de joelhos, retirando do pescoço o pequeno
picuá, abrindo-o e de lá retirando um pequeno cristal com brilho
intenso. Ao erguê-lo sobre a cabeça, notei que era aquele mesmo
cristal que houvera sido entregue ao Instrutor por aquela nobre
entidade quando da nossa “visita” ao terreiro.
Não me era mais possível vislumbrar os contornos daquele ser de
rara beleza, somente a emanação de sua aura iluminada.
Entretanto, tinha a impressão de que Mestre Caetano continuava
a vê-la e parecia dialogar com ela, embora não percebesse
nenhuma palavra dita por ele. Pude notar que aquele pequeno
cristal foi envolvido pela irradiação que se concentrava em torno
de nós, ampliando ainda mais o seu brilho, tal como se colhesse
naquela pedra, como um âmbar, a essência espiritual do ser
Angélico que nos houvera agraciado pela sua excelsa companhia.
A claridade diminuía, aos poucos, nos fazendo “retornar” para o
ambiente, conservando aquele estado de alumbramento.
Esplendor! Meu Deus, que Esplendor!
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 75 ]
A Cruz, a Prece e o Rosário
“Pequenas contas entre os dedos
Orando sempre, com ardor.
Verás florescer na existência,
Um novo olhar para dispor...
E viver com mais felicidade”.
Dona Izaldina era uma “senhorinha” que vivia lá no meu bairro.
Era baixinha, trajando sempre vestido longo, muito simples.
Cabelos bem crespos e curtos, presos por grampos. Negra
“retinta”, como se dizia. Rosto de “vó”.
Era benzedeira famosa na comunidade. Mãe-pequena no
terreirinho da “babá”.
Muito querida por todos, já aposentada e com uma vida bastante
modesta, tendo criado todos os seus quatro filhos com grande
esforço, entre a costura e o serviço de limpeza em escola pública
da região, vivia com a casa repleta de pessoas que a buscavam
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 76 ]
pedindo os mais diversos tipos de ajuda. Principalmente, doentes
de toda espécie. Crianças também, eram muitas.
Certo dia, dona Izaldina fora chamada a atender um rapaz que
possuía problemas muito sérios de ordem psiquiátrica.
O jovem, com um histórico já “complicado” na vida escolar,
marcada por expulsões, pequenos furtos, envolvimento com
drogas, etc. Era ainda muito novo. Acabara de completar 19 anos.
Entretanto, esse rapaz sofria de ataques convulsivos, enfrentando
crises epilépticas, caindo pela rua ou por qualquer lugar onde
estivesse.
Suas convulsões, porém, tinham uma característica específica.
Quando dos seus “acessos”, ele mantinha-se em um estado de
congelamento do rosto, os olhos voltavam-se para cima e,
vidrado, permanecia balbuciando palavras desconexas, as quais
não eram facilmente compreendidas. Noutras vezes, dizia
palavrões e outros termos chulos e rudes, com a voz
enrouquecida...como se estivesse “possuído”.
Apesar desta série de questões que tornavam sua vida um tanto
“complicada”, Marcelo – esse era seu nome – era bem conhecido
no bairro e também muito querido pela sua vizinhança.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 77 ]
Possuía um espírito voluntarioso e gentil, cooperando com muitas
das atividades assistenciais que eram desenvolvidas dentro da
comunidade. Além de estar sempre ajudando e fazendo favores
simples para o pessoal, como ajudar em reformas de casas,
carregar sacolas para donas de casas, jogar bola com a criançada
na rua, enfim. Podia-se notar que, em grande parte, seu perfil
“problemático” era, em muito, o fruto da realidade social na qual
nossa comunidade estava inserida.
Marcelo possuía um senso moral e crítico a respeito de sua
conduta e resolvera, mesmo com todas as marcas de sua infância
e seu passado recente, “mudar de rumo” e, com muito esforço,
voltou a estudar e arrumou um emprego num supermercado local.
Tudo parecia que estava indo bem quando, um dia, Marcelo
começou a ter, sem ele mesmo saber indicar ao certo o porquê,
pesadelos recorrentes. Pensamentos contínuos e repetitivos de
morte, ideias de suicídio, e uma angústia profunda tomavam conta
de seu mundo interior, fazendo-o enfraquecer, acordando-o pela
madrugada, desnorteado, oprimido. Chegava a se atrasar ao
trabalho. Começara a faltar nas aulas da escola.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 78 ]
Misturavam-se, em seu pensamento, imagens atormentadoras de
cenas violentas, as quais o consumiam interiormente, gerando um
sentimento de raiva, acompanhado de ansiedade e amargura.
Como se houvesse uma batalha interna que se travava entre sua
lucidez, que reconhecia seus deveres e qual o caminho certo a
seguir e aqueles pensamentos autodestrutivos que o exauriam
mais e mais, com o passar dos dias.
Voltaram os episódios epilépticos. Sua mãe, já sofrida e com
poucos recursos, extremamente preocupada com seu filho,
buscava com ele o apoio médico, contudo sua realidade financeira
não lhes permitia o atendimento conveniente com a urgência que
o caso exigia, embora procurasse insistentemente, junto ao
sistema de saúde pública, uma oportunidade para que seu filho
fosse tratado de maneira adequada.
Enquanto aguardava, os dias sucediam-se e as crises agravavam-
se, fazendo com que Marcelo se ausentasse do seu humilde
trabalho.
Foi então que, aconselhada por uma vizinha, dona Maria, a
mãezinha devotada e aflita, fora buscar o auxílio de dona
Izaldina...
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 79 ]
Casa repleta de gente. Povo sentado até pelo chão do quintal. Já
era noite começada. Dona Izaldina, que já estava benzendo
criançada desde após o almoço e houvera feito uma pausa para
descansar, reabre a porta do pequeno quarto onde recebe os seus
“pacientes”.
Quarto pequeno e muito simples. Chão de terra batida. Uma
cômoda antiga e quatro cadeiras toscas. Fixadas na parede ao
fundo, duas prateleiras pequenas comportam um singelo altar,
com poucas imagens de santos. Uma vela branca de sete dias
acesa e um vasinho com flores colhidas do seu próprio canteiro.
Bem à frente do paciente, numa parede lateral, próximo à única
janela do cômodo, uma cruz de madeira. Essa cruz parecia
irradiar uma luz suave e especial.
Nas mãos de dona Izaldina, um rosário.
Os pacientes entravam e sentavam-se na sua frente, um a um, cada
um na sua vez, enquanto a benzedeira rezava as contas do rosário,
entre Ave-Marias e Pai-nosso.
Quase não olhava para o paciente. Perguntava, olhando para o
chão, qual a “queixa” e, mal o paciente terminava de contar, ela
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 80 ]
já estava com as mãos sobre a sua cabeça passando para a área
doente, como se procurasse “sentir” com a mão, onde se
localizava a enfermidade.
Quase não falava. Balbuciava algumas poucas palavras, enquanto
percorria com a mão o corpo do paciente, que permanecia
sentado. Quase em absoluto silêncio e completa introspecção, o
máximo que se podia reconhecer de suas rezas eram, justamente,
a Ave-Maria e o Pai Nosso com que sempre começava e
encerrava seu “procedimento”.
Os pacientes iam passando por suas mãos até que, lá pelas 22/23h,
adentra-se o rapaz, Marcelo, acompanhado de sua mãe.
Um tanto constrangido e com o semblante abatido, Marcelo não
sabia ao certo como se portar diante daquela simples e intrigante
“senhorinha”.
Ao entrar no pequeno cômodo, fora tomado por sensações que até
então nunca havia percebido em si. Confuso, via o ambiente com
uma luminosidade diferenciada daquela que este realmente
possuía, uma vez que uma lâmpada fraca se encarregava de
mantê-lo “a salvo” de uma escuridão completa.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 81 ]
Mas via claridade em todo o ambiente, sentia-se aliviado diante
daquela senhora que lhe inspirava grande respeito e, por isso, não
ousava dirigir-lhe a palavra.
Dona Izaldina, por sua vez, enquanto prosseguia rezando seu
terço em meio ao socorro que prestava aos seus pacientes,
percebera algo peculiar quando Marcelo e sua mãe entraram pela
porta.
Podia notar que o rapaz parecia estar envolto em uma penumbra
e num fluido escuro como piche, o qual lhe descia pela cabeça,
pela parte de traz, “escorrendo” pelas costas.
Na sua visão, dona Izaldina percebia Marcelo com as mãos sujas
de sangue, como a pingar-lhe gotas espessas vermelhas pelo chão
do quarto.
Estava acostumada a receber enfermos de todos os gêneros,
inclusive aqueles que padeciam de influências espirituais
negativas, contudo, aquele caso era de uma gravidade que já de
há muito tempo ela não mais havia lidado.
Naturalmente, servindo-se de toda a sua experiência, rogando
ajuda e proteção à Imaculada Conceição, São Jorge Guerreiro e
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 82 ]
São Benedito, seus santos de devoção, prosseguia em seu
procedimento normalmente. Fitando o chão, perguntava ao rapaz
“o que ele tinha”.
Marcelo, um tanto embaraçado e tropeçando nas palavras, contou
que estava tendo crises epilépticas; que não entendia o que estava
acontecendo com ele. Contou das vozes que ouvia. Dos
pensamentos e das imagens que o devoravam e minavam suas
forças, provocando mal-estar e desânimo. Disse que queria voltar
a trabalhar e a estudar, porque sabia que sua vida não era fácil e
tinha que ajudar sua mãezinha.... Um acesso de choro o tomou...
A mãe de Marcelo, agoniada e chorosa, ao ver as abundantes
lágrimas do filho, tentava confortá-lo acariciando-lhe os ombros,
enquanto ele permanecia de cabeça baixa, extravasando toda
aquela tensão interior.
Dona Izaldina observava, serenamente, aquela cena, deixando
que mãe e filho se envolvessem naquele momento de afeto e de
busca por alívio.
Então, pôde observar a aproximação de uma entidade espiritual
que parecia surgir das sombras provocadas pela porta entreaberta
do quarto. Exalava um odor fétido. Roupas rasgadas e imundas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 83 ]
Os olhos petrificados, fixos em Marcelo. Braços estirados para
frente do corpo. As mãos, rígidas, recurvavam-se como garras,
num gesto de ódio, como se intencionasse pegar o rapaz pelo
pescoço e o estrangular.
Avançando decididamente sobre Marcelo, a entidade infeliz e
atormentada enlaça ferozmente as mãos sobre seu pescoço e atira-
se sobre ele, na tentativa enlouquecida de querer engalfinhar-se
com sua vítima. Gritava sons inarticulados. Urrava de ódio.
Tentava esmurrar-lhe o rosto.
Marcelo, inconscientemente, recebendo o choque da
aproximação violenta do infeliz algoz, agita-se em sua cadeira,
sente-se sufocar e percebe o acesso epileptiforme se formando.
Sem tempo para qualquer intervenção, a crise irrompe e Marcelo
tomba no chão do pequeno quarto, convulsionando, no que é
prontamente socorrido por Dona Izaldina e sua mãe, que tentam
acudir-lhe no seu estertor.
Agora, a entidade e Marcelo parecem “unidos no mesmo corpo”.
O rapaz debate-se e espuma pela boca. Dona Izaldina pede à mãe
que se coloque afastada do filho e apoie-lhe as pernas, enquanto
segura a cabeça de Marcelo, virando-a, suavemente, para o lado.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 84 ]
Aguarda a breve crise minorar, enquanto pousa a destra sobre a
fronte do rapaz, agora empapado de suor. Reza e pede auxílio aos
Santos e Guias que lhe amparavam.
Reza, pedindo o amparo de Nossa Senhora dos Remédios, Nossa
Senhora da Luz e Nossa Senhora da Saúde. Pede ao Coração de
Maria o auxílio para que os enfermos (encarnado e desencarnado)
pudessem ser socorridos e aliviados em suas dores.
A cruz de madeira, no alto da parede, parece incandescer
conforme suas preces iam se desdobrando e tornando-se mais
fervorosas.
Um aroma de flores parecia envolver ainda mais o ambiente,
diluindo o mal cheiro das emanações pestilentas carregadas pelo
espírito sofredor.
Marcelo e o seu algoz espiritual pareciam entregues a um estado
de letargia, imóveis, como em um estado de choque emocional,
enquanto iam aos poucos sendo envolvidos por uma luz azulada
que se desprendia dos dedos e dos olhos de Dona Izaldina.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 85 ]
Enviados de Maria observavam o acontecido e uniam-se às preces
de Dona Izaldina, pela intercessão em favor de ambos os
sofredores.
Traziam suas vestes alvas, envoltas em uma auréola luminosa que
variava em matizes de cores diferenciadas. Carregavam a rosa e
o lírio em suas mãos. Preenchiam o ambiente com sua presença,
sem serem notados por qualquer um que estava presente no local,
“de ambos os lados”.
Dona Izaldina não percebia a presença dos enviados de Maria no
local, mas sentia-se amparada e serena. Seu pensamento agora
tinha fortemente impresso a imagem do rosto de Maria, mãe de
Jesus.
Começou a chamar Marcelo pelo nome, pedindo para que ele
“acordasse”, que abrisse os olhos. Suavemente, foi ajudando-o a
recompor-se, bem como a sua mãe que assistia a tudo, atônita.
Segurava as mãos de Marcelo, quanto mantinha sua visão no ente
espiritual que ficara caído, prostrado, ao chão, num estado de
hebetação. Pedia, em pensamento, que aquele sofredor pudesse
ser amparado e que houvesse tempo para a reabilitação daquele
andarilho do mundo espiritual, assim como para o seu paciente.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 86 ]
Certamente, ambos possuem ligações profundas, quiçá perdidas
na noite do tempo, no entanto, agora não era momento para
demorar-se nesta questão. Somente o auxílio e o conforto
interessavam nos objetivos de Dona Izaldina.
Conservando-se em prece, a abnegada senhora pôde registrar e
perceber que a entidade em penumbra ia sendo envolta numa
suave luz e sua imagem parecia dissolver-se ante sua visão.
O sofredor estava sendo envolvido nos braços de um dos
benfeitores que agora o amparavam, infundindo-lhe sua
irradiação salutar. O pobre espírito começava a entrar em sono,
parecendo tranquilizar-se ante o contato com aquele Samaritano.
Dessa forma, fora possível retirá-lo para as paragens de
refazimento e tratamento, nas quais estagiávamos, próximas de
nosso Vilarejo.
Enfim, José, você que tanto sofrera, tem a oportunidade de
encontrar descanso e remédio...
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 87 ]
A Imagem de São Jorge Guerreiro
“O quadro do Santo Guerreiro,
Cavaleiro soberano
Soldado de Deus,
Senhor dos defensores do Bem.
Ó São Jorge Guerreiro,
Olhai por seus filhos,
‘inda meninos diante da Vida
Cuida desta florzinha
Que com tudo se espanta
Que tem alma, entre vidas”.
A entrada do hospital, naquela pequena cidade onde cresci,
encontrava-se quase completamente tomada de pessoas, as quais
aguardavam atendimento na ala de pronto-socorro. Um carro
transportando um rapaz, que houvera se envolvido em um
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 88 ]
acidente automobilístico, sobe a rampa de acesso ao
estacionamento que fronteava a ala de emergência. Acorrem os
funcionários e enfermeiros. Ainda haveria condições e tempo
favorável para salvá-lo?
Os dois únicos médicos que atendiam naquele fim de semana
buscaram socorrer aquele jovem com os poucos recursos de que
o pequeno hospital dispunha, no entanto, após várias horas de
atendimento, com tentativas frustradas de remoção para um outro
hospital com mais recursos, localizado em cidade vizinha, o
jovem acabou não resistindo, vindo a óbito.
João era o seu nome.
Trabalhava em uma unidade de uma loja de departamento
conhecida do país, como atendente. Esforçado, honesto, bom
companheiro. João, apesar de sua origem em família humílima,
assim como muitos de nossa cidade, dedicara-se ao estudo em
escola técnica na cidade vizinha, almejando obter melhora em sua
vida. Sonhava arrumar um emprego melhor. Cursar uma
universidade. Ajudar, contando com mais possibilidades, a sua
família, em especial sua mãezinha, faxineira e doceira, de cujas
atividades sempre retiraram os valores que puderam manter a
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 89 ]
dignidade do lar e a possibilidade de João concluir o ensino
médio-técnico.
João contava, então, vinte anos de idade. Aprendera com a
convivência e a figura de sua mãe, dona Rosalina, além do gosto
pelo trabalho, algumas noções de fé que acabara por incorporar
ao seu comportamento. Devoto de Nossa Senhora Aparecida e
São Jorge Guerreiro. Guardava junto de si, qual patuá que
carregava sempre no bolso, a miniatura deste santo de sua
predileção, além das imagens no pequeno altar de seu quarto,
junto a outros santos e imagens de pretos velhos e caboclos. Sim.
João era filho de Umbanda, assim como sua mãe. Com a idade de
então, já exercia sua fé, frequentando o “terreirinho da Babá” nas
giras de sábado, fazendo parte dos filhos de santo da casa.
Médium que era, comparecendo aos trabalhos da casa, sempre
com pontualidade e frequência.
Por outro lado, João também houvera aprendido com a
convivência de seu pai, Arlindo, o gosto pela bebida alcoólica.
Desde o fim da infância, João já havia tido contato com o hábito
de ingerir alcoólicos não só por estímulos do pai (que lhe dava
pequenos goles da bebida, principalmente em ocasiões de festa e
reuniões familiares), mas também pelos tios e irmãos mais
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 90 ]
velhos, os quais também haviam sido iniciados no mesmo hábito
desde pequenos. Já na sua adolescência, era comum João
provando, abertamente, copos de cerveja e outras bebidas nos
almoços e churrascos promovidos, com frequência, por amigos e
familiares.
Na sua cultura familiar era tido como algo normal os jovens
formarem-se para a vida adulta experimentando e adquirindo o
hábito da bebida alcoólica, assim como do cigarro. Afinal, sempre
vira seu pai fumando ou bebendo em seu dia-a-dia.
Assim, João carregara consigo o apreço pela bebida alcoólica. Por
ocasião da rotina do trabalho e do estudo, o rapaz adaptou tal
hábito para os finais de semana, de maneira que pudesse usufruir
destes momentos junto de seus amigos, primos e irmãos,
incluindo alguns também do terreiro que frequentava.
Apesar dos cuidados que João tomava para guardar os preceitos
que lhe eram exigidos para sua participação equilibrada nos
trabalhos da casa, pois não se permitia, julgava ele, que seus
gostos interferissem no exercício de sua fé e no seu compromisso
religioso, era frequente – para não dizer rotineiro – que todas as
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 91 ]
semanas João buscasse ‘relaxar e descontrair’ com seus amigos e
um copo de bebida na mão.
Dona Rosalina, sua mãe, por diversas vezes, repreendia-o,
buscando alertar-lhe para a realidade escondida por detrás de seus
hábitos e os perigos a que estava sujeitando-se, as implicações
funestas que isso deixaria em sua saúde ao longo do tempo,
citando o exemplo do próprio pai, afastado das atividades
profissionais e incapacitado de providenciar o sustento do lar, já
há anos, por consequência dos vários problemas de saúde que
adquirira, senão diretamente, com grande influência dos hábitos
malsãos da bebida e do fumo .
O rapaz, vendo-se contrariado, saia-se com o recorrente discurso
de que era trabalhador, bom filho e que não devia nada a ninguém.
Sua mãe lembrava-lhe de que seus Mentores o observavam,
demonstrando-lhe não estar convencida de seus argumentos
salientando sempre que o seu compromisso mediúnico-religioso
pedia dele a mudança de hábitos e uma nova programação de
vida.
Para encerrar o assunto, devido ao enfado que sentia por não
querer ouvir as repreensões de sua mãe, João dava-lhe um sorriso,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 92 ]
por vezes irônico, e abraçava-lhe os ombros externando seu
carinho sincero pela mãezinha. Mas, à noite, antes de adormecer,
Dona Rosalina sempre pedia a Deus, enquanto fitava com
devoção a imagem do Santo Guerreiro, que iluminasse a
consciência de seu filho mais novo, ainda presunçoso e iludido
quanto às realidades ocultas das Leis da Vida. Confiava à Nossa
Senhora Aparecida a sua preocupação cada vez maior com o seu
garoto, pressentindo acontecimentos dolorosos para a sua, assim
como, principalmente, para a vida de João.
João chegara ao ponto de começar a ir aos bares da cidade, com
os amigos, mesmo após ter acabado de participar dos trabalhos
do terreiro.
Enfim, no dia fatídico do acidente que ocasionou a sua
desencarnação, João, mais uma vez, havia passado a noite num
dos tais bares da cidade, após ter saído do terreiro. Seu amigo,
que também era seu irmão de terreiro, conduzia o automóvel por
uma estrada estreita e escura. Passava das três da madrugada.
Leonardo, o motorista, também estava alcoolizado e bastante
falante. Ao contrário, João encontrava-se sonolento e, naqueles
instantes, como se pressentisse vagamente o acontecimento
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 93 ]
funesto que o acometeria, começou a inquietar-se interiormente,
ensimesmando-se e calando-se cada vez mais.
- João! Que foi, meu chapa?! Tá dormindo, já?! Fraquinho! Não
aguenta tomar nada (risos). Ô João!! Acorda, cidadão!
- Tô acordado, Leo. Só estou meio cansado... só isso...
- Quero conversar, cara! Nesta escuridão, se eu não falar vou
acabar dormindo e a gente vai parar lá embaixo, nesse barranco
aqui!
- Pára! Tá louco?! Vira essa boca pra lá!
- Que foi, meu amigo?! Tá com medinho! Não tem fé nos seus
santos, não?
- Tenho...claro que tenho. Mas, sei lá...
- Que foi agora? Acho que você tá muito bêbado! Tá começando
a ficar paranoico! (risos)
- Não, cara. Sei lá... tava pensando...Minha mãe tem falado muito
comigo sobre essas coisas que tenho feito, de sair direto para
beber...Acho que não tô me sentindo legal. Tô me sentindo
culpado.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 94 ]
- Deixa disso, Jão! Mãe é assim, mesmo! Fala para encher a
paciência! Sempre acham que a gente é criancinha ainda! Minha
mãe era assim também.
- Cara, mas... por um lado ela têm razão. Como é que eu, sendo
um religioso e trabalhando como médium de um terreiro tão lindo
como o da nossa “Babá”, onde as pessoas vão ter conosco
procurando ajuda, posso me dar esse direito? Não é contraditório
isso que estamos fazendo, Leo? As pessoas buscam-nos para
pedir auxílio pra sua doença, para os sofrimentos que sentem, e
nós simplesmente estamos aqui, nos embriagando toda a semana,
como se não tivéssemos nada a ver com isso, com as esperanças
daquelas pessoas?
- E o que é que tem isso?! Pois eu, assim como você, também sou
umbandista, já faz 18 anos! Não vejo problema nenhum, nisso.
Sempre cuidei das minhas obrigações com o terreiro e com meus
Guias. Cumpro todos os meus deveres e tudo o que eu tenho e
consegui eu devo a eles! É simples assim: eu cumpro as
obrigações que tenho com eles, faço os preceitos que tenho que
fazer antes de ir para os trabalhos, e eles me ajudam como
retribuição. E é isso! Eu os ajudo, eles me ajudam! Inclusive nas
minhas bebedeiras! (risos). Aliás, você acha que eu tô em
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 95 ]
condições de dirigir?! Eu bebi muito mais que você (risos). São
eles que estão guiando as minhas mãos! – E dizia isso enquanto
balançava o volante do carro para os lados, fazendo o carro
ziguezaguear, no entanto, não percebera que o veículo estava
perdendo o controle.
- Não é isso, cara! Para de brincar, meu! Eu não quero morrer aqui
não! Para, Léo!!...
João começou a ser tomado por uma angústia indizível, enquanto
as recordações do olhar de sua mãezinha apareciam em sua
cabeça sem cessar. Colocando a mão no bolso direito da calça, o
rapaz puxou a miniatura de São Jorge Guerreiro, fechou os
olhos... quando ouviu a voz de sua mãe “te amo, meu filho...te
amo...”.
Infelizmente, a brincadeira do amigo insensato e irresponsável,
acabou resultando na perda de controle da direção do automóvel,
o qual atravessou a pista na contramão, colidindo de frente com
um caminhão.
Leonardo, apesar dos ferimentos sérios, conseguiu sobreviver,
enquanto João, o bom garoto, embora sua inconsequência, passou
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 96 ]
para a Aruanda Infinita, quase que totalmente inconsciente sobre
as condições de sua “morte” ...
... “Meus irmãos, estamos às portas da ala de tratamento dos
nossos irmãos que, desafortunadamente, nos chegam, por
misericórdia Divina, para que possamos ajuda-los e acolhe-los
em seu sofrimento. Mantenham-se atentos as nossas orientações,
procurem conservar-se em prece, guardando uma postura de
respeito e silêncio. Vamos entrar agora”. – Reforçou a lição,
Mestre Caetano.
Chegamos junto aos leitos onde encontravam-se alguns irmãos
que pareciam dormir um sono profundo e, ao mesmo tempo, um
tanto perturbador. Suas faces demonstravam presença de dor e
aflição interior, como se se encontrassem passando por um
pesadelo do qual não pudessem acordar.
Entre estes, foi onde encontrei João.... Seu despertar ocorreu três
anos após a sua desencarnação. Destes, nosso amigo permaneceu
nas alas de tratamento por volta de ano e meio. Durante esse
período, sempre cercado de pesadelos e impressões dos traumas
físicos sofridos no acidente, por conta do efeito etérico que a
impregnação do álcool no organismo, sobretudo sobre o aparelho
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 97 ]
cerebral, na ocasião de seu desencarne, desencadeou em seu
corpo espiritual, colocando-o em tormentos que perduraram
mesmo após o seu despertar.
Seu lenitivo maior, além dos medicamentos apropriados que lhe
eram aplicados pelos enfermeiros, eram as vibrações de carinho
a ele enviadas pela dolorosa mãezinha, que em seu pranto de
saudade clamava amparo junto a Nosso Senhor Jesus Cristo para
seu filho amado.
Fora o próprio João, com apoio de Mestre Caetano, quem contara
a sua história. Essa mesma que escrevemos. Confesso que fiquei
surpresa ao saber que o rapaz frequentara o terreiro da Babá. Da
mesma forma, fiquei ainda mais surpresa por me deparar com
tamanho sofrimento para um filho de santo e médium daquela
casa. Jamais eu imaginaria que tal situação poderia se abater
sobre aquele jovem religioso, dedicado a praticar a caridade
naquele templo de paz e sabedoria!
Mestre Caetano, mais uma vez, coloca-se diante de nós e, como
amoroso professor, pondera lentamente, enquanto vai refletindo
nas palavras que irá utilizar, para fornecer-nos a valorosa
explicação. E o faz, enquanto abraça João com ternura,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 98 ]
demonstrando-lhe que o que irá dizer não tratar-se-á de uma
sentença ou condenação moral, mas uma reflexão para elevação
da alma naquele jovem e de todos nós que ali nos encontrávamos.
“Por mais que seja difícil compreender, as Leis que regem a Vida
são inalteráveis. Não importa a condição religiosa ou outras
qualidades exteriores que possamos atribuir a uma personalidade
humana. Na transição da vida na carne para os domínios do
Espírito imortal, somente a maneira como cada qual passa pela
sua própria existência é o que determina o sofrimento ou
serenidade deste momento. Alegria ou dor, para o Espírito, são a
resultante de qual nível de consciência o Ser atinge e vivencia,
predominantemente, ao longo de sua jornada.
Não há sacramentos, obrigações, preceitos ou práticas exteriores
ao indivíduo, de qualquer tipo ou cultura, seja mística ou
religiosa, que possam substituir a realidade existencial do ser
humano, Espírito encarnado.
Maus hábitos nunca poderão ser encobertos pela roupa cerimonial
que vestimos nos dias de trabalho religioso. Velas e incensos não
limpam e purificam uma mente desordenada e viciada. Rezas e
cânticos não promovem crescimento e lucidez naqueles que se
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 99 ]
mantém na ignorância. O contato com Numes Espirituais, Guias
e Protetores, por si só, não preenche de valores íntimos aqueles
que não se empenham em desenvolvê-los dentro de si, por esforço
próprio. A caridade que prestamos a outros, não apaga ou
suplanta nossos equívocos, nem anula o desprezo que mantemos
por nossa própria vida e pelo cuidado que deveríamos manter para
conosco. Vivemos fugindo de nós mesmos. Tudo isso, no
mínimo, só nos faz mostrar o quanto ainda temos vivido de
maneira incompleta e pouco atenta quanto as reais metas da
existência humana.
Mesmo ainda sendo jovem, nosso irmão sofre e ainda sofrerá as
consequências inevitáveis de sua própria ignorância e descuido.
Assim como ele, muitos outros que compartilham daqueles leitos
de tratamento e recuperação, foram irmãos ligados ao trabalho
espiritual, mormente dentro das Leis de Umbanda, e que
aportaram para o mundo espiritual vitimados e chagados pela sua
própria acomodação e imprevidência diante de
responsabilidades, às quais deveriam se apegar com apreço e
denodo.
Porém, pelos méritos que a Umbanda como cultura religiosa de
valor fez-se credora, podemos agora amparar estes irmãos
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 100 ]
desatentos e infelizes neste local de renovação, abreviando seu
tempo de purgação e lenindo, o quanto possível, suas dores. De
outra forma, estariam, muito provavelmente, ainda entregues as
zonas de escuridão nas quais ainda permanecem muitos seres em
sofrimento, entregues a Lei nua e inexpugnável do tempo. Aqui,
estes irmãos poderão encontrar o acolhimento, refletir seriamente
sobre seus equívocos e omissões, fortalecendo-se e preenchendo-
se com novas esperanças, partindo para o recomeço de suas
lições, retornando para vida no mundo físico”.
- Então, aqui é um hospital para os umbandistas que desencarnam,
Mestre Caetano?
- Se fosse utilizar uma palavra de comparação ao que se conhece
na Terra, irmã Clara, poderíamos dizer que sim. Temos um
hospital aqui. Muito embora nossos tratamentos, medicamentos e
instalações sejam completamente diferentes dos conhecidos no
mundo físico. Aliás, como você pode observar, não temos nada
ligado a fontes de energia elétrica, por exemplo, como é comum
para o funcionamento dos equipamentos hospitalares conhecidos
pelos homens. Nossos tratamentos, como você já pode
acompanhar, servem-se da manipulação de elementos da
natureza, aromas, essências, minerais, substâncias líquidas e
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 101 ]
outras que escapam completamente ao entendimento do homem
encarnado. Outra questão que importa esclarecermos é que aqui
não são tratados somente umbandistas. Nosso dever é o de
amparar qualquer um que chegue em condições de ser tratado
pelos nossos recursos terapêuticos. No entanto, por uma questão
de compromissos assumidos por nossos Anciões - os fundadores
de nosso Vilarejo -, temos recebido muitos irmãos provenientes
da religião de Umbanda... E, como temos visto, muitos tem
chegado aqui em condições que não deveriam ter se permitido
chegar, não obstante as várias oportunidades de aprendizado que
esta senda espiritual oferece aos seus seguidores. Contudo, não
nos cabe agora julgar. Teremos mais oportunidades de estudo e
observação. Oremos por nossos irmãos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 102 ]
Santa Bárbara, rogai por nós.
“Santa e virgem mártir,
O fogo que nos rodeia,
Ameaça,
É a provação,
Defende-nos das tempestades
Da existência.
Socorre-nos na dor.
Acende em nós
A Luz Divina que contigo carregas”.
Passado um considerável período após seu despertar, João,
enfim, já caminhava pelas alas de tratamento, prestando-se a
auxiliar alguns irmãos que também passavam pelo momento do
despertar na realidade do lado de cá. Cestos com flores
aromáticas, cuia com água fresca e frutos, colocávamos à
cabeceira dos irmãos, cujo olhar se abria para esta realidade nova
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 103 ]
da existência. Cortes de tecidos lavados eram entregues para que
pudessem vestir-se de maneira adequada e simples. Uma suave
melodia percorria o ambiente, embora não soubéssemos ao certo
qual a sua origem, uma vez que não dispúnhamos de aparelhos
para transmissão de som.
Na sua presteza em auxiliar aos novos amigos, João acabara por
ligar-se, mais especialmente, a uma jovem senhora, de nome Ana
Maria, talvez até mesmo porque esta mostrava-se visivelmente
mais necessitada de ajuda do que os outros dois irmãos que
também haviam despertado mais ou menos no mesmo período.
Ana M. havia chegado para o tratamento em um estado de
completa hebetação, devido a um dilatado período de purgação
nas zonas umbralinas. Fora fumante compulsiva. “Um cigarro na
bituca do outro”. Foram assim os seus últimos anos, dentre o
período total de mais de trinta anos, portando a doença do
tabagismo.
Como consequência, um câncer voraz tomou-lhe ambos os
pulmões, espalhando suas metástases para a garganta, intestinos
e coluna vertebral, sob cujas dores excruciantes, Ana sobreviveu
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 104 ]
durante alguns meses antes de sua inevitável e dolorosa
desencarnação.
Quando ainda no hospital, nossa irmã recebia as visitas e o
carinho fraterno dos familiares e amigos mais próximos. A vista
de seu estado de saúde precário provocava comoção em seus
companheiros e o desejo de livrá-la de tamanha provação. Viam,
dia após dia, seu sorriso e o brilho de seus olhos apagando-se,
com o aumento das dores e da administração das drogas em doses
cada vez mais intensas que lhe eram ministradas pelos médicos,
a fim de minorar-lhe o sofrimento.
Algumas semanas antes da hora derradeira, uma amiga de Ana
trouxe-lhe a santinha que ela possuía em sua casa. Santa Bárbara.
A pequena imagem estava enfeitada com fitilhos coloridos. Havia
sido cruzada, preparada, em um trabalho da linha de baianos no
terreiro que Ana frequentava, participando como cambone.
Ana Maria levara a santinha para um trabalho de cura que era
realizado na sua casa de Umbanda, localizada na zona norte da
cidade de São Paulo. Havia descoberto, recentemente, sobre o
sarcoma que se apoderava de um de seus pulmões, na ocasião.
Conversara com um guia de trabalho naquele dia e, desde o
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 105 ]
primeiro momento, havia sido alertada sobre a gravidade de seu
problema e das implicações espirituais dele decorrentes.
Fora recomendada a resguardar-se e fortalecer-se para as futuras
lutas que passaria no processo de tratamento da doença.
Aconselhada a buscar equilíbrio e serenidade na prece diária e na
vivência dentro do terreiro - onde receberia o auxílio espiritual,
complementando o tratamento médico -, seguindo os preceitos de
limpeza e purificação energética e corpórea que lhe seriam
transmitidos. Recebera, por fim, a mensagem de que os Mentores
de luz, na linha dos Baianos, dispunham-se a socorrer-lhe dentro
do que fosse possível para que ela pudesse atravessar essa
provação de sua existência.
No entanto, um sentimento indizível de frustração e desamparo
começou a crescer em seu coração, ao longo dos dias que se
sucederam após aquele dia de trabalhos no terreiro em que fora
aconselhada. Uma revolta surda foi apoderando-se dos
pensamentos de Ana. Por que uma doença tão cruel fora acomete-
la? Logo ela que havia sido tão dedicada em suas obrigações e
valorosa em sua fé? Onde estariam seus Guias que não a
protegeram deste mal? Onde o auxílio daquele terreiro e do seu
sacerdote, a quem devotava seu tempo e confiança irrepreensível?
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 106 ]
Mais um tempo passou. Quando os gravames da doença foram
conjuminando-se para um quadro clínico que acabara por colocar
Ana em uma condição de grande debilidade, seu afastamento dos
trabalhos fez-se inevitável.
Não obstante os conselhos e avisos que recebera de familiares e
amigos, Ana não cedia a ideia de abandonar o vício e considerar
buscar apoio médico para isso. Julgava-se senhora absoluta de sua
vida e única responsável por saber e decidir a respeito de seu bem-
estar. No entanto, as consequências que advieram com o
surgimento da grave doença, implicaram em um conflito íntimo,
por ver-se agora sendo cuidada por sua irmã, Zélia, e suas duas
melhores amigas, Joana e Clara, as quais a amparavam com
ternura e carinho sinceros, além de silencioso respeito, evitando
exatamente insuflar-lhe a culpa pelo julgamento que se faria
despropositado diante da situação da paciente. Mas agora, elas
estavam ali... justamente elas, contra as quais Ana Maria houvera
por várias vezes revoltado-se e imprecatado.
A frustração, o desamparo e os conflitos provindos do ego ferido,
foram formando um estado psicológico de fechamento e desejo
de solidão. Por conta disso, na ocasião de seu desencarne, Ana
acabara por tornar-se inacessível espiritualmente aos
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 107 ]
amparadores e socorristas enviados pela corrente espiritual do
terreiro a que estava vinculada como trabalhadora e filha de fé.
Desta forma, fora atraída para os campos escuros carregando
consigo as penosas impressões do desencarne e os reflexos das
dores lancinantes em seu corpo espiritual.
Como é de conhecimento, na condição de Espírito desencarnado,
o ser vive e experimenta as sensações de dor-sofrimento ou
alegria-felicidade em intensidades não alcançáveis pela
compreensão humana terrestre. Podemos ter ideia do calvário de
nossa desafortunada amiga.
Até o momento em que, passados seis anos nesta condição e por
intercessão das preces daquelas almas amigas que lhe eram caras
ao coração, um raio de luz vindo das alturas, preencheu o vale
sombrio onde gemidos e estertores exprimiam a situação de
purgação dos que ali encontravam-se, por mecanismo natural das
Leis Divinas. Uma caravana de socorristas, trajando túnicas
claras em branco e azul, em cujo peito estampavam emblemas em
que se distinguia um ponto riscado de Iansã. A frente, lanceiros e
batedores, portando archotes, varriam ligeiramente aquela
localidade, até que identificaram, dentre outros, a irmã Ana
Maria, trazendo-a para os nossos cuidados desde então.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 108 ]
Agora, ambos, João e Ana Maria, poderão em breve juntarem-se
ao nosso grupo de estudantes-pacientes e se dirigirem conosco
para o nosso Vilarejo, a fim de continuarem seu refazimento,
enquanto aguardarão, assim como nós, novo ensejo de retornar à
Terra e recomeçar. Mas, desta vez, esperando não cometer os
mesmos erros do passado.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 109 ]
O Renascer das Flores
“Florescer.
O renovar-se como fim último.
Não escapamos desta sina.
Esta manhã nos ensina
Com as suas flores.
Botões que se abrem.
Ressurgir para a vida.
Reaprender”.
Estes jardins são muito belos. Traduzem a singeleza e
tranquilidade deste lugar. Voltamos a nos encontrar com a
inteireza das forças naturais, tão benfazejas a nossa condição
nesta dimensão espiritual, quando caminhamos em meio a estas
flores multicoloridas, cujo aroma calmante e estética delicada nos
enlevava em um sentimento sutil de integração e segurança
íntimas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 110 ]
A inspiração trazida desta paisagem, conduzia-nos a meditar nas
obras da Criação, colocando-nos em contato direto com o Grande
Criador.
Localizam-se, tais jardins, nos arredores daquele Hospital onde
estagiávamos, por hora. Nossos momentos de descanso,
geralmente, os realizávamos ali, em breves caminhadas, a sós ou
acompanhados, ora em atitude silenciosa, ora em conversas
animadas, conquanto sempre em tom respeitoso. Caminhávamos
entre suas passagens ladrilhadas e sempre limpas. Nada ostentava
luxo ou vaidades pueris, embora a sua encantadora beleza. Todos
aqueles lugares que compõem os arredores de nosso abençoado
Vilarejo, pareciam o fruto de uma mente criativa e serena.
Expressões da espiritualidade de um hábil artista, em sua tentativa
de exprimir, por meio de paisagens e construções simples, as
primícias e sentidos profundos contidos na presença Divina em
meio ao mundo dos homens, em todas as dimensões possíveis.
Esplendia em luminosidade e coloração aquele jardim. Era época
de renascimento das várias espécies de flores que lhe faziam
parte. A imagem dos botões a se abrirem, indicavam também o
desejo de renovação e soerguimento interiores que a grande
maioria de nós, que ali nos encontrávamos, almejávamos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 111 ]
João e Ana, nossos novos irmãos, conquanto ainda na condição
de internos e pacientes, já colaboravam no atendimento de novos
pacientes que aos poucos chegavam aos nossos cuidados.
Emocionavam-se, assim como nós, quando ouviam as histórias
daqueles que eram confiados à sua companhia. Ensejo de
refletirem e reconstruírem suas disposições emocionais por meio
desta troca e contato com outros que traziam histórias e dramas
similares aos seus.
Cada dia, uma nova oportunidade.
Mestre Caetano dava-nos o suporte necessário e direcionava-nos
com sua seriedade e calma costumeiras. Os cuidados
direcionados aos nossos irmãos nos exigiam considerável
esforço, no entanto, a gratificação que nos inspirava o emprego
de nosso tempo em horas úteis era muito maior e suplantava nosso
desgaste.
O tempo sucedia célere, conquanto sem a ansiedade e as
distrações do pensamento tão comuns de experimentarmos em
nossa jornada terrena.
Momento chegou em que, após um dia todo dedicado ao labor,
fomos todos convidados por Mestre Caetano a nos reunirmos no
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 112 ]
espaço de convívio localizado em meio aos jardins para uma
breve reunião, na qual teríamos novas notícias sobre a
continuidade de nossas atividades a partir daquele instante.
Conduzimo-nos para o referido lugar em silenciosa expectativa.
Depois de um breve momento, o digno Mentor junta-se ao nosso
pequeno grupo de estagiários, trazendo consigo os nossos novos
irmãos, João e Ana Maria. Trazia também um sorriso de
satisfação no rosto, enquanto nossos irmãos pareciam
visivelmente emocionados.
Sem demora, o amigo de todos nós, em seu papel de orientador,
assumiu uma posição em que pudesse ser ouvido e visto por todos
e, tranquilamente, iniciou-nos na reunião:
- Meus amigos, tomei a inciativa de convidá-los a esta conversa,
pois necessito transmitir algumas notícias e orientações gerais de
nosso interesse.
Como sabem, já estamos aqui há um relativo tempo estagiando
junto aos nossos pacientes, na experiência de doação espontânea
de nossos recursos neste trabalho de amparo e recuperação que,
em verdade, é de todos nós, não é mesmo? Pois bem, também
sabemos que esta vivência nos fora concedida e possibilitada
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 113 ]
pelos companheiros responsáveis por este local. Desta forma,
nossas atividades aqui são de experimentação, tratamento e
estudo, cujo ciclo finaliza-se aqui, a partir de hoje. Quero
agradecer a todos vocês, esperando que tenham podido colher as
lições necessárias e valiosas para o engrandecimento de cada um.
Prosseguiremos, enriquecidos pelos momentos e amizades
construídos aqui, uma vez que outras e novas experiências ainda
nos aguardam...
... E, nesta noite, não iremos retornar sozinhos. Quero informa-
los que, após consultar os irmãos responsáveis pelo
acompanhamento de nossos estimados João e Ana Maria,
chegamos à conclusão de que ambos poderão seguir conosco de
retorno ao Vilarejo, tomando lugar junto de nosso grupo em
nossas próximas atividades, como continuidade de seu tratamento
e restabelecimento. Felicitemos aos nossos novos companheiros
de excursão.
Abraçamos todos os novos integrantes do grupo que não
conseguiam conter a emoção que se lhes impunha, banhando-se
em lágrimas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 114 ]
Despedimo-nos dos amigos daquele verdadeiro Hospital de
recursos naturais, instalado nas Grutas de Socorro, e partimos
naquela mesma noite de retorno ao nosso remanso. Nosso
Vilarejo já se mostrava inteiramente iluminado, em suas ruas e
casas, pelos archotes que clareavam as passagens e estradas.
Alguns convivas ainda caminhavam calmamente por ali. Outros
confabulavam distraidamente, sentados em alguns bancos
dispostos pelo caminho. Os sons da Natureza preenchiam a
atmosfera.
Finalizamos nossa noite com uma prece proferida em grupo, em
frente a estalagem onde repousávamos habitualmente.
Agradecidos por mais um dia e por todos os outros em que
pudemos trabalhar nas Grutas. Repletos de paz.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 115 ]
A Coroa do Divino
“A Coroa do Divino
Fora feita de espinhos.
Ferindo a Sua face serena.
Sua dor era o testemunho
De amor pela vida e a verdade.
Quem deseja seguir-Lhe os passos
Certo esteja de seu padecer.
Pela Coroa do Divino
Poder ser coroado
E, pelo Bem, o mal sofrer”.
Toda vez que o senhor Benedito termina seu dia de trabalho nos
campos de cultivo, ele retorna pelo passadouro que entremeia as
plantações. Vem contemplando o céu ainda azul, a iniciar sua
transmutação em nova cor, tornando-se róseo-alaranjado, em
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 116 ]
razão do astro rei que se põe concluindo calmamente seu périplo
natural, enquanto perdura a travessia do nobre ancião de retorno
ao Vilarejo.
Benedito é responsável pela conservação de um pequeno templo
de oração situado entre dois pequenos montes que se distanciam
brevemente para além do Vilarejo. Do ponto central da
comunidade, pode-se visualizar a entrada do Recanto de Paz e
Oração, colocado entre duas paredes rochosas o seu portão
principal.
Ao sair dos campos, o senhor Benedito caminha rumo aquele
local Sagrado, carregando ramalhete preenchido com flores
colhidas naquela tarde. Ao entrar, observa atentamente os
detalhes daquela passagem, como se fora novo visitante. Repara
em seus portais, delicadamente ornados com armações suspensas,
emolduradas em forma de ramagens que se entrelaçam, como
uma coroa em brilho cobreado. Uma aura emana dali, dessa
passagem, como se procurasse envolver aquele espaço em clima
de proteção e isolamento características dos ambientes criados
para práticas como a oração meditativa e o retiro espiritual.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 117 ]
Passa pela porta de entrada e contempla tranquilamente o altar
simples que embeleza o templo. Imagens talhadas em pedra
peculiar da região daqui. Outras, formadas de argila. Irradiam
diáfana luminescência ao seu redor, como se respondessem aos
pensamentos e as manifestações imponderáveis da mente
daqueles que se encontravam próximos.
“Seu” Benedito ajeita o ramalhete de flores, distribuindo-as em
alguns discretos vasos que circundam o local de preces. Seu
semblante leve e seguro inspira calma e confiança.
- Olá menina Clara. Como vai?
- Olá “seu” Benedito! Estou muito bem! Melhor agora, aliás!
- Estou vendo que realmente está bem melhorzinha. E os seus
amigos, aí? Quem são?
- João e Ana! São nossos novos amigos que vieram conosco lá
das Grutas, quando estivemos por lá com Mestre Caetano...
- Ah, sim! Entendo. Sejam muito bem-vindos, meus irmãos!
- Agradecemos, “seu” Benedito! Eu quis trazê-los aqui, pois
gostaria de apresentar a eles esse recanto de recolhimento. Sinto
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 118 ]
que eles irão, assim como eu, precisar passar alguns momentos
aqui para refletir e orar. Além de que gostaria também que eles
conhecessem o senhor...
- Compreendo, mocinha. Se eu puder ajudar com algo, basta me
dizerem...
- Claro! Não tenha dúvidas! (risos)
- Esses companheiros, “seu” Benedito, foram umbandistas
quando estavam na Terra e...
- .... Chegamos doentes aqui! – Adiantou-se, ansiosamente, Ana.
E estamos confusos por não entendermos ainda em qual condição
realmente nos encontramos e que lugar é esse para onde fomos
trazidos.... Quer dizer, nós já sabemos que desencarnamos.
Sabemos que estamos no “mundo espiritual”. Mas, esperávamos
encontrar outra coisa por aqui...
- Sim...muitos esperam. Eu diria aos amigos, se me permitem, que
esse lugar é o recomeço. O Vilarejo, esse templo, as Grutas, os
leitos do riacho, os campos...São o nosso recomeço...
- Recomeço? Não estou entendendo direito... Mas, tudo bem. –
Interveio novamente, a aflita Ana.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 119 ]
- É natural. Sempre se leva um tempo para começar a clarear
nossos pensamentos e passarmos a compreender melhor essa
realidade que nos cerca.
- Pode ser.…. Pelo menos posso dizer que me sinto bem, estando
aqui. Meu corpo ainda dói. Sinto ainda, de certa forma, as dores
por que passei quando estava doente no hospital da Terra, mas
parece que está diferente agora. Está mais suave...
- São os reflexos e as impressões que ficam no corpo espiritual.
Resquício dos sofrimentos que seu corpo físico passou de
maneira tão intensa. Em breve, vai passar...
- É, “seu” Benedito! Eles ainda estão “se adaptando”! Já falei
disso outras vezes para eles...João? O que foi?
João estava em lágrimas, fitando em silêncio e fixamente as
imagens no altar, perdido em lembranças.
- Nada...me lembrei agora de minha mãe...Como ela deve estar
agora, depois do jeito que “parti”...
“Seu” Benedito afagou carinhosamente o ombro de nosso
companheiro e disse em tom suave:
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 120 ]
- Garoto, a vida é feita de situações que muitas vezes não
podemos compreender ou comandar. Nas despedidas, ficam as
saudades e as memórias, tanto para quem vai quanto para aqueles
que ficam. No entanto, tudo caminha para um novo encontro,
mais a frente, renovado quando nosso amor está mais maduro em
vista das novas experiências a que somos chamados a trilhar. Com
isso, a felicidade futura também é mais intensa. Mais plena.
- É, “seu” Benedito. Mas é que eu...eu sinto muita culpa pela
maneira estúpida e irresponsável em que deixei a Terra. Eu estava
alcoolizado e...
- Não se detenha em detalhes, meu irmão. Não é preciso repisar
seus remorsos a cada instante. Lembre-se: aqui é o nosso
recomeço.... Aproveitem, meus amigos, que estão aqui e façam
uma prece pedindo forças e alívio para seus corações. A
Providência Celeste não nos abandona, em qualquer situação.
Estejam sempre certos! Enquanto isso, vou deixá-los por aqui um
momento, pois preciso terminar de ajeitar as coisas por aqui, tudo
bem? Filhos, fiquem à vontade.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 121 ]
- Pode deixar, “seu” Benedito. Nós vamos ficar um pouquinho
mais por aqui e depois já vamos voltar para o Vilarejo, pois
precisamos descansar.
Após um tempo em que permanecemos por ali, ouvimos a voz de
“seu” Benedito a nos chamar, vindo de fora do espaço destinado
à sala de preces. Saímos para um dos jardins que ladeavam o
Templo e encontramos o nobre amigo ancião, adornando uma
figura de pedra, representando a imagem de Jesus Cristo coroado
com espinhos.
Ao nos aproximarmos, podíamos observar com mais detalhes o
trabalho de um exímio escultor e artesão. A imagem simples
retratava nos traços delicados talhados na pedra, expressão
indizível na face do Mestre Nazareno ao ser coroado com os
espinhos que foram postos por seus verdugos, inconscientes e
enceguecidos.
- O Martírio sublime do Mestre Divino deve nos servir de motivo
para reflexão, meus amigos. Aquele que fora o Homem mais justo
e bom que já andou pela Terra, cuja Luz iluminou as trevas da
ignorância espiritual humana, recebeu em seu testemunho
máximo, uma coroa de espinhos. Há quem diga que a Cruz foi o
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 122 ]
ápice de seu sofrimento. É certo. Contudo, gostaria de refletir com
vocês sobre a Coroa de Espinhos. A coroa que fora posta sobre a
cabeça do Nazareno é um símbolo das dores e angústias humanas,
depositadas sobre Aquele que carregara Consigo uma mensagem
libertadora. Jesus recebe a coroa como um símbolo de escárnio,
ultraje. A mensagem era de desprezo e descrédito. De zombaria e
desconsideração. As maiores chagas e os mais dolorosos flagelos
que alguém pode receber em sua intimidade. Ele os recebeu dos
homens. E ainda assim, tudo suportou com paciência e atitude de
perdão. O sangue que lhe escorria da face e fazia arder os olhos,
devido a maneira bruta em que recebera a coroa ignominiosa,
provocaria em qualquer outro homem um desejo de total
separação e afastamento de tudo que remetesse ao convívio com
outros seres humanos. Ao contrário, Jesus reconcilia a
humanidade com o Divino, colocando-a sob uma nova diretriz e
deixando o caminho de ascensão por meio de seu Evangelho.
Após desencarnar, vítima da crucificação, o Amoroso Rabi desce
às zonas escuras, onde tantos clamavam desesperados e sofridos.
Traz a Luz irradiada de sua Coroa, de suas mãos chagadas e sua
fronte ferida. Sua Luz se espalha por toda uma extensão
inimaginável de regiões sombrias, envoltas na Treva do
esquecimento e da purgação. Raio de Luz que emanava de Si vai
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 123 ]
clareando e trazendo muitas paragens de socorro para próximo
dos sofredores em localidades inóspitas da escuridão. A partir
Dele e da Luminosidade Espiritual que Ele deixou permanente,
surgiram muitas regiões repletadas por Seres Despertos,
comunidades dedicadas ao socorro e alívio, voluntariados e
desejosos de prestarem-se ao acolhimento do próximo e da
renovação do mundo...Você havia me perguntado que lugar é esse
onde você está, não foi, minha amiga? Pois bem, foi assim que
esse lugar surgiu, assim como muitos outros. O Vilarejo, esse
templo, as paisagens daqui. Os Campos. Tudo hoje existe a partir
do Rastro de Luz e Amor que foram deixados pelo Mestre Divino,
Jesus de Nazaré.
Por gratidão a Ele, os primeiros Despertos que aqui chegaram,
fundaram o Vilarejo e os demais espaços de socorro, educação,
trabalho e convivência que desfrutamos.
Em Sua homenagem, meus irmãos, vamos coroá-Lo, mas dessa
vez com uma Coroa de Flores! Vocês me ajudam?
Mais uma vez, estávamos nós em lágrimas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 124 ]
Quem caminha por cima da folha...
“Caboclo não tem caminho para caminhar.
Caminha por cima da folha,
Por baixo da folha,
Em qualquer lugar”.
Aquela manhã tornara-se diferente e especial para mim. Após o
encontro da tarde anterior com o “seu” Benedito, sentia-me
envolvida por um sentimento indefinido, embora percebesse que
eu me encontrava suave... Era como se minha visão a respeito
dessa dimensão onde estou tivera se tornado mais clara.
Compreender que a existência de um Ser Sublime foi tão
grandiosa a ponto de transformar as paisagens do Mundo
Espiritual próximo à Terra, fez com que uma enxurrada de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 125 ]
pensamentos e ideias despontassem dentro de mim, produzindo
uma gostosa inquietação.
Ao mesmo tempo, conviver com esses amigos especiais.
Personalidades simples, repletas de sabedoria e história sobre a
vida e esse “novo mundo” em que me via. E quanta coisa ainda
devia me aguardar pela frente.
Após as atividades de trabalho e aprendizado, ao longo do dia,
estávamos sendo aguardados por Mestre Caetano para uma nova
oportunidade de observação e integração na dinâmica que
envolvia a comunidade do Vilarejo. Iríamos acompanha-lo para
junto de um novo local, ainda desconhecido para nós – os mais
novos do grupo -, em que poderíamos colaborar com os
acontecimentos que ali experienciaríamos.
- Olá, meus amigos. Como vão? Todos bem? Espero que sim!
Saudou-nos jovialmente, Mestre Caetano.
Sob a nossa resposta uníssona e nossos acenos de que todos nos
encontrávamos tranquilos e ansiosos pela nova jornada, o
professor amigo adiantou, sem demora:
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 126 ]
- Pois bem! Já que estamos todos bem, partiremos agora mesmo
para o compromisso que nos aguarda. Pelo caminho, explicarei
ao grupo sobre nossa excursão. Vamos!
Partimos, então, por uma trilha aclarada por pequenos lampiões
que se estendiam desde os limites do Vilarejo para dentro de um
corpo de mata que se ia adensando, a pouco e pouco, conforme
mais nos embrenhávamos por ali.
Era ainda o término do entardecer. A penumbra começava a
envolver as claridades do dia, e um número cada vez mais
cintilante de estrelas prenunciava o surgimento de mais um belo
anoitecer naquele Recanto.
Em dada altura de nossa caminhada, cessaram as luzes que nos
acompanhavam e nos deparamos com uma entrada bastante
sombria, por entre um denso corpo de arbustos frondosos. A
escuridão causou, por instantes, um início de temor em muitos de
nós, o que não se prolongou por muito tempo, em vista da
segurança e destemor sereno que se estampava no semblante de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 127 ]
Mestre Caetano, o qual prosseguia, apesar de nossa relutância, em
direção à entrada repletada de breu.
- Vamos, meus amigos! Em frente! Não temam a travessia.
E, passo contínuo, entrou pelas sombras, deixando-nos atrás de
si. Aproximei-me da entrada e, como se fosse cair por um abismo,
dando passos no vazio, lancei-me pela escuridão, tateando....
Sabia que ante o meu gesto, outros se encorajariam a seguir-me.
Mas, conforme avançava, via que o breu parecia ceder ante uma
luminescência indefinida que envolvia aquela atmosfera
purificada. Os sons do ambiente, que antes me pareciam
ameaçadores, com sibilos de cobras e gritos de aves noturnas,
agora suavizam, dando lugar ao som límpido de uma corrente de
água que fluía calmamente, entoando algo como um mantra em
tonalidade contínua, produzindo uma sensação de despertamento
e aguçamento de minhas percepções. Passei a ouvir cantos suaves
de aves canoras. Folhas verdejantes e avermelhadas caiam em
profusão, tal como chuva, sobre nós.
A claridade parecia aumentar, somada aos odores suaves de
folhagens umedecidas pelo gotejo cristalino do sereno da
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 128 ]
madrugada, nos transportando para uma dimensão nova e, ao
mesmo tempo, tão próxima àquela em que se encontra o Vilarejo.
Sentia-me como naquela oportunidade em que, também com
Mestre Caetano, via-me tanto na dimensão espiritual, quanto em
meio àquele terreiro, no plano físico. Como se minha consciência
pudesse tocar, de maneira lúcida, duas realidades ao mesmo
tempo tão distintas e tão integradas.
Ao prosseguir um pouco mais, raios dourados de amanhecer
envolviam as paisagens por onde transitávamos e, claramente,
nos apontavam o caminho a tomar.
Não dava conta do quanto caminhamos ou da passagem do tempo.
Mestre Caetano seguia a frente como Guia e o acompanhávamos.
Mas não havia cansaço, senão um turbilhão de sensações e
pensamentos que se iam ordenando dentro de mim. Relembrava
vários episódios de minha vinda para o Vilarejo, minha
desencarnação, várias passagens importantes de minha história
pessoal ao longo da minha vida na Terra. Ia além. Via imagens de
outros tempos passados e, embora, aparecessem rostos e figuras
estranhas para minha memória imediata, sabia no fundo e de
modo indescritível que aqueles quadros representavam
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 129 ]
personalidades minhas em outras encarnações. E tudo parecia se
encaixar numa ordenação coerente e profundamente confortável.
Mais uma vez, um sentido de paz e plenitude apoderava-se do
meu interior.
Tal como se me reconhecesse em um sonho desperto, vi surgir
em meio ao caminho que se encerrava numa abertura, no alto de
uma montanha, um peculiar e belíssimo conjunto de construções
em formato circular, cujos telhados eram cobertos por estruturas
que lembravam folhas ou palhas espessas de cor arroxeada. Suas
bases eram erigidas sobre constructos lineares de cor amadeirada
e que pareciam amarrados por algum tipo de corda ou cipó. Não
possuíam portas.
As construções se distribuíam ao redor da montanha pelo alto, de
onde viéramos, e nos pés desse novo e encantado Vilarejo,
repousava uma piscina natural e extremamente azul, espelhando
o céu, acima de nós, alegrado por revoadas de pássaros.
Fomos recebidos por três guardiões daquele lugar. Expressavam
autoridade e suavidade em seus semblantes. Traziam marcas
características, embora discretas, em seus rostos e mãos. Não
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 130 ]
portavam armas de qualquer tipo. Vestiam-se com trajes que
lembravam túnicas simples e de cores claras. Falavam com
Mestre Caetano em um modo que não consegui compreender. No
entanto, o sorriso cordial e afetuoso que dirigiram a nós, após o
primeiro contato com nosso tutor, simbolizava nossa acolhida por
parte dos novos confrades.
- Meus amigos, sigamos com eles! Orientou-nos, Mestre Caetano.
Nossos anfitriões nos aguardam para o início das atividades.
Fomos conduzidos pelos corredores que interligavam aquelas
construções até adentrarmos naquela de maior tamanho.
Chegamos a um grande salão circular, onde já se encontravam
várias pessoas sentadas em silêncio, como se estivessem em
meditação ou oração. Assim como o formato sugerido pelo salão,
essas pessoas também se dispunham sentadas em círculos, como
se não houvesse um sentido de hierarquia entre os que ali
estavam. A mensagem era a de que a responsabilidade daquele
momento pertencia igualmente a todos. Somente podíamos
observar é que havia um círculo entre os demais, composto por
indivíduos de semblante amadurecido, que pareciam mais velhos
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 131 ]
(depois eu vim a saber, tratava-se do conselho dos Morubixabas
da Aldeia Itaguaçu). Curioso notar que atrás desses senhores,
sentavam-se os adultos e, à sua frente, os jovens e crianças.
Fomos convidados a nos sentarmos nos círculos de dentro, à
frente dos mais velhos, junto dos jovens. Mestre Caetano
permanecia conosco e, em seguida, vimos que um membro do
círculo dos Morubixabas ergueu-se e caminhou em nossa direção.
De braços abertos, sorria amplamente para todos nós. Saudou-nos
de maneira breve, mas muito afetuosa. Voltou-se para Mestre
Caetano e agradeceu a ele por nossa presença.
Sem demora, fez um gesto para os demais e iniciou a atividade a
que fomos chamados a presenciar. Cânticos começaram a ser
entoados. Falavam das matas, dos segredos da Natureza, do valor
da Vida e da Comunidade. Exaltavam a Divindade.
Enquanto os cânticos ocorriam, pude notar que em torno de nós
havia muitos vasos iguais àqueles que recebêramos, repletos do
líquido retirado daquele trabalho no terreiro de Umbanda que
presenciáramos. Eles estavam adornados ali por flores, fitas e
outros elementos que não saberia descrever, como se estivessem
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 132 ]
sendo preparados, tal como remédios e tinturas obtidos pelo
processo fitoterápico.
Em seguida aos cânticos, potes de argila preenchidos com ervas
secas foram trazidos e pequenas brasas foram depositadas em seu
interior, fazendo as ervas queimarem produzindo leve fumaça, a
qual exalava aromas agradáveis, enquanto iam sendo sopradas ao
longo do recinto e, depois disso, tais potes foram deixados sob
cada uma das quatro entradas que o salão possuía.
A um aceno, o silencio retornou. A figura altiva daquele nobre
senhor dirigiu um olhar para o alto e para todos ao redor. Com as
mãos postas, iniciou:
- Irmãos, agradecemos a todos por mais esta oportunidade de nos
reunirmos em nome do Divino. Congratulamo-nos pela presença
amiga de todos nesse dia!
Hoje é dia de grande alegria para nós. Nossa Vila de Itaguaçu
recebe com honra e satisfação os companheiros dos Vilarejos que
nos avizinham, como o Vilarejo da Imaculada Conceição,
Trindade, Itacuruçá, Nossa Senhora da Piedade, Mirim e São
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 133 ]
João Batista, para confraternizarmos e apresentarmos os nossos
irmãos que assumiram o compromisso junto aos encarnados na
Terra, frente às Sagradas Leis de Umbanda.
Por favor, apresentem-se, nobres companheiros!
Iniciou-se a entrada de uma pequena procissão, acompanhada de
palmas ritmadas e cantigas que davam a mensagem de
apresentação e confirmação de propósitos daqueles que ali
estavam recebendo a distinção.
Pude reconhecer naquele grupo, a figura da Veneranda Entidade
que recebera Mestre Caetano naquele terreiro que visitamos. Ela
parecia acompanhar, assim como outras Entidades Iluminadas,
um grupo de três espíritos trabalhadores apresentados ao centro
do círculo.
Todos os que ali estavam sendo distinguidos, vestiam-se com
batas de cor branca e discretos colares cristalinos de cores
diferentes. Na cabeça, usavam algum tipo de tiara ou faixa feitos
de tecido ou algum outro processo artesanal. Seguravam nas
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 134 ]
mãos, potes transparentes esculpidos em pedras brilhantes, as
quais já havia visto anteriormente no Vilarejo.
- Irmãos, queremos saudá-los e distingui-los em seu mérito pela
dedicação e compromisso nessa empreitada de Amor e
Responsabilidade que vocês já desenvolvem há mais de três
décadas, junto às comunidades religiosas com quem
compartilham de suas experiências, paciência e compreensão,
neste trabalho anônimo. Recebam de nós as felicitações e
agradecimentos pela maneira operosa e serena com que todos
vocês têm procurado tutelar e engrandecer as almas dos filhos de
fé que batem às portas dos templos onde os companheiros
mourejam, ou mesmo daqueles que, desconhecedores ou
descrentes de sua existência, rogam apelos para o Céu, pedindo
ajuda e alívio para os sofrimentos de suas vidas. Nenhum deles
sabem ou saberão quem os irmãos foram ou o nome que tiveram
quando encarnados. O trabalho anônimo, velado pela gratidão à
Vida e a plenitude pelo servir é que coroa e abençoa o íntimo de
cada um de vocês. É isso que, em verdade, amplia cada vez mais
a Luz que cada um de vocês irradia. Rogamos a Tupã e todas as
suas Manifestações que envolvam vocês, hoje e sempre!
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 135 ]
Alguns jovens retiraram, então, daqueles potes que permaneciam
distribuídos pelo salão, o líquido suavemente aromatizado, tal
qual essência terapêutica e o despejaram nos potes menores que
cada um dos irmãos traziam consigo. Os colares e as tiaras que
traziam, foram retirados e também foram imersos no líquido dos
potes. Mais uma vez, cânticos harmônicos eram entoados. Por
fim, o irmão que Dirigia a Celebração solicitou que os
representantes de cada Vilarejo se dirigissem ao centro onde
estavam os companheiros que passavam pelo Rito de
Confirmação. Vi, nesse momento, Mestre Caetano tirar de dentro
de sua algibeira, aquela pequena urna onde havia guardado a
pedra cintilante que outrora recebera e a estender em direção aos
três espíritos que eram acompanhados pela Veneranda Senhora.
Sob a orientação do Nobre Espírito, os três estenderam as mãos
em direção ao Mestre Caetano e tocaram ao mesmo tempo a
pedra. Percebi que os demais grupos faziam gesto idêntico,
embora parecessem utilizar objetos distintos.
As Luminosidades pareciam se intensificar e se espalharem por
todo o ambiente, o que passou a promover uma comoção na
plateia que presenciava tão bonito rito. Mais uma vez, sentia
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 136 ]
como se o Plano Divino se aproximasse de nós naquele instante,
elevando de maneira indelével aquele ambiente.
Nesse momento, os demais membros do conselho Morubixaba
daquela Aldeia de Itaguaçu também se levantaram e, junto com
as Entidades Venerandas que tutelavam aqueles Mentores de
Umbanda, pareciam se transfigurar em espectros iluminados que
irradiavam em direção ao Céu, destituídos totalmente de qualquer
forma que os permitiria reconhece-los como seres humanos.
Ouvíamos somente a voz do Mentor, agora transfigurado, a qual
parecia soar dos quatro cantos:
- Vão de regresso aos Templos da Terra! Retornem ao convívio
dos doentes, aflitos e desesperados! Envolvam em seu amor e
compaixão aqueles que nunca saberão os seus nomes, mas que
necessitam da Providência Divina que a partir de hoje passará a
se manifestar por seu intermédio! Plantai as sementes da
esperança e da força interior no coração dos homens! Protejam
com sua influência benéfica os pequenos, os injustiçados e
marginalizados!
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 137 ]
Irradiem suas Luzes e Essências que hoje passam a estar
diretamente sob seu comando e influência por sobre todos os que
imploram por um momento de Paz e Consolação!
Tragam para junto de si os espíritos que sofrem e estertoram nas
sombras! Estendam suas mãos antes seus apelos! Derramem o
bálsamo em suas feridas. Deem um caminho para os que tateiam
cegos na escuridão!
Vão! Agora vocês são Arautos das Leis Divinas!
Retornávamos às percepções habituais. Aquele estado ampliado
de percepção a que nos fora dado, ia desfazendo-se. Passei a
sentir-me de “corpo inteiro” ali. Antes, parecia que havia deixado
as impressões corpóreas para trás e passara a existir tão só a
minha mente navegando entre aquele turbilhão de luzes
cintilantes e energias incomensuráveis, provocado pelas
transfigurações daquelas Entidades Venerandas, que se
apresentavam para mim como verdadeiras Divindades. Seriam
eles aqueles seres “Despertos” mencionados pelo irmão
Benedito?
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 138 ]
Mestre Caetano estava próximo de nós novamente e sequer
havíamos notado, quando ele me tocou o ombro delicadamente e
nos informou sobre nosso retorno imediato para o Vilarejo.
Caminhamos para a saída da Vila Itaguaçu. Recebemos abraços
amigos e nos despedimos. A volta parecia bem mais suave e
menos demorada que a jornada de ida. Meus pés pareciam flutuar.
Breves instantes estávamos todos chegando à entrada de nosso
Vilarejo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 139 ]
Encante de Mar
“Quando fito o Mar,
Suas ondas. Seu tempo.
Esse ir e vir que me encanta.
Esqueço de mim.
Peço a estas vagas
Que se me abeiram:
Não me deixem ver, não!
Os mistérios que as águas ocultam”
Após nossa última “aventura” fora do Vilarejo, passamos um
tempo considerável dedicados às atividades cotidianas da
comunidade. Com isso, foi possível também a nós conhecermos
um pouco mais sobre nossa atual morada. O Vilarejo da
Imaculada Conceição, conforme citado pelo Mentor naquela
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 140 ]
oportunidade. Isso me fez compreender também o porquê daquela
imagem belíssima sob a cachoeira que visitamos quando de nossa
visita às Grutas de Socorro e Tratamento dos nossos irmãos.
João e Ana prosseguiam conosco, cada vez mais deslumbrados,
tal como eu, com o que viam e aprendiam, agora que estavam
melhor adaptados e menos ressentidos de sua condição nesse
“novo mundo” em que nos encontrávamos. Nesse momento,
estavam eles estagiando com outros grupos de trabalhadores, ora
nos campos de cultivo, ora auxiliando no preparo artesanal de
utensílios e medicações da comunidade, ora visitando os
enfermos recém-chegados às Grutas. E foi lá na Grutas que eu os
reencontrei, acompanhada por Mestre Caetano e companheiros de
aprendizado e trabalho.
Procurávamos por um irmão, em particular. José. José Aparecido
Magalhães Costa, seu nome completo enquanto vivera na Terra.
Agora, apenas uma sombra triste do que já tivera sido, enquanto
a juventude conferia a si forças e vigor. Fora um militar de caráter
irascível e violento, conforme observara Mestre Caetano. José
acreditava que somente o ímpeto da coerção e da punição física
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 141 ]
era o instrumento capaz de “dar jeito” naqueles com quem ele
lidava no seu dia-a-dia de trabalho.
Em suas abordagens nunca relutava em utilizar métodos de
agressão para interpelar “suspeitos”. José e seus companheiros já
haviam, inclusive, provocado a morte e a hospitalização de várias
pessoas, devido às torturas que empregavam para obter as
delações dentro das “favelas” e “cortiços” onde realizam suas
rondas.
Foi assim que sua história cruzou com a de Marcelo, o rapaz que
fora socorrido por Dona Izaldina. Quando Marcelo contava 16
anos de idade, em uma “batida” realizada por José e mais dois
policiais, fora arrastado, com seus quatro amigos, para uma viela
escura. Os rapazes foram espancados e torturados até
“entregarem” o que estava sendo exigido pelos truculentos
policiais. Três dos cinco meninos foram mortos, porém Marcelo
e outro amigo conseguiram escapar após fingirem estarem
mortos.
O que José não contava, nem seus comparsas, é que os dois
rapazes viriam, meses depois, testemunhar em um julgamento
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 142 ]
promovido pela ação da Corregedoria da Policia Militar, após
denúncias realizadas por veículos da mídia, ocasionando uma
grave mobilização social contra as ações do grupo de
“justiceiros”, ao qual José pertencia. O resultado do julgamento
custara a José sua expulsão da corporação militar e uma dolorosa
prisão, cuja “desonra” o orgulhoso e equivocado José, que se
entendia um defensor da paz e da sociedade, não fora capaz de
suportar, cometendo suicídio dentro do próprio cárcere, contando
com a ajuda de um “amigo” inconsequente.
Após acordar no lado das sombras, sentindo as dores lancinantes
na cabeça e o barulho enlouquecedor do estampido da arma de
fogo com que dera cabo da própria existência corpórea, José
lançou-se atormentado em meio aos Vales Sombrios, gritando o
nome de Marcelo, aquele a quem culpava pela sua desdita. Três
anos vagou em indigência e loucura pelas plagas do desespero e
da revolta, preso à ideia fixa de se vingar do rapaz, sem sequer
perceber que estava sendo induzido pelo envolvimento de seres
da escuridão que o manipulavam e de seu ódio se alimentavam,
como mais uma alma perdida em suas hordas. Até que um dia,
após episódio de intenso desespero e tormento, sucumbiu em
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 143 ]
estado similar à catalepsia, despertando muito tempo depois, na
casa de Marcelo... O resto da história, nós já conhecemos.
No entanto, agora era chegado o momento da renovação. Do
recomeço, conforme gosta tanto de repetir, “seu” Benedito. E
para isso estávamos ali. Mestre Caetano havia sido enviado pelos
anciões do Vilarejo, após o pedido dos Mentores responsáveis
pelas alas de tratamento das Grutas.
A condição na qual José se encontrava exigia, segundo o que nos
fora dito pelo irmão Paulo, líder do grupo dos socorristas e
terapeutas responsáveis pelo caso do irmão sofredor, cuidados
específicos que ali não seria possível administrar-lhe, dados os
recursos de que dispunham. Sendo assim, nossa caravana
objetivava transportar José para um novo lugar, onde poderia
receber a continuidade de seu tratamento.
Assim, partimos, naquele amanhecer, transportando o
companheiro que se encontrava envolto em uma espécie de
sudário que lhe cobria por inteiro, conservando-o dos olhares em
torno de seu estado de enfermidade e convidando-nos ao respeito
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 144 ]
e silêncio, cabendo-nos a oração em rogativa pela sua melhora e
reerguimento diante das Leis da Vida.
Mais uma vez, Mestre Caetano prosseguia na frente, orientando-
nos o rumo. Seus passos firmes e o olhar lúcido preenchia-nos
com suave confiança e prazer em nos desincumbir da tarefa a que
fôramos chamados.
Pude notar que nosso enfermo era transportado sem maiores
dificuldades, tal como se o peso de seu corpo, em conjunto à lei
da gravidade, fosse facilmente contornado. E, naturalmente, era.
Esqueço-me, ainda com frequência, que nossa dimensão possui
leis diferentes daquelas do lado físico. A maca simples em que o
enfermo era transportado levitava suavemente, sob o comando
mental de Mestre Caetano. E, novamente, pude observar-me
também como a flutuar, vencendo a resistência oferecida pelo
meu corpo astral, e compreendia que esses fatores eram
suplantados pela irradiação mental do Querido Benfeitor, em
conjunto com outros irmãos trabalhadores mais experimentados,
os quais nos acompanhavam na caravana.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 145 ]
Após superarmos as distâncias que nos levavam a cruzar o
Vilarejo em sentido oposto ao das Grutas, passamos por caminhos
novos, mais uma vez, desconhecidos para mim.
Diferentemente das trilhas que nos levaram a conhecer a Aldeia
Itaguaçu, repletas de vegetação densa e passagens íngremes e
escuras, agora parecia o nosso caminho se desenhar em contornos
mais amplos, alternando entre formações rochosas adornadas por
árvores de regiões serranas. Adentrávamos a serra do mar. Podia
ver pequenas, mas variadas, quedas d’agua que se derramavam
por entre os rochedos formando arco-íris em seu entorno. Curioso
também é que esses arco-íris possuíam formas que se fechavam
em circunvoluções que se moviam e vibravam, exibindo uma
policromia mais abrangente que a paleta de cores que formam
esse mesmo fenômeno na Terra.
Continuamos por entre o caminho da serra até que pudemos
vislumbrar a imensidão de um mar de ondas calmas, tocando areia
branquíssima, enriquecendo ainda mais a visão daquela linda
imagem de praia deserta.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 146 ]
Descemos e tocamos nossos pés naquela areia que emanava um
calor agradável. A brisa parecia purificar-nos interiormente. A
contemplação do horizonte, abrangendo a linha tênue pela qual
Céu e Mar se tocavam, traduzia em mim um sentimento profundo
e inexpressível de ordem e transcendência.
Mestre Caetano acenou para que ficássemos ao redor de si,
formando um círculo. Em seguida, dirigiu-nos algumas palavras
elucidativas:
- Amigos, fomos convocados para essa tarefa de auxílio aos
nossos companheiros das Grutas para ajudarmos no tratamento
do nosso irmão José, conforme todos já sabem. A partir daqui,
iremos entrar em um novo local, tido por nós como Sagrado e,
por isso, precisamos da máxima postura de respeito e reverência
de nossa parte. Conto com o compromisso e a disciplina de todos
para que possamos realizar o transporte desse nosso amigo, da
maneira menos dificultosa possível, dado a delicadeza da
operação que iremos iniciar. Mantenhamo-nos concentrados e em
oração.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 147 ]
Mestre Caetano solicitou ajuda do grupo destacado de irmãos
trabalhadores que nos acompanhavam, os quais se colocaram à
nossa frente, voltando-se de frente para o mar e, após, uma breve
prece, eles passaram a caminhar lentamente e de modo
sincronizado, junto com o nosso Amigo Orientador, em direção
às ondas, no que foram seguidos de perto por nós outros.
Estávamos atônitos e seguíamos caminhando mar adentro. Sentia
a água do mar, sua sensação característica. Mas esta não molhava
meu corpo. Comecei a entender que estávamos em algum ponto
muito próximo da dimensão física e aquela passagem por onde
estávamos trilhando encontrava-se em uma localização imediata
a alguma região litorânea no plano físico. As duas dimensões se
interpenetram de maneira mais intensa nestes pontos naturais.
Prosseguimos por entre as águas. Andávamos em frente, até que
em dado momento a superfície do mar parecia encobrir-nos há
vários metros. E continuávamos, mas agora a sensação era como
a de estar circundada por uma estranha corrente de ar gélida e
intensa, a qual passava por mim continuamente num fluxo
vigoroso. Sentia que aumentava a dificuldade em prosseguirmos
por uma distância maior daquela que já havíamos atingido. A
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 148 ]
comunicação entre nós estava totalmente anulada. Porém,
imagino que Mestre Caetano e outros colaboradores conseguiam
ainda estabelecer contato devido às suas já aprimoradas
habilidades mentais.
Detivemo-nos em um determinado ponto. Eu não conseguia
perceber ou identificar a presença de peixes ou outros seres
marinhos. Claridades e sombras se entrelaçavam ao nosso redor
e era tudo o que eu podia e conseguia ver. Somente a intensidade
do fluxo etérico da água do mar, em sua forma elementar, é o que
nos envolvia e se impunha a nós. Reconheço com grande clareza
que certamente só estávamos ali devido a companhia dos
Mentores Amigos, que seguiam à frente do Grupo com a
autorização vinda de planos mais altos e a habilidade adquirida
nesse tipo de trabalho.
Pude, então, notar a aproximação de seres que não possuíam
formas humanas, mas que as assumiram ao se aproximarem
lentamente de nosso grupo. A uma distância maior, pareciam
pequenos pontos de luz vindo em nossa direção. Ao se
aproximarem, todavia, foram expandindo seu tamanho e
assumindo forma corpórea. Não era possível ver-lhes as faces,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 149 ]
devido a luminosidade que exibiam. Alguns pareciam ter formas
femininas, outros sequer era possível identificar qualquer gênero
que os vinculasse a espécie humana. Em verdade, conforme eu
soubera depois, eram seres que estavam distantes das expressões
humanas, seja por já terem-nas superado há milênios, seja por que
há os que ainda irão passar pela experiência humana. Fato é que
essas consciências não travam contato direto com a mente
humana. Sua realidade dimensional está velada ao contato e ao
intercâmbio com o mundo dos homens, embora coexistam em
regime de silenciosa cooperação. Limitam-se a cumprir o
desiderato a que estão vinculados pela ordem das Leis Espirituais
e Naturais. Acolher, tratar e restituir a forma perispiritual dos
seres que lhes chegam, assim como José, inconscientes e
recrudescidos, em formações degeneradas de seu corpo espiritual.
Seus enfermos entram em seus domínios totalmente
inconscientes e desvitalizados, são tratados e, da mesma maneira
que entraram, são devolvidos às suas dimensões naturais, sem
guardar qualquer recordação dessa realidade dimensional, a qual
nesse momento não somos capazes de captar e compreender.
O grupo de “seres encantados” recebeu o corpo inerme e
involuído daquele que fora José e, delicadamente, foram
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 150 ]
retornando às profundezas, em um gesto de respeito e reverência
a nós, ao que também nos sentimos compelidos a corresponder.
Nesse momento, os Encantados já haviam assumido novamente a
forma de pequenas luzes, retornando ao seu Lar nas profundezas.
Retornamos com Mestre Caetano e os demais para a praia.
Repisamos a areia branca e quentinha, a nos recarregar e
reconduzir, aos poucos, ao nosso estado natural. Estávamos
entretidos, compartilhando entre nós as nossas percepções sobre
essa nova experiência quando fomos chamados pelo professor:
- Meus amigos, vejam isso! Disse, apontando na direção do mar.
Ao nos voltarmos na direção indicada pelo Benfeitor, reparamos
uma grande formação que parecia emergir das águas a uma
relativa distância de onde nos encontrávamos. Algo que se
assemelhava a uma construção em formato piramidal, constituída
de paredes translúcidas. Parecia agora levitar sobre a superfície
do oceano. Girava de forma lenta e parecia absorver elementos
contidos na água, na atmosfera ao seu redor, assim como a
radiação solar, enquanto um halo dourado formava-se em todo
seu redor, concluindo com uma linha de luz que passou a irradiar
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 151 ]
de seu topo em direção ao Céu. Assim permaneceu por alguns
instantes até submergir e desaparecer nas águas.
Enquanto eu estava ali, surpresa e imóvel, outros amigos
disseram haver notado que formas idênticas àquela construção
haviam emergido em outros pontos do mar.
“Permanece velada a nós essa dimensão em que habitam esses
seres”, afirmou Mestre Caetano. E prosseguiu:
“Estes irmãos são capazes de produzir obras portentosas com o
fruto de suas construções mentais, funcionando como verdadeiros
portais entre a Dimensão Natural e a Dimensão Divina, pelas
quais elas transmutam e renovam os recursos etéricos que
garantem a vitalidade da Natureza e, consequentemente, a
conservação da vida planetária.
Estamos, indubitavelmente, muito longe de conhecer o tamanho
de sua importância para o equilíbrio interdimensional, assim
como qual a extensão real de sua obra em nome das Leis Divinas
e Naturais.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 152 ]
De nossa parte, resta-nos somente respeitá-los, reverencia-los,
colaborando com sua obra grandiosa e inacessível a nós,
oferecendo o equilíbrio de nossas projeções mentais e - porque
não? –, admirar esses verdadeiros espetáculos que a condição de
espíritos desencarnados hoje nos proporciona, não é?
Oremos antes de nosso retorno, meus irmãos”.
Emitimos nossas preces em silêncio e recolhimento.
Era entardecer. Um belo entardecer.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 153 ]
Bandeira Branca de Umbanda
“Flâmula Divina
Tremulas altaneira
Enlevada pelas carícias dos ventos
E dos raios de Sol.
Símbolo da paz e da união.
Totalidade que congrega.
Somos uma e muitas.
Almas que ao Pai se elevam”.
Entardecia. E corriam em minh’alma pensamentos céleres.
Memórias cândidas perdidas em meu silêncio, enquanto
repousava-me à margem do meu adorado riacho. E as flores
voltavam a preencher-lhe as águas de margem a margem.
Delicadas. Luminosas. Perfumadas... Como minha mãezinha....
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 154 ]
Onde ela estaria? Conquanto sentia-me bem e confortada junto
daquelas almas amigas, faltava-me o calor de seu abraço e o
aconchego de sua presença. Lágrimas saudosas molham-me o
rosto.
- Clarinha! Clarinha! – Ouvia a voz infantil de um dos pequenos
daqui a me retirar dos devaneios em que me perdia -. Clarinha!
João e Ana estão procurando por você! Irmão Caetano está
chamando vocês! Venha!
Levantei-me, sem demora. Qual seria a nova jornada que nos
aguardaria?
Pelo caminho até o centro do Vilarejo, encontrei João e Ana.
Fomos todos ao encontro do Benfeitor que nos aguardava.
Ao chegarmos, Mestre Caetano encontrava-se acompanhado dos
Anciões da nossa comunidade. Conversavam em tom leve e
jovial, quando nos avistaram e nos receberam em seu grupo de
semblantes abertos e sorridentes.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 155 ]
- Como vão, meus amigos? Todos estão bem? Iniciou o Amigo
Orientador, enquanto sinalizava para que todos se colocassem em
forma de círculo, de maneira que todos pudessem se ver e
interagir.
- “Queremos solicitar a colaboração do grupo de amigos
trabalhadores de nossa comunidade no que se refere ao auxílio
em algumas atividades, para que possamos organizar nosso
Vilarejo para receber uma caravana de Almas Queridas para nós
que virão nos visitar, na próxima noite.
Eles veem de longa jornada e repousarão conosco antes de
seguirem com sua missão. Para nós, é sempre uma grata
oportunidade recebermos estes irmãos, uma vez que tal evento só
ocorre a cada 7 anos, se considerarmos o tempo da Terra, de onde,
eles estão vindo em procissão, trazendo consigo uma série de
experiências e almas que deverão ficar conosco, abrigadas em
nosso carinho e solicitude gratuitos.
Iremos destacar alguns irmãos que já conhecem as atividades que
deveremos realizar para prepararmos a recepção dos
caravaneiros. Eles irão lidera-los em pequenos grupos. Ana, João
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 156 ]
e Clara, vocês ficarão com o amigo Marcos. Ele irá transmitir a
vocês as orientações acerca do trabalho que vocês deverão
realizar. Sigam com ele”.
Marcos era um jovem senhor que aparentava uma idade humana
em torno dos 40 anos. Esguio e com olhar tranquilo, era
conhecido por todos na comunidade por conta de seu
comportamento gentil e dedicado às tarefas do Vilarejo. Havia
sido médico e professor universitário enquanto vivera encarnado
e deixado a vida corpórea após um tumor agressivo ter ceifado-
lhe as energias em curto período de tempo após sua descoberta,
obrigando-o a partir para a Aruanda Infinita, deixando esposa e
dois filhos ainda infantes. Conforme ele mesmo nos revelara, a
chegada ao mundo espiritual e sua adaptação ao Vilarejo foram
muito dolorosas para si, no entanto, a paciência e o carinho de
Mestre Caetano e dos Anciões, foram o bálsamo de que precisava
para aceitar a nova condição que a vida tivera lhe chamado e
agora, passados vários anos desde sua partida da Terra,
encontrava-se confiante e seguro, além de já ter a oportunidade
de visitar os filhos e esposa, por algumas vezes, em companhia
de Mestre Caetano.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 157 ]
Conduzimo-nos, então, para a área alumiada pelas lamparinas,
em direção ao riacho. Agora deveríamos nos focar no trabalho a
fazer. Marcos havia nos orientado a buscar algumas ramagens e
folhagens na beira do riacho, pois estas seriam utilizadas na
confecção de objetos que fariam parte do momento da celebração
na chegada da Procissão dos Peregrinos, nossos visitantes.
No entanto, as folhagens que deveríamos obter somente poderiam
ser retiradas ao anoitecer. Toda a fauna e flora que compõe a
Natureza em nossa dimensão obedece a ciclos e ritmos que não
devem ser desrespeitados e, portanto, o sistema de Vida de nossa
comunidade estava construído sobre uma relação de sacralidade
entre as almas humanas e o espaço natural que nos cerca. Lição
que a civilização terrena ainda precisa aprender!
Colhemos, junto de irmão Marcos, as folhagens das quais
brotavam pequenas flores em forma de trevo, em cor azul escura.
Exalavam um aroma cítrico, algo amadeirado que se espalhava
por todo o ar, inebriando o perfume.
João, Ana e eu carregamos as folhagens para o centro do Vilarejo
e as depositamos ao lado da grande Pedra Angular, conforme o
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 158 ]
ritual cotidiano de partilha dos bens da comunidade, ao qual já
estávamos habituados.
Vi que não somente nós, mas também outros traziam elementos
diversos. Sementes, seixos, varapaus, fitas, cordões, líquidos
aromatizados, cereais, vasilhames, contas brilhantes, tecidos,
entre outros. “Seu” Benedito viera acompanhado de alguns
jovens trazendo imagens esculpidas, fruto de suas mãos de
artesão. Também as colocara em meio à partilha das ofertas.
Encontrava-se emocionado pela ocasião da vinda dos Peregrinos,
conforme relatara aos Anciões e ao Mestre Caetano.
Após o término desse momento de entrega dos elementos que
cada grupo se encarregara de obter, reunimo-nos em torno destes
e fomos conduzidos pelos Anciões a proferir tocante prece. Atrás
de nós, ouvimos o som envolvente de instrumentos de cordas
sendo executados por alguns dos Anciões, acompanhados por
jovens e mulheres. Além de violas e violões, instrumentos
percussivos e de sopro compunham uma orquestra popular muito
bem ensaiada.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 159 ]
Comecei a me lembrar das vezes em que, na Terra, pudera
presenciar apresentações das Congadas em festas devocionais
populares. Dançávamos. Cantávamos. Encantávamo-nos.
Encantávamos o que ali entregamos...
Envolvia-me em um sentimento de profunda alegria e gratidão,
enquanto aquelas mãos amigas seguravam as minhas e me faziam
girar, suavemente. Enlevada por sensações agradabilíssimas,
contemplava o céu e via um luar belo. Não nos preocupamos com
o passar do tempo. Olhava os elementos que compunham a
partilha e percebia que esses emitiam luminescências cada vez
mais irradiantes, conforme as vibrações e as entonações
transmitidas pelos instrumentos e as vozes que cantavam. Da
mesma forma, eles também respondiam às preces que
proferíamos ou mentalizávamos, quando solicitadas pelo Ancião.
Já era, então, o amanhecer. O véu de estrelas ia se dissipando,
enquanto as luzes do Sol iam vencendo as distâncias celestes,
construindo a aurora. Extasiada, eu olhava os rostos de João e Ana
que estavam visivelmente emocionados com tudo aquilo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 160 ]
Novamente, o irmão Marcos nos chamou a dar continuidade em
nosso trabalho, auxiliando agora nas tarefas de decoração do
Vilarejo e na confecção de alguns dos objetos que fariam parte da
celebração daquela noite.
Passamos todo o transcurso do dia estendendo fitas e bandeirolas,
as quais cruzavam toda a extensão da área central do Vilarejo. Os
casebres todos enfeitados.
As esculturas de “seu” Benedito continuavam ao lado da Pedra
Angular e estavam agora adornadas por fitas e enfeitadas por
arranjos de flores, folhagens e contas brilhantes, encimadas em
andores que foram preparados com varapaus e cordões. Juntos
das imagens, também estavam sendo depositados cestos repletos
de pães, vasilhames com caldos e jarros com sucos.
O Vilarejo estava enfeitado para um importante acontecimento.
Clima de festividade e fé predominava. E, junto disso, uma
grande paz e tranquilidade em todos. Parecia até que a Luz de um
Anjo estava descendo das alturas até nossa humílima
comunidade.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 161 ]
Tudo já se encontrava pronto no final do entardecer. Todos já
estavam no centro do Vilarejo, tomando todas as passagens.
Expectativa.
Ouvia o murmúrio de preces proferidas pelos mais velhos da
comunidade. O brilho nos olhares das crianças e dos jovens. O
tom de seriedade de Mestre Caetano, enquanto caminhava entre
as pessoas, parecendo velar pelo bem-estar de todos. Violeiros
estavam a postos, empunhando seus instrumentos decorados por
fitilhos. Mais cestos com alimentos vinham chegando para o
centro do Vilarejo. As primeiras estrelas daquele novo anoitecer
despontavam no Céu. Silêncio e prece. Risos de crianças. Amigos
de mãos dadas. Luar. As fímbrias da tarde cediam. Lugar do
anoitecer.
Começamos a ouvir ao longe um som que parecia o de uma
trombeta que soava, anunciando a chegada dos Peregrinos. Aos
poucos, iam seguindo-se vozes cada vez mais altas e claras,
embora serenas. Uma aura de devoção muito intensa tomava o
espaço do Vilarejo. As vozes foram se tornando mais altas e já
podíamos vislumbrar uma pequena multidão que vinha cantando
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 162 ]
canções de fé, que pareciam as louvarias dos sertões e interiores
brasileiros.
Foi quando os Peregrinos adentraram pelo portão principal.
Cantando. Traziam, em procissão, imagens de São Benedito e de
Nossa Senhora do Rosário. Nossa Senhora do Carmo e São
Francisco de Assis. Cantavam. Cantavam mais e mais. E jogavam
ao ar pétalas de flores e um pó cintilante em cores vivas que se ia
espraiando pelo ar. Vinham liderados por um grupo que portava
uma grande bandeira branca, com alguns símbolos inscritos em
seu interior.
Conforme entravam, muitas palmas começaram a soar, vinda das
pessoas do Vilarejo. Almas choravam. Notei que “seu” Benedito
se prostrara, de joelhos, com as mãos no peito e olhos fechados,
em oração. Um círculo de cor alvinitente pairava sobre sua cabeça
grisalha. Junto dele, outros Anciões e Mestre Caetano. O grupo
dos Peregrinos parou em frente aos Anciões do Vilarejo e um
deles, o qual aparentava ser um senhor de idade bem avançada,
trajando camisa e calças simples, tal como um sertanejo, estendeu
as mãos para o nobre irmão, “seu” Benedito, pedindo-lhe que se
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 163 ]
levantasse, seguido dos demais, para que a celebração pudesse
prosseguir.
As imagens trazidas pela procissão foram também colocadas
junto daquelas trazidas por “seu” Benedito e, lentamente, a junção
de suas luzes, formou um intenso clarão que subia aos Céus.
Agora pude notar que, seguindo os Peregrinos, um verdadeiro
cortejo de almas os acompanhavam em silêncio. Olhos baixos.
Direcionados às imagens, fitando-as como se aguardassem uma
resposta de Deus. Pude perceber em seus semblantes que aquela
pequena multidão não irradiava de si aquela luminosidade dos
Peregrinos, mas que era por esta envolvida.
Marcos, então, disse-nos, ao direcionar-lhe minha indagação a
respeito, que aquelas eram almas congregadas pelos Peregrinos,
quando de suas passagens pelas dimensões próximas à Terra. São
aqueles que deixaram o veículo físico, mas que por motivos
vários, não puderam tomar consciência de seu estado atual.
Entorpecidos, confusos ou mesmo apegados a determinados
objetos, pessoas ou lembranças do mundo que deixaram, fixaram-
se dentro de seus antigos lares, leitos de morte, na tentativa de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 164 ]
permanecerem ao lado daquilo que amam. Outros, amedrontados
diante de uma realidade que não se viram capazes de apreender,
como muitos de nós quando desencarnamos, mantiveram-se
ligados ao ambiente do lar, aos hospitais, igrejas ou demais
templos religiosos com os quais se identificaram, praças e ruas
familiares à sua memória e, até mesmo, aos Campos Santos, os
cemitérios, onde tiveram o último contato com seu corpo físico.
Os Peregrinos caminham por esses lugares, buscando congregar
e acolher essas almas. Não são almas culpadas ou envenenadas
pelos vícios e desequilíbrios morais. Tão somente, são almas que
ainda não conseguiram, por si mesmas, tal como nós, descortinar
as sombras que povoam a passagem para o mundo espiritual
luminoso, a nossa Aruanda.
A atitude de fé, devoção e carinho dos Peregrinos é capaz de
tocar-lhes o íntimo e demovê-los do temor de avançar na
dimensão de cá, senão pelo completo esclarecimento desta nova
vida a que foram lançados, pelo menos pela confiança de que
essas almas simples e benevolentes podem lhes dar um caminho.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 165 ]
Alguns ficarão por aqui, conosco, quando a procissão seguir, ao
amanhecer. Outros, seguirão com eles para outras comunidades
onde possam fazer morada. Oremos por eles.
As preces e louvarias prosseguiram por toda a noite ao
amanhecer. Chegara o momento de a procissão seguir seu
caminho. As imagens de “seu” Benedito seguiriam com eles.
Nossa Senhora dos Navegantes e São Sebastião. No entanto,
agora foram formados dois grupos distintos. Alguns dos
Peregrinos organizaram uma nova caravana, na qual se juntaria
um destacamento composto por trabalhadores do Vilarejo, entre
eles “seu” Benedito, Mestre Caetano e irmão Marcos. Partiriam
de retorno à Terra. Eu seguiria com eles.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 166 ]
Samborê, Pemba de Angola
“Eu abro a nossa gira
Com Deus e Nossa Senhora.
Eu abro a nossa gira,
Samborê, Pemba de Angola” 2
Seguíamos em direção à dimensão da Terra. E caminhava
ouvindo as sonoridades dos cânticos das orações dos
Peregrinos. Tentava acompanha-los, como podia. Notei que
havia uma energia intensa que envolvia a procissão em que
estávamos.
2 Ponto de domínio público, utilizado pelos terreiros de Umbanda no rito de
abertura dos trabalhos. Traduz um sentido de proteção divina e um momento
de grande força espiritual manifesta no ambiente do terreiro (Nota do autor).
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 167 ]
Notávamos que conforme avançávamos pelos caminhos que
nos conduziriam ao plano imediato ao da crosta planetária,
meus movimentos pareciam se tornar mais dificultosos. Meu
corpo de espírito parecia enrijecer. Não fosse o auxílio do
campo de irradiação mental de Mestre Caetano e daqueles
Mentores Viajantes, certamente eu não teria resistido a
travessia.
Uma região de espessa névoa acinzentada nos envolveu, a
certa altura do caminho. Mais do que nunca, eu sentia como
se houvesse ganhado meus pulmões de volta, assim como
meu coração. Meu peito arfava e eu expressava um acentuado
cansaço. Toda a extensão do meu corpo parecia dormente e
não aceitava mais obedecer à minha vontade. Desfaleci.
Quando acordei, vi a figura de Marcos e Mestre Caetano,
amparando-me, carinhosamente. Olhei ao redor e me vi
dentro de um grande salão, repleto de cadeiras. Ao fundo,
cortinas cobriam uma parte daquele salão. Já sabia que
estávamos em algum lugar da Terra. As energias daquele
ambiente me faziam recobrar a vitalidade dos sentidos,
restabelecendo minhas forças. Pelo símbolo suspenso no alto
do salão, entre o espaço que dividia o lugar onde estávamos e
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 168 ]
a área próxima às cortinas que escondiam por trás de si um
grande altar, prontamente reconheci que estávamos em um
terreiro de Umbanda.
Na entrada à direita do espaço sagrado, a grande maioria das
pessoas reverenciava um ponto específico da casa e se
dirigiam para a área destinada a assistência, aguardando o
início da sessão. Percebia uma série de pessoas sentadas nas
cadeiras daquele salão. E sabia que elas não nos viam.
Diferentemente, notei que no espaço próximo ao congá que
se ia aos poucos preenchendo de trabalhadores daquele
templo, trajando vestes brancas e colares de conta, haviam
espíritos que nos observavam e registravam nossa presença,
assim como alguns dos trabalhadores encarnados que
pareciam nos perceber de alguma forma, embora não fossem
capazes de registrar a totalidade dos espíritos que ali estavam.
Nossa caravana estava inteiramente presente ali. Contávamos
em quase uma centena e os encarnados, salvo as exceções
citadas, não nos notavam a presença. Afora nosso grupo,
havia uma grande assistência que superava em muito a
quantidade de pessoas na assistência do plano físico, sendo
que os encarnados somavam dezenas de pessoas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 169 ]
Conservávamos todos um silêncio absolutamente respeitoso,
seguindo as orientações dadas pelo líder da procissão.
Do lado terreno, tal postura não era compreendida e seguida
por grande parte da assistência, a qual se mantinha inquieta,
fosse pela conversação entre frequentadores ou mesmo por
aqueles que mantinham a boca fechada, mas que sustentavam
pensamentos por caminhos desordenados dentro da casa
mental. “Se os encarnados soubessem do real valor de uma
mente bem orientada por práticas como a meditação e a
oração, as quais podem lhes ajudar em muito a sustentar uma
postura saudável de ordem nos pensamentos, certamente
dariam uma atenção muito maior a isso, e não encarariam
essas práticas e orientações somente como disciplinas
compostas por ordens tediosas e desnecessárias, impostas
pelos costumes religiosos”, comentara Mestre Caetano. Eu
percebia que as emissões de pensamentos desorientados,
desrespeitosos e agressivos chocavam, como descargas
elétricas, muitas das almas doentes que ali estavam,
conduzidas por entidades que as tutelavam, as quais tinham
que lançar mão de esforços mentais ampliados para que esses
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 170 ]
irmãos não sofressem tanto com aquelas ondas de choques
emitidas pelos encarnados desavisados.
Notei que haviam espíritos trabalhadores naquele templo, que
também se desdobravam em tarefas que visavam a
estabilidade energética daquele ambiente espiritual, enquanto
procuravam inspirar, com até certa dificuldade, aos
frequentadores para que voltassem ao silêncio e a prece
direcionada ao equilíbrio interior.
Não foi sem consideráveis esforços que o ambiente pode ser
devidamente equilibrado, embora do lado terreno as pessoas
supusessem aquela harmonia como gratuita. A assistência
cheia, “de ambos os lados”, agora se encontrava em
expectativa, enquanto observavam o término da entrada do
grupo de médiuns na área a eles destinadas, próximo ao
congá. Colocavam-se em suas posições, após o ritual de
“bater cabeça” aos pés do congá.
Uma vez que todos estavam posicionados em seus respectivos
lugares, deu-se início a um momento de preces e cantorias,
conduzidos por algumas pessoas que pareciam guardar essa
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 171 ]
função e que permaneciam próximas ao líder religioso
daquela comunidade.
Em conjunto ao que ocorria na dimensão terrena, observei que
claridade tênue passara a se formar em torno da cabeça dos
encarnados vestidos de branco, os chamados “filhos de santo”
ou “cavalos de santo”, assim como por sobre todo o corpo de
integrantes de trabalhadores da casa, dentre os quais alguns
encontravam-se do lado de fora do espaço dos trabalhos,
auxiliando nas tarefas de recepção e organização da casa. De
igual maneira, naqueles que permaneciam próximo aos
instrumentos, os chamados ogãs e curimbeiros. Essa claridade
unia a todos, ligando-os pelo alto de suas cabeças, formando
uma verdadeira corrente e assumindo uma aura dourada ao
atingir o centro da cabeça do líder religioso, fechando o ciclo
que a luz percorria continuamente.
Pude notar também que havia membros da assistência sobre
os quais também essa faixa luminescente aparecia, conforme
mais aprofundado seu estado de oração e silêncio.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 172 ]
Sob o comando do líder religioso, o qual permanecera até
então em silenciosa oração, iniciou-se um canto que trazia a
mensagem de que aquela reunião teria início. A comunidade
encarnada e mesmo alguns desencarnados passaram a seguir
a canção entoada pelo dirigente do templo, em uníssono,
enquanto as cortinas que tampavam o altar iam se abrindo:
“Os Pretos-Velhos e os Caboclos,
Vamos todos saravá.
Vamos pedir licença a Deus,
Nosso Senhor,
Para os trabalhos começar.
Senhor do Mundo, Oxalá meu Pai.
Baixai, baixai na Umbanda, meu Senhor!
E toda a Terra Iluminai”3
Os batuques assumiam a condução dos cânticos agora, dando
um tom de alegria e de festividade àquela expressão musical,
ao mesmo tempo em que era possível verificarmos a postura
3 Ponto de domínio público, muito conhecido em diversas casas de umbanda e
sugerido pelo Primado de Umbanda em suas orientações litúrgicas (Nota do
autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 173 ]
de reverencia e sacralidade destinada aos instrumentos e aos
seus executores.
Em seguida, dois membros da comunidade religiosa,
devidamente paramentados, entraram pelo espaço sagrado em
direção ao dirigente dos trabalhos, trazendo um pote de argila,
dentro do qual ervas ardiam em brasa, espalhando um aroma
intenso de alecrim e arruda por todo o recinto, conforme a
fumaça do pote era conduzida pelos quatro cantos daquele
terreiro, após o sacerdote ter circundado todo o congá com a
defumação. Os cânticos, assumiam o tema rito-litúrgico do
momento:
“Defuma com as ervas da Jurema,
Defuma com arruda e guiné.
Benjoim, alecrim e alfazema.
Vamos defumar filhos de fé”4
Na assistência espiritual, aquelas almas agitadas e
desgastadas, aparentando profunda falta de vitalidade,
4 Idem (N.a.)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 174 ]
pareciam agora envoltas nos eflúvios emanados pela queima
das ervas, e a luminosidade suave que as parecia hipnotizar,
modificando seu estado de consciência. De igual forma,
aqueles na assistência encarnada, e mesmo alguns filhos de
santo, cujas emanações de pensamento construíam formas
perturbadas e desarmônicas, denunciando a má condução do
campo emocional em que se encontravam, pareciam ser
diluídas pelo campo energético do ambiente.
Uma sonoridade peculiar passara a ser ouvida por nós, na
dimensão espiritual, ao mesmo tempo em que podíamos ver,
nitidamente, surgirem no centro alto do salão formas
circulares e giratórias, tal como vórtices, desprendendo
grandes descargas elétricas, cujas dimensões ultrapassavam
os limites da construção física do terreiro.
A partir daí, comecei a reconhecer aquele templo de
Umbanda. Estávamos no mesmo local em que fôramos
transportados por Mestre Caetano, quando realizamos aquele
trabalho no clarão das matas, próximo ao Vilarejo. Vi surgir
uma irradiação de luz notável que parecia cobrir toda a
extensão do templo. Reconheci a Veneranda Senhora quando
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 175 ]
seu espectro luminoso passou, aos poucos, a assumir uma
forma corpórea. Os raios de luz que emitia davam conta de
que se tratava de um Ser muito elevado, esplendendo em
sentimentos intensos de Amor e Compaixão.
Observei a assistência espiritual, totalmente emocionada por
aquela presença que pairava no alto do congá. Consigo, ela
trouxera uma grande quantidade de espíritos, tornando-se, por
si mesma, um verdadeiro portal entre mundos, por onde as
chamadas linhas, correntes e falanges espirituais, em nome
das Leis de Umbanda, atingiam o plano hiperfísico,
interpenetrando o plano terreno e conseguindo sintonizar e
envolver-se com os halos luminíferos irradiados pelas
“coroas” dos médiuns.
Um verdadeiro turbilhão de raios, aromas e sonoridades
circulavam o ambiente, num fluxo contínuo e envolvente,
conforme aqueles grupamentos espirituais entrelaçavam-se
com os médiuns, tal como na ocasião anterior em que
presenciamos estes ritos. Baixavam os pretos-velhos, o povo
das águas, caboclos, baianos e boiadeiros.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 176 ]
Alguns médiuns destacados, compondo dois grupos distintos,
agora formavam um círculo sob o comando do dirigente, no
centro do salão. Passaram a aplicar passes nas pessoas da
assistência encarnada. A correnteza de energias circulantes no
ambiente passara a ser conduzida em torno do campo
luminoso que se formara ao redor do corpo dos médiuns. “A
intensidade e estabilidade daquelas irradiações são
comandadas pelos espíritos que ali permanecem junto dos
médiuns, utilizando-se do fluido vital que percorre pelos seus
organismos biológicos, servindo como condutor para que os
elementos e energias manipulados no plano etérico e
espiritual possam repercutir e influenciar as estruturas
orgânicas e sutis daqueles que estão recebendo os eflúvios que
se irradiam dos sensitivos, na esperança de obterem algum
tipo de benefício psicológico, espiritual. Mesmo a cura de
doenças físicas ou males externos de que padecem, como a
falta de emprego, problemas familiares, etc, crendo que a
energia do passe poderá lhes auxiliar a modificar sua condição
atual”, explicou-nos Mestre Caetano.
Aproveitando a oportuna lição do Amigo Benfeitor, Marcos
observou que havia notado condições diferenciadas entre os
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 177 ]
médiuns que ali estavam posicionados na “linha de passe”.
Alguns dos médiuns apresentavam uma condição peculiar em
seu campo energético. Nestes, os eflúvios pareciam se
dispersar de maneira abrupta, quando entravam em contato
com a exsudação do fluido etérico/vital de seus corpos. Ao
contrário dos demais, em que os eflúvios corriam pelo corpo
e se estendiam pelas pontas dos dedos, olhos, boca e nariz,
além dos centros luminosos distribuídos pela linha central de
seus corpos.
Teriam aqueles médiuns alguma dificuldade orgânica ou isso
se dava, talvez, por serem ainda médiuns inexperientes
naquela tarefa?
“Ambas as situações”, explicou-nos Mestre Caetano. “Muitos
irmãos que possuem hábitos propícios para a desvitalização
do organismo físico, tal como o tabagismo, o consumo
habitual de bebidas alcoólicas, preferências alimentares
pouco saudáveis, vida sexual desregrada e, até mesmo, maus
hábitos na hora do sono e repouso, acabam dificultando sua
capacidade de concentração e absorção de campos
energéticos positivos, dado a sua natureza extremamente
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 178 ]
sutil. Tanto é assim que, não raro, tais desvios no cuidado com
a saúde orgânica, se prolongados, provocam, ‘mais dia,
menos dia’ o surgimento de doenças naqueles que assim se
demoram. De outro lado, também a inexperiência e a mente
ainda destreinada quanto aos processos de concentração e
mentalização dinâmica, essenciais para o exercício do
mediunismo de Umbanda, no que se refere ao socorro e
auxílio ao próximo, provocam no médium iniciante uma
maior dificuldade na coordenação e condução dos eflúvios
balsâmicos e curativos, uma vez que o pensamento de dúvida,
ou dispersivo, desestabiliza a coesão do campo mediúnico.
Não devemos desconsiderar, porém, que os Mentores que ali
envolvem os médiuns, em especial nestes casos, empreendem
recursos adicionais, mesmo que lhes exigindo maiores
esforços e extraindo dos circunstantes fluidos
compensatórios, para auxiliar no trabalho destes cavalos de
santo, de maneira que as dificuldades apresentadas por estes
não sejam obstáculo instransponível ao objetivo final do
trabalho, que é o amparo aos irmãos que estão ali em busca
de socorro e pela sinceridade de sua fé.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 179 ]
Não olvidemos também que, de um lado temos aqueles que,
embora experientes, se demoram em comportamentos e
hábitos verdadeiramente nocivos, por enquanto incapazes de
empreender sua devida superação. De outro lado, estão
aqueles que erram por inexperiência e desconhecimento, mas
que sob orientação e dedicação adequadas, em tempo poderão
superar a dificuldade momentânea. De um lado ou de outro,
ambos merecem de nós compreensão e cooperação
silenciosas, evitando sempre, contudo, a acomodação
inoportuna e o desculpismo imaturo, para que não se
cristalizem crendices fantasiosas dentro do ambiente
religioso, tão pouco fomentando a formação de adeptos
inconscientes da sua responsabilidade diante das Leis da
Vida, contrariando os objetivos da experiência religiosa, a
qual deve ser sentida em profundidade como transformadora
e libertadora da alma humana, amadurecendo-a e tornando-a
sempre, e cada vez mais, saudável física, psicológica e
espiritualmente”, concluiu.
“Seu” João Ordário, simpático senhor e um dos líderes dos
Peregrinos, o qual ouvia atentamente nosso diálogo, interveio,
acrescentando: “ Diante das Leis de Umbanda, o filho de
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 180 ]
santo, médium ou não, deve compreender que é templo vivo
por onde o Sagrado manifesta-se. É ele próprio, seu corpo e
sua mente, a ponte e o portal que interliga os dois mundos.
Mundo dos homens e Mundo Divino. Constitui engano
recorrente nos religiosos encarnados, especialmente dentre
nossos irmãos umbandistas, crer que se pode amealhar
valores para o espírito sem cuidar dos recursos que lhe servem
como sustentáculo para a vida no mundo corpóreo, qual sejam
justamente seu organismo físico e seu mundo íntimo,
emocional. Na Umbanda, nossos amigos encarnados
prosseguem ainda infantes e distraídos, em sua maioria,
perante essas verdades.
Contudo prosseguimos a inspirá-los, na esperança de uma
transformação e amadurecimento de nossos irmãos, a quem
devotamos nossa máxima afeição e carinho. Até lá,
continuamos a acolhê-los em sua crença, sentimentos de fé e
esperança, dores e desilusões, uma vez que em sua grande
maioria, prosseguem aportando do nosso lado, ao mesmo
tempo, desiludidos quanto a realidade que pensavam que
encontrariam e surpreendidos por descobrirem a Aruanda
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 181 ]
Bendita muito mais bela, grandiosa e mágica do que seus
sonhos, cantigas e histórias dão conta”.
Meditamos por breves momentos em silêncio, enquanto
admirávamos a sabedoria nas palavras do nobre senhor.
Realmente, estávamos diante da oportunidade de
compreender acontecimentos tão complexos e defesos à
apreensão dos sentidos de um ser humano limitado às
condições dadas pelos seus órgãos sensoriais dentro da massa
fisiológica.
Enquanto ouvia as palavras do Mentor Amigo, observava que
todo o ambiente daquele templo havia se tornado um
aglomerado energético em que múltiplos campos de forças
sutis e, concomitantemente, tão palpáveis para nós “desse
lado” se entrechocavam, repercutindo uns sobre os outros.
Correntes de pensamentos, vibrações sonoras dos
instrumentos e vozes, cores múltiplas, aromas diversos,
elementos vegetais, a chama das velas, fumaça das ervas,
objetos sacralizados, pontos riscados, centros de força
distribuídos pelo templo. Tudo compunha uma dança
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 182 ]
universal que rompia com as barreiras do tempo e do espaço,
em cujo fluxo, correntezas poderosas de energias eram
transportadas para dentro daquele ambiente, assim como
outras eram levadas para além deste, carregando consigo
muitas das almas aflitas que estavam ali na assistência.
Momento chegou em que, nesse turbilhão de energias que
giravam em direção ao alto, desencadeou-se um fenômeno de
tunelamento, cujo centro permanecera estável.
“Seu” João e os demais Peregrinos, nesse instante,
levantaram-se. O nobre Amigo dirigiu-se a nós:
- “Vamos, Caetano! Traga seus alunos. Chegou o momento
que aguardávamos! Sigamos”.
Ato contínuo, fui atraída para junto da procissão por força
vigorosa, alçando-nos, em seguida, na direção daquele espaço
interdimensional. Clarão que mais parecia uma estrela. A
estrela de que falava os pontos cantados, entoados pelos
encarnados. Cantavam alegres, desconhecendo a amplitude
do que ocorria nos planos que seus olhos não podiam ver.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 183 ]
Falavam daquela estrela. E, enquanto sonhavam e falavam da
Estrela, deixávamos aquele espaço.
“A Estrela D’Alva é minha guia.
Que corre o mundo sem parar.
Alumeia a Mata Virgem
E o Terreiro de Além Mar.
Okê, Caboclo!
Chama seu Cobra Coral.
Abrir trabalho na Mata Virgem
Chama seu Cobra Coral! ”.5
“Estrela Matutina,
Que corre o mundo sem parar.
Ilumina os capangueiros da Jurema
Lá no Juremá”.6
5 Ponto de domínio público, em homenagem ao Caboclo Cobra Coral (Nota do
Autor)
6 Ponto de domínio público, em homenagem aos Caboclos de Umbanda (Nota
do Autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 184 ]
O Cruzeiro do Sul
“Sonhar com Caminho
Saber-te grãozinho, frente ao Universo.
Muitas moradas pela vastidão.
Chegar até a Estrela
Fulgurante. Perpétua.
Pequena fagulha Divina.
Tão imensa, em Ti”.
Éramos transportados por força irresistível que nos levara de
roldão em direção a abertura surgida no plano invisível daquele
terreiro de Umbanda. Transcendíamos os limites da Terra e
rumávamos para um espaço constelado na imensidão escura e
soberana, pontilhada de centelhas estelares. Nossa jornada seguia
célere, vencendo distâncias cada vez maiores.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 185 ]
Podia ver os contornos do planeta em suas dimensões reduzidas,
enquanto transpassávamos nuvens de estrelas. Parecia,
novamente, que houvera perdido contato com meu corpo, minha
forma espiritual. Tornáramos em pura energia irradiante, vagando
pelos caminhos suspensos entre o Tempo e Espaço.
Prosseguíamos cobrindo distâncias e paisagens incompreensíveis
para mim, arrebatada que fui por uma vontade superior à minha.
Não resistia, pois cuidava de que seguia por trilhas que me eram
dadas por desígnios maiores. Com se o Criador falasse ao meu
coração, em palavras inauditas, de que caberia a mim a grata
oportunidade de presenciar uma pequena parcela da
grandiosidade de Sua obra incomensurável e ser dela testemunha
humilde perante os homens.
Conduzida pelos Peregrinos, alcançamos um conglomerado de
estrelas, cuja disposição daquelas mais cintilantes formavam o
desenho de uma Cruz. O Cruzeiro do Sul, orientador dos
navegantes da Terra e dos Peregrinos de Aruanda Maior,
resplandecia em formação destacada daquelas que compunham o
espaço cósmico ao seu redor, perpetuando o périplo das formas
sustentadoras do universo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 186 ]
Sobre as composições estelares da Constelação de Crux,
formavam-se agregações de aspecto uniforme, qual planícies
regulares sob as quais permaneciam construções estruturadas em
matéria incompreensível ao entendimento humano, por que
desprovidas de quaisquer elementos semelhantes àqueles
utilizados no trabalho arquitetônico terreno.
Mergulhávamos velozmente em meio a estas colunas que
encastelavam uma Comunidade Astral, onde repousavam os
Viajores do Espaço no passar de suas travessias entre a Terra e os
Planos Celestes.
Descemos do alto em direção a uma das formações planas,
pairando suavemente até atingirmos o nível do solo. Pude ver que
havia vários outros seres transitando por ali e, para minha inteira
surpresa, reconhecia-os como seres humanos, tal como nós. Não
imaginava que poderia haver almas humanas vivendo a uma
distância tão grande do planeta.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 187 ]
Uma verdadeira sociedade vivia naquele lugar, espelhando no
semblante de cada Ser ali vivente, a serenidade dos bem-
aventurados de que falara o Mestre Nazareno.
Junto de Mestre Caetano, seguíamos a procissão dos Peregrinos,
enquanto ouvíamos as considerações do devoto João Ordário.
- “No Cruzeiro do Sul residem as comunidades de almas humanas
vinculadas ao progresso das mais diversas culturas no orbe
terrestre. Congregados sob os sentimentos de amor, compaixão e
fraternidade, os quais aqui já passaram de meros ideais e utopias
engendradas pela esperança do homem encarnado, estes Seres
Bem-Aventurados velam pelos Destinos das Coletividades.
No Rastro de Luz deixado pelo Nazareno, quando de sua descida
das Alturas ao plano terráqueo, cuja travessia o Sublime
Peregrino levara mais de 1 milênio inteiro para completar, foram
constituindo-se comunidades interdimensionais, estabelecidas
pelo interesse mútuo na condução da humanidade encarnada,
dada a interdependência das culturas do homem no equilíbrio não
somente das relações sociais, mas também na estabilidade das
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 188 ]
dimensões Natural, Espiritual, Elemental e Etérica que envolvem
o Planeta Azul.
O advento da encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo marcou
indelevelmente a consciência das almas humanas, por meio de
uma emergente centelha a permanecer fulgurante nos recônditos
d’alma, impulsionando a sua transformação e elevação espiritual
em direção ao Divino que repousa nas sombras escuras de si
mesmo, aguardando pelo momento desse encontro, de cujo
despertar cada homem ergue-se modificado e reintegrado com a
Consciência Cósmica e a Alma Coletiva.
Muitos daqueles que ‘despertaram’, após o encontro com o
Divino, quando do contato com o Mestre Jesus em sua
peregrinação pelas paragens terrenas, permanecem aqui,
constantemente em vigília e trabalho operoso em favor do nosso
orbe, muitas vezes até penetrando o ciclo reencarnatório.
Geralmente em sua aproximação à dimensão dos espíritos, trazem
orientações, inspirando as almas trabalhadoras, reanimando os
socorristas e Peregrinos. Mergulhando na escuridão, resgatam
coletividades inteiras das zonas trevosas e abismos de purgação e
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 189 ]
sofrimento. Verdadeiros Arautos do Cristo. Sustentáculos da fé e
da esperança dos povos”.
Caminhávamos agora sobre um plano cujo chão era totalmente
translúcido. Jardins floridos suspensos no ar moviam-se
circularmente, em ritmo harmônico. Adentramos por um
conjunto de arcos formando passarela para a entrada de
imponente construção. Ao olhar para o alto, não consegui divisar
os limites da “atmosfera” daqueles domínios onde nos
encontrávamos em relação ao véu escuro repletado de estrelas e
fachos de luzes cadentes, os quais cruzavam o espaço com grande
frequência.
Com exceção do amigo João Ordário, que se ocupava de nos
entreter, permanecendo conosco, os demais Peregrinos seguiam
em completo silêncio, parecendo meditar. A certa altura, fomos
interpelados por um grupo de Espíritos Amigos que pareciam já
nos aguardar.
Um homem alto, calvo e de porte imponente tomou a frente do
grupo. Dirigiu-se a nós com um gesto afável de acolhimento e
boas-vindas. Interessante é que aquele Ser não se comunicava
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 190 ]
conosco ou mesmo com os Peregrinos utilizando-se da fala.
Aquele pequeno gesto e os instantes breves em que cruzamos
nossos olhares com o dele foram suficientes para que nossa
comunicação fosse inteiramente realizada. Agora eu havia
compreendido o verdadeiro significado da comunicação pelo
pensamento. Como se a mente superior daquele Bem-Aventurado
entrasse inteiramente em meu íntimo, numa interação plena com
meus pensamentos. No entanto, não me sentia violentada em
minha intimidade. A atitude daquele Ser Aureolado de Paz não
era como a de um sensitivo ou hipnotizador que se utilizasse de
recursos psicológicos para exercer influência e controle sobre
outra pessoa para proveito próprio. Seu olhar profundo, ao
contrário, revelava as conquistas que aquela Consciência humana
já havia atingido no descobrimento de si mesma e no
entendimento das Leis Divinas que permeiam todos os universos
existentes. A auto iluminação de que falam os povos do oriente.
Voltando-se em direção à entrada de soberana construção, o Ser
Iluminado pôs-se a nossa frente, enquanto nossa caravana o
acompanhava.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 191 ]
Ouvíamos vozes entoando hinos sem podermos precisar de que
coral provinham, uma vez que não haviam grupos de espíritos ao
nosso redor que pudéssemos identificar expressando
composições artísticas tão belas. As vozes intercalavam-se
harmonicamente e cobriam todo o ambiente com a sonoridade.
Faziam-me lembrar as grandes composições humanas realizadas
pelos gênios da música sacra e erudita.
Ao atingirmos o portal de entrada, uma espécie de muro
espelhado, que se erguia a alturas que nos escapavam do alcance
visual, aguardamos um sinal do Ser Iluminado para que
prosseguíssemos através daquele imenso espelho radiante.
Seguimos. Chegando a um espaço que lembrava um anfiteatro,
em dimensões enormes. O teto ovalado deixava-nos observar a
dança das estrelas e cometas. Estávamos suspensos num vazio,
onde não havia nenhum tipo de chão a nos apoiar. Mas, nada me
assombrava. Sentia-me totalmente confortável e segura. Sentia
como se tudo aquilo fosse um mundo do qual eu já fazia parte,
com o qual já estivera totalmente familiarizada.
Após breves instantes em que nos detivemos admirando o espaço,
através daquela cúpula circular, o Ser Iluminado destacou-se,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 192 ]
volitando acima de nós, seguido pelos líderes dos Peregrinos,
junto dos quais estava nosso novo amigo, João Ordário.
Aquela Santa Alma parecia transfigurar-se em forma esplendente
de Luz, enquanto os Peregrinos permaneciam em uma postura de
oração. Não trocávamos, qualquer um de nós, nenhum tipo de
palavra. Entretanto, a grandiosidade espiritual nos extasiava,
colocando dispensáveis qualquer tipo de conversa naquele
instante. Somente a presença plena daquelas Almas Benditas
preenchia-nos inteiramente.
A luz das estrelas, que antes podíamos ver cintilando em alturas
distantes, parecia mover-se em nossa direção, clareando com tal
intensidade a cúpula que perdi completamente o que se passara
ali. Então, somente quando o clarão cessou e voltamos a
reconhecer o espaço em que nos encontrávamos, foi que pude
registrar a Alma Santificada entregando uma espécie de cruz que
irradiava brilho semelhante ao da Estrela que nos visitara, a qual
fora guardada pelos Peregrinos em uma pequena urna.
Mais uma vez, fôramos conduzidos pelo Amigo Espiritual para
fora da cúpula e retornáramos para o espaço onde se encontravam
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 193 ]
os jardins suspensos. O Ser Iluminado nos dirigiu seu olhar de
profundo Amor e, pairando sobre nós, em companhia de outros
seus iguais, desapareceu sob nossos olhares.
Os Peregrinos, então, colocando-nos sob o poder de sua vontade,
novamente lançaram-nos para as alturas, em direção às
correntezas de partículas espaciais, onde fomos atraídos por uma
nova abertura interdimensional, a qual nos fez retirar daqueles
domínios sublimes, morada das Almas Bem-Aventuras.
Seguíamos pela luz em direção regressa ao plano espiritual
terrestre. Avistava, cada vez mais distante, o conglomerado
estelar, no qual as cintilantes que se destacavam me deixavam ver
a Cruz novamente. Estrela do Sul.
Perdia os sentidos. Novamente, percebia minha consciência vígil
se apagar perante a injunção de forças que não podia dominar,
mas que, ao mesmo tempo, às quais me entregava abertamente,
por me reconhecer sob mistérios de Deus que minha alma, ainda
tão diminuta, era incapaz de apreender.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 194 ]
Despertei agora sendo amparada por “seu” Benedito e João
Ordário. Olhei ao redor e me vi em uma paisagem natural.
Planície aberta com vegetação rasteira. Montanhas rochosas
distanciadas. Ventos refrescantes. Um sol vermelho na linha
próxima ao horizonte me dizia que o Astro Rei estava a se pôr.
Conforme ia reassumindo minhas faculdades naturais e meus
próprios movimentos, aproximei-me de Mestre Caetano e
Marcos, os quais conversavam com “seu” Benedito e o Peregrino.
“Nossa visita ao Cruzeiro do Sul deve-se a uma condição
excepcional para os tempos da Terra. Peregrinos de todas as
localidades do mundo espiritual tem recebido o chamado vindo
da Estrela do Sul para que de lá retornem imbuídos de novas e
mais amplas responsabilidades perante as almas humanas.
Nesses movimentos de grandes renovações nas paisagens do
plano espiritual, ocasionados por fenômenos imponentes da
Natureza, a qual modifica não somente paisagens terrenas, tanto
quanto também interfere diretamente na organização das
coletividades de espíritos, compete às Consciências Despertas e
aos trabalhadores nas Leis de Deus, operosos e anônimos, a
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 195 ]
condução daqueles que seguem à retaguarda quanto a
compreensão dos propósitos da existência e dos desígnios do
Criador.
Verdadeiras multidões se movem pelas planícies e vales no
mundo dos Espíritos, nos planos próximos à dimensão da Terra,
tal qual andarilhos famintos, clamando por socorro e descanso. É
momento de resgate e soerguimento perante a Vida Maior. Não
sabemos se todos estão prontos para a renovação dos rumos de
suas próprias existências, no entanto, os Bem-Aventurados nos
ensinam que cada consciência desperta, cada alma resgatada, e
mesmo cada valor novo descoberto pela alma humana, deste lado
ou do lado de lá, é capaz de ascender uma legião inteira de
espíritos.
Com isso, temos recebido vários signos dos Amigos Sublimes, tal
como aquele que os amigos puderam observar. Esses signos são
compostos de fragmentos das Virtudes Excelsas emanadas por
estes Seres Santificados. São como reflexo da Consciência
Sublime e podem influenciar coletividades inteiras. Não se trata
de violentar a vontade e o livre-arbítrio das almas. Mas sim a de
compartilhar com estes a Ascensão daqueles que já a
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 196 ]
conquistaram, emulando naqueles que sentem sua influência os
impulsos necessários ao desabrochar dos sentimentos e reflexões
enobrecidos que já se encontram adormecidos no inconsciente
dessas almas.
A experiência de contato com esses fragmentos Celestes, fomenta
o desejo de renovação na alma, reconectando-a com o Deus
interno que possui em seu âmago, como registro arquetípico que
marca para além do tempo a sua origem e natureza divina. As
almas que reencarnam com a memória dessa experiência, trazem
para o plano terreno, perante as sociedades humanas, novas
concepções e ideias, contribuindo para o progresso geral,
dirimindo as sombras da ignorância”.
Nossa caminhada encerrava-se neste ponto. Batíamos à porta de
uma edificação que lembrava um grande monastério, o qual
beirava a estrada por onde vínhamos. Anoitecera.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 197 ]
Simiromba
“ Preces.
Flores.
Olhares de Súplica.
Devoto.
Cordão nas mãos.
Francisco, Irmão Sol.
Il Poverello.
Seu Evangelho,
Prega-o ao Tempo.
Seu templo, a Natureza.
E Deus É. Nela.”.
O Monastério era contornado por paredões que dividiam a área
em duas grandes partes. A primeira, destinada aos que viviam ali,
onde localizavam-se seus alojamentos, contando também com
espaços abertos adornados por jardins e áreas de cultivo, além das
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 198 ]
alas destinadas às práticas de meditação e liturgias restritas aos
monges. A segunda área, de maiores proporções, na qual
estávamos, compunha o espaço do Santuário.
Presenciávamos uma grande multidão de Peregrinos em romaria
naquele lugar. Uma aura de fé e devoção predominava, embalada
pelas canções dos devotos, as quais faziam referência ao Santo de
Assis, o frade Giovanni di Pietro di Bernardone7.
Seguíamos os passos dos Peregrinos, enquanto contemplávamos
aquele imenso grupo de espíritos que se encontravam irmanados
naquele ambiente de prece.
Um monge vestido segundo a forma tradicional da ordem
franciscana veio ao nosso encontro, seu nome era Antônio Di
Vecchio. Estava acompanhado por outros três monges mais
jovens. Como de costume já de nossos anfitriões, espelhavam
simpatia e acolhimento em seus gestos e semblantes serenos.
7 Nome de batismo do Santo Francisco de Assis (nota do autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 199 ]
- Saudamos aos Irmãos Peregrinos! Que nossa casa, a Casa do
Senhor e de nosso Pai Francisco, seja também sua morada.
Permaneçam o tempo que lhes for necessário! Deixarei os irmãos
Roberto, Paulo e Bianco em sua companhia. Eles poderão lhes
auxiliar no que precisarem. Peço licença, pois iremos iniciar a
liturgia desta noite. Finalizou, afastando-se delicadamente.
Permanecemos em animada e interessante conversa com os
irmãos Franciscanos. Olhando ao redor, percebi que também
haviam religiosos pertencentes a outras ordens fundadas por
Francisco de Assis. Além dos Franciscanos da Ordem dos Frades
Menores, haviam também as Clarissas8 e membros da Ordem
Terceira.
Os jovens frades e os Peregrinos pareciam se conhecer já de há
muito tempo. Mestre Caetano dissera-nos, a Marcos e eu, que os
Peregrinos passam pelo Santuário dos Franciscanos com grande
frequência, sempre se utilizando do local Sagrado como ponto de
rota para a passagem das procissões, inclusive muitas iniciam-se
a partir dali.
8 Também conhecidas como a Ordem das Pobres Damas (nota do autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 200 ]
“Sim, nós já conhecemos estes irmãos há um bom tempo! Seu
João e suas histórias! ”, falou-nos o irmão Paulo. “Esses nobres
Peregrinos têm muitas coisas para partilhar conosco, em termos
de realizações da fé. Já tivemos, Bianco, Roberto e eu, a grata
oportunidade de seguirmos com os Peregrinos em sua procissão
para a Terra, na qual acolhemos e conhecemos muitas almas
irmãs, dignas do nosso carinho e amor cristão. Visitamos muitos
lares, pessoas humildes e anônimas. Súplices algumas;
descrentes, outras. Muitos doentes e desesperados. Outros,
exercendo a fé e a caridade para auxiliar, mesmo sem ter quase
nenhum recurso para si mesmos, aqueles que lhes batiam as
portas. São rezadores, raizeiros, benzedeiros, curandeiros, beatos.
Devotos em sua fé em Nossa Senhora e no Sagrado Coração de
Jesus. Guardiões da sabedoria da cultura popular. A sinceridade
de sua fé e a nobreza de seus caracteres, nos tocou
profundamente. Lembram-nos a figura de nosso Seráfico Pai,
com seus gestos simples e preces enriquecidas pela confiança em
Deus e em Cristo, ora atendendo aos sofredores e necessitados
debaixo de uma árvore no quintal de suas casas ou de seus
pacientes, ora velando-lhes à beira dos leitos humílimos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 201 ]
Muitos destes, após sua passagem para este mundo das almas em
purgação, continuam sua missão de trazer conforto e esperança
aos sofredores. Iremos encontra-los todos aqui, junto das
procissões, fazendo suas orações e assistindo às missas no
Santuário. Carregam seus terços, crucifixos ou cordões de São
Francisco em suas mãos.
Deste lado de cá, esses amigos continuam servindo aos propósitos
do Evangelho de Cristo e as três regras de “Il Poverello”9, nosso
Pai Francisco. Pobreza, Castidade e Obediência. Tornam-se
legítimos representantes do nosso Irmão Sol 10e de Nosso Senhor
junto dos homens, chegando mesmo a interagir com as almas
encarnadas, apresentando-se em sonhos, em estados profundos de
oração, em comunicações mediúnicas nas casas espíritas ou nos
templos de Umbanda entre outras religiões mediúnicas que
evocam a mística dos Franciscanos e dos Simirombas.
9 Alcunha pela qual Francisco de Assis era conhecido, significa “O
Pobrezinho”, devido ao seu voto de renúncia a todo e qualquer tipo de posse
(Nota do Autor) 10 Nome carinhoso pelo qual fora chamado por Santa Clara, alma irmã e amiga
do Santo de Assis, a quem este, por sua vez chamava de Irmã Lua (Nota do
autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 202 ]
Seguem conosco, inspirando a fé e a esperança nas almas. Tal
como Francisco de Assis, estes nossos irmãos preocupam-se com
toda a Natureza, reconhecendo cada ser vivente como um filho
do Nosso Pai Amoroso que está nos Céus. Na Natureza,
enxergam a manifestação do próprio Criador e no cuidado com
esta uma das maneiras de também se praticar o Evangelho e
promover a fraternidade entre os homens.
Assim, podemos todos termos a presença de nosso Querido
Francisco! Cumprindo o Evangelho de Cristo, cuidando da
Natureza e vivendo fraternalmente com as almas irmãs”, concluiu
o jovem frade, risonhamente.
Ouvimos uma espécie de sino, convocando-nos à presença no
espaço interno do Santuário, onde iria se iniciar a celebração
litúrgica. Multidão de devotos repletava o local. Cada cântico e
ato da celebração era acompanhado com grande sentido de
compromisso pelos fiéis.
Ao final da homilia, seguida do rito de encerramento da
celebração, acompanharam-nos os jovens frades para a saída do
Santuário. Agora refeita, nossa caravana continuaria sua jornada.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 203 ]
Os jovens franciscanos seguiriam conosco até a próxima parada.
Voltaríamos para a Terra onde receberíamos do nosso lado, almas
irmãs muito queridas ao coração dos nossos Benfeitores, “seu”
Benedito e do Peregrino João Ordário.
“Nossos amigos possuem almas muito caras ao seu afeto,
encarnadas na Terra. Ambas vivem momento limite em sua
jornada terrena, estando a breves horas de sua desencarnação.
Pelos seus méritos e virtudes ilibadas, símbolo da lapidação
interior a que se submeteram pelos anos da existência no plano
terreno, estes irmãos as receberão pessoalmente em sua hora
derradeira, estendendo apoio e amparo necessários, por conta das
ligações espirituais profundas que estas irmãs souberam manter e
conservar junto aos Benfeitores de Aruanda”, explicou-nos
Mestre Caetano.
“Meus amigos”, aproximou-se o frade Roberto, “cearemos por
aqui e, após isso, seguiremos rumo à Terra. Nossas amigas têm
suas passagens programadas para a próxima noite. Dessa forma,
cumpre-nos acompanha-las nesses instantes em que ouvimos
desde aqui suas preces serenas e fervorosas, assim como daqueles
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 204 ]
seus amigos e familiares compadecidos e emocionados com o
momento da despedida que se aproxima”.
“Vô” Benedito, João Ordário e os frades menores, Paulo e
Bianco chegaram para perto do grupo onde estávamos, trazendo
lindos ramalhetes de flores, cesta com pães e pequenos frascos
com aquele líquido aromatizado. “Vô” Benedito parecia o mais
emotivo, com lágrimas nos olhos. Ao mesmo tempo, uma auréola
de luz nimbava todo seu semblante.
O Peregrino, João Ordário, estendendo a destra afetuosamente
sobre os ombros de “seu” Benedito, afagando-o fraternalmente,
abriu sorriso espontâneo e com um olhar iluminado pelas estrelas
distantes no céu, tal como se fitasse uma Sagrada paisagem,
levantou-se e colocou-se ao centro do círculo que formáramos,
enquanto nos alimentávamos, aguardando a partida. Com as mãos
postas sobre o coração, iniciou:
“Temos grandes amigos vivendo entre os homens e mulheres na
Terra, junto dos quais permanecem nossas lembranças e orações.
Suas jornadas pelos anos estiveram marcadas por uma série de
provações e dificuldades a superar, conduzidas por um grande
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 205 ]
espírito de compreensão diante da vida e trabalho silencioso, na
esperança de dias melhores. Buscando alívio para o próprio
sofrimento quanto para o de tantos outros, estas irmãs, em
especial, conquistaram nosso respeito e carinho que mais se
ampliaram com o passar do tempo em que suas condutas
dedicadas e retas lhes conferiram sustentar elos luminosos com o
plano celeste.
É ao encontro destas almas queridas que iremos, a fim de abraça-
las com nosso carinho e amor cristão. Receberemos estas
criaturas em nossos braços e cantaremos louvores em
congratulação pela sua conquista diante do mundo dos homens.
Não sairão daquele mundo com fortunas, nem com títulos de
destaque perante a sociedade humana. São pessoas anônimas.
Muitas vezes invisíveis pela sua classe social e a cor de suas peles.
Mas suas vidas estão repletas de boas histórias e de exemplos
marcantes. São estes os tesouros que levarão às Alturas da
Aruanda Bendita, em que suas Consciências, enriquecidas pela
maturidade e confiança interior, são o mais cristalino espelho
d’alma naqueles que se dizem devotos de Nossa Senhora e filhos
de Umbanda.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 206 ]
Oremos para estas irmãs, assim como para todas as criaturas
encarnadas, em louvor e cumprimento aos ensinamentos deixados
por Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Oramos.
Eu estava ansiosa por conhecer quem seriam estas irmãs tão
queridas por nossos Benfeitores.
Partimos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 207 ]
“Quando eu morrer, vou passar lá na
Aruanda”
“Ogum, tenha pena de mim.
Não me deixe sofrer
Tanto assim, meu Pai.
Quando eu morrer
Vou passar lá na Aruanda
Pra ver Ogum
Saravá filho de Umbanda”.
Os Peregrinos solicitaram que formássemos dois grupos
distintos. “Seu” Benedito, junto com Mestre Caetano, Marcos,
frade Roberto e eu, acompanhados de outros amigos, seguiríamos
para a casa de uma das irmãs que seriam atendidas. O Peregrino
João Ordário e os frades Paulo e Bianco, também acompanhados
de mais alguns irmãos, prosseguiriam até o outro local onde
também seria necessária sua presença.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 208 ]
Chegamos a uma ruazinha pequena e de terra, naquele momento
enlameada pela chuva recente daquela tarde, onde nossa paciente
residia. Avistamos o portãozinho que fronteava sua casa. O
quintal, relativamente largo, no qual algumas pessoas
conversavam. Pareceram-me ser alguns de seus familiares. Um
canteiro bonito, igual de casa de vó. Canteiro com roseiras, pés
de pitanga e limão. Muitos vasos com ervas, dispostos pelo
espaço, envolvendo aquela construção simples. Banquinhos. Ao
fundo do terreno, uma árvore frondosa estendia sombra generosa,
debaixo da qual algumas crianças brincavam, descalças,
parecendo alheias ao que ocorria dentro daquela casinha. Casinha
simples e malconservada, com recortes na parede exibindo tijolos
à mostra, pela evidente escassez financeira daqueles seus
moradores. Parecia ainda daquelas casas antigas, feitas com
barro. Dois cômodos. Uma janela grande permitia que abundante
claridade entrasse no cômodo maior da casinha.
.... Um sentimento inquietante fora crescendo dentro de
mim...como se eu estivesse voltando para algum lugar familiar.
Meu “coração” parecia encher-se dentro do meu peito...
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 209 ]
Seguindo atrás de “seu” Benedito, pude identificar, tão logo entrei
naquela sala-quarto, o corpinho miúdo de simpática senhorinha,
já contando com suas mais de oito décadas de vida. Estava ali,
quase imóvel. A cabeça empapada de suor. Respirava de maneira
tão breve que mal se podia perceber. Segurava pequeno terço nas
mãos. Ao seu lado, um jarro com água fresca e um pequeno
arranjo de flores que fora deixado naquela manhã por uma visita
que recebera.
“Seu” Benedito aproximou-se da pequena senhora, ajoelhando-se
ao seu lado. Passou carinhosamente sua mão sobre a testa da irmã,
que nesse momento abrira suavemente os olhos, exibindo lucidez,
embora suas forças minguantes. Parecia registrar, intuitivamente,
a irradiação amorosa do nobre Ancião. O Bondoso Amigo,
sussurrava aos seus ouvidos:
- Olá, minha amada irmã.! Estamos aqui contigo, agora! Quanto
tempo! Que felicidade em revê-la, minha irmã, Izaldina!
Meu peito parecia que ia explodir. Minha cabeça girava com os
pensamentos agitados. Aquela era Dona Izaldina, a benzedeira do
meu bairro! E se estávamos tão próximos da minha casa.... Minha
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 210 ]
mãe. Minha mãe... Mestre Caetano e Marcos tocavam-me
delicadamente, tirando-me daquele momento em que me
encontrava em ebulição, a ponto de perder os sentidos novamente.
Mas não me atrevia a lhes perguntar sobre minha casa e minha
mãe. Percebia que não era momento conveniente. Irmão Marcos
afagava-me, com olhar bondoso, identificando meus
pensamentos e demonstrando compreensão. Aos poucos fui
voltando a me centrar e tornei a identificar o que se estava a passar
ali.
Dona Izaldina suspirava brandamente em seu leito, envolta na
aura alvinitente que a circundava, emanada por “seu” Benedito.
Cintilação intensa passara a se irradiar do centro de seu peito e do
alto de sua cabeça, somando-se à do Benfeitor, banhando todo o
ambiente.
Banhava a Luz, a pobreza daquele lugar. Os móveis antigos e
gastos. Os retratos de Jesus e da Imaculada Conceição. Seus
lençóis limpos e humílimos. O fogão pequeno. O armarinho que
guardava mantimentos essenciais. A prateleira com as bonecas de
suas netas.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 211 ]
A Luz iluminava o quartinho ao lado, com sua cruz de madeira,
onde a chama da vela de sete dias acessa, ia minguando-se,
prenunciando o desenlace da devota benzedeira.
O rádio colocado perto da cama de Dona Izaldina, começara a
tocar, baixinho, a Ave Maria. Sua filha mais velha acabara de
entrar, sentando-se à cabeceira, silenciosamente, estendendo-lhe
o copo d’água e uma drágea de algum remédio:
- Filha...filha...
- Oi, mamãe... O que foi?
- Ele está aqui, filha. Nego Benedito... junto com os anjos. Está
na hora de eu partir... filha...
A filha, com lágrimas nos olhos, espelhava o que também nós
sentíamos do lado de cá. Chorávamos. Compadecidos por cena
tão emocionante.
Dona Izaldina, juntando as últimas forças que lhe restavam,
estendeu a mão para que a filha a segurasse. Nesse momento, sob
um gesto de “seu” Benedito, nos acercamos do leito da amável
senhora e começamos a orar. O Mentor retirou do alforje que
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 212 ]
trazia consigo, o frasco com líquido balsâmico e começou a
aspergir sobre Dona Izaldina, enquanto rezava Ave-Marias,
segurando as mãos da benzedeira, enlaçadas pelas da filha,
emocionada. Dona Izaldina dizia:
- Filha, ajuda-me a rezar o Pai Nosso? Pai Nosso que estás no
Céu... – Iniciava, sendo seguida pela filha.
A voz quase não lhe saia mais, qual suave assobio. Réstia de ar
que ainda teimava por querer resguardar a ânsia de vida no corpo.
Os olhos se iam fechando, devagar. As flores ali, agora
preenchiam o ambiente com seu aroma. Os lençóis brancos
simbolizavam a túnica humilde com a qual se cobrem os
trabalhadores de Aruanda no lado de cá. O terço escorrera pelos
dedos. As mãos caiam sobre o corpo, sob a condução suave da
filha amorosa e banhada em pranto. Dona Izaldina arfava o peito
num longo suspiro. Silêncio e lágrimas de todos nós.
A aura clara que envolvia seu corpinho fora se tornando cada vez
mais radiante. “Seu” Benedito afagava o rosto de Dona Izaldina,
enquanto dizia:
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 213 ]
- Venha, minha querida! A Aruanda te espera! Venha! Venha
encontrar sua mãezinha.
Atrás dos dois, de pé e próximo ao leito, frade Roberto pousava
suas mãos sobre a cabeça da velha benzedeira enquanto fitava o
céu, com se aguardasse a um sinal. À porta do cômodo,
observamos um clarão, qual se um raio de sol cruzasse os ares e
adentrasse aquele recinto. Vimos a claridade assumir uma forma
pálida que aos poucos fora ganhando contornos definidos.
Após isso, notamos a figura cândida de uma senhora negra, de
semblante sério, mas ao mesmo tempo doce, abeirando-se do
leito. Foi então que pude notar o espírito de Dona Izaldina já livre
do corpo, sendo abraçada demoradamente por “seu” Benedito. O
Benfeitor, dizia-lhe:
- Veja, minha irmã! Olhe para o lado e veja quem veio até aqui
recebê-la!
- Mamãe!
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 214 ]
As duas senhoras abraçaram-se emocionadamente em lágrimas.
Depois riam-se, amorosamente, enquanto se fitavam no fundo dos
olhos.
A filha chorosa corria para avisar aos irmãos e vizinhos que
acompanhavam os cuidados a Dona Izaldina. A meiga velhinha,
conquanto a energia e a firmeza de caráter com que sempre lidara
com os filhos e com os que lhe batiam às portas, solicitando seu
concurso de fé, como benzedeira, inspirava muitas pessoas
daquela comunidade carente, instituindo-se como um bastião de
consolação e esperança para aquelas pessoas tão sofridas.
Quantas mães não levaram seus rebentos enfraquecidos para que
as mãos abençoadas e crentes de Dona Izaldina as restabelecesse
a saúde e a vitalidade? Quantos os doentes desenganados a
procuravam, buscando esperança e consolação? Quantos os
jovens desorientados?
Crianças, idosos, jovens. Pessoas de várias residências das
proximidades, ao saberem da notícia, acorreram até sua casa,
lotando o quintal e a calçada. Marcelo e sua mãezinha correram
para lá, chorando. Levavam flores nas mãos. Sua gratidão era
imensa por aquela senhorinha.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 215 ]
Um grupo de senhoras, algumas benzedeiras novas que haviam
recebido o “dom” da reza bendita diretamente de Dona Izaldina,
iniciaram uma corrente de oração, naquele quintal apertado.
Caso pudessem ver. Se os olhos daquela gente chorosa, pudessem
contemplar o esplêndido quadro que se nos afigurava naqueles
instantes. A velhinha sendo abraçada por aqueles espíritos
luminosos, “seu” Benedito e por frade Roberto, acompanhada da
alma singela de sua mãezinha, dona Maria do Carmo, que a
entregava nas mãos um lindo buquê de rosas envoltas num cordão
de preces.
Dona Izaldina, dirigia-se aos Benfeitores, apreensiva por ver as
lágrimas dos filhos e daquela multidão que ia preenchendo a casa
e a rua toda. Recebia palavras de encorajamento dos Amigos
Espirituais, que a exortavam quanto a grandiosidade das Leis da
Vida e a necessidade de um repouso para recobrar suas forças.
Dona Izaldina não trazia complicações de saúde graves a não ser
aquelas naturais da idade avançada. Sua vitalidade seria
restabelecida em tempo breve, conforme os Mentores lhe
informavam.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 216 ]
Enquanto os vizinhos e familiares permaneciam movimentando-
se para providenciar o funeral da benzedeira, “seu” Benedito dizia
para nós outros, ao mesmo tempo em que amparava o espírito
ainda combalido da devota senhorinha:
- “Vamos, meus irmãos! A Aruanda está em festa! Assim como
nosso Vilarejo! ”.
Mestre Caetano, Marcos e eu, prosseguiríamos ao encontro do
Peregrino João Ordário, que se encontrava em hospital próximo.
Na entrada do hospital, fomos recebidos por frade Bianco que já
nos aguardava. Conduzia-nos até o quarto em cujo leito se
encontrava dona Rosa, alma querida por João Ordário, localizado
na unidade de terapia intensiva.
Do lado de fora, na área de espera, dois filhos e um casal amigo
aguardavam. O casal tratava-se de dois dos seus filhos de santo,
mais próximos da família. Dona Rosa era mãe de santo em um
terreiro localizado também no interior de São Paulo, em uma
cidade vizinha à minha.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 217 ]
Seu labor por dentro do movimento religioso umbandista era
muito conhecido em várias cidades do estado e mesmo em outros
estados do país. Conduzia um terreiro grande e bonito, contando
com uma comunidade de filhos de santo considerável.
No entanto, seus mais de setenta e cinco anos de idade, sendo
destes, mais de cinquenta dedicados à religião e à militância
social em favor das comunidades carentes, trouxeram consigo
complicações cardíacas que foram se impondo às suas condições
físicas, a ponto de não poder mais sustentar sua permanência à
frente do templo.
Dona Rosa era tida como verdadeira mãe para sua comunidade
religiosa. Viuvara ainda jovem, contando ainda quarenta anos,
tendo o esposo desencarnado em acidente de trabalho. A partir
daí, destinou sua vida ao cuidado dos filhos. Tanto os de sangue
quanto os de fé. Abraçara a coletividade que lotava seu terreiro
como filhos do coração. Dentre eles, muitos jovens carentes,
assim como suas famílias.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 218 ]
Trabalhando como “cavalo de santo” do Caboclo Tamandaré,
trouxera fé e esperança para centenas de pessoas que se socorriam
das atividades religiosas e sociais do terreiro, fosse para tomar um
passe e se consultar com as entidades de Umbanda, fosse para
receber a cesta de alimentos e o pacote de roupas. Até mesmo o
encaminhamento para um tratamento médico ou para matricular-
se numa escola, era o terreiro o ponto para onde aquelas pessoas
se dirigiam.
O terreiro tornara-se uma referência para a comunidade em
termos de promoção social, uma vez que suas portas se abriam,
em dias especiais, para ações de acolhimento e palestras de
promoção da saúde, aulas de alfabetização para adultos e
instrução profissional para jovens aprendizes.
A Casa do Caboclo Tamandaré refletia a Luz que tocava o
coração dos homens espiritual e materialmente, digamos assim.
A história daquele templo de Umbanda, em suas mais de cinco
décadas de atendimento, lembrava-me a citação bíblica do
apóstolo Tiago, a respeito da necessidade da fé se confirmar pelas
obras que produz no mundo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 219 ]
Os braços abertos de Dona Rosa para acolher e atender a quem
quer que fosse, conferiram-lhe grandes méritos perante o povo de
Aruanda, com quem se relacionava frequentemente, fosse nos
dias de gira do terreiro, fosse nos demais dias em que se
formavam verdadeiras filas à porta do Templo para receberem,
tardes e noites adentro, alguma orientação da carismática yalorixá
de Umbanda.
Contudo, o avanço da complicação orgânica seguia celeremente,
minando suas forças físicas. Em pouco menos de um ano, Dona
Rosa já havia se afastado da condução da Casa de Santo, deixando
um grupo de três médiuns, então pais e mães-pequenos do
terreiro, um deles seu filho carnal, como responsáveis pela
continuidade dos trabalhos e atendimento do público. Seu
comparecimento ao terreiro fora se tornando cada vez mais
espaçado, sendo agora acompanhada de sua filha mais nova que
a amparava, devido à dificuldade de movimentação.
Mas Dona Rosa seguia tranquila, apesar da falta que sentia em
estar presente nos trabalhos, aos quais dedicara toda a sua vida.
Contudo, a oração e a meditação silenciosa e serena, aprendida
durante tantos anos sob a inspiração de Caboclo Tamandaré, e
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 220 ]
mesmo sob a influência do Peregrino João Ordário, que se
apresentava a Dona Rosa como um guia de Umbanda, na linha
dos baianos, fizera com que recolhesse equilíbrio suficiente para
providenciar sua sucessão no terreiro, assim como seu
afastamento definitivo, de maneira tranquila, embora a comoção
da comunidade religiosa, muito apegada à sua figura e presença.
Dona Rosa, acamada em seu leito no hospital, demonstrava
registrar lucidamente, nossa presença ali. Embora seu corpo
cansado, aparentando grande inchaço devido às últimas
complicações da cardiopatia, travava contato mental consciente
com o Peregrino, que lhe afagava as mãos, à beira do leito.
Quando se aproximava o relógio das vinte horas, Dona Rosa
agitou-se sob o impacto de abrupto incômodo no corpo. A família
já havia sido informada pelo corpo médico que seu quadro era
crítico e com baixas expectativas de melhora. O Peregrino,
Mestre Caetano e os frades Bianco e Paulo distenderam suas
mãos sobre o corpo da paciente e finos raios de luz começaram a
delas se desprenderem, banhando o leito e recobrindo todo seu
corpo, ao que Dona Rosa pareceu registrar, reconfortando-se.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 221 ]
O irmão Peregrino olhou para nós e nos solicitou que nos
mantivéssemos em prece, pois a hora derradeira daquela irmã
estava chegando.
Enquanto Marcos e eu nos mantínhamos concentrados em oração
e os Benfeitores circundavam o leito de Dona Rosa, na UTI do
hospital, de súbito ouvimos a voz balbuciante da yalorixá, junto
de seus pensamentos, dizendo:
- Muito obrigado, meu Baiano! Muito obrigado, meus irmãos....
Meu pai está chegando para me buscar...
Começamos a ouvir um som parecido com o dos maracás11
indígenas e um tipo de cântico nativo. Fenômeno similar ao que
ocorrera na casa de Dona Izaldina iniciara ali, uma fímbria de luz
dourada, como raio de sol, surgira no meio de nós, tornando-se
cada vez mais intensa, até tomar a forma de portentosa imagem
de um indígena, com semblante grave e sereno, trajando uma
túnica de tecidos verde e vermelho, entrelaçados. O peito desnudo
exibia alguns colares com signos que não soube compreender.
11 Maracá é o nome dado a uma espécie de chocalho indígena, utilizado nas
pajelanças do norte do país (nota do autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 222 ]
Sobre sua cabeça, exuberante auréola luminosa expandia-se em
direção ao alto. Vinha acompanhado de outros guerreiros, de
postura altiva que carregavam vasilhames com folhas verdes,
água cristalina, além de um corte de tecido branco.
- Saúdo aos irmãos! – Disse-nos seriamente, o Guerreiro.
Eu não conseguia expressar nenhum gesto. A presença imponente
daquele espírito, para mim tão indecifrável, era quase como se eu
estivesse diante de uma entidade encantada, mística, de que falam
as lendas dos povos do mundo.
- Seja bem-vindo, Tamandaré! – Respondeu-lhe o Peregrino.
Aguardávamos sua chegada.
Tamandaré aproximou-se do leito e pousou sua mão sobre o peito
de Dona Rosa, que agora estava de olhos fechados. O Guerreiro
ficou naquela posição por alguns momentos até que se iniciaram
os estertores mais intensos no corpo da yalorixá. Conquanto os
espasmos de seu corpo, por reflexo natural das reações motivadas
pela ação do mal que a acometida, podíamos notar que o espírito
da mãe de santo pairava por sobre o corpo e através deste, em
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 223 ]
forma expandida, exibindo contornos luminíferos. Parecia
anestesiada, em espírito, pouco ou nada ressentindo-se da ação
orgânica.
Nesse momento, a equipe de atendimento da UTI já havia
percebido as reações do organismo de Dona Rosa, características
da eclosão de um ataque cardíaco fulminante. Correram para
providenciar o socorro, alertando ao médico responsável, o qual
prontamente entrou no quarto, para comandar os devidos
procedimentos. Tentavam reanimar o corpo de Dona Rosa, o qual
ia se tornando inerme perante o olhar sereno e seguro de Caboclo
Tamandaré e dos Mentores Amigos. O Nobre Guerreiro
aguardava a finalização dos procedimentos médicos para, junto
do Peregrino João Ordário, romperem os liames tênues entre o
corpo espiritual da mãe de santo e o invólucro orgânico.
A equipe fora dar conta do ocorrido para os familiares. Estes, por
sua vez, informaram aos membros da comunidade religiosa, os
quais voltaram-se para providenciar os preparativos para o
velório do corpo daquela mãe amada e querida por todos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 224 ]
Horas depois, o corpo fora recebido no Templo de Umbanda e lá
fora velado e visitado por centenas de pessoas que iam até lá dar
seu “adeus” à yalorixá, Dona Rosa. Pontos eram cantados. Muitos
filhos de santo. Todos de branco. Rezavam. Choravam.
Abraçavam-se. Os atabaques rufavam, em homenagem à líder do
terreiro.
O ataúde que continha seu corpo estava recoberto por flores e fitas
coloridas. Seu corpo vestido com roupa de santo. E seus colares
de conta. E os símbolos das correntes espirituais que compunham
a firmeza e sustentação de seu trabalho mediúnico nas Leis de
Umbanda. Cantava-se aos Orixás maiores e menores. Oxalá,
Oxóssi e ao Caboclo Tamandaré e demais Guias de sua coroa.
Mas, Dona Rosa já se encontrava nos braços da Aruanda.
Envolvida pelo Caboclo Guerreiro e pelos Peregrinos, enquanto
seu corpo astral era banhado pelas ervas, sendo em seguida,
envolta nos tecidos que os Caboclos trouxeram. O espírito da
yalorixá permanecia inconsciente, devido à debilidade que a
doença cardíaca havia ocasionado. No entanto, Mestre Caetano
chamava-nos a atenção para isso, víamos claramente os pontos de
luz no alto de sua cabeça, centro dos olhos e sobre o peito,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 225 ]
cintilando. Fulgurantes. Demonstravam a integridade de sua
saúde mental e espiritual, embora sua falta de lucidez
momentânea.
Envolta naqueles tecidos alvos, Dona Rosa fora conduzida,
brevemente, até o local onde estava sendo realizado seu cortejo
fúnebre, para que esta pudesse ainda receber as vibrações vivas
que se irradiavam dos cânticos e orações entoados pelos seus
filhos de santo. Seu corpo era aos poucos descido ao solo, no
Campo Santo, enquanto era ovacionado por todos os presentes.
Clarão abrira-se em meio à multidão. Tamandaré fez sinal para
que fôssemos em direção ao foco luminoso, enquanto seguia à
frente carregando nos braços o espírito Dona Rosa, ao lado do
nosso Amigo Peregrino. Ouvíamos as palmas e os cânticos de
despedida. Dona Rosa estava entregue à sua Nova Morada, a
Aruanda Infinita.
Atrás, acompanhávamos, Mestre Caetano, Marcos e eu, junto
com os irmãos Franciscanos, dos quais nos despedimos em
seguida. Retornávamos ao Vilarejo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 226 ]
Vitória da Luz
“Umbanda,
Mundo de Amor.
Umbanda,
Recanto de Paz.
Triunfo da Luz
Sobre as Trevas.
Reino de Deus,
Santos e Orixás”.
Meses haviam se passado. Continuávamos nossos dias de
trabalho e aprendizado no Vilarejo. Nesse período, tão necessário
para que eu pudesse assimilar e refletir sobre tantas coisas
fantásticas que havia presenciado. Tudo provocava em mim uma
série de dúvidas e anseios. Todos os Mentores Amigos do
Vilarejo, tal como Mestre Caetano e “seu” Benedito, diziam-me
que estas dúvidas e aflições seriam sanadas e colocadas em seus
devidos lugares com o passar do tempo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 227 ]
Ao mesmo tempo, era fascinante para mim saber que me era
concedida a graça de vivenciar tantas experiências neste mundo,
sobretudo vivo e mágico, de energias manifestas, como o é esta
Aruanda Maior.
O sistema de vida. A relação entre as pessoas. Para mim, um
modelo muito diferente do que conhecera na Terra. Não obstante
a ausência de tecnologias e sistemas complexos, tal como os
presentes hoje na sociedade terrena, os fenômenos que nos
envolviam eram extremamente mais intrincados e distantes da
compreensão racionalizada do homem hodierno.
Um mundo extremamente sensível a todas as nossas emoções e
pensamentos. Realmente, a condição de ser Espírito traz consigo
um grande espelho a refletir, sem possibilidades de máscaras ou
qualquer dissimulação, como mecanismos de defesa, qual a
realidade psicológica de cada ser.
Víamos grandes exemplos a cerca disso quando estagiávamos,
João, Ana e eu, nas Grutas de Socorro. Enquanto nossas amigas,
Dona Izaldina e Dona Rosa, levaram poucas horas em repouso,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 228 ]
recebendo algum tipo de cuidado, para logo após despertarem em
total posse de suas forças e faculdades espirituais, outros havia
que lá estavam sob cuidados há meses e até anos, ou, nos piores
casos, necessitando de remoção para outros planos, tamanha
gravidade de seus desequilíbrios, assim como o caso de José, o
ex-policial.
Da mesma forma, quando estávamos auxiliando no cuidado das
crianças daqui. Os pequenos, devido a intensidade de algumas de
suas faculdades psíquicas, como a fantasia, por exemplo, faziam
com que estas se tornassem grandes produtoras de fenômenos
diversos. Enquanto brincavam ou entretinham-se com as histórias
que lhes contávamos, a criançada tornava-se o centro originador
de espectros luminosos que pairavam no ar, além de flores,
brinquedos e outros objetos que se corporificavam ali, fruto do
pensamento intenso, impregnado de emoção e da imaginação
criativa dos pequenos.
Aliás, João e Ana encontravam-se cada dia melhor. Eles também
puderam experimentar aquele fenômeno de “transporte”
dimensional que fora realizada por Mestre Caetano
anteriormente, lá na Clareira da Mata. Retornaram muito
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 229 ]
emocionados por terem retomado contato com um trabalho de
Umbanda na Terra. Mestre Caetano, dissera que para eles era
muito importante, pois como iniciados e adeptos da religião, a
presença dos irmãos em meio às correntes de energias, emitidas
pelos cânticos e preces ao longo da gira, beneficiava-lhes
sobremaneira sua condição espiritual, fortalecendo suas
condições emocionais e a integridade de seus corpos espirituais,
auxiliando em seus restabelecimentos.
Certo dia, recebemos novo convite de Mestre Caetano para
revisitarmos aquele Terreiro de Umbanda que havia conhecido
junto dos Peregrinos.
João e Ana estavam bastante ansiosos por retornar e ter contato,
dessa vez diretamente, com a dimensão terrena. Chegamos ao
Templo umbandista e lá encontramos a assistência repleta de
pessoas. Os médiuns já estavam todos em seus lugares, orando e
entoando cânticos antecedentes ao início dos trabalhos daquela
noite.
Após o início dos trabalhos, com a defumação e a evocação da
linha dos Pretos-Velhos, o médium dirigente incorporara, em um
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 230 ]
fenômeno de intensa interpenetração mental, um nobre Espírito,
cuja Coroa Iluminada, perante as Leis Sagradas de Umbanda,
trazia o nome de Pena Vermelha.
Pena Vermelha não costumava “baixar em terra”, como se diz
popularmente no meio umbandista, mas nesse dia viera para
atender a um caso especial.
Após a formação da corrente de médiuns, estabelecida para o
trabalho de passes e atendimento da assistência geral, “seu” Pena
Vermelha solicitou que fossem chamados ao centro do terreiro
duas pessoas que haviam vindo de cidade distante, em busca de
consolo para seu drama pessoal. Reparei que se tratava de um
casal. Na verdade, uma senhora já idosa, aparentando mais de
sessenta anos e um jovem senhor, em torno de quarenta e cinco
anos. Estavam juntos, mas até então não conseguira entender qual
a relação entre eles. Conversavam ao centro do terreiro com o
sacerdote umbandista, o qual se encontrava totalmente envolvido
na irradiação espiritual de Pena Vermelha que os escutava com
semblante sério e atento, conforme a máscara que imprimia na
face do médium que lhe assimilava com grande fluidez seus
pensamentos e expressões.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 231 ]
Permaneciam ambos de pé ali, até o momento em que “Seu” Pena
Vermelha solicitara aos médiuns que formassem um círculo em
torno deles, dando-se as mãos. Percebi uma sensação diferente,
qual uma vibração manifestada por alguém ao meu lado. Nosso
amigo, João, estava parado, rígido, como se estivesse
hipnotizado, com o olhar fixo naquelas pessoas. Mestre Caetano
já o abraçava suavemente, demonstrando saber antecipadamente
do que se tratava. Na hora me veio a recordação de sua história e
pude reconhecer aquela senhora. Era Dona Rosalina, sua
mãezinha. O homem que a acompanhava ali era Leonardo, o
infeliz irmão de santo de João.
Foram trazidas duas cadeiras para que ambos pudessem se sentar.
Dona Rosalina, pelas condições emocionais e pelo cansaço.
Leonardo, devido às visíveis limitações físicas, características de
algumas das sequelas resultantes do fatídico acidente. Agora,
ambos se encontravam unidos ali. A mamãe saudosa e chorosa. E
o amigo ressentido pela culpa na tragédia.
Sob o sinal do Caboclo, os médiuns, de mãos dadas, passaram a
rezar em voz alta o Pai Nosso. “Seu” Pena Vermelha prosseguia
dizendo algumas palavras aos dois assistidos, enquanto mantinha
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 232 ]
as mãos do médium sobre a cabeça de ambos. Os ogãs passaram
a cantar um ponto de louvação a Oxalá, ao Pai Maior, solicitando
a cura e a limpeza para as almas sofridas daqueles irmãos.
O médium, imantado ao espírito Pena Vermelha, mantendo as
mãos espalmadas sobre Dona Rosalina e Leonardo, fechara os
olhos em profunda concentração. Pena Vermelha, fitava o Céu,
como se pedisse auxílio ao Plano Celeste, evocando as energias
vibrantes que passaram a construir um halo protetor dentro
daquele círculo formado pela corrente mediúnica, onde os
assistidos permaneciam.
As vozes da curimba entoavam agora uma cantiga, mais ou menos
com essas palavras:
“Foi Zambi quem criou o mundo,
É Zambi quem vai governar.
Foi Zambi quem criou as Estrelas
Que Iluminam Oxóssi
Lá no Juremá”12
12 Ponto de domínio público, entoado nas casas de Umbanda na linha de
Caboclos de Oxossi (nota do autor)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 233 ]
Uma grande emoção tomava conta do ambiente. Do lado de cá,
espíritos trabalhadores também se uniam em corrente de oração,
em favor daquele momento. Raios luminosos luarizavam o rosto
daqueles dois irmãos ali, banhados em lágrimas, enquanto “seu”
Pena Vermelha, agora ajoelhado, tocava os ombros da mãezinha
e do amigo de João, dizendo:
- A filha acredita na força de Zambi? E o filho? Acredita na glória
de Zambi? Então, esse Caboclo vai trazer sinal do Céu para
colocar alegria no coração dos irmãos amados”.
Levantando o médium, Pena Vermelha estendia sua destra para o
alto, gesto esse repetido exatamente pelo cavalo de santo, o qual
nesse instante irradiava de si grande quantidade de fluido vital,
espalhando-se por dentro dos limites do halo luminoso que os
envolvia, qual substância leitosa e vaporosa.
Nesse momento, vimos surgir, diante de nós, onde nos
encontrávamos, Mestre Caetano, Marcos, João, Ana e eu, um
ponto brilhante, o qual em seguida estendera-se em direção a João
que estava totalmente entregue aos braços de Mestre Caetano.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 234 ]
João ia sendo envolvido naquela Luz, sendo por esta totalmente
recolhido.
Avistamos o espírito João surgir no centro do terreiro, abraçado
por “seu” Pena Vermelha e, em seguida, sendo imantado aos
centros nervosos e perispirituais do médium. Em questão de breve
minuto, o sacerdote, após imperceptível alteração corporal, sem
exibir trancos, gritos, tremores e sacolejos violentos,
demonstrando disciplina e a educação mediúnica saudável, abrira
os olhos, sustentando em sua corrente mental o espírito do nosso
amigo João, num fenômeno conhecido, em linguagem popular de
algumas casas de Umbanda, com o nome de “puxada” ou
“transporte”. Dizia:
- Mamãe! Mamãe! - João irradiava seu pensamento
espontaneamente, sendo repetido automaticamente pelo médium,
em profunda concentração.
- João, meu filho! – Dizia a senhora, prostrada.
- Mãe, quanto tempo! Que saudades da senhora! Oi Léo, meu
amigo! Saudades. Muitas saudades de vocês. Desde aquele dia...
Mãe, me perdoe! Aquele dia eu saí e nem me despedi da senhora!
Não dei atenção ao que você dizia, nem quis pegar o terço que a
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 235 ]
senhora queria que eu levasse lá no terreiro, naquela noite. Me
perdoe! E, você, Léo, não se sinta tão culpado. Eu errei. Fui eu o
responsável maior pela minha sina. Agora, vivemos de lados
diferentes da vida. Vocês aí e eu aqui. Mas saibam que eu estou
bem! Tenho muitos amigos por aqui que cuidam de mim e com
quem eu moro desse lado de cá, trabalhando e aprendendo.
Mãe, saiba que estou indo muito bem! Muita saudade! Mas oro e
peço a Deus que proteja a senhora todos os dias!
Leo, você sempre vai ser meu irmão e amigo! Não carregue a
culpa com você. Espero que tudo isso tenha servido de lição para
nós dois. Mas a vida prossegue. Não se aprisionem na saudade
que dói ou no remorso que paralisa a gente diante da Vida. Leo,
cuida de minha mãe.
Mãe, saiba que sempre lembro da senhora. Lembro de quando eu
saía para trabalhar e você me dava um beijo, pedindo a São Jorge
proteger-me. Eu estou aqui mamãe, sob a proteção dele e de Deus,
nosso Pai.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 236 ]
Fiquem em paz. Não vou pedir para não terem saudades de mim,
pois eu também tenho muita de vocês! Lembre-se que eu te amo,
mamãe! Eu amo você e o pai. Manda um beijo para todos lá em
casa. Leo, não esquece. Cuida da minha mãe!
Amo vocês! Amo demais! Eu preciso ir, mamãe.... Preciso ir...
Silêncio. O médium calara-se, enquanto o espírito João, agora
quase inconsciente, era desligado dos centros nervosos do
sacerdote, e “seu” Pena Vermelha o entregava aos braços de
Mestre Caetano, com cuidado e carinho.
Ouvíamos os médiuns cantando:
“Oxalá, meu Pai
Tem pena de nós.
Tem dó.
Se a volta do mundo é grande,
Oxalá,
Seu Poder é maior”.13
O médium ia retornando a si, não mais incorporado, mas ainda
sobre o influxo mental do Nobre Caboclo. Via Dona Rosalina e
13 Idem (n.a)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 237 ]
Leonardo abraçados, chorando. Afagou ambos. Abraçou-lhes.
Pediu que cambones trouxessem água fresca. Deu-lhes de beber.
A corrente mediúnica agora rezava em silêncio. O Sacerdote de
Umbanda aguardava que ambos se refizessem. Saiam agora,
retomando seus lugares na assistência. Seus semblantes aliviados.
Uma marca indelével foi posta em seus corações, assim como no
amigo João, em favor da libertação e do crescimento emocional
dos três.
Eu estava embevecida com mais um acontecimento que
desconhecia. Dar testemunho disso é uma gratidão imensa que
sinto.
Precisávamos ir, agora. João adormecido sobre os braços de
Marcos e Mestre Caetano. Quanta emoção. Enquanto nos
afastávamos, ouvíamos na distância as vozes do terreiro:
“Meu Pai caminha com eu agora.
Meu Pai caminha com eu agora.
Sou filho Seu, pequenino.
Minha missão é tão grande.
Valei-me, Nossa Senhora!
Valei-me, Jesus Menino! ”
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 238 ]
Sagrado Coração
“Sagrado Coração de Jesus
Tende Piedade de nós.
Sagrado Coração de Maria,
Seja a nossa Salvação.
Em romaria suplicamos,
Preenche nosso coração
Desse Amor que só Deus
Pode nos dar”.
Saíamos para mais um dia repleto de trabalho e oração em
companhia dos amigos do Vilarejo. Era uma manhã em que o sol
ainda ia se erguendo no horizonte distante, entremeado de
montanhas altaneiras. Sentia-me com o peito tão suave e cheio de
alegria que não me cabia em mim. Sorria espontaneamente. E
cantarolava. Cantava as cantigas que havia aprendido aqui.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 239 ]
Meus amigos sorriam também. Os olhos brilhavam. Não sei se
contagiados pelo meu entusiasmo. Ou, talvez, porque também
estivessem preenchidos por aquela vibração de plenitude que as
paisagens deste Recanto de Paz, nosso Vilarejo, emanava de todas
as pessoas e lugares.
Cada detalhe. Cada casinha. Cada flor. A beira do Riacho. O
Santuário. As Grutas. Os campos. As plantações. As danças.
Dançávamos, cantando. Rindo. Logo cedo! Um ânimo leve e
repleto de energia nos invadia a todos.
Saindo para uma das passagens que divisavam os limites do
Vilarejo, nos encontramos com um grupo de Samaritanos que
estavam saindo em uma expedição, cuja jornada destinava-se ao
trabalho de resgate e socorro das almas que se encontravam nos
vales próximos. Carregavam consigo uma matilha de cães que
parecia tão animada quanto nós. E alguns Samaritanos seguiam
montados em cavalos, cantando toadas e declamando versos.
Irradiavam muita força e vigor. Homens e mulheres, em
montarias. Semblantes compenetrados. Carregavam padiolas
desmontadas, presas às celas dos cavalos. Mestre Antônio
Quirino, um dos líderes dos Samaritanos, estava à frente da
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 240 ]
expedição, montado em seu ginete. Calado. Fitava o horizonte,
em direção ao sol que ia levantando-se atrás das montanhas.
Parecia aguardar um sinal propício da natureza.
Foi então que a luz do sol, se elevando um pouco mais por detrás
dos montes, atravessou o vale, rompendo entre as árvores e
dissipando as sombras restantes da noite. Vinha em nossa direção,
iluminando a estrada. Mestre Antônio bateu palmas e, entoando
brados, deu comando ao seu corcel belo e altivo, puxando atrás
de si a caravana dos Samaritanos. Os cães iam alegres, correndo
em torno e à frente das montarias.
Na saída da caravana, energia tão grande nos erguera do solo,
atraindo-nos para o meio dos Samaritanos. De pronto, nos
entregaram a guia de alguns cães. Para outros, distribuíram
padiolas menores e alforjes com medicamentos e alguns
instrumentos que me pareciam algumas ferramentas, além de
cantis com água e remédio.
Alguns cavaleiros e amazonas, distribuídos em toda a extensão
do grupo, levavam consigo estandartes com o símbolo do Sagrado
Coração de Jesus.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 241 ]
Uma das amazonas que levava o estandarte era Mestra Mariana
de Souza, braço direito de Mestre Antônio na liderança dos
Samaritanos. Era uma mulher muito bela. Marcada por uma
postura firme e serena. Cabelos longos e negros desciam-lhe
pelos ombros. Olhos grandes e redondos, de cor castanho escuro.
Tiara de couro e brincos de pena. O desenho de suas grossas
sobrancelhas, assim como de seus lábios, harmonizados com os
traços marcantes de seu rosto, davam conta de sua descendência
indígena. Ela era a guardiã da flâmula do Sagrado Coração de
Jesus.
Nós deveríamos andar próximos dela, sem nos afastarmos.
Passaríamos por locais de difícil acesso. Caminhos sinuosos, por
trás das montanhas distantes. Locais que até então ainda não
tínhamos visitado. Os Samaritanos nos disseram serem até
perigosos alguns pontos por onde passaríamos, por isso
deveríamos nos manter dentro do grupo, protegidos pelos cães e
pelos cavaleiros.
Depois de longa caminhada, em que já havíamos percorrido
grande distância a ponto de passarmos a avistar, a muitos metros
abaixo da trilha por onde descíamos, um grande abismo,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 242 ]
totalmente encoberto pelas sombras. Iríamos até lá, segundo nos
dissera Mestra Mariana. Contudo, por conta da nossa presença,
na condição de aprendizes, a expedição não desceria até os níveis
mais profundos.
- Dentro destes pélagos, em suas profundezas, existem muitas
áreas que nem mesmo nós somos habilitados e autorizados a
entrar. Somente os Anjos e os Seres Despertos podem levar sua
luz, a fim de resgatar as almas que lá habitam, por necessidade e
cumprimento das Leis Divinas” – Asseverou Mestra Mariana.
Fomos adentrando um pouco mais pelo resvaladouro, quando
começamos a ouvir os primeiros gemidos e gritos de socorro que
se passaram a avolumar, conforme nossa aproximação. Sombras
escuras pareciam rastejar em poços próximos a nós. O breu que
nos circundava quase não nos deixava reconhecer onde
pisávamos. Os relinchos dos corcéis em marcha lenta e os latidos
dos cães preenchiam o ambiente, junto dos gritos por ajuda. A
umidade e o som de corpos movendo-se nos charcos, além das
sombras das galhagens retorcidas, trazia um peso àquela
atmosfera, algo sufocante.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 243 ]
Mestre Antônio seguia a frente. Parecia ter objetivo específico
naquela incursão pelo vale sombrio.
Ao me voltar em direção ao ginete que era conduzido por Mestra
Mariana, vi que esta sustentava com as mãos sobre sua cabeça,
uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. A escultura emanava
luz, assim como os estandartes levados pelas montarias.
Avançando ainda mais pelo caminho lamacento, os Samaritanos
estancaram. Sob os brados de Mestre Antônio, alguns
trabalhadores adentraram nos charcos junto com alguns dos cães
da matilha. Com grande dificuldade, eu os via puxando, em um
trabalho sincronizado entre trabalhadores e cães, alguns seres
para fora do pântano, sendo estes em seguida colocados sobre as
padiolas, banhados e envoltos em tecidos. Alguns recebiam água
e remédio.
Havia alguns casos em que, ao se tentar retirar alguns espíritos
dos lodaçais, mãos trevosas, retraídas feito garras agressivas,
tentavam lutar com os cães e os Samaritanos, dificultando a
retirada daqueles que estavam sendo recolhidos. Outra parte da
matilha avançava em direção à estas formações enegrecidas que
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 244 ]
levantavam das sombras, intimidando-as e afugentando-as,
enquanto Mestre Antônio pronunciava Ave-Marias. Por fim, os
Samaritanos resgataram, naquela breve atividade de socorro,
cerca de trinta irmãos.
Uma vez que pouco mais de uma dezena daqueles irmãos haviam
sido devidamente tratados e colocados nas padiolas, as quais eram
montadas sobre uma estrutura que as permitia serem presas às
montarias, Mestre Antônio solicitou que parte dos socorristas
voltassem conosco, os aprendizes, com aquelas almas que
deveriam ser levadas ao Vilarejo, para serem cuidadas. Os demais
socorristas deveriam prosseguir com o trabalho.
Mestra Mariana nos conduziria de volta para nosso Vilarejo.
Tínhamos uma relativa dificuldade no transporte daqueles
irmãos, os quais pareciam colocados sob uma condição de coma
induzido. Isso tornava nosso trajeto de retorno mais demorado.
Quando, enfim, conseguíamos chegar às portas do Vilarejo,
fomos ajudados por Marcos, João e Mestre Caetano, entre outros
companheiros, para que aquelas almas, nossas irmãs, retiradas do
lamaçal da dor e do sofrimento, tivessem a oportunidade de
chegarem às Grutas de Recuperação.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 245 ]
Ficamos ali, junto com os amigos e Mestra Mariana, às portas do
Vilarejo. A altiva amazona olhou para nós com carinho, deu-me
um abraço caloroso e partiu, montada em seu cavalo. Voltaria,
junto dos Samaritanos, aos abismos para continuar buscando as
almas aflitas, desejosas do amparo e da redenção ao Amor de
Cristo.
- Nossos Amigos Samaritanos, tal como Mestre Antônio e Mestra
Mariana, abraçaram a fé no Sagrado Coração de Jesus há muito
tempo.
São Devotos de Maria e de seu Filho Amado, adotando como
símbolo o Sagrado Coração de Jesus, como emblema do seu
propósito de fé e relação íntima com Deus, uma vez que o
Coração de Jesus e de Maria têm como significado maior a
compreensão de que o Amor de Deus pelos homens é
incondicional e a fonte inesgotável onde cada um pode obter sua
redenção. A única força. O único dom concedido ao homem,
capaz de promover sua libertação espiritual. Estar no Coração de
Jesus, em seu Sagrado Coração, é ser acolhido pela imensidão do
Seu Amor, o Amor Divino, e por ele receber a Consolação e a
Superação do sofrimento da alma.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 246 ]
Ser devoto do Sagrado Coração é expressar essa devoção como
missão de fé em Deus, com a vocação de prestar auxílio caritativo
e desinteressado ao próximo, em atitude de renúncia e entrega
pessoal em favor do Bem de todas as Almas humanas, em ambos
os lados da Vida.
Ser devoto do Sagrado Coração, tal como estes Samaritanos, é
trazer para as almas a oportunidade de redenção, inspirada pelas
mãos estendidas de outra alma humana, emulada e envolvida no
sentimento cristão.
Oremos por estes trabalhadores de Cristo, em sua jornada
incansável de receber em seus braços, sustentados pela fé viva, as
almas sofredoras e cansadas, valendo-se do Sagrado Coração para
dar-lhes Caminho, aqui na Aruanda”.
Enquanto ouvia as palavras de reconhecimento e profundo
respeito de Mestre Caetano, avistava os contornos cada vez mais
distantes dos Samaritanos e da Amazona, sua líder, se perdendo
na estrada iluminada pelo sol daquela tarde.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 247 ]
O Mestre Divino
“Mestre Divino,
Amigo Jesus.
Das Estrelas, Sublime Peregrino.
Colore de beleza
Nosso existir.
Na glória de Seu Sacrifício,
Em Suas Mãos buscamos
Alicerce para nossas almas.
Seu Olhar Compassivo,
Permita-nos olhar.
Temos anseio de Paz.
No Seu Abraço,
Aguardamos um dia
Poder repousar”.
Quando me demoro a meditar na vida e em tudo quanto tenho
podido testemunhar por aqui, encho-me de felicidade e plena
confiança de que me encontro amparada no Coração de Deus.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 248 ]
Penso que se pudesse materializar partezinha do Criador, essa
ínfima partícula de Sua Imensidão de Amor seria o Vilarejo. Estar
entre essas pessoas, esses corações amorosos e simples, era como
se estivesse em meio a uma grande família, acolhedora e gentil.
Via-me, assim como os meus amigos, cercada de sorrisos e
compreensão. Orientação e carinho. A presença de Mentores tão
amáveis quanto Mestre Caetano e “seu” Benedito, enchia-me de
segurança íntima e tranquilidade para adaptar-me nesse mundo
mágico e encantador. Enquanto refletia e rememorava minha
existência. Tempo de temperança. Consciência diante da Vida.
Caminhando do centro do Vilarejo até o Santuário, passeava pelo
pequeno bosque. Observava as árvores frondosas e seus frutos.
Contemplava, à distância, a margem do riacho. Amava deitar-me
naquela relva fresca e olhar as nuvens a passar no céu. As tardes
em que podia descansar, em um tempo de folga dos trabalhos,
passava-as ali, lendo algum livro da nossa biblioteca. Sim, temos
uma biblioteca aqui também. E temos pessoas que cuidam dela.
Ou, entretinha-me com meu terço entre os dedos, em prece.
Exercício de ligação com Deus, conforme aprendera junto dos
Anciões.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 249 ]
Vinha perdida nos meus pensamentos quando cheguei aos portões
abertos do Santuário. Atravessei-os. Os jardins que contornam
toda a construção estavam muito bonitos. As flores com seus
botões todos abertos e coloridos. A passarada voando e cantando
entre os arbustos. Borboletas dançando por todos os lados. O
Santuário estava com suas portas abertas. Ao entrar, notei que
haviam alguns irmãos ali, rezando em silêncio, entregues, cada
um, ao seu próprio diálogo com o Divino.
Olhei o altar. A figura de Jesus, com seus braços abertos estava
no alto. Logo abaixo, a Imaculada Conceição. São Francisco de
Assis. São Benedito. São Sebastião e São Jorge. São João Batista.
Santa Clara. Todos os santos de devoção popular figuravam ali,
em composição harmônica nos andares que lhes sustentavam.
Flores frescas e em tom claro embelezam ainda mais o altar,
adicionando seu aroma àquele ambiente de paz. Algumas velas
acesas. Entreguei-me às horas, ali. Orando. Meditando acerca dos
meus planos. Sobre minha próxima oportunidade de reingressar
na romagem terrena. Pedia à Jesus Cristo, o Mestre Divino, a
clareza interior para saber escolher, se me fosse possível, as
circunstâncias da minha nova encarnação. Seria eu mais lúcida e
consciente de minhas necessidades e características emocionais
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 250 ]
nessa nova existência? Afinal, progredir espiritualmente implica
em ampliar nosso nível de consciência interior. Mais uma vez,
lembrava-me dos conselhos a respeito do tempo. O tempo. Dar-
me o benefício do tempo.
Precisamos desta tão importante Lei Natural para estabelecermos
nosso equilíbrio. Talvez seja por isso que grandes modificações
no espírito humano levem tantos anos para se consolidarem. A
mudança de hábitos. A execução de novos planos para a vida. O
perdão. Questões tão necessárias à alma humana podem levar
uma encarnação inteira, ou até mais, para florescerem no interior
do homem e da mulher. Talvez por isso o tempo aqui passe num
ritmo diverso do tempo da Terra.
Jesus sabia bem disso. Mais de dois milênios desde que o Meigo
Rabi andara pelo mundo dos homens e, ainda hoje, seu Evangelho
de Luz está distante de ser apreendido em sua inteireza pela
humanidade, conquanto as suas consideráveis conquistas.
Abri os olhos e fitei a paisagem do lado de fora. A tarde já
sinalizava os primeiros passos de transição, para o surgimento do
anoitecer. Saindo para o jardim lateral, vi “seu” Benedito ali,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 251 ]
sentado em um banco. Pintava uma nova imagem. A imagem de
um Anjo.
- Trata-se do Anjo Ismael, minha menina. Falou o Bondoso
Ancião.
“Junto de São Miguel, os Arcanjos do Senhor, espalham a Luz
Divina, como arautos de Nosso Senhor Jesus. São os guardiões
das Leis Divinas e os faróis que iluminam os vales da existência
humana, em espírito e matéria. Pela passagem do Mestre
Nazareno pelo planeta, ficaram estes Seres Divinos, Ismael e
Miguel, junto de outros Seres Despertos, encarregados de
sustentar com a glória espiritual de que são investidos, as
paisagens no mundo das almas, nessa Aruanda Bendita. Os Bem-
Aventurados e os sofredores, todas as almas se abrigam sob a
Misericórdia destes Seres Angelicais, prepostos dos Nazareno”.
Concluiu, olhando-me nos olhos.
Abracei aquele Mentor Amoroso, meu “avô” aqui na Aruanda e
coloquei-me de regresso ao Vilarejo. Certamente, aquele fim de
tarde estaria muito alegre por lá, com a chegada do momento da
partilha do trabalho do dia.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 252 ]
Ao passar próximo dos campos de cultivo, avistei ao longe, as
irmãs Dona Rosa e Dona Izaldina, ambas estavam com um grupo
de trabalhadores do Vilarejo, auxiliando no recolhimento dos
vegetais que foram colhidos. Sorriam gostosamente. Pareciam
leves e despreocupadas.
- Olá menina. Disse-me a benzedeira, Dona Izaldina.
- Olá Dona Izaldina. Como vai a senhora?
- Estou ótima, minha filha. Agora não tenho mais aquele cansaço
no corpo que nos últimos anos eu sentia. Tenho estado muito bem,
na companhia destes irmãos do Vilarejo e de Benedito. Aqui é
muito parecido com o que imaginava ser esse pedacinho da
Aruanda. Mas tudo muito mais belo! Estou encantada, Clarinha.
Encantada.
- Que bom, Dona Izaldina! E você, Dona Rosa? Como tem
passado?
- Tudo ótimo, menina! - Disse-me com largo sorriso. Não tenho
mais a dor enorme no peito, nem mais as dificuldades para
respirar. Sinto-me mais jovem, até. Veja só! – Rimos juntas.
- Muito bem! Estou muito feliz em vê-las bem! Agora, preciso
voltar lá para o centro do Vilarejo. Vocês vêm também?
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 253 ]
- Agora não. Temos que terminar de colocar a colheita nos cestos.
Mas daqui a pouco já vamos. Encontramos você lá!
- Tudo bem, então! Vou indo!
- Clarinha...Só uma coisa.... Você já teve alguma notícia de sua
mãe? – Perguntou-me Dona Izaldina.
- Não, Dona Izaldina. Por enquanto, ainda não tive
oportunidade... Mas, tudo tem seu tempo, não é?
- Sim, filha. Tudo tem seu tempo. Mas, se eu puder lhe dizer algo,
posso dizer que da última vez que me encontrei com sua mãe ela
estava bem. Muito firme, como ela sempre foi.
- É, Dona Izaldina? Você viu minha mãe?
- Sim, na ocasião não tive tempo de conversar com ela, mas pude
notar que tanto sua mãe quanto seus irmãos, estão bem.
- Que bom! Com isso, já fico feliz!
Despedi-me das sorridentes senhoras e segui. Aliviada pela breve
notícia a respeito de minha mãezinha. Era bom saber que estava
tudo bem com ela e meus irmãos. Mentalizava uma prece por eles.
Pedia a Nossa Senhora que a distância não se fizesse motivo de
grande dor para mim e nem para minha mãe.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 254 ]
Chegando ao centro do Vilarejo, muitas pessoas já se
encontravam por lá. Reunidas em conversação saudável. Marcos,
João e Ana estavam sentados com Mestre Caetano e sorriam.
Juntei-me a eles. Logo após, vi “seu” Benedito chegando com
Dona Izaldina e Dona Rosa. Um ancião dedilhava as cordas de
um violão, cantando algumas modinhas. A tarde ainda imperava,
resistindo à chegada de algumas estrelas que já vinham lhe visitar.
A silhueta da Lua contrapunha-se ao Sol distante, pondo-se no
horizonte, deixando o céu em tom violeta. Pássaros em revoada
dançavam nas alturas sem nuvens.
Observei que um grupo maior de pessoas, além do habitual,
estavam a se reunir junto a nós. Até mesmo os Samaritanos,
Mestra Mariana e Mestre Antônio. Alguns médicos da gruta eu
podia ver caminhando na direção em que estávamos, descendo
pelo pequeno monte colocado ao extremo norte do Vilarejo.
Embora não fosse um chamado formal, sentia que ocorreria
alguma reunião comunitária de importância.
Vi o Ancião José, vindo acompanhado por algumas pessoas. O
Peregrino João Ordário estava com ele. “Seu” José, Pai José,
como é chamado por muitos daqui, vinha de mãos dadas com
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 255 ]
alguns pequenos. Andar firme e ereto. Semblante tranquilo e
profundo. A bata em tom claro que estava usando, deixava
entrever um colar de contas brancas e azuis. Atravessou em meio
as pessoas da comunidade, cumprimentando-nos a todos.
Dirigindo-se à pedra angular, que lhe servia de cadeira, na qual
sentava-se para conversar fraternalmente conosco, nosso líder,
Pai José, aconchegou-se, recostando-se a ela.
Neste gesto simbólico, pleno de significado pela própria
simplicidade, todos compreendiam o momento, silenciando as
conversas e voltando-se todos para a figura do Ancião. Próximo
a ele, pude notar que estavam “seu” Benedito e Mestre Caetano.
Como daquela vez em que cheguei ao Vilarejo, Pai José deitava
seu olhar amoroso sobre nós, parecendo penetrar em nossa alma.
Eu pensava, mais uma vez, comigo mesma. “Seria aquele Ancião
um daqueles Seres Despertos, citados por seu Benedito? ”. Não
saberia dizer, mas a grandeza de sua presença parecia preencher
todo aquele Vilarejo.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 256 ]
“Meus irmãos e irmãs. Desejo saudar a todos e cumprimenta-los
pelo trabalho dedicado que todos vêm realizando, por amor a
Vida e a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Aos nossos irmãos mais novos, chegados mais recentemente ao
núcleo de nossa Comunidade, também quero agradecer-lhes pelo
carinho e gratidão com que laboram nas mais diversas atividades
que exercemos, em especial, no cuidado com os irmãos que nos
chegam, merecedores de amparo e compaixão.
No dia de hoje, nosso Vilarejo completa dois séculos de
existência. Há dois séculos recebemos a incumbência de
edificarmos nestas paisagens abençoadas pelo Criador e seus
Numes Celestes, essa Comunidade protegida e guardada por
nosso Vilarejo.
Os enviados de Maria, a Imaculada Conceição, nos trouxeram até
aqui, entregando-nos, pelo desejo sincero de servir ao Seu Filho
Amado que preenchia nosso coração, as ferramentas de que
precisávamos para construir nossa morada, nesta Aruanda
Bendita.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 257 ]
Cobertos pelo Manto da Senhora da Luz, trabalhamos nestas
terras, junto destes meus amados amigos, Benedito e Caetano,
além de outros Anciões que aqui estão. Maria Rosa, Luiza, João,
Joaquim, Antônio, Tião... Braços amigos e operosos que nos
ajudaram a construir o Lar Abençoado onde hoje podemos sentir
e testemunhar a imensidão deste Mundo Maior, qual é a Aruanda.
Junto a isso, também recebemos muitas responsabilidades que
nos chamavam a estender nossos braços, em tarefa de
acolhimento, a muitas outras almas que aqui viessem aportar,
necessitadas de socorro, consolação e paz. E é isso que buscamos
entregar por amor a Nossa Mãe Imaculada e a Nosso Senhor
Jesus.
Nosso Amado Mestre prometera, pelas palavras que nos foram
ditas por sua Santa Mãe, nunca nos desampararia, sendo para nós
o alicerce de nossa fé e gratidão à Vida. E, realmente, Ele assim
o faz, nos enviando, de tempos em tempos, os Seus Divinos
Sinais”. Pai José estava visivelmente emocionado. Calara-se
agora, por alguns momentos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 258 ]
Bólidos cadentes cruzaram o Céu. Estrelas cintilavam. O violeta
que tingia o firmamento prosseguia embelezando aquele fim de
tarde, repletado de luzeiros. Até mesmo os pássaros, agora
aninhados nos arvoredos pareciam prestar atenção no Ancião.
“Então, hoje, conforme recebêramos notícias de nossos
Protetores Celestes, Nosso Senhor nos reserva mais uma
demonstração de Sua Amorável Presença entre nós, guardada
para esse fim de tarde, em que Ele, o Nazareno, irradiando Seu
pensamento de amor inalcançável por nós, nos fará sentir a
Verdade de Sua Ternura e Compaixão pelas almas humanas, Seus
humílimos filhos amados. Por conta disso, quero convidar a
todos, nesse momento, para que possamos nos unir num momento
de oração, para que o Sinal de Jesus possa chegar até cada um de
nós e, além disso, para que Seu Amor e Misericórdia possam
atingir, como Luz Salvadora, os abismos e vales de sombra que
nos circundam, onde buscamos socorrer e amparar as almas que
lá estão em purgação”.
Demos as mãos. Todos unidos num sentimento de fé viva,
buscando sentir a presença do Cristo entre nós. Gratuita.
Espontânea. Revelada. Estar entregue aos desígnios do que nos é
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 259 ]
maior e que não podemos apreender, somente sentir e se render.
Orávamos. Sentíamos a brisa leve que trazia um perfume de mata
consigo.
Abri os olhos e olhei para o céu num gesto espontâneo. Não podia
acreditar no que meus olhos viam. Mas, porque não acreditar?
Outros também viam, embevecidos e deslumbrados.
Emocionados.
No firmamento, o violeta da tarde dividia-se com o negro da
noite. Raios de Sol poente emaranhavam-se com as luzes
estelares. E no centro desse baile da Natureza mística desta
Aruanda, a figura luminosa e inconfundível de Jesus, com Seus
braços abertos, desenhada no céu, qual pintura magnífica.
Era o Mestre Divino, manifestando seu pensamento de Amor e
Compaixão, nessa pintura natural. Suas cores e luzes iam se
projetando pelo Céu em direção aos precipícios e aos vales de
sombras.
Abraça-nos, Senhor! Precisamos todos de Ti!
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 260 ]
Alvorada
“Alvorada. Novo dia.
E tu te refaz.
Por que ‘inda menina,
Guardada no Manto da Santa Mãe
Seu Imaculado Coração.
Porque tu és jóia e flor, menina.
És consolação e esperança, menina.
A docilidade da Vida”.
Essa linda flor que sustento entre meus dedos, acariciando suas
pétalas, parece-me a lembrança lúcida e plena do que tenho
vivido. Sinto o chão sob meus pés. O solo úmido. As pedrinhas
miúdas que cutucam. A relva. Sinto o vento soprando em meu
rosto. Enchendo-me de vida. Sopro de Deus.
Vou seguindo pelos singelos caminhos demarcados com pedras
rústicas. Caminho só. Rememoro a mim mesma. Tento me
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 261 ]
desapegar para crescer com as novas aprendizagens e valores que
são ofertados a mim, nessa Aruanda.
Paro entre as árvores. Deito-me entre elas. Sento-me em algum
banco dos jardins do Santuário. Sorrio com memórias. Choro
também por elas. Respiro fundo. Sinto a saudade. Sinto alegria.
Fico em paz.
Levanto-me e vou até as Grutas. Revejo tudo o que aprendi por
lá. José, aquele ex-policial, estava aqui novamente. Havia
recuperado a feição humana. Porém, seu sono continuava
profundo e inconsciente, aguardando momento de despertar,
ainda muito distante.
Ana, amiga do meu coração, era uma das trabalhadoras que
ajudava nos cuidados de José, assim como no de outros pacientes.
Estava refeita das cicatrizes deixadas pelo tabagismo em seu
corpo perispiritual. Parecia também mais calma e resignada.
Confortada diante dessa nova realidade que se lhe era apresentada
pela Vida. Sua saudade da irmã e da amiga fora suavizada pela
visita que realizara a elas. Uma, aqui mesmo no mundo espiritual.
Sua amiga Joana, que havia desencarnado há dois anos. A outra,
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 262 ]
sua irmã Zélia, pudera visita-la em sua casa, em companhia de
Mestre Caetano.
Eu prosseguia minha vida aqui, trabalhando, aprendendo e
aguardando que o tempo me trouxesse novas surpresas e
oportunidades de testemunhar mais histórias de graças e bênçãos
concedidas por Deus na vida de tantas almas nossas irmãs que
pude observar a partir daqui, dessa Aruanda Infinita.
Saio agora em direção ao Riacho. Sento-me em suas margens.
Olho as águas claras e calmas de sua correnteza a passar,
carregando consigo delicadas flores e folhas em sua superfície. O
canto suave de alguns pássaros que brincam próximo a mim, se
harmoniza com as risadas dos pequenos e pequenas que se
entretinham com suas reinações infantis.
Foi quando uma menina, branquinha como neve, aparentando uns
quatro anos de idade, chegou-se próximo a mim, com um sorriso
travesso e as mãozinhas para trás do vestidinho quadriculado que
trajava. Os cachinhos pretos balançando. Estende-me a mãozinha
e me entrega um botão de rosa. Admiro a beleza da flor, composta
por pétalas que exibiam tons variados de rosa, assim como seu
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 263 ]
perfume inebriante. A pequenina menina toma-me as mãos,
puxando-me, sem dizer palavra alguma. Seu olhar cheio de brilho
e candura fazia-me segui-la e atender ao seu chamado, de
imediato.
Ela, levando-me pelas pontas dos dedos, em ritmo acelerado, ria
gostosamente enquanto me fazia percorrer o caminho para o
centro do Vilarejo. Continuamos por entre os casebres, até que
aquele Anjo travesso bateu na porta de um deles. Batia várias
vezes. Eu olhava para ela, atônita. Não conseguia advertir-lhe ou
falar qualquer coisa para que aquela brincadeira não fosse
incomodar aos outros. Eu me sentia como que rendida e
hipnotizada pela energia daquela meiga criança.
A porta abre-se e eu atino que fôramos bater à casa de Pai José,
nosso Líder Ancião. Ele olha para mim sendo segura pela mão da
menininha. Olhava no fundo dos meus olhos e parecia
compreender a intenção daquele anjinho. Eu é que não podia
identificar a lucidez daquela alma iluminada em forma infantil.
Pai José abraçou-me e convidou-nos para entrar. Sento-me em
uma cadeira feita em palha trançada. Observo o ambiente
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 264 ]
simpático e acolhedor da casa de Pai José. Vejo o café
esfumaçando em uma xícara branca. A viola ao canto do cômodo.
O cesto com frutas. Os arranjos com flores. O retrato de Cristo na
parede. Acima de nós, a Cruz desenhada no teto. Uma vela branca
acesa, no altar próximo ao quadro do Mestre Nazareno. Sentia até
mesmo o aroma de legumes sendo cozidos num caldeirão que
podia ver na cozinha em frente de onde estava. Hortaliças
colhidas das plantações. Todos aqueles alimentos eram
preparados, em forma de caldos, farelos e pães para nutrir
espíritos, assim como eu, que ainda não havíamos ajustado nossa
condição perispiritual a ponto de dispensar o alimento natural. A
grande parte desses alimentos era para nós e para os pacientes das
Grutas.
Via também o rosário de Pai José, com o qual já o avistara por
diversas vezes, passando-o entre os dedos à porta de sua casinha,
orando e fitando o céu.
A menina, branca de neve, sentara-se em meu colo. Brincava com
uma flor que pegara num vaso próximo. Pai José, sentado, fitava-
nos com curiosidade, enquanto aguardava que disséssemos algo.
Em verdade, ele aguardava que o anjo dissesse.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 265 ]
- “Clarinha, Clarinha...”. Começou a menina. “Fala para o Pai
José o que você sente! Fala, Clarinha! Fala! ”
As lágrimas sobrevieram primeiro que as palavras. Meu olhar
parecia dizer muito mais do que qualquer coisa que pudesse
pronunciar naquele momento. A emoção era muita e não
conseguia mais represa-la dentro de mim. A única coisa que podia
pronunciar foram as palavras “mãe” e “casa”.
Após aguardar que toda aquela emoção que transbordava do meu
peito amainasse, Pai José tocou-me o braço de leve, sem dizer
palavra. Colocou a mão sobre minha cabeça e meu coração. A
menininha acariciava meus cabelos. Sentia-me embalada pela
ternura e carinho daquelas duas almas iluminadas.
Adormeci.
Quando acordei, já no meu leito, dentro da estalagem que
compartilhava com outros irmãos, vi-me vigiada e cuidada por
Mestre Caetano e Ana Maria, a qual me oferecera um copo
d’água.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 266 ]
- Sente-se melhor, Clara? – Perguntou Mestre Caetano.
- Sim, estou melhor...
- Que bom! Temos uma tarefa a fazer. Você vem?
- Sim, eu vou!
- Aguardarei lá fora – Encerrou.
Quando saí, vi que as estrelas já haviam tomado o céu, com a bela
negridão da noite. Não fazia ideia de quanto tempo adormecera.
Mestre Caetano, junto de “seu” Benedito, Marcos e João,
conversavam.
- Estávamos aguardando você, minha amada! – Sorriu, Mestre
Caetano. Vamos?
Saímos do Vilarejo. Percorríamos um caminho que já me era
familiar, embora a escuridão não me permitisse identificar com
precisão onde íamos. Mas, pela sensação de peso e pela
dificuldade de raciocínio, assim como de locomoção que passara
a sentir, automaticamente deduzi que rumávamos, novamente, em
direção à Terra. Buscava manter-me firme, para que dessa vez
não perdesse a lucidez. Em vão. Mais uma vez, não consegui
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 267 ]
vencer as dificuldades da transição para o plano terreno e me via
desfalecer.
Despertando já na dimensão paralela e imediata ao plano terreno,
caminhava sustentada por Mestre Caetano, sem poder contar
ainda com minha própria vontade e disposição. Cruzávamos ruas
escuras, becos, até pararmos diante de um barracão erguido em
tapumes. Estávamos num local muito pobre. Entramos. Uma
família humílima encontrava-se lá, repartindo o diminuto espaço.
Algumas crianças. Uma jovem senhora, mãe dos pequenos. E
uma outra senhora idosa, a avó, acamada. Parecia muito adoecida.
Víamos a imagem de Jesus Cristo e um quadro com o retrato de
um preto-velho, ambos objetos já bastante desgastados pelo
tempo. A jovem senhora aparentava grande cansaço. Certamente
pelo dia de trabalho, vencido arduamente. A dispensa com
pouquíssimos mantimentos. Ao lado do leito da idosa,
frasquinhos com quase mais nenhuma medicação.
A jovem senhora, pôs-se a orar, pedindo a Deus que enviasse
ajuda para sua família. Para sua mãe. “Seu” Benedito aplicava as
mãos sobre a idosa enferma, restituindo alguma soma de energia
sobre aquela alma. Mestre Caetano gotejava líquido balsâmico
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 268 ]
sobre as crianças e sobre a jovem senhora. Não conseguiríamos
suprir a fome de seus estômagos, tão pouco substituir a medicação
terrena para o corpo daquela senhora enferma, no entanto, suas
almas eram envolvidas em forças revigorantes que ajudariam a
garantir a resistência necessária para aquelas criaturas até que
alguma ajuda lhes chegasse.
Depois de hora inteira, ouvimos batidas na porta. A jovem
levantou-se e foi atender. Era um pequeno grupo de voluntários
que haviam recebido um pedido de ajuda por parte daquela jovem
e que se dispuseram a ir até aquele pobre lar levando algo que
pudesse ser de auxílio.
- Boa noite. Como vai, Maria? – Disse uma das senhoras do
grupo, que entrava à frente dos outros e parecia conhece-la. O
barraco era tão pequeno que daquele grupo que contava com
cinco pessoas, três ficaram para fora.
- Tamo indo... Tá difícil, viu? Não fosse vocês.... Seus olhos já se
enchiam de lágrimas.
- Deixa disso, menina. Vamos fazer o que pudermos. Trouxemos
alguns mantimentos, roupas e alguns dos remédios que sua mãe
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 269 ]
precisa. Conseguimos lá no posto de saúde, com aquela receita
que o médico deixou para sua mãe.
- Muito obrigado! Obrigado a vocês também, viu? – Falou a
jovem Maria, colocando o rosto para fora do barraco humilde,
dirigindo-se aos outros do grupo.
- Não há de que, não é minha amiga? Vamos seguindo, porque
tenho fé em Zambi, nosso Pai, que vamos conseguir passar por
isso. Filho de Umbanda não cai!
- Muito obrigado, Dona Cida! Não tenho como agradecer.
- Já falei! Deixa disso. Agora vamos embora porque sei que já
está tarde e você ainda vai levantar de madrugada para levar essas
crianças na creche e ir trabalhar. Vá descansar! Depois nos
falamos. Fica com Deus, Maria – Beijou-lhe e saiu.
- Deus abençoe, Dona Cida.
Com a saída do grupo, aguardamos mais um pouco ali, esperando
que “seu” Benedito terminasse de atender as irmãs, aplicando-
lhes suave luz que lhe irradiava das mãos.
Em seguida, saímos e fomos atrás daquele grupo que viera ajudar
a jovem Maria e sua família. Tratava-se de um grupo formado por
pessoas pertencentes a um terreiro de umbanda daquela região. A
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 270 ]
jovem Maria havia ido até lá um dia, em busca de ajuda e um
grupo de pessoas responsáveis comprometeram-se com a
responsabilidade de lhe auxiliar dentro do que fosse possível. O
terreiro, embora não tivesse uma diretoria social, por ser uma casa
pequena, ainda assim mantinha o compromisso de contar com um
trabalho de arrecadação de alimentos e roupas para famílias
necessitadas que lhes batiam às portas. Além disso, alguns
trabalhadores comprometiam-se em ajudar com atividades
simples para os assistidos, como ajudar com a obtenção de
remédios junto ao serviço público e o encaminhamento de jovens
para cursos profissionalizantes. Dona Cida fazia parte desse
grupo.
Eles pararam em frente a um ponto de ônibus. Trocaram algumas
palavras e se despediram, quando três pessoas do grupo
embarcaram no transporte que havia chegado. Dona Cida e outra
senhora seguiram a pé, pois moravam próximo dali.
A pedido de Mestre Caetano, seguiríamos junto de Dona Cida.
Observava seu rosto e este me soava familiar, no entanto, não
conseguia lembrar de onde conhecia aquela senhora. Tinha por
volta de cinquenta anos. A pele morena. Seus cabelos já bem
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 271 ]
branquinhos. Óculos de armação grossa. Os traços no rosto. Ela
seguia ainda por mais algumas ruas até que chegou a uma casa de
portão grande e muros altos, pintada na cor verde. Uma casa
relativamente grande e bem conservada. Despediu-se da outra
senhora, que percebemos ser sua vizinha. Entrou.
Dentro do quintal daquela casa simpática, um canteiro muito belo.
Cheio de tipos de plantas. Tudo muito bem cuidado,
demonstrando o esmero em sua conservação. Entramos pela porta
da sala, seguindo Dona Cida, que se dirigiu até a cozinha.
Percebia que a casa possuía mais alguns cômodos, sendo uma
construção térrea, bem arejada e confortável. Uma energia de paz
a envolvia. Vi duas moças saindo de um dos quartos e indo ter
com Dona Cida. Eram suas filhas. Reparei que ambas se pareciam
comigo, em alguns traços. Meu peito palpitava.
Ouvi uma voz chamando ao fundo, vindo de um dos cômodos.
Sem pensar, segui na direção daquela voz que me chamara a
atenção. Notei que Mestre Caetano vinha atrás de mim.
Ao entrar no quarto, vi uma grande poltrona em que uma senhora
sentada de costas lia um livro, apoiando-o em seu colo. Comecei
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 272 ]
a olhar ao redor. Via os quadros. Meu coração parecia saltar para
fora de mim. Via fotos de meus irmãos ainda jovens. Via meus
tios. Via nossa casinha. Via.... Via a mim mesma. Tomando
coragem, dei a volta na poltrona e olhei de frente aquela senhora.
A bíblia estava sobre seu coloco e ela a folheava. Evangelho de
Lucas. Eu a olhava. As lágrimas me escorriam. Seus pequenos
óculos. O rosto já sulcado pelo avanço da idade. A neve sobre sua
cabeça. Mas o olhar firme de sempre. O seu perfume. O seu
perfume.... Minha mãe.... Minha mãe!
- Oi, Dona Rita! – Cida havia entrado no quarto.
- Cida, meu filho já voltou?
- Não. Marcos hoje vai voltar mais tarde do trabalho.
Então, Cida era esposa de meu irmão caçula, Marcos. Que
felicidade! Tanta que as abraçava. Beijava-as
.
Minha mãe lia o evangelho. Não me notava com os olhos, mas
certamente o fez com o coração. Colocando o Evangelho de lado,
sobre o criado mudo, recostou-se na poltrona, cobrindo-se com o
xale de lã. Dizia em voz baixa, mas seu pensamento era muito
mais claro para mim:
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 273 ]
- Ah, Clarinha! Que saudade! Espero que Jesus tenha reservado a
você um lugar especial em seu Coração, junto de Nossa Senhora...
Reservou, sim, mamãe! Estou aqui! Aqui do seu lado e sei que
você pode sentir meu amor. Era só isso o que eu queria poder
fazer, mãezinha. Olhar em seus olhos e poder dizer “eu te amo”,
mais uma vez! Agora eu vou para Aruanda. Sei que vamos nos
rever. Te amo, mãe! Amo.
Despertei na entrada do Vilarejo. Estava nos braços de Mestre
Caetano, enquanto “seu” Benedito e Pai José seguravam minhas
mãos, sorrindo ambos. Eu os abracei. Beijava-os. Não cabia em
mim. Alegria. Paz.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 274 ]
Olhei para o céu.
Era alvorada.
Novo dia, repleto de Deus.
Ao lado de amigos benditos.
Estou no Amor de Cristo,
Vivo nessa Aruanda Infinita.
No mar que mareja.
Na areia fininha.
Na estrela que brilha.
Nas matas que o luar prateia.
No Sagrado Coração,
No colo da Imaculada Conceição.
Nos braços das Santas Almas,
Nas águas calmas.
Agora eu vou,
Vou para lá.
Mas ‘inda vou voltar.
Para contar esse conto.
O conto de lá.
O Conto de Aruanda.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 275 ]
Palavras Finais
Amigo e amiga leitores.
Espero que a presente e despretensiosa obra possa ter
compartilhado com vocês um pouco da fé e do encantamento que
o autor constrói diariamente na sua vivência religiosa como
umbandista.
O desejo era o de falar de Deus e dessa relação íntima, única e
insubstituível de nossa relação com Ele. Espontânea. Silenciosa.
Gratuita. Desvinculada de qualquer condição externa.
Falar dEsse Deus que muitas vezes nos esquecemos e que deixou
uma centelha de Si dentro de nós. Não requer nenhum processo
mágico. Nenhuma evocação específica. Nem roupa branca.
Nenhum aparato. Nenhum ritual, a não ser aquele mais pessoal
que possamos fazer na intimidade nossa, dentro da casa interna
do nosso pensamento, para nos ligarmos a Ele em qualquer lugar
ou momento.
Falar dessa experiência de relação com Deus, permeada pelas
emoções humanas, tal como aquelas reveladas pela menina,
Clara. E podermos notar que de ambos os lados da vida, somente
esse diálogo aberto e franco com o Criador pode nos dar
caminho de paz e segurança interior. Entender também a relação
entre seres humanos, compreendendo que a vida do homem e da
mulher só pode se construir em equilíbrio pelos elos fraternos
que devemos promover a benefício de todos.
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 276 ]
Não nos construímos por nós mesmos. Precisamos de outrem
assim como os outros precisam de nós. Esse um dos significados
possíveis das chamadas correntes espirituais, presentes nas Leis
Espirituais. Seja o povo de Umbanda, seja para os de Aruanda.
Precisamos uns dos outros.
Espero que os sentimentos, memórias e símbolos presentes neste
imaginário possam ter também contribuído e acrescentado
possibilidades de sentido à sua experiência de fé, como
umbandista ou simpatizante da Umbanda. Mas, e principalmente,
que ela possa contribuir para a sua relação íntima com Deus,
Olorum, Zambi, Tupã. Como queira chama-lo.
Saravá fraterno.
Gregorio Lucio
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 277 ]
Conto de Aruanda e Imaginário: Lista de
Músicas, Filmes e Exposições
Músicas e seus Intérpretes
Vilarejo – Marisa Monte
Mama Kalunga – Virginia Rodrigues
Padroeiro do Brasil – Maria Bethania
A Força que vem da Raiz – Mariene de Castro e Maria Bethania
Velhos de Coroa – Fabiana Cozza
Oração ao Tempo – Caetano Veloso
Andar com fé – Gilberto Gil
Ave Maria – Schubert
Sonata ao Luar – Beethoven
Jesus, Alegria dos Homens – J.S. Bach
Magnificat – Marco Friscina
Pontos de Umbanda Diversos – J.B. de Carvalho.
Essas e outras canções poderá conferir pelo Youtube, na playlist
de Conto de Aruanda:
https://www.youtube.com/playlist?list=PLsgOwRiGqSEvzQ6ai
_2_zz0v48qwAb-G2
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 278 ]
Filmes/Documentários sobre Umbanda e Candomblé
Filhos de Umbanda (dir: Andre Di Kabulla e Felipe Perpetuo)
Falando com Deuses (inciativa do cineasta Guillermo Arriaga)
Umbanda no Brasil (dir: Rogerio Sganzerla)
Prova de Fogo (dir: Marco Altberg)
Umbanda do Sol e da Lua (dir: Sergio Rossini)
Umbanda é Brasil (dir: Turma 6ºano Jornalismo -Unesp/Bauru)
Cafundó (dir: Clovis Bueno e Paulo Betti)
Jardim das Folhas Sagradas (dir: Pola Ribeiro)
Exposições e Mostras sobre Cultura Afro-Brasileira
Museu Afro Brasil (Parque do Ibirapuera)
https://www.google.com/culturalinstitute/collection/museu-afro-
brasil
Museu Afro-brasileiro- UFBA
http://www.mafro.ceao.ufba.br/
Doze Profetas e Profeta Daniel (Aleijadinho)
Medalhão com anjo (Mestre Valentim)
Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira (Rubem Valentim)
Ibiri Ati Ejo NiLe – Panteão da Terra (Mestre Didi)
Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio
[ 279 ]