Contos Africanos Afro-brasileiros

7/23/2019 Contos Africanos Afro-brasileiros

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Conto 1

Bonsucesso dos pretos (lenda afro-brasileira)

SANTOS, Joel Rufino dos. Gosto de frica: histrias de l e daqui. So Paulo: Globo, 2005.

No interior do Maranho, tem uma vila que se chama Bonsucesso. Ningum, porm, achama assim. Todos dizem Bonsucesso dos Pretos. Por qu? Vou contar.

H longo tempo, debaixo da escravido, uma moleca desagradou ao senhor. No sei onome dela. Vamos cham-la de Felipa, um nome que se usava muito antigamente.

Gozado essa coisa de nome... No tempo do Ona, por aqui ningum se chamava Simone,Mnica, Karem ou Roberta. Era Felipa, Anacleta, Jacinta, Jovina...

Aborrecido, o senhor usou seu triste direito de castigar. Mandou levarem Felipa floresta.Fosse amarrada num p de pau, at morrer de fome e sede. Isso se as onas e cobras nofizessem o servio primeiro.

A me da escravinha se ajoelhou aos ps do dono:Perdoe, perdoe... gemia. Eu prometo ser sua escrava para o resto da minha vida.Escrava voc j respondeu ele. No prometa o que no pode cumprir. Levante

da.A prpria esposa dele se meteu:Perdoa dessa vez. D outro castigo. No mato, ela morre. pra morrer. Voc mulher, mas pode entender uma coisa: estamos cercados de

escravos.Se no formos duros, eles no nos respeitam. Se no nos respeitam, estamos fritos. De

brancos aqui s temos eu, voc e o padre. J pensou? negro para todo lado.Pois o padre tambm pediu:Faa como Nosso Senhor. Perdoe.

O dono fitou a batina com desprezo:Nosso Senhor no viveu aqui, no meio dessa gente. Cuide das suas oraes, que melhor.

O feitor passou a corda nos pulsos de Felipa. E saiu com ela. Andou, andou, at achar umaclareira:

Aqui est bom. J vers, negra do diabo.Passada uma semana, o dono chamou o feitor:V ver a negrinha. Confirme se j morreu.O malvado viu os urubus e pensou: O servio acabou.Qual! Felipa continuava amarradinha. Mas inteira. Ao seu lado, uma gamela de frutas e

outra de gua.

Quem te deu isso? foi gritando.Minha madrinha.E tu l tem madrinha? e chutou de novo.V l ver.Outra vez, o feitor achou as gamelas. Dessa vez com favos de mel. Chutou tudo, como da

primeira vez. Rogou uma praga:Que este moleque que te protege o carregue o demo!No foi moleque respondeu Felipa. Foi minha madrinha.O dono deixou passar um ms:V buscar o esqueleto.Felipa estava melhor do que antes. Gordinha.O dono no acreditou:

Voc no est me mentindo? Traga a sujeita aqui, ou vai voc pro tronco.Quando o feitor chegou, Felipa j estava solta.Achou estranho. Bateu o mato. Se houvesse algum, ele achava. Nada. Botou Felipa na

frente e veio pra fazenda. Imaginem a surpresa do povo quando cruzaram o terreiro. Na presenado amo, Felipa no baixou os olhos.


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Se voc tem parte com o capeta, v dizendo ordenou ele. Quem te deu comida egua?

Minha madrinha.Faz de conta que eu acredito. Quem tua madrinha?O senhor mande ver.Vamos fazer o seguinte. O feitor volta l contigo. Se encontrar essa tua madrinha, voc

est livre. Se no...

O feitor afiou o faco, e l foram. No lugar em que Felipa ficou amarrada, estava agora umaNossassenhorazinha de dois palmos de altura.Desconfiado, o feitor enganchou a imagem nas costas e l veio.Como prometifalou o senhor, voc est livre.Puseram a santinha numa capela com altarde madeira lavrada. No outro dia, quando foram

ver, cad ela? O senhor apertou Felipa.Mande ver no p de pau onde o senhor me prendeu.Trouxeram a imagem de volta. No outro dia, ela voltou pro mato. E assim diversas vezes.

Na dcima vez, o senhor trancou a imagem num cofre de ferro que comprou em So Lus. Era doReino, que pra ele o ferro da terra no valia nada.

A violncia atraiu desgraas. Uma cobra mordeu o feitor e ele bateu as botas. Deu praga

no algodoal e se perdeu tudo. A senhora teve erisipela e ficou com perna de elefante. Cosme, oquilombola, passou por perto da fazenda, e vinte escravos fugiram pra se encontrar com ele.(Bom, esta ltima coisa foi desgraa somente pro senhor. Pros que fugiram, foi felicidade.)

O padre, que estava ali pra impedir desgraas, deu um conselho: botasse a imagem numprato, largasse no rio. Onde ela parasse, que ela queria ficar. A senhora obrigou o marido afazer promessas: se ficasse boa, libertava dez escravos. Pelo rio abaixo, a Nossassenhorazinhaparou onde hoje Bonsucesso dos Pretos, porque ali vivem, at hoje, os descendentes do povode Felipa.

Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003.

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, oficiais eparticulares, torna-se obrigatrio o ensino sobre Histria e Cultura Afro-Brasileira.

1oO contedo programtico a que se refere o caputdeste artigo incluiro estudo da Histria da frica e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional,resgatando a contribuio do povo negro nas reas social, econmica epoltica pertinentes Histria do Brasil.

2o Os contedos referentes Histria e Cultura Afro-Brasileira seroministrados no mbito de todo o currculo escolar, em especial nas reasde Educao Artstica e de Literatura e Histria Brasileiras.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm#art26ahttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm#art26a


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Conto 2

O casamento da princesa Conto popular de gana e pases da frica Ocidental, recontadopor Celso Sisto

Disponvel emhttp://www.uel.br/neaa/sites/default/files/ebooks/PRINCESAS%20AFRICANAS%20-%20LIVROS.pdf

A beleza andava de mos dadas com a princesa Abena, pois tinha reunido numa s pessoa umharmonioso pescoo alongado, um rosto arredondado e seios grandes.

O rei, seu pai, sorria para si e para o mundo, cada vez que constatava, com os prprios olhos, aformosura da filha. E por isso acreditava que seria fcil cas-la, quando chegasse a hora.

A sucesso dos anos s aumentava a perfeio dos traos de Abena. Alm de tudo, ela tinha aajuda dos magnficos trajes que usava: sempre envolta nos mais belos tecidos e vestimentas; sempreadornada com os mais fulgurantes colares e brincos; sempre emergindo do colorido das roupas, como amais nova viso da beleza.

A notcia da suprema graa de Abena circulou pelas tribos, atravessou os mares, subiu aos cus,correu por toda frica tropical. Mas foi s quando os habitantes dos mais distantes povoados comearam achegar para ver com seus prprios olhos a princesa mais linda do mundo, que chegaram tambm os

pedidos de casamento.Os primeiros pretendentes mo da princesa foram o Fogo e a Chuva.A chuva surgiu de repente, meio s escondidas, usando um kente1nico, feito da mais pura seda,

especialmente para aquela ocasio. Pedir a mo daquela princesa exigia roupa adequada e padronagemnunca antes vista!

Nem preciso dizer que Abena encantou-se logo com os modos do seu primeiro pretendente. Oolhar molhado, o corpo luzidio, as palavras que rolavam feito gua cantante, ficaram ainda mais bonitasnos versos que ele chuviscou nos seus ouvidos:

O olhar do amor fez passear o passarinho que assim baixinho, trouxe gua do seu bico at o seuninho...

E o pretendente ofereceu ainda mais:Linda Abena, olhe para adiante, olhe. Daqui at as savanas de Burkina Fasso, at as areias do

Golfo da Guin3, at as plantaes do Togo, at as florestas da Costa do Marfim, voc no encontrarningum que seja mais poderoso que a Chuva. Com um simples aceno das mos, fao crescer asplantaes e multiplico as colheitas e as ervas para os rebanhos. Graas a mim, teremos sempre guapura para beber e rios e lagos cristalinos, cheinhos de peixes, onde se pode nadar e pescar.

E as palavras da Chuva soaram to musicais aos ouvidos de Abena, e seu corao solitrio ficouto refrescado, que ela acabou prometendo-lhe casamento. E pediu-lhe que voltasse no outrro dia paraacertar os detalhes com o Rei.

Acontece que enquanto Abena se comprometia com a Chuva, o Rei, na mesma hora, logo ali, emoutro aposento, firmava acordo com o Fogo. Este segundo pretendente tinha tambm ido pedir a mo daprincesa. E da mesma forma que a Chuva, mostrou-se em trajes suntuosos e, com finssimos modos,apregoou seeu poder:

Meu Rei, veja por si mesmo. Daqui at as savanas de Burkina Fasso, at as areias do Golfo daGuin3, at as plantaes do Togo, at as florestas da Costa do Marfim, no haver ningum com maiorvigor que o Fogo. Minhas chamas mantm os animais perigosos ao longe, cozinham a comidadiariamente, iluminam as interminveis noites escuras e aquecem o corpo durante a rigorosa estao dofrio. Que mais algum poderia oferecer sua bela filha? Consinta que eu me case com ela!

O Rei ficou to impressionado com tal pretendente, e casar a filha durante a colheita do cacau eradeciso antiga, que acabou por aceitar a proposta! Disse que ia comunicar o trato princesa e mandouque o Fogo voltasse no dia seguinte, para acertarem os detalhes.

Mais tarde o Rei chamou a filha e comunicou-lhe a deciso que havia tomado:Encontrei teu futuro marido!Como assim, meu pai?Prometi ao fogo que se casaria com ele!

Com o fogo? Mas eu prometi Chuva que me casaria com ela!Estava armada a confuso! O Rei, preocupado, ps-se a pensar numa soluo para no ter quefaltar com sua palavra. A princesa, por sua vez, no queria trair seu corao.

1Traje tpico do povo Ashanti.
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No podemos quebrar nossas promessas! Sempre foi assim com nosso povo! E assim ser!sentenciou o rei.

Na manh seguinte, mal a claridade do dia luziu no horizonte, l estavam o Fogo e a Chuva nasterras do Rei. Vinham certos de que em breve tambm fariam parte de tudo aquilo ali, casando-se com aprincesa Abena. Mas um no sabia do outro.

O Rei veio receb-los e, sem rodeios, disse que j havia decidido a data para o casamento de suafilha.

O meu casamento com ela?perguntaram o Fogo e a Chuva ao mesmo tempo!

S ento se deram conta de que alguma coisa estava errada. Mas o Rei apressou-se em dizer:A princesa Abena se casar com o vencedor da corrida que organizei para o dia do casamento!A notcia espalhou-se como chuva mida. A notcia correu como rastro de fogo. Em toda a frica

Ocidental no se falava em outra coisa a no ser na tal disputa pela mo da princesa! Havia os queapostavam no Fogo. Era grande o nmero dos que torciam pela Chuva.

S a princesa Abena conhecia de antemo o resultado, pois dizia para si mesma que fosse quemfosse o ganhador da corrida, ela s se casaria com a Chuva. Assim ela havia prometido desde o incio,assim queria o seu enredado corao. Mas esse segredo, que no podia ser compartilhado com ningum,fazia-a triste, murchava sua beleza. Afinal, como ir contra a deciso soberana do prprio pai?

Chegou finalmente o dia marcado. Era dia de festa e toda a aldeia estava enfeitada para a corrida epara a cerimnia do casamento. Todos esperavam o resultado final.

O Rei deu a partida e a Chuva e o Fogo comearam a correr. Os tants faziam vibrar a pele do

antlope negro que recobria cada tambor, os chifres e as trombetas espalhavam no ar seus sons, oraestimulando as torcidas, ora impulsionando os concorrentes. Tudo ao redor parecia cantar:

Quero ouvir os tambores a tocar:Quero sentir os ps dos que danam.Quero sentir os tambores a tocar:Quero ouvir os ps dos que danam...O Fogo estava ganhando. Havia no ar um vento que o ajudava a multiplicar as chamas e a alastrar-

se rapidamente. Por mais esforo que fizesse a Chuva, suas gotas eram insuficientes para coloc-la nafrente. Ao contrrio, quanto mais vertia gua, mais pesada ficava e mais terreno perdia!

O Fogo foi avanando, deixando para trs apenas as cinzas do que tocava com todo o seu calor epotncia. J era quase o vencedor...

Mas no momento da chegada, ali onde j evoluam as mscaras rituais e o povo se aglomerava, eisque o cu lanou um imenso rugido. Um trovo, que ouvido desde as guas do golfo at as paredes dasmontanhas, ecoou. No ar. E foi o suficiente para, em seguida, desabar o maior aguaceiro de que j se tevenotcia. Uma cortina de chuva despencou com a fora de uma imensa manada de elefantes correndo pelassavanas, impedindo qualquer um de ver um palmo diante do nariz. Chuva da espessura do mundo, rpida,brilhante, quebrando-se nas folhas, fustigando as pedras, martelando o cho.

O Fogo que avanava destemido apagou-se a poucos metros da linha de chegada. E a Chuvaenfim foi declarada vencedora!

A princesa Abena, mais feliz do que nunca, atirou-se de braos abertos sob a gua celeste e bailoucomo nunca ningum vira. Seu corpo inteiro comemorava a vitria da Chuva, inclusive seus olhos. O ritmodos tants, que ento batiam mais forte, obrigou todos que ali estavam a entrar na dana, que se estendeupor incontveis noites.

Daquele dia em diante, o Fogo e a Chuva tornaram-se inimigos mortais. S uma coisa no tevejeito: toda vez que chove forte, as pessoas param o que esto fazendo e pem-se a bailar debaixo da guaque cai do Cu, tudo ainda para comemorar o casamento da princesa.






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Conto 3

As Prolas de Cadija (conto da cultura muulmana recolhido no Senegal)

SANTOS, Joel Rufino dos. Gosto de frica: histrias de l e daqui. 3 edio. So Paulo. Global editora,2005.

Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua me havia morrido e agora ela tinha de carregarseu irmozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e ento Cadija ganhou umamadrasta.

Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se l por que a madrasta no gostou dela. Jtinha uma filha de primeiro casamento e talvez pensasse:

Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.Da, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossveis para a coitada. Acordava-a no meio

da noite:-- Anda pegar gua. Anda varrer o ptio. Anda cozinhar inhame.

Certa manh seu dio pela enteada chegou ao mximo. Tirou Cadija da cama aos berros:-- V lavar esta colher! E s serve com gua do mar. No volte aqui com ela suja.

Era um jeito de matar Cadija, pois at Dakar onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noites dehorrorosos caminhos.

-- Quem vai cuidar de meu irmozinho? -- perguntou a menina.-- Carrega contigo respondeu a mulher com um sorriso mau. -- Ou pensa que aqui voc tem

criada? Tem cada uma!Cadija partiu. Atravessou rios e matas. S faltava atravessar uma savana para chegar d Dakar. A

comida acabara e as duas barrigas, a dela e do irmozinho, comeavam a roncar.-- As-Salam! (A paz esteja sobre voc)cumprimentou um cameleiro.-- As-Salam! -- respondeu ela.-- Est pensando em atravessar a savana sozinha? -- perguntou o homem.-- Estou.

-- No faa isso. Sabe quem mora a? O quibungo.

-- Quem ? -- perguntou Cadija.-- Um monstro com um buraco na parte de trs do pescoo. Te engole. Depois no diz que no te

avisei.-- E se eu no encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...-- Ah! -- falou o cameleiro, atirando o manto para as costas. Se no encontrar o Quibungo vai

encontrar um monstro pior, o Abutre Mortal, tambm chamado Arranca-Coraes. Ou um ou outro.Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu umas brisa no rosto e nas mos. E

ouviu uma voz:-- Eu te ajudo. Deixe seu irmozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se voc

encontrar o Quibungo, j sabe o que fazer.Era umiska, o djin que morava no vento.

-- E se ao invs do Quibungo eu encontrar o Abutre-Mortal?-- A no posso fazer nadarespondeu a iska. -- Ou um ou outro.

Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viajem apareceu umguerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:

-- Onde vais, flor do meu encanto?-- A Dakar, lavar esta colher, que minha madrasta me mandou.O guerreiro se abaixou para fazer gracinha. No seu pescoo apareceu o buraco escuro que no

tinha fim. Cadija rapidamente levou as mos s costas e virou o pedregulho l dentro.O Quibungo mastigou e morreu.

Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:-- Me ajude, pelas barbas do profeta... -- S tenho essa colher.-- Eu seidisse o mendigo. -- Espere anoitecer. S lave a colher quando aparecer a lua. Voc vai

ver. Cadija assim fez. Foi meter a colher na gua e ela voltar cheia de Prolas. E assim muitas vezes,at encher a canga. Estava rica.

Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Deveria ser o AbutreMortal, o Arranca-Coraes.


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Pegou o irmozinho e foi para casa. Tinha se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava queela no voltaria.

Abrindo o saco de Prolas, Cadija fez a diviso. A madrasta queria mais. Puxou a menina para oquarto:

-- Onde foi que arrumou essa riqueza? Temos bruxa aqui em casa e no sabia!-- Foi no marrespondeu. Meti a colher e foi s.

A mulher fingiu agradecer. E falou para sua filha verdadeira:-- Se essa boboca ficou rica, tambm ficarei. Posso carregar mais Prolas que vinte Candijas

juntas. Pegou o camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse.Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manh do dcimo dia, porm, ela novoltou. De tarde, tambm no. Quando foi de noitinha e os convidados j iam embora, a filha verdadeiradecidiu:

-- Minha me j deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.Quando ela abriu o panelo, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um corao. Ainda

estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.Quando a Cadija, pegou seu irmozinho e foi morar bem longe dali.Esta a histria de Cadija, uma menina negra e muulmana do Senegal. Uma histria semelhante

a outras, de outros povos, em que h fadas e madrinhas ms. S que, aqui, a fada existe na forma de umanjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistrios das culturas milenares

que sobreviveram apesar da colonizao.






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Conto 4

O caador do povo que enfrentou o pssaro tenebroso (conto da mitologia Iorub)

PRANDI, Reginaldo. If, o adivinho: histrias dos deuses africanos que vieram para o Brasil com osescravos. So Paulo: Companhia das letrinhas, 2002.

Entre as inmeras histrias que If reuniu e que ele gosta de contar para quem vai consult-lo, h

uma que fala de um jovem caador que tinha apenas uma flecha e que, mesmo assim, se transformounum grande heri popular. A histria diz mais ou menos o seguinte:L na frica, o reino de Queto estava em festa. O reei mandou preparar um grande banquete e

convidou todos os habitantes do lugar para, durante vrios dias, comer, beber e danar. Alm dos quemoravam na aldeia, vieram convidados de todos os lugares prximos: dos campos, das florestas, dasmontanhas. Veio gente do interior e do litoral. Reis de cidades vizinhas mandaram seus representantes.

Logo de manh, todo o povo se encontrava na praa, defronte ao palcio do rei, cada umostentando seu traje mais caro e vistoso. Todos falavam alto, riam, exibiam suas joias. O rei estavasentado no trono, no meio da praa, sob um enorme guarda-sol, e todas as autoridades para l se dirigiampara saud-lo. Os parentes que vinham de longe cumprimentavam os do lugar, as moas flertavam com osrapazes, as crianas corriam de l para c. Os tambores tocavam e farta comida era servida.

Porm, mal a festa havia comeado, uma coisa muito grave aconteceu. De repente, a luz do dia foi

encoberta pelo voo de uma ave tremenda. O pssaro imenso cobriu a luz do sol e espalhou o medo napraa. Fez um voo rasante sobre os telhados da cidade e pousou bem na cumeeira do palcio real. Tinhapenas negras e arrepiadas, olhos de vidro, bico de ao.

Quando o pssaro deu seu primeiro pio, as folhas caram das rvores, a comida estragou nasgamelas, o vinho azedou nas cabaas.

Quando o pssaro deu seu segundo pio, os mansos animais da aldeia ficaram enfurecidos, os psde inhame nas plantaes vizinhas murcharam, a gua das minas e cisternas ficou com gosto de sal.

Quando o pssaro deu seu terceiro pio, a terra tremeu. E o rei compreendeu que cometera umgrande erro: tinha convidado todo mundo para a festa, menos a Feiticeira. A Feiticeira agora queriavingana, com certeza. Com certeza se sentia humilhada e desprezada. Sim, pois mandara o pssarotenebroso. Sim, aquilo era coisa da Velha Feiticeira do Pssaro, que na lngua do lugar era chamada I MiOxorong.

Mais que depressa, o rei ordenou: Que sejam chamados aqui imediatamente os mais hbeiscaadores do meu reino e que eles matem o pssaro terrvel.

Assim foi feito.Da cidade de Ilar veio Oxotadot, que caava com cinquenta flechas. Da cidade de Mor

compareceu Oxotogi com suas quarenta flechas. Vindo da cidade de Id, apresentou-se Oxotogum, ocaador que tinha vinte flechas. Todos prometeram ao rei acabar com o bicho perverso ou perderiam suasprprias vidas. Mas todos os trs gastaram suas flechas e fracassaram. Nenhum acertou o pssaro daFeiticeira. Todas as flechas caam no vazio, e eles foram presos por ordem do rei. A ameaa do pssaroera cada vez mais aterrorizante. O rei sabia que, se ele desse mais um pio, homens, mulheres e crianascomeariam a cair sem vida. Foi quando, vindo da cidade de irem, apresentou-se o caadorOxotocanxox, o caador de uma flecha s. O rei disse ao caador: Mata a ave ou morre com os outros

que antes de ti tentaram e fracassaram. O caador concordou, afirmando: O poder da Feiticeira no meatemoriza.A me de Oxotocanxox, que estava no meio da multido, temeu do fundo de sua alma pela vida

de seu nico filho, porque se ele noabatesse o bicho malditoela o perderia. Perderia tudo o que tinha navida de precioso: seu filho. Sem demora, a aflita porm resoluta me do caador desvencilhou-se da turbaque a cercava e foi correndo consultar If, o Adivinho. Ele jogou os bzios e disse: O pssaro enviadoda ressentida Feiticeira, que no foi convidada festa e quer vingana. Jogou de novo os bzios e disse: preciso apaziguar a Feiticeira, pois suamgoa odienta a origem do mal. Ele completou o jogo erecomendou mulher desesperada: Faze uma oferenda Senhora Dona do Pssaro e vamos esperarque ela se acalme.

A me do caador fez o que recomendou o Adivinho. Ofereceu Feiticeira cinco galinhas gordas,que foram cozidas em azeite-de-dend com sal, cebola e pimenta. O refogado foi servido numa gamela

forrada com pur de inhame, tendo por cima dezesseis ovos cozidos, tudo acompanhado de mel de abelhae vinho-de-palma. A mulher depositou tudo aos ps da rvore onde morava a Velha do Pssaro e pediucom sincera humildade: Aceita a oferenda, minha me, e deixa meu filho viver. A Feiticeira, faminta, nopde resistir ao aroma do guisado. A comida estava deliciosa e ela comeu e lambeu os beios. Depois dedevorar as cinco galinhas e tudo o mais que acompanhava, preparou-se para tirar uma soneca. No h


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festana melhor que uma boa galinhada, sentenciou, bocejando de sono, e concluiu: A festa do rei nome interessa mais.

Enquanto isso, l na praa, o caador se preparava para atirar sua nica flecha. Fez a pontaria,mirando bem no corao da ave maldita, estirou ao mximo o arco e atirou. No exato momento em que aFeiticeira ferrou no sono, a flecha, a nica flecha do caador, abandonou o arco, descreveu uma longatrajetria sobre a praa e, acompanhada pelo olhar ansioso da multido em silncio, alcanou o alvo.Atravessou o corao do pssaro, no preciso instante em que ele abria o bico perverso para emitir maisum dos seus piados malfazejos. A ave tenebrosa, morta, se esborrachou no cho da praa. O reino de

Queto estava livre da ave e de seu feitio! O caador foi carregado nos ombros do povo e a festa reiniciou,agora, agora com muito mais jbilo, muito mais alegria, muito mais razo de ser. O povo nunca esqueceuo acontecido e at hoje venera a memria do caador de uma s flecha, que desde ento chamadoOxssi, nome que, na lngua do lugar, quer dizer o Caador do Povo. At hoje o povo cultua a memria docaador que matou o pssaro da Feiticeira. A memria de Oxssi, o Caador do povo.



1oO contedo programtico a que se refere o caputdeste artigo incluir

o estudo da Histria da frica e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional,resgatando a contribuio do povo negro nas reas social, econmica epoltica pertinentes Histria do Brasil.



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Conto 4 (segunda opo)

COMO SURGIRAM AS ONDAS DO MAR (conto da mitologia Iorub)

FRANCHINI, A. S. e SEGANFREDO, Carmen.As melhores histrias da mitologia africana. Porto Alegre:Artes e Ofcios, 2011.

Iemanj havia sido brindada, no comeo dos tempos, com o governo dos mares. Sua alegria no

conheceu limites quando entrou na posse do seu azulado e ilimitado imprio.Tudo azulzinho! Tudo limpinho!De fato, naqueles primeiros dias, a deusa dos mares mais parecia uma garota propaganda de

sabo em p, com suas vestes azuis imaculadas, a percorrer alegremente os seus refrescantes domnios.Era com um sorriso divertido que ela sentia os peixes deslizarem-lhe pelo corpo, fazendo ccegas

em sua pele. Todo o exrcito inumervel de criaturas que compem o universo martimo rendia-lhesimptica vassalagem, incluindo os tubares e demais criaturas da sua famlia de predadores, que noousavam sequer encostar uma barbatana na soberana dos mares.

Mas o que agrada mesmo deusa era a limpeza. Como gostava de subir aos cus nas costas deum golfinhoo mais alto possvel! eia, amigo, para cima, para cima! e observar, quase das nuvens, ogrande piso anil do mar, sem uma nica ruguinha ou sujeirinha!

E assim estiveram as coisas at que, num certo dia funesto, comeou a acontecer uma coisa que

antes no acontecia: a poluio dos mares.Que manchinha aquela l em cima?disse ela, num final radioso de dia, a cavalgar o dorso

brilhante do seu golfinho nas profundezas do mar.Obediente sua ama, o peixe agitou suas barbatanas e cauda, imprimindo uma velocidade

vertiginosa ao seu corpo. Iemanj, inclinada para frente como um jquei, agarrava-se ao dorso do animal,curiosssima de saber o que se passava l em cima.

Logo a deusa estava tona, tomando nas mos uma porcaria qualquer.Isso no daqui!disse ela, pois conhecia toda e qualquer cacaca dos habitantes do mar.Com o passar do tempo, a sujeira aumentou. Alm das dejees, havia tambm toda espcie de

sujeira artificial, como papel.Furiosa com aquela invaso dos seus domnios, Iemanj subiu at o cu para pedir explicaes a

Olorum, o deus supremo, que, segundo uma lenda, a ajudara a criar o mundo.De onde vem toda essa imundcie?disse ela, inconformada.Daquelas novas e turbulentas criaturas que criei para habitarem a parte seca do Ai.No demorou nada para a deusa do mar descobrir que se tratava dos homens.E com que direito estas criaturas relaxadas se metem a jogar suas porcarias para dentro dos

meus domnios?esbravejou a deusa.Veja em que estado est meu vestido!Realmente, o vestido antes imaculadamente azul da deusa apresentava agora manchas de um tom

marrom absolutamente inesttico.Lave-o, ora. gua o que no falta no falta no seu impriodisse o deus supremo.gua imunda!disse ela, esquecendo-se das vestes.Veja s o estado em que est!Iemanj levou, ento, o deus supremo para um ligeiro tour areo sobre os mares. Do alto

puderam ver grandes crostas a sobrenadarem nas guas.

Ora, so apenas algumas ilhotas que se formaram!disse Olorum, sem querer enxergar averdade.No so ilhotas coisa nenhuma: pura imundcie!Os dois desceram e Olorum constatou que as ilhas no passavam, de fato, de lixo acumulado.Diga s suas criaturas de barro que parem de emporcalhar meus domnios!intimou a deusa.Bem, Olorum at que lhes disse que parassem, mas quem no sabe que advertir os homens e no

adverti-los tudo o mesmo? A emporcalhao continuou. Todo santo dia, homens e mulheres iam beirada praia arremessar s guas, outrora azuis, do mar os seus dejetos e sobras.

Ento, a pacincia de Iemanj conheceu seu fim.Agora chega!Tomando nas mos seu leque de prata chamado abeb, Iemanj comeou a agit-lo com tamanha

fria nas profundezas do mar que logo um grande redemoinho se formou, empurrando grandes massas de

gua para os lados. Dali a pouco, no houve uma nica praia que no tivesse recebido, nos braos degigantescas ondas, todo o seu lixo de volta.E desde este dia, as ondas no pararam mais de regurgitar de volta para a terra toda a sujeira que

os seres humanos, a despeito do castigo, teimaram em continuar a lanar para dentro do mar.


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Conto 5

O DIA EM QUE O ARCO-RIS ESTANCOU A CHUVA (Conto da mitologia Iorub)

PRANDI, Reginaldo. Oxumar, o arco-ris: mais histrias dos deuses africanos que vieram para o Brasilcom os escravos. So Paulo: Companhia das letrinhas, 2004.

Quando havia escravido em nosso pas, milhares de africanos que pertenciam aos povos iorubs

foram caados e trazidos ao Brasil para trabalhar como escravos. Assim como outros africanos aquiescravizados, os iorubs, que tambm so chamados nags, trouxeram seus costumes, suas tradies,seus deuses, os orixs. E, at hoje, muitas dessas tradies dos antigos nags esto vivas, tanto no Brasilcomo na prpria frica. Fazem parte delas as histrias de If.

If, o Adivinho, aquele que conhece todas as histrias j acontecidas e as que ainda vo acontecer,conta que na antiga frica negra, em tempos imemoriais, vivia a mais velha das mulheres, a mais antigade todas. Ela era to arcaica que at ajudou Oxal a criar a humanidade, emprestando-lhe a lama dofundo do lago onde ela vive para que ele moldasse o primeiro ser humano. Apesar de velha, era mulherbela e formosa, era uma deusa, e Nan era seu nome.Teve dois filhos, um muito bonito, o outro feio.O filho feio conhecido pelo nome de Omulu, o outro, o belo, ns o chamamos de Oxumar.

O prncipe Oxumar usava roupas vistosas tingidas de todas as cores, que realavam ainda maissua beleza e o faziam invejado por todos. Onde quer que fosse, era sempre admirado por sua formosura epelo luxo de seus trajes. Esse gosto pelas roupas alegres herdara do pai, conhecido como o homem dacapa multicolorida. Contam muitas histrias sobre Oxumar e dizem que ele costuma aparecer ora naforma de uma cobra, ora como o prprio arco-ris enfeitando o cu.

Pois bem, dizem que houve um tempo em que a Terra foi quase destruda pela Chuva. Chovia otempo todo, o solo ficou todo encharcado, os rios pularam fora de seus leitos, de tanta gua.As plantas e os animais morriam afogados, a umidade e o mofo se alastravam por todos os lugares,a doena e a morte prosperavam. A chuva benfazeja, mas no pode durar para sempre, sabia muito bemOxumar. Ento, o jovem filho de Nan, que nunca tinha tido simpatia pela Chuva, apontou seu punhal debronze para o alto e com ele fez um grande corte em arco no cu, ferindo a Chuva e interrompendo suaao. A Chuva parou de cair e alagar tudo aqui embaixo, e o Sol pde brilhar de novo, refazendo a vida.Desde ento, quando chove em demasia, Oxumar risca o cu com seu punhal de bronzepara estancar as guas que caem das alturas.Quando isso acontece, todos podem ver o belo prncipe nocu vestido com suas roupas multicoloridas. Todos podem v-lo na forma do arco-ris. Na lngua africanade Oxumar, alis, seu nome quer dizer exatamente isso: o Arco-ris. Quando no est chovendo,Oxumar vive na Terra.

Muitos dizem que Oxumar foi posto no firmamento por sua prpria me Nan, a Sbia, para que,de l do alto, todos pudessem admirar sua beleza. Dizem tambm que foi por causa de sua formosuraque Oxumar acabou transformado numa cobra. Tudo porque Xang, o Trovo, rei da cidade de Oi,encantou-se com as cores do Arco-ris. Para poder admirar Oxumar quando bem quisesse, Xang

planejou aprision-lo para sempre. O rei Trovo chamou Oxumar em seu palcio e, quando o jovemprncipe entrou na sala do trono, os soldados do rei fecharam todas as portas e janelas. O prncipe dascores no podia fugir de Xang, estava encurralado, preso, impedido de subir ao firmamento.

Oxumar ficou desesperado. Quem estancaria a Chuva, se ele permanecesse preso? Quemsalvaria a humanidade da fria das guas? uem impediria as enchentes, as enxurradas destruidoras,as avalanches de terra encharcada? Quem frearia a destruio das colheitas por excesso de gua?Quem livraria o homem da fome, da morte? Oxumar, o Arco-ris, implorou a Olorum. Olorum, o SenhorSupremo, ouviu o prisioneiro e, com pena dele, transformou-o numa cobra. A cobra ento deslizou pelocho da sala do palcio e, com facilidade, escapou pela fresta sob a porta.Ficou livre para sempre.

Por isso Oxumar vive no firmamento e vive no solo. Vive no Cu e na Terra. Ele ambguo,

misterioso. Temos medo quando o vemos rastejar pelo cho feito um rptil asqueroso, e nos encantamoscom suas cores luxuosas esparramadas em arco no horizonte. Ele o prncipe-serpente, a cobra querasga o cu. o Senhor do Arco-ris.


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