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Contos de Imaginação e Mistério · dedicatória de Eureka: “Ofereço este livro àqueles que puseram fé no sonho como única realidade!” Foi, portanto, um protesto admirável,

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Prefácio

OutrasanotaçõessobreEdgarPoe1

I

Literatura da decadência! – Palavras sem sentido que frequentementeouvimoscair,comosomenfáticodeumbocejo,dabocadaquelases ingessemsegredoquevelamàssantasportasdaEstéticaclássica.Todavezqueo oráculo irrefutável ressoa, pode-se a irmar que se trata de uma obramais interessante que aIlíada. É o caso, evidentemente, deumpoemaoudeumromancenoqualtodasaspartessãodispostashabilmenteemprolda surpresa, no qual o estilo é ornadomagni icamente, no qual todos osrecursos da linguagem e da prosódia são utilizados por uma mãoimpecável. Quando ouço ecoar o anátema – que, seja dito de passagem,geralmente cai sobre algum poeta célebre – sou sempre tomado pelavontade de responder: “Acaso vocês me tomam por alguém tão bárbaroquanto vocês, e creem que eu seja capaz de me divertir de forma tãosofrível?” Comparações grotescas então se põem em funcionamento nomeucérebro;pareceque fuiapresentadoaduasmulheres:umamatronagrosseira,repugnantedopontodevistadasaúdeedamoral,sempostura,emsuma,semdevernada,anãoseràpuranatureza ;aoutra,umadaquelasbelezasquedominameoprimemalembrança,unindoaeloquênciadesuaelegância ao seu charme profundo e original, senhora de si, consciente erainhadaprópriapessoa–umavozquesoacomoseuminstrumentobema inado estivesse falando, e olhares que não transmitem senão o quequerem. Minha escolha não poderia ser mais simples; no entanto, háes inges pedagógicas que me repreenderiam por faltar à honra clássica.Mas, para deixar as parábolas de lado, acredito que posso perguntar aesses homens sábios se eles entendem toda a vaidade, toda a inutilidadede sua sabedoria. Dizerliteratura da decadência implica a existência deuma escala de literaturas, uma recém-nascida, outra pueril, umaadolescente, etc. Esse termo, quero dizer, pressupõe algo de fatal e deprovidencial, como um decreto inevitável; e é extremamente injusto noscriticarem por cumprir a leimisteriosa. Tudo o que consigo entender dodiscursoacadêmicoéservergonhosoobedeceraessa leidebomgradoesermosculpadospornosregozijarmoscomnossodestino.Essesolque,hápoucas horas, dominava tudo com luz direta e branca, em breve iráencharcar o horizonte ocidental com várias cores. Nos jogos desse sol

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agonizante, certos espíritos poéticos encontrarão novos prazeres; elesdescobrirão uma ileira de colunas deslumbrantes, cascatas de metalfundido,galeriasdefogo,umesplendortriste,avolúpiadasaudade,todosos encantos do sonho, todas as lembranças do ópio. E o pôr do sol lhespareceráde fato comoamaravilhosaalegoriadeumaalmacarregadadevida que vai para trás do horizonte com uma enorme provisão depensamentosesonhos.Mas o que os professores nãopensaramé que, nomovimentoda vida,

tal complicação, tal combinação pode se apresentar completamenteinesperada por sua sabedoria escolar. Então sua língua minguada seencontra em falta, como no caso – fenômeno que se multiplicará comprováveisvariantes–noqualumanaçãocomeçapeladecadênciaeestreiaondeasoutrasterminam.Que entre as imensas colônias do presente século se façam novas

literaturas produzirá, sem dúvida alguma, acidentes espirituais de umanatureza desconcertante para o espírito da escola. Jovem e velha aomesmo tempo, a América fala pelos cotovelos e caduca com umavolubilidade espantosa. Quem seria capaz de contar seus poetas? Sãoinumeráveis. Suasbluestockings2? Elas enchem os jornais. Seus críticos?Acredite,aAméricapossuipedantescomoosnossosparachamaroartistao tempo todo de volta à beleza antiga, para questionar um poeta ouromancista sobre a moralidade do seu objetivo e a qualidade das suasintenções.Oqueécomumaquiéaindamaiscomumlá,literaturasquenãosabemsequeraortogra ia;umaatividadepuerilinútil;umsem-númerodecompiladores; gente que se repete o tempo todo; plagiários de plágios ecríticos de críticos. Nesse caldeirão de mediocridades, nesse mundo queadora aperfeiçoamentos materiais – escândalo de um gênero novo quepermite compreender a grandeza dos povos preguiçosos –, nessasociedade ávida por assombramento, apaixonada pela vida, mas,sobretudo, por uma vida cheia de excitações, um homem foi grande nãoapenasporsuasutilezameta ísica,pelabelezasinistraouencantadoradoque concebeu, pelo rigor de suas análises,mas também foi grande comocaricatura. É preciso que eu me explique com alguma inquietação, poisrecentementeumcríticoimprudenteseservia,paradenegrirEdgarPoeecontestar a sinceridade daminha admiração, da palavramalabarista, queeumesmohaviaempregadoquasecomoumelogioaonobrepoeta.Do seio de ummundo esfomeado pormaterialidades, Poe se jogou no

sonho. Sufocado como estava pela atmosfera americana, escreveu na

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dedicatória deEureka: “Ofereço este livro àqueles que puseram fé nosonhocomoúnicarealidade!”Foi,portanto,umprotestoadmirável,queelefez à sua maneira, in his ownway. O autor que, n'O colóquio de Monos eUna, deixa abundante o desprezo e o desgosto pela democracia, peloprogresso e pela civilização é o mesmo autor que, para capturar acredulidade e satisfazer a curiosidade dos seus, reconheceu com maisvigorasoberaniahumanae fabricoucommaisengenhoos factoidesmaislisonjeirosaoorgulhodohomemmoderno.Hoje,Poemepareceumhilota3quepretendefazerseumestrecorar.Por im,a irmandominhasideiasdemodo ainda mais claro, Poe foi sempre grande, não apenas pelasconcepçõesnobres,mastambémpelasfarsas.

II

Poiselenuncafoi ludibriado!Nãoacreditoqueovirginiano,queescreveutranquilamente em plena explosão democrática “O povo não tem relaçãoalguma com as leis, a não ser a obediência”, jamais tenha sido vítima dasabedoria moderna; e “O nariz da ralé é a imaginação; é pelo nariz quesempre se poderá guiá-la com facilidade” e tantas outras passagens nasquais a zombaria chora, pesada como artilharia, mas, ainda assim,descuidada e altiva. Os swendenborgeanos o felicitam por suaMesmericRevelation [Revolução hipnótica] à semelhança daqueles ingênuosiluminados que outrora olhavam o autor deLe diable amoureux [O diaboapaixonado] como revelador de seusmistérios; eles lhe agradecempelasgrandes verdades que acaba de proclamar, pois descobriram (ó,veri icadordoquenãopodeserveri icado!)quetudooqueeleanunciouécompletamente verdadeiro, mesmo que antes, confessa essa boa gente,eles houvessem suspeitado que pudesse se tratar de mera icção. Poeresponde que, de sua parte, jamais duvidou. Ainda é preciso citar umapequenapassagemquemesaltaaosolhosenquantofolheiopelacentésimavezasincríveisMarginalia,quesãocomoacâmarasecretadoseuespírito:“A enormemultiplicação de livros de todos os ramos do conhecimento éumadasmaiorescalamidadesdestaépoca,poiséumdosobstáculosmaissérios à aquisição de qualquer conhecimento preciso”. Aristocrata pornaturezamaisquepornascimento,ovirginiano,ohomemdosul,oByronperdido em um mundo ruim sempre manteve sua impassibilidadeilosó ica, e, seja de inindo o nariz da ralé, zombando dos fabricantes dereligiõesoudesprezandoasbibliotecas,restaaquelequefoieserásempreoverdadeiropoeta–umaverdadevestidadeformabizarra,umparadoxo

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aparente,alguémquenãoquerseracotoveladoemmeioàmultidãoequecorreaoExtremoOrientequandoosfogosdeartifíciovãorumoaopoente.Maseisopontomaisimportante:notaremosqueesseautor,produtode

umséculoorgulhosodesimesmo, ilhodeumanaçãomaisorgulhosadesimesmaquequalqueroutra, viu comclarezaea irmou impassivelmenteaperversidadedohomem.Hánohomem,dizele,umaforçamisteriosaqueailoso ia moderna é incapaz de perceber; e, no entanto, sem essa forçainominada, sem essa tendência primordial, várias ações humanaspermanecerão inexplicadas, inexplicáveis. Essas ações não atraem senãoporque são más, perigosas; elas têm a atração do redemoinho. Tal forçaprimitiva, irresistível,éaPerversidadenaturalque fazcomqueohomemseja o tempo todo e ao mesmo tempo homicida e suicida, criminoso ecarrasco; pois, ele acrescenta com sutileza notavelmente satânica, aimpossibilidadedeencontrarummotivorazoávelparacertasaçõesmáseperigosaspoderianoslevaraconsiderá-lascomosugestãodoDemôniosea experiência e a história não nos ensinassem que Deus costumadesestabilizar a ordem e negligenciar o castigo aos faltosos;após ter sevalido dos mesmos faltosos como cúmplices, tal é a palavra que passa,confesso, pelo meu espírito, como subentendido tão pér ido quantoinevitável. No entanto, não quero, no presente instante, cuidar de nada anãoserdaverdadeesquecida,aperversidadeprimordialdohomem,enãoé sem satisfação que vejo alguns destroços da antiga sabedoria voltaremde um país de onde não os esperaríamos. É agradável que algumasexplosõesdaboaevelhaverdadesejamjogadasdessamaneiranacaradetodos os que louvam a raça humana, de todos esses apaziguadores eatenuadores que repetem em todos os tons possíveis “Nasci bom, vocêtambém,todosnósnascemosbons!”esquecendo,não!, ingindoesquecerooutrolado,quenascemosmarcadospelomal!Por qual mentira ele poderia ser ludibriado, aquele que às vezes –

dolorosanecessidadedosmeios–as talhava tãobem?Quedesprezopelailosofaria, em seus melhores dias, quando ele era, por assim dizer,iluminado!Essepoeta,dequemvárias icçõesparecem feitasporsimplesgosto, para con irmar a pretensa onipotência do homem, quis purgaralgumasvezesasimesmo.Odiaemqueescreveu“Todacertezaestánossonhos” foi quando repeliu seu próprio americanismo para a região dascoisas inferiores; outras vezes, retomando o verdadeiro caminho dospoetas, obedecendo sem dúvida à inelutável verdade que nos assombracomo um demônio, ele soltava os ardentes suspiros doanjo caído que se

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lembradosCéus;mandavasuaangústiaàidadedeouroeaoÉdenperdido;choravatodaessamagnificênciadanatureza,contorcendo-sediantedobafoquentedos fornos; en im, lançava essas páginas admiráveis:OcolóquiodeMonoseUna,queteriamencantadoeperturbadooimpecávelDeMaistre.Foi ele quem disse sobre o socialismo, na época em que isso sequer

tinhaumnome,ouquandoessenomeaindanãotinhasidovulgarizado:“Omundoestáinfestadoatualmenteporumanovaseitade ilósofos,quenãose reconhecemcomo seita e, consequentemente, não adotaramumnome.São oscrentes em toda velharia (ou seja: pregadores do velho). O grandepadre deste lado doAtlântico é Charles Fourier, e, do outro lado,HoraceGreely.Oúnicotraçocomumentreosmembrosdaseitaéacredulidade–chamemos a isso de demência e não falemosmais. Pergunte a um delesporqueacreditanissoounaquiloe,seeleforconsciencioso(osignorantesgeralmente são), lhe dará uma resposta análoga à que deu Talleyrand 4

quando lhe perguntaram por que ele acreditava na Bíblia. 'Acredito', eledisse,'primeiroporquesoubispodeAutuneemsegundolugarporquenãoentendoabsolutamentenada .'Oqueesses ilósofoschamamdeargumentoéparaelesumamaneiradenegaroqueéedeexplicaroquenãoé.”Oprogresso,essagrandeheresiadadecrepitude,nãopodialheescapar.

Oleitorverá,emdiferentespassagens,ostermosusadosparacaracterizá-lo.Defato,poderiaserdito,aoveroardorempregado,queelesevingavacomoquedeumavergonhapública,deumaofensadarua.Comoeledeveter rido, daquele riso desdenhoso dos poetas, que não engrossa jamais ocoro dos curiosos, se deu de encontro, como me ocorreu recentemente,com aquela frase maravilhosa que supera os absurdos ridículos evoluntáriosdospalhaçosequeviseexibiremumjornalmaisquesério:Oprogresso incessante da ciência permitiu, pouco tempo atrás, que seencontrasse o segredo perdido e hámuito tempo buscado de... (fogo grego,têmperadecobre,qualquercoisaperdida), doqualasaplicaçõesmaisbem-sucedidas remontamaumaépoca bárbaraemuitoantiga!!! Eis uma frasequepodesechamardeumverdadeiroachado,deumasonoradescoberta,mesmo emum século deprogresso incessante ;mas acreditoque amúmiaAllemistakeo não deixaria de perguntar, com o tom doce e discreto dasuperioridade, se foi também graças ao progresso incessante – à lei fatal,irresistível, do progresso – que esse famoso segredo foi perdido. Assimque,paramanterotomdefarsa,emumassuntoquecontémtantoderisoquanto de lágrimas, não é estupendo ver uma nação, várias nações, embreve toda a humanidade, dizer a seus sábios, a seus feiticeiros “Eu os

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adorareieosfareigrandessevocêsmepersuadiremdequeprogredimossem querer, inevitavelmente, enquanto dormimos; livrem-nos daresponsabilidade, encubram para nós a humilhação das comparações,so istiquem a história e poderão se chamar de sábios dos sábios”?Não ématériaparaespantoqueessa ideia tãosimplesnãoestoureemtodososcérebros:queoprogresso(enquantohajaprogresso)aperfeiçoeadornamesmamedidaemquere inaavolúpia,eque,seaepidermedospovossetorna mais delicada, eles não buscam nada além de umaItaliamfugientem5,umaconquistaperdidaacadaminuto,umprogressoquenegaasimesmootempotodo.Masessasilusões,aprincípiointeressantes,têmorigememumfundode

perversidadeedementira,atraemasalmasapaixonadaspelofogoeterno,como Edgar Poe, e exasperam as inteligências obscuras, como Jean-Jacques6, emquemumasensibilidade feridaepropensaà revolta tomaolugarda iloso ia.Queessehomemtenharazãocontraoanimaldepravadoé incontestável; mas o animal depravado tem o direito de criticá-lo porinvocar anatureza.Anaturezanão crianada alémdemonstros, e toda aquestãoseexpõenapalavraselvagem.Nenhum ilósofo ousará propor como modelo aquelas hordas podres,

infelizes,vítimasdoselementos,pastodebestas,tãoincapazesdefabricararmasquantodeconceberaideiadeumpoderespiritualesupremo.Mas,sequisermoscompararohomemmoderno,ohomemcivilizado,aohomemselvagem, ou, mais além, uma nação dita civilizada a uma nação ditaselvagem, ou seja, privada de todas as engenhosas invenções quedispensam o indivíduo de heroísmo, quem não percebe que todas ashonrarias vão para os selvagens? Por sua natureza, pela próprianecessidade, eles são enciclopédicos, enquanto o homem moderno seencontra con inado nas minúsculas regiões da especialidade. O homemcivilizado inventa a iloso ia do progresso para se consolar de suaabdicação e decadência; enquanto o homem selvagem, marido temido erespeitado, guerreiro forçado à bravura individual, poeta às horasmelancólicas quando o pôr do sol o convida a cantar o passado e osancestrais, corta demais perto a fronteira do ideal. Por qual lacuna nósousaríamosrepreendê-lo?Eletemseupadre,seufeiticeiroeseumédico.Oque eu estou dizendo? Ele tem o dândi, encarnação suprema do belotransportado à vida material, aquele que dita a forma e governa oscostumes. Suas roupas, seus enfeites e seu cachimbo testemunham umafaculdade inventiva da qual desertamos há muito tempo. Podemos

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compararnossosolhospreguiçososenossosouvidosensurdecidosàquelesolhos que perscrutam a névoa e àqueles ouvidosque ouviriam a gramacrescer? E a selvageria, a alma simples e infantil, animal obediente ecarinhoso que se doa inteiro e sabe que não é senão metade de umdestino, nós a decretaremos inferior à senhora americana a qual o sr.Bellegarrigue (redator doMoniteurde l´épicerie [Monitor damercearia]!)acreditou elogiar ao dizer que era o ideal damulher culta? Essamesmamulher, cujamoral bastante positiva inspirou Edgar Poe (tão galante, tãorespeitoso à beleza!) as tristes linhas seguintes: “Essas bolsas enormes,queparecemumpepinogiganteeestãonamodaentrenossasbelas,nãosão, como se acredita, deorigemparisiense; sãoperfeitamente indígenas.PorqueumamodaassimsurgiriaemParis,ondeumamulhernãocarreganadanabolsaalémdedinheiro?Masabolsadeumaamericana!Éprecisoque essa bolsa seja vasta o su iciente para que ela possa fechar ali todoseu dinheiro – e toda sua alma!” Quanto à religião, não falarei deVitziliputzli7 comamesmadelicadezadeAlfreddeMusset; confesso, semvergonha, uma preferência muito maior pelo culto de Teutates 8 ao deMamon9, e o padre que oferece ao cruel chantagista hóstias humanas devítimas que morremhonrosamente, de vítimas quequerem morrer, mepareceumser inteiramentedoceehumanoemcomparaçãoao inancistaque não imola o povo a não ser em interesse próprio. De tempos emtempos,essascoisasaindasãovislumbradas,eencontreiumavezemumartigodosr.Barbeyd'Aurevillyumaexclamaçãode tristeza ilosó icaqueresume tudo o que eu gostaria de dizer sobre esse assunto: “Povoscivilizados,quenãoparamdelançarpedrasaosselvagens,embrevevocêsnãomerecerãosernemmesmoidólatras!”Umambientecomoesse– jádisse,masnãopossoresistiràvontadede

repetir – não é feito pelos poetas. O que um espírito francês, suponha omais democrático, entende por um Estado, não encontraria lugar em umespírito americano. Para toda a inteligência do velho mundo, um estadopolítico tem um centro de movimento que é seu cérebro e seu sol,memórias antigas e gloriosas, longos anais poéticos e militares, umaaristocracia, à qual a pobreza, ilha das revoluções, não faz senãoacrescentarumlustreparadoxal;mas, isso!essamultidãodevendedoreseconsumidores,esseinominável,essemonstrosemcabeça,essadegradaçãodooutro ladodooceano,Estado!–estoudeacordoqueum cabaret cheiodabalbúrdiadasmás intençõesede clientesque tratamdenegóciosnasmesas sujas possa ser assimilado a umsalon, ao que nós chamaríamos

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salonoutrora,repúblicadoespíritopresididapelabeleza!Serásempredi ícilexercer,deformaaomesmotemponobreefrutífera,

a condição de homem de letras sem se expor à difamação, à calúnia dosimpotentes,àinvejadosricos–invejaqueéocastigodeles!–àsvingançasdamediocridadeburguesa.Mas isso,di ícilemumamonarquiamoderadaouemumarepúblicaregular,torna-sequaseimpraticávelemumaespéciedecafarnaum onde cada sargento faz a polícia conforme seus vícios (ousuasvirtudes,éamesmacoisa);ondeumpoetaouumromancistadeumpaísdeescravosédetestávelaosolhosdeumcríticoabolicionista;ondeéimpossível saber qual é o maior escândalo – o desleixo do cinismo ou aimperturbabilidadedahipocrisiabíblica.Queimarosnegrosacorrentados,culpados por sentir seu semblante preto fervilhar com o vermelho dahonra, disparar um revólver contra a plateia do teatro, estabelecer apoligamianoparaísodoOeste,queosselvagens(essetermosoacomoumainjustiça) ainda não haviam sujado com essas vergonhosas utopias, colarnosmuros,semdúvidaparaconsagraroprincípiodaliberdadeilimitada,acura para as doenças de nove meses , são alguns dos traços salientes,algumas das ilustraçõesmorais do nobre país de Franklin, o inventor damoraldebalcão,oheróideumséculodedicadoàmatéria.ÉbomchamaratençãoconstantementeparataismaravilhasdebrutalidadeemumtempoemqueamaniapelaAméricasetornouquaseumapaixãodebomtom,apontodeumarcebispopodernosprometer,semrir,queaProvidêncianoschamarialogoagozardesseidealtransatlântico.

III

Um meio social desse feitio engendra necessariamente erros literáriosequivalentes.ÉcontraesseserrosquePoereagiusemprequepôdeecomtoda a força. Portanto, não deve nos espantar que os escritoresamericanos, reconhecendo seu poder singular como poeta e contista,tenham sempre tentado invalidar seu valor como crítico. Em um país noqualaideiadeutilidade,amaishostildomundoàideiadebeleza,controlatudo, o crítico perfeito será o maishonrado - em outras palavras, aquelecujas tendênciasecujosdesejosseaproximemmaisdas tendênciasedosdesejos do público, aquele que embaralha as faculdades e os gêneros deproduçãoeatribuiatodosumametacomum-seprocurar,emumlivrodepoesia,meiosparaaperfeiçoaraconsciência.Naturalmente,oindivíduosetorna cada vez menos preocupado com as belezas reais, positivas, dapoesia;assimcomo icarácadavezmenoschocadocomas imperfeiçõese

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mesmo com as falhas da execução. Edgar Poe, ao contrário, dividindo omundo do espírito emintelecto puro , gosto esentido moral, aplicava acríticade acordo comessas três categorias. Ele era, sobretudo, sensível àperfeição da estrutura e à correção da execução; desmontando obrasliteráriascomosefossempeçasmecânicasdefeituosas(emrelaçãoàmetaquevisamalcançar),apontandocuidadosamenteosvíciosdefabricação;e,quandopassavaaodetalhedaobra,àsuaexpressãoplástica,aoestilo,emuma palavra, descascava, sem omissão, as falhas de prosódia, os errosgramaticaisetodaessamassadedejetos,que,entreosescritoresquenãosão artistas, maculam as melhores intenções e deformam as concepçõesmaisnobres.Para ele, a imaginação é a rainha das faculdades; no entanto, por essa

palavra entende-se algo maior do que aquilo que a maioria dos leitorespercebe. Imaginação não é a fantasia; não é a sensibilidade, mesmo queseja di ícil conceber um homem imaginativo que não seja sensível. Aimaginação é uma faculdade quase divina que percebe tudo comantecedência, à parte dos métodos ilosó icos, as relações íntimas esecretas das coisas, as correspondências e as analogias. As honrarias efunçõesqueeleconfereaessafaculdadecarregamumvalortal(aomenosquando se compreende bem o pensamento do autor), que um sábio semimaginação não parece mais que um falso sábio ou, quando muito, umsábioincompleto.Entreosdomíniosliteráriosondeaimaginaçãopodeobterosresultados

mais curiosos, pode colher tesouros, não osmais ricos e preciosos (essespertencem à poesia), mas os mais numerosos e variados, está umparticularmente querido a Poe, oconto. Ele tem sobre o romance degrandes proporções a imensa vantagem que a brevidade acrescenta àintensidade do efeito. Tal leitura, que pode ser realizada de um únicofôlego,deixanoespíritoumamarcamuitomaispoderosaqueumaleituraintermitente, muitas vezes interrompida por problemas de negócios epreocupações com interesses mundanos. A unidade da impressão, atotalidadedoefeitoéumavantagemimensaquepodedaraessegênerodecomposiçãoumasuperioridademuitoespecial,nosentidodequeumcontomuito curto (o que é, semdúvida, umdefeito) seja aindamelhor que umconto muito extenso. O artista, se é hábil, não acomodará seuspensamentosaosincidentes;mas,tendoconcebidodeliberadamente,aseubel-prazer, um efeito a produzir, inventará os incidentes, arranjará oseventosmaisapropriadosparaconduziraoefeitodesejado.Seaprimeira

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frase não for escrita de forma a preparar a impressão inal, a obra éde icientedesdeocomeço.Aolongodacomposiçãonãosedevesoltarumaúnica palavra que não seja uma intenção, que não tenda, direta ouindiretamente,apercorreroplanotraçado.Háumpontonoqualocontoésuperioratémesmoaopoema.Oritmoé

necessário ao desenvolvimento da ideia de beleza, que é omaior emaisnobre objetivo do poema. Ora, os arti ícios do ritmo são um obstáculoinsuperável ao desenvolvimentominucioso de pensamentos e expressõesquetenhamporobjetivoaverdade.Poisaverdadepodemuitasvezesserametadoconto,eoraciocínioamelhorferramentaparaaconstruçãodeumcontoperfeito.Eisarazãopelaqualessegênerodecomposição,quenãoétratadocomtantaelevaçãoquantoapoesiapura,pode fornecerprodutosmais variados e mais acessíveis ao gosto do leitor comum. Além disso, ocontistatemàsuadisposiçãoumaenormequantidadedetons,denuancesde linguagem–o tomre lexivo,osarcástico,ohumorístico,querepudiaapoesia–equesãocomodissonâncias,ultrajesà ideiadebelezapura.Eépelomesmomotivoqueoescritorquebuscaumaúnicametadebelezaemumcontotrabalhaemgrandedesvantagem,sendoprivadodoinstrumentomais útil, o ritmo. Sei que, em todas as literaturas, foram feitos esforços,muitas vezes felizes, para criar contos puramente poéticos; o próprioEdgarPoe fez algunsmuitobonitos.Mas são lutas e esforçosque servemapenas para demonstrar a força dos verdadeiros recursos adaptados àsmetas correspondentes; não seria arriscado a irmar que para algunsautores, osmaiores nos quais podemos pensar, essas tentações heroicasviessemdeumdesespero.

IV

“Genus irritabilevatum!10Queospoetas (vamosutilizarapalavraemseusentidomais extenso, compreendendo todos os artistas) sejam uma raçairritávelébemsabido;masoporquênãomeparecetãoclaro.Oartistanãoé artista senão por sua compreensão re inada do belo, o que lheproporciona deleites inebriantes, mas, ao mesmo tempo, implica umacompreensão igualmente re inada de toda deformidade e desproporção.Portanto, um erro, uma injustiça contra um poeta o exaspera de talmaneira que pode parecer, ao julgamento comum, em completadisparidade em relação à injustiça cometida. Os poetasnunca veeminjustiça onde não existe, mas, na maioria das vezes, onde os olhos nãopoéticos são incapazes de vê-la. Dessa forma, a irritabilidade poética não

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tem relação com otemperamento, entendido em sua acepção vulgar,mascomumaclarividênciaalémdonormalrelativaàfalsidadeeàinjustiça.Talclarividêncianadamaiséqueumcoroláriodapercepçãovivadorealedajustiça, da proporção, para empregar uma palavra relacionada ao belo.Masháumacoisamuitoclara,ohomemquenãoé(aojulgamentocomum)irritabilisnãoé,deformaalguma,poeta.”Sãopalavrasdoprópriopoeta,emumaapologiaexcelenteeirrefutávela

toda sua raça. Poe levava essa sensibilidade aos assuntos literários, e aextrema importância que conferia à poesia o induzia muitas vezes a umtom,segundoojulgamentodosmaisfrágeis,desuperioridade.Jáobservei,acredito, que muito dos preconceitos que ele precisava combater, ideiasfalsas, julgamentos vulgares que circulavam a seu respeito, infectaram aimprensa francesa há umbom tempo.Não será inútil, portanto, observarsumariamente algumas de suas opiniões mais importantes em relação àcomposiçãopoética.Oparalelismocomoerrotornaráaaplicaçãobastantefácil.Mas, antes de tudo, devo dizer que, ao destacar o poeta natural, inato,

Poe também destacava a ciência, o trabalho e a análise, o que pareceráexorbitanteaosorgulhosnãoeruditos.Elenãoapenasdispensouesforçosconsideráveis para submeter à sua vontade o demônio fugitivo dosminutosfelizes,paralembraraseugostoessassensaçõesre inadas,essasânsias espirituais, esses estados de saúde poética, tão raros e preciososque poderiam ser considerados graças exteriores ao homem, comoaparições; mas ele também submeteu a inspiração ao método, à análisemais severa. A escolha dos meios! Ele insiste o tempo todo em umaeloquênciaconscientedaapropriaçãodomeioaoefeito,dousodarima,dalapidaçãodorefrão,daadaptaçãodarimaaosentimento.Elea irmavaquequem não sabe tocar o intangível não é poeta; que só é poeta quem émestre da memória, soberano das palavras, estando o registro de seuspróprios sentimentos sempre prontos a se deixar folhear. Tudo pelodesenlace! ele repete incansavelmente. Até o soneto tem necessidade deum plano, e a construção, a armação, por assim dizer, é a garantia maisimportantedavidamisteriosadasobrasdoespírito.Recorro naturalmente ao ensaio intituladoThe Poetic Principle [O

princípio poético] e nele encontro, desde o começo, umprotesto vigorosocontra o que se pode chamar, em matéria de poesia, de heresia docomprimento ou da dimensão – o valor absurdo atribuído aos poemaslongos. “Umpoema longonãoexiste;oqueseentendeporpoema longoé

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umaperfeitacontradiçãoemtermos.”Defato,umpoemanãomereceessenome a não ser quando estimula, eleva a alma, e o valor positivo de umpoema se dá em função de talestímulo da alma. Mas, por necessidadepsicológica, todos os estímulos são fugitivos e transitórios. Esse estadosingularnoqualaalmadoleitorfoi,digamos,pegaàforça,certamentenãodurará mais que a leitura do poema, que ultrapassa a tenacidade doentusiasmodaqualanaturezahumanaécapaz.Eis o poema épico evidentemente condenado. Pois uma obra de certa

dimensãonãopodeserconsideradapoéticaanãoserquesesacri iqueacondição vital de toda obra de arte, a Unidade; não falo da unidade daconcepção,masdaunidadeda impressão,datotalidade doefeito, como jádisse quando comparei o romance ao conto. O poema épico, portanto, seapresenta, esteticamente falando, como um paradoxo. É possível que aseras antigas tenham produzido séries de poemas líricos, reunidosposteriormente pelos compiladores como poemas épicos; mas todaintençãoépicaresultaevidentementedeumaacepçãoimperfeitadaarte.Otempodessaanomaliaartísticapassou,eédi ícilacreditarqueumpoemaextensotenhasidopopularumdia.É preciso acrescentar que um poema muito curto, aquele que não

fornece umpabulum su iciente ao estímulo criado, que não satisfaz oapetitenaturaldoleitor,tambémédefeituoso.Nãoimportaaintensidadeeo brilho do efeito, ele não dura; amemória não o retém; é comoum seloque,colocadocompressa,nãotevetempodeimporsuaimagemàcera.No entanto, há outra heresia, que, graças ao ingimento, ao peso e à

baixeza dos espíritos, é muito mais temível e apresenta maiorespossibilidades de duração, um erro que tem vidamais resistente, falo daheresia doensino, a qual compreende como corolários inevitáveis asheresias dapaixão, daverdade e damoral. Uma multidão imagina que oobjetivodapoesiasejaumensinoqualquer,queeladevaora fortaleceraconsciência,oraaperfeiçoaramoral,ora,por im, demonstrarsejaláoquefor de útil. Edgar Poe diz que os americanos apadrinharam essa ideiaheterodoxa;helas!Nãoépreciso ir aBostonparaencontraraheresia emquestão. Aqui mesmo ela nos sitia e ataca cotidianamente a verdadeirapoesia.Apoesia, pormais que sequeiradescer a simesmo, interrogar aprópriaalma,evocaraslembrançasdoentusiasmo,nãotemoutroobjetivoa não ser ela mesma; não pode ter outro, e nenhum poema será tãogrande,tãonobre,tãodignodonomedepoemaquantoaquelequehouversidoescritounicamentepeloprazerdeescreverumpoema.

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Não digo que a poesia não enobreça a moral, entenda bem, que seuresultado inal não seja colocar o homem acima dos interesses vulgares;issoseria,semdúvida,umabsurdo.Digoque,seopoetabuscouumametamoral,diminuiusuaforçapoética.Enãoseráimprudenteapostarquesuaobraseráruim.Apoesianãopode,sobpenadedesfalecimentooumorte,assemelhar-seàciênciaouàmoral;elanãotemaverdadeporobjeto,temasimesma.Osmodosdedemonstraçãodaverdadesãooutroseestãoemoutroslugares.Averdadenãotemnadaavercomcanções.Tudooquefazo encanto, a graça, o irresistível de uma canção privaria a verdade deautoridade e poder. Frio, calma, impassibilidade, o humor demonstrativorepeleosdiamanteseas loresdaMusa;eis,portanto,operfeitoopostodohumorpoético.Ointelectovisaàverdade,ogostonosmostraabelezaeosentidomoral

nosensinaodever.Éverdadequeomeioestáintimamenteconectadoaosdoisextremosenãoseseparadosentidomoralanãoserporumaligeiradiferença, que Aristóteles não hesitou em dispor entre algumas dasvirtudesdeseusdelicadosesquemas.Assim,oqueexasperanoespetáculodovício,sobretudoaohomemdegosto,éadeformidade,adesproporção.Ovícioagrideojustoeoverdadeiro,revoltaointelectoeaconsciência;mas,comoofensaàharmonia,comodissonância,eleatingemaisdepertocertosespíritos poéticos; e não creio ser escandaloso considerar toda infraçãomoral,àbelezamoral,comoumaespéciede falhauniversalderitmoedeprosódia.Éesseinstintoadmirável,imortal,dobeloquenosfazconsideraraterra

eosespetáculoscomoumvislumbre,comoumacorrespondênciadoCéu.Asede insaciável por tudo que está do outro lado, e que revela a vida, é aprovamaisvivadanossaimortalidade.Éaomesmotempoparaapoesiaeatravés da poesia, para a música eatravés dela que a alma entrevê osesplendores situados além-túmulo; e, quando um poema sublime trazlágrimasaosolhos,essaslágrimasnãosãoprovadeumexcessodedeleite,sãomuitomais o testemunhodeumamelancolia irritada, deuma súplicados nervos, de uma natureza exilada na imperfeição e que gostaria deganharimediatamente,nessamesmaterra,oparaísorevelado.Assim, o princípio da poesia é estrita e simplesmente a aspiração

humanaaumabeleza superior, e amanifestaçãode talprincípioestáemum entusiasmo, um estímulo da alma – entusiasmo completamenteindependentedapaixão,queéaembriaguezdocoração; edaverdade,opastodarazão.Poisapaixãoénatural,naturaldemaisparanãointroduzir

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um tomofensivo, discorde no domínio da beleza pura, familiar e violentademaisparanãoescandalizarosdesejospuros,asmelancoliasgraciosaseosdesesperosnobresquehabitamasregiõessobrenaturaisdapoesia.Essa elevação extraordinária, essa delicadeza re inada, esse tom de

imortalidade que Edgar Poe exige da Musa, ao invés de deixá-lo menosatento às práticas de execução, forçou-o a a iar cada vez mais suagenialidade técnica. Muitas pessoas, sobretudo as que leram o singularpoemaintituladoOcorvo, icariamescandalizadasseeuanalisasseoensaionoqualnossopoetaexplicaemdetalhes(ingenuamenteemaparência,mascom uma leve impertinência que não posso repreender) a construçãoempregadaporele,aadaptaçãodoritmo,aescolhadeumrefrão–omaisbreve possível e o mais suscetível a variadas aplicações, e, ao mesmotempo, o mais representativo da melancolia e do desespero, ornado darima mais sonora (nevermore, nunca mais) –, a escolha de um pássarocapazde imitar a vozhumana,mas, ainda assim, umpássaro – o corvo –marcado na imaginação popular por uma imagem funesta e fatal – aescolhadotommaispoéticodetodos,omelancólico–,dosentimentomaispoético,oamorporumamorta,etc.“Nãocolocarei”,dizele“oheróidomeupoema em um ambiente pobre porque a pobreza é trivial e contrária àideia de beleza. Sua melancolia terá por guarida um quarto mobilhadomagní icaepoeticamente.”OleitorsurpreenderáemvárioscontosdePoesintomas curiosos desse gosto desmedido pelas formas belas, sobretudopelas formas belas e singulares, pelos ambientes ornados e pelassuntuosidadesorientais.Eu disse que esse ensaio me parecia marcado por uma leve

impertinência.Ospartidáriosdainspiraçãoquandomuitonãodeixaramdever nisso uma blasfêmia e uma profanação;mas creio que o texto tenhasidoescritoespecialmenteparaeles.Assimcomocertosescritoresafetamoabandono, visandoaobra-primadeolhos fechados, cheiosde con iançanadesordem,esperandoqueas letras lançadasao tetocaiamaochãoemforma de poema, Edgar Poe – um dos homens mais inspirados que jáconheci – se vale da afetação para esconder a espontaneidade, parasimularsangue-frioedeliberação.“Acreditopodermeexaltar,”dizelecomumorgulhodivertidoquenãoconsideromaugosto,“pornenhumpontodaminhacomposiçãotersidodeixadoàsorteeporqueaobratodacaminhoupassoapasso rumoà suameta comaprecisãoea lógica rigorosadeumproblema matemático.” Apenas os amantes da sorte, os fatalistas dainspiração e os fanáticos doverso branco poderiam achar bizarra sua

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minúcia.Nãoexisteminúciaemmatériadearte.Quanto aos versos brancos, acrescentarei que Poe dá extrema

importânciaàrima,esuaanálisesobreoprazermatemáticoemusicalqueoespíritotiradarimatrouxetantocuidadoesutilezaquetudoserelacionaaofazerpoético.Aomesmotempoquemostraqueorefrãoésuscetíveldeaplicações in initamente variáveis, ele também buscou rejuvenescer,redobrar o prazer da rima ao acrescentar esse elemento inesperado, aestranheza,queécomoocondimentoindispensávelatodabeleza.Opoetafaz, sobretudo, um uso feliz de repetições domesmo verso ou de vários,frasesobstinadasquesimulamasobsessõesdamelancoliaoudaideia ixa–do refrãopuroe simples,mas conduzidodevárias formasdiferentes–,do refrão-variante que interpreta a indolência e a distração – das rimasduplas e triplas, assim como de um gênero de rima que ele introduz napoesiamoderna,mascommaisprecisãoeintenção,assurpresasdoversoleonino.É evidente que o valor de todos esses meios não pode ser veri icado

senão ao colocá-los emprática; e uma traduçãodepoesia, tãodesejada econcentrada, pode ser um sonho doce,mas nãomais que um sonho. Poefezpoucapoesia; algumasvezes chegoua expressarpenapornãopodersededicarnãocommaisfrequência,masexclusivamente,aessegênerodetrabalho que considerava como o mais nobre. Mas sua poesia tem umefeito poderoso. Não é a efusão ardente de Byron, nem a melancoliaharmoniosadeTennyson, pelaqual elenutria, diga-sedepassagem,umaadmiração quase fraterna. É algo profundo e resplandecente como umsonho,misteriosoeperfeitocomocristal.Nãoénecessário,acredito,dizerqueoscríticosamericanoscostumamdenegriressapoesia;recentemente,encontreiemumdicionáriodebiogra iasamericanasumartigonoqualelaeradescritacomoestranheza, temia-sequeessaMusaemtrajesdesábionão izesse escola no glorioso país damoral útil, e, por im, lamentava-seque Poe não houvesse aplicado seu talento à expressão de verdadesmorais em vez de desperdiçá-lo na busca de um ideal bizarro e deespalharporseusversosumavolúpiamisteriosa,éverdade,massensual.Conhecemos essa esgrima leal. As repreensões que os maus críticos

fazem aos bons poetas são as mesmas em qualquer país. Ao ler esseensaio, tive a impressão de estar lendo a tradução de um dessesnumerosos discursos de acusação dirigidos pelos críticos parisiensescontra os mais apaixonados pela perfeição dentre nós, poetas. Nossosfavoritossãofáceisdeadivinhar,etodaalmatomadapelapoesiapurame

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compreenderáquandoeudisserque, entrenossa raçaantipoética,VictorHugoseriamenosadmiradose fosseperfeito,equeelenãopôderedimirseugêniolíricoanãoserintroduzindoàforça,brutalmente,emsuapoesiaoqueEdgarPoeconsideraaheresiacapitalmoderna–oensino.

CharlesBaudelaire

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WILLIAMWILSON

Quedizerdela?quedizerdaausteraconsciência,Esseespectroemmeucaminho?

Chamberlain,PharronidaQuemesejapermitido,nomomento,apresentar-mecomoWilliamWilson.A página imaculada ora diante demim não necessita sermanchada commeuverdadeironome.Estejáconstituiupordemaisobjetododesprezo,dohorror,dorepúdiodeminhaestirpe.Àsmaisremotasregiõesdoglobonãoespalharam os ventos indignados sua infâmia sem paralelo? Ah, o maisdesamparadopáriadentretodosospárias!Paraomundonãoestásmortoeternamente? para suas glórias, para suas lores, para suas douradasaspirações?eacasoumanuvemdensa,desoladoraein initanãopairaportodoosempreentretuasesperançaseocéu?Nãopretendo,mesmoqueopudesse, aquiouagora, comporumrelato

demeusúltimosanosdeindizívelsofrimentoedesgraçaimperdoável.Esseperíodo — esses últimos anos — assumiram uma elevação súbita emtorpeza cujaorigem, enadamais, émeupresentepropósitodeterminar. 1Os homens em geral tornam-se vis gradualmente. Demim, num instante,toda a virtude caiu por inteiro, como um manto. Da perversidaderelativamente trivial passei, com as passadas de um gigante, a excessosmaiores que os de um Heliogábalo. Que acaso — que evento isoladoprovocou esse infortúnio, tende paciência enquanto o relato. A morte seaproxima; e a sombra que a precede lançou uma in luência suavizantesobre meu espírito. Anseio, ao cruzar o vale sombrio, pela simpatia —quaseiadizendopelapiedade—demeussemelhantes.Eudebomgradoosfariacrerquefui,emalgumamedida,escravodecircunstânciasalémdocontrolehumano.Gostariaqueencontrassemparamim,nosdetalhesqueestou prestes a dar, algum pequeno oásis de fatalidade em meio a umdeserto de erros. Desejaria que admitissem— coisa que não se podemfurtar a admitir—que, embora a tentaçãopossa terdesde algum tempoexistido em tamanha grandeza, o homem jamaisassim foi, pelo menos,antes tentado— certamente, jamais a elaassim sucumbiu. Ede talmodo,portanto, que assim nunca sofreu. Acaso não terei vivido em um sonho?Não estarei perecendo vítima do horror e mistério das mais fantásticasdentretodasasvisõessublunares?

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Descendodeumaestirpenotáveldesdesempreporseutemperamentoimaginativoefacilmenteexcitável;e,namaistenrainfância,deimostrasdeter herdado plenamente o caráter familiar. À medida que avançava emanos, este se desenvolvia cada vez mais forte; constituindo, por muitasrazões, motivo de séria inquietação entre meus amigos, e de positivoagravoparamimmesmo. Tornei-me cada vezmais teimoso, aferrado aosmais estouvados caprichos, e presa das paixões mais ingovernáveis.Pobresdeespíritoevítimasdessasfraquezasdeconstituiçãosemelhantesàsminhaspróprias,meuspaispoucopodiamfazerparadeterasmalignaspropensões com que eu me distinguia. Alguns esforços débeis e maldirecionadosredundaramemcompletofracassodesuapartee,éclaro,emtotal triunfodaminha.Dessemomentoemdianteminhavozpassouaserlei na família; e numa idade em que poucas crianças abandonaram suasguias, fuideixadoàorientaçãodeminhaprópriavontade,etornei-me,emtudoanãosernonome,senhordeminhasprópriasações.Minhasmais antigas lembranças de uma vida escolar estão ligadas ao

prédio grande, irregular, elisabetano de um vilarejo na Inglaterra, ondehaviaumvastonúmerodeárvoresgigantescasecontorcidas,eondetodasascasaseramexcessivamenteantigas.Defato,eraumlugaroníricoequetrazia paz ao espírito, esse antigo e venerável povoado. Neste exatomomento, em minha imaginação, sinto o revigorante frescor de suasalamedas profundamente sombreadas, inspiro a fragrância de seusincontáveis arbustos e torno a estremecer com inde inível deleite sob orepique profundo e cavernoso do sino da igreja rompendo, de hora emhora, com seu troar repentino e taciturno, a quietudeda fusca atmosferaemqueseencravavaserenamenteodilapidadocampanáriogótico.Proporciona-me, talvez, tanto prazer quanto hojeme é dado de algum

modo sentir deter-me em minuciosas recordações da escola e seusassuntos. Mergulhado em infelicidade como estou — infelicidade, ai demim! por demais real—, espero ser perdoado se busco alívio, por maissuper icial e transitório que seja, no fraco por alguns poucos detalhesaleatórios. Estes, alémdomais, inteiramente triviais, e até ridículos em simesmos,assumem,emminhaimaginação,adventíciaimportância,poisqueligados a um período e local em que reconheço as primeiras ambíguasadvertências dodestinoqueposteriormenteme lançou em tão completastrevas.Quemesejaentãopermitidorecordar.Oprédio,repito,eraantigoeirregularmentedistribuído.Seuterrenoera

extenso, e um muro de tijolos alto e sólido, encimado por cimento com

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cacosdevidro,circundavatodooentorno.Essaproteçãosemelhanteàdeumaprisãocompunhao limitedenossodomínio;alémdele íamosapenastrês vezes por semana — uma delas nos sábados à tarde, quando,acompanhados por dois mestres, recebíamos permissão para brevescaminhadas em formação por alguns dos campos vizinhos— e duas aosdomingos,quandomarchávamosdessemesmomodoformalparaoserviçomatutinoevespertinodaúnicaigrejanovilarejo.Odiretordenossaescolaera o ministro dessa igreja. Com que profundo espírito de admiração eperplexidadesoíaeuobservá-lodenossoremotobanconaplateia,quando,com passos solenes e vagarosos, subia ao púlpito! Aquele homemreverendo,desemblante tãorecatadamentebenévolo,comseumanto tãobrilhante e tão clericalmente esvoaçante, a peruca tão minuciosamenteempoada,tãorígidaetãobasta—comopodiaseressemesmoque,poucoantes, com expressão severa, e em roupas manchadas de rapé,administrava, palmatória na mão, as draconianas leis do internato? Ah,gigantescoparadoxo,absolutamenteimensodemaisparaterumasolução!Emumângulodopesadomuroespreitavaameaçadorumportãoainda

mais pesado. Guarnecido de rebites e ferrolhos e coroado por aguçadaslanças de ferro. Que impressões de profundo temor ele não inspirava!Nunca era aberto salvo pelas três periódicas saídas e ingressos jámencionados; assim, a cada rangido de seus poderosos gonzos,descobríamos uma plenitude de mistério— ummundo de matéria parasoleneconsideração,ouparaaindamaissolenereflexão.A extensa muralha era irregular na forma, exibindo diversos nichos

espaçosos.Destes,trêsouquatrodentreosmaioresconstituíamopátioderecreio.Oterrenoeraniveladoecobertodecascalho inoeduro.Lembro-mebemdenãohaverárvores,nembancos,nemnadasimilarali.Claroqueicavanosfundosdoprédio.Nafrentehaviaumpequenoparterre,ondesecultivavam buxos e outros arbustos; mas através dessa sagrada áreapassávamosnaverdadeapenasnasmaisrarasocasiões—comoaochegarpela primeira vez na escola ou ao partir dali em de initivo, ou, talvez,quando, após o convite dos pais ou de algum amigo, alegrementetomávamosocaminhodecasaparapassaroNatalouosferiadosjuninos.Mas o prédio!—que edi íciomais excêntrico e antigo aquele!—para

mim,comoeraverdadeiramenteumpalácioencantado!Nãohaviade fatoim para seusmeandros— para suas incompreensíveis subdivisões. Eradi ícil,aqualquerdadomomento,dizercomcertezaemqualdeseusdoisandares calhava de se estar. De cada cômodo para qualquer outro

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aconteceria seguramente de se topar com três ou quatro degraus, fossepara subir, fosse para descer. E ainda as passagens laterais eraminumeráveis — inconcebíveis — e de tal modo desembocando em simesmas que nossas ideações mais exatas com respeito à totalidade damansãonãoerammuitodiferentesdessascomqueponderávamossobreoin inito. Durante os cinco anos em que ali residi, nunca fui capaz dedeterminarcomprecisãoemqueremotoesconso localizava-seopequenodormitório reservado a mim e a cerca de dezoito ou vinte outrosestudantes.A sala de aula era a maior da casa— e, eu não conseguia deixar de

pensar,domundo.Eramuitocomprida,estreitaedesoladoramentebaixa,compontudasjanelasgóticaseforrodecarvalho.Emumânguloremotoeque nos infundia o terror icava o recinto quadrado com cerca de dois atrês metros compreendendo o sanctum, “durante o horário”, de nossodiretor, o reverendo dr. Bransby. Era uma sólida estrutura, com portamaciça, e, preferencialmentea abri-lanaausênciado “Dominie”, teríamostodosdebomgradoperecidosobapeineforteetdure .2Emoutrosângulosicavamdois cubículos similares,muitomenos reverenciados,naverdade,mas ainda assim objeto de grande respeito. Um deles era o púlpito domestre “clássico”, outro, do “inglês e matemático”. Distribuídas pela sala,indoevindoemumairregularidadecontínua,haviainumeráveiscarteirascom bancos, escuras, antigas e desgastadas pelo tempo, cobertas compericlitantespilhasde livrosmuitomanuseados,e tãoriscadasde iniciais,nomes inteiros, iguras grotescas e outros múltiplos trabalhos a caniveteque estes haviam perdido inteiramente o pouco da forma original queporventura lhescouberaemumtempohaviamuito ido.Umimensobalded'água icava numa extremidade da sala, e um relógio de dimensõesestupendasnaoutra.Encerrado nas paredes maciças desse venerando ateneu, passei,

embora não entediado nem desgostoso, os anos do terceiro lustro deminhavida.Afervilhantecabeçadainfânciaprescindedequalquermundoou incidente externo com que se ocupar ou se divertir; e a monotoniaaparentemente melancólica de um colégio era repleta de uma excitaçãomais intensa do queminha juventudemais avançada derivou do luxo ouminha idade viril do crime. E contudo quero crer que meudesenvolvimento mental inicial guardava em si muito de incomum —muito, até, deoutré.3 Nos seres humanos como um todo os eventos daexistência muito tenra raramente deixam na maturidade alguma

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impressãode inida.Tudosãosombrascinzentas—umalembrançatênuee irregular — uma recordação vaga de débeis prazeres e fantasiosossofrimentos. Comigo tal não se dá. Na infância devo ter sentido com aenergiadeumhomemoquehojeencontrogravadonamemóriaemlinhastão vívidas, tão profundas e tão permanentes quanto os exergos dasmedalhascartaginesas.Econtudodefato—paraavisãofactualdomundo—comohaviapouco

que recordar! O despertar pelamanhã, as chamadas para se recolher ànoite; as horas de estudo, as sabatinas; os regulares meios períodos dedescanso, e suasperambulações;opátiode recreio comsuasaltercações,seus passatempos, suas intrigas; — isso tudo, mediante uma feitiçariamental há muito esquecida, foi moldado de maneira a envolver umaimensidadede sensações,ummundode ricos incidentes, umuniversodeemoção variada, das excitações mais apaixonadas e inspiradoras doespírito.“Oh,lebontemps,quecesiècledefer!”4

Na verdade, o ardor, o entusiasmo e a imperiosidade de minhadisposiçãonão tardaramame conferirumcaráterdestacadoentremeuscolegas e, mediante graduações lentas mas naturais, renderam-me umaascendênciasobretodososnãomuitomaisvelhosdoqueeu;—todos,comuma exceção. Essa exceção se encontrava na pessoa de um aluno que,embora sem parentesco comigo, ostentava o mesmo nome de batismo esobrenome;—circunstância,naverdade,pouconotável;pois,nãoobstanteumalinhagemnobre,omeueraumdessesnomesordináriosqueparecem,por direito prescritivo, ter sido, em tempos imemoriais, propriedadecomumdovulgo.Nessanarrativaportanto intituleiamimmesmoWilliamWilson — nome ictício não muito diferente do real. Apenas meuhomônimo, dentre todos os que no linguajar escolar constituíam “nossocírculo”,ousavacompetircomigonosestudosdasaladeaula,nosesportese altercações do pátio — ousava recusar-se a crer implicitamente emminhas asserções, e submeter-se a minha vontade — na verdade,interferir com minha autoridade arbitrária no que quer que fosse. Seexiste um despotismo supremo e absoluto nomundo, é o despotismo deuma mente superior na infância sobre os espíritos menos enérgicos deseuscompanheiros.A rebeldia de Wilson para mim constituía fonte do maior

constrangimento;—tantomaisporque,adespeitodabravatacomqueempúblico eu fazia questão de tratá-lo, bem como a suas pretensões,secretamente percebia temê-lo, e não conseguia deixar de pensar na

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igualdade que mantinha tão facilmente comigo como uma prova de suagenuínasuperioridade;poisquenãoserderrotadocustava-meumesforçoperpétuo.E contudoessa superioridade—mesmoessa igualdade—nãoera com efeito admitida por ninguémmais a não ser eu mesmo; nossoscolegas, devido a uma cegueira inexplicável, pareciam nem sequerdescon iar disso. Na verdade, sua competição, sua resistência eparticularmentesua impertinênciaeobstinada interferênciacomosmeuspropósitos eram não tão manifestas, mas antes privadas. Ele pareciadestituídoigualmentedaambiçãoquemeimpeliaedaenergiaapaixonadadementequemecapacitavaamesobressair.Emsuarivalidadepoder-se-iaconjecturarqueagiaunicamenteporumdesejocaprichosodeestorvar,surpreender ou morti icar minha pessoa; embora houvesse ocasiões emque eu não conseguia deixar de observar, com um sentimento misto deadmiração, humilhação e irritação, que temperava suas injúrias, seusinsultos ou suas contradições com umaafetuosidade de modos que eradecerto por demais inadequada e seguramente por demais indesejável.Esse comportamento singular eu sóopodia conceber comoderivandodeuma rematada presunção dando-se ares vulgares de apoiocondescendenteeproteção.TalvezfosseesteúltimotraçonacondutadeWilson,combinadoanossa

identidadedenome,eaomeroacidentedetermosingressadonaescolanomesmodia,queventilouentreasclassesmaisvelhasdocolégioaideiadequeéramosirmãos.Osalunosmaioresemgeralnãoindagamcomgranderigor os assuntos dosmais novos. Disse antes, ou deveria tê-lo feito, queWilson não era, no mais remoto grau, ligado a minha família. Masseguramente sede fato fôssemos irmãos deveríamos ser gêmeos; pois,apósdeixarainstituiçãododr.Bransby,casualmentevimasaberquemeuhomônimonasceranodia19dejaneirode1809—eissoédecertomodoumacoincidêncianotável;pois esseéprecisamenteodiademeupróprionascimento.5

Talvez pareça estranho que a despeito da contínua ansiedade emmimocasionada pela rivalidade de Wilson, e por seu intolerável espíritocontestador, eu era incapazde vir a odiá-lo inteiramente.Tínhamos, paraser exato, quase todos os dias uma briga em que, concedendo-mepublicamente a palma da vitória, ele, de algum modo, excogitava umamaneirademefazersentirnãoserseuverdadeiromerecedor;e,contudo,um senso de orgulho de minha parte e uma genuína dignidade da delemantinham-nos sempre no que se costuma chamar de “bons termos”,

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embora houvesse muitos pontos de forte conformidade operando emnossostemperamentosparadespertaremmimumsentimentoquetalvezexclusivamentenossasituaçãoimpediadeamadureceremamizade.Di ícilé de fato de inir, oumesmodescrever,meus reais sentimentos para comele. Formavam um composto variegado e heterogêneo; — parteanimosidadepetulante,queaindanãoeraódio,parteestima,umadosederespeito,emuitomedo,comumaquantidade imensadecuriosidade.Parao moralista será desnecessário dizer, além do mais, que Wilson e euéramososmaisinseparáveisdoscompanheiros.Foi sem dúvida o anômalo estado de coisas existente entre nós que

conduziu todos os meus ataques contra ele (e eram muitos, abertos oudisfarçados)pelasendadapilhériaoudapiadademaugosto(provocandodorsobopretextodomerogracejo),enãodeumahostilidademaisgravee determinada. Mas meus esforços nesse sentido de modo algumconheciam sucesso uniforme, mesmo quando meus planos eramconcebidoscomamaisespirituosadasverves;poismeuhomônimo tinha,em seu caráter,muito dessa austeridade despretensiosa e tranquila que,embora apreciadora da pungência de suas próprias piadas, jamais exibeseu calcanhar de aquiles e se recusa absolutamente a ser ela própriaobjeto de zombaria. Eu de fato não conseguia encontrar senão um únicoponto vulnerável, e este, residindo numa peculiaridade pessoal, oriunda,talvez, de uma enfermidade constitucional, teria sido poupada porqualquer antagonista menos falto de recursos como era o meu caso; —meu rival possuía uma debilidade no aparelho faucal ou gutural que oimpediacompletamentedeergueravozacimadeumsussurrobaixo.Dessedefeito eu não deixava de tirar toda mísera vantagem que estivesse emmeualcance.As retaliações de Wilson na mesma moeda eram muitas; e havia um

procedimentodeseuhumor ferinoquemetranstornavaalémdamedida.Como a inal de contas teve a sagacidade de descobrir que uma coisa tãoinsigni icante era capaz de me atormentar, eis uma questão que jamaispude resolver; mas, tendo-a descoberto, praticava habitualmente aimportunação. Eu sempre sentira aversão ao meu pouco re inadopatronímico, bem como ao seu comuníssimo, se não plebeu, prenome. Asduaspalavraseramvenenoparameusouvidos;equando,nodiademinhachegada,umsegundoWilliamWilsontambémseapresentounointernato,iquei furioso com ele por possuir esse nome, e duplamente desgostosocomonomeporqueumestranhoocarregava,alguémqueseriacausade

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sua repetição duplicada, alguém que estaria constantemente em minhapresença, e cujos interesses, na rotina ordinária dos assuntos escolares,deviam inevitavelmente, por conta da detestável coincidência, sermuitasvezesconfundidoscomosmeus.Osentimentodeirritaçãoassimengendradofoificandomaisforteacada

circunstância que tendia a mostrar a semelhança, moral ou ísica, entremim emeu rival. Nessa época eu ainda não descobrira o fato notável dequetínhamosamesmaidade;maspercebiaqueéramosdamesmaaltura,e me dava conta de que éramos até singularmente parecidos na igurageral de nossas pessoas e no contorno de nossas feições. Exasperava-metambémorumornotocanteanossoparentesco,equesetornaracadavezmais corrente nas classes mais velhas. Numa palavra, nada podia meperturbarmaisseriamente(emboraeuocultasseessaperturbaçãocomomaior escrúpulo) do que qualquer alusão a uma semelhança de espírito,igura ou condição existindo entre nós. Mas, na realidade, eu não tinhamotivo para acreditar que (com exceção da questão do parentesco, e nocasodopróprioWilson)essasimilaridade tivesse jamaisconstituído temade comentário, nem sequer sido notada pelos nossos colegas. Queele anotasse em todos os seus aspectos, e tão ixamente quanto eu, era óbvio;mas que ele fosse capaz de descobrir em tais circunstâncias um veio tãorico de aborrecimentos é algo que só posso atribuir, como já disse, à suaargúciaacimadonormal.Sua deixa, que era aperfeiçoar uma imitação de mim mesmo, residia

tanto em suas palavras como em suas ações; e, nesse papel, seudesempenhoeradosmais admiráveis.Minhas roupas eramcoisa fácil deser copiada; de meu andar e modos gerais ele, sem di iculdade, seapropriava; a despeito de seu defeito de constituição, nem sequerminhavozlheescapava.Meustonsmaiselevados,éclaro, icavamportentar,masotimbreeraidêntico; eassimseusussurrosingulartornou-seopuroecodomeu.Em que medida esse retrato sobremodo elaborado me importunava

(poisnãoselhefariajustiçadenominá-lodecaricatura),nãomearriscareia descrever. Eu não tinha senão um consolo— o fato de que a imitação,aparentemente, era notada apenas por mim e mais ninguém, e que euprecisava aturar os sorrisos conspiratórios e estranhamente sarcásticostão somente de meu homônimo. Satisfeito de haver produzido em meuíntimo o efeito pretendido, ele parecia rir-se em segredo da ferroadain ligida,esemostravatipicamentedesdenhosodoslouvorespúblicosque

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o triunfodeseusespirituososesforços teria tão facilmente logrado.Queaescola,de fato,nãoenxergasseseu intento,percebessesuaconsumaçãoeparticipassedeseuescárniofoi,pormuitosangustiadosmeses,umenigmaquenãopuderesolver.Talveza gradatividadedesuacópiaatornassenãotão prontamente perceptível; ou, mais possivelmente, minha segurançaestivesse em débito com o proceder pro iciente do copista, que,desdenhando ater-se à letra (coisa que numa pintura é tudo que osobtusos conseguem ver), não oferecia o pleno espírito de seu originalsenãoàminhacontemplaçãoemortificaçãoindividual.Jáfaleimaisdeumavezdosrepulsivosaresprotetoresqueassumiaem

relação a mim, e da interferência frequente e obsequiosa com minhavontade.Essainterferênciamuitasvezesganhavaocaráterindesejáveldeumconselho;conselhonãoabertamentedado,massugeridoouinsinuado.Eu recebia isso com uma aversão que icava mais forte a cada ano quepassava. E contudo, neste dia distante, queme seja permitido lhe fazer apura justiça de admitir que não consigo me recordar de uma ocasiãosequeremqueassugestõesdemeurivaltenderampeloladodesseserrosou tolices tão comuns a sua idade imatura e aparente inexperiência; queseusensomoral,nomínimo,quandonãoseus talentosgeraisesabedoriamundana, eramde longemuitomais penetrantes que osmeus; e que eupoderia,hoje, termeconstituídonumhomemmelhore,dessemodo,maisfeliz,houvessecommenosfrequênciarejeitadoosconselhosmanifestadosnaquelessussurrossigni icativosquenaépocacomtantaveemênciaodieiecomtantaamarguradesprezei.Domodo como foi, acabei por memostrar impaciente ao extremo sob

sua tutela desagradável e a me ressentir cada vezmais abertamente doqueconsideravasuaarrogânciaintolerável.Afirmeianteriormentequenosprimeirosanosdenossaligaçãocomocolegasdeescolameussentimentosem relação a elepoderiam facilmente ter amadurecido emamizade;mas,nos últimos meses em que residi na instituição, embora seus habituaismodos intrusivos houvessem, sem a menor sombra de dúvida, em certamedida arrefecido, meus sentimentos, em proporção quase similar,inclinaram-se em grande parte pelo positivo ódio. Em certa ocasião ele onotou,creio,edepoisdissopassouameevitar,oudeumostrasdefazê-lo.Foimaisoumenosnessemesmoperíodo, semerecordocorretamente,

que, nodecorrerdeumadiscussãoviolenta emque elemuito contra seufeitio baixou a guarda, e falou e agiu com uma franqueza de condutaestranhaasuanatureza,percebi,ouimagineiperceber,emsuapronúncia,

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seusmodosesuaaparênciageral,algoquedeiníciomealarmouedepoismedeixouvivamente interessado, ao trazer-meàmente visões turvasdeminhamaistenrainfância—lembrançascaóticas,confusaseprecipitadasde um tempo em que a própria memória ainda estava por nascer. Nãoposso descrever melhor a sensação que me oprimiu do que a irmandocomoeradi ícilafastardemeuespíritoacrençadequejáhaviaconhecidoaquela pessoa que estava diante de mim em alguma época muitíssimoremota—algumponto dopassado, ainda que in initamente longínquo.Ailusão, entretanto, desvaneceu tão rapidamente quanto surgiu; e não amencionoaquisenãoparamarcarodiadaúltimaconversaquealimantivecommeusingularhomônimo.A casa antiga e imensa, com suas incontáveis subdivisões, possuía

diversos aposentos amplos que se comunicavam entre si, onde dormia amaiorpartedosalunos.Havia,entretanto (comodeveser forçosoocorreremumedifíciotãocomplicadamenteprojetado),muitosdesvãoserecessos,os recortes supér luos da estrutura; e esses recantos a engenhosidadeeconômica do dr. Bransby transformara emmais dormitórios; ainda que,por serem meros cubículos, fossem capazes de acomodar apenas umindivíduo.UmdessespequenosalojamentoseraocupadoporWilson.Certanoite,ao inaldemeuquintoanonaescola,e imediatamenteapós

adiscussãoquemencionei,vendotodosdormindoasonosolto,levantei-meda cama e, luminária namão, dirigi-me furtivamente por um labirinto depassagens estreitas de meu próprio quarto ao do meu rival. Eu vinhaplanejandohaviamuitotempoumadessasdetestáveispeçasdemaugostoàssuascustasemqueatéentãoconheceraumfracassotãoinvariável.Eraminha intenção, agora, pôrmeu plano em operação, eme determinara afazê-lo sentir toda a extensão da malevolência de que estava imbuído.Tendo chegado a seu cubículo, entrei sem o menor ruído, deixando aluminária,comumquebra-luz,doladodefora.Avanceiumpassoeescuteiosomdesuarespiraçãotranquila.Convictodequedormia,voltei,apanheia luze tornei ameaproximarda cama.Cortinas fechadasa cercavam,asquais, dando prosseguimento a meu intento, silenciosamente puxei,quandoosraiosbrilhantescaíramvivamentesobreoadormecidoemeusolhos, nesse mesmo momento, sobre seu semblante. Olhei; — e umentorpecimento,umagelidezdesensações instantaneamente invadiumeucorpo.Meupeito arfou,meus joelhosvacilaram, todoomeuespírito icoupossuídodeumhorrorinapreensível,econtudointolerável.Ofegandosemar, baixei a luminária numaproximidade aindamaiorde seu rosto. Eram

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aquelas—aquelasasfeiçõesdeWilliamWilson?Euvia,defato,queeramassuas,mastremicomoquenumacessofebrilimaginandoquenãoeram.O quehavia acerca delas que me confundia dessa maneira? Olheiixamente; — enquanto minha cabeça girava com uma miríade depensamentosincoerentes.Nãoeraassimqueelemeparecia—certamentenãoassim — na vivacidade de suas horas despertas. O mesmo nome! omesmo contorno de igura! omesmo dia de chegada na escola! E depoissua imitação obstinada e sem sentido de meu andar, minha voz, meushábitos, minhas maneiras! Seria de fato verdade, dentro dos limites dapossibilidade humana, queo que eu agora via fosse o resultado,meramente, da prática habitual de sua imitação sarcástica? Tomado deterror, e tremendo convulsivamente, apaguei a luminária, saísilenciosamentedaalcovaedeixei,incontinente,asdependênciasdoantigoateneuparanuncamaisvoltar.Após o lapso de alguns meses, passados em casa na pura ociosidade,

achei-me estudando em Eton. O breve intervalo fora su iciente paraenfraquecer minha memória dos acontecimentos no colégio do dr.Bransby,ouaomenosparaoperarumamudançapalpávelnanaturezadossentimentoscomosquaiseuas recordava.Averacidade—a tragédia—dodramahaviam sumido. Eupodia agora encontrar ensejo para duvidardaevidênciademeussentidos;e raramentechegavamesmoapensarnoassunto, a não ser com um quê de admiração ante a amplitude dacredulidadehumana, eumsorrisoparaavívida forçade imaginaçãoqueme fora hereditariamente legada. E tampouco era provável que essaespécie de ceticismo diminuísse como caráter da vida que eu levava emEton. O vórtice de excessos irre letidos em que ali tão imediata etemerariamente mergulhei tudo tragava a não ser a ebulição trivial deminhas horas anteriores, engolfando de uma só vez qualquer impressãosólida ou séria e não deixando lembrança senão das mais absolutasleviandadesdeumaexistênciaprecedente.Não desejo, entretanto, traçar aqui o curso de minha licenciosidade

desprezível— licenciosidade que desa iava as leis aomesmo tempo queiludia a vigilância da instituição. Três anos de excessos, passados semproveito,nãofizeramsenãoarraigaroshábitosdovício,eampliar,emgrauatécertopontoincomum,meucalibrecorporal,quando,apósumasemanademaquinal dissipação, convidei um reduzido grupo dosmais dissolutosalunosparaumabebedeirasigilosaemmeusaposentos.Encontramo-nosauma hora avançada da noite; pois nossa pândega deveria se prolongar

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religiosamente até a manhã. O vinho correu livremente, e não haviacarência de outras e talvez mais perigosas seduções; de modo que aaurora cinzenta já despontava debilmente a leste quando nossaextravagância delirante encontrava-se em seu auge. Descontroladamenteexaltado com as cartas e a embriaguez, eu estava prestes a insistir numbrindedeprofanidademaisdoquecostumeiraquandominhaatenção foidesviada pela porta do quarto sendo aberta com brusquidão, emboraapenas parcialmente, e pela voz ansiosa de um criado do lado de fora.Informava-me que uma pessoa, aparentemente com grande urgência,pediaparafalarcomigonaentradadacasa.Febrilmente animado pelo vinho, a inesperada interrupção antes me

alegroudoque surpreendeu.Avancei cambaleantenamesmahoraeunspoucospassosmeconduziramaovestíbulo.Nocômodobaixoeexíguonãohavia iluminação; e nessemomento luz alguma penetrava, salvo os raiosextremamente tênues da aurora iltrando pela janela semicircular. Assimque pisei na soleira, dei pela presença de um jovem mais ou menos daminha própria altura, trajado com uma sobrecasaca de casimira branca,talhada na última moda, a exemplo da que eu mesmo vestia naquelemomento. Issoa luzdébilpossibilitou-meperceber;masas feiçõesdeseurosto não pude distinguir. Quando entrei, avançou rapidamente a largaspassadasatémime,segurando-mepelobraçoemumgestodeimpaciênciainsolente,sussurrouaspalavras“WilliamWilson!”emmeuouvido.Fiqueiperfeitamentesóbrionuminstante.Haviaqualquer coisanosmodosdoestranho, eno tremorhesitantede

seudedo, conformeoerguiaentremeusolhosea luz,quemeencheudeum espanto absoluto; mas não fora isso que tão violentamente meemocionara. Foi a pregnância de solene admoestação em sua elocuçãosingular, baixa, sibilante; e, acima de tudo, o caráter, o tom, o timbredaquelas poucas sílabas simples e familiares, ainda quesussurradas, quevieram com uma miríade de lembranças precipitadas de tempos idos, equeatingiramminhaalmacomochoquedeumapilhagalvânica.Antesquepudesserecobrarousodemeussentidoselehaviapartido.Embora o episódio não deixasse de causar um vívido efeito emminha

imaginação desorientada, foi contudo tão evanescente quanto vívido. Poralgumas semanas, de fato, ocupei-me de zelosa indagação, ou permanecienvolto numa nuvem de mórbida especulação. Não pretendia ocultar deminha percepção a identidade do singular indivíduo que tãoperseverantementeinterferiacommeusassuntoseimportunava-mecoma

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insinuação de seus aconselhamentos. Mas quem e o que era aqueleWilson?—edeondevinha?—equaiseramseuspropósitos?Acercadenenhuma dessas questões pude me satisfazer; meramente constatei, emrelaçãoaele,queumsúbitoacidenteemsuafamílialevaraasuasaídadainstituiçãododr.Bransbyna tardedodia emqueeupróprio fugira.Masem curto período deixei de pensar no assunto; minha atenção icandointeiramente absorvida nos preparativos com uma transferência paraOxford. Para lá fui em pouco tempo; a impensada vaidade demeus paisprovendo-me dos meios materiais e da permanência anual que mepermitiriamabandonar-meaomeubel-prazerao luxo já tão caroaomeucoração — rivalizar em prodigalidade de gastos com os mais altivosherdeirosdoscondadosmaisabastadosnaGrã-Bretanha.Estimulado por tal instrumentação para o vício, o temperamento de

minhaconstituiçãoa loroucomardorredobrado,erepudieiatémesmoosrefreamentos comuns da decência na tresloucada paixão de minhasesbórnias. Mas seria absurdo deter-me em detalhar minhasextravagâncias. Bastará dizer que, em esbanjamentos, superei emherodianismoopróprioHerodes, eque, dandonomeauma in initudedeinovadoresdesvarios,aditeiumapêndicenadabreveaolongocatálogodevíciosentãoemusonauniversidademaisdissolutadaEuropa.Di icilmentesepoderiacrer,entretanto,quemesmonessemomentoeu

descera tão abaixo deminha distinta condição a ponto de aspirar a umafamiliaridade com as vis artes do jogador por pro issão e, tendo metornado adepto dessa desprezível ciência, de praticá-la habitualmentecomoummeiodeaumentarmeusjáenormesproventosàscustasdosmaispobresdeespíritodentremeuscolegas.Tal,nãoobstante,foioocorrido.Ea pura enormidade dessa ofensa contra todo e qualquer sentimento dehombridadeehonraseprovou,semsombradedúvida,aprincipal,senãoa única razão da impunidade com a qual foi cometido. Com efeito, quemdentremeusmaisdissolutoscompanheirosnãohaveriapreferidoantesterduvidadodaclaraevidênciadeseussentidosasuspeitardetaiscondutas,o alegre, o franco, o generoso WilliamWilson— o mais nobre e liberalestudantedeOxford—aquelecujasloucuras(diziamseusparasitas)nadamaiseramqueas loucurasda juventudeeda imaginaçãodesenfreada—cujoserrosnadaalémdeinimitávelcapricho—cujovíciotenebrosonadaalémdeextravagâncianegligenteechique?Ocupava-me dessa vida com sucesso havia dois anos quando chegou à

universidadeum jovemnobreparvenu, Glendinning— tão rico,diziamos

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rumores, quanto Herodes Ático —, sua fortuna, também, facilmenteconquistada. Não tardou para que eu percebesse a fraqueza de seuintelecto e é claro que omarquei como um alvo apropriado paraminhashabilidades.Euoatraía frequentementeàmesade jogoepermitia,comausual perícia do jogador, que ganhasse somas consideráveis, de modo aenredá-locommaise icácianaarmadilha.Finalmente,meuplanoestandoamadurecido, reunimo-nos (sendo minha plena intenção de que esseencontro fosse inal edecisivo)noaposentodeumcolega (o sr.Preston),igualmente íntimo de ambos, mas que, justiça lhe seja feita, não tinha amaisremotadescon iançademeu intento.Paracontribuircomodisfarce,euprovidenciaraapresençadeumgrupocomcercadeoitooudezoutrosalunos e fui solicitamente cuidadoso para que o surgimento das cartasparecesse acidental e originado na proposta daquele próprio a quemvisava ludibriar. Para ser breve acerca de um tópico vil, nada dadegradadaarte foiomitido,algotãocostumeiroemocasiõessimilaresquesó pode constituir motivo de admiração ainda haver aqueles tãoaparvalhadosapontodedelacaíremvítimas.Havíamos prosseguido nisso até altas horas da noite quando en im

consegui efetuar a manobra de fazer de Glendinning meu únicoadversário.O jogo, também,erameuécarté favorito.Osdemaispresentes,interessados na magnitude de nossa jogatina, haviam abandonado seuspróprioscarteados,eajeitaram-seemtornocomoespectadores.O parvenu,que fora induzido por meio de meus ardis na primeira parte da noite abeberpesadamente,agoraembaralhava,davaascartasoujogavadeumamaneiranervosaeprecipitadaquesuaembriaguez,assimpensei,poderiaexplicar em parte,mas não inteiramente. Em um períodomuito curto detempo tornara-semeu devedor por vultosa soma, quando, após virar umlongo trago de porto, fez precisamente o que eu viera friamenteantecipando—propôsdobrarnossas já extravagantesapostas.Comumabemfingidaafetaçãoderelutância,esomentedepoisqueminhasrepetidasrecusas persuadiram-no a proferir algumas palavras furiosas queemprestaram uma aparência de pique6 a minha aquiescência, inalmentecedi. O resultado, claro, apenas provou quão irremediavelmente a presacaíra em minha armadilha; em menos de uma hora ele haviaquadruplicadosuadívida. Jáhaviaalgumtempoqueseusemblantevinhaperdendo o ruborizado matiz advindo do vinho; mas agora, para meuassombro,percebiqueatingiraumapalidezverdadeiramenteassustadora.Digoparameuassombro.Minhasansiosassondagenshaviam-melevadoa

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crer queGlendinning era incomensuravelmente rico; e osmontantes queatéentãoperdera,emboraemsivastos,nãopoderiam,assimsupunhaeu,perturbá-lo muito seriamente, menos ainda deixá-lo tão violentamenteagitadodaquelemodo.Queestivessesubjugadopelaquantidadedevinhoqueacabarade tomar foia ideiaquemaisprontamentemeveio; e, antescom vistas à preservação de meu próprio caráter aos olhos de meuscolegas do que por qualquer outromotivomenos interesseiro, eu estavaprestes a insistir, peremptoriamente, na interrupção do jogo, quandoalgumas coisas ditas à minha volta entre o grupo e uma exclamaçãoevidenciando completo desespero da parte de Glendinning levaram-me acompreender que eu efetuara sua total ruína sob circunstâncias que,tornando-o objeto da piedade geral, deveriam tê-lo protegido dos o íciosmaléficosatédeumdemônio.No que agora devia ter constituído minha conduta é di ícil dizer. A

condição lastimável de minha vítima izera descer uma atmosfera desombrio constrangimento sobre todos os presentes; e, por algunsmomentos, um profundo silêncio semanteve, durante os quais não pudedeixarde sentirmeu rostoqueimando comos inúmerosolhares intensosdedesprezoou reprovação lançados sobremimpelosmenosdepravadosdo grupo. Admitirei ainda que um intolerável peso de angústia foi porbreve instante tirado de meu peito pela súbita e extraordináriainterrupçãoqueseseguiu.Asamplasepesadasportasduplasdoaposentoforam subitamente abertas, por completo, com uma impetuosidadevigorosa e violenta que apagou, comoque por encanto, todas as velas doquarto. A luz, nomomento em que elas se extinguiam, possibilitaram-meperceberapenasqueumestranhohaviaentrado,maisoumenosdaminhaprópria altura, e cuidadosamente encapotado emummanto.A escuridão,entretanto,agoraera total; epodíamosapenas sentir suapresençaali emnossomeio. Antes que qualquer um de nós conseguisse se recuperar daextrema perplexidade em que aquela grosseria nos lançara a todos,escutamosavozdointruso.“Senhores”,disse,numbaixo,distintoeinesquecível sussurroquemefez

tremeratéamedula,“abstenho-medepedirquaisquerdesculpaspormeucomportamento, pois, desse modo me comportando, não estou senãocumprindoumdever.Os senhores encontram-se, sem sombradedúvida,desinformadossobreoverdadeirocaráterdapessoaqueganhounoécartéestanoiteumaenormesomadedinheirodeLordGlendinning.Voudessemodo lhes propor um método diligente e conclusivo de obter essa

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informaçãoabsolutamente indispensável.Por favorexaminem,comvagar,oforrointernodopunhodesuamangaesquerda,eosdiversospequenospacotes que podem ser encontrados nos bolsos razoavelmente espaçososdeseuroupãobordado.”Enquantofalava,tãoprofundofoiosilêncioquesepoderiaterescutado

aquedadeumalfinetenosoalho.Aoterminar,partiunamesmahora,etãoabruptamente quanto entrara. Poderei — conseguirei descrever minhassensações? — deverei dizer que senti todos os horrores da danação?Asseguro que tive pouco tempopara re letir. Inúmerasmãos agarraram-me brutalmente ali mesmo e as luzes tornaram imediatamente a seracesas. Fui revistado.No forro deminhamanga encontraram-se todas ascartas essenciais doécarté e, nos bolsos de meu roupão, uma série debaralhos,idênticosaosusadosemnossasnoitadas,comaúnicaexceçãodequeosmeuseramdessaespécie tecnicamentechamadadearrondies7; ashonrassendoligeiramenteconvexasnoaltoeembaixo,ascartasmenores,ligeiramente convexas nas laterais. Com esse arranjo, a vítima que corta,como de costume, no sentido longitudinal do baralho, invariavelmentedescobrirá quedáumahonra ao seu adversário; ao passoque o jogadortrapaceiro, cortandona largura, comomesmograudecertezanadadaráaoseuoponentequepossacontarparaotriunfonojogo.Qualquer explosão de indignação com a descoberta teria me afetado

menosdoqueodesprezo silencioso ou a sarcástica compostura comqueelafoirecebida.“SenhorWilson”,dissenossoanfitrião,curvando-separaremoverdesob

seus pés ummanto sumamente luxuoso de peles raras, “senhorWilson,istoéde suapropriedade.” (Fazia frio; eaodeixarmeuquarto, eu jogaraummantopor cimademeurobedechambre , tirando-oaochegarao localda jogatina.) “Presumoqueserásupér luoprocuraraqui (relanceandoasdobrasdotrajecomumsorrisoamargo)porqualquerevidênciaadicionalde sua destreza. Com efeito, já tivemos o su iciente. O senhorcompreenderá a necessidade, espero, de deixarOxford—de todomodo,dedeixarmeusaposentosimediatamente.”Humilhado, rebaixado à desonra como então iquei, é provável que

tivesse reagido a essas palavras exasperantes com violência pessoalimediata,não fosseminhaatençãonaquelemomentoseratraídaparaumfatodanaturezamaissurpreendente.Omantoqueeuagoravestiaeradeuma rara qualidade de pele; quão rara, e quão extravagantemente cara,não ousarei dizer. Seu feitio, também, era de minha própria invenção

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fantasiosa; pois eu era fastidioso a um grau absurdo de afetação emmatérias dessa natureza frívola. Quando, desse modo, o sr. Prestonestendeu-meoquehaviarecolhidodochão,eaomeaproximardasportasduplas do aposento, foi comumassombro beirando o terror que percebimeu própriomanto já dobrado emmeu braço (onde eu semdúvida semmedarcontaohaviapendurado)equeaquelequemeforaoferecidonãoera senão sua exata contrapartida em todas e mais minuciosasparticularidades possíveis. A singular criatura que tão funestamente medesmascararahaviapermanecidoencapotada,lembro-me,emummanto;enenhum outro membro de nosso grupo usava um, com exceção de mimmesmo. Conservando alguma presença de espírito, aceitei o queme foraentregue por Preston; coloquei-o, despercebido, sobre o meu; deixei oapartamento com uma expressão determinada de desa io; e, na manhãseguinte, antes do alvorecer do dia, iniciei uma apressada viagem deOxfordparaocontinente,numaperfeitaagoniadehorrorevergonha.Fugiemvão.Meudestinomalignoperseguiu-mecomoqueemexultação

eprovou,de fato,queoexercíciode seumisteriosodomínioaindaestavaapenas por começar. Mal pus os pés em Paris, obtive nova evidência dodetestávelinteresseassumidoporesseWilsonemmeusassuntos.Anossepassaram sem que eu conhecesse alívio. Patife! — em Roma, quãoinoportunamente, e contudo, com que diligênciamais fantasmagórica, elese interpôsentremimeminhaambição!EmViena,também—emBerlim—eemMoscou!Onde,naverdade,não tinhaeuumarazãoamargaparaamaldiçoá-lodo fundodo coração?De sua inescrutável tirania en im fugi,tomadodepânico,comoquedapeste;eparaospróprioscon insdaterraeufugiemvão.E novamente, e novamente, em secreta comunhão com meu próprio

espírito,faziaeuasperguntas“Queméele?—deondeveio—equaissãoseus objetivos?”. Porém nenhuma resposta era encontrada. E agora euexaminava, com escrutínio minucioso, as formas, os métodos, ascaracterísticas principais de sua vigilância impertinente. Mas mesmo aíhavia muito pouco sobre o que basear uma conjectura. Era com efeitonotável que em nenhuma das múltiplas ocasiões em que recentementecruzarameucaminhoelenãootivessefeitosenãoparafrustrarplanosouestorvar ações que, se levados a um termo, poderiam ter resultado emamargainjúria.Quepobrejusti icativa,narealidade,paraumaautoridadetão arrogantemente presumida! Que pobre reparação para direitosnaturaisdeautogovernotãotenazmente,tãoinsultuosamentenegados!

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Fora-me também forçoso notar que meu algoz, por um período muitolongo (ao mesmo tempo que escrupulosamente, e com destrezasobrenatural,prosseguiaemseucaprichodetrajar-sedeformaidênticaàminha),agiradetalmaneira,naexecuçãodesuavariadainterferênciacomminhavontade,queeujamaisvisse,emmomentoalgum,asfeiçõesdeseurosto. Fosse quem fosse Wilson, isso, ao menos, era a mais extrema dasafetações,oudastolices.Seriapossívelelesupor,poruminstante,queemmeuadmoestadordeEton—nodestruidordeminhahonraemOxford—naquelequefrustraraminhaambiçãoemRoma,minhavingançaemParis,meu amor apaixonado emNápoles, ou no que ele falsamente chamou deminhaavarezanoEgito—quenele,meuarqui-inimigoegêniodomal,eupudessedeixardereconheceroWilliamWilsondemeusdiasescolares—o homônimo, o companheiro, o rival — o odiado e temido rival nainstituição do dr. Bransby? Impossível! — Mas que me seja permitidopassarrapidamenteàderradeiracenamemoráveldodrama.Até esse momento eu sucumbira letargicamente a seu arrogante

domínio. O sentimento de profunda reverência com que habitualmenteencaravaocaráterelevado,asabedoriamajestosa,aaparenteonipresençaeonipotênciadeWilson,combinadoaumoutrodesemelhanteterrorquedeterminados outros traços em sua natureza e pressuposições meinspiravam,haviaatéaliagidodemodoa imprimiremmimuma ideiademinhaprópriafraquezaedesamparoeasugerirumasubmissãoimplícita,aindaque amargamente relutante, à arbitrariedadede sua vontade.Mas,por essa época, eume entregara completamente ao vinho; e a in luênciaexasperante da bebida sobre meu temperamento hereditário tornou-mecadavezmaisintoleranteaocontrole.Comeceiaresmungar—ahesitar—aresistir.Eseriaapenasafantasiaquemeinduziaaacreditarque,comoaumento de minha irmeza, a de meu algoz conheceu diminuiçãoproporcional? Fosse como fosse, comecei assim a sentir a inspiração deuma esperança ardente, e acabei por nutrir secretamente em meuspensamentos uma austera e desesperada resolução de não mais mesubmeteràquelejugo.Foi em Roma, durante o Carnaval de 18—, que compareci a uma

mascarada no palacete do duque napolitanoDi Broglio. Eume entregaramais livremente do que o habitual aos excessos do vinho; e agora aatmosfera sufocante dos ambientes abarrotados irritava-me além dosuportável. Também a di iculdade de abrir caminho entre a confusão degente contribuía em larga medida para a perturbação de meu

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temperamento; pois eu procurava ansiosamente (que me seja permitidonãorevelaroindignomotivo)ajovem,alegreelindaesposadovelhoetoloDi Broglio. Com con iança mais do que inescrupulosa ela me izeracomunicarpreviamenteosegredodostrajescomqueestariafantasiada,eagora,apósavistarsuapessoa,eutentavaapressadamenteabrircaminhoaté sua presença. — Nesse momento senti o toque leve de uma mãopousando em meu ombro, e aquele inesquecível, grave e execrávelsussurroemmeuouvido.Numabsoluto frenesi de ira, virei-menamesmahorapara aquele que

desse modo me interrompera e agarrei-o violentamente pelo colarinho.Estavavestido, comoeradeesperar, comuma fantasia em tudo similar àminha; trajava uma capa espanhola de veludo azul, cingida em torno dacinturaporumcintoescarlatesustentandoumarapieira.Umamáscaradesedenegracobriainteiramenteseurosto.“Canalha!”,exclamei,numavozroucadefúria,ecadasílabapronunciada

parecia renovar o ardor de minha cólera, “canalha! impostor! vilãoamaldiçoado! não irás —não irás me caçar até a morte! Segue-me, ouprovarásminha lâminaaquimesmo!”—eabricaminhodosalãodebaileaté uma pequena antecâmara anexa — arrastando-o irresistivelmentecomigoconformeofazia.Ao entrar, empurrei-o furiosamentepara longedemim. Ele cambaleou

contraaparede, enquantoeu fechavaaporta comuma imprecaçãoe lheordenava que desembainhasse sua arma. Ele hesitou por um instante;depois, com um ligeiro suspiro, puxou a espada em silêncio e se pôs emguarda.O duelo foi breve deveras. Eu estava desvairado com todo tipo de

agitaçãoselvagemesentiemumúnicobraçoaenergiaeopoderdeumamultidão.Empoucossegundosempurrei-oàpuraforçacontraoslambrisedesse modo, tendo-o à minha mercê, cravei a espada com brutalferocidade,repetidamente,portodooseupeito.Nesse instante alguém tentou abrir a porta. Apressei-me a impedir

qualquer intromissão e depois imediatamente voltei ao meu antagonistamoribundo. Mas que linguagem humana pode retratar adequadamenteaquele espanto,aquele horror que se apossaram de mim diante doespetáculoqueentãoseapresentouaosmeusolhos?Obrevemomentoemquedesvieiaatençãohaviasidosu icienteparaproduzir,aparentemente,umamudançapalpávelnocantosuperioroumaisdistantedoquarto.Umgrande espelho — assim de início me pareceu, em minha confusão —

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agoraseviaondeantesnadadissoeraperceptível;e,quandocaminheiemsua direção tomado por extremos de terror,minha própria imagem,mascom as feições pálidas e salpicadas de sangue, avançou para ir ao meuencontrocomumandardébilevacilante.

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Assimmeparecia,a irmei,masnão.Erameuantagonista—eraWilson,que então se punha de pé diante demim, sofrendo as agonias damorte.

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Suamáscara e a capa jaziam onde ele as jogara, sobre o piso. Não haviasequer um io em todo o seu traje — sequer uma linha em todos osmarcadosesingularescontornosdeseurostoquenão fossem,mesmonamaisabsolutaidentidade,osmeuspróprios!Era Wilson; porém não mais falava num sussurro, e eu poderia ter

imaginadoqueeraeumesmoquemfalavaquandodisse:“Venceste,emerendo.Econtudo,daquipordiantetambémestásmorto—

mortoparaoMundo,paraoCéueparaaEsperança!Emmimexistias—e,em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria, quãoabsolutamenteassassinasteatimesmo.”

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OPOÇOEOPÊNDULO

Aquipormuitotempoosimpiedosostorturadoresnutriramoinsaciávelfurordaturbapelosanguedosinocentes.

Agoraqueapátriaestáasalvo,eoantrofúnebrefoidestruído,ondeanteshaviamortesurgemvidaebem-estar.

(QuadracompostaparaosportõesdeummercadoasererguidonolocalondeficavaoClubedosJacobinos,emParis.)

Eu estava esgotado—mortalmente esgotado por aquela longa agonia; equandoen immedesataram,efoi-medadaapermissãodesentar,percebiqueossentidosmefaltavam.Asentença—apavorosasentençademorte— foi a última de distinta articulação a chegar aosmeus ouvidos. Depoisdisso, o som das vozes inquisitoriais pareceu fundir-se em um únicomurmúriovagoeonírico.Eletransmitiaàalmaaideiaderotação—talvezpor associar-se emminha imaginação ao rumor de uma roda demoinho.Isso por um curto período, apenas; pois em breve nada mais ouvi. Econtudo,porum tempo,euvi;mascomque terrívelexagero!Vios lábiosdosjuízesemseusmantosnegros.Pareceram-mebrancos—maisbrancosque a folha em que traço estas palavras— e inos ao ponto mesmo dogrotesco; inoscomaintensidadedesuasexpressõesdeintransigência—deinamovíveldeterminação—deausterodesprezopelosuplíciohumano.ViqueosdecretosdoqueparamimeraoDestinoaindasaíamporaqueleslábios. Vi que se contorciam em mortal elocução. Vi que formavam assílabas domeu nome; e estremeci, pois som nenhum adveio. Vi também,por algunsmomentosdehorrordelirante, a suave e quase imperceptívelondulaçãodosreposteiroscordesablequerevestiamasparedesdasala.E entãomeu olhar recaiu sobre as sete velas altas em cima damesa. Noinício, exibiam o aspecto da caridade, e pareciam esguios anjos brancosquemesalvariam;masentão,derepente,anáuseamaismortífera tomouconta de meu espírito, e senti cada ibra do corpo vibrar como se euhouvesse tocado o io de uma pilha galvânica, enquanto as formasangelicais tornavam-se espectros sem sentido, com cabeças de fogo, e vique dali nenhum conforto adviria. E então insinuou-se em minhaimaginação, comoumaricanotamusical, opensamentododocedescansoque devia ser o túmulo. O pensamento se insinuou vagaroso e furtivo, epareceu transcorrer longo tempo antes que atingisse a plena apreciação;

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mas no exatomomento em quemeu espírito en im o sentiu e o acolheupropriamente, as iguras dos juízes desvaneceram, comoquepormágica,diantedemeusolhos;aslongasvelasmergulharamnovazio;suaschamasse extinguiram por completo; o negror das trevas sobreveio; todas assensações pareceram tragadas num assalto violento e furioso como o daalmapeloHades.Entãoouniversosetornousilêncio,imobilidadeenoite.

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Desmaiara;masmesmoassimnãodireiqueperdidetodoaconsciência.O que dela restava não tentarei de inir, nem sequer descrever; contudo,

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nem tudo estava perdido. No sono mais profundo— não! No delírio —não!Emumdesmaio—não!Namorte—não!atémesmonotúmulo,nemtudoestáperdido.Despertandodomaisprofundodossonos,rompemosateia diáfana dealgum sonho. E contudo, um segundo depois (por maisfrágilquepudesseserateia),nãolembramosdetersonhado.Noregressoàvidaapósodesfalecimentohádoisestágios;primeiro,odasensaçãodeexistênciamentalouespiritual;segundo,odasensaçãodeexistência ísica.Parece provável que, ao atingir esse segundo estágio, se pudéssemosrecordar as impressões do primeiro, deveríamos julgar essas impressõeseloquentes em lembrançasdoabismoque jaz além.E esse abismoé—oquê? Como de algummodo distinguir suas sombras daquelas que há natumba?Mas e se as impressõesdoquedenominei comoprimeiro estágionãosão,voluntariamente,recordadas,acaso,apósumlongointervalo,elasnão voltammesmo sem ser convidadas, enquanto imaginamos admiradosdeondepodem ter surgido?Aqueleque jamaisdesfaleceu,nãoéelequeencontra palácios estranhos e rostos perturbadoramente familiares nasbrasasincandescentes;nãoéelequecontempla, lutuandoemplenoar,astristes visões que àmaioria são vedadas; não é ele que pondera sobre operfume de alguma lor incomum— não é ele cujo cérebro ica mais emais atônito com o signi icado de alguma cadência musical que nuncaantesprendeusuaatenção.Emmeio aos frequentes e diligentes esforçospor lembrar; emmeio às

obstinadaslutaspararecuperaralgumarecordaçãodoestadodeaparenteinexistência em que minha alma mergulhara, houve momentos em quesonheicomoêxito;houveperíodosbreves,muitobreves,emqueconjureilembranças que, segundo me assegura a razão lúcida de uma épocaposterior, poderiam referir-se apenas àquela condição de aparenteinconsciência.Essassombrasdememóriaevocam,vagamente, igurasaltasquemeergueramemecarregaramemsilêncio,descendo—descendo—descendomais—,atéqueumamedonhavertigemmeoprimiuanteameraideia da natureza interminável da descida. Evocam também um vagohorroremmeucoração,porcontadaanormaltranquilidadedessemesmocoração. Então segue-se uma sensação de súbita imobilidade de todas ascoisas; como se aqueles que me carregavam (um cortejo espectral!)houvessemultrapassado,emsuadescida,os limitesdoilimitado,eparadocom a exaustão do esforço hercúleo. Depois disso vêm-me à mentehorizontalidade e umidade; e então tudo éinsanidade— a insanidade deumalembrançaseinsinuaemmeioacoisasproibidas.

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Muito subitamente regressaram-me à alma movimento e som — otumultuoso movimento do coração e, aos meus ouvidos, o som de seubatimento.Entãoumapausaemquetudoévácuo.Entãooutravezsom,emovimento, e tato — uma sensação de formigamento permeando meucorpo. Então a mera consciência da existência, sem pensamento —condiçãoquedurou longamente.Então,muito subitamente,pensamento, etrêmulo terror, e obstinado esforço de compreender meu verdadeiroestado.Entãoumfortedesejodemergulharnainsensibilidade.Entãoumaviolentareanimaçãodaalmaeumvitoriosoesforçodememover.Edepoisacompletalembrançadojulgamento,dosjuízes,dosnegrosreposteiros,dasentença, do esgotamento, do desfalecimento. Então o total esquecimentodetudoqueseseguiu;de tudoqueumdiaposterioregrandeobstinaçãodeesforçopossibilitaram-mevagamenterecordar.Até esse momento, eu não abrira os olhos. Senti que jazia de costas,

desatado. Estiquei a mão, e ela caiu pesadamente sobre alguma coisaúmida e dura. Deixei-me aí icar por vários minutos, enquanto meempenhavaemimaginarondeenoquepodiaestar.Ansiava,econtudonãoousava,empregaravisão.Aterrorizava-meoimpactoinicialdosobjetosemtornodemim.Nãoque eu temesse ver coisas horríveis,mas fui invadidopor um crescente pavor de não havernada para ver. Finalmente, comdescontrolado desespero no coração, abri rapidamente os olhos. Meuspiores pensamentos foram, então, con irmados. O negror da noite etername engolfava. Lutei para respirar. A intensidade das trevas parecia meoprimir e sufocar. A atmosfera era intoleravelmente opressiva. Continueideitado, imóvel, e esforcei-me por exercitar a razão. Evoquei em minhamenteoprocesso inquisitorial,e tenteiapartirdesseponto inferirminhareal condição. A sentença fora proferida; e a mim me pareceu que umintervalo muito longo de tempo transcorrera desde então. Contudo, nemsequerporummomentosupusqueestivessemortodefato.Talsuposição,nãoobstanteoque lemosna icção,é completamente inconsistentecomaexistência real; — mas onde e em que estado eu me encontrava? Oscondenadosàmorte,eusabia,eramnormalmenteexecutadosnosautosdefé,eumdessesforarealizadonaexatanoitedemeujulgamento.Estariaeusendo mantido sob custódia em meu calabouço, a im de aguardar osacri ícioseguinte,quenãoterialugarsenãodaliamuitosmeses?Percebinamesmahoraque talnãopodiaser.Asvítimashaviamsidoreclamadasdeimediato.Alémdomais,meucalabouço,assimcomoascelasdetodososcondenadosemToledo,tinhapisodepedra,ealuznãoeracompletamente

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excluída.Uma assustadora ideia agora de repente fez o sangue luir

incontrolavelmente emmeu coração e, por um breve período, mais umavez recaí na insensibilidade. Assim que me recuperei, iquei de pé namesma hora, tremendo convulsivamente em cada ibra. Agitei os braçosfreneticamenteacimaeemtornodemim,emtodasasdireções.Nadasenti;contudo, hesitava em dar um passo, com receio de ser bloqueado pelasparedes de umatumba. O suor brotava de cada poro, e formava grossasgotas em minha fronte. A agonia do suspense cresceu até se tornarintolerável e cuidadosamente me movi para a frente, com os braçosestendidos,emeusolhosesforçando-seemsuasórbitas,naesperançadecaptar algum débil raio de luz. Avancei vários passos; mas o negror e ovazio continuaram. Respireimais facilmente. Parecia evidente que omeunãoera,aomenos,omaishediondodosdestinos.Eentão, conformecontinuavaaandarcautelosamenteadiante, invadiu-

me a memória, num tropel, uma in inidade de vagos rumores sobre oshorroresdeToledo.Daquelescalabouçosestranhascoisassecontavam—fábulas, eu sempre as reputara —, porém por demais estranhas, e pordemaismacabras,paraseremrepetidas,salvonumsussurro.Teriasidoeudeixadoparamorrerdefomenessemundosubterrâneodetrevas;ouquedestino, talvez ainda mais assustador, me aguardava? Que o resultadoseria a morte, e morte de uma pungência mais do que costumeira, euconheciabemdemaiso caráterdemeus juízesparaduvidar.Omodoeomomentoeramtudoquemeocupavaoudistraía.Minhas mãos estendidas en im encontraram alguma obstrução sólida.

Era uma parede, em alvenaria de pedra, aparentemente — muito lisa,musgosaefria.Acompanheisuasuper ície;pisandocomtodaacuidadosadescon iançaquedeterminadosrelatosantigoshaviammeinspirado.Esseprocesso, entretanto, não me possibilitou meio algum de averiguar asdimensõesdemeucalabouço;umavezquepodiacompletarseucircuito,eregressar ao ponto onde começara, sem dar-me conta do fato; tãoperfeitamenteuniformepareciaaparede.Procureidessemodoafacaquehaviaemmeubolso,quandolevadoàcâmarainquisitorial;maselasefora;minhasroupashaviamsidotrocadasporumcamisolãodesarjagrosseira.Meu pensamento fora forçar a lâmina em alguma minúscula fenda daalvenaria,demodoa identi icaropontodepartida.Adi iculdade, todavia,era apenas trivial; muito embora, na desordem de minha imaginação,parecesseemprincípioinsuperável.Rasgueiumpedaçodabainhaemmeu

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robeedispusatiradecomprido,emânguloretocomaparede.Aotatearmeu caminho em torno da prisão, não teria como deixar de encontrar otrapoquando completasse o circuito. Assim, aomenos, raciocinei:mas eunão contara com a extensão do calabouço, ou com minha própriadebilidade.Ochãoeraúmidoeescorregadio.Cambaleeiparaafrenteporalgumtempo,atépisaremfalsoecair.Minhafadigaexcessivainduziu-meapermanecerprostrado;ealideitadoosonoembreveseapossoudemim.Ao despertar, e esticando um braço, encontrei ao meu lado um pão e

uma jarra com água. Estava exausto demais para re letir sobre essacircunstância, mas comi e bebi com avidez. Pouco depois, retomei meureconhecimento do circuito da prisão, e com grande labor, cheguei en imaopedaçodesarja.Atéomomentodeminhaqueda,eucontaracinquentaedois passos, e, após retomarminha caminhada, contaraquarenta e oitomais— quando cheguei ao pedaço de pano. Havia ao todo, dessemodo,cempassos;e,considerandocadadoispassoscomoummetro,inferiqueocalabouçotinhaumperímetrodecemmetros.Euhaviatopado,entretanto,commuitosângulosnaparede,eassimnãopodiaformarsuposiçãoalgumasobreo formatodacripta;poisumacriptaeraoqueeunãopodiadeixardesuporquefosse.Eu tinhapoucopropósito—certamentenenhumaesperança—nessas

investigações; mas uma vaga curiosidade impeliu-me a continuá-las.Deixandopororaaparede,decidicruzaraáreademeucárcere.Noinício,procedi com extrema cautela, pois o chão, embora aparentemente dematerial sólido, era traiçoeiro devido ao musgo. Finalmente, entretanto,tomeicoragem,enãohesiteiempisarcom irmeza—empenhando-meematravessarnuma linhaamais retapossível.Avançaradezoudozepassosdessa maneira quando o que restava da bainha rasgada em meu robeenroscou-seentreminhaspernas.Piseinelaecaíviolentamentedebruços.Na confusão, preocupando-me com minha queda, não me dei conta

imediatamente de uma circunstância um tanto alarmante, que contudo,poucos segundos depois, e enquanto eu ainda jazia prostrado, prendeuminha atenção. Foi o seguinte: meu queixo estava pousado no chão daprisão, mas meus lábios, e a parte superior de minha cabeça, emboraaparentementecomumaelevação inferioràdoqueixo,nãotocavamcoisaalguma. Ao mesmo tempo, minha testa parecia banhada em um vaporviscoso, e o odor peculiar de fungo em decomposição subia às minhasnarinas. Estiquei o braço, e estremeci ao descobrir que caíra bem nabeiradadeumpoçocircular,cujaextensão,éclaro,eunãotinhameiosde

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averiguarnomomento.Tateandoaalvenaria logoabaixodaextremidade,conseguideslocarumpequeno fragmento, e deixei que caísseno abismo.Por vários segundos, estiquei os ouvidos para suas reverberaçõesconformecolidiacontraas lateraisdagargantaemsuaqueda: inalmente,sobreveio um lúgubre mergulho na água, seguido de ecos elevados. Nomesmo instante, escutei um ruído similar ao de uma porta no alto sendorapidamente aberta, e prontamente fechada, enquanto um tênue raio deluztremeluziusubitamenteatravésdaescuridão,esubitamentesumiu.Enxergueiclaramenteasinaquemehaviasidopreparadaedeigraças

emsilênciopelooportunoacidentequemepossibilitaradelaescapar.Maisumpassoantesdeminhaqueda,eomundonãomaismeveria.EamortequeacabaradeevitareraexatamenteoqueeucostumavaencararcomoatípicahistóriafantasiosaepitorescarelativaàInquisição.Àsvítimasdesuatiraniacabiaaescolhadamortecomsuasmaisdesesperadorasagoniasoudamortecomseusmaishediondoshorroresmorais.Amimforareservadaesta última. O longo sofrimento abalara meus nervos, a ponto de euestremeceraosomdeminhaprópriavozemetornaremtodososaspectosuma vítima sob medida para as variedades de tortura que meaguardavam.Tremendo em cada membro do corpo, tateei meu caminho de volta à

parede—determinadoaaíperecer,emlugardemearriscaraosterroresdos poços cuja existência eu agora imaginava haver em variados pontosespalhadospelocalabouço.Emoutrascondiçõesdeespírito, talveztivessea coragem de dar cabo de minha miséria na mesma hora, mergulhandonumdaqueles abismos;masnessemomentoeu eraomais rematadodoscovardes.Etampoucoesqueciaoquehavialidoarespeitodessespoços—que a extinçãosúbita da vida não fazia parte de seu mais horrendodesígnio.A agitação de espírito manteve-me acordado por muitas horas

intermináveis;mas inalmente voltei a adormecer.Aodespertar, descobriao meu lado, como antes, um pão e uma jarra de água. Uma sedeexcruciante me consumia, e esvaziei o recipiente de um só trago. Deviahaver alguma droga ali — pois, mal terminei de beber, senti um torporirresistível. Um sono profundo se apossou de mim— um sono que eracomoamorte.Quanto tempodurouéalgoquedecertonãoseidizer;masquando,maisumavez,abriosolhos,osobjetosemtornodemimestavamvisíveis. Pormeio de uma fulguração difusa e sulfurosa, cuja origem nãopude inicialmentedeterminar, fui capazdeveraextensãoeoaspectoda

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prisão.Quanto ao tamanho eu me equivocara redondamente. O perímetro

completodesuasparedesnãoexcediaosvinteecincometros.Poralgunsminutos,ofatoocasionou-meummundodevãspreocupações;vãs,defato—poisoquepodiasermenosimportante,nasterríveiscircunstânciasemqueme encontrava, do que asmeras dimensões demeu calabouço?Masminha alma assumiu um descontrolado interesse em banalidades econcentrei-mediligentementeemesclareceroerroquehaviacometidoaofazer minhas medições. A verdade en im se me a igurou. Em minhaprimeiratentativadeexploração,eucontaracinquentaedoispassosatéomomentodaqueda: eudevia ali estar aumoudoispassosdopedaçodesarja; na verdade, eu praticamente completara o perímetro da cripta. Eentão adormeci — e, ao acordar, devo ter refeito meus passos —,pressupondoassimoperímetrocomotendoquaseodobrodoquedefatotinha. Minha confusão mental impediu-me de observar que iniciei opercurso tendo a parede à esquerda, e que o terminei com a parede àminhadireita.Eu havia sido iludido, também, com respeito à forma do cárcere.

Tateandomeu caminho, topara com diversos ângulos, e assim inferi umaideia de grande irregularidade; tão poderoso é o efeito da escuridãoabsoluta ao despertarmos da letargia ou do sono! Os ângulos nadamaiseram que umas poucas depressões ligeiras, ou nichos, a intervalosvariáveis. O formato geral da prisão era quadrado. O que eu tomara poralvenaria parecia agora ser ferro, ou algum outro metal, em imensasplacas, cujas suturas ou junções ocasionavam a depressão. A super ícieinteiradorecintodemetalestavagrosseiramentepintadacomtodasessaslucubrações hediondas e repulsivas às quais a sepulcral superstição dosmongeshaviadadoorigem. Figurasdiabólicas emposturas ameaçadoras,comformasesqueléticaseoutrasimagensdefatoaindamaisassustadoras,espalhavam-seedes iguravamasparedes.Observeiqueoscontornosdasmonstruosidades eram su icientemente distintos, mas que as corespareciam esmaecidas e borradas, como que por efeito da umidade daatmosfera. Eu agoranotava tambémo chão, que era depedra.No centroesbeiçava-seopoço circularde cujasmandíbulas eu escapara;mas eraoúniconocalabouço.Tudoissoenxergueiindistintamenteecomgrandeesforço—poisminha

situação pessoal se alterara grandemente durante o sono. Eu agora jaziadeitado de costas, e com o corpo inteiro, em algum tipo de estrutura de

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madeira pouco elevada. Prendia-me fortemente a isso uma longa correiaparecida com uma sobrecilha. Ela passava em muitas voltas pelos meusmembros e meu corpo, deixando em liberdade apenas minha cabeça, emeu braço esquerdo, numa extensão tal que eu pudesse, por meio deenormeesforço, servir-meda comidaemumpratode cerâmicaque jaziaaomeu ladonochão.Vi,parameuhorror,quea jarra foraretirada.Digoparameuhorror—pois amimme consumiauma sede intolerável. Sedequeaparentementeerapartedoplanodemeusalgozesestimular—poisacomidanopratoeraumacarnedetemperopungente.Olhandoparacima,perscruteiotetodeminhaprisão.Ficavaacercade

dezoudozemetrosdealtura,eeraconstruídobemà feiçãodasparedes.Emumdeseuspainéisuma iguramuitosingularcaptouminhacompletaatenção. Era a igura pintada do Tempo como é normalmenterepresentado, salvo que, em lugar da foice, segurava o que, a um olharcasual, supus ser a imagem pintada de um imenso pêndulo, tal como seveem em relógios antigos. Havia alguma coisa, entretanto, na aparênciadessamáquinaquemelevouaolharparaelamaisatentamente.Enquantoeu a itava diretamente (pois sua posição era imediatamente acima deonde me encontrava), julguei vê-la se movimentar. Um instante depoisminha imaginação foi con irmada. Seu vaivém foi breve, e, é claro,vagaroso.Fiqueiolhandoporalgunsminutosparaaquilo,emcertamedidacom medo, porém antes admirado. Cansando-me en im de observar seumorosomovimento,desvieiosolhosparaosoutrosobjetosnacela.Um ligeiro ruído chamou minha atenção e, olhando para baixo, vi

inúmeros ratos enormes passando pelo chão. Haviam saído do poço, queeu mal podia enxergar à minha direita. Mesmo então, enquanto osobservava, eles subiam aos bandos, apressados, com olhos famintos,atiçados pelo cheiro da carne. Desse momento em diante foi-me exigidotremendoesforçoeconcentraçãoparaespantá-los.Issotalveztenhasedadomeiahoraantes,ouquemsabeumahora(pois

meeraimpossívelmanterumapercepçãosenãoimperfeitadotempo),queeu me pegasse dirigindo o olhar outra vez para o alto. O que vi nessemomento ocasionou-me confusão e assombro. O vaivém do pênduloaumentara em cerca de um metro de extensão. Como consequêncianatural, sua velocidade era também muito maior. Mas o que mais meperturboufoiaideiadequehaviaperceptivelmentedescido.Euobservavaagora— com que horror é desnecessário dizer— que sua extremidadeinferior era formada por um crescente de aço cintilante, com cerca de

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trinta centímetros de extensão de um corno a outro; os cornos curvadospara o alto, e a parte de baixo evidentemente tão a iada quanto umanavalha de barbeiro. Como uma navalha igualmente, parecia maciça epesada, a ilando-se a partir do gume em uma sólida e larga estruturaacima.O instrumentoeraa ixadoaumapesadabarradebronzeeapeçatodasibilavaemsuasoscilaçõesatravésdoar.Não havia mais como duvidar da sina para mim preparada pela

engenhosidadeemtorturadosmonges.Minhadescobertadopoçochegaraao conhecimento dos inquisidores —o poço, cujos horrores haviam sidodestinados a um herege ousado como eu —,o poço, emblemático doinferno,edisseminadodebocaembocacomoaUltimaThuledetodassuaspunições.Omergulhonessepoço,euoevitaraapenaspelomaiscasualdosacidentes, e tinha consciência de que a surpresa, ou uma armadilha detormento, compunha importante elemento de todo o grotesco dessasmortes no calabouço. Tendo-me furtado à queda, não fazia parte dosplanos do demônio empurrar-me para o abismo; e assim (por não haveralternativa)umaaniquilaçãodiferenteemaisbrandameaguardava.Maisbranda! Quase sorri em minha agonia ao pensamento de aplicar dessaformaumtaltermo.Dequeadianta contar sobreashoras intermináveisdehorrormaisdo

quemortal,duranteasquais iqueiaenumerarassibilantesoscilaçõesdoaço! Polegada por polegada — linha por linha — com um avançodescendente apreciável apenas a intervalos que se davam como eras—descendo,descendo!Dias sepassaram—podia ter acontecidodemuitosdias terem se passado — até se deslocar tão próximo de mim que meabanavacomseuacrehálito.Oodordoaçoa iado invadiu-measnarinas.Orei — enfastiei os céus de tanto orar por uma descida mais rápida. Afúriadaloucuraseapossouprogressivamentedemimeluteiparaforçarocorpo contra o vaivém da temível cimitarra. E então iquei subitamentecalmo,eaguardeisorrindoamortecintilante,comoumacriançadiantedealgumrarobibelô.Houvemais umoutro intervalo de total insensibilidade; foi breve; pois,

aovoltardenovoàvida,maisnenhumadescidaperceptíveldopêndulosefazianotar.Maspodiaacontecerde ter sido longo—pois eu sabiahaverdemôniosobservandomeudesfalecimento, equepoderiamsecomprazeremdeterasoscilações.Aorecobrarossentidos,também,senti-medeveras— ah, indizivelmente — esgotado e fraco, como que a voltar de longainanição. Mesmo emmeio às agonias desse período, a natureza humana

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clamava por alimento. Com doloroso esforço, estendi o braço esquerdo omaislongequeminhascorreiaspermitiam,emeaposseidapequenasobraque os ratos haviam me deixado. Ao en iar a porção entre meus lábios,invadiu-meamenteumpensamentoincipientedealegria—deesperança.E contudo, o que queriaeu com a esperança? Foi, como disse, umpensamento incipiente — o homem tem tantos desses que jamais sãocompletados.Sentiqueeradealegria—deesperança;massentitambémque havia perecido já ao se formar. Em vão lutei por completá-lo— porrecuperá-lo. O sofrimento prolongado quase aniquilara todas as minhasfaculdadescomunsdepensamento.Eueraumimbecil—umidiota.A oscilaçãodopêndulo se dava emângulo reto como comprimentode

meu corpo. Vi que o crescente estava destinado a cruzar a região docoração.Iriades iarasarjademeurobe—iriavoltarerepetiraoperação—outravez—eoutravez.Nãoobstanteovaivémterrivelmenteextenso(cercadedezmetrosoumais)eovigorsibilantedesuadescida,su icienteparacindirasprópriasparedesdeferro,aindaassimoes iapardeminharoupaseriatudoque,porváriosminutos,elerealizaria.E,aomesobreviressepensamento,hesitei.Nãoousava iralémdessa re lexão.Demorei-menelecomumaatençãoobstinada—comose,aofazê-lo,pudessemanteraíadescidadoaço.Forcei-meaponderarsobreosomdocrescentequandopassasseatravésdopano—sobreapeculiarsensaçãodeestremecimentoque a fricção de tecido produz nos nervos. E ponderei sobre toda essafrivolidadeatéficarcomosnervosàflordapele.Descendo—descendo lentaeregularmente.Extraíumprazermaníaco

decontrastarseumovimentoparabaixocomsuavelocidadelateral.Paraadireita — para a esquerda — por toda parte — guinchando como umespírito maldito! em meu íntimo, com o passo furtivo do tigre! Ealternadamente ria e gemia, conforme uma ou outra ideia ganhava apredominância.Descendo — resolutamente, descendo inexoravelmente! Ele vibrava a

um palmo de meu peito! Lutei violentamente — furiosamente — paraliberar meu braço esquerdo. Estava livre apenas do cotovelo à mão. Euconseguiaesticá-la,pegandodopratoaomeuladoelevando-aàboca,comgrandeesforço,masnadaalémdisso.Pudesseeuterrompidoasamarrasacima do cotovelo, teria agarrado e tentado deter o pêndulo. Poderiaperfeitamentetertentadodeterumaavalanche!Descendo — ainda incessantemente — ainda descendo,

implacavelmente! Eu ofegava e me contorcia a cada vibração. Encolhia

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convulsivamenteacadaoscilação.Meusolhosacompanhavamessesciclospara os lados ou para cima com a avidez do mais absurdo desespero;cerravam-seespasmodicamenteaovê-lodescer,emboraamorteteriasidoumalívio,ah,quãoinefável!Mesmoassim,euestremeciaemcadanervodepensar quão insigni icante bastava ser a descida do maquinário paraprecipitar aquele machado a iado e cintilante contra meu peito. Era aesperança que impelia os nervos a tremer— o corpo a encolher. Era aesperança— a esperança que triunfa na tortura— que sussurra para ocondenadoàmorteatémesmonoscalabouçosdaInquisição.Percebiquemaisdezoudozeoscilações trariama lâminaaumcontato

efetivocommeurobe—eaoobservar issoderepentebaixousobremeuespírito toda a tranquilidade lúcida, serena, do desespero. Pela primeiravezemmuitashoras—outalvezdias—eupensava.Agorameocorriaquea amarra, ou sobrecilha, que me cingia era a única coisa. Eu não estavapreso por nenhuma outra atadura. O primeiro golpe transversal daquelanavalhaemmeia-luacontraqualquerpartedacintaasoltariadetalmodoquetalvezeupudesse livrá-lademeucorpocomousodamãoesquerda.Mas quão terrível, nesse caso, a proximidade da lâmina! O resultado domais leve esforço, quão mortal! Seria plausível, além do mais, que ossubordinados do torturador não tivessem previsto e se precavido contraessapossibilidade?Haveriaalgumaprobabilidadedequeafaixacruzassemeupeitonotrajetodopêndulo?Receandoverminhadébile,aoquetudoindicava,derradeiraesperança frustrada,erguiaomáximoacabeçaparaobter uma visão desobstruída de meu tórax. A sobrecilha envolviaestreitamentemeusmembrosemeucorpoemtodasasdireções— excetonocaminhodocrescenteaniquilador.

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Mal deixara cair a cabeça para trás em sua posição original, quandolampejou emminha mente o que não posso descrever melhor do que a

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metadeinformedaquelaideiadelibertaçãoàqualaludipreviamente,edaqualapenasumametade lutuava incertamentepormeucérebroquandoeulevavaacomidaaosmeus lábiosemfogo.Opensamentotodoagoraseme apresentava — fraco, no limiar da insanidade, no limiar damaterialidade—masaindaassimcompleto.Procedideprontoatentarsuaexecução,comaenergianervosadodesespero.Haviahorasqueaproximidadeimediatadaestruturabaixademadeira

na qual eu jazia literalmente enxameava de ratos. Selvagens, ousados,famintos—seusolhosvermelhosbrilhandoemminhadireçãocomosesóesperassemaimobilidadedeminhaparteparatornar-mesuapresa.“Comquealimento”,penseieu,“acostumaram-seelesnopoço?”Haviamdevorado,adespeitodetodososmeusesforçosparaimpedi-los,

tudo,excetoumpequenorestodoquecontinhaoprato.Eumehabituaraaummovimentodesobeedesce,umabanodemão,naimediaçãodoprato;e,comotempo,auniformidadeinconscientedomovimentoprivou-odeseuefeito. Em sua voracidade, as criaturas daninhas frequentementecravavamsuaspresasafiadasemmeusdedos.Comaspartículasdaviandagordurosaecondimentadaqueaindarestavam,esfregueiexaustivamenteacorreiaemtodosospontosquefuicapazdealcançar;então,removendoamãodopiso,permaneciimóvel,quasesemrespirar.No início, os animais famintos icaram sobressaltados e atemorizados

com amudança— com a cessação demovimento. Recuaram alarmados;muitos buscaram o poço. Mas isso durou apenas um instante. Eu nãocontara em vão com sua voracidade. Observando que continuava imóvel,um ou dois mais audaciosos saltaram sobre o estrado e farejaram asobrecilha. Isso pareceu a deixa para um tropel generalizado. Vieramcorrendodopoçoemnovosbandos.Agarraram-seàmadeira—correramsobreelaepularamàscentenasemcimademim.Omovimentorítmicodopêndulo não os perturbou nem um pouco. Evitando seus golpes,ocupavam-se com a amarra besuntada. Pululando— enxameando sobremim em amontoados cada vez maiores. Contorcendo-se por minhagarganta; seus lábios frios tocandoosmeus; euquase sufocava comsuashordas fervilhantes; um asco para o qual o mundo não tem nomeintumesceu meu peito e enregelou, com uma pesada viscosidade, meucoração.Contudo,maisumminutoeeu sentiaquea luta chegaria ao im.Percebiclaramenteoafrouxamentodaamarra.Sabiaqueemmaisdeumponto ela já devia estar partida. Com resolução mais do que humanapermaneciimóvel.

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Eunãohaviaerradoemmeuscálculos—eunãohaviasuportadoaquiloemvão.Finalmente,sentiqueestavalivre.Asobrecilhapendeuemtirasdemeucorpo.Masosgolpesdopêndulo jáseprecipitavamsobremeupeito.O instrumento atravessara a sarjado robe. Cortara até a camisade linhoqueeuvestiaporbaixo.Duasvezesmaisoscilou,eumaagudasensaçãodedor espicaçou cada nervo.Mas omomento da fuga chegara. Ao abanar amão,meuslibertadoresfugiramemtumulto.Comummovimentocon iante—cauteloso, lateral,contidoevagaroso—deslizeidoabraçodacorreiaepara foradoalcancedacimitarra.Naquelemomento,aomenos, eu estavalivre.Livre!—enasgarrasdaInquisição!Nembemdeixeiamadeiraemmeu

leito de horror e passei ao piso de pedra da prisão, o movimento damáquina infernal cessou, e iquei assistindo, conforme se recolhia, poralguma força invisível,paradentrodo teto.Foiuma liçãoqueaprendiemdesespero.Cadamovimentomeuera semdúvidaobservado.Livre!—euapenas escapara damorte em uma forma de agonia para ser con iado auma outra qualquer pior que amorte. Com esse pensamento passeei osolhosnervosamenteem tornopelasbarreirasde ferroquemecercavam.Alguma coisa incomum — alguma mudança que, de início, não pudeperceberdistintamente—,issoeraóbvio,haviaocorridonoambiente.Pordiversos minutos absorto em um transe trêmulo entreguei-me aconjecturas vãs e desconexas. No transcorrer desse período tomeiconsciência, pela primeira vez, da origemda luz sulfúrea que alumiava acela.Elaprovinhadeuma issura, comcercadeumdedode largura,queseestendiaportodooperímetrodaprisãonabasedasparedes,quedessemodo pareciam, e de fato estavam, completamente separadas do piso.Tentei,mascertamenteemvão,olharatravésdaabertura.Quandomelevantavaapósatentativa,omistériodaalteraçãonacâmara

veio-me subitamente à compreensão. Eu observara que, embora oscontornosdas igurasnasparedesfossemsu icientementenítidos,ascorescontudo pareciam borradas e inde inidas. Mas essas cores haviamassumido agora, e assumiam progressivamente, a cada momento, umbrilhoassustadoremaisintenso,queemprestavaàsimagensespectraisediabólicasumaspectoqueteriatalvezabaladonervosatémais irmesqueosmeus.Olhosdemoníacos,devivacidadeselvagememacabra,fuzilavam--medemildireções,quandonenhumhavia sidovisível antes, e cintilavamcomofantasmáticofulgordeumfogoqueeueraincapazdeforçarminhaimaginaçãoainterpretarcomoilusão.

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Ilusão!—Nomomento emque respireipenetrouemminhasnarinasovapordo ferroaquecido!Umodoras ixiante tomoucontadaprisão!Umaincandescênciamaisprofundaardiaacadamomentonaquelesolhosque se arregalavamparaminhas agonias!Ummatizmais ricode

escarlatesedifundiapeloshorroresdesanguealiretratados.Euofegava!Tentava respirar! Não restava dúvida quanto ao que tramavam meuscarrascos—ah!osmaisimplacáveis!ah!osmaisdemoníacosdoshomens!Recueidometal incandescenteemdireçãoaocentrodacela.Emmeioaospensamentosda iminentedestruiçãopelo fogo,a ideiado frescordopoçoinvadiuminhaalmacomoumbálsamo.Aproximei-merapidamentedesuabeirada mortal. Lancei o olhar para suas profundezas. O fulgor do tetoin lamado iluminava seus recessos mais ocultos. E contudo, em ummomento de desvario, meu espírito se recusou a compreender osigni icado do que vi. Após um instante en im aquilo se impôs— aquiloabriu caminho à força atéminha alma— aquilo icoumarcado a ferro efogoemminharazãotrêmula.Ah!quemderaeutivessevozparafalar!—ah! horror!— ah! qualquer outro horror que não aquilo! Com um uivo,fugidabeirada,eenterreiorostonasmãos—chorandoamargamente.Ocaloraumentourápido,emaisumavezerguiorosto, tremendocomo

quenumacessodefebre.Umasegundamudançaseefetuaranacela—eagoraamudançaeraobviamentena forma.Comoantes,foiemvãoquedeinício empenhei-me em avaliar ou compreender o que estava ocorrendo.Masadúvidanãopersistiupormuito tempo.Avingançados inquisidoresfora precipitada porminha dupla fuga, e pusera um basta aomeu lertecomoReidosTerrores. 8Orecinto,antes,eraquadrado.Agoraeuviaquedois de seus ângulos de ferro estavam agudos — os outros dois,consequentemente, obtusos. A assustadora diferença aumentavarapidamente com uma reverberação grave, um som de gemido. Em uminstante o ambiente alterara seu formato para o de um losango. Mas amudança não parou por aí— eu não esperava nem tampouco desejavaqueo izesse.Euteriasidocapazdeestreitarasparedesvermelhas juntoao peito como se fossem as vestes da paz eterna. “Morte”, eu disse,“qualquermorteexcetoopoço!”Tolo!comopodiaeuignorarqueeraparadentrodopoçoqueoferroembrasavisavameimpelir?Seriaeucapazderesistir a sua incandescência? ou,mesmo que pudesse, como conseguiriaresistir a sua pressão? E então, cada vez mais achatado se tornava olosango, comuma rapidezquenãomedeixavamais tempo algumpara acontemplação.Seucentroe,éclaro,suamaior largura,debruçavam-sena

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beiradabocarraescancarada.Recuei—masasparedes se fechandomeempurravamparaafrente,erainútilresistir.Atéquepor im,paraomeucorpoqueimadoecontraído,jánãohaviamaisdoqueumapolegadaondepisar no sólido chão da prisão. Desisti de lutar, mas a agonia de minhaalma buscou desafogo em um agudo, prolongado e derradeiro grito dedesespero.Sentiquecambaleavasobreaborda—desvieiosolhos…De repente o burburinho dissonante de vozes humanas! De repente o

soproestridentedeinúmerascornetas!Derepenteorangidoásperocomodemil trovões!Asparedesardentesrecuaram!Umbraçoseesticouparaagarraromeuquandoeutombava,desfalecendo,dentrodoabismo.Eraodo general Lasalle. O exército francês entrara em Toledo. A Inquisiçãocaíranasmãosdeseusinimigos.

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MANUSCRITOENCONTRADONUMAGARRAFA

AqueleaquemnãorestasenãoummomentodevidaNadamaistemaesconder.

Quinault,AtysDemeu país e deminha família pouco tenho a dizer.Maus costumes e opassar dos anos afastaram-me de um e distanciaram-me da outra. Ariqueza herdada proporcionou-me uma educação acima damédia e umadisposiçãodeespíritocontemplativapermitiu-mesistematizaros tesourosque um estudo precoce muito diligentemente armazenou. Mais do quequaisquer outras, as obras dos moralistas alemães ocasionaram-megrandedeleite;nãodevidoaumamal-avisadaadmiraçãodesuaeloquenteloucura,maspela facilidade comquemeushábitosde rígidopensamentocapacitaram-me a detectar suas falsidades. Muitas vezes fui censuradopela aridez de meu intelecto; uma de iciência de imaginação já me foiimputada como um crime; e o pirronismo deminhas opiniões trouxe-menotoriedadeemtodaequalquercircunstância.Naverdade,receioqueumforte apetite pela iloso ia ísica tenha impregnadominhamente com umequívoco muito comum de nossos tempos — re iro-me ao fato derelacionarosacontecimentos,atémesmoomenossuscetíveldetalrelação,aos princípios dessa ciência. Consideradas todas as coisas, não existepessoa menos inclinada do que eu a se afastar da austera jurisdição daverdade pelos ignes fatuidasuperstição. Julgueiapropriadopostulartudoissodeantemãooudeoutromodoaincrívelhistóriaquetenhoparacontarseriaconsideradaantesademênciadeumaimaginaçãodesabridadoqueaexperiênciapositivadeumamenteparaaqualasquimerasda fantasiatêmconstituídoletramortaenulidade.Apósmuitosanospassadosemviagenspeloestrangeiro,partinoanode

18—doportodeBatávia,na ricaepopulosa ilhade Java, comdestinoaoarquipélago das ilhas da Sonda. Fui na condição de passageiro — nãotendo nenhum outro incentivo que não uma espécie de inquietudeexcitávelquemeperseguiacomoumdemônio.Nossa embarcação era um lindo navio de cerca de quatrocentas

toneladas,feitocomcavilhasdecobreeconstruídoemBombaimcomtecadeMalabar.Iacarregadodealgodãoemramaeóleo,dasilhasLaquedivas.Levávamos a bordo também ibra de coco, jagra, manteiga ghee, cocos e

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algumas caixas de ópio. A estiva fora malfeita e a embarcaçãoconsequentementetendiaaadernar.Pusemo-nos a caminho com uma mera brisa e durante muitos dias

permanecemos ao largo da costa oriental de Java sem qualquer outroincidente para fazer esquecer a monotonia de nosso curso além doocasionalencontrocomalgumadaspequenasembarcaçõesdoarquipélagoparaoqualrumávamos.Certodia,aoanoitecer,apoiando-menobalaústredepopa,observeiuma

nuvemdeverassingulareisoladaanoroeste.Oquehaviadenotável,alémdesuacor, erao fatode seraprimeiraqueavistávamosdesdeapartidade Batávia. Observei-a atentamente até o sol se pôr, quando ela seesparramouinteiraderepentenosentidoleste–oeste,cingindoohorizontecom uma estreita faixa vaporosa e assumindo a aparência de uma longalinhadepraiabaixa.Minhaatenção foipoucodepoisatraídapeloaspectovermelho e crepuscular da lua e pelo peculiar caráter do oceano. Esteúltimo passava por rápida mudança, e a água parecia de umatransparência acimado normal. Embora pudesse enxergar nitidamente ofundo, ao içar o prumo descobri que o navio se encontrava a umaprofundidade de quinze braças. O ar agora tornava-se intoleravelmentequente e carregado de exalações espiraladas semelhantes às que sobemdoferroaquecido.Quandoanoitechegou,todosoprodeardesapareceu,eumacalmariamaiscompletaéimpossíveldeseconceber.Achamadeumavela ardia sobreapopa semomenormovimentoperceptível, eum longoiodecabelo,seguroentreo indicadoreopolegar,pairavasemquefossepossível detectar qualquer vibração. Entretanto, conforme a irmou ocapitão, ele não conseguia perceber nenhum indício de perigo e, comoéramos levadosna direçãoda costa, ordenouo ferrar dos panos e que aâncora fosse lançada. Nenhum quarto de vigia foi determinado, e atripulação, consistindo principalmente de malaios, largou-sedeliberadamentepeloconvés.Desci—nãosemumpressentimentomuitofortedealguminfortúnio.Naverdade,todasasaparênciasmeautorizavamarecearumsimum.Relateimeustemoresaocapitão;maselenãoprestoua menor atenção no que eu disse e deixou-me sem se dignar a meconceder resposta.Meudesconforto, entretanto, impediu-medepegarnosono, e por volta da meia-noite subi para o convés. Ao pisar no últimodegrau da escada de tombadilho, sobressaltei-me com um zumbido altocomo o que é ocasionado pela rápida rotação de uma roda demoinho e,antes que fosse capaz de averiguar seu signi icado, percebi que o centro

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do navio vibrava. No instante seguinte, um vastomanto espumante fez aembarcaçãoadernaracentuadamentee,rugindosobrenósportodaasuaextensão,varreutodososconvesesdeproaapopa.A fúria extrema da borrasca se provou, em grande medida, ser a

salvaçãodonavio.Emboracompletamentecheiod'água,como,alémdisso,seusmastroshaviamcaídopelaamurada,ele,apósumminuto,ergueu-sepesadamente do oceano e, oscilando um pouco sob a imensa pressão datempestade,finalmenteseendireitou.Mediantequemilagreescapeido iméimpossíveldizer.Atordoadopelo

choque da água, dei comigo mesmo, ao me recobrar, en iado entre ocadasteearodadoleme.Comgrandedi iculdademepusdepée,olhandoemtorno,acabeçagirando, fui inicialmente tomadopela ideiadequenosencontrávamos emmeio à rebentação de rochedos; tão terrível, além daimaginação mais desbragada, era o turbilhão oceânico montanhoso eespumante que nos engolfara. Após algum tempo, escutei a voz de umvelhosuecoquesubiraabordonomomentoemquedeixávamosoporto.Saudei-o com todas as forças e não tardou para que se dirigisse à popa,cambaleante. Logo descobrimos ser os únicos sobreviventes do navio.Todossobreoconvés,comexceçãodenósmesmos,foramvarridosparaomar;ocapitãoeosimediatosdeviamterperecidoenquantodormiam,poisas cabines haviam sido inundadas. Sem auxílio, não podíamos esperarfazermuitacoisapelasegurançadaembarcaçãoenossosesforços icaraminicialmente paralisados com a expectativa momentânea de ir a pique.Nosso cabo da âncora havia, é claro, se partido como barbante deembrulho ao primeiro sopro do furacão, ou de outro modo teríamossucumbido instantaneamente. Singrávamos o oceano com velocidadeassombrosae a águaabriavisíveisbrechaspor todaparte.A estruturaàpopa estava extremamente dani icada e, em quase todos os aspectos,havíamos sofrido consideráveis avarias;mas para nossa suprema alegriademos com as bombas desobstruídas e vimos que nosso lastro não saírademasiado do lugar. O pior da fúria da borrasca já amainara eentendíamoshaverpoucoperigonaviolênciadovento;masantecipávamossua total cessação com desalento; acreditando piamente que em nossacondiçãoavariadapereceríamos inevitavelmentenas tremendasvagasdaressacaqueseseguiria.Masessabemfundadaapreensãonãopareceudemodoalgumpertodeseveri icar.Durantecincodiasecinconoites—nosquais nosso único meio de subsistência foi uma pequena quantidade dejagra,resgatadaagrandecustodocastelodeproa—,nossaprecárianau

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deslizouaumavelocidadequedesa iaocálculo,sobumarápidasucessãodesúbitasventanias,que,emboranãose igualandoemviolênciaà rajadainicialdosimum, foramaindaassimmais terríveisdoquequalqueroutratempestade por mim presenciada. Nosso curso ao longo dos quatroprimeirosdiasfoi,comvariaçõesdesprezíveis,sudesteaumquartodesul;e devemos ter descido pela costa da Nova Holanda. No quinto dia o friotornou-seextremo, emboraoventohouvessepassadoa soprarumpontomais para o norte.O sol despontou comumbrilho amarelo fraco e subiumuitos poucos graus acima do horizonte — sem emitir nenhuma luzdeterminada. Não havia nuvens à vista, e contudo o vento ganhava cadavez mais força, soprando em furiosas rajadas irregulares, intermitentes.Perto do meio-dia, o mais próximo disso que podíamos supor, nossaatençãofoimaisumavezatraídapelosurgimentodosol.Elenãoemitialuzalguma propriamente dita, mas um fulgor baço e sem re lexo, como setodososseusraiosestivessempolarizados.Poucoantesdeafundarnomartúrgido,seuclarãocentralsubitamenteseextinguiu,comoqueapagadoàspressasporalgumpoderinexplicável.Enãopassavadeumaroesmaecidocomolustrodaprataaoafundarnooceanoinsondável.Esperamosemvãopelachegadadosextodia—diaqueparamimainda

não chegou— e que para o sueco jamais chegará. Daí em diante fomosenvolvidos por trevas negras como breu, a ponto de não conseguirmosenxergar um objeto a vinte passos9 da embarcação. Seguimosmergulhados em uma noite eterna que não era abrandada nem pelofosfórico brilho marinho a que estamos habituados nos trópicos.Observamos também que, embora a tempestade continuasse a seenfurecer com violência implacável, não mais nos deparávamos com ausual aparência de rebentação, ou espuma, que até então nos haviaacompanhado.Tudoemtornoerahorror,etrevasespessas,eumnegroeopressivo deserto de ébano. O terror supersticioso insinuou-segradativamente no espírito do velho sueco, e minha própria almapermanecia envolta em silenciosa estupefação. Deixamos de lado todo ocuidado com o navio, como coisa mais do que inútil, e, prendendo-nos omelhor possível ao toco remanescente do mastro da mezena,contemplamos amargamente a imensidade oceânica. Não tínhamos meioalgum de calcular o tempo, tampouco podíamos conjecturar de algummodonossalocalização.Tínhamos,entretanto,plenaconsciênciadeteridomais longe na direção sul do que quaisquer navegadores precedentes, eicamos grandemente admirados de não colidir com os usuais obstáculos

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de gelo.Nessemeio-tempo, cadamomento ameaçava ser nosso último—cadamonstruoso vagalhão precipitando-se para nos emborcar. As ondasultrapassavam qualquer coisa que eu imaginava possível e o fato de nãosubmergirmos imediatamenteeraummilagre.Meucompanheiro faloudalevezade nossa carga e lembrou-medas excelentes qualidades donavio;maseunãoconseguiadeixardesentiracompletainutilidadedequalqueresperançaepreparei-mesombriamenteparaamortequeameuvernadapodia protelar emmais de uma hora, àmedida que, a cada nó avançadopelo navio, a descomunal elevação dos mares negros tornava-se maisdesoladoramenteapavorante.Orao arnos faltava, ao cavalgarvagasqueascendiamparaalémdoalbatroz—oraéramosacometidospelavertigem,com a velocidade de nossa descida em algum inferno líquido onde o aricava cada vezmais estagnado e onde som algum perturbava o sono doKraken.Estávamos no fundo de um desses abismos quando um breve grito de

meu companheiro rasgou angustiadamente a noite. “Ali! ali!”, berrouestridenteemmeusouvidos, “DeusTodo-Poderoso!ali! ali!”Enquantoelefalava, tomei consciência de uma luminescência vermelha, embaciada elúgubrequevertiapelasparedesdavastagargantaondenosachávamoselançava um brilho intermitente sobre nosso convés. Voltandomeus olhosparaoalto,contempleiumespetáculoquegelouosangueemminhasveias.A uma terrível altura, diretamente acima de nós, e bem na beirada dodeclive escarpado, pairava um navio gigantesco, de talvez quatro miltoneladas. Embora empinando no cume de uma onda com mais decinquenta vezes sua própria altura, seu tamanho aparente ainda assimexcedia o de qualquer navio de linha ou embarcação da Companhia dasÍndiasOrientais existente. Seu imenso casco eradeumnegroprofundoefuliginoso não atenuado por nenhumdesses costumeiros entalhes de umnavio. Uma única ileira de canhões de bronze se projetava de suasportinholas abertas, desferindo das super ícies polidas o fogo deinumeráveis lanternas de combate que oscilavam de um lado para outroentreocordame.Masoquemaisnosencheudehorroreassombrofoiquevelejava a todo pano na plena fúria daquelemar sobrenatural e daquelefuracão desgovernado. No momento em que o avistamos, inicialmente, acurvatura de seu beque era a única parte visível, conforme o navioascendiavagarosamentedoabismoescuroetenebrosoatrásdesi.Porummomento de intenso terror ele icou imóvel sobre o vertiginoso pináculo,comoque a contemplar a própria sublimidade, então estremeceu, oscilou

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—eprecipitou-se.Nesse instante, não sei que súbito autocontrole se apossou de meu

espírito. Cambaleando em direção à popa o máximo que pude, aguardeisemmedoodesastreprestesaseabater.Nossaprópriaembarcaçãohaviaen im cessado de lutar e mergulhava a vante no oceano. O choque damassa despencando atingiu-a, consequentemente, na parte de suaestruturaque já seencontravasobaáguaeo resultado inevitável foimelançar,comviolênciairresistível,sobreocordamedaoutranau.Conforme eu caía, o navio deu uma guinada e virou de bordo; e à

confusão que se seguiu atribuo o fato de ter escapado à atenção datripulação. Não me foi di ícil chegar sem ser percebido à escotilhaprincipal, que estava parcialmente aberta, e logo encontrar umaoportunidadedemeesgueiraremsegredoparadentrodoporão.Porqueiz tal coisanão seidizer ao certo.Uma sensação inde inidadeassombro,que a um primeiro exame dos navegadores a bordo se apossou demeuespírito, foi talvez omotivo deminha ocultação. Nãome senti inclinado acon iar minha pessoa a uma raça de gente que oferecia, ao olharsuper icialqueeulheslançara,tantosaspectosdevaganovidade,dúvidaeapreensão. Desse modo julguei por bem conceber um esconderijo noporão. Para isso, removi uma pequena parte das anteparas, de modo aproporcionar para mim um refúgio conveniente em meio ao imensocavernamedonavio.Malcompletaraminhaobraquandoosomdepassosnoporãoforçou-me

adelalançarmão.Umhomempassoupróximodemeuesconderijocomumandardébilevacilante.Nãopudeverseurosto,mastiveoportunidadedeobservar suaaparência geral.Nela se evidenciava idadeavançadaeumacondiçãoenfermiça.Seusjoelhosbambeavamsobofardodosanos,etodoo seu ser estremecia em suportá-lo. Murmurava consigo mesmo, em umtom baixo e alquebrado, palavras de uma língua que não pudecompreender, e tateou até um canto entreumapilhade instrumentosdeaparênciasingularevelhascartasdenavegaçãodeterioradas.Seusmodoseramumamisturadesconcertantedemalcriaçãodasegundainfânciaedasolene dignidade de umDeus. Até que inalmente subiu para o convés enãomaisovi.

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Umsentimentoparaoqualnão tenhonomeapossou-sedeminhaalma

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— uma sensação que não admitirá quaisquer análises, para a qual aslições do tempo passado são inadequadas, e de cuja compreensão receionem sequer o próprio futuro detém alguma chave. Para uma menteconstituídacomoaminha,estaúltimaconsideraçãoéumadesgraça.Jamais— sei que jamais—me darei por satisfeito com respeito à natureza deminhas impressões. E contudo, não é de admirar que essas impressõessejam inde inidas, umavezque se originamde fontes tão completamenteinéditas. Uma nova percepção — uma nova entidade passou a integrarminhaalma.

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Já é decorrido um longo tempo desde que pisei pela primeira vez nosdeques deste terrível navio, e os raios de meu destino estão, creio,convergindo em um foco. Homens incompreensíveis! Absortos emmeditaçõesdeum tipoquemeé vedado intuir, passampormimsemmenotar.Esconder-mefoiumacompletatolicedeminhaparte,poisessagentenão me enxerga. Agora mesmo passei diretamente diante dos olhos doimediato; isso foi pouco depois de haver me aventurado pela cabineparticular do próprio capitão, apropriando-me ali dosmateriais com queoraescrevo,e tenhoescrito.Continuareia retomaressediáriode temposem tempos. É verdade que provavelmente não encontrarei oportunidadedetransmiti-loaomundo,masnãopretendoabrirmãodetentar.Noúltimomomento, tratareideencerraromanuscritonumagarrafa, evou lançá-laaomar.

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Ocorreuum incidentequemeproporcionounovoensejopara re lexão.São tais coisas o incontrolado acaso em operação? Aventurei-me peloconvés e larguei-me, sem atrair qualquer atenção, entre uma pilha decabos de enfrechates e velas usadas, no fundo do escaler. Enquantocismava na singularidade de meu destino, aplicava pinceladas distraídascom uma brocha alcatroada às beiradas de um cutelo cuidadosamentedobradosobreumbarrilpertodemim.Essavelaestáagoraenvergadanoalto do navio e as irre letidas pinceladas da brocha formaram a palavraDESCOBERTA.Tenho feito muitas observações ultimamente sobre a estrutura da

embarcação.Emborabemarmada,elanãoé, creioeu,umabelonave.Seucordame, feitio e aparelhamento geral constituem todos uma negativa asuposiçõesnessesentido.Oqueelanãoéeuopossoperceberfacilmente;o que elaé receio ser impossível dizer. Não sei como isso se dá, mas aoescrutinizar seu estranho modelo e singular disposição de vergas, seutamanho imenso e velame prodigioso, sua proa austeramente simples epopa antiquada, ocasionalmente cruzaminhamente a sensaçãode coisasfamiliares, e sempre vem misturada a essas sombras indistintas damemóriaumainexplicávellembrançadeantigasnarrativasestrangeirasedeerasperdidasnotempo.

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Tenho estado a observar o arcabouço do navio. É construído de ummaterial que desconheço. Há qualquer coisa de peculiar no caráter damadeira que ameu ver parece torná-la extremamente imprópria para ousoaque foidestinada.Re iro-mea suaextremaporosidade, consideradaindependentemente da condição carcomida que advém de navegar poressesmares,eàparteapodridãoqueseriadeesperardaidade.Parecerátalvez uma observação até certo ponto curiosa, mas esse madeirameapresentaria todas as características do carvalho espanhol, pudesse ocarvalhoespanholserdilatadoporquaisquermeiosnãonaturais.Lendooperíodoacima,umcuriosoapotegmadeumcurtidonavegador

holandês me volta subitamente à memória. “É tão certo”, costumava eledizerquandoalgumadúvidaera lançadasobreseuapegoàverdade,“tãocerto quanto existe um oceano onde o próprio navio cresce em tamanhocomoocorpoviventedeummarujo.”

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Hámais oumenos uma hora, tomei coragem e fuime en iar entre umgrupodatripulação.Nãoprestaramamenoratençãoemmime,emboraeuicassebemnomeiodelestodos,pareciamcompletamentealheiosàminhapresença. Como aquele primeiro que vi no porão, ostentavam todos asmarcas encanecidas de uma velhice provecta. Seus joelhos tremiam deenfermidade; seus ombros vergavam acentuadamente de decrepitude;suas peles enrugadas repercutiam com o vento; suas vozes eram baixas,trêmulasealquebradas; seusolhos luziamcomareumadosanos;e seuscabelos grisalhos desgrenhavam-se terrivelmente na tempestade. Emtorno deles, por toda parte no convés, jaziam espalhados instrumentosmatemáticosdaconstruçãomaisantiquadaeobsoleta.

***

Mencionei, faz algum tempo, o envergamento de um cutelo. Desseperíodoemdiante,onavio,comventoàpopaarrasada,prosseguiuemseuterrível curso rumo sul, com cada farrapo de pano enfunado sobre ele,desde suas pegas até osmais baixos botalós de cutelo, emergulhando atodo momento os lais das vergas de seus joanetes no mais apavoranteinferno líquido que a mente humana jamais pôde conceber. Acabo dedeixar o convés, onde me é impossível continuar de pé, embora atripulação pareça experimentar pouco inconveniente. A mim parece um

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milagredosmilagresquenossomaciçovolumenãotenhasidotragadodeuma vez para todo o sempre. Estamos decerto condenados a continuarlutuando no limiar da eternidade, sem nunca dar esse derradeiromergulho no abismo. De vagalhões mil vezes mais estupendos do quequalquer um que algum dia já vi afastamo-nos deslizando com odesembaraçodacéleregaivota;easáguascolossaiserguemsuascabeçasacima de nós como demônios das profundezas, mas como demôniosrestritos a simplesmente ameaçar, e proibidos de destruir. Sou levado aatribuiressasevasões frequentesàúnicacausanaturalcapazdeexplicartal efeito.Devo suporqueonavio esteja soba in luênciade alguma fortecorrenteoceânica,oudeumaimpetuosacontracorrentedefundo.

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Vi o capitão frente a frente, e em sua própria cabine— porém, comoesperado, ele não prestou a menor atenção em mim. Embora em suaaparência não haja, para o observador casual, nada capaz de indicaralguém acima ou abaixo do comum dos homens, ainda assim umsentimentode irreprimível reverência e assombromesclou-seà sensaçãode portento com que o contemplei. Em compleição, é quase de minhaprópriaestatura;ouseja, cercadeummetroe setenta.Temocorpobemconstituídoecompacto,nemrobusto,nememinentementeocontrário.Masé a singularidade da expressão dominante em seu rosto — a intensa,prodigiosa, cativante evidência de idade provecta, tão absoluta, tãoextrema, que anima em meu espírito uma sensação — um sentimentoinexprimível.Suatesta,emborapoucoenrugada,pareceostentarsobresiamarca de uma miríade de anos. Seus cabelos cinza são registros dopassado,eseusolhosaindamaiscinzentossãosibilasdofuturo.Ochãodacabineestavaforradodeestranhosin-fóliosencadernadoscomdobradiçasdeferro,instrumentoscientíficosdesfeitos,mapasarcaicoseobsoletos.Suacabeça estava curvada entre as mãos, e ele perscrutava, com um olharfebril,inquieto,umpapelquejulgueiserumacartadecomissão,eque,emtodo caso, exibia a assinatura de um monarca. Resmungavamalcriadamente consigo mesmo — assim como fazia o primeiro marujoquevinoporão—algumaspalavrasemumalínguaestrangeira;eemboraohomemestivesseaumpalmodemim,suavozpareciachegaraosmeusouvidosdadistânciadeumamilha.

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O navio e tudo que nele vai estão imbuídos do espírito de uma eraancestral.Atripulaçãosemovedeumladoparaooutrocomoosfantasmasdeséculossepultados;seusolhostransmitemimpaciênciaeinquietação;equando suas silhuetas cruzam meu caminho ao clarão fantástico daslanternas de combate, sinto algo que nunca senti antes, ainda que tenhasidoumnegociantedeantiguidadespor todaaminhavida, emedeixadoembeberpelassombrasdecolunascaídasemBalbec,Tadmor,Persépolis,atéminhaprópriaalmatersetornadoumaruína.

***

Quando olho em torno de mim, sinto vergonha de minhas antigasapreensões. Se tremi ante a tempestade que até o momento nosacompanhou, o que devo sentir senão o mais puro terror diante de umconfrontobélicoentreoventoeooceano,doqualpalavrascomotornadoesimum transmitem apenas uma ideia limitada e imprecisa? Tudo navizinhança imediata do navio é o negror da noite eterna e um caos deáguassemespumas;masacercadeumaléguadeambosos ladosdenóspodemservistos, indistintamenteea intervalos, estupendosbaluartesdegelo, assomando imponentes contra o céu desolado, e parecendo asmuralhasdouniverso.

***

Como imaginei, o navio mostra estar em uma corrente — se essadenominação pode apropriadamente ser conferida a um luxo oceânicoque, uivando e guinchando nas imediações do gelo branco, seguetrovejando na direção sul com velocidade semelhante à violentaprecipitaçãodeumacatarata.

***

Conceber o horror de minhas sensações é, presumo, completamenteimpossível; contudo, uma curiosidade de penetrar nos mistérios dessasplagasespantosaspredominaatémesmosobremeudesespero,emetraráresignação perante o aspecto sumamente hediondo damorte. É evidenteque singramos velozmente rumo a uma empolgante compreensão —algumsegredofadadoajamaisserpartilhado,cujoconhecimentoacarretadestruição.Talvezessacorrentenosleveaoprópriopoloaustral.Éforçosoconfessar que uma suposição aparentemente tão ousada conta com toda

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probabilidadeaseufavor.

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A tripulação anda de um lado a outro pelo convés com passadastrêmulas; mas observa-se em seus semblantes antes uma expressão deansiedadeesperançosadoqueaapatiadodesespero.Nesseínterim,oventoseguesoprandodepopae,porcarregarmosessa

in inidade de velas, o navio às vezes se eleva, de casco e tudo, acima dooceano!Oh,horrorsobrehorror!—ogeloseabresubitamenteàdireita,eà esquerda, e rodopiamos vertiginosamente, em imensos círculosconcêntricos, girandoe girandopelasbordasdeumgigantesco an iteatrocujas paredes no alto se perdem nas trevas e na distância. Mas poucotempo ainda me resta para re letir sobre meu destino! Os círculosrapidamente icam cada vez menores—mergulhamos desvairadamentenas garras da voragem — e em meio aos rugidos, aos clamores, aosestrondos do oceano e da tempestade, o navio estremece— ai, Deus! e——desce!Nota: O “Manuscrito encontrado numa garrafa” foi originalmente

publicado em 1831 [1833]; e não foi senão depois de muitos anos quetomei conhecimento das cartas de Mercator, em que o oceano érepresentado como correndo, por quatro bocas, para dentro do AbismoPolar (ao norte), de modo a ser engolido pelas entranhas da Terra; opróprio polo é representado por um rochedo negro, assomando aprodigiosaaltura.

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OGATOPRETO

Paraanarrativasumamenteextravaganteecontudosumamentetrivialemquetomodapena,nãoesperonempeçocrédito.Defato,loucoseriaeudeesperar tal coisa, num episódio em que até meus próprios sentidosrejeitam o que testemunharam. Contudo, não estou louco — e, decerto,tampoucoestou sonhando.Mas amanhãmorrerei ehojequerodesafogarminha alma.Meu propósito imediato é expor diante domundo, demododireto, sucinto e sem comentários, uma série de simples eventosdomésticos. Por suas consequências, esses eventos me aterrorizaram—torturaram—destruíram.Contudo,nãofareiumatentativadeexplicá-los.Paramim,poucorepresentaramalémdoHorror—paramuitos,parecerãomenos terríveis do quebarrocos. Num futuro próximo, talvez, algumintelecto haverá de surgir para reduzir minha fantasmagoria ao lugar-comum—algumintelectomaiscalmo,maislógicoemuitomenosexcitáveldoqueomeu,queperceberá,nascircunstânciaspormimdetalhadascomassombro, nadamais do que uma ordinária sucessão de causas e efeitosperfeitamentenaturais.Desdea infânciasempreme iznotarpeladocilidadeehumanidadede

meu temperamento. Minha ternura de coração era de fato tão evidentequeme tornava objeto de troça demeus companheiros. Tinha particularafeição por animais e fui mimado por meus pais com uma grandevariedade de bichos de estimação. Com eles passava a maior parte dotempoenuncamesentiatãofelizcomonasocasiõesemqueosalimentavae acariciava. Essapeculiaridadede caráter acompanhou-me ao crescer e,mais tarde, quando me tornei um homem, dela extraía uma das minhasprincipaisfontesdeprazer.Paraaquelesqueacalentaramafeiçãoporumcão iel e esperto, di icilmente preciso me dar o trabalho de explicar anaturezaouaintensidadedasatisfaçãoquedissopodeadvir.Háqualquercoisanoamoraltruístaeabnegadodeumacriaturabrutaquecala fundono coração de quem muitas vezes já teve ocasião de experimentar aamizademesquinhaeafidelidadeimpalpáveldomeroHomem.Casei-me cedo, e tive a felicidade de encontrar emminha esposa uma

disposiçãonãoincompatívelcomaminhaprópria.Observandomeuapreçopelosanimaisdomésticos,elanãoperdiaaoportunidadedeobterostiposmais agradáveis. Tivemos pássaros, peixes dourados, um ótimo cão,coelhos,ummacaquinhoeumgato.Este último era um animal notavelmente grande e belo, todo negro, e

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espertoemumgrauespantoso.Falandodesuainteligência,minhaesposa,quenofundonãoerapoucoimbuídadesuperstição,faziafrequentealusãoà antiga crença popular que via em todos os gatos pretos bruxasdisfarçadas.Nãoqueemalgummomentofalasseasérionessesentido—enão toco no assunto por nenhum outro motivo além de acontecer, bemagora,demeviràmemória.Pluto—esseonomedogato— foimeubichoe companheiro favorito.

Somente eu o alimentava, e ele me seguia pela casa aonde quer que eufosse. Eramesmo com di iculdade que conseguia impedi-lo de seguir-mepelasruas.Nossa amizade durou, desse modo, por vários anos, durante os quais

meu temperamento geral e caráter — por obra do Demônio daIntemperança — experimentaram (coro em confessar) uma radicalalteração para pior. Tornei-me, a cada dia, mais taciturno, mais irritável,mais sem consideração pelos sentimentos alheios. Permitia-me o uso deuma linguagem destemperada comminhamulher. Por im, cheguei até aameaçá-ladeviolência ísica.Meusbichos, é claro, tambémsofreramcomminhamudançade disposição. Eunão só os negligenciava, como tambémos maltratava. Por Pluto, entretanto, ainda mostrava su icienteconsideraçãoparameabsterdein ligir-lhemaus-tratos,comofaziacomoscoelhos, o macaco ou mesmo o cão, quando, por acidente, ou talvez porafeto,entravamemmeucaminho.Masadoençaganhoucorpoemmim—poisquedoençasecomparaaoÁlcool?—eno imatémesmoPluto,queaessaalturaestava icandovelhoe,consequentemente,umtantomalcriado— até mesmo Pluto começou a experimentar os efeitos de meutemperamentoirascível.Certa noite, voltando para casa, muito embriagado, de uma deminhas

tavernaspelacidade,julgueiqueogatoevitavaminhapresença.Agarrei-o;nisso, emseumedodeminhaviolência, eleme in ligiuum leve ferimentona mão com os dentes. A fúria de um demônio apossou-seinstantaneamentedemim.Eunãomaismereconhecia.Minhaalmaoriginalpareceu,namesmahora, levantarvoodemeucorpo;eumamalevolênciamais do que diabólica, in lamada a gim, convulsionou cada ibra de meucorpo. Tirei do bolso do colete um pequeno canivete, abri-o, agarrei opobre animal pela garganta e deliberadamente arranquei um de seusolhos da órbita! Coro, enrubesço, estremeço conforme descrevo aabominávelatrocidade.Quandoarazãomevoltoupelamanhã—apósterdissipadonosonoos

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vapores do desregramento noturno— experimentei um sentimento queerapartehorror, parte remorsopelo crimedoqual era culpado;mas foi,quando muito, um sentimento fraco e ambíguo, e a alma permaneceuintocada.Volteiamergulharemexcessosenão tardeiaafogarnabebidaqualquerlembrançadoato.Entrementes,ogato lentamenteserecuperou.Aórbitadoolhoperdido

apresentava, é verdade, uma aparência assustadora,mas ele nãopareciasentirmaisdoralguma.Andavapelacasacomodecostume,mas,comoerade esperar, fugindo aterrorizado à minha aproximação. Restava-mesu icientedeminhaantigaafeiçãoparaquenoinício icassemagoadocomesse evidente repúdio de parte de uma criatura que outrora tanto meamara. Mas esse sentimento em breve deu lugar à irritação. E entãosobreveio, como que para minha ruína inal e irrevogável, o espírito daPERVERSIDADE. Desse espírito a iloso ia não se ocupa. Contudo, nãotenho tanta convicção sobre a existência deminha almaquanto tenhodeque a perversidade é umdos impulsos primitivos do coração humano—uma das indivisíveis e primordiais faculdades, ou sentimentos, queorientam o caráter do Homem. Quem nunca se pegou, uma centena devezes,cometendoalgumatoviloutolosemnenhumoutromotivoalémdesaber quenão deveria? Não mostramos uma perpétua inclinação,malgrado todo o nosso bom-senso, a violar essa coisa que chamamosLei,meramente porque a compreendemos como tal? Esse espírito deperversidade, como disse, veio para minha ruína inal. Foi esseinescrutávelanseiodaalmadeatormentarasimesma —deviolentarsuaprópria natureza—de cometer omal emnomedomal simplesmente—quemeimpeliuacontinuarefinalmenteconsumaroagravoquejáinfligiraàinofensivacriatura.Certamanhã,asanguefrio,passeiumlaçoemtornodeseupescoçoeoenforqueinogalhodeumaárvore;—enforquei-ocomas lágrimas brotando de meus olhos, e com o remorso mais amargo nocoração;— enforquei-oporque sabia queme amara, eporque sentia quenãome dera o menormotivo para ressentimento;— enforquei-o porquesabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado— um pecadomortalqueporiaminhaalmaimortalemperigoapontodedeixá-la—setalcoisaera possível— fora de alcance até damisericórdia in inita doDeusMaisMisericordiosoeMaisTerrível.Nanoitedodiaemqueperpetreiessacruel infâmia, fuidespertadodo

sonopelosgritosdefogo.Ascortinasdeminhacamaestavamemchamas.A casa toda ardia. Foi com grande di iculdade que minha esposa, uma

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criadaeeupróprioconseguimosescapardacon lagração.Adestruiçãofoicompleta.Todasminhaspossesterrenasforamconsumidaseentreguei-medaliemdianteaodesespero.Não cedo à fraqueza de tentar estabelecer uma sequência de causa e

efeitoentreodesastreeaatrocidade.Masestoudescrevendoumacadeiade eventos— e não desejo deixar de fora nem sequer um possível elo.Certodiaapósoincêndio izumavisitaàsruínas.Asparedes,comexceçãode uma só, haviam desabado. Essa exceção consistia de uma parededivisóriainterna,nãomuitogrossa,maisoumenosnomeiodacasa,contraa qual icava recostada a cabeceira de minha cama. O reboco havia, emgrandeparte,resistidoàaçãodofogo—ocorrênciaqueatribuíaofatodeter sido recentemente aplicado. Em torno dessa parede uma compactamultidãohaviasereunidoemuitaspessoaspareciamexaminarumaáreaparticular dela com atenção extremamente minuciosa e intensa. Aspalavras “estranho!”, “singular!” e outras expressões similares atiçaramminhacuriosidade.Acerquei-meevi,comoquegravadoembasreliefsobrea super ície branca, a igura de um gigantescogato. A imagem seestampavacomumaprecisãorealmentemaravilhosa.Haviaumacordaemtornodopescoçodoanimal.Quando contemplei a aparição — pois como menos que isso eu

di icilmente podia encará-la — minha admiração e meu terror foramextremos. Até que en im a re lexão veio emmeu auxílio. O gato, lembrei,foraenforcadoemumjardimadjacenteàcasa.Aoalarmedeincêndio,essejardimforaimediatamentetomadopelamultidão—ealguémalideviatercortado a forca e jogado o animal por uma janela aberta dentro domeuquarto. Isso provavelmente fora feito com o intuito de me despertar demeu sono. A queda de outras paredes comprimira a vítima de minhacrueldade na massa da alvenaria recém-aplicada; a cal do reboco, sob aaçãodofogo,combinara-seaoamoníacodacarcaçaparaexecutaroesboçotalcomoeuovia.Emboradessemodoprocurasseeuprontamenteprestarcontasaminha

razão, quando não, namedida do possível, aminha consciência, pelo fatoalarmante que acabo de descrever, isso tampouco deixou de causar umaprofunda impressão em minha imaginação. Por meses não consegui melibertar da imagem fantasmagórica do gato; e, durante esse período,voltou-me ao espírito um sentimento vago que parecia, mas não era,remorso. Cheguei a pontode lamentar a perdado animal, e de procurar,nassórdidastavernasqueagoramehabituaraafrequentar,outrobichano

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domesmotipo,edeaparênciaalgosimilar,comoqualsuprirseulugar.Certanoite, enquanto eume sentava,meio entorpecido, numantrodos

maisinfames,minhaatençãofoisubitamenteatraídaporumobjetonegro,repousando sobre a tampa de um imenso tonel de gim, ou rum, queconstituía a principal peça de mobília do ambiente. Eu estivera a olharixamente para a tampa desse tonel por alguns minutos, e o que agoracausavaminhasurpresaeraofatodenãoterpercebidoantesoobjetoqueestavasobreele.Aproximei-meeotoqueicomamão.Eraumgatopreto—muito grande— tão grande quanto Pluto, e muito parecido com ele emtodos os aspectos, exceto um. Pluto não tinha um único pelo branco emtodo o seu corpo; mas esse gato exibia uma mancha branca enorme,emboraindefinida,alhecobrirtodaaregiãodopeito.No momento em que o toquei, ele se levantou de imediato, ronronou

audivelmente, esfregou-se em minha mão e pareceu deliciado com aatençãoconcedida.Aquela,então,eraexatamenteacriaturaqueeuestavaprocurando.Ofereci-menamesmahoraparaadquiri-lojuntoaodono;maso homem a irmou que não lhe pertencia— que nada sabia do bicho—nuncaoviraantes.Continueicomminhascaríciasequandomepreparavaparavoltarpara

casa o animal evidenciou disposição de me acompanhar. Permiti que oizesse; parando ocasionalmente e dando-lhe tapinhas carinhososconforme andava. Quando cheguei em casa, icou à vontade na mesmahoraeimediatamenteconquistouapredileçãodeminhamulher.De minha parte, não demorou para que a repugnância começasse a

crescer dentro demim. Isso era precisamente o oposto do que eu haviaesperado; porém — não sei dizer como nem por que — sua evidenteafeição por mim antes me repelia e irritava. Gradativamente, essessentimentosderepulsaeirritaçãoevoluíramparaaamarguradoódio.Euevitavaacriatura;umavagasensaçãodevergonhaealembrançademeuantigo ato de crueldade impediam-me de cometer algum abuso ísico.Abstive-me, por algumas semanas, de aplicar-lhemaus-tratos ou usar deviolênciadequalquerespécie;mas,gradualmente—muitogradualmente—comeceialhedevotaromaisinexprimívelasco,eafugiremsilênciodesuaodiosapresençacomosefosseohálitodeumapestilência.O que contribuiu, sem dúvida, para o meu ódio do animal, foi a

descoberta, namanhã subsequente à noite em que o levei para casa, deque, comoPluto, ele também foraprivadodeumolho.Essacircunstância,entretanto, apenas o fez crescer em afeição perante minha esposa, que,

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comojádisse,possuía,emelevadograu,essahumanidadedesentimentosqueoutrorahavia sidomeu traço característico, e a origemdemuitos demeusprazeresmaissingelosepuros.Comminha aversão, entretanto, o apreço desse gato pormim pareceu

aumentar. Ele seguia meus passos com uma pertinácia que seria di ícilfazer o leitor compreender. Sempre que me sentava, acomodava-se sobminha poltrona, ou pulava sobre meus joelhos, cobrindo-me com suasdetestáveis carícias. Se eume levantavaparaandar,metia-se entremeuspésedessemodoquasemederrubava,ou,cravandosuasgarraslongasea iadas em minha roupa, trepava, desse modo, até meu peito. Emmomentoscomoesse,emboradesejassecomtodasasforçasmatá-lodeumsógolpe,eueracontudoimpedidodeofazer,empartepelalembrançademeu antigo crime,masprincipalmente—que eu o confesse logodeumavez—porabsolutopavordacriatura.Esse pavor não era exatamente o pavor de ummal ísico—e contudo

mefaltariampalavrasparade ini-lodeoutromodo.Tenhoquasevergonhadeconfessar—sim,mesmonestaceladecriminoso,tenhoquasevergonhade confessar — que o terror e o horror que esse animal me infundiahaviam sido aumentados por uma das mais simples quimeras que seriapossívelconceber.Minhaesposachamaraminhaatenção,emmaisdeumaocasião, para o caráter da mancha de pelo branco, da qual falei, e queconstituíaaúnicadiferençavisível entreoestranhoanimaleooutroqueeumatara.O leitorhaveráderecordarqueessamancha,emboragrande,havia se mostrado originalmente muito inde inida; porém, mediantevagarosas gradações—gradaçõesquase imperceptíveis, e quepor longotempo minha Razão lutou por rejeitar como fruto da imaginação —,assumira, inalmente, uma rigorosa precisão de contornos. Era agora arepresentaçãodeumobjetoquetremoemnomear—eporisso,acimadetudo, nutria ódio, e pavor, e teriame livrado domonstro caso ousasse—era agora, a irmo, a imagem de uma coisa hedionda — de uma coisamacabra — do PATÍBULO! — ah, pesaroso e terrível maquinismo deHorroredeCrime—deAgoniaedeMorte!E agora eu estava de fato desgraçado para além da desgraça damera

Humanidade. Euma criatura bruta — cujo semelhante eu mataradesprezivelmente —uma criatura bruta engendrara paramim — paramim, um homem, feito à imagem do Deus Altíssimo — tamanho einsuportável suplício! Ai de mim! nem de dia, nem de noite, conhecer abênção do Descanso! Durante o dia, a criatura nãome deixavamais um

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momentosozinho;e,ànoite,euacordava,dehoraemhora,compesadelosdeindizívelmedo,paradarcomohálitoquentedacoisasobremeurosto,eseuvastopeso—aencarnaçãodeumSúcuboqueeueraimpotentepararepelir—oprimindoeternamentemeucoração!Sobapressãodetormentoscomoesses,otênueresquíciodoquehavia

de bondade em mim cedeu. Pensamentos malignos tornaram-se meusúnicos companheiros — os pensamentos mais negros e malignos. Meutemperamento habitualmente taciturno evoluiu num ódio por todas ascoisaseportodaaespéciehumana;aopassoquedassúbitas,frequenteseincontroláveis explosões de uma fúria à qual eu agora cegamente meabandonavaminha resignada esposa, ai demim!, era amais habitual e amaispacientedasvítimas.Certodiaelameacompanhava,emalgumserviçodoméstico,aoporãoda

velha casa que nossa pobreza nos compelia a ocupar. O gato me seguiupelosíngremesdegrause,quasemefazendocairdefrente,exasperou-meaopontoda loucura.Erguendoummachado,eesquecendo,emminhaira,opavorinfantilqueatéentãodetiveraminhamão,dirigiumgolpecontraoanimal que, sem dúvida, teria se provado instantaneamente fatal casohouvessedescidocomoeudesejara.Masogolpefoiinterrompidopelamãodeminhaesposa.Instigadoporessainterferêncianumafúriamaisdoquedemoníaca, liberteimeubraço e enterrei omachado em seu cérebro. Elatomboumortaimediatamente,semumgemido.Executado o assassinato hediondo, procedi incontinente, e com total

determinação, à tarefa de ocultar o corpo. Eu sabia que não poderiaremovê-lodacasa,dediaoudenoite,semoriscodeserobservadopelosvizinhos. Inúmeros planos passaram por minha mente. A certa altura,penseiemcortarocadáverempequenospedaçosedestruí-losnofogo.Emoutromomento,resolvicavarumburacoparaenterrá-lonochãodoporão.Depois, considerei a possibilidade de jogá-lo no poço do quintal— ou defazerumembrulhoeencaixotá-lo,comosefosseumamercadoria,tomandoasusuaisprovidências,demodoqueumcarregadorviesselevá-lodacasa.Finalmente, ocorreu-me um expediente que julgueimuitomelhor do quetodos esses. Decidi emparedá-lo no porão — como ouvira dizer que osmongesdaIdadeMédiafaziamcomsuasvítimas.Para um tal propósito o porão se prestava bem. Suas paredes eram

construídas sem irmeza, e haviam recentemente recebido uma camadagrosseirade reboco,queaumidadedoambiente impediradeendurecer.Além domais, numa das paredes havia uma saliência, causada por uma

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falsachaminé,oulareira,queforapreenchida,demodoaseparecercomorestante do porão. Não tive dúvida de que seria capaz de removerfacilmenteos tijolosnesse lugar, inseriro cadávere reconstruiraparedecomoantes,demodoqueolhoalgumdetectassealgosuspeito.Enessecálculonãomeequivoquei.Utilizandoumpédecabra,desloquei

rapidamente os tijolos e, após escorar o corpo cuidadosamente contra aparedeinterna,mantive-onessaposição,enquanto,compoucadi iculdade,refazia toda a estrutura como semostrava originalmente. Tendo buscadoargamassa,areiaecrina,comtodasasprecauçõespossíveis,prepareiumreboco que fosse indistinguível do antigo, e com ele procedi muitodiligentementeàobradanovaalvenaria.Apósterminar,observeisatisfeitootrabalhobem-feito.Aparedenãoapresentavaomenorsinalde tersidoperturbada.Recolhioentulhonochãocomcuidadomaisdoqueminucioso.Olheiemtornoemtriunfoedissecomigomesmo—“Aíestá,pronto,meutrabalhonãofoiemvão”.Meu passo seguinte foi procurar pelo causador de tamanha desgraça;

poiseuhavia,en im,chegadoà irmedeterminaçãodematá-lo.Tivesseeusido capazdeencontrá-lonaquelemomento,não restadúvida sobrequalteriasidoseudestino;masaoquepareciaacriaturaastuciosasealarmaracom a violência de minha fúria precedente e evitava aparecer em meupresente estado de espírito. É impossível descrever, ou imaginar, aprofunda, jubilosa, sensação de alívio que o sumiço do detestado animalocasionouemmeupeito.Elenãoapareceuduranteanoite—eassim,poruma noite, ao menos, desde que fora trazido à casa, dormi um sonoprofundo e tranquilo; sim senhor, dormi, mesmo com o fardo doassassinatoemminhaalma!Osegundoeoterceirodiasepassaram,eaindanemsinaldemeualgoz.

Eu voltava a respirar como um homem livre. O monstro, aterrorizado,fugiradolugarparasempre!Eunãooverianuncamais!Minhafelicidadeerasuprema!Aculpapormeuatotenebrosopoucomeperturbava.Umaspoucasperguntashaviamsidofeitas,masforamrespondidasprontamente.Até mesmo uma busca fora empreendida — mas é claro que nada sedescobrira.Eucontemplavaminhafuturafelicidadecomoassegurada.No quarto dia após o crime, uma equipe policial veio, um tanto

inesperadamente, ter à minha porta, e procedeu mais uma vez a umarigorosa investigação da casa. Con iante, entretanto, na inescrutabilidadede meu esconderijo, mostrei grande desembaraço. Os policiais instaramque os acompanhasse em sua busca. Não deixaram um único vão ou

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recesso por examinar. Finalmente, pela terceira ou quarta vez, desceramao porão. Não tremi um músculo sequer. Meu coração batia tãocalmamentecomoodealguémnosonoda inocência.Andeipeloporãodepontaaponta.Cruzeiosbraçossobreopeitoeperambuleiparacáeparalá, tranquilo. Os policiais se deram totalmente por satisfeitos e seprepararamparairembora.Aexultaçãoemmeucoraçãoerafortedemaisparaserreprimida.Euardiapordizernemquefosseumapalavra,atítulodetriunfo,etornarduplamentegarantidasuacertezademinhainocência.“Senhores”, disse eu, en im, quando os homens subiam pela escada,

“alegra-me ter-lhes aplacado as suspeitas. Desejo saúde a todos, e lhesapresento mais uma vez meus respeitos. A propósito, senhores, esta —estaéumacasamuitobemconstruída.” (Emmeu incontroláveldesejodedizer o que quer que fosse com naturalidade, eu mal fazia ideia do quefalava.) — “Devo dizer, uma casa excelentemente bem construída. Estasparedes—jávão,senhores?—estasparedessãoobrasólida”;enisso,noplenofrenesideminhabravata,batifortemente,comabengalaquelevavana mão, exatamente naquela parte da alvenaria atrás da qual jazia ocadáverdeminhaamantíssimaesposa.Mas queira Deus me proteger e livrar das presas do Príncipe das

Trevas! Nem bem a reverberação de minhas batidas mergulhou nosilêncio, fui atendido por uma voz vinda da tumba! — por um gemido,inicialmente abafado e fraco, comode uma criança a soluçar, e depois sedilatandorapidamenteemumgritolongo,elevadoecontínuo,inteiramenteanômaloeinumano—umuivo—umguincholamurioso,metadehorroremetade triunfo, tal como só poderia ter brotado do inferno num esforçocombinadodasgargantasdoscondenadosemsuaagoniaedosdemôniosqueexultamnadanação.Demeus próprios pensamentos é tolice falar. Desfalecendo, cambaleei

para a parede oposta. Por um instante, os policiais na escadapermaneceram imóveis, num paroxismo de terror e perplexidade. Noinstante seguinte, uma dúzia de braços vigorosos avançava contra aparede. Ela veio toda abaixo. O cadáver, já grandemente decomposto ecobertodecrostasdesangue,surgiueretoanteosolhosdospresentes.Emsuacabeça,comabocavermelhaescancaradaeumolhosolitáriodefogo,estavaahediondacriaturacujaastúciamelevaraaoassassinato,ecujavozdelatora me condenara à corda do carrasco. Eu emparedara o monstrodentrodatumba!

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OSFATOSDOCASODOSR.VALDEMAR

Decertonãopretendoconsiderarcomoomenormotivodeadmiraçãoqueo extraordinário caso do sr. Valdemar tenha suscitado debate. Teria sidoummilagredeoutromodo—sobretudo,dadasas circunstâncias.Devidoao desejo de todas as partes envolvidas de manter o episódio longe dopúblico,pelomenosporora,ouatéquetenhamosnovasoportunidadesdeinvestigação—devidoaosnossosesforçosdeempreendê-la—umrelatodeturpado ou exagerado chegou à sociedade e tornou-se fonte deinúmerasdistorçõesdesagradáveise,muitonaturalmente,degrandedosedeincredulidade.Faz-senecessárioagoraqueeuforneçaosfatos—namedidaemqueeu

mesmooscompreenda.São,sucintamente,osseguintes:Minha atenção, nos últimos três anos, tem sido repetidamente atraída

paraaquestãodomesmerismo;e,cercadenovemesesatrás,ocorreu-me,muito subitamente, que na série de experimentos até então efetuados,sucedera uma omissão das mais notáveis e deveras inexplicável: —nenhuma pessoa ainda fora mesmerizada in articulo mortis. Permaneciapor ser veri icado, primeiro, se, em tais condições, existia no pacientealgumasuscetibilidadeà in luênciamagnética; segundo, se, casoexistisse,ela era prejudicada ou ampliada pela condição; terceiro, em quemedida,ou por qual duração de tempo, os avanços daMorte podiam ser detidospelo processo. Havia outros pontos a averiguar, mas esses foram os quemaisexcitaramminhacuriosidade—emespecialesteúltimo,pelocaráterimensamenteimportantedesuasconsequências.Procurandoàminhavoltaalguémporcujointermédioeupudessetestar

essas particularidades, fui levado a pensar em meu amigo, o sr. ErnestValdemar, o conhecido compiladorda BibliothecaForensica e autor (sobonomdeplume de IssacharMarx) das versões polonesas deWallenstein eGargantua.Osr.Valdemar,queresidiaamaiorpartedotemponoHarlem,emNova York, desde o ano de 1839, é (ou era) particularmente notávelpela extrema magreza de sua pessoa — seus membros inferioresparecendomuito comos de JohnRandolph; e, alémdisso, pela alvura desuas suíças, em violento contraste com o negror dos cabelos — estes,consequentemente,sendonomaisdasvezestomadosporumaperuca.Seutemperamento era marcadamente nervoso e fazia dele um bominstrumentoparaoexperimentomesmérico.Emduasoutrêsocasiõeseuopus para dormir com pouca di iculdade, mas iquei desapontado com

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outrosresultadosquesuapeculiarconstituiçãonaturalmenteme levaraaantecipar. Sua vontade não icou em período algum positivamente, ouinteiramente, sobmeucontrolee, comrespeitoasua clarividência, não fuicapazdeexecutarcomelenadaquemefossedignodecon iança.Sempreatribuímeufracassonessesaspectosaoestadodeterioradodesuasaúde.Poralgunsmesesantesqueeuviesseaconhecê-lo,seusmédicosohaviamdiagnosticado com uma tísica crônica. Tinha o costume, de fato, de falarcalmamentesobreseuóbito iminente,comoumassuntoquenãoeraparaserevitadonemlastimado.Quandoasideiasàsquaisaludimeocorreram,nadamaisnaturaléclaro

que me viesse à mente o sr. Valdemar. Eu conhecia a irme iloso ia dohomembemdemais para recear escrúpulosde suaparte; e ele não tinhaparentesnaAméricaquepudessem interferir.Conversamos francamentesobreoassunto;e,paraminhasurpresa,seuinteressepareceuvivamentedespertado. Eu disse, para minha surpresa; pois, embora sempre seprestassedeboavontadeameusexperimentos,nuncaantesmanifestaraomenor sinal de apreciação pelo que eu fazia. Sua doença era de umaespéciequeadmitiriaocálculoexatocomrespeitoàépocadotérminoemmorte;efoi inalmentecombinadoentrenósqueelemandariamechamarcerca de vinte e quatro horas antes do período anunciado por seusmédicoscomosendoodeseupassamento.Faz agora mais de sete meses desde que recebi, do próprio sr.

Valdemar,oseguintebilhete:

MeucaroP——,Pode viragoramesmo. D—— e F—— estão de acordo que não devo

duraralémdeamanhãàmeia-noite;eachoqueacertaramomomentocombastanteprecisão.

Valdemar

Recebiessebilhetecercademeiahoraapóseletersidoescritoe,quinzeminutos depois, encontrava-me no quarto do moribundo. Eu não o viahavia dez dias e iquei consternado com a assustadora alteração que obreve intervalo operara em sua pessoa. Seu rosto exibia um matizplúmbeo;osolhosestavam totalmenteembaciados; eaemaciaçãoera tãoextremaqueapele forarachadapelosossosmalares.Aexpectoraçãoeraexcessiva.Opulso,malperceptível.Conservava,todavia,deummodoassaznotável, tanto as faculdadesmentais como um certo grau de força ísica.

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Falavacomclareza—tomoualgunsmedicamentospaliativossemajuda—e, quando entrei no quarto, ocupava-se de redigir lembretes em umcaderninho de bolso. Recostava na cama em travesseiros. Os doutores D——eF——assistiam-no.Após apertar a mão de Valdemar, chamei esses cavalheiros à parte e

obtivecomelesumrelatominuciosodascondiçõesdopaciente.Opulmãoesquerdoseencontravahaviadezoitomesesemumestadosemiósseooucartilaginoso, e estava, é claro, inteiramente inutilizado para qualquerpropósito vital. O direito, em sua metade superior, também icaraparcialmente, se não por completo, ossi icado, enquanto a região inferiorerameramenteumamassadetubérculospurulentos, interpenetrando-se.Diversascavernasextensashaviamseformado;e,emumponto,ocorreraa adesão permanente às costelas. Essas ocorrências no lobo direito eramde data relativamente recente. A ossi icação avançara com rapidezmuitoinusual; nenhum sinal dela fora detectado um mês antes, e a adesão sófora observada no decorrer dos três dias precedentes.Independentemente da tísica, suspeitavam que o paciente sofresse umaneurisma da aorta; mas nesse ponto os sintomas ósseos tornavam umdiagnóstico exato impossível. Era da opinião dos dois médicos que o sr.Valdemar morreria por volta da meia-noite do dia seguinte (domingo).Eramentãosetehorasdanoitedesábado.Ao se afastar do leito do enfermo para entreter conversa com minha

pessoa, os doutores D—— e F—— haviam feito suas despedidas inais.Não tinham intenção de regressar; mas, a um pedidomeu, concordaramemexaminaropacienteporvoltadasdezhorasdanoiteseguinte.Depoisquepartiram, conversei livremente como sr.Valdemar sobrea

questão de seu óbito iminente, bem como, em maiores particularidades,sobreaexperiênciaproposta.Rea irmou-mequecontinuavadispostoeatéansioso para sua realização e insistiu comigo que começasseimediatamente.Umenfermeiro e uma enfermeira cuidavamdele;mas eunão me sentia inteiramente livre para empreender uma tarefa daquelanaturezasemalgumatestemunhamaiscon iáveldoqueessaspessoas,emcaso de um súbito acidente, poderiam se revelar. Logo, posterguei osprocedimentos para até mais ou menos as oito horas da noite seguinte,quando a chegada de um estudante de medicina com quem eu tinhaalguma familiaridade (o sr. Theodore L——l) aliviou-me de adicionaiscontratempos. Fora minha intenção, originalmente, aguardar pelosmédicos;masfui levadoaprosseguir,primeiro,devidoà insistênciadosr.

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Valdemar e, segundo, devido a minha convicção de que não tinha umminutoaperder,poisquesuacondiçãosedeterioravaaolhosvistos.O sr. L——l teve a gentileza de aceder aomeu desejo de que tomasse

notasdosacontecimentos;eécombaseemseusapontamentosqueoquetenhoarelatarfoi,namaiorparte,condensadooucopiadoverbatim.Faltavamcercadecincominutosparaasoitoquando,tomandoamãodo

paciente,instei-oadeclarar,comamaiorclarezadequefossecapaz,aosr.L——l, se ele (o sr. Valdemar) estava inteiramente de acordo que euconduzisse o experimento de mesmerização com ele em sua presentecondição.Ele respondeu debilmente, embora de forma su icientemente audível,

“Sim,desejosermesmerizado”—acrescentandodeimediato,“Receioqueosenhortenhaadiadodemais”.Enquanto ele assim falava, dei início aos passes que eu já percebera

seremosmaise icientesemsubjugá-lo.Encontrava-seevidentementesobminha in luência ao primeiro toque lateral deminhamão através de suatesta;mas,emboraeuempregassetodososmeuspoderes,nenhumefeitoperceptívelposteriorfoiinduzidosenãoalgunsminutosapósasdezhoras,quando os doutores D—— e F—— chegaram, segundo o combinado.Expliquei-lhes, em poucas palavras, o que planejava fazer, e como nãoofereceramnenhumaobjeção, a irmandoqueopaciente encontrava-se jána agonia da morte, prossegui sem hesitar — mudando, entretanto, ospasses laterais para passes descendentes, e dirigindo meu olharinteiramenteaoolhodireitodoenfermo.Nesse momento, seu pulso era imperceptível e ele estertorava, a

intervalosdemeiominuto.Essacondiçãopermaneceuquaseinalteradaporumquartodehora.Ao

esgotar-se esse período, entretanto, um suspiro natural, ainda quemuitoprofundo,escapoudopeitodopaciente,earespiraçãoestertorosacessou—istoé,seusestertoresnãomaiseramperceptíveis;osintervaloshaviamaumentado.Asextremidadesdopacienteestavamgeladas.Às cinco para as onze, percebi sinais inequívocos da in luência

mesmérica. O movimento vítreo do olho abandonara essa expressão deinquieto exameinterior que nunca é visto exceto em casos desonambulismo e que é um tanto impossível de confundir. Com algunspoucoserápidospasseslaterais, izaspálpebrasestremecerem,comoqueno sono incipiente, e comoutrosmais cerrei-as inteiramente.Nãomedei

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por satisfeito, todavia, com isso, mas continuei as manipulaçõesvigorosamente, e aplicando nelas toda minha força de vontade, até terenrijecido por completo os membros do paciente adormecido, não semantes tê-los acomodado numa posição aparentemente confortável. Aspernas foram deixadas bem esticadas; os braços, um pouco menos,colocadosnacamaaumadistânciamoderadadosquadris.Acabeça icouapenasligeiramenteelevada.Quando completei tudo isso, era meia-noite em ponto, e pedi aos

cavalheiros presentes que examinassem as condições do sr. Valdemar.Após alguns experimentos, admitiram que se encontrava em um estadoextraordinariamenteperfeitodetransemesmérico.Acuriosidadedosdoismédicos icouenormementeexcitada.Odr.D——resolveunamesmahorapermanecer com o paciente durante toda a noite, enquanto o dr. F——partiu com a promessa de voltar ao raiar do dia. O sr. L——l e osenfermeirospermaneceram.Deixamos o sr. Valdemar inteiramente imperturbado até cerca de três

da manhã, quando me aproximei e o encontrei precisamente na mesmacondiçãoqueestavaquandoodr. F——se foi—ou seja, permanecianamesmaposição;opulsoestavaimperceptível;arespiraçãoerasuave(malse podia notar, exceto aproximandoumespelho de seus lábios); os olhoscerravam-se naturalmente; e os membros estavam rígidos e frios comomármore.Mesmoassim,aaparênciageralnãoeraadeummorto.Quando me acerquei do sr. Valdemar iz uma espécie de esforço leve

para in luenciar seu braço direito a acompanhar o meu, conforme eu opassava de um lado para outro acima de seu corpo. Em experimentosassimcomessepacienteeununcamesaíraperfeitamentebemnopassadoedecertotampoucomeocorriaquepudesseserbem-sucedidoagora;mas,para minha perplexidade, seu braço muito prontamente, ainda quedebilmente, acompanhou cada direção que designei com o meu próprio.Decidiarriscaralgumaspalavrasdeconversa.“SenhorValdemar”,eudisse, “estádormindo?”Elenãorespondeu,mas

percebi um tremor perto dos lábios, e fui assim levado a repetir apergunta, uma vez depoismais outra.Nessa terceira tentativa, seu corpotodofoiagitadoporumtremormuitoligeiro;aspálpebrassedescerraramo su iciente para expor uma linha branca do globo ocular; os lábios semoverammorosamente e, domeio deles, num sussurro quase inaudível,vieramaspalavras:“Sim;—adormecido,agora.Nãomeacorde!—Deixe-memorrerassim!”

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Nessemomentoapalpeiseusmembroseviquecontinuavamtãorígidoscomoantes.Obraçodireito,novamente,obedeceuadireçãodeminhamão.Questioneionoctâmbulomaisumavez:“Aindasentedoresnopeito,senhorValdemar?”Arespostaagorafoiimediata,masaindamenosaudívelqueantes:“Semdor—estoumorrendo.”Julguei não ser aconselhável perturbá-lo ainda mais naquele ponto, e

nadamais foiditoou feito até a chegadadodr. F——,que chegoupoucoantesdonascerdosol,eexpressouumaperplexidadesemlimitesemverqueopacientecontinuavacomvida.Apóstomarseupulsoeaplicar-lheumespelhoaoslábios,requisitou-mequefalassecomonoctâmbulooutravez.Assimofiz,dizendo:“SenhorValdemar,continuadormindo?”Comoantes, algunsminutos transcorreramatéqueumaresposta fosse

pronunciada;eduranteointervaloomoribundopareciajuntarforçasparafalar. Nomomento em que eu repetia a pergunta pela quarta vez, disse,muitodebilmente,demodoquaseinaudível:“Sim;aindadormindo—morrendo.”Eraagoraaopinião,ouantesodesejo,dosmédicosqueaosr.Valdemar

fosse concedido permanecer imperturbado em sua condição presenteaparentemente tranquila, até que a morte lhe adviesse — e isso, era oconsenso geral, devia ter lugar dali a poucosminutos. Decidi, entretanto,dirigir-lhe a palavra uma vez mais, e meramente repeti minha perguntaanterior.Enquanto eu falava, uma visível mudança se operou na isionomia do

noctâmbulo. Os olhos giraram e se abriram vagarosamente, as pupilasocultas no alto; a pele como um todo assumiu um matiz cadavérico,parecendo-se menos com pergaminho do que com papel branco; e asmanchascircularesdahécticaqueatéentãosefaziamnotardistintamenteno centro de cada bochechasumiram de repente. Uso essa expressãoporqueasubitaneidadecomqueseforamtrouxe-meàmentenadamenosque uma vela sendo apagada por um sopro de ar. O lábio superior, aomesmotempo,encolheu-seeexpôsosdentes,quandoantesoscobriaporinteiro; ao passo que o maxilar inferior caiu com um audível tranco,deixando a boca amplamente aberta, e exibindo por inteiro a línguainchada e enegrecida. Presumo que nenhummembro do grupo presentena ocasião estivesse desacostumado aos horrores de um leito de morte;

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mastãohediondaalémdequalquernoçãoeraaaparênciadosr.Valdemarnessemomentoqueocorreuumrecuogeraldasimediaçõesdacama.Sintoagoraquechegoaumpontodestanarrativaemqueochoquefará

comquetodoleitorsemostrepositivamentedescrente.Éminhaobrigação,entretanto,simplesmentecontinuar.Já não havia omais leve sinal vital no sr. Valdemar; e, concluindo que

estavamorto, ocupávamo-nos em con iá-lo aos cuidados dos enfermeirosquandoumfortemovimentovibratóriosefezobservaremsualíngua.Issoprosseguiu por cerca de umminuto. Ao expirar esse período, domaxilardistendido e imóvel brotou uma voz — e uma tal que seria loucura deminha parte tentar descrever. Existem, na verdade, dois ou três epítetosque se poderiam considerar aplicáveis aqui, em parte; posso dizer, porexemplo,queosomfoiáspero,alquebradoesepulcral;mas,comoumtodo,foiindescritível,pelosimplesmotivodequenenhumsomtãoterrivelmentesimilar jamais vibrou no ouvido humano. Houve duas particularidades,todavia, que na ocasião achei, e continuo a achar, podem serinequivocamenteapontadascomocaracterísticasdaentonação—alémdemuito aptas a transmitir certa ideia de peculiaridade sobrenatural. Emprimeiro lugar,avozpareciachegaraosouvidos—pelomenosaosmeus—deumavastadistância,oudealgumaprofundacavernano interiordaterra.Emsegundolugar,ocasionou-meumaimpressão(temo,defato,queme será impossível fazer compreender) semelhante à que materiaisgelatinososouglutinososcausamaosentidodotato.Falei tanto de “som” como de “voz”. Quero dizer que o som foi

pronunciado com extrema nitidez — com extraordinária, penetrante,nitidez—,sílabaasílaba.Osr.Valdemar falou—obviamenteemrespostaà pergunta que eu lhe apresentara alguns minutos antes. Eu haviaperguntado,émisterlembrar,secontinuavadormindo.Eleagoradizia:“Sim;—não;—euestavadormindo—eagora—agora—estoumorto.”Nenhum dos presentes sequer teve pretensão de negar, ou de tentar

reprimir, o calafrio de horror inexprimível que essas poucas palavras,assim pronunciadas, tão previsivelmente provocaram. O sr. L——l (oestudante)desmaiou.Osenfermeirosdeixaramoquarto imediatamenteenão houve como convencê-los a voltar. Quanto a minhas própriasimpressões,abstenho-medetentartorná-las inteligíveisao leitor.Durantequase uma hora, ocupamo-nos, em silêncio — sem que ninguémpronunciasse uma única palavra—, dos procedimentos para reanimar osr.L——l.Quandoelevoltouasi,tornamosanosconcentrareminvestigar

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acondiçãodosr.Valdemar.Ela continuava em todos os aspectos comodescrevi da última vez, com

exceção de que o espelho não mais fornecia evidência de alento. Umatentativadecolhersanguedobraçofracassou.Devomencionar,ainda,queessemembronãomais seencontrava submetidoàminhavontade.Tenteiem vão fazer comque seguisse a direção demi-nhamão.O único indícioreal,defato,dain luênciamesmérica,eraagoraencontradonomovimentovibratório da língua, sempre que eu endereçava alguma pergunta ao sr.Valdemar.Eleparecia esforçar-separa responder,mas jánãohaviamaisvoliçãosu iciente.Aperguntasaeleapresentadasporqualqueroutroquenão eu mesmo parecia inteiramente insensível — embora eu meempenhasseemdeixarcadamembrodaequipeemcomunhãomesméricacomele.Acreditoquea essa altura já relatei todoonecessárioparaumacompreensão do estado do noctâmbulo nesse momento. Outrosenfermeiros foramchamados; e àsdezhorasdeixei a casana companhiadosdoismédicosedosr.L——l.No período da tarde, voltamos todos para visitar o paciente. Sua

condição permanecia precisamente a mesma. Travamos então umadiscussãoacercadapropriedadeouexequibilidadedeacordá-lo;masnãonosfoidi ícilconcordarquenenhumpropósitobené icoadviriadefazê-lo.Estava evidente que, no momento, a morte (ou o que normalmentechamamos demorte) fora detida pelo procedimentomesmérico. Parecia-nos indubitável que despertar o sr. Valdemar signi icaria meramenteassegurarseuinstantâneo,oupelomenosacelerado,óbito.Desde esse período até o encerramento da semana passada —um

intervalodequase setemeses —continuamosa fazervisitasdiáriasàcasado sr. Valdemar, acompanhados, vez por outra, de médicos e algunsamigos.Todoessetempoonoctâmbulopermaneceuexatamentecomoeuodescreveradaúltimavez.Ocuidadodosenfermeiroseracontínuo.Foi na sexta-feira passada que inalmente resolvemos fazer o

experimento de despertá-lo, ou de tentar despertá-lo; e é (talvez) oresultado infeliz desse último experimento que tem ensejado tantadiscussãoemcírculosprivados—grandepartedaqualnãoconsigodeixardejulgarcomosendodeumainclinaçãopopularinjustificável.Como intuito de tirar o sr. Valdemardo transemesmérico, iz uso dos

costumeiros passes. Os quais, por algum tempo, não surtiram efeito. Oprimeiro indício de revivescência foi proporcionado por uma descidaparcial da íris. Observou-se como uma particularidade notável o fato de

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queodeclíniodapupilasefezacompanhardaprofusaefusãodeumalinfaamarelada (originada sob as pálpebras) dotada de um odor pungente esumamenterepulsivo.Era agora sugerido que eu tentasse in luenciar o braço do paciente,

comodantes.Fizumatentativae fracassei.Odr.F——entãoexpressouodesejodequeeulhefizesseumapergunta.Procedicomosegue:“SenhorValdemar, podenos explicar oque está sentindoouquerendo

nessemomento?”Houveumressurgimento imediatodoscírculoshécticosnasbochechas;

a língua estremeceu, ou antes rolou violentamente na boca (embora osmaxilares e os lábios permanecessem tão rígidos quanto antes) einalmente amesmavozhediondaque já tive oportunidadededescreverproferiu:“PeloamordeDeus!—rápido!—rápido!—ponha-meparadormir—

ou,rápido!—acorde-me!—rápido!—afirmoqueestoumorto!”Fiqueiprofundamenteperturbadoeporuminstantepermaneciindeciso

quantoaoque fazer.No início,empreendiuma tentativade tranquilizaropaciente;mas,fracassandonessepropósitoportotalsuspensãodavolição,volteiatrásemeempenheicomigualconcentraçãoemdespertá-lo.Nessatentativa logo vi que seria bem-sucedido— ou pelomenos logo imagineiquemeuêxitoseriacompleto—eestoucertodequetodosnaquelequartoestavampreparadosparaveropacientevoltandoasi.Para o que realmente ocorreu, entretanto, é absolutamente impossível

quealgumserhumanopudesseestarpreparado.

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Conformeeu rapidamente executavaospassesmesméricos, emmeio aexclamaçõesde“morto!morto!”de initivamenteprorrompendodalínguae

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não dos lábios do enfermo, seu corpo todo subitamente— no espaço deumúnicominuto,ouaindamenosqueisso,encolheu—desintegrou-se—sedecompôs por completo sobminhasmãos. Em cimada cama, diante detoda a equipe, nada mais havia que uma massa quase líquida de umaasquerosa—detestável—podridão.

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OCORAÇÃODENUNCIADOR10

Comefeito!—nervoso—tenhoandadoterrivelmentenervoso,andocomos nervos à lor da pele;mas por queinsistis que estou louco? A doençaintensi icou meus sentidos— não os destruiu— tampouco os embotou.Acimadetudo,aguçouosentidodaaudição.Escuteitodasascoisasnocéue na terra. Escutei muitas coisas no inferno. Como, então, posso estarlouco?Sedetodoouvidos!eobservaicomquesensatez—comquecalmasoucapazdecontarahistóriatoda.É impossíveldizeremquemomentoa ideiapenetrouemmeucérebro;

porém, uma vez concebida, perseguiu-media e noite.Objetivo, não havia.Furor, não havia. Eu gostava do velho. Nunca me izera mal. Nunca meofendera. De seu ouro nunca tive desejo algum. Acho que era seu olho!sim, era isso!Umde seusolhospareciaodeumabutre—umolhoazul-claro, velado pela catarata. Sempre que pousava sobremim,meu sanguegelava;eassim,poucoapouco—muitogradualmente—,tomeiadecisãode tirar a vida do velho, e desse modo me livrar daquele olhar parasempre.Ora,eisoproblema.Imaginaisqueestoulouco.Loucosnadasabem.Mas

deveríeistermevisto.Deveríeistervistoquãosabiamenteprocedi—comquecautela—comqueprecaução—comquedissimulaçãoempenhei-menatarefa!Nuncafuitãobondosocomovelhoquantonasemanatodaqueantecedeu seu assassinato. E toda noite, perto dameia-noite, eu girava otrinco da porta de seu quarto e a abria—ah, tão suavemente! E depois,após ter aberto uma fresta su iciente paraminha cabeça, introduzia porelaumalanternaescurecida,todafechada,fechada,demodoquenenhumaluz dali irradiasse, e então en iava a cabeça. Ah, teríeis rido em ver comqueastúciaeuaen iava!Euamoviadevagar—muito,muitodevagar,demodoquenãoperturbasseosonodovelho.Levavaumahoraparainserirminhacabeçainteiradentrodaaberturaatéumpontoemqueconseguisseenxergá-lodeitadoemsuacama.Há!—umloucoteriamostradotamanhodiscernimento? E depois, quandominha cabeça estava dentro do quarto,euabriaatampadalanternacautelosamente—ah,tãocautelosamente—cautelosamente (pois as dobradiças rangiam) — eu a abria o su icienteapenasparaqueumúnicofachoestreitopousassesobreoolhovulturino.E assim procedi por sete longas noites— toda noite, por volta da meia-noite—,masencontravaoolhosemprefechado;eeraimpossívelexecutarotrabalho;poisnãoeraovelhoquemeperturbava,masseuMau-Olhado.

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E toda manhã, quando o dia raiava, eu entrava audaciosamente em seuaposento, e falava corajosamente comele, chamando-opelonomeemumtomamistoso,elheperguntandocomopassaraanoite.Demodoqueporaíjá vedes como ele precisaria ser um velho bem perspicaz, deveras, parasuspeitar que toda noite, exatamente à meia-noite, eu o observavaenquantodormia.Quando chegou a oitava noite tomei uma precaução mais do que

costumeira ao abrir a porta. O ponteiro dosminutos emum relógio seriamaisrápidodoqueminhamão.Nuncaantesdaquelanoiteeusentiratodaa extensão de minhas capacidades — de minha sagacidade. Eu malconseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que lá estava eu,abrindo aporta, depouco empouco, e que ele nem sequer sonhava commeusatosoupensamentossecretos.Chegueiatéarircomaideia;epodeserquehouvessemeescutado;poismoveu-seno leitosubitamente, comoque assustado. Ora, pensaríeis talvez que recuei—mas não. Seu quartoestava escuro como breu nas trevas espessas (pois as folhas das janelasicavambem fechadas, pormedode ladrões), demodo que eu sabia queeraincapazdeenxergarovãodaporta,econtinueiaempurrá-la,maisumpouco,maisumpouco.Eujáen iaratodaacabeça,eestavaprestesaabrira lanterna,quando

meu polegar escorregou no ferrolho e o velho se aprumou na cama,gritando—“Quemestáaí?”Permaneci imóvelesemnadadizer.Porumahora inteiranãomexium

músculoenessemeio-temponãooouvivoltara sedeitar.Ele continuavasentadonacama,escutandoatentamente;—exatamentecomoeu icavaafazer, noite após noite, de ouvidos esticados para os relógios da mortedentrodasparedes.11

Em seguida escutei um ligeiro gemido, e soube que era o gemido doterrormortal.Nãoeraumgemidodedoroudepesar—oh,não!—,eraosombaixoeabafadoqueseerguedofundodaalmaquandooprimidapelomedo. Eu conhecia o som muito bem. Inúmeras noites, à meia-noite,quando o mundo inteiro dormia, ele brotara das profundezas de meupróprio peito, intensi icando, com seu pavoroso eco, os terrores que mea ligiam. Digo que o conhecia bem. Eu conhecia o sentimento queinquietavaovelho,emeapiedeidohomem,emboraemmeu íntimorisse.Sabia que ele estava acordado desde o primeiro leve ruído, quando sevirara na cama. Seus medos haviam a partir desse momento crescidodentro dele. Estivera tentando imaginá-los sem fundamento, mas fora

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incapaz. Estivera dizendo a simesmo— “Não é nada, apenas o vento nachaminé—apenasumcamundongocorrendopelosoalho”ou“foisomenteum grilo que cantou uma única vez”. Sim, ele estivera tentando setranquilizar comessas suposições:masdescobriraque fora tudo emvão.Tudo em vão; porque aMorte, ao dele se aproximar, acossara-o com suasombranegra,eselançarasobreavítima,envolvendo-a.Efoiain luênciafúnebredasombradespercebidaqueolevouasentir—emborasemnadaverouescutar—asentirapresençademinhacabeçadentrodoquarto.Depoisdeteresperadoporumlongotempo,muitopacientemente,sem

ouvi-losedeitar,resolviabrirumapequena—muitopequena,minúscula—frestana lanterna.Dessemodoaabri—sereis incapazesde imaginarquão furtivamente, furtivamente — até que, inalmente, um único fachotênuecomoum ilamentodeteiabrilhouatravésdafendaepousousobreoolhovulturino.O olho estava aberto — aberto, arregalado — e senti a fúria crescer

dentro demim ao itá-lo. Enxerguei-o comperfeita nitidez— todo ele deumazuldesbotado,comumvéuhediondoacobri-loquegeloumeusossosaté amedula;masnadamais podia eu enxergardo rostodo velho oudesuapessoa:poisdirigiraofachocomoqueporinstintoprecisamentesobreopontomaldito.Ora, mas já não vos expliquei que o que tomais equivocadamente por

loucura não é senão acuidade dos sentidos? — pois agora, digo mais,chegava aos meus ouvidos um som baixo e surdo, como o que faz umrelógio envolto em algodão.Esse som, eu também o conhecia bem. Era obatimento do coração do velho. Isso aumentou minha fúria, como asbatidasdotamborqueestimulamacoragemdosoldado.Mas mesmo então me refreei e permaneci imóvel. Mal respirava.

Seguravaalanternasemummovimento.Tentavamanteromais ixamentepossível a réstia sobre o olho. Nesse ínterim o infernal tamborilar docoraçãoaumentava.Foi icandomaisrápido,maisrápido,emaisalto,maisaltoacadainstante.Oterrordovelhodeviaserextremo!Ficavamaisalto,edigomais, icavamais alto a cadamomento!—prestais bastante atençãoemminhas palavras? Já vos expliquei como sou nervoso: sou, de fato. Eagora, na calada da noite, em meio ao pavoroso silêncio daquela antigacasa, um ruído assim tão estranho enervou-me ao ponto de um terrorincontrolável.Econtudo,pormaisalgunsminutos,refreei-meepermaneciimóvel. Mas o batimento icavamais alto, mais alto! Achei que o coraçãofosse explodir. E entãoumanova angústia tomou contademim—o som

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alcançariaosouvidosdealgumvizinho!Ahoradovelhochegara!Comumpoderoso urro, abri a lanterna completamente e pulei no quarto. Ele deuum grito — apenas um. Numa fração de segundo arrastei-o ao chão epuxeiapesadacamasobreele.Entãosorrialegremente,vendoa façanhaaté ali cumprida.Mas, por váriosminutos, o coração seguiu batendo comum som abafado. Isso, entretanto, nãome perturbou; não seria escutadoatravésdaparede.Een imcessou.Ovelhoestavamorto.Removiacamaeexamineiocadáver.Sim,eleestavamorto,mortocomoumapedra.Pouseia mão sobre o coração e a mantive ali por vários minutos. Não haviapulsação. Ele estava morto como uma pedra. Seu olho não mais meincomodaria.Se continuais a me reputar louco, não mais o ireis fazê-lo quando

descreverasavisadasprecauçõesquetomeiparaocultarocorpo.Anoiteavançava e trabalhei com presteza,mas em silêncio. Antes demais nadadesmembreiocadáver.Decepei-lheacabeça,osbraçoseaspernas.Em seguida removi três tábuasdo soalhodo aposento e depositei tudo

emmeio aos caibros. Depois recoloquei as pranchas com tal perícia, comtalastúcia,quenenhumolhohumano—nemmesmoodele—poderiaterdetectado alguma coisa errada. Nada icou por ser lavado — nenhumamancha de espécie alguma — nenhum respingo de sangue. Eu foraextremamentecautelosoquantoaisso.Umatinarecolheratudo—rá!Rá!

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Após ter dado cabo de todas essas tarefas, eram quatro damanhã—aindaescurocomoameia-noite.Quandoosinobadalouahora,umabatida

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sefezouvirnaportadarua.Desciparaatendercomocoraçãoleve—poisoquetinhaeuagoraatemer?Trêshomensentraram,eseapresentaram,com perfeita polidez, como agentes de polícia. Um grito ouvido por umvizinhoduranteanoite; isso levantaraasuspeitadealgumcrime;alguémderaqueixanadelegaciaeeles (ospoliciais)haviamsidomandadosparadarumabuscanacasa.Sorri—poisoquetinhaeuatemer?Deiasboas-vindasaoscavalheiros.

O grito, expliquei, foraproferidopormimmesmo, emum sonho.O velho,acrescentei,seachavaausente,nointerior.Leveimeusvisitantesportodaa casa. Convidei-os a investigar — investigarbem. Conduzi-os, en im, aoquartodele.Mostrei-lhessuaspossesvaliosas,emsegurança,intocadas.Noentusiasmo de minha con iança, trouxe cadeiras para o quarto, e insistique icassemalidescansandodesuafaina,enquantodeminhaparte,coma irrefreável audácia de meu triunfo perfeito, punha minha própriacadeiraexatamentesobreopontosoboqualrepousavaocorpodavítima.Os policiais se deram por satisfeitos. Minhaconduta os convencera. Eu

estava singularmente à vontade. Sentaram e, enquanto eu respondiaanimadamente, conversaram sobre coisas familiares. Porém, em poucotempo,sentiqueempalideciaedesejeiquepartissem.Minhacabeçadoíaeera como se um sino repicasse emmeus ouvidos:mas eles continuavamsentados, conversando. O sino tornou-se mais distinto: — continuou, etornou-se mais distinto: falei commaior desembaraço para me livrar dasensação: mas ela continuou, e ganhou materialidade — até que,finalmente,descobriqueoruídonãoestavadentrodemeusouvidos.Sem dúvida eu agora icavamuito pálido; — mas falava com maior

luência, e elevandoavoz.Contudo,o somaumentou—eoquepodiaeufazer? Era umsombaixo, abafado, acelerado—muitoparecido como somqueumrelógiofazquandoenvoltoemalgodão .Fiqueisemar—econtudoospoliciaisnadaouviam.Faleicommaiorrapidez—commaiorveemência;maso ruídoaumentava e aumentava. Fiqueidepé ediscuti trivialidades,em um tom esganiçado e gesticulando violentamente; mas o ruídoaumentavaeaumentava.Porqueelesnãoiamembora?Andeipeloquartodeumladoaooutrocompesadaspassadas,comoqueenervadoatéafúriasoboescrutíniodoshomens—masoruídoaumentavaeaumentava.Oh,Deus!oquepodiaeufazer?Espumei—meencolerizei—praguejei!Gireiacadeirasobreaqualestiverasentado,earrastei-asobreastábuas,masoruídoseelevavaacimadetudoecontinuavaaaumentar.Ficoumaisalto—maisalto—maisalto!Emesmoassimoshomenscontinuavamaconversar

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afavelmente,esorriam.Erapossívelquenãoestivessemescutando?DeusTodo-Poderoso!—não,não!Elesescutavam!—elessuspeitavam!—elessabiam!—estavamescarnecendodemeuhorror!—issofoioquepenseientão,e issoéoquepensoagora.Masqualquercoisaeramelhordoqueaquelaagonia!Qualquercoisaeramaistoleráveldoqueaquelazombaria!Eunãopodiasuportaraquelessorrisosdehipocrisiapormaistempo!Sentique tinha de gritar oumorrer!— e então—outra vez!— escutai!maisalto!maisalto!maisalto!maisalto!—“Patifes!”, urrei, “basta de dissimulações!Admito o que iz!—arrancai

astábuas!—aqui,aqui!—éobatimentodeseuodiosocoração!”

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UMADESCIDANOMAELSTRÖM

OscaminhosdeDeusnaNatureza,assimcomonaProvidência,nãosãoosnossoscaminhos;tampoucoosmodelos

queconcebemossãodealgummodocomparáveisàvastidão,profundezaeinescrutabilidadede

Suasobras,quecontêmemsiumaprofundidademaiordoqueopoçodeDemócrito.

JosephGlanvill

Havíamos agora atingido o cume do mais elevado rochedo. Por algunsminutos,ovelhopareceuexaustodemaisparafalar.“Não faz muito tempo”, disse, inalmente, “eu o teria guiado por esta

trilha tão bem quanto o mais novo dos meus ilhos; cerca de três anosatrás,porém,ocorreu-meumacontecimentotalcomojamaisocorreuantesa nenhum mortal — ou, pelo menos, tal como homem algum jamaissobreviveuparacontararespeito—easseishorasdeabsolutoterrorqueentãosuporteialquebraram-meocorpoeaalma.Osenhormesupõeumhomemmuitovelho—masnãosou.Não levoumaisdoqueumúnicodiapara fazer esses cabelos cor de azeviche icarem brancos, paraenfraquecermeusmembros e exaurirmeus nervos, demodo que tremocomomais leveesforço,e tenhomedoatédeumasombra.Sabequemalpossoolharporessepequenodespenhadeirosemsentirvertigem?”O “pequeno despenhadeiro”, em cuja borda ele se deixara cair tão

negligentemente para descansar que a parte mais pesada de seu corpoicou pendente por ela, ao passo que a única coisa que o impedia dedespencareraocotoveloapoiadonessabordaextremaeescorregadia—esse “pequeno despenhadeiro” erguia-se, um precipício perpendicular edesobstruídoderochanegrareluzente,cercadequinhentosmetrosacimadomundoderochedosabaixodenós.Nadapoderiamepersuadira icarameiadúziademetrosde suabeirada.Naverdade, tãoprofundoerameunervosismocomaperigosaposiçãodemeucompanheiroquemelanceidecorpo inteiro no chão, agarrei os arbustos em torno e não ousei sequererguer os olhos para o céu— aomesmo tempo que lutava em vão paraafugentaraideiadequeosprópriosalicercesdamontanhacorriamperigocom a fúria dos ventos. Um longo tempo transcorreu até que eu meacalmasseereunissecoragemsuficienteparasentareolharaolonge.

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“Osenhordevedominaressesmelindres”,disseoguia,“poiseuotrouxeatéaquiparaquepudesse teramelhorvistapossíveldocenárioemqueocorreuoeventoaoqualaludi—epara lhecontarahistória todacomolocalbemdiantedosseusolhos.”“Esse ponto onde nos achamos”, continuou, naquele estilo escrupuloso

que o caracterizava — “esse ponto onde nos achamos ica na costanorueguesa—asessentaeoitograusde latitude—nagrandeprovínciade Nordland— no austero distrito de Lofoden. A montanha no topo daqual estamos é Helseggen, a Nublada. Agora procure se erguermais umpouco—segure-senocapim,sesentirvertigem—assim—eolheparalá,depoisdessafaixadenévoaabaixodenós,paraomar.”Olhei, a cabeça girando, e contemplei uma vasta extensão de oceano,

cujaságuasexibiamummatiz tãopróximoaodonanquimquenamesmahora veio-me à mente o relato do geógrafo núbio sobre o MareTenebrarum. Um panorama mais deploravelmente desolador imaginaçãohumana alguma pode conceber. À direita e à esquerda, até onde o olharalcançava,comosefossemosbaluartesdomundo,estendiam-se ileirasdedespenhadeiros horrivelmente negros e salientes, cujo aspecto sombrioeraaindamaisreforçadopelaarrebentaçãoqueestouravacontraelescomsuacristadeespumabrancaeespectral,ululandoeclamandopor todaaeternidade.Bemàfrentedopromontórioemcujoápicenossituávamos,eauma distância de aproximadamente dez quilômetros através do mar,podia-sedivisarumailhotadeaparênciaestéril;ou,maisadequadamente,suaposiçãoeradiscernívelemmeioàvastidãodeondasqueacircundava.Cercadetrêsquilômetrosmaispertodaterraavistava-seoutrademenortamanho,horrivelmentepedregosaeárida,ecingidaaintervalosvariadosporamontoadosderochasnegras.Oaspectodooceano,noespaçoentreailhamaisdistanteeacosta,tinha

qualquercoisademuitoincomum.Embora,nessemomento,umaventaniatão forte soprasse na direção da terra que um remoto brigue muito aolargovelejasseàcapacomalatinadecaranguejaduplamenterizada,eseucasco todo arfasse constantemente, sumindo de vista, ainda assim nãohavia nada como uma elevação regular das ondas, mas apenas umaturbulenta agitação geral das águas, curta, rápida, furiosa, em todas asdireções—tantoafavorcomocontraovento.Espumaquasenãohavia,anãosernaimediatavizinhançadasrochas.“A ilhamaisdistante”, retomouo velho, “é chamadapelosnoruegueses

deVurrgh.AquelaamédiadistânciaéMoskoe.Aquelaoutraumamilhaao

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norte é Ambaaren. Acolá estão I lesen, Hoeyholm, Kieldholm, Suarven eBuckholm. Mais além — entre Moskoe e Vurrgh — estão Otterholm,Flimen, Sand lesen e Skarholm. Esses são os verdadeiros nomes doslugares—masporqueseachouporbemnomearelas todas, issoémaisdoqueeuouosenhorpodemoscompreender.Estáescutandoalgo?Notoualgumaalteraçãonaágua?”Havia agora cerca de dez minutos que nos achávamos no topo do

Helseggen,aoqualhavíamossubidopelointeriordeLofoden,demodoquenão captáramosnenhumvislumbredomaratéqueeste sedescortinasseamplamente diante de nós ali do cume. Conforme o velho falava, dei-meconta de um ruído alto e cada vez mais forte, como o estrondo de umavastamanada de bisões na pradaria americana; e nesse preciso instantepercebi que o que os marujos caracterizam como um mar encrespado,abaixo de nós,mudava rapidamente para uma corrente na direção leste.Mesmo enquanto eu a contemplava, essa corrente ganhou monstruosavelocidade.Cadamomentopassadocontribuíaparasuaaceleração—suaimpetuosidadeselvagem.Emcincominutosooceanotodo,atéalongínquaVurrgh,eraaçoitadoporumaincontrolávelfúria;maseraentreMoskoeeacostaqueaprincipalturbulênciatinhalugar.Ali,ovastomantooceânico,riscado e rasgado em uma in inidade de canais con litantes, irrompeusubitamente numa convulsão frenética — arquejando, espumando,sibilando—,revolvendoemvórticesgigantescoseinumeráveis,etodoeleturbilhonando e arfando rumo leste com uma rapidez que a água nuncaassumeempartealgumaanãosernasquedasvertiginosas.Empoucosminutosmais,deu-senopanoramaoutraradicalalteração.A

super ície geral icou um pouco mais lisa, e os redemoinhos, um a um,desapareceram, enquanto prodigiosas faixas de espuma tornaram-sevisíveis onde antes não havia nenhuma. Essas faixas, depois de algumtempo,esparramando-seporgrandedistância,eentrandoemcombinação,tomaram para si o movimento giratório dos vórtices aplacados, epareceram formar o germe de outro mais vasto. Subitamente — muitosubitamente—aquilo assumiuumaexistênciadistinta e de inida, emumcírculodequaseumquilômetrodediâmetro.Abordadoredemoinhoerarepresentadaporumamplocinturãodeespumacintilante;masnenhumagotícula disso deslizava pela boca do funil terri icante, cujo interior, atéonde o olho podia penetrar, era um paredão liso, brilhante e cor deazeviche,inclinadoparaohorizonteemumângulodecercadequarentaecinco graus, acelerando vertiginosamente, girando e girando, com um

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movimentooscilanteeopressivo,elançandoaosventosumavozmacabra,metadeguincho,metaderugido,talcomonemmesmoapoderosacataratadoNiágaraemsuaagoniajamaiselevouaoCéu.A própria base da montanha tremia, e a rocha vibrava. Joguei-me de

bruçosnochãoeagarreiaervaralanumexcessodeagitaçãonervosa.“Isso”,disseeuen imaovelho—“issonãopodeseroutracoisaquenão

ograndeturbilhãodoMaelström.”“Assim ele é por vezes chamado”, disse ele. “Nós, noruegueses, o

chamamosMoskoe-ström,porcausadailhadeMoskoe,alinomeio.”Osusuaisrelatossobreessevórticenãomeprepararamdemodoalgum

para o que vi. O de Jonas Ramus, que é talvez omais pormenorizado detodos, é incapaz de comunicar a mais tênue ideia seja da magni icência,seja do horror da cena— ou da desconcertante e fantástica sensaçãodenovidade que confundequema contempla.Nãoestoubemcerto sobredequalpontodevistaoautoremquestãooobservou,nemdaépoca;masnãopodetersidonemdopicodoHelseggen,nemduranteumatempestade.Háalgumas passagens de sua descrição, todavia, que talvez mereçam sercitadaspor seusdetalhes, embora seu efeito seja sumamente insu icienteparatransmitirumaimpressãodoespetáculo.“Entre Lofoden e Moskoe”, diz ele, “a profundidade da água varia de

trinta e seis a quarenta braças;12 mas do outro lado, na direção do Ver(Vurrgh),essaprofundidadediminuiapontodenãopermitirapassagemconvenientedeumaembarcaçãosemoriscodeespatifar-senasrochas,oque ocorre até no tempo mais ameno. Quando a maré está alta, acorrenteza lui na direção da terra entre Lofoden e Moskoe comtumultuosa rapidez; mas o rugido de seu re luxo impetuoso para o mardi icilmente será igualado pela mais ruidosa e pavorosa das cataratas; obarulho é ouvido a diversas léguas de distância, e os vórtices ousorvedouros são de tal extensão e profundidade que se umnavio cai emsuaatração,éinevitavelmenteabsorvidoearrastadoparaofundo,eentãofeito em pedaços contra as rochas; e quando as águas se aplacam, seusdestroços são lançados de volta à tona. Mas esses intervalos detranquilidade dão-se apenas namudança entre a vazante e a preamar, ecom tempo calmo, e não duram mais que um quarto de hora, com suaviolênciavoltandogradualmente.Quandoacorrentezaémais tumultuosa,e sua fúriaéampliadaporuma tempestade, éperigosoacercar-seaumamilhanorueguesadela.Botes,iatesenaviosjáforamarrastadospornãoseresguardarem dela antes de cair dentro de seu alcance. Similarmente,

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acontece com frequência de baleias aproximaram-se demasiado dacorrenteza, e serem subjugadas por sua violência; e então é impossíveldescrever seus bramidos e chamados em sua luta infrutífera para selibertar. Certa vez, umurso, tentandonadarde LofodenparaMoskoe, foipegopelacorrentezaearrastadoparaofundo,urrandoterrivelmente,demodoaserescutadodapraia.Enormes torasdeabetosepinheiros,apósterem sido engolidas pela corrente, voltam à tona fragmentadas eesmigalhadasemtalgrauqueécomosenelashouvessemcrescidocerdas.Issomostraclaramentequeofundoconsistederochaspontiagudas,contraas quais elas são atiradas de um lado para outro. Essa correnteza éregulada pelo luxo e re luxo do mar — com a maré alternandoregularmente entre alta e baixa a cada seis horas. No ano de 1645, nodomingo da Sexagésima, demanhã bem cedo, ela explodiu furiosamentecom tal ruído e impetuosidade que até as pedras das casas no litoraltombaramaosolo.”Emrespeitoàprofundidadedaágua,nãopudecompreendercomoisso

poderia possivelmente ter sido avaliado na proximidade imediata dovórtice. As “quarenta braças” deviam se referir apenas a partes do tubonas imediações da praia, tanto de Moskoe como de Lofoden. Aprofundidadeno centrodoMoskoe-strömdeve ser incomensuravelmentemaior;enenhumacomprovaçãomelhordesse fatose faznecessáriaalémdaquepodeserobtidacomumrelancemesmodesoslaioparao interiordoabismodo turbilhão,queépossível colherdopenedomaiselevadodoHelseggen. Olhando do topo daquele pináculo para o FlegetontevociferantealiembaixonãopudedeixardesorrirparaasimplicidadecomqueohonestoJonasRamusregistra,comocoisadi ícildesedarcrédito,osincidentes das baleias e dos ursos; pois amimme pareceu, de fato, umaverdadeinquestionávelqueatémesmoomaiornaviodelinhaatualmenteexistente, caindo sob a in luência daquela mortífera atração, poderiaresistir tanto quanto uma pluma ao furacão, devendo desaparecercompletamentenomesmoinstante.As tentativas de explicar o fenômeno — algumas das quais, assim

recordo,pareciam-mesu icientementeplausíveisaumexamemaisdetido— agora assumiam um caráter muito diverso e insatisfatório. A ideiageralmente admitida é de que, como os três vórtices menores entre asilhas Faroe, este “não tem outra causa além da colisão de ondas seerguendoeestourando,no luxoenore luxo,contraumbancoderochasesaliências,con inandoaáguademodoqueseprecipitecomoumacatarata;

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eassim,quantomaiselevadaamaré,maisprofundaaqueda,eoresultadonatural de tudo isso é um turbilhão ou vórtice, cuja poderosa sucção ésu icientementeconhecidamedianteexperimentosmenores”.—EssassãoaspalavrasdaEncyclopædiaBritannica.KirchereoutrosimaginamquenocentrodotubodoMaelströmhajaumabismopenetrandoogloboedandoem alguma parte muito remota — o golfo de Bótnia sendo um tantoperemptoriamente especi icado, em um caso. Essa opinião, em sidesprovida de fundamento, foi à qual, enquanto o contemplava, minhaimaginaçãomaisprontamenteacedeu;e,mencionando-oparaomeuguia,iqueideverassurpresodeouvi-lodizerque,emboraessa fosseaopiniãomais universalmente aceita em relação ao assunto entre os noruegueses,não era, todavia, a sua. Quanto à primeira ideia, confessou suaincapacidadepara compreendê-la; e nisso concordei comele—pois, pormais conclusiva no papel, torna-se completamente ininteligível, e atéabsurda,emmeioaostrovõesdoabismo.“Osenhordeuumaboaolhadanotorvelinhoagora”,disseovelho,“ese

pudersearrastaremtornodesterochedo,demodoasepôraoabrigodovento, e amortecer o rugido da água, vou lhe contar uma história que oconvencerádequedevosaberalgumacoisaacercadoMoskoe-ström.”Ajeitei-meconformeseudesejo,eeleprosseguiu.“Eu e meus dois irmãos possuíamos outrora uma sumaca aparelhada

comoescunacomcapacidadeparacercadesetentatoneladas,comaqualcostumávamospescarentreasilhasalémdeMoskoe,pertodeVurrgh.Emtodo redemoinhomuitoviolentonomarapescaéboa, emoportunidadesapropriadas,seosujeitopelomenostemacoragemdeseaventurar;masentretodososhabitantesdolitoralemLofoden,nóstrêséramososúnicosque nos ocupávamos regularmente de sair para as ilhas, como contei. Ospesqueirosnormais icambemmais abaixo,parao sul.Ali sepodepegarpeixe a qualquer hora, sem grande risco, e desse modo são os pontospreferidos.Oslocaisseletosporaquinomeiodasrochas,entretanto,alémdeforneceramelhorvariedade,fazem-nocommaiorabundância;demodoquemuitas vezes pegávamos em um único dia o que osmais tímidos nomisternãoconseguiam juntaremumasemana.De fato, izemosdissoumnegócio de especulação desesperada — o risco de vida no lugar dotrabalho,eacoragemfazendoasvezesdecapital.“Abrigávamos a sumaca em uma angra cerca de oito quilômetrosmais

adiante aqui na costa; e tínhamos por prática, com o tempo bom, tirarvantagem dos quinzeminutos de calma damaré para vencer o principal

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canal do Moskoe-ström, bem acima do poço, e depois encontrarancoradouro nalgum ponto próximo a Otterholm, ou Sand lesen, onde ostorvelinhos não são tão violentos quanto em outras partes. Alicostumávamos icaratépoucoantesdacalmadamaréoutravez,quandoentão levantávamosferroezarpávamosdevolta.Nuncanosaventuramosnessa expedição sem um irme vento lateral para ir e voltar— um quepudessenosdaracertezadequenãonosfaltariaantesdonossoregresso—eraramentenosequivocamosnocálculoquantoaisso.Duasvezes,emseisanos, fomosforçadosa icaranoitetodaancoradosporcontadeumacalmaria, coisa que é deveras rara por estas bandas; e certa vez tivemosde permanecer no pesqueiro durante quase uma semana, morrendo defome,devidoaumaventaniaquesoproupoucodepoisdenossachegada,etornou o canal tumultuoso demais para até mesmo considerar a ideia.Nessaocasião, teríamossidoarrastadosparaooceanoadespeitode tudo(pois os turbilhões nos izeram girar e girar com tal violência que, apósalgum tempo, tivemos nossa âncora enroscada e ela garrou), não fossetermos icadoàderivaemumadasinumeráveiscorrentescontrárias—ede tãocurtaduração—quenosconduziuaoabrigodeFlimen,onde,porobradafortuna,paramos.“Não poderia lhe contar a vigésima parte das di iculdades que

enfrentamos 'nopesqueiro'—éummaulugarparaseestar,mesmocombom tempo—,mas sempredemosum jeitode cruzaro temível corredordopróprioMoskoe-ström semacidente; embora eu às vezes tenha icadocomo coraçãonabocaquandoaconteciadeestarmosumminutooualgoassimantesoudepoisdacalmadomar.Oventoporvezesnãoeratãofortequanto pensáramos no início, e então avançávamos menos do quepodíamos ter desejado, enquanto a corrente tornava a sumacaingovernável. Meu irmão mais velho tinha um ilho de dezoito anos deidade,eeumesmotinhadoisrapazesrobustos.Elesteriamsidodegrandeajuda em horas como essa, empunhando os remos, bem como à popa,pescando—mas por algummotivo, embora nósmesmos corrêssemos orisco,nãotínhamoscoragemdepermitirqueosmaisjovensenfrentassemoperigo—,pois,no imdascontas,eradefatoumperigohorrível,eessaéaverdade.“Dentrodepoucosdiasvãosecompletartrêsanosdesdequeoquevou

contar ocorreu. Foi no dia 10 de julho de 18—, dia que o povo dessasparagens do mundo nunca vai esquecer — pois foi nele que soprou ofuracãomaisterrívelquejamaisdesceudoscéus.Econtudodurantetoda

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amanhã,enaverdadeatéo imdatarde,soprouumabrisasuavee irmevindadosudoeste,enquantoosolbrilhavaforte,demodoquenemomaisvelhomarujodentrenóspodiaterprevistooqueiriaocorrer.“Nóstrês—meusdoisirmãoseeu—havíamosfeitoatravessiaparaas

ilhaslápelasduasdatarde,enãodemorouparaenchermosasumacacomumótimopeixe,que,todoscomentamos,estavamaisabundantenessediado que jamais havíamos visto. Eram apenas sete horas,pelo meu relógio,quando levantamos ferro e partimos de volta, de modo a cobrir o piortrechodoStrömnacalmadaágua,quesabíamosseràsoito.“Zarpamos com um vento fresco em nosso quarto de estibordo e, por

algumtempo,deslizamosagrandevelocidade,nemsequersonhandocomalgumperigo,poisdefatonãovíamosomenormotivoparaapreensão.DerepentefomossurpreendidosporumabrisavindadoHelseggen.Eracoisadasmais incomuns—algoquenuncanos sucederaantes—ecomeceiasentircertodesconforto,semsaberexatamenteporquê.Viramosobarcona direção do vento, mas não izemos progresso algum, devido aostorvelinhos, e eu já estava a ponto de propor que regressássemos aoancoradouroquando,olhandoàpopa,vimosohorizonte todocobertoporuma singular nuvem cor de cobre que se erguia com a velocidade maisespantosa.“Nesse meio-tempo a brisa que interceptara nosso curso arrefeceu e

mergulhamosnamaisabsolutacalmaria,derivandoemtodasasdireções.Esseestadodecoisas,entretanto,nãodurouportemposu icienteparaquere letíssemosarespeito.Emmenosdeumminutoa tempestadeseabatiasobre nós— emmenos de dois, o céu icou inteiramente encoberto— ecomisso,eoviolentoborrifodomar, icousubitamentetãoescuroquenãopodíamosenxergarunsaosoutrosdentrodasumaca.“Umfuracãocomooqueentãosoprouéloucuratentardescrever.Nemo

mais antigo marinheiro da Noruega jamais vivenciou algo como aquilo.Havíamos soltado as velas antes que ele nos atingisse em cheio;mas, aoprimeiro sopro,nossosdoismastros foramaomar comose tivessemsidoserrados—omastroprincipallevandoconsigomeuirmãomaisnovo,queaeleseamarraraporsegurança.“Nossobarcoeraaplumamais leveque já lutuousobreaágua.Tinha

um convés corrido de fora a fora, com apenas uma pequena escotilhapróximadaproa, escotilha que sempre tivéramospor costume selar comas trancas pouco antes de cruzar o Ström, a título de precaução contra omar encrespado. Não fosse essa circunstância, teríamos ido a pique ali

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mesmo—pois icamosinteiramenteafundadosporalgunsinstantes.Comomeu irmão mais velho escapou à morte não sei dizer, pois nunca tive aoportunidade de descobrir. Deminha parte, assim que soltei o traquete,atirei-me de bruços sobre o convés, com os pés apoiados na estreitaamurada da proa, e agarrando com asmãos um arganéu junto ao pé domastro. Foi o mero instinto que me impeliu a fazer isso — o que semdúvidaeraamelhorcoisaqueeupoderiaterfeito—,poisestavaaturdidodemaispararaciocinar.“Por alguns momentos, icamos completamente submersos, como eu

disse, e durante todo esse tempo prendi a respiração, e permaneciagarrado ao anel. Quando não pude mais aguentar, ergui-me sobre osjoelhos,aindasegurando fortecomasduasmãos,edessemodoemergiacabeça. Logo em seguida nosso pequeno barco se sacudiu, exatamentecomofazocãoaosairdaágua,eassimselibertou,atécertoponto,domar.A essa altura eu tentava dominar o estupor que tomara conta demim, erecuperar a presença de espírito de modo a ver o que podia ser feito,quando senti alguémagarrandomeubraço. Erameu irmãomais velho, emeucoraçãopuloudealegria,poiseutinhacertezadequehaviacaídonomar—mas nomomento seguinte toda essa alegria foi transformada emhorror—, pois ele aproximou a boca de meu ouvido, e gritou a palavra'Moskoe-ström!'.“Ninguém jamais saberá quais foram meus sentimentos naquele

momento.Estremecidacabeçaaospés,comoquesofrendoomaisviolentoacesso de febre. Eu sabia muito bem o que ele queria dizer com aquelaúnicapalavra—eusabiaoqueelequeriame fazercompreender.Comovento que agora nos empurrava, íamos na direção do redemoinho doStröm,enadapoderianossalvar!“O senhor percebe que ao cruzarmos ocanal do Ström sempre o

fazíamos muito acima do redemoinho, mesmo no tempo mais ameno, eentãotínhamosdeaguardareobservarcuidadosamenteacalmadamaré— mas agora éramos impelidos direto para o poço, e em meio a umfuracão daqueles! 'Na verdade', pensei, 'devemos chegar lá no exatomomentodacalma—nisso residealgumaesperança'—masno instanteseguinte praguejei contramimmesmo por ser tão tolo em sonhar com aesperança que fosse. Eu sabia perfeitamente que estávamos condenados,nem que nosso barco fosse dez vezes maior que um navio de noventacanhões.“A essa altura a fúria inicial da tempestade se dissipara, ou talvez

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acontecessedejánãomaisasentirmosemtodasuaintensidadeconformedisparávamosatravésdelasemumúnicopanoesticado,masemtodocasoo oceano, que no início o vento mantivera baixo, nivelado e espumante,assomavaagoraemmontanhasabsolutas.Umasingularmudança,também,operara-senocéu.Emtorno,emtodasasdireções,continuavanegrocomopiche,masquaseacimadenósabriu-se,derepente,umafendacirculardecéu limpo—o céumais limpoque jamais vi—edeumazul profundo ebrilhante—eatravésdelaresplandeciaaluacheiacomumfulgorqueeununcaaviraexibir.Elailuminavatudoemvoltadenóscomperfeitanitidez—porém,oh,Deus,quecenaparailuminar!“Então iz umaouduas tentativasde falar commeu irmão—mas, por

algum motivo que não conseguia compreender, o ruído crescera de talmodo que fui incapaz de fazê-lo escutar uma única palavra, ainda quegritasseaplenospulmõesemseuouvido.Emseguida,eleabanouacabeça,seu aspecto tão pálido quanto a morte, e ergueu um dedo, como que adizer,'ouça!'.“No início, não entendi a que se referia — mas logo um pensamento

hediondo cruzou minha mente. Puxei meu relógio da algibeira. Estavaparado.Olheiseumostradoràluzdoluar,eentãoprorrompiemlágrimasconforme o atirava no oceano.Ele havia parado às sete horas! HavíamosperdidoacalmadamaréeoredemoinhodoStrömestavaemplenafúria!“Quando um barco é bem construído, tem velame e vergas

apropriadamentedispostosenãoportacargaexcessiva,asondas,emumaforteventania,comaembarcaçãoatodopano,parecemsemprebrotardesobocasco—oqueparecemuitoestranhoparaumhomemdeterra—,ea isso damos o nome devogar, na linguagem marítima. Bem, até lávínhamosvogandoasondasmuitolestamente;maseminstantesaconteceudeumgigantescooceanonoscolherbemsobaalmeida,eerguer-nosjuntoem sua ascensão — subindo — subindo — como que rumo ao céu. Eujamaisteriaacreditadoqueumvagalhãopudessesubirtãoalto.Edepoisláfomosnósparabaixo,descrevendoumarco,deslizandoenosprecipitandonummergulhoquemedeixounauseadoetonto,comosecaíssedoelevadocumedeumamontanhaemumsonho.Masenquantoestávamosnoalto,eulançara um rápido olhar em torno — e esse único relance foi quantobastou.Vinossaexataposiçãonuminstante.OturbilhãodoMoskoe-strömestava a cerca de meio quilômetro — mas tão parecido com o Moskoe-strömde semprequanto o redemoinhoque o senhor agora vê se parececom a água de uma azenha. Se não soubesse onde estávamos, e o que

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deveríamos esperar, não teria reconhecido o lugar de modo algum. Talcomovi, fechei involuntariamenteosolhos,dehorror.Aspálpebrassemecerraramcomoquenumespasmo.“Não pode ter sido mais do que dois minutos depois disso que

subitamente sentimos as ondas se acalmando e fomos envolvidos pelaespuma.Obarcodeuumaabruptaguinadaabombordoeentãodisparounessa nova direção como um raio. No mesmo instante, o estrondoensurdecedordas águas foi completamente sufocadoporumaespéciedeguinchoestridente—para teruma ideia, imagineo somproduzidopelasválvulas de muitos milhares de navios a vapor deixando sair a pressãotodas ao mesmo tempo. Estávamos agora no cinturão de espuma quesempre circunda o torvelinho; e pensei, é claro, que dali a um instanteseríamos tragados pelo abismo— no fundo do qual podíamos enxergarapenas indistintamente, devido à enorme velocidade com que éramoscarregados. O barco não parecia de modo algum afundar na água, masdeslizava como uma bolha de ar sobre a super ície da vaga. O lado deestibordo icavapróximodo torvelinho,eabombordoassomavaomundode oceano que deixáramos para trás. Era como uma imensa muralhacontorcendo-seentrenóseohorizonte.“Pode parecer estranho, mas agora, quando estávamos nas próprias

garras da voragem, eu sentia maior frieza do que no momento em queapenasnosaproximávamos.Tendomedeterminadoanãoalimentarmaisqualquer esperança, livrei-me em grande parte daquele terror que meprivavadobrionoinício.Presumoqueeraodesesperoquemeabalavaosnervos.“Pode parecer bravata—mas o que lhe digo é verdade— comecei a

re letir sobre a coisa magní ica que era morrer daquela maneira, e quetolice de minha parte pensar numa consideração tão mesquinha comominha própria vida individual em vista de uma manifestação tãomaravilhosa do poder de Deus. Creio até que corei de vergonha quandoessa ideia cruzouminhamente.Poucodepois fuipossuídodacuriosidademais intensa sobre o próprio torvelinho. Senti um positivodesejo deexplorar suas profundezas, mesmo ao preço do sacri ício que estavaprestes a fazer; e meu maior pesar era que jamais poderia contar parameus velhos companheiros em terra irme sobre os mistérios que iriapresenciar. Esses, sem dúvida, eram devaneios singulares a ocupar amente de um homem numa situação assim tão extrema — e já penseimuitas vezes desde então que os giros do barco em tornodopoço talvez

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houvessemmedeixadoumpoucodelirante.“Houve outra circunstância a contribuir para restaurar meu

autocontrole;eaquimere iroàcessaçãodovento,incapazdenosalcançarem nossa presente situação— pois, como o senhor viu por si mesmo, ocinturãodeespumaéconsideravelmentemaisbaixodoqueomantogeraldo oceano, que nesse momento se projetava acima de nós, um maciçomontanhoso negro e elevado. Se o senhor nunca esteve nomar em umaforte ventania, nãopode fazer ideiada confusãomental ocasionadapelosventos e os borrifos combinados. Eles o cegam, ensurdeceme sufocam, elevamembora todopoder de ação ou re lexão.Mas estávamos agora, emgrandeparte,livresdessesaborrecimentos—muitosimilaraomodocomoa malfeitores condenados à morte na prisão são concedidos pequenosluxosqueselhesvedavamquandosuasentençaaindaeraincerta.“Quantas vezes cumprimos o circuito do cinturão é impossível dizer.

Giramos e giramos em torno talvez por uma hora, mais voando quelutuando, chegando cada vez mais perto do meio do vagalhão, e entãocadavezmaispertodesuahorrívelborda interior.Emnenhummomentonessetempotodosolteidoarganéu.Meuirmãoestavaàpopa,agarradoaum enorme barril de água vazio que havia sido fortemente preso sob agaioladaalmeida,equeeraaúnicacoisanoconvésquenãoforavarridapara o mar quando a ventania nos tomou de assalto. Quando nosaproximávamosdabeiradadoprecipícioelelargouseuapoioeveioparaoanel,doqual,naagoniadeseuterror,empenhou-seemtirarminhasmãos,jáqueapeçanãoeragrandeobastanteparapermitiraambosprender-sedemodo seguro. Nunca senti uma a liçãomais profunda do que ao vê-lointentaresseato—emborapercebessequeeraumhomemenlouquecidoque o fazia — um maníaco, alucinando de puro pavor. Não me dei otrabalho, entretanto, de brigar com ele pela posição. Achei que não fariadiferençaalgumaquenosagarrássemosaoquequerque fosse;demodoque lhe cedi o arganéu e dirigi-me ao barril na popa. Para tal não haviagrande di iculdade; pois a sumaca voava em círculos bastante estáveis, emantendo o casco nivelado— apenas jogando para cá e para lá com osimensos volteios e vacilações do torvelinho. Mal me agarrara eu ao meunovo ponto de apoio, demos uma violenta guinada a estibordo, e nosprecipitamosabruptamenterumoaoabismo.MurmureiumaprecerápidaaDeus,ejulgueiqueeraofim.“Ao sentir o nauseante ímpeto da descida, aumentei instintivamente a

preensãocomqueagarravaotonel,efecheiosolhos.Poralgunssegundos

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não ousei abri-los— enquanto esperava a destruição instantânea, e meadmirava de já não estar nos embates da morte com a água. Mas ummomento se passou, e depoismais outro. Eu continuava vivo. A sensaçãodequedasefora;eomovimentodobarcoparecia-semuitocomodeantes,no cinturão de espuma, a não ser que ele agora ia mais paralelo. Tomeicoragemeolheimaisumavezparaacena.“Jamais esquecerei a sensação de assombro, horror e admiração com

queolheiemtornodemim.Obarcopareciapairar,comoquepormágica,ameiocaminho,nointeriordeumfunilvastoemcircunferênciaeprodigiosoem profundidade, e cujos lados perfeitamente lisos poderiam ter sidotomadosporébano,anãoserpelarapidezdesnorteantecomquegiravam,e pela radiância cintilante e espectral que emitiam, conforme os raios dalua cheia, provenientesdaquela fenda circular emmeio àsnuvensque jádescrevi, vertiamnuma torrente de glória dourada ao longo das paredesnegras,descendoparaosrecessosmaisesconsosdoabismo.“No início, iquei confuso demais para observar alguma coisa com

exatidão. A explosão geral de extraordinário esplendor foi tudo quecontemplei.Quandomerecobreiumpouco,entretanto,meuolharvoltou-seinstintivamente para baixo. Nessa direção eu podia obter uma visãodesobstruída,pelamaneiracomoasumacapendiadasuper ície inclinadadopoço.Elaestavaperfeitamentenivelada—oumelhor,seuconvés jaziaemumplanoparaleloaodaágua—masesta inclinava-seemumângulode mais de quarenta e cinco graus, de modo que parecíamos adernaracentuadamente. Não pude deixar de observar, entretanto, que me eraquasetãofácilmanteroequilíbrioeoapoiodospésnessasituaçãoquantoseestivéssemosnahorizontal; e isso, suponho,devia-se à velocidade comquegirávamos.“Os raios da lua pareciam buscar o próprio recôndito do abismo

profundo;mas ainda assim eu não conseguia divisar nada distintamente,por conta de uma névoa espessa que a tudo envolvia, e acima da qualpairavaummagní icoarco-íris,comoaquelaponteestreitaeinseguraqueos muçulmanos a irmam ser a única passagem entre o Tempo e aEternidade.Essanévoa, ounuvemdeborrifo, era semdúvidaocasionadapelo choque das grandes paredes do funil, conforme todas elas seencontravam no fundo — mas o alarido que ascendia aos Céus saindodaquelanévoaeunãoousotentardescrever.

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“Nosso primeiro deslize para o interior do próprio abismo, após ocinturão de espuma acima, carregara-nos uma grande distância pela

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vertente;masnossaulteriordescidanão foidemodoalgumproporcional.Giramos e giramos impetuosamente — não com qualquer tipo demovimentouniforme—mascomoscilaçõesesolavancosvertiginosos,quenos faziam por vezes avançar apenas algumas centenas de pés — porvezesquasecumprindoocircuitocompletodotorvelinho.Nossoprogressoparabaixo,acadarevolução,eralento,masmuitoperceptível.“Olhando em torno de mim para a ampla vastidão de ébano líquido

sobre a qual éramos transportados, percebi que nosso barco não era oúnico objeto nas garras do torvelinho. Tanto acima como abaixo de nóshavia fragmentos visíveis de embarcações, enormes quantidades demadeira de construção e troncos de árvores, com inúmeros objetosmenores, como peças de mobília doméstica, caixas quebradas, barris eaduelas.Jádescreviaabominávelcuriosidadequetomaraolugardemeusterrores originais. Ela parecia crescer dentro de mim à medida que euicava cada vez mais próximo de minha pavorosa sina. Então comecei aobservar,comestranho interesse,asnumerosascoisasque lutuavamemnossacompanhia.Eudeviaestardelirante—poisatéprocureime distrairespeculandoacercadasrelativasvelocidadesdesuasvariadasdescidasnadireção da espuma abaixo. 'Aquele abeto', peguei-me dizendo a certaaltura,'certamenteseráopróximoaseprecipitarnopavorosomergulhoedesaparecer'— e então iquei decepcionado ao ver que os destroços deum navio mercante holandês ultrapassaram-no e foram antes para ofundo.Comotempo,depoisdeinúmerospalpitesdessanatureza,evendo-me iludidoemtodoseles—esse fato—o fatodemeu invariávelerrodecálculo — lançou-me numa cadeia de re lexões que fez meus membrosvoltarematremer,emeucoração,abaterpesadamentemaisumavez.“Não era um novo terror que assim me afetava, mas o início de uma

esperançamaisanimadora.Essaesperançabrotouempartedamemória,eem parte da observação presente. Veio-me à lembrança a grandevariedade de materiais lutuantes que ia encalhar na costa de Lofoden,tendo sido engolidos e depois lançados de volta peloMoskoe-ström. Semsombradedúvidaagrandemaioriadosobjetoschegavamdestroçadosdaforma mais extraordinária — arranhados e maltratados a ponto deparecer cravados de lascas —, mas então me recordei claramente quehaviaalguns deles que não se mostravam nem um pouco deformados.Nesse momento eu só podia explicar essa diferença supondo que osdestroços mais maltratados haviam sido os únicos a ser completamenteengolidos—queosdemaisentraramno torvelinhoemumperíodomuito

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tardiodamaré, ou,por algummotivo,haviamdescido tãovagarosamenteapós entrar que não atingiram o fundo antes de chegar o momento dapreamar,oudavazante,comopodeserocaso.Concebiserpossível, tantonum como no outro, que podiam desse modo ter girado de volta para onível do oceano, sem conhecer o destino daqueles que haviam sidoarrastados mais cedo, ou engolidos mais rapidamente. Fiz, também, trêsimportantes observações. A primeira era que, como regra geral, quantomaiores os corpos, mais rápido desciam; — a segunda que, entre duasmassas de igual extensão, uma esférica e a outrade qualquer outroformato, a superioridade em velocidade de descida cabia à esfera; — aterceiraque,entreduasmassasdeigualtamanho,umacilíndricaeaoutrade qualquer formato, o cilindro era engolidomais vagarosamente. Desdequemesalvei,entretiveváriasconversassobreesseassuntocomumvelhomestre-escola do distrito; e foi por meio dele que aprendi o uso depalavras como 'cilindro' e 'esfera'. Ele me explicou— embora eu tenhaesquecido a explicação — como o que eu observava era, na verdade, aconsequêncianaturaldasformasdosfragmentos lutuantes—emostrou-mecomoaconteciadeumcilindro, lutuandoemumvórtice,oferecermaisresistência contra sua sucção, e ser arrastado para dentro com maiordificuldadedoqueumcorpoigualmentemaciço,daformaqueseja.*

“Houveumacircunstânciainesperadaquecontribuiuimensamenteparareforçar essasobservações, edeixar-meansiosoemdelas tirarpartido, eessacircunstânciafoique,acadarevolução,passávamosporalgocomoumbarril, ou então a verga ou o mastro quebrado de um navio, enquantoinúmerasdessascoisas,quehaviamestadoemnossonívelquandoabriosolhos pela primeira vez para os portentos do turbilhão, encontravam-seagoramuito acima de nós, e pareciam ter semovidomuito pouco de suaposiçãooriginal.“Nãomaishesiteiquantoaoquefazer.Tomeiaresoluçãodemeamarrar

irmementeaotonelemquemeagarrava,soltá-lodaalmeidae lançar-mena água junto com ele. Atraí a atenção demeu irmão pormeio de sinais,aponteiosbarris lutuandoquepassavampertodenóse iztudoemmeualcance para levá-lo a compreender o que estava prestes a fazer. Julgueien imquecompreendiameu intento—mas, fosseesseocasoounão,eleabanou a cabeça em desespero e se recusou a deixar seu apoio noarganéu.Era impossívelobrigá-lo;aurgêncianãoadmitiamaisdemora;eassim, com amarga relutância, abandonei-o à própria sorte, amarreimeucorpo ao barril utilizando os cabos que o prendiam à almeida e me

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precipiteinomar,semhesitarsequermaisuminstante.“Oresultadofoiprecisamenteoesperadopormim.Comosoueupróprio

quelhecontoestahistória—comoosenhorpodeverquedefatoescapei—ecomo jáseencontradepossedomodopeloqualmeusalvamento foiefetuado, devendo logo antecipar tudo que ainda tenho a acrescentar—trarei minha narrativa rapidamente a sua conclusão. Talvez tenhatranscorridoumahora,oualgoassim,apóseuterdeixadoasumaca,queobarco, tendo descido a uma vasta distância sob mim, descreveu três ouquatro giros frenéticos em rápida sucessão e, carregando consigo meuestimado irmão,mergulhouaprumo, epor todaa eternidade,no caosdeespumaabaixo.Obarrilaoqualeumeprendiaafundoumuitopoucoalémdametadedadistânciaentreo fundodoabismoeopontoemqueeumelançara ao mar, quando uma grande mudança se operou no aspecto doturbilhão.Asvertenteslateraisdovastofunil icaramgradativamentecadavez menos abruptas. Os giros do torvelinho tornaram-se, gradualmente,menos e menos violentos. Pouco a pouco, a espuma e o arco-írisdesapareceram, e o fundo do abismo pareceu lentamente subir. O céuestavaclaro,osventoshaviamarrefecido,ea luacheiapairavaradianteaoeste,quandomevinasuper íciedooceano,complenavisãodacostadeLofoden, e acima do ponto onde o poço do Moskoe-strömestivera. Era omomento da calma da maré — mas o oceano ainda arfava em vagasmontanhosas pelo efeito do furacão. Fui carregado violentamente para ocanal do Ström e, em poucos minutos, despejado ao largo do litoral, no'pesqueiro' dos aldeães. Um boteme recolheu— exausto de fadiga— e(agora que o perigo se fora) emudecido com a lembrança de seushorrores. Os que me puxaram a bordo eram meus velhos amigos ecompanheirosdetodososdias—masnãomereconhecerammaisdoqueteriamreconhecidoumviajanteda terradosespíritos.Meu cabelo,negrocomo um corvo no dia anterior, icara branco como o senhor o vê agora.Dizem também que toda a expressão de meu semblante havia mudado.Contei-lhesminhahistória.Nãoacreditaram.Agoraeuaconto aosenhor—edi icilmentepossoesperarquedêaelamaiscréditodoqueo izeramosalegrespescadoresdeLofoden.”

*VerArquimedes,DeIncidentibusinFluido,livro2.(N.doA.)

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OBARRILDEAMONTILLADO

Asmil injustiças de Fortunato, suportei omelhor que pude;mas quandoele se aventurou ao insulto, jurei vingança. Os senhores, que tão bemconhecem a natureza deminha alma, não irão supor, entretanto, que deivazão a alguma ameaça.No im eu teria minha vingança; quanto a isso,decididamente nenhuma dúvida — mas o próprio caráter decidido daresoluçãoobstavaaideiaderisco.Eudevianãoapenaspunir,mastambémpunircomimpunidade.Umagravopermanecesemserreparadoquandoadesforra recai sobre o autor da reparação. Permanece igualmente nãoreparadoquandoaquelequesevingafracassaemsefazervercomotalaoquecometeuoagravo.Fique bem entendido que nem por palavras, nem por atos dei a

Fortunatomotivoparaduvidardeminhasboasintenções.Continuei,comodecostume,asorriremsuapresença,eelenãopercebeuquemeusorrisoagoraeracomopensamentodesuaimolação.Tinhaumpontofraco—esseFortunato—,emboraemoutrosaspectos

fosse homem a ser respeitado e até temido. Orgulhava-se ele de seuconhecimentodevinhos.Poucositalianospossuemoespíritodoverdadeirovirtuose.Namaioria,seuentusiasmoéadotadoparaseadequaraotempoe à oportunidade — para praticar a impostura sobre britânicos eaustríacosmilionários. Na arte da pintura e no conhecimento de gemas,Fortunato, comoseusconterrâneos,eraumcharlatão—mas, tratando-sedevinhosantigos, eragenuíno.Nesseaspecto, eumesmonãodiferiadelesubstancialmente:eragrandeconhecedordosvintagesitalianoseadquiriapródigasquantidadessemprequepodia.Foiaolusco-fuscodeumatarde,duranteasupremaloucuradaépocado

carnaval,queencontreimeuamigo.Abordou-meelecomexcessivoardor,poisestiveraabeberemdemasia.Ohomemsefantasiavadebufão.Vestiaum traje justo listrado e cobria-lhe a cabeça o chapéu cônico com guizos.Fiquei tão feliz ao vê-lo que achei que não conseguiria parar de apertarsuamão.Disse-lhe— “Meu caro Fortunato, que sorte havê-lo encontrado. Como

se acha em tão excelente aspecto hoje! Acontece que acabei de receberumapipadoquesepassaporamontillado,etenhocáminhasdúvidas”.“Como?”, disse ele. “Amontillado? Uma pipa? Impossível! E no meio do

carnaval!”

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“Tenhocáminhasdúvidas”,repliquei;“efuiingênuoobastantedepagaro preço total do amontillado sem consultá-lo na questão. Não o pudeencontrar,ereceeiperderumapechincha.”“Amontillado!”“Tenhocáminhasdúvidas.”“Amontillado!”“Eprecisosatisfazê-las.”“Amontillado!”“Como vejo que anda ocupado, estou a caminho do Luchesi. Se existe

alguémcomtinocrítico,essealguéméele.Decertosaberámedizer——”“Luchesinãosabediferenciaramontilladodexerez.”“E contudo haverá esses tolos a irmando que o talento dele para a

degustaçãoépáreoparaoseu.”“Vamos,acaminho.”“Deonde?”“Desuascaves.”“Meu amigo, não; não quero abusar da sua boa natureza. Percebo que

temalgumcompromisso.Luchesi——”“Nãotenhocompromisso;—vamos.”“Meuamigo,não.Nãose tratadecompromisso,masdograveresfriado

que percebo a ligi-lo. As caves são de uma umidade insuportável. Estãoencrostadasdenitro.”“Pois vamos,mesmo assim. Esse resfriado não é de nada. Amontillado!

Passaram-lheaperna.EquantoaoLuchesi,nãosabediferenciarxerezdeamontillado.”Assimfalando,Fortunatosegurouemmeubraço.En iandoumamáscara

de seda preta, e embrulhando-me cuidadosamente em um rocló, permitiquemeconduzisseapressadoaomeupalazzo.Não havia criadagem na casa; todos se ausentavam para os folguedos

emcomemoraçãodaépoca.Eulhesdisseraquenãoregressariasenãopelamanhã,e lhesderaordensexplícitasdequenãoarredassempédo lugar.Essas ordens era quanto bastava, eu bem o sabia, para assegurar seuimediatodesaparecimento,atéoúltimodeles,assimquevirasseascostas.Tireidesuasarandelasdoisarchotese,passandoumaFortunato,guiei-

o curvadamente por diversos conjuntos de cômodos até a arcada que

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conduzia às caves. Desci por uma longa escada em caracol, instando-o atomarcuidadoaomeseguir.Chegamosentãoao imdadescidaeparamosladoaladonoambienteúmidodascatacumbasdosMontresor.O andar de meu amigo era vacilante e os guizos em seu chapéu

tilintavamconformesemovia.“Apipa”,disseele.“Mais adiante”, disse eu; “mas observe o branco padrão de teia que

cintilanasparedesdestagruta.”Ele virou para mim, e olhou dentro dos meus olhos com duas órbitas

embaciadasquedestilavamareumadaembriaguez.“Nitro?”,perguntou,enfim.“Nitro”,respondi.“Háquantotempoestácomestatosse?”“Cof!cof!cof!—cof!cof!cof!—cof!cof!cof!—cof!cof!cof!—cof!cof!

cof!”Meupobreamigoficouimpossibilitadoderesponderporváriosminutos.“Nãoénada”,disse,finalmente.“Vamos”, disse eu, com determinação, “vamos voltar; sua saúde é

preciosa. É rico, respeitado, admirado, querido; é feliz como eu já o fuioutrora. É um homem cuja perda se fará sentir. Por mim, não fazdiferença. Vamos voltar; vai icar doente, e não quero ser o responsável.Alémdomais,temoLuchesi——”“Chega”,disseele;“estatossenãoédenada;nãovaimematar.Detosse

équenãovoumorrer.”“Verdade — verdade”, repliquei; “e de fato, não tenho intenção de

alarmá-losemnecessidade—masdeveusardetodaadevidaprecaução.UmtragodesteMédocnosprotegerádaumidade.”Nisso destampei o gargalo de uma garrafa que puxei de uma longa

fileiradeoutrasiguaisaelaquejaziamnosolodosepulcro.“Beba”,falei,oferecendo-lheovinho.Elealevouaoslábioscomumlúbricoolhardesoslaio.Parouebalançou

acabeçaparamimcomfamiliaridade,osguizostilintando.“Bebo”,disse,“aossepultadosquerepousamemtornodenós.”“Eeuasualongavida.”Voltouasegurarmeubraço,eprosseguimos.“Estassuascaves”,disse,“sãoextensas.”

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“OsMontresor”,repliquei,“eramumafamíliagrandeenumerosa.”“Esqueciquaissãosuasarmas.”“Umenormepédourado,emumfundoblau;opéesmagaumaserpente

rampantecujaspresasestãocravadasnocalcanhar.”“Eadivisa?”“Nemomeimpunelacessit.”13

“Magnífico!”,disseele.O vinho rebrilhou em seus olhos e os guizos tilintaram.Minha própria

imaginação se aqueceu com oMédoc. Havíamos passado por paredes deossos empilhados, com barris e tonéis entremeados, dentro dos recessosmais recônditos das catacumbas. Parei outra vez, e dessa feita tomei aliberdadedesegurarFortunatopelobraço,acimadocotovelo.“O nitro!”, disse eu; “veja, ele aumenta. Pega comomusgo pelas caves.

Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade pingam entre os ossos.Venha,voltemosantesquesejatardedemais.Suatosse…”“Não é nada”, disse; “vamos prosseguir. Mas primeiro, outro trago do

Médoc.”Abri e lhe estendi umapequena garrafa de um vinho deGraves. Ele a

esvazioudumasótalagada.Seusolhosluziramcomumbrilhointenso.Riueergueuagarrafanoarcomumgestoquenãocompreendi.Fitei-o com expressão surpresa. Ele repetiu o movimento— um gesto

grotesco.“Nãocompreende?”,disse.“Não”,respondi.“Entãonãopertenceàfraternidade.”“Como?”“Nãoémembrodosmaçons.”“Sou,sou”,eudisse,“sou,sou.”“Você?Impossível!Ummaçom?”“Ummaçom”,retruquei.“Umsinal”,disseele.“Eis aqui”, respondi, retirando uma colher de pedreiro das dobras de

meurocló.“Está de pilhéria”, exclamou ele, recuando alguns passos. “Mas

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prossigamos,aoamontillado.”“Que seja”, eu disse, voltando a guardar a ferramenta sob o capote, e

novamente lhe oferecendo meu braço. Ele aí se apoiou pesadamente.Continuamosnossocaminhoembuscadoamontillado.Passamosporumasériedearcosbaixos,descemos,seguimosemfrentee,voltandoadescer,chegamos a uma cripta profunda, onde a corrupção do ar levou nossosarchotesantesabrilhardoquearder.No extremo mais remoto da cripta revelava-se uma outra, menos

espaçosa. Suas paredes haviam sido forradas com restos humanos,empilhados até a abóbada acima, àmaneira das grandes catacumbas deParis. Três lados dessa cripta interior continuavam ornamentados dessemodo. No quarto, os ossos haviam sido removidos e jogadosnegligentementepelaterra,formandoemumpontoummontedetamanhorazoável. Dentro da parede assim exposta pela retirada dos ossospercebemos um recesso ainda mais interno, com cerca de um metro epoucodeprofundidade,menosdeumde largura, epraticamentedoisdealtura.Pareciaconstruídosemnenhumpropósitoespecí ico,mas formadomeramente pelo intervalo entre dois dos colossais apoios do teto dascatacumbas,efechadonofundoporumadasparedesqueasdelimitavam,degranitosólido.FoiemvãoqueFortunato,erguendosuatochamortiça,empenhou-seem

perscrutar as profundezas do recesso. Seu término a débil luz não noscapacitavaaenxergar.“Prossiga”, disse eu; “aí dentro está o amontillado. Quanto a Luchesi

——”“É um ignorante dos ignorantes”, interrompeu meu amigo, dando um

passo hesitante à frente, conforme eu o seguia imediatamente noscalcanhares. Num instante ele havia atingido a extremidade do nicho e,vendo seu avanço interrompido pela pedra, parou numa perplexidadeestúpida. Nomomento seguinte eu o agrilhoara ao granito. Na super ícierochosahaviadoisgramposdeferro,cercademeiometrodistantesumdooutro,horizontalmente.Deumdelespendiaumacurtacorrente,dooutro,umcadeado.Passar a corrente em tornode sua cintura foi obraquenãome tomou mais que alguns segundos. Ele estava atônito demais pararesistir.Retirandoachave,recueidorecesso.“Passeamão”,disseeu, “pelaparede;nãodeixarádesentironitro.De

fato émuito úmido. Mais uma vez, permita que lheimplore para voltar.

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Não?Entãodevodecididamentedeixarsuapresença.Mas,primeiro,querolheconcedertodasaspequenasatençõesaomeualcance.”“O amontillado!”, exclamou meu amigo, ainda não recobrado de sua

confusão.“Éverdade”,repliquei;“oamontillado.”Conformediziaessaspalavras,eumeocupavademexerentreapilhade

ossos quemencionei anteriormente. Jogando-os de lado, logo expus umaquantidadedepedrasdecantariaeargamassa.Comessesmateriais,ecomoauxíliodeminhacolher, comeceivigorosamenteaemparedaraentradadonicho.Malcompletaraaprimeira iadadaalvenaria,percebiqueaembriaguez

deFortunatohaviaemgrandemedidasedissipado.Oprimeiroindícioquedissorecebi foiumgemidosurdoechorosovindodo fundodorecesso.Ogemido de um homem bêbado é quenão era. Houve então um silênciolongo e persistente. Assentei a segunda iada, e depois a terceira, e aquarta; e então escutei as furiosas vibrações da corrente. O ruído durouporváriosminutos,duranteosquais,a imdeescutarcommaissatisfação,interrompi minha obra e sentei-me sobre os ossos. Quando en im ochocalhararrefeceu,volteiàcolher,etermineiseminterrupçãoaquinta,asexta e a sétima iadas. A parede estava agora quase na altura de meupeito. Mais uma vez iz uma pausa e, segurando o archote acima daalvenaria,lanceialgunsdébeisraiossobreafiguraalidentro.Uma sucessão de gritos altos e agudos, explodindo subitamente da

garganta da forma acorrentada, como que atirou-me violentamente paratrás.Porumbrevemomentohesitei—estremeci.Desembainhandominharapieira,comeceiatatearcomelaemtornodorecesso:masbastou-meuminstantedere lexãoparametranquilizar.Pouseiamãonaestruturasólidadas catacumbas e dei-me por satisfeito. Aproximei-me novamente daparede.Respondi aos clamoresdaquelequegritava. Fiz-lheeco— iz-lhecoro — suplantei-o em volume e em força. Desse modo procedi, egradualmenteosuplicanteseaquietou.Era agora meia-noite, e minha tarefa se aproximava do im. Eu

completaraaoitava,anona,adécima iada.Finalizarapartedaúltimaedadécima primeira; restava uma única pedra a ser encaixada e assentada.Sofri com seu peso; coloquei-a parcialmente na posição destinada. Masentãobrotoudonichoumarisadabaixaquemedeixoudecabelosempé.A ela seguiu-se uma voz triste, que tive di iculdade em reconhecer como

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sendoadonobreFortunato.Avozdisse—“Rá!rá!rá!—rê!rê!—umapiadamuitoboadefato—umaexcelente

pilhéria. Vamos rir à larga sobre isso lá nopalazzo — rê! rê! rê! —tomandonossovinho—rê!rê!rê!”“Oamontillado!”,eudisse.“Rê! rê! rê!— rê! rê! rê!— isso, o amontillado. Mas não está icando

tarde?Nãomeestarãoesperandono palazzo,LadyFortunatoeosdemais?Vamosandando.”“Isso”,disseeu,“vamosandando.”“PeloamordeDeus,Montresor!”“Isso”,disseeu,“peloamordeDeus!”

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Mas a essas palavras atentei em vão por uma resposta. Tomei-me deimpaciência.Chameialto—

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“Fortunato!”Semresposta.Chameioutravez—“Fortunato!”Ainda sem resposta. En iei um archote pela abertura remanescente e

deixei que ali caísse. De dentro veio apenas o tilintar de guizos. Meucoração foi tomado de a lição— por conta da umidade das catacumbas.Apressei-me em encerrar minha obra. Empurrei com esforço a últimapedra no lugar; completei a massa. Contra a nova alvenaria voltei aempilharoantigoanteparodeossos.Pormeioséculonenhummortalaindaosperturbou.Inpacerequiescat!

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AMÁSCARADAMORTEVERMELHA

A “Morte Vermelha” devastava havia muito tempo o país. Nenhumapestilênciajamaisforatãofatal,outãohedionda.OsangueeraseuAvatareseusinete—avermelhidãoeohorrordosangue.Haviadoresagudas,etonturas súbitas, e depois profuso sangramento pelos poros, com o óbitoinal.Asmanchas escarlatesno corpo e especialmenteno rostoda vítimaeramobanimentopestilentequealijavaapessoadaajudaesolidariedadede seus semelhantes. E o processo todo de acometimento, progresso etérminodadoençaconsistiademeiahora.Mas o príncipe Prospero era feliz, destemido, sagaz. Quando seus

domínios icaram consideravelmente despovoados, ele convocou ante suapresençamilamigossãosedespreocupadosdentreoscavaleirosedamasde sua corte, e com eles se retirou para a profunda reclusão de uma desuasabadiasfortificadas.Tratava-sedeumaestruturaextensaemagnífica,criação do próprio gosto excêntrico, mas augusto, do príncipe. Umamuralhaforteeelevadaacircundava.Essamuralhatinhaportõesdeferro.Os cortesãos, tendo entrado, trouxeram forjas e maciços martelos esoldaramastrancas.Decidiramnãodeixarmeioalgumdeingressoparaosrepentinosimpulsosdedesespero,etampoucodesaídaparaofrenesidosde dentro. A abadia estava amplamente aprovisionada. Com taisprecauções, os cortesãos podiam assim desa iar o contágio. O mundoexterior que tomasse conta de si mesmo. Nesse meio-tempo, era toliceangustiar-se, ou pensar. O príncipe providenciara todos os aparatos paradiversão. Havia bufões, havia improvisadores, havia dançarinos, haviamúsicos,haviaaBeleza,haviavinho.Tudo isso,maisasegurança,do ladodedentro.Láfora,a“MorteVermelha”.Foipróximoao inaldoquintoousextomêsdesuareclusão,eenquanto

a pestilência assolava com o auge da fúria do outro lado, que o príncipeProspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras damagnificênciamaisextraordinária.Foi uma cena voluptuosa, essamascarada. Mas, primeiro, queme seja

permitido contar sobreos salõesonde ela teve lugar.Havia setedeles—um conjunto majestoso. Em muitos palácios, entretanto, tais conjuntoscompõem uma perspectiva longa e desobstruída, quando as portasdobráveisdeslizamatéquaseasparedesdeambososlados,demodoquea visão da extensão completa mal é impedida. Aqui o caso era bemdiferente; como seria de esperar devido ao apreço do duque 14 pelo

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bizarro. Os apartamentos eram tão irregularmente dispostos que a visãonão abarcava mais do que um de cada vez. Havia uma curva abrupta acadavinteou trintametrose,acadacurva,umasensaçãodenovidade.Àdireita e à esquerda, no meio de cada parede, uma janela gótica alta eestreita dava para um corredor fechado que percorria os meandros doconjunto.Essas janelaspossuíamvitraiscujacorvariavadeacordocomatonalidade predominante na decoração do ambiente para o qual abria. Odaextremidadelesteeracomposto,porexemplo,deazul—esuasjanelaseramdeumvívidoazul.Osegundosalãoerapúrpuraemseusornamentose reposteiros, e aqui as vidraças eram púrpuras. O terceiro erainteiramente verde, e igualmente o eram os vidros em seus caixilhos. Oquartoeramobiliadoe iluminadoem laranja—oquinto, embranco—osexto, emvioleta.O sétimoapartamentoeradensamenteamortalhadoemreposteiros de veludo negro pendendo por todos os lados do teto e dasparedes, caindo em pesados drapejamentos sobre um tapete de mesmomaterial ematiz. Mas apenas nesse recinto a cor das janelas deixava decorresponder à da decoração. As vidraças eram escarlates — umaprofunda cor de sangue. Ora, em nenhum dos sete aposentos havialamparina ou candelabro em meio à profusão de ornamentos douradosquejaziamespalhadosportodoorecintooupenduradosnoteto.Nãohavialuz de espécie alguma emanando de lamparina ou de vela dentro doconjunto de salões. Mas nos corredores que atravessavam o conjuntoicava, diante de cada janela, um pesado tripé portando um braseiroincandescentequeprojetavaseusraiosatravésdovidrocoloridoe,dessemodo, iluminava intensamente o ambiente. E assim se produzia umavariedade de fenômenos extravagantes e fantásticos. Mas no aposentooeste, ou salão negro, o efeito da luz do fogo que vertia sobre osreposteirosescurosatravésdasvidraçastintasdesangueeramacabroaoextremoeproduziaumaexpressão tãoselvagemnossemblantesdosqueali entravam que poucos dentre os convidados eram su icientementeousadosparaatémesmopisaralidentro.Havianesseaposento,ainda,encostadonaparedeoeste,umgigantesco

relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro comumruído surdo, pesado, monótono; e quando o ponteiro dos minutoscompletava seu percurso diante do mostrador, e soava a hora, dosbrônzeos pulmões do relógio brotava um som distinto, alto, profundo,extraordinariamente musical, mas vibrando com nota e ênfase tãopeculiares que, ao lapso de cada hora, os músicos da orquestra eram

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obrigados a fazer uma pausa momentânea em sua apresentação, paraescutarosom;edessemodoosvalsistasforçosamenteinterrompiamsuasevoluções;eumbrevedesconcertotomavacontadetodaaalegrecomitiva;e, enquantoo carrilhãodo relógio ainda soava, observava-sequeosmaisagitados iam icandopálidos, eosmais idosose entorpecidospassavamamãonatestacomoqueemconfusodevaneiooumeditação.Masquandoosecos cessavam por completo, risadas despreocupadas percorriam namesmahoraamultidão;osmúsicosseentreolhavamesorriamcomoquede seu próprio nervosismo e tolice, e prometiam uns aos outros,sussurrando,queospróximos repiquesdo relógionãoproduziriamnelessemelhanteemoção;eentão,transcorridoo intervalodesessentaminutos(que compreende três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa),seguia-seoutrorepiquedorelógio,eentãoomesmodesconcerto,tremoresemeditaçãodeantes.Mas, a despeito dessas coisas, era uma festa alegre e magní ica. Os

gostosdoduqueerampeculiares.Ele eradonodeumolhoaguçadoparacores e efeitos. Desprezava osdecora dameramoda. Seus projetos eramousados e apaixonados e suas concepções brilhavam com um esplendorbárbaro. Há esses que o teriam julgado louco. Seus admiradores nãopensavam assim. Era necessário ouvi-lo, vê-lo, tocá-lo para ter certeza dequenãooera.Fora ele que escolhera, em suamaioria, os adornos dispostos nos sete

salões, por ocasião dessa sua grande fête; e fora a orientação de seupróprio gosto que determinara a caracterização dos mascarados. Semdúvidaeramgrotescos.Haviamuitobrilho,esplendor,coisaschamativaseespectrais — muito do que se tem visto desde oHernani. Havia igurasarabescas vestindo peças incongruentes. Havia extravagâncias delirantescomoasconcebemosloucos.Haviabelezaemexcesso,luxúriaemexcesso,bizarro em excesso, um quê de terrível, e não pouco do que poderia tersuscitadoaversão.Esgueirando-seaquiealipelossetesalõesoqueseviadefatoeraumamultidãodesonhos.Eestes—ossonhos—secontorciampor toda parte, assumindo o matiz dos aposentos, e fazendo a frenéticamúsica da orquestra parecer um eco de seus passos. E logo badala orelógio de ébano no salão de veludo. E então, por um momento, tudo équietude, e tudo é silêncio, salvo a voz do relógio. Os sonhos estacam emrígida imobilidade. Mas os ecos do carrilhão se desvanecem — nãoduraram mais que um instante —, e uma risada despreocupada, meiocontida, lutuaatrásdelesconformesevão.Eagoramaisumavezamúsica

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seeleva,eossonhosrevivem,esecontorcemdeumladoaoutrocommaisalegria que nunca, assumindo o matiz dos inúmeros vitrais através dosquais vertem os raios dos tripés.Mas no salão que icamais a oeste dossetenenhumdentre osmascarados se aventura: pois a noite se extinguelentamente; e lá lui a luz mais rubra através das vidraças tintas desangue;eonegrordoscortinadoscordesablehorroriza;eàquelecujopépousanotapetecordesablechegadorelógiodeébanopróximoumdobreabafado mais solenemente enfático do que qualquer um que alcança osouvidosdelesquesecomprazemnaalegriadosdemaisaposentos.Mas esses outros aposentos estavam densamente abarrotados, e neles

bate febrilmente o coração da vida. E a festa prosseguiu rodopiando, atéqueen imcomeçouasoarameia-noitenorelógio.Eentãoamúsicacessou,como que a um comando; e as evoluções dos valsistas se aquietaram; eseguiu-se uma inquietante cessação de todas as coisas, como antes. Masagora havia doze badaladas a soar no sino do relógio; e desse modoaconteceu, talvez,quemaispensamentos se insinuaram, commais tempo,nas meditações dos pensativos dentre aqueles que festejavam. E assim,também, aconteceu talvez de, antes que os últimos ecos do último toquehouvessem mergulhado completamente no silêncio, haver inúmerosindivíduos na multidão que lentamente se deram conta da presença deuma iguramascaradaquenãochamaraaatençãodeumúnico indivíduoantes.Etendoorumordessanovapresençasedisseminadoaossussurrospelos salões, en im surgiu em toda a comitiva um burburinho, oumurmúrio,expressandodesaprovaçãoesurpresa—edepois, inalmente,terror,horroreaversão.Em uma reunião de fantasmagorias tal como essa que pintei, deve-se

muitobemsuporqueparaestimulartalcomoçãoaapariçãonadatinhadeordinária.Naverdadealicençaparafantasiasdanoiteeraquaseilimitada;masa iguraemquestãosuperavaemherodianismoopróprioHerodeseforaalémdos limitesatédo inde inidodecorodopríncipe.Hácordasnoscoraçõesdosmaisnegligentesquenãopodemser tocadassemdespertaremoção. Mesmo para os irremediavelmente perdidos, para quem vida emorte são igualmente pilhérias, há assuntos sobre os quais nenhumapilhéria pode ser feita. A comitiva toda, de fato, parecia agora sentirprofundamente que no traje e na conduta do estranhonão existiamnemhumor, nem civilidade. A igura era alta e descarnada, e amortalhada dacabeça aos pés nas roupagens do túmulo. A máscara que ocultava asfeiçõeserafeitademodotãopróximoaseassemelharaosemblantedeum

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cadáverenrijecidoqueumescrutíniomaisdetidoteriatidodi iculdadeemdetectaroembuste.Econtudotudo issopodiatersidosuportado,quandonãoaprovado,pelosburlescos foliõesemtorno.Maso fantasiadochegaraao extremo de assumir a caracterização da Morte Vermelha. Suavestimentaestavasalpicadadesangue—esuaamplafronte,comtodasasfeiçõesdorosto,aspergidacomohorrorescarlate.Quando os olhos do príncipe Prospero pousaram na espectral imagem

(que com movimentos vagarosos e solenes, como que a sustentarplenamente seu papel, esgueirava-se aqui e ali entre os valsistas), viramtodosqueeratomadodeviolentaagitação,emumprimeiromomentocomum forte estremecimento, de terror ou aversão; mas, em seguida, suafisionomiaenrubesceu-sedefúria.“Quemousa?”, exigiuasperamentesaberdoscortesãospróximosqueo

cercavam, “quem ousa nos insultar assim com essa zombaria blasfema?Agarrai-oedesmascarai-o—demodoquesaibamosquemhaveremosdeenforcarnasameiasaoamanhecer!”Era no salão leste, ou azul, que se achava o príncipe Prospero quando

pronunciouessaspalavras.Elasreverberaramportodososseteaposentosemaltoebomsom—poisopríncipeeraumhomembravoerobusto,eamúsicasilenciaraaumacenodesuamão.Era no salão azul que estava o príncipe, com um grupo de pálidos

cortesãosaoseulado.Noinício,quandofalou,houveumligeiromovimentofarfalhante desse grupo na direção do intruso, que no momento seencontravaquaseaoalcancedamão,eagora,compassosdeterminadosemajestosos, empreendiamaior aproximação daquele que falara. Mas, emvirtude de um certo assombro inominável que a louca encarnação dofantasiadoinspiraraaogrupotodo,nãohouvequemseatrevesseaerguerum dedo para agarrá-lo; de modo que, desimpedido, ele passou a ummetrodapessoadopríncipe; e, conformeavastaplateia, comoqueaumúnicoimpulso,encolhia-sedocentrodossalõesparaasparedes,eleabriacaminhosemsedeter,mascomamesmapassadasoleneecalculadacomque se distinguira desde o início, do salão azul ao púrpura—através dopúrpuraparaoverde—atravésdoverdeparaolaranja—atravésdessedenovoparaobranco—emesmodaíparaovioleta,antesquequalquergesto houvesse sido feito para prendê-lo. Foi então, entretanto, que opríncipeProspero, enlouquecendode fúriaedavergonhade suaprópriacovardia momentânea, disparou apressadamente pelos seis aposentos,embora ninguém o seguisse, por conta de um terror mortal que deles

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todos se apoderara. Brandia no alto uma adaga desembainhada, e seacercara,emrápidaimpetuosidade,adoisoutrêspassosda iguraqueseretirava, quando esta, tendo atingido a extremidade do salão de veludo,virou-sesubitamenteeconfrontouseuperseguidor.Houveumgritoagudo— e a adaga tombou cintilando sobre o tapete cor de sable, no qual,instantaneamente depois disso, caiu prostrado em morte o príncipeProspero.Então,reunindoacoragemselvagemdodesespero,umbandodeconvivas arremeteu num tropel dentro do salão negro, e, agarrando ofantasiado,cuja iguraaltapermaneciaeretaeimóvelàsombradorelógiodeébano,estacouofegantedeindizívelhorroraodescobrirqueosudáriotumulareamáscaracadavéricadequesehaviamapossadocomtamanhabrutalidadeeviolêncianãoeramocupadospornenhumaformatangível.

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E agora era reconhecida a presença da Morte Vermelha. Ela entraracomo um ladrão na calada da noite. E, um a um, tombaram os festivos

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convivasnossalõesorvalhadosdesanguedesua festa,emorreramumaum na posição de desespero em que tombaram. E a vida do relógio deébano se extinguiu junto com a do último folião. E as chamas dos tripésexpiraram. E as Trevas e a Dissolução e a Morte Vermelha estenderamseusilimitadosdomíniossobreelestodos.

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OENTERROPREMATURO

Hádeterminados temascujo interesseésumamenteabsorvente,masquesãopordemaishorríveisparapropósitosde icção legítima.Delesomeroromancista deve esquivar-se, se não deseja ofender, ou causar aversão.São tratados apropriadamente apenas quando a severidade e agrandiosidade da Verdade os santi icam e sustentam. Vibramos, porexemplo, comamais intensa “dordeprazer”nos relatosdaTravessiadoBérézina, doTerremotode Lisboa, daPeste emLondres, doMassacredeSão Bartolomeu ou da as ixia dos cento e vinte e três prisioneiros noBuracoNegrodeCalcutá.Mas,nessesrelatos,éofato—éarealidade—éa história que empolga. Se inventados, iríamos encará-los com simplesrepúdio.Mencionei algumas das calamidadesmais notórias e eminentes de que

se temnotícia;mas,nelas, éamagnitude,nãomenosdoqueocaráterdacalamidade, que tão vividamente impressiona a imaginação. Não precisolembrar o leitor que, dentre o longo e esquisito catálogo de misériashumanas,eupoderia terselecionado inúmerosexemplos individuaismaisrepletos de sofrimento essencial do que qualquer uma dessas vastasgeneralidades de desastre. A verdadeira desgraça, de fato— a supremacalamidade —, é particular, não difusa. Que os extremos macabros daagonia sejam suportados pelo homem enquanto unidade, e nunca pelohomem enquantomassa— por conta disso graças sejam dadas ao Deusmisericordioso!Ser enterrado vivo é, semdiscussão, omaismedonhodesses extremos

quejamaisseabateramsobreacastademeramortalidade.Queissotenhaocorrido com frequência, com muita frequência, di icilmente poderá sernegado por aqueles que pensam. As fronteiras que dividem a Vida e aMortesão,namelhordashipóteses,obscurasevagas.Quempoderádizeronde uma termina e onde a outra começa? Sabemos da existência deenfermidades em que ocorre a total cessação de todas as funçõesaparentes de vitalidade, e nas quais contudo essas cessações sãomeramente suspensões, propriamente falando. São apenas pausastemporáriasnomecanismoincompreensível.Umcertoperíodotranscorre,ealgummisteriosoprincípiomaisumavezpõeemmovimentoosmágicosescaposeasenfeitiçadasengrenagens.O iodeprataaindanãosesoltoupara sempre, tampouco o cálice de ouro se quebrou irremediavelmente.Masonde,nessemeio-tempo,ficouaalma?

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À parte, entretanto, a conclusão inevitável,a priori, de que tais causasdevemproduzirtaisefeitos—dequeabemconhecidaocorrênciadetaiscasos de animação suspensa deve naturalmente ensejar, de vez emquando, sepultamentos prematuros — à parte essa consideração,contamos como testemunhodiretoda experiênciamédica e comumparaprovar que um vasto número de tais sepultamentos efetivamenteaconteceu. Posso fazer referência imediata, se necessário, a uma centenade exemplos devidamente certi icados. Um de caráter deveras notável, ecujas circunstâncias devem estar bem frescas na memória de alguns demeus leitores, teve lugar, há não muito tempo, na cidade vizinha deBaltimore, onde ocasionou uma comoção dolorosa, intensa e amplamentedisseminada. A esposa de um de seus mais respeitados cidadãos —advogado eminente e membro do Congresso — foi acometida de umaenfermidadesúbitaedesconhecidaqueiludiucompletamenteaperíciadeseus médicos. Depois de muito sofrer ela morreu, ou supostamentemorreu. Ninguém suspeitava, na verdade, ou tinha razão para suspeitar,que não estava morta de fato. Ela apresentava todas as característicasordinárias da morte. O rosto assumira os usuais contornos a litos eencovados. Os lábios icaram com a usual palidez do mármore. Os olhosembaciaram.Nãohaviacalor.Apulsaçãocessara.Portrêsdias,ocorpofoiconservado insepulto,ao longodosquaiseleadquiriuumarigidezpétrea.Ofuneral,emresumo,foiapressado,porcontadorápidoavançodoquesesupunhaseradecomposição.A senhora foi depositada em sua cripta familiar, que, pelos três anos

subsequentes,permaneceuimperturbada.Aoexpiraresseprazo,abriram-na para que recebesse um sarcófago; — porém, hélas! que choqueassustadoraguardavaomarido,que,empessoa,abriuagaleria.Conformeas portas eram puxadas para trás, um objeto em brancas roupagensdesabouruidosamenteemseusbraços.Eraoesqueletodesuaesposaemsuamortalhaaindanãodeteriorada.Uma cuidadosa investigação evidenciou que havia revivido dois dias

apóso sepultamento—que sua lutadentrodoataúdeo levaraa tombardeuma saliência, ouprateleira, parao chão, onde sequebroudemodoapermitirqueamulherescapasse.Umalamparinaqueforaacidentalmentedeixada, cheia de óleo, dentro da tumba, foi encontrada vazia; talvezhouvesseseexaurido,entretanto,porevaporação.Nodegrausuperiordaescada que descia à pavorosa câmara jazia um pedaço do ataúde, com oqual aparentemente ela tentara chamar a atenção, golpeando a porta de

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ferro. Nesse processo, provavelmente desfalecera, ou possivelmentemorrera,depuroterror;e,aocair,suamortalhaseengancharaemalgumornamento de ferro que se projetava internamente. Desse modopermaneceu,edessemodoapodreceu,ereta.No ano de 1810, um caso de inumação em vida ocorreu na França,

cercadodecircunstânciasquecerti icamemlargamedidaaa irmaçãodeque a verdade é, de fato, mais estranha que a icção. A heroína dessahistóriafoiumacertaMademoiselleVictorineLafourcade,jovemdeilustrefamília,dotadaderiquezaedegrandebelezapessoal.Entreseusinúmerospretendentesestava JulienBossuet,umpobre littérateur,ou jornalista,deParis.Seustalentoseamabilidadegeralhaviam-nolevadoaoconhecimentodaherdeira,porquempareciasergenuinamenteamado;masoorgulhodeseu berço a fez se decidir, no im, a rejeitá-lo, e casar-se com um certoMonsieur Rénelle, banqueiro, e diplomata de alguma eminência. Após ocasamento,entretanto,essecavalheiroanegligencioue, talvezatémesmomais seguramente, a maltratou. Tendo vivido com ele alguns anosmiseráveis, ela morreu — pelo menos, de tal modo sua condição seassemelhava àmorte que ludibriou todos que a viram. Foi enterrada—não em uma cripta — mas em um túmulo comum, na vila de seunascimento.Cheiodedesespero, eainda in lamadopelamemóriadeumaprofunda ligação, o amado empreende a jornada da capital até a remotaprovíncia onde ica a vila, com o propósito romântico de desenterrar ocadáver e se apossar de suas fartas madeixas. Ele chega ao túmulo. Àmeia-noite, desenterra o caixão, abre a tampa e, no precisomomento emque corta os cabelos, ica paralisado pelo abrir dos adorados olhos. Naverdade, a mulher fora enterrada viva. A vitalidade não a deixara porcompleto; e ela foi despertada, por meio das carícias de seu amado, daletargiaqueforatomadapormorte.Eleacarregoufebrilmenteparaseuspróprios aposentos na vila. Empregou certos poderosos forti icantessugeridosporseusnadadesprezíveisconhecimentosmédicos.Finalmente,elareviveu.Reconheceuseusalvador.Permaneceucomeleatéque,passoapasso,recuperasseasaúdeoriginal.Seucoraçãodemulhernãoerafeitodepedraeessaúltimademonstraçãodeamorbastouparasuavizá-lo.ElaoentregouaBossuet.Nãovoltoumaisparaomarido,masocultoudele suaressurreição, fugiu com seu amado para a América. Vinte anos depois,ambos regressaram à França, persuadidos de que o tempo operara umamudança tão grande na aparência da mulher que seus amigos seriamincapazes de reconhecê-la. Entretanto, equivocaram-se; pois, na primeira

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vez em que a viu, Monsieur Rénelle de fato a reconheceu e reclamou aesposa de volta. Ela resistiu a isso; e um tribunal respaldou-a em suaoposição; decidindo que as peculiares circunstâncias, com o prolongadolapsode anos, extinguiramnão apenasporumaquestãode justiça, comotambémlegalmente,aautoridadedomarido.O Jornal Cirúrgico de Leipzig — periódico de grande autoridade e

mérito,quealgumlivreiroamericanodeveriaporbemtraduzirepublicar— registra, em número recente, um evento deveras perturbador dosingularcomportamentoemquestão.Umo icialdeartilharia,homemdeestaturagigantescaesaúderobusta,

sendo derrubado de um cavalo indomável, sofreu grave concussão nacabeça, que, na mesma hora, deixou-o insensível; o crânio foi levementefraturado; mas nenhum dano imediato se receou. A trepanação foiexecutada com sucesso. Procederam à sangria, e inúmeros outros meiosusuais de alívio foram adotados. Gradualmente, entretanto, ele caiu cadavezmaisnumestado irreversíveldeestupor;atéque inalmente foidadocomomorto.Fazia calor; e ele foi enterrado com pressa indecente, num dos

cemitérios públicos. Seu funeral teve lugar na quinta-feira. No domingoseguinte,ocemitério,comodecostume,estavaabarrotadodevisitantes;e,por volta domeio-dia, uma intensa comoção foi criada pela a irmação deum camponês de que, ao sentar no túmulo do o icial, sentira nitidamenteumamovimentaçãona terra, comoqueprovocadapor algo se debatendosobela.Deinício,poucaatençãoseprestouaotestemunhodosujeito;masseu evidente terror, e a teimosa obstinação com que insistiu na história,tiveram, inalmente,seuefeitonaturalsobreamultidão.Acorreramtodosaprocurar pás, e a cova, que era vergonhosamente rasa, foi, em poucosminutos,abertadetalmodoqueacabeçadeseuocupantesurgiu.Estava,aparentemente, morto; mas jazia quase ereto dentro de seu caixão, cujatampa,emsuafuriosaluta,eleergueraparcialmente.Foi transportado de imediato para o hospital mais próximo e ali

diagnosticaram-nocomoaindavivo,emboraemcondiçãodeas ixia.Depoisdealgumashoras reviveu, reconheceu indivíduosde seu conhecimentoe,comfrasesentrecortadas,contoudesuasagoniasnotúmulo.Pelo que relatou, icou claro que devia ter permanecido consciente de

estarvivopormaisdeumahora,enquanto inumado,antesdemergulharna insensibilidade. O túmulo foi descuidada e frouxamente enchido comum solo excessivamente poroso; e assim algum ar foi necessariamente

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admitido.Eleescutouospassosdamultidãoacimaeempenhou-seporsuavezemsefazerouvir.Foiotumultonointeriordocampo-santo,disse,queaparentemente o despertou de seu sono profundo — mas nem bemacordoutomouplenaconsciênciadospavorososhorroresdesuacondição.Esse paciente, informa o relato, passava bem, e pareceu bem

encaminhadoparaaplenarecuperação,mascaiuvítimadascharlatanicesda experimentação médica. A pilha galvânica lhe foi aplicada; e ele derepente expirou num desses paroxismos extáticos que, ocasionalmente,essabateriainduz.Amenção à pilha galvânica, todavia, me traz àmemória um caso bem

conhecido e dosmais extraordinários emque o procedimento se reveloue icazemdevolveràanimaçãoumjovemadvogadodeLondresque icaraenterrado por dois dias. Isso ocorreu em 1831, e criou, na época, umasensaçãodasmaisprofundasondequerqueoassuntofossefeitoobjetodeconversa.O paciente, o sr. Edward Stapleton, morrera, aparentemente, de febre

tifoide, acompanhada de determinados sintomas anômalos que haviamexcitado a curiosidade dosmédicos que o atenderam. Por ocasião de seuaparente falecimento, solicitou-se a seus amigos que autorizassem umex amepost mortem , mas eles se negaram a fazê-lo. Como tãofrequentemente acontece quando essas recusas são apresentadas, osdoutoresresolveramexumarocorpoedissecá-locomvagar,emsegredo.Os arranjos foram facilmente providenciados com um dos inúmerosbandosde ladrõesdecadáveresqueabundamemLondres;e,naterceiranoiteapóso funeral,osupostomorto foidesenterradodeumtúmulocomoito pés de profundidade, e depositado na sala de operações de um doshospitaisparticulares.Uma incisão de determinada extensão fora efetivamente feita no

abdômen quando o aspecto fresco e incorrupto do paciente sugeriu umaaplicação da pilha. Um experimento seguiu-se ao outro, e os costumeirosefeitos sobrevieram, com nada a caracterizá-los em nenhum particular anãoser,emumaouduasocasiões,umgrauumpoucoacimadocomumdevivacidadenaaçãoconvulsiva.Ahoraiaadiantada.Odiaestavaprestesaraiar;ejulgou-seapropriado,

en im, proceder de uma vez à dissecção. Um aluno, entretanto, estavaespecialmente desejoso de testar uma teoria sua e insistiu em aplicar apilha a um dos músculos peitorais. Um rude talho foi aberto e um ioapressadamenteconectado;enissoopaciente,comummovimentorápido

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masnãoconvulsivo, ergueu-sedamesa,parounomeioda sala,olhouemtornocominquietaçãoporalgunssegundosedepois—falou.Oquedissefoi ininteligível; mas palavras foram pronunciadas; e as sílabas eramdistintas.Tendofalado,eledesaboupesadamentenochão.Poralgunsmomentos todos icaramparalisadosdeassombro—masa

urgênciado caso logo lhes restituiu apresençade espírito. Foipercebidoqueosr.Stapletonestavavivo,emboradesfalecido.Aoserexpostoaoéterele reviveu e teve sua saúde rapidamente restaurada, e assim voltou àcompanhia de seus amigos — diante dos quais, entretanto, todoconhecimento de sua ressuscitação foi ocultado até que uma recaídadeixasse de ser motivo de apreensão. Pode-se imaginar a estupefaçãodeles—suaenlevadaperplexidade.Amaisempolgantepeculiaridadedesseincidente,todavia,residenoque

oprópriosr.Stapletona irma.Eledeclaraqueemmomentoalgumesteveinteiramente insensível — que de um modo entorpecido e confusopermaneceu consciente de tudo que lhe ocorria, do instante em que foideclaradomortoporseusmédicosatéaqueleemquetomboudesfalecidonochãodohospital. “Estouvivo” foramaspalavras incompreendidasque,aoreconheceralocalidadedasaladedissecção,esforçara-se,emsuahoradeextremaaflição,porpronunciar.Seriacoisafácilmultiplicarhistóriascomoessas—masabstenho-me—,

pois, na verdade, não temos necessidade de outras nesse teor paradeterminar o fato de que sepultamentos prematuros ocorrem. Quandore letimos com que raridade, dada a natureza do caso, está ao nossoalcance detectá-los, devemos admitir que devem ocorrer frequentementesem que deles tomemos conhecimento. Di icilmente, com efeito, umcemitério é objeto de intromissão, com qualquer propósito, seja em queextensão o for, sem que esqueletos não sejam encontrados em posturasquesugeremamaisassustadoradassuspeitas.Assustadora com efeito a suspeita— porém, mais assustadora a sina!

Pode-se a irmar, sem hesitação, quenenhum evento é tão terrivelmentecapaz de inspirar a suprema angústia do corpo e da mente quanto oenterro antes da morte. A insuportável opressão dos pulmões — ossufocantesvaporesda terraúmida—oestorvodasvestes fúnebres—oabraço rígido da morada estreita — as trevas da Noite absoluta — osilêncioopressivocomoumoceano—apresençainvisívelmaspalpáveldoVermeVencedor—essascoisas,compensamentosdoaredarelvaacima,com a lembrança dos amigos queridos que viriam voando em nosso

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socorroseaomenossoubessemdenossodestino,ecomaconsciênciadeque sobre esse destino elesnunca saberão— de que a desesperançadaquotaquenoscabeéadosverdadeiramentemortos—taisconsiderações,a irmo, trazem ao coração, que ainda palpita, um grau de horrorconsternado e intolerável perante o qual a imaginação mais ousada sóconsegue se encolher. Não sabemos de nada tão agonizante na face daterra—não somos capazesde sonhar comnadaque sejanemametadetão hediondo nos domínios do Inferno mais subterrâneo. E desse modotoda narrativa a respeito desse assunto guarda um interesse profundo;interesse, todavia, que, por intermédio do sagrado assombro do assuntoem si,mui apropriada emui peculiarmente, depende de nossa convicçãosobreaveracidadedocasonarrado.Oqueagoratenhoarelatarédemeupróprio conhecimento efetivo — de minha própria experiênciaincontestávelepessoal.Por vários anos tenho sido sujeitado a ataques da singular desordem

que os médicos acharam por bem chamar de catalepsia, na falta dedenominaçãomaisprecisa.Emboratantoascausasimediatascomoasquepredispõem à doença, e até seu efetivo diagnóstico, continuem sendomistérios, seu caráter óbvio e aparente é su icientemente bemcompreendido. Suas variações parecem ser principalmente de grau. Àsvezesopacientecai,porapenasumdia,ouatéperíodomaiscurto,numaespécie de exagerada letargia. Ele ica sem sentidos e externamenteparalisado;masapulsaçãodocoraçãopermanecedebilmenteperceptível;algunsvestígiosdecalorcontinuam;umaligeiracoloraçãoseguea lorandoao centro das maçãs; e, ao se aplicar um espelho diante dos lábios,podemosdetectarumaaçãoentorpecida,desigualevacilantedospulmões.Ouentão,poroutrolado,aduraçãodotranseédesemanas—atémeses;enquanto o escrutínio mais detido, e os testes médicos mais rigorosos,fracassam em determinar qualquer distinção material entre o estado dopacienteeoqueconcebemoscomoamorteabsoluta.Muitonormalmente,eleésalvodoenterramentoprematurounicamentepeloconhecimentoquetem seus amigos de já ter sido previamente vítima da catalepsia, pelaconsequentedescon iançasuscitadae,acimadetudo,pela inexistênciadedecomposição. O progresso da enfermidade é, felizmente, gradual. Asprimeiras manifestações, embora marcadas, são inequívocas. Os acessosvão icando sucessivamente cada vez mais distintos e cada um dura umperíodo maior do que o precedente. Nisso reside a principal garantiacontraa inumação.Odesafortunadocujoprimeiroataquefossedocaráter

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extremo que ocasionalmente é visto seria quase inevitavelmenteconsignadoaindaemvidaàtumba.Meu próprio caso não diferia em nenhuma particularidade importante

dos que são mencionados nos tomos médicos. Às vezes, sem qualquercausa aparente, eu mergulhava, pouco a pouco, em uma condição desemissíncope,oudequasedesfalecimento;e,nessacondição,semdor,semcapacidade para me mexer ou, estritamente falando, pensar, exceto porumaconsciência letárgicadeestarvivoedapresençadaquelesem tornode meu leito, aí permanecia, até que a crise da enfermidade merestaurasse, subitamente, a uma perfeita sensação. Em outras vezes erarápida e impetuosamente arrebatado. Ficava cada vez mais doente,entorpecido, gelado, tonto, e desse modo caía prostrado quaseimediatamente. Então, por semanas tudo era vazio, escuro, silêncio, e oNadase transformavanouniverso.A totalaniquilaçãonão teria idoalém.Dessesúltimosataqueseudespertava, entretanto, comumagradaçãoemvagarqueeraproporcionalàsubitaneidadedoacometimento.Assimcomoodiaalvoreceparaomendigosemamigosesemmoradaqueperambulapelasruasdurantea longaedesoladanoitede inverno—igualmente tãotardia—igualmente tãoextenuada—igualmente tão jubilosaregressavaaluzdeminhaAlma.À parte a tendência ao transe, entretanto, minha saúde geral parecia

bem; tampouco podia eu sentir que fosse de algum modo afetada pelapresentemoléstia—amenos,defato,queumaidiossincrasiaemmeusonousualpudesseserencaradacomodeladerivada.Acordandodeumcochilo,eununcaconseguia,deimediato,tomarpossedemeussentidos,esemprepermanecia, durante alguns minutos, em grande desnorteamento eperplexidade; — as faculdades mentais em geral, mas a memória emparticular,ficandoemumacondiçãodeabsolutasuspensão.Em tudo que eu suportava não havia sofrimento ísico, mas a a lição

moral era de caráter in inito. Meus pensamentos eram cada vez maisfúnebres.Eu falava“devermes,de tumbas,deepitá ios”. 15 Perdia-meemdevaneiosdemorte,eaideiadeenterroprematuroseapossaradeformade initiva de meu cérebro. O macabro Perigo ao qual me sujeitavaassombrava-me dia e noite. No primeiro, a tortura da meditação eraexcessiva — no segundo, suprema. Quando as Trevas austeras seespalhavam pela Terra, nesse momento, com o próprio horror dopensamento eu tremia— tremia comoasplumas trêmulas sobre o carrofunerário. Quando a Natureza já não mais podia suportar a vigília, era

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relutantequeeuconsentiaemadormecer—poiscalafriosmepercorriamaore letirque,aoacordar,talvezmevissecomooocupantedeumtúmulo.Equando, inalmente,mergulhavanosono,eraapenasparaprecipitar-merepentinamente num mundo de fantasmagorias, acima do qual, comamplas asas negras, eclipsantes, pairava, predominante, aquela Ideiasepulcral.Das inumeráveis imagensdemelancolia quedessemodomeoprimiam

emsonhos,escolhopararelatarapenasumavisãosolitária.Parece-mequetal se deu quando me encontrava imerso em um transe cataléptico deduraçãoeprofundidademaisdoqueusuais.Derepentesentiaquelamãogelada emminha testa e uma voz impaciente, balbuciante, sussurrou emmeuouvido,“Ergue-te!”.Sentei-meereto.Astrevaseramabsolutas.Nãopodiaenxergara igura

daquelequemedespertara.Nãoera capazdeevocarnamente sequeroperíodo em que caíra no transe, tampouco o lugar onde agora jazia.Enquanto permanecia imóvel, e me ocupava laboriosamente de ordenarmeus pensamentos, a mão fria agarrou-me ferozmente pelo pulso,sacudindo-ocominsolência,enquantoavozbalbuciantedisseoutravez:“Ergue-te!acasonãoteordeneiqueteerguesses?”“Equemés?”,protestei.“Não tenho nome nestas plagas que habito”, replicou a voz,

pesarosamente; “fui mortal, mas sou demônio. Fui impiedoso, mas soudigno de pena. Sentes como tremo. Meus dentes batem quando falo, econtudo, não é pela frialdade da noite — da noite sem im. Mas essahediondez é insuportável. Como podestu dormir assim tranquilamente?Nãoencontrorepousocomoclamordessasenormesagonias.Essasvisõessãomaisdoquepossosuportar.Levanta-te!Acompanha-mepelaNoite láfora e deixa-me que te exponha os túmulos. Não é um espetáculocalamitoso?—Contempla!”Olhei; e a igura invisível, que continuava ame agarrar pelo pulso, fez

comque se escancarassemos túmulos de toda a humanidade; e de cadaumseprojetouatênueradiânciafosfóricadapodridão;demodoquepudeenxergar seus recessos mais recônditos, e ali espreitar os corposamortalhadosemseusonotristeesolenecomoverme.Porém,aidemim!osgenuinamenteadormecidoseramemnúmeromuitosmilhõesdevezesmenor do que aqueles que não dormiam em absoluto; e houve um débildebater; e houve um desassossego geral e triste; e das profundezas das

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incontáveis covas brotou um farfalhar melancólico dos vestuários dosinumados.Edentreosquepareciamrepousartranquilamentepercebiumvastonúmeroquemudara, emmaior oumenor grau, da posição rígida edesconfortávelemquehaviamsidooriginalmentesepultados.Eavozmaisumavezmedisse,enquantoeucontemplava:“Nãoémesmo—oh,nãoémesmoumavisãodeplorável?”—mas,antes

queeuencontrassepalavraspararesponder,a iguradeixaradesegurarmeu pulso, as luzes fosfóricas expiraram e os túmulos cerraram comviolência súbita, conforme de dentro deles erguia-se um tumulto delamentosdesesperados,dizendooutravez—“Nãoémesmo—oh,Deus!nãoémesmoumavisãoassazdeplorável?”Fantasias tais como essas, apresentando-se à noite, estendiam sua

in luênciaterri icanteaminhavigíliaporhorasa io.Meusnervos icaramcompletamente em frangalhos e caí vítima de um horror perpétuo. Euhesitava em cavalgar, ou caminhar, oume entregar a qualquer exercícioque me afastasse de casa. De fato não mais ousava deixar a presençaimediata daqueles que tinham consciência de minha propensão para acatalepsia, por receio de, sofrendo um demeus costumeiros acessos, serenterrado antes que minha real condição pudesse ser averiguada. Euduvidava dos cuidados, da idelidade demeus amigosmais caros. Temiaque, em um transe de duração mais do que costumeira, pudessem sepersuadir de quemeu estado era irrecuperável. Chegueimesmo a pontode recear que, por ocasionar tantos problemas, pudessem de bom gradoconsiderar qualquer ataquemais prolongado como justi icativa su icientepara se livrar de mim de uma vez por todas. Era em vão que seempenhavamemmetranquilizarmedianteasmaissolenespromessas.Eulhesarrancavaas jurasmaissagradasdequesobnenhumacircunstânciaprocederiam ao meu enterro até que a decomposição estivessematerialmente adiantada de tal forma a tornar a preservação por maistempo impossível. E,mesmo então,meus terroresmortais não escutavamrazãoalguma—nãoaceitavamconsoloalgum.Comeceiaempreenderumasérie de elaboradas precauções. Entre outras coisas, mandei reformar acriptadafamíliademodoapermitirquefossefacilmenteabertadoladodedentro.Amaislevepressãosobreumacompridaalavancaqueseestendiabem adentro da tumba faria com que as portas de ferro se abrissem.Providênciasforamtomadastambémparaalivreadmissãodeareluz,eoacesso a recipientes com comida e água, ao imediato alcance do caixãopreparado para me receber. Esse caixão era acolchoado de modo

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aconchegante e macio e dotado de uma tampa feita segundo o mesmoprincípio da porta da cripta, com a adoção de molas concebidas de talmodoqueomais ligeiromovimentodocorposeriasu icienteparaganharaliberdade.Alémdissotudo,havia,suspensodotetodatumba,umgrandesino,cujacordaforainstaladademodoapassarporumburaconocaixãoeicaramarradaemumadasmãosdocadáver.Mas,aidemim!dequevaleavigilânciacontraoDestinodohomem?Nemmesmoessesdispositivostãobem engendrados bastaram para poupar das mais extremas agonias dainumaçãoemvidaumamaldiçoadocondenadodeantemãoataisagonias!Foi chegadaumaépoca—como tantas vezes outrora chegara, emque

me via emergindo da total inconsciência para uma primitiva sensação deexistência tênue e indecisa. Vagarosamente— a um passo lentígrado—aproximou-se a débil aurora cinzenta do dia medianímico. Umdesassossego entorpecido. A apática persistência de uma dor surda.Nenhuma apreensão—nenhuma esperança—nenhum afã. Então, apóslongo intervalo,umzunirnosouvidos;então,após lapsoaindamais longo,umasensaçãode formigamentooucomichãonasextremidades;entãoumperíodo aparentemente eterno de prazerosa latência, durante o qual ossentimentos de despertar contendem dentro do pensamento; então umabrevereimersãononãoser;entãoumsúbitorestabelecimento.Finalmenteo ligeiro estremecimento de uma pálpebra e, imediatamente em seguida,um choque elétrico de terror, letal e difuso, que lança o sangue emtorrentesdastêmporasparaocoração.Eagoraoprimeiropositivoesforçode pensar. E agora o primeiro empenho em lembrar. E agora um êxitoparcial e evanescente. E agora a memória recuperou de tal forma seudomínioque,emcertamedida,tenhociênciademeuestado.Sintoquenãoestoudespertandodosonoordinário.Recordoquefuivítimadacatalepsia.Eagora,en im,comoqueinvadidoporumoceano,meuespíritotrêmuloésubjugado por aquele Perigo austero — por aquela Ideia espectral eonipresente.Por alguns minutos depois que essa quimera me possuiu, permaneci

imóvel. E por quê? Era incapaz de reunir coragem de me mover. Nãoousava empreender o esforço para me certi icar de meu destino — econtudo havia algo em meu íntimo sussurrando queele era certo . Odesespero—talcomonenhumaoutraespéciede infortúnio jamais trazàexistência —, somente o desespero instou-me, após prolongadairresolução,aergueraspesadaspálpebrasdemeusolhos.Ergui-as.Estavaescuro— tudo escuro. Eu sabia que o acometimento terminara. Eu sabia

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que a crise de meu distúrbio passara havia muito. Eu sabia que haviaagora recuperado plenamente o uso de minhas faculdades visuais — econtudo estava escuro — tudo escuro — a intensa e completatenebrosidadedaNoitequeduraparatodoosempre.Empenhei-me em gritar; e meus lábios e minha língua ressecada

moveram-se juntos convulsivamente na tentativa — mas voz algumadeixouoscavernosospulmões,que,opressoscomoquepelopesodeumamontanha esmagadora, arquejaram e palpitaram, com o coração, a cadainspiraçãolaboriosaedifícil.Omovimentodosmaxilares,nesseesforçodegritaremvozalta,revelou-

mequeestavamatados,comoédecostumeprocedercomosmortos.Sentiaindaquejaziasobrealgumadurasubstância;epormatériasimilarmeuslados estavam, também, estreitamente comprimidos. Até lá, não meaventurara ainda a mexer nenhum de meus membros— mas agora osbraços,queantesrepousavamdecomprido,comospulsoscruzados,euosagitava violentamente. Eles se chocaram contra uma sólida substância demadeira, que se estendia acimademimaumaelevaçãodenãomaisqueumpalmodemeurosto.Nãopodiamaisduvidarquerepousavadentrodeumcaixão,enfim.Enisso,emmeioatodasasminhasin initasmisérias,surgiudocemente

oquerubimEsperança—poispenseiemminhasprecauções.Contorci-me,eempreendiespasmódicasdiligênciasparaforçaratampaaabrir:elanãosemoveu.Tateeiospulsosàprocuradacordadosino:nãoaencontrei.Eagora o Paracleto me deixava para sempre, e um Desespero aindamaisaustero imperava triunfante; pois eu não podia deixar de perceber aausênciadosestofamentosquetãocuidadosamentepreparara—eentão,além disso, penetrou repentinamente em minhas narinas o odorfortemente peculiar de terra úmida. A conclusão era inescapável. Eunãoestavadentrodacripta.Caíraemumtransequandomeausentavadecasa— quando me encontrava entre estranhos — quando, ou como, eraincapazde lembrar—ehaviamsidoessesquemeenterraramcomoumcão—encerradoapregosemumcaixãocomum—eatirado,fundo,fundo,eparasempre,emalgumordinárioeanônimotúmulo.

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Conforme essa pavorosa convicção assim se entranhava nos recessosmais interiores deminha alma, eumais uma vez lutava por gritarmuitoalto. E nessa segunda tentativa fui bem-sucedido. Um longo, selvagem econtínuo lamento, ou urro, de agonia ressoou pelos domínios da Noitesubterrânea.“Ei!ei,aqui!”,disseumarudevozemresposta.“Qualoproblemaagora,comosdiabos?”,disseumasegunda.“Forajádaí!”,disseumaterceira.

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“Que negócio é esse, de guinchar assim desse jeito, como um gatoselvagem?”, disse uma quarta; e nisso fui agarrado e sacudido semcerimônia,duranteváriosminutos,porumbandodeindivíduosdoaspectomaisrústico.Nãoforamelesquemedespertaramdemeusono—poiseuestavaplenamenteacordadoquandogritei—,maselesmedevolveramàplenapossedeminhamemória.EssaaventuraocorreupertodeRichmond,naVirginia.Nacompanhiade

um amigo, eu descera, em uma expedição de caça, algumasmilhas pelasmargensdorio James.Anoiteseaproximava,e fomossurpreendidosporuma tempestade. A cabine de uma pequena chalupa ancorada no rio, ecarregada com terra para jardim, constituía o único abrigo disponível.Ajeitamo-nosomelhorpossívelepassamosanoiteabordo.Dormiemumdos dois únicos beliches que havia no barco — e os beliches de umachalupa de sessenta ou setenta toneladas di icilmente precisam serdescritos. O que ocupei não tinha acolchoamento de espécie alguma. Sualargura mais ampla não ultrapassava meio metro. A distância entre seuestradoeoconvésacimaeraprecisamenteamesma.Julgueiumatarefadeextrema di iculdademe espremer ali. Todavia, adormeci pesadamente; etoda a minha visão — pois não era sonho, nem pesadelo — surgiunaturalmente das circunstâncias de minha posição — de minha usualinclinaçãodepensamento—edadi iculdade,àqualjáaludi,emrecobraros sentidos, e sobretudo em recuperar a memória, por um longo tempoapósdespertardo sono.Oshomensquemesacudiramerama tripulaçãoda chalupa, e alguns trabalhadores encarregados de descarregá-la. Daprópriacargaveioocheirodeterra.Aataduraemmeusmaxilareseraumlençodesedaemqueeuenvolveraa cabeça,na faltademeucostumeirogorrodedormir.Astorturasquevivenciei,entretanto, foramindubitavelmente iguais,no

momento, às de uma autêntica sepultura. Eram assustadoramente —inconcebivelmentehediondas;masháMalesquevêmparaBem;pois seupróprio excesso operou emmeu espírito uma inevitável revulsão. Minhaalmaadquiriu tônus—adquiriu têmpera.Viajeiaoestrangeiro.Exercitei-mecomvigor.InaleioarlivredoCéu.PenseiemoutrosassuntosquenãoaMorte.Des iz-medemeus livrosdemedicina.QueimeimeuBuchan.Nadamais de lerNightThoughts—nadamaisdearanzéis sobre cemitérios—nadamaisdehistóriasdebichos-papões—comoesta.Emresumo,tornei-me um novo homem, e vivi a vida de um homem. A partir dessa noitememorável, des iz-me para sempre de minhas apreensões sepulcrais, e

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com elas desapareceu o distúrbio cataléptico, do qual, provavelmente,haviamsidomenosaconsequênciadoqueacausa.Hámomentos emque,mesmoaosolhos sóbriosdaRazão, omundode

nossa triste Humanidade pode assumir a similitude do Inferno—mas aimaginação do homem não é nenhuma Carathis para explorarimpunementecadacavernaqueelecontém.Aidemim!aausteralegiãodeterroresfunestosnãopodeserencaradacomopuroprodutodafantasia—mas, como os Demônios em cuja companhia Afrasiab empreendeu suaviagem a jusante do Oxus, eles devem dormir, ou irão nos devorar —devemestarsujeitosaosono,ounósperecemos.

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OENCONTROMARCADO16

Esperapormimlá!Nãodeixareideteencontrarnaquelevaleprofundo.(Exéquiaspelamortedesuaesposa,porHenryKing,bispodeChichester)

Malfadado emisterioso homem!—desnorteadono brilho de tua própriaimaginação, e caído nas chamas de tua própria juventude!Mais uma vezem minha mente te contemplo! Novamente tua forma assoma perantemim!— não— oh, não como estás— no vale frio e na sombra—mascomodeverias estar — dissipando uma vida de magní ica meditaçãonaquela cidade de turvas visões, tua própria Veneza— esse Elísio, essaestrela adorada dos oceanos, e cujas janelas amplas em seus paláciospalladianos itamcomdeliberaçãoprofundaeacerbaossegredosdesuaságuas silentes. Sim! Repito — comodeverias estar . Há decerto outraspalavras além dessa— outros pensamentos que não os pensamentos damultidão—outrasespeculaçõesquenãoasespeculaçõesdoso ista.Quemdessemodo questionará tua conduta? quem te inculpará por tuas horasvisionárias, ou denunciará aquelas ocupações como um de inhamento davida, que não foram senão os transbordamentos de tuas perpétuasenergias?FoiemVeneza,sobacoberturadoarcoquechamamdePontediSospiri,

que encontrei pela terceira ou quarta vez a pessoa de quem falo. É comuma recordação confusa que trago à memória as circunstâncias desseencontro.Econtudomelembro—ah!comopoderiaesquecer?—acaladada noite, a Ponte dos Suspiros, a beleza damulher, o Gênio do Romancequeespreitavaedesciaoestreitocanal.Eraumanoitede inusualescuridão.OgranderelógiodaPiazzasoaraa

quinta hora da noite italiana. A praça do Campanário estava silenciosa edesertaeasluzesnoantigoPaláciodoDogeseapagavamrapidamente.Euvoltava da Piazetta, navegando pelo Grande Canal. Mas quando minhagôndolachegoudooutroladodafozdocanalSanMarco,umavozfemininaoriunda de seus recessos rompeu a noite subitamente, com um gritodescontrolado, histérico, prolongado. Alarmado pelo som, pus-me de péimediatamente:aopassoqueogondoleiro,deixandoescorregarseuúnicoremo, perdeu-o naquele negror de breu sem qualquer chance de

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recuperá-lo, demodo que consequentemente fomos levados ao sabor dacorrente, que nesse ponto lui do canal maior para o menor. Como umcondor imenso de negras plumagens, íamos lentamente à deriva nadireçãodaPontedosSuspirosquandoumain inidadedetochasbrilhandonas janelas e descendo pelas escadarias do Palácio do Dogetransformaram subitamente a profunda escuridão em um dia lívido eprematuro.Umacriança,escorregandodosbraçosdesuaprópriamãe,caíradeuma

janela superior da elevada estrutura nas profundezas do turvo canal. Aságuastranquilasenvolveramplacidamentesuavítima;e,conquantominhaprópriagôndolafosseaúnicaàvista,inúmerosarrojadosnadadores,jánaágua, buscavam em vão pela super ície o tesouro que esperava por serencontrado,hélas! apenas dentro do abismo. Sobre as amplas lajes demármorenegronaentradadopalácio, e apoucospassosdaágua, estavauma igura que nenhumdos que então a contemplou nuncamais a pôdeesquecer. Era a marquesa Afrodite — a joia de toda Veneza — a maisjubilosa dentre as jubilosas— a mais adorável onde tudo era beleza—masaindaassima jovemesposadovelhoe intriganteMentoni, emãedabelacriança, suaprimeiraeúnica,queagora,nasprofundezasdaságuassombrias,pensavacomamarguradecoraçãonasdocescaríciasmaternas,consumindosuapequenavidanoesforçodechamarseunome.Estava só.Os pés pequenos, descalços, prateados brilhandono espelho

negrodomármoresobsi. Seus cabelos, aindaapenasparcialmente soltosparaanoiteapósopenteadofeitoparaosalãodebaile,encimavam,entreuma torrente de diamantes, com voltas e mais voltas, sua cabeça declássico feitio, em cachos como os de um viçoso jacinto. Uma veste dabrancura da neve, etérea como gaze, parecia ser quase a única coisa arecobrirsuaformadelicada;masoardemeadosdoverão,emplenanoite,estavaquente, lúgubreeparado, enenhummovimentonaprópria iguraescultóricaagitavasequerasdobrasdaqueletrajedepuranévoaque lhependiaemtornoassimcomoosólidomármorependeemtornodeNíobe.Econtudo — estranho dizer! — seus olhos grandes e brilhantes não sevoltavam para baixo na direção do túmulo onde sua esperança maisluminosa jazia sepultada — mas estavam cravados em uma direçãointeiramentediferente!AprisãodaAntigaRepúblicaé,creioeu,oedi íciomais majestoso em toda Veneza — mas como podia ser de o olhar dasenhorase ixaraliquandosobelajaziasufocandoseuúnico ilho?Àquelenicho escuro, soturno, ademais, opõe-se diretamente a janela de seu

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aposento — o que, então,podia haver em suas sombras — em suaarquitetura— em suas cornijas solenes, festonadas de hera— sobre oqual a marquesa di Mentoni já não houvesse cismado mil vezes antes?Tolice!—Quemseesqueceráque,emmomentoscomoesse,oolho,comoum espelho estilhaçado, multiplica as imagens de sua tristeza, e vê eminumeráveislugaresdistantesodesconsoloimediatamentepróximo?Muitos degraus acima da marquesa, e sob o arco do pórtico junto ao

canal, apontava, emplenos trajes, a igura comodeumSátirodeMentoniem pessoa. Ocupava-se ocasionalmente de dedilhar um violão e pareciaennuyécomoaprópriamorte,conformeaintervalosdistribuíaordensparao resgate de seu ilho. Pasmo e aterrorizado, estava além de minhascapacidades mover-me da posição ereta que eu assumira ao escutar ogrito, e devo ter representado aos olhos do agitado grupo uma apariçãoespectral e ominosa, enquanto, compálido semblante e rígidosmembros,flutuavaentreelesnaquelagôndolafunérea.Todos os esforços se revelaram baldados. Vários dentre os mais

diligentes na busca diminuíam seu empenho, e entregavam-se a umamelancólicatristeza.Muitopoucaesperançapareciarestarparaacriança;(equãomenosparaamãe!),masagora,do interiordaqueleescuronichojámencionado como formando uma parte da velha prisão republicana, ecomoficandodefrenteparaagelosiadamarquesa,umafiguraencapotadaem um manto deu um passo avançando para a luz e, parando por uminstantenabeiradadaquedavertiginosa,mergulhoude cabeçano canal.Quando, um instante depois, estando de pé com a criança ainda viva erespirandoemseupoder,sobreaslajesdemármoreaoladodamarquesa,seumanto,pesadodaáguaqueoencharcava,abriu-see,caindoempregasaseuspés, revelouparaosespectadores tomadosdeadmiraçãoapessoagraciosadeum jovem,osomdecujonomenaépocaressoavapelamaiorpartedaEuropa.

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Nenhumapalavradisseseusalvador.Masamarquesa!Elaanseiaentãoreceber sua criança — anseia pressioná-la junto ao coração — anseiaagarrar sua pequena forma e sufocá-la com suas carícias.Hélas! outros

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foram os braços que a tomaram do estranho— outros os braços que asegurarameacarregaramdali,indiferentes,paraointeriordopalácio!Eamarquesa!Seus lábios—seus lindos lábios tremem: lágrimasacumulam-seemseusolhos—essesolhosque,comoosacantosdePlínio,são“suavese quase líquidos”. Sim! lágrimas acumulam-se nesses olhos—e vejam! amulherestremeceatéofundodaalma,eaestátuacomeçaaganharvida!A palidez do semblante marmóreo, a dilatação do seio marmóreo, aimaculada pureza dos pés marmóreos contemplamos sendo subitamenteinvadidas pela maré vermelha de um rubor incontrolável; e um ligeirotremor brinca em sua silhueta delicada, como o suave ar de Nápolessoprandopelosperfumadoslíriosprateadosentrearelva.Porquemotivo coraessadama?Nãohá respostaparaapergunta—a

não ser que, tendo deixado, com a precipitação e o terror zelosos de umcoração materno, a privacidade de seu próprioboudoir, descuidou-se deenvolverospezinhosemsuaspantufas, e seesqueceucompletamentedelançar sobre os ombros venezianos os panejamentos de que émister secobrir. Que outro motivo possível haveria para que de tal modoenrubescesse? — para a expressão daqueles olhos a litos, ansiosos? —paraoinusualtumultodaqueleseiopalpitante?—paraapressãoconvulsadaquelamãotrêmula?—aquelamãoquepousou,quandoMentonivoltouaopalácio, acidentalmente, sobre amãodo estranho.Quemotivo poderiater havidopara o tomde voz baixo—o tomde voz singularmente baixodaquelas palavras sem signi icado que a dama pronunciouapressadamente ao dele se despedir? “Venceste” — disse, ou osmurmúriosdaáguameenganaram—“venceste—umahoraapósoraiardodia—encontrar-nos-emos—queseja!”

***

O tumulto apaziguara, as luzes haviam se extinguido no interior dopalácioeoestranho,queagoraeureconhecia,permaneceusolitáriosobreaslajes.Tremiadeinconcebívelagitaçãoeseuolharrelanceouemtornoàprocura de uma gôndola. Não poderia eu me abster de lhe oferecer osserviçosdeminhaprópria;eeleaceitoua cortesia.Tendoconseguidoumremo no pórtico, seguimos juntos até sua residência, enquantorapidamente recobrava o autocontrole, emencionou nosso breve contatonopassadoemtermosdegrandecordialidadeaparente.Há alguns assuntos sobre os quais tenho prazer em ser minucioso. A

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pessoadoestranho—deixem-mechamarporessetítuloaquelequeparaomundotodoaindaeraumestranho—apessoadoestranhoéumdessesassuntos.Emestaturadeviasituar-seantesabaixodoqueacimadaalturamédia: embora houvessemomentos de intensa paixão em que seu corpotodo efetivamenteexpandisse e desmentisse tal assertiva. A ligeira, quaseesguiasimetriadesua iguraprometiamaisdessaprontaatividadequeeleevidenciou na Ponte dos Suspiros do que daquela força hercúlea quenotoriamenteexibira,commínimoesforço,emocasiõesdamaistemeráriaurgência. Com a boca e o maxilar de uma deidade — olhos singulares,selvagens, cheios, líquidos, cujas sombras variavam do puro avelã aoazeviche intenso e brilhante — e uma profusão de cabelos negroscacheados emoldurando uma fronte de inusual amplitude que brilhava aintervalos com luminosidadepura emar im—as suas eram feições cujaregularidade clássicade traçoseu jamaispresenciara, excetuando, talvez,as de mármore do imperador Cômodo. E contudo seu semblante era,todavia,umdessesquetodohomemjáviuemalgummomentodesuavida,e depois disso nunca voltou a ver. Não exibia qualquer peculiaridade—não exibia qualquer expressão decididamente determinante a icargravadanamemória; uma isionomia vista e instantaneamente esquecida—mas esquecida com um desejo vago e incessante de trazer de volta àlembrança. Não que o espírito de cada rápida paixão deixasse, a todomomento,de lançarsuaprópria imagemdistintasobreoespelhodaquelerosto — mas era que o espelho, por sua própria natureza, não retinhanenhumvestígiodapaixãoquandoestahaviapartido.Aonosdespedirmosnanoitedenossaaventura,solicitou-meele,noque

julguei ser um tom carregado de urgência, que o visitassemuito cedo namanhãseguinte.Poucoapósonascerdosol,dessemodo,vi-mediantedeseu Palazzo, uma dessas imensas edi icações de pompa sombria porémfantásticaqueseerguejuntoàságuasdoGrandeCanalnasimediaçõesdoRialto.Indicaram-meumaamplaescadaemcaracol,demosaicos,quedavaemumapartamento cujo esplendor semparalelos, ao ser aberta a porta,irradiou com autêntico fulgor, deixando-me cego e atordoado desuntuosidade.Eu sabia que meu companheiro era rico. Notícias contavam de suas

possesemtermosqueeuchegaraacensurarcomosendodeumridículoexagero.Masaoolharemtornodemim,nãoconseguiamelevaracrerquea riqueza de algum outro súdito na Europa pudesse se equiparar àmagnificênciaprincipescaqueardiaresplandecenteànossavolta.

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Embora, como eu disse, o sol já houvesse despontado, o aposentocontinuava brilhantemente aceso. Julguei dessa circunstância, bem comode um ar de exaustão na isionomia de meu amigo, que não havia seretirado para a cama durante toda a noite precedente. Na arquitetura enosadornosdolugar,aevidenteintençãoforadeofuscarepasmar.Poucaatenção fora dada aosdecora ou ao que é tecnicamente chamado deharmonia,ouàsnormasapropriadasdecaráternacional.Oolhoerravadeobjeto em objeto, sem se deter em nenhum — nem nos grotescos dospintores gregos, nem nas esculturas do melhor período italiano, nemtampouconosimensosentalhesdoincultoEgito.Ricosreposteirosportodaparte no ambiente tremulavam à vibração de uma música baixa,melancólica, cuja origem não se podia adivinhar. Os sentidos eramoprimidos por perfumes misturados e con litantes, recendendo deestranhos incensórios convolutos, junto com uma in inidade de línguaslamejantes e bruxuleantes de chamas esmeraldas e violetas. Os raios dosolrecém-surgido iltravamportodaparteatravésde janelasconstituídascadaumadeumavidraçainteiriçadevitralescarlate.Cintilavamaquieali,emmil re lexos, de cortinasdescendode suas sanefas como cataratas deprataderretida, osdardejaresdeglórianatural acabandopor semesclarerraticamente à luz arti icial, para pousar confusamente em massasatenuadas sobre o tapete magní ico de um tecido como que líquido,dourado-malagueta.“Rá! rá! rá! — rá! rá! rá!” — riu o proprietário, sinalizando que me

sentasse quando entrava no aposento, e atirando-se de comprido numaotomana. “Vejo”,disse,percebendocomoeuera incapazdemeajustardeimediato àbienséance de uma acolhida tão singular — “vejo que estáperplexo com meu apartamento — com minhas estátuas — minhaspinturas—minhaoriginalidadedeconcepçãoemarquiteturaetecidos—absolutamente embriagado, hein? comminhamagni icência.Mas perdoe-me, meu caro senhor (aqui seu tom de voz desceu ao exato espírito dacordialidade),perdoe-meporminhas rudes risadas.O senhorparecia tãocompletamenteatônito.Alémdomais, certascoisassão tãoabsolutamenteridículas queumhomemsópode rir oumorrer.Morrerde rir deve ser amais gloriosa dentre todas as mortes gloriosas! Sir Thomas More— umhomemdeverasexcelente,SirThomasMore—,SirThomasMoremorreurindo,osenhordeveserecordar.Ainda,no AbsurditiesdeRavisiusTextor,háumalongalistadetiposqueconheceramomesmo imesplêndido.Sabeosenhor,entretanto”,continuou,pensativamente,“queemEsparta(aatual

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Palæochori),emEsparta,digo,aoestedacidadela,entreumcaosderuínaspoucovisíveis,háumaespéciedesoclosobreoqualaindasão legíveisasletras . São indubitavelmente parte de .17 Ora, emEsparta havia mil templos e santuários de mil divindades distintas. Quecoisa mais extraordinariamente estranha que o altar do Riso tenhasobrevivido a todos os demais! Mas no presente caso”, retomou, comsingular alteração de voz e modos, “não tenho o menor direito de medivertiràssuascustas.Temtodarazãoemsemostrarperplexo.AEuropaéincapazdeaparecercomqualquercoisatãoprimorosaquantoisso,meupequeno gabinete régio. Meus outros apartamentos não são de modoalgumdamesmanatureza;merosexcessosdeeleganteinsipidez.Esteestáacimadobomgosto—não émesmo?Contudo, nãopode ser visto senãocomo o último grito damoda— quer dizer, entre aqueles capazes de sedaraesseluxoaocustodeseuinteiropatrimônio.Precavi-me,entretanto,contra uma tal profanação. Com uma só exceção, o senhor é o único serhumano, além de mim próprio e de meu pajem, a ter sido admitido nosmistériosdesserecintoimperial,desdequefoiornamentadotalcomovê!”Curvei-meemreconhecimento:poisaopressiva sensaçãodeesplendor

e perfume, e música, junto com a excentricidade inesperada de seudiscurso e seus modos, impediu-me de expressar, em palavras, minhaapreciaçãodoquepossoterinterpretadocomoumcumprimento.“Aqui”, retomou ele, levantando-se e apoiando-se em meu braço

conformeandavapeloapartamento,“aquihápinturasquevãodosgregosa Cimabue, e de Cimabue aos dias de hoje. Muitas escolhidas, como osenhor vê, prestando pouca deferência aos juízos da Virtù. Constituemtodas,entretanto,mosaicoapropriadoparaumambientecomoeste.Aqui,ainda, há algumaschef d'oeuvres de eminentes desconhecidos — e aquiesboços inacabados feitos por homens celebrados em seupróprio tempo,cujosverdadeirosnomesaperspicáciadasacademiasrelegouaosilêncioeamim.Oquepensaosenhor”,disseele,virando-seabruptamenteaofalar—“oquepensaosenhordessaMadonnadellaPietà?”“É do próprio Guido!”, exclamei, com todo o entusiasmo de minha

natureza,pois estiveraa examinar intensamente seu inexcedível encanto.“É do próprio Guido — como épossível que a tenha obtido?— ela semdúvidaéparaapinturaoqueaVênuséparaaescultura.”“Rá!”, disse ele, pensativo, “a Vênus— a linda Vênus?— a Vênus dos

Medici?—aqueladecabeçadiminutaecabelosdourados?Partedobraçoesquerdo(aquisuavozbaixoudemodoaserescutadacomdi iculdade)e

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todoo direito são restauros, e no coquete daquele braçodireito reside, ameu ver, a quintessência de toda afetação. Dê amim o Canova! O Apolo,também!—éumacópia—nãohádúvidaarespeito—tolocegoquesou,incapaz de contemplar a alardeada inspiração do Apolo! Não consigodeixar— tenha dó!— não consigo deixar de preferir o Antínoo. Não foiSócrates quem disse que o estatuário encontrou sua estátua no bloco demármore? Então Michelangelo não foi de modo algum original em seucouplet—‘Nonhal’ottimoartistaalcunconcettoChèunmarmosoloinsénoncirconscriva.’”18

Já se observou, ou é mister fazê-lo, que, nos modos do autêntico

cavalheiro, temos sempre consciência de uma diferença da conduta dovulgo, semquesejamoscapazesdedeterminarde imediatoprecisamenteemqueconsistetaldiferença.Admitindoqueaobservaçãoseaplicassenamais rigorosa acepção ao comportamento aparente demeu colega, senti,naquelamanhãmemorável,queseaplicavaaindamaisplenamenteaseutemperamento moral e caráter. Tampouco sou capaz de de inir melhoressa peculiaridade de espírito que parecia situá-lo tão essencialmente àparte de todos os demais seres humanos, a não ser chamando-a de umhábito depensamento intenso e contínuo, a permear até suas açõesmaistriviais — intrometendo-se em seus momentos de ociosidade — eentretecendo-se a seus lampejos mais extremos de alegria — comoserpentesquesaemsecontorcendopelosolhosdasmáscarassorridentesnascornijasemtornodostemplosdePersépolis.Nãopudedeixarde repetidamenteobservar,porém,entreo tommisto

de leviandade e solenidade com que rapidamente discursava sobreassuntosde trivial importância,umcertoardeapreensão—umgraudeafetadoardor em ações e palavras — uma inquieta excitabilidade demodos que me parecia inteiramente inexplicável, e que em algumasocasiões até mesmo me encheu de alarme. Frequentemente, também,hesitandonomeiodeumasentençacujo inícioaparentementeesquecera,parecia pôr-se à escuta com a mais profunda atenção, como que naexpectativa de alguma visita, ou atento a sons que deviam conhecerexistênciaapenasemsuaimaginação.Foiduranteumdessesdevaneiosoupausasdeaparenteabstraçãoque,

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aovirarumapáginadalindatragédiadopoetaeeruditoPoliziano,Orfeo (aprimeira tragédia italiana nativa), que estava aomeu alcance sobre umaotomana, descobri uma passagem sublinhada a lápis. Era uma passagemperto do im do terceiro ato — passagem da mais exaltada agitaçãoamorosa — passagem que, embora maculada de impureza, nenhumhomem é capaz de ler sem uma palpitação de renovada emoção —nenhumamulher, sem um suspiro. A página inteira estavamanchada delágrimasfrescase,nafolhabrancaoposta, liam-seosseguintesversoseminglês, escritos numa caligra ia tão marcadamente incompatível com otemperamento de meu companheiro que tive alguma di iculdade emreconhecê-loscomoseus.

“Fostetudoparamim,meuamor,Fosteoanelodeminh’alma—Umailhaverdenomar,meuamor,Umafonteeumsantuário,Todoeleagrinaldadodebelosfrutoseflores,Etodasasfloreseramminhas.Ah,sonhopordemaisauspiciosoparadurar!Ah,estreladaEsperança!quesurgiuApenasparasetoldar!UmavozdoFuturoroga,‘Adiante!adiante!’—masnoPassado(Negroabismo!)pairameuespírito,Mudo,inerte,consternado!

Poishélas!hélas!paramimAluzdavidaseapagou.‘Nãomais—nãomais—nãomais’(EisoquedizooceanosoleneParaasareiasdapraia)Medraráaárvoredestruídapeloraio,Nemplanaráacombalidaáguia!

Agoratodososmeusdiassãotranses,

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EtodososmeussonhosànoiteResidemondepousamteusolhoscinzentos,Eondecintilamteuspassos—Emqueetéreasdanças,Porqueriachositalianos.

AidaquelemomentomalditoEmquetecarregaramsobreaonda,DoAmorparaumavelhicedesangueazulepecado,Eparaumtravesseiroimpuro—Demim,edenossosternosclimas,Paraondechoraoprateadosalgueiro!”19

Queessesversosestivessemescritoseminglês—línguacomaqualnãoacreditava que seu autor tivesse familiaridade — constituiu-me poucomotivo de surpresa. Eu era demasiado consciente de suas aptidões, e dosingular prazer que extraía de ocultá-las da observação, para icarperplexoante taldescoberta;maso localdeondedatava,devoconfessar,nãomeocasionoupequenoespanto.EstavaoriginalmenteescritoLondres,e, depois disso, fora cuidadosamente riscado — não, entretanto, tãoe icientementedemodoaocultarapalavradeumolharmaisclínico.Disseque não me ocasionou pequeno espanto; pois bem me recordo que, emumaanteriorconversacommeuamigo,inquiri-oparticularmentesetiveraoportunidade de encontrar em Londres a marquesa di Mentoni (quedurantealgunsanospreviamenteaseucasamentoresidiranessacidade),ocasiãoemquesuaresposta,senãomeequivoco,deu-meaentenderquejamais visitara a metrópole da Grã-Bretanha. Posso também mencionaraqui que emmais de uma vez ouvi dizer (sem é claro dar crédito a umrumor envolvendo tantas improbabilidades) que a pessoa de quem faloeranãosódenascimento,comotambémdeeducação,uminglês.

***

“Há uma pintura”, disse ele, sem se dar conta de que eu notara atragédia—“háaindaumapinturaqueosenhornãoviu.”Ejogandoparaolado um cortinado, revelou um retrato de corpo inteiro da marquesaAfrodite.

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Aartehumananãopoderiateridoalémnodelineamentodesuabelezasobre-humana.Amesma iguraetéreaqueseapresentavaperantemimnanoite precedente sobre os degraus do Palácio do Doge se apresentavaperante mim mais uma vez. Mas na expressão do semblante, todo eleradiante de sorrisos, seguia espreitando (anomalia incompreensível!)aquela intermitente mácula de melancolia que para sempre seráinseparáveldaperfeiçãodosdotadosdebeleza.Seubraçodireitodobrava-se sobre o peito. Com o esquerdo, apontava para baixo, para um vasocuriosamentemodelado.Umpequenopé,belo,oúnicovisível,maltocavaochão—e,quaseindiscernívelnabrilhanteatmosferaquepareciaenvolversua graça como um santuário, lutuava um par das asas maisdelicadamente imaginadas.Meuolharpassoudapinturaparaa igurademeu amigo, e as veementes palavras doBussy d'Ambois de Chapmanestremeceraminstintivamenteemmeuslábios:“Láestáele,comoumaestátuaromana!AlipermaneceráatéqueaMorteemmármoreotenhatornado!”20

“Venha!”,disseele en im,virando-senadireçãodeumamesadepratamaciça ricamente esmaltada, sobre a qual havia alguns cálices de vidrocolorido fantasticamente trabalhados, além de dois enormes vasosetruscos, concebidos nosmesmosmoldes extraordinários daquele que sevia em primeiro plano no retrato, e cheios do que eu supunha serJohannisberger. “Venha!”, disse-me abruptamente, “bebamos! É cedo —masbebamos.Édefatocedo”,continuou,pensativo,quandoumquerubimcom um pesado martelo dourado fez o apartamento reverberar com aprimeirahoraapóso raiardodia— “É defato cedo,masoque importa?bebamos! Sirvamos uma oferenda àquele sol solene acolá que essasespalhafatosaslamparinaseincensóriosdesejamtãoavidamenteofuscar!”E, tendo-me feito com ele brindar uma taça transbordante, engoliu emrápidasucessãodiversoscálicesdovinho.“Sonhar”, continuou, retomando o tom de sua conversa errática,

conforme erguia à rica luz de um incensório umdosmagní icos vasos—“sonhar tem sido a ocupação de minha vida. De tal modo que excogiteiparamim,comovê,umrefúgiodesonhos.NocoraçãodeVenezapoderiaeutererguidoummelhor?Oqueosenhorcontemplaemtorno,admito,éumamiscelâneadeornamentosarquitetônicos.ApurezadaJôniaultrajada

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por motivos antediluvianos, e as es inges do Egito esticando-se sobretapetesdeouro.E contudo, o efeito é incongruenteapenasparao tímido.Convenções de lugar, e sobretudo de época, nada são além dasabominações que insu lam terror na espécie humana, abstendo-a decontemplar a magni icência. Outrora fui eu mesmo um decorador: masessa sublimaçãoda tolice se exauriu emminha alma. Isso tudo é agora omaisindicadoparameupropósito.Comoessesincensóriosarabescos,meuespírito se contorce no fogo, e o delírio dessa cena afeiçoa-me às visõesmaisdesvairadasdaquela terradesonhosreaisparaaqual rapidamenteparto.” Nisso fez uma pausa abrupta, curvou a cabeça junto ao peito epareceuescutarumsomquenão chegavaaosmeusouvidos. Finalmente,aprumandosua igura,ergueuorostoepronunciouosversosdobispodeChichester:—“Esperapormim!Nãodeixareideteencontrarnestevaleprofundo”21

No instante seguinte, confessando a in luência do vinho, largou-se decompridosobreumaotomana.Umrápidopassosefaziaouviragoranaescada,eumasonorabatidana

porta rapidamente se sucedeu. Antevi rapidamente um novo tumultoquandoumpajemdacasadeMentoniirrompeunasalaegaguejou,numavozestranguladadeemoção,aspalavras incoerentes, “Minhasenhora!—minha senhora!— envenenada!— envenenada! Oh, linda— oh, a lindaAfrodite!”.Aturdido, corri para a otomana, e tentei despertar o adormecido para

querecebesseasalarmantesnotícias.Masseusmembrosestavamrígidos— seus lábios, lívidos— seus olhos havia pouco cintilantes cravados namorte. Recuei cambaleante na direção da mesa — minha mão pousousobreumcálicerachadoeenegrecido—eaconsciênciadetodaaterrívelverdadelampejousubitamenteemmeuespírito.

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MORELLA

Emsimesmo,porsimesmo,eternamenteúnico,esozinho.Platão,Obanquete

Um sentimentode profunda e contudodamais singular afeição devotavaeu a minha companheira Morella. Levado acidentalmente a conhecê-lamuitosanosantes,minhaalma,desdenossoprimeiroencontro,ardeucomchamasqueatéentãodesconhecia;masessaschamasnãovinhamdeEros,e amarga e tormentosaparameu espírito foi a convicção gradual de queeu era absolutamente incapaz de de inir o incomum signi icado delas, ouregular suavaga intensidade.Econtudonosconhecemos;eodestinonosuniudiantedo altar; e nunca falei empaixão, tampoucopensei emamor.Ela,entretanto,afastou-sedoconvíviosociale,ligando-sesóamim,fez-mefeliz.Éumafelicidademaravilhar-se;—éumafelicidadesonhar.A erudição de Morella era profunda. Juro por minha vida que seus

talentos não eram de ordem comum— a capacidade de sua mente eradescomunal. Percebendo isso, eu, em inúmeros assuntos, tornei-me seupupilo. Logo, entretanto, descobri que, talvez por conta da educaçãorecebida em Presburg, apresentava a mim uma série desses escritosmísticosquenormalmentesãoconsideradosomerorebotalhodaliteraturaalemãprimitiva.Esses,pormotivosquesouincapazdeimaginar,eramseuobjetodeestudofavoritoeconstante—eofatodeque,comotranscorrerdo tempo, se tornaram também omeu deve ser atribuído à simplesmaseficazinfluênciadohábitoeexemplo.Emtudoisso,senãomeequivoco,minharazãodesempenhavapequeno

papel.Minhas convicções, senãome falhaamemória,nãoeramdemodoalgum movidas pelo ideal e, ou muito me engano, tampouco o menorvestígiodomisticismoqueeu liapodiaserpercebido fosseemmeusatos,fosseemmeuspensamentos.Convencidodisso,abandonei-metacitamenteà orientação de minha esposa, e mergulhei de corpo e alma nascomplexidadesdeseusestudos.Eentão—então,quando,debruçando-mesobrepáginasproibidas,sentiaumespíritoproibidoin lamar-sedentrodemim—Morellapousavasuamãosobreaminha,erevelavasobascinzasdeuma iloso iamortaalgumaspalavrasbaixas, singulares, cujoestranhosigni icado se gravava a ferro e fogo em minha memória. E então, horaapóshora,eu icavaaseu lado,emeabandonavaàmúsicadesuavoz—até que, após algum tempo, a melodia era contaminada pelo terror— e

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uma sombra descia sobreminha alma— e eu empalidecia, e estremeciapor dentro ante aqueles timbres por demais sobrenaturais. E assim, aalegria subitamente esvaecia em horror, e o que era sumamente belotornava-sesumamentehediondo,assimcomooHinnonsetornouaGeena.É desnecessário exprimir o exato caráter dessas investigações que,

nascendodosvolumesquemencionei,formou,portantotempo,quasequeoúnicoobjetodasconversasentremimeMorella.Poraqueles instruídosno que pode ser denominado demoralidade teológica será prontamentecompreendido, e pelos que não o são, de todo modo, pouco o será. Oextravagante panteísmo de Fichte; a Παλιγγενεσια modi icada dospitagóricos; e, acima de tudo, as doutrinas deIdentidade tais comoexortadas por Schelling eram demodo geral os pontos de discussão queapresentavamamaiorbelezaàimaginativaMorella.Essaidentidadequeédenominada pessoal, Locke, creio, a de ine acertadamente comoconsistindodauniformidadedeumserracional.Eumavezqueporpessoaentendemosumaessência inteligentedotadade razão, e umavezqueháumaconsciênciaquesempreacompanhaopensamento,éelaquefaztodosnós sermos isso que chamamos denós próprios — desse mododistinguindo-nos de outros seres pensantes, e proporcionando-nos nossaidentidadepessoal.Masoprincipiumindividuationis—anoçãodequeessaidentidadequenamorteéounãoéperdidaparasempre—era-me,otempotodo, consideração do mais extremo interesse; menos pela naturezadesconcertante e estimulante de suas consequências do que pelo modocativanteeexaltadocomqueMorellaasmencionava.Mas,naverdade,chegaraagoraumtempoemqueomistériodaconduta

deminhaesposameoprimiacomoumfeitiço.Eu jánãomaissuportavaocontato de seus dedos lívidos, nem o tom grave de seu falar musical,tampoucoobrilhodeseusolhosmelancólicos.Eelasabiadisso tudo,masnão me censurava; parecia consciente de minha fraqueza ou de minhainsensatez e, sorrindo, chamava a issoDestino. Parecia, ainda, conscientede uma causa, por mim desconhecida, para o gradual alheamento deminhaestima;masnãomedavaqualquerindícioousinalsobreanaturezadisso. E contudo eramulher, e o anseio a consumia a cada dia. No im, amanchaescarlatese ixou irmementeemsuaface,easveiasazuissobreafronte pálida icaram proeminentes; e, num instante, minha natureza sefundia empiedade,mas, no seguinte, eu cruzava o relance de seus olhoseloquentes, e entãominha alma adoecia e icava tonta com a tontura dequembaixaorostoparaointeriordealgumabismoausteroeinsondável.

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Devo então dizer que ansiava com um desejo sincero e ardente pelomomentodofalecimentodeMorella?Defato;masofrágilespíritoaferrou-se a suamorada de barro por dias a io—por várias semanas emuitosextenuantes meses — até que meus torturados nervos ganharam odomíniosobreminhamentee iqueicadavezmais furiosocomademora,e, com o coração de um demônio, amaldiçoei os dias, e as horas, e osamargosmomentos,quepareciamseprolongareprolongarconformesuadelicadavidadefinhava—comoassombrasaocairdodia.Masnuma tardedeoutono,quandoosventospermaneciam imóveisno

céu,Morella chamou-me junto a seu leito. Uma bruma turva pairava portoda parte acima da terra e havia um fulgor cálido sobre as águas e, emmeio à profusão de folhas de outubro na loresta, um arco-íris doirmamento sem dúvida caíra. Quandome aproximei, elamurmurava emsussurradameia-voz,quetremiadefervor,osversosdeumhinocatólico:

“SantaMaria!volveteusolhosParaosacrifíciodopecadorDeardorosaoração,ehumildeamor,Emteusantotrononocéu.

Pelamanhã,aomeio-dia,àpenumbracrepuscular,Maria!ouvistemeuhino,Emalegriaesofrimento,nobemenomal,

MãedeDeus!permanececomigo.Quandominhashoraspassamsuavemente,Enãohátempestadesnocéu,Minhaalma,comreceiodequedesertasse,

Teuamorguiouparajuntodatua.AgoraqueasnuvensdoDestinoencobremTodomeuPresente,emeuPassado,DeixaquemeuFuturobrilheradianteNadoceesperançadeestarjuntodeti.”22

“Eis o dia dos dias”, disse ela; “o dia dentre tantos outros dias para se

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viveroumorrer.Éumbelodiaparaos ilhosdaterraedavida—ah,maisbeloaindaparaasfilhasdocéuedamorte!”Beijeisuatesta,eelacontinuou:“Estoumorrendo,econtudoviverei.”“Morella!”“Osdiasemquepudestemeamar,estesnãohouve—masaquelaque

emvidaabominaste,namorteadorarás.”“Morella!”“Repito que estou morrendo. Mas dentro de mim há um penhor da

afeição — ah, quão pequena! — que sentiste por mim, por Morella. Equandomeu espírito partir, a criança viverá— tua criança, e minha, deMorella.Masteusdiasserãodiasdetristeza—essatristezaqueéamaisduradoura das impressões, tal como o cipreste é a mais duradoura dasárvores.Poisashorasdatuafelicidadechegaramao im;eaalegrianãosecolheduasvezesemumavida,talcomoasrosasdePæstumduasvezesemumano.Nãomais,dessemodo,bancarásoteano23comtempo,mas,sendoignorantedomirtoedavinha,carregaráscontigoporondefornaterratuamortalha,comoofazemMecaomosleme.”“Morella!”, gritei, “Morella! comosabesdisso?”—maselavirouo rosto

notravesseiroe,comumligeirotremorapercorrerseusmembros,dessemodomorreu,esuavoznãomaisescutei.Contudo,comoprenunciara,suacriança—àqualaomorrerderaàluz,

equenãorespirouatéqueamãenãomaisrespirasse—suacriança,umamenina, viveu. E cresceu estranhamente em estatura e intelecto, e foi aperfeita semelhança daquela que partira, e amei-a com um amor maisfervoroso do que acreditava ser possível sentir por qualquer habitantedestemundo.Masnãodemorouparaqueo céudessapuraafeiçãoescurecesse, e as

sombras,eohorror,eaa liçãoocobrissemdenuvens.Dissequeacriançacresceu estranhamente em estatura e inteligência. Estranho, de fato, foiseu rápido crescimento em tamanho corporal — mas terríveis, oh!terríveis eramos tumultuosos pensamentos que se acumulavam emmimenquantoobservavaodesenvolvimentodesuamente.Dequeoutromodopoderiaser,conformeeunotavadiaapósdianasconcepçõesdacriançaascapacidades e faculdades adultas da mulher? — quando lições daexperiênciasaíamdoslábiosinfantis?equandoasabedoriaouaspaixõesda maturidade eu as percebia cintilando em seus olhos grandes e

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especulativos? Quando, repito, tudo isso icou evidente para meusconsternadossentidos?—quandonãomaispodiaocultardeminhaalma,nemtampoucorepelirdessaspercepçõesqueestremeciamaocaptá-lo—édecausaradmiraçãoqueessassuspeitas,deumanaturezaassustadorae sugestiva, se insinuassem emmeu espírito, ou quemeus pensamentosretrocedessem aterrorizados às histórias fantásticas e teoriasarrebatadoras da sepultada Morella? Sequestrei ao escrutínio do mundoumseraquemodestinomecompeliuaadorar,enorigoroso isolamentodeminhaantigacasaancestral,observavacomagonizanteansiedadetudoqueconcerniaàbem-amada.E,comopassardosanos,econformeeucontemplava,diaapósdia,seu

rostosanto,meigo,eloquente,ecismavacomsua formamaturescente,diaapósdiaeudescobrianovosaspectosdesemelhançaentreacriançaesuamãe, a melancólica e a morta. E, hora a hora, cada vez mais escurastornavam-seessassombrasdesimilitude,emaisfortes,emaisde inidas,emaisdesconcertantes,emaishediondamenteterríveisemseuaspecto.Queo sorriso fosse igual ao de suamãe era algo que eu podia suportar;maslogome advinhamos calafrios por essaidentidade ser perfeita demais—queseusolhosfossemcomoosdeMorellaeuaguentava;maslogotambémeles muitas vezes perscrutavam as profundezas de minha alma com aexpressão intensa e perturbadora da própria Morella. E no contorno daelevada fronte, e nos anéis do sedoso cabelo, e nos dedos lívidos que seenterravamali,enostristestonsmusicaisdesuafala,e,acimadetudo—ai, acima de tudo — nos fraseados e elocuções da morta nos lábios daamadaevivente,encontreialimentoparaumpensamentoehorrorquemeconsumiam—paraumvermequenãomorria.Dessemodosepassaramdoislustrosdesuavidae,apesardisso,minha

ilhapermanecia inominadanessemundo. “Minha criança” e “meu amor”eram os nomes normalmente suscitados pelo afeto de um pai, e a rígidareclusãodeseusdiasobstavaqualqueroutrarelação.OnomedeMorellamorreu juntocomelanodiadesuamorte.Nunca faleia respeitodamãecom a ilha;— era impossível falar. De fato, durante o breve período desua existência esta última não recebera qualquer impressão do mundoexteriorsalvooquepudesseserpropiciadopelosestreitos limitesdesuaprivacidade.Masapósalgumtempoacerimôniadobatismoapresentou-seàminhamente, em sua condiçãoperturbadae agitada, comoumaprontalibertação dos terrores demeu destino. E na pia batismal hesitei por umnome. E inúmeros títulos das mais sábias e belas, de tempos antigos e

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modernos,deminhaprópria terraealhures,a loraramaosborbotõesemmeus lábios, com muitos, muito belos nomes de bem-nascidas, deventurosas, de virtuosas.Oqueme impeliu então aperturbar amemóriadaquela que jazia morta e enterrada? Que demônio me impeliu apronunciaraquelesom,que,dameralembrança,costumavafazerre luirosangue púrpura em torrentes oriundas dos templos do coração? Queespírito maligno erguia a voz nos recessos de minha alma, quando, emmeio àquelas penumbrosas naves, e no silêncio da noite, sussurrei noouvido do homem santo as sílabas — Morella? Que outro senão satãconvulsionou as feições de minha criança, e as cobriu dos matizes damorte,nomomentoemque,sobressaltando-secomosomquaseinaudível,elavoltouosolhosvítreosdaterraparaocéue,caindoprostradasobreaslajesnegrasdenossacriptaancestral,respondeu—“Eis-meaqui!”.

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Distintos,friaecalmamentedistintos,penetraramessessimplessonsemmeus ouvidos, e daí, como chumbo derretido, verteram chiando emmeu

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cérebro.Anos—anospodemsepassar,masa lembrançadessaépoca—nunca!Eeunãoeradefatoignorantedas loresedavinha—masacicutae o cipreste lançavam sua sombra sobremim noite e dia. E não guardeicômputoalgumdetempooulugar,easestrelasdemeudestinoapagaram-se no céu, e desse modo a terra se cobriu de trevas, e seus vultospassavampormimcomosombrasesvoaçantes,edentreelastodasapenasuma eu contemplava—Morella. Os ventos do irmamento não sopravamsenão um som em meus ouvidos, e as ondulações do mar encrespadomurmuraram para todo o sempre — Morella. Mas ela morreu; e comminhasprópriasmãos carreguei-aparaa tumba; e ri uma risada longaeamargaaonãoencontrarvestígiodaprimeiranocarneiroondedepositeiasegunda—Morella.

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BERENICE

Diziammeuscompanheirosquevisitandootúmulodeminhaamigaencontrariaalívioparameuspesares.

EbnZaiatAmisériaémúltipla.Adesgraçadomundoémultiforme.Cingindoovastohorizonte como o arco-íris, suas colorações são tão variadas quanto ascolorações do fenômeno — e também tão distintas, e contudo tãointimamente combinadas. Cingindo o vasto horizonte como o arco-íris!Comopodeserquedabelezaderiveiumtipodedesencanto?—daaliançada paz um símile da tristeza? Mas assim como, em ética, o mal éconsequência do bem, igualmente, com efeito, da alegria nasce a tristeza.Ou a lembrança de uma felicidade passada é a angústia do hoje, ou asagoniasexistentestêmsuaorigemnosêxtasesquepoderiamterexistido.MeunomedebatismoéEgeu;omitireiodeminha família.Contudonão

há torres no país que gozem de maior tradição que meus soturnos,cinzentos, hereditários aposentos. Nossa linhagem tem sido chamada deuma estirpede visionários; e em inúmeras e admiráveis particularidades—nocaráterdamansãofamiliar—nosafrescosdosalãoprincipal—nastapeçarias dos dormitórios — nos cinzelamentos de certos botaréus nasalade armas—mas,mais especialmente, na galeriadequadros antigos—noestilodabiblioteca—e,porúltimo,nanaturezadeveraspeculiardeseuconteúdo,háevidênciamaisdoquesuficienteparajustificaracrença.Asmemórias demeus anosmais tenros estão ligadas a esse lugar, e a

seustomos—dosquaisnadamaisdirei.Alimorreuminhamãe.Alinasci.Mas é simplesmente ocioso dizer que eu não vivera antes—que a almanão possui existência prévia. Vós o negais?—não discutamos o assunto.Convencido como estou, não procuro convencer. Há, entretanto, umalembrança de formas aéreas— de olhos espirituais e expressivos— desons, musicais porém tristes— uma lembrança que não se deixa elidir;uma recordaçãoqual uma sombra, vaga, variável, inde inida, inconstante;e, qual uma sombra, também, na impossibilidade de dela me livrarenquantoosoldeminharazãocontinuaraexistir.Nesse lugar nasci. Desse modo despertando da longa noite do que

parecia,masnãoera,anãoexistência,subitamentemergulhadonasverasregiões do país das fadas — num palácio de imaginação — nos ermos

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domíniosdopensamentoeerudiçãomonásticos—nãocausaespéciequeeucontemplasseem tornodemimcomumolharespantadoeardente—queeuconsumisseminhainfâncianoslivros,edissipasseminhajuventudeemdevaneios;masédeestranharque,comodecorrerdosanos,ecomoapogeu da virilidade colhendo-me ainda na mansão de meus pais —éextraordinário o modo como a estagnação se apossou de minha fontesvitais—extraordináriaacompletainversãoqueseoperounanaturezademeus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo pareciam-mevisões, e não mais do que apenas visões, ao passo que as fantásticasideações do país dos sonhos tornaram-se, por sua vez— não a matériamesma de minha existência cotidiana — mas completa e unicamente aprópriaexistênciaemsi.

***

Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos namansão demeuspais.E contudo foidemododiferenteque crescemos—eu,debilitadodesaúde e afundado na melancolia— ela, ágil, graciosa, transbordando deenergia — a ela as deambulações pela encosta da colina — a mim osestudos do claustro — eu vivendo dentro de meu próprio coração, edevotado de corpo e alma à mais intensa e dolorosa meditação — elavagando tranquilamente pela vida sem pensamento algum para assombras em seu caminho, ou para o voo silencioso das horas com suasasasdecorvo.Berenice!—conjuroseunome—Berenice!—edasruínascinzentasdamemória,miltumultuosasrecordaçõesdespertamcomosom!Ah! vividamente vejo sua imagemperantemim agora, como nos remotosdias de sua despreocupação e alegria! Oh! beleza deslumbrante e noentantofantástica!Oh!síl ideentreosarbustosdeArnheim!—Oh!Náiadeentre suas fontes!— e depois— depois tudo émistério e terror, e umahistóriaquenãodeveriasercontada.Adoença—umadoençafatal—seabateucomoumsimumsobreseucorpo,e,diantedemeusprópriosolhos,o espírito da mudança desceu sobre ela, permeando sua mente, seushábitoseseucaráter,e,damaneiramaissutile terrível,perturbandoatémesmoaidentidadedesuapessoa!Aidemim!odestruidorveioepartiu,eavítima—ondeestavaela?Eunãoaconhecia—ounãomaisaconheciacomoBerenice.Entre a numerosa série de moléstias acarretadas por aquela fatal e

primordial que efetuou tão horrível reviravolta na constituição moral eísica de minha prima, que seja mencionada como a de natureza mais

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perturbadora e renitente uma espécie de epilepsia que com não poucafrequênciaterminavaemtranse—umtranseemquasetudosimilaraumpositivoóbito,edoqualocaráterdesuarecuperaçãoera,namaioriadoscasos, surpreendentemente repentino. Nesse meio-tempo minha própriaenfermidade— pois por nenhum outro nome deveria eu chamar aquilo,assim me foi dito — minha própria enfermidade, então, rapidamentetomoucontademinhapessoa,eassumiuno imumcarátermonomaníacodeumaformanovaeextraordinária—ganhandovigoracadahora,acadamomento — até inalmente obter sobre mim a mais incompreensívelascendência.Essamonomania,seassimpossodesigná-la,consistiadeumairritabilidade mórbida dessas propriedades da mente que a ciênciameta ísica denominaatentivas. Émais doqueprovável que eunão estejamefazendoentender;masreceio,naverdade,nãohavermodopossíveldetransmitiraoespíritodoleitormeramentegeralumaideiaadequadadessaintensidade de interesse nervosa com que, nomeu caso, as faculdades demeditação (para me abster de termos técnicos) se ocupavam e seabandonavamnacontemplaçãoatémesmodosmaisordináriosobjetosdomundo.Cismar por longas infatigáveis horas com a atenção cravada nalgum

frívolomotivoàmargem,ounatipogra ia,deumlivro;deixar-meabsorverpela maior parte de um dia de verão numa esquisita sombra caindoobliquamentesobreatapeçaria,ousobreosoalho;abandonar-medurantetodaumanoiteobservandoachama irmedeumalamparina,ouasbrasasde um fogo; sonhar por dias a io com o perfume de uma lor; repetirmonotonamente alguma palavra comum, até que o som, à força dafrequente repetição, cesse de transmitir qualquer ideia à mente; perdertoda sensação de movimento ou existência ísica, por meio da absolutaplacidezcorporallongaeobstinadamentemantida:—taiseramalgunsdosmais comuns emenos perniciosos caprichos induzidos por uma condiçãodas faculdades mentais, não, decerto, inteiramente sem paralelo, masdefinitivamentedesafiandotodaanáliseouexplicação.Contudo, evitemos mal-entendidos. — A excessiva, grave e mórbida

atenção assimdespertada pelos objetos por sua própria natureza triviaisnão deve ser confundida em caráter com a propensão a ruminaçõescomum em toda a humanidade, e às quais mais particularmente seabandonam pessoas de imaginação ardente. Não era sequer, como sepoderia de início supor, uma condição extrema, ou um exagero de talpropensão, mas, primordial e essencialmente, distinta e diferente. No

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exemplo em questão, o sonhador, ou entusiasta, estando interessado emumobjetogeralmentenãotrivial,imperceptivelmenteperdeesseobjetodevista numa vastidão de deduções e sugestões dele oriundas, até que, naconclusão de um devaneiomuitas vezes repleto de riqueza , ele percebe oincitamentum, ou causa primeira de suas re lexões, inteiramentedesvanecido e esquecido. No meu caso o objeto primário erainvariavelmentetrivial ,emboraassumindo,por intermédiodeminhavisãoperturbada, uma importância distorcida e irreal. Poucas deduções, se éque alguma, eram feitas; e essas poucas regressavamobstinadamente aoobjetooriginalcomoaumcentro.Asmeditaçõesnuncaeramagradáveis;e,ao término dos devaneios, a causa primeira, bem longe de estar fora devista, atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado que era ocaráter predominante da doença. Numa palavra, as faculdades damentemais particularmente exercidas eram, em mim, como disse antes, asatentivas,aopassoque,paraaquelequecostumasonharacordado,sãoasespeculativas.Meus livros, nessa época, se não serviam de fato para exacerbar o

distúrbio, partilhavam, será percebido, largamente, por sua naturezaimaginativa e inconsequente, das qualidades características do própriodistúrbio. Lembro-me bem, entre outros, do tratado do nobre italianoCœliusSecundusCurio,DeAmplitudineBeatiRegniDei;dagrandeobradesantoAgostinho,aCidadedeDeus; eTertuliano,DeCarneChristi,emqueaparadoxalsentença“MortusestDei ilius; credibileestquia ineptumest; etsepultus ressurrexit; certum est quia impossible est ”24 ocupou a totalidadedomeutempo,porváriassemanasdelaboriosaeinfrutíferainvestigação.Desse modo parecerá que, tirada de seu equilíbrio apenas por coisas

ín imas,minha razão guardava semelhança com aquele rochedo oceânicomencionadoporPtolomeuHefesto,queresistiutenazmenteaosataquesdaviolência humana, e à fúria aindamais selvagemdas águas e dos ventos,para estremecer ao mero contato da lor chamada Asphodelus. E muitoembora,paraumpensadordesatento,possaparecerumaquestãoalémdadúvida que a alteração produzida pela infelizmoléstia na condiçãomoralde Berenice iria me ocasionar inúmeras oportunidades para o exercíciodessameditação intensaeanormal cujanatureza tenhomeesforçadoemcertamedida por explicar, tal contudo não foi absolutamente o caso. Noslúcidosintervalosdeminhaenfermidade,suadesgraça,naverdade,trazia-me sofrimento, e, testemunhando gravemente a total ruína de sua vidapura e gentil, não podia deixar de ponderar com frequência e amargura

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nosmodosmiraculososcomque tãosubitamentesederaumareviravoltatãoestranha.Masessasre lexõesemnadaparticipavamda idiossincrasiademinhadoença,eeramdeumtipoqueteriaocorrido,sobcircunstânciassimilares, à massa ordinária da humanidade. Fiel a seu próprio caráter,meu distúrbio se refestelava nas mudanças menos importantes porémmais alarmantes operadas na constituição física de Berenice — nadistorçãosingularedeverasconsternadoradesuaidentidadepessoal.Durante os dias mais brilhantes de sua beleza incomparável, sem

sombra de dúvida eu jamais a amara. Na estranha anomalia de minhaexistência,os sentimentos, comigo,nuncaprovinham do coração, eminhaspaixõeseramsempre damente. À luz cinzenta do início damanhã— emmeioàtreliçadesombrasda lorestaaomeio-dia—enosilênciodeminhabiblioteca à noite, ela lutuara diante de meus olhos, e eu a vira— nãocomoaBerenicequeviviaerespirava,mascomoaBerenicedeumsonho—nãocomoumserdaterra,terreno,mascomoaabstraçãodeumtalser—nãocomoumacriaturaaseradmirada,masanalisada—nãocomoumobjetodeamor,mascomoo temadamaisabstrusaconquantodesconexaespeculação.Eagora—agoraeuestremeciadiantedesuapresença,eeratomadopelapalidezàsuaaproximação;emboralamentandoamargamentesua condição caída e desolada, lembrei-me do longo tempo em que medevotavaseuamore,nummomentodesgraçado,falei-lhedecasamento.E en im o período de nossas núpcias se aproximava, quando, em certa

tarde no inverno desse ano — um desses dias extemporaneamentequentes,calmos,brumososquesãoaamadalindaAlcyone*—,sentava-meeu (e sentava, assim pensei, sozinho) no gabinete interno da biblioteca.Mas,erguendoosolhos,viBerenicediantedemim.Eraminhaimaginaçãoexaltada—ouain luêncianebulosadaatmosfera

—ou a vaga luz crepuscular do aposento—ou os cinzentos tecidos quecaíamem tornode sua igura—que lhe emprestava um contornode talmodoindecisoe indistinto?Nãopossoa irmar.Elanãodissepalavra,eeu—nemporminha vida teria proferidouma sílabaque fosse.Um calafriogelado percorria meu corpo; uma sensação de insuportável angústia meoprimia; uma curiosidade devoradora tomou conta de minha alma; e,afundandodevoltanapoltrona,permaneciporalgumtempoimóvelecoma respiração suspensa, os olhos cravados em sua pessoa. Ai demim! suaemaciaçãoeraexcessivaenemumúnicovestígiodoantigoserespreitavaem uma linha sequer de seu contorno. Até que meus olhares ardentesenfimpousaramemseurosto.

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Sua fronte estava alta, e muito pálida, e singularmente plácida; e oscabelosoutroranegroscomoazevichecaíamparcialmentesobreatesta,etoldavam as têmporas encovadas com inumeráveis anéis agora de umvívidoamarelo,eemchocantediscordância,porseucaráterfantástico,comamelancoliapreponderantedeseusemblante.Osolhosestavamsemvida,esembrilho,ecomoquesempupilas,emeencolhiinvoluntariamenteanteaquele olhar vidrado e contemplei os lábios inos e enrugados. Eles seentreabriram; e num sorriso de peculiar expressão os dentes datransformada Berenice revelaram-se vagarosamente à minha visão.Quisera Deus que jamais os houvesse contemplado ou que, uma vez otendofeito,houveraeumorrido!

***

Abatidadeumaportameperturboue,aoerguerorosto,descobriqueminhaprimapartiradoaposento.Masdodesordenadoaposentodeminhacabeça, ai de mim!, não partira, nem era expulso, o espectro branco efantasmagórico de seus dentes. Não havia mancha em sua super ície—nemsombraemseuesmalte—nem falhaemsuaspontas—queaquelebreve período de seu sorriso não fora su iciente para gravar em minhamemória.Vejo-osagoraaindamaisinequivocamentedoqueoscontempleientão. Os dentes!—osdentes!—estavamaqui, e lá, e por todaparte, evisivelmente, palpavelmente, diante de mim; longos, estreitos eexcessivamente brancos, com os lábios pálidos se contraindo em torno,como no própriomomento de seu primeiro e terrível crescimento. Entãoseguiu-se a plena fúria de minhamonomania, e lutei em vão contra suaestranha e irresistível in luência. Dentre os múltiplos objetos do mundoexternoeunãotinhapensamentossenãoparaosdentes.Porelesanelavacom desejo maníaco. Todos os demais assuntos e todos os diferentesinteressesforamabsorvidosunicamenteemsuacontemplação.Eles—elessozinhos apresentavam-se ao olho do espírito, e eles, em suaindividualidade única, tornaram-se a essência de minha vida espiritual.Observei-os sob cada luz. Virei-os em cada posição. Perscrutei suascaracterísticas. Demorei-me em suas peculiaridades. Ponderei a respeitodesuaforma.Cismeicomaalteraçãodesuanatureza.Estremeciconformelhes atribuía na imaginação um poder sensitivo e senciente, e mesmoquando desassistidos pelos lábios, uma capacidade de se expressarmoralmente. DeMad'selle Sallé bem já se disse, “que tous ses pas étaientdessentiments”,edeBereniceeuacreditavamuitoseriamente quetousses

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dents étaientdes idées.Des idées!— ah, eis aí o pensamento estúpido queme destruiu!25 Des idées! — ah,era por isso que eu os cobiçava tãoloucamente! Sentia que sua posse era a única coisa queme devolveria apaz,aorestituir-meàrazão.

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E a noite então se fechou sobre mim— e depois vieram as trevas, epermaneceram,epartiram—eodiaraioumaisumavez—easbrumas

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de uma segunda noite agora se adensavam em torno — e continueisentado imóvel naquele gabinete solitário, e continuei mergulhado emmeditações, e continuou afantasmagoria daqueles dentes mantendo suaterrível ascendência sobremim, lutuando, com a distinçãomais vívida ehedionda, entre as luzes e sombras cambiantesdo ambiente.Após algumtempo irrompeu emmeus sonhos um grito como de horror e angústia; eentão, após uma pausa, sucedeu o som de vozes a litas, entremeadas ainúmerosgemidossurdosdepesar,oudor.Levanteidacadeirae,abrindoabruptamente a porta da biblioteca, vi ali parada na antecâmara umacriada,às lágrimas,queme informouqueBerenice—se fora.Umataquedeepilepsiaaacometeranocomeçodamanhãeagora,aocairdanoite,otúmuloestavaprontopararecebersuaocupante,e todosospreparativosparaoenterroforamcompletados.Com o coração tomado de luto, e contudo relutante, e oprimido pelo

temor, dirigi-me ao dormitório da falecida. O quarto era grande, e estavamuito escuro, e a cada passo percorrido em seu interior sombrio eumedeparavacomosataviosfúnebres.Ocaixão,assiminformou-meumcriado,encontrava-se além dos cortinados que cercavam a cama, e no caixão,a irmou,sussurrando,estavatudoquerestavadeBerenice.Quemeraesseque me perguntava se eu não desejava olhar o corpo? Eu não vira semoveremoslábiosdeninguém,econtudoaperguntaforafeita,eoecodaspalavras continuavapairandono aposento. Foi impossível recusar; e comuma sensação de as ixia forcei-me a me aproximar do leito. Erguibrandamente os drapeamentos negros dos cortinados. Deixando quetornassem a descer sobre meus ombros, e desse modo me isolando dosvivos, encerrei-me na mais estrita comunhão com a falecida. A meraatmosfera tresandava amorte. O odor peculiar do caixãome nauseou; eimaginei que um cheiro deletério já exalava do cadáver. Eu teria dadomundos para fugir — para escapar da perniciosa in luência damortalidade— para respirar uma vezmais o puro ar dos céus eternais.Masnãoestavamaisemmimacapacidadedememover—meus joelhostremiamsobmim—epermaneciplantadonolugar,contemplandoocorporígidoemtodoseupavorosocomprimentoquealijaziaestendidonocaixãoescurosemtampa.Deusdocéu!—seriapossível?Seriameucérebroquevariava—oude

fato o dedo da morta estremecera sob a alva mortalha que a envolvia?Paralisado de indizível temor vagarosamente ergui os olhos para osemblantedocadáver.Haviaumafaixacingindoosmaxilares,mas,nãosei

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como, ela se rompera. Os lábios lívidos entreabriam-se numa espécie desorriso e, emmeio à penumbra circundante, novamente resplandeceramdiante de mim, com realidade por demais palpável, os dentes alvos,cintilantes, espectrais deBerenice. Afastei-me convulsivamente do leito e,sem pronunciar palavra, precipitei-me como um maníaco para foradaqueleaposentodetríplicehorror,mistérioemorte.26

***

Quandodeipormim,estavasentadonabiblioteca,enovamentesozinho.Parecia-me haver recém-despertado de um sonho confuso e tumultuoso.Sabiaqueerameia-noite,etinhaplenaconsciênciadequedesdeopôrdosol Berenice fora enterrada. Mas desse desolado intervalo não guardavanenhumpositivo—aomenosnãode inido—discernimento.Econtudoalembrançadeleestavarepletadehorror—umhorroraindamaishorrívelpor servago, eum terror aindamais terrívelpela ambiguidade.Eraumapágina assustadora na crônica de minha existência, escrita toda ela dememórias turvas, hediondas, ininteligíveis. Lutei por decifrá-las, mas emvão; ainda que, de vez em quando, como o espírito de um som extinto, ogrito estridente e penetrante de uma voz feminina parecesse ressoar emmeusouvidos.Eufizeraalgo—masoquê?Dirigiamimmesmoaperguntaemvozalta,eosecossussurrantesdoambientemeresponderam—“masoquê?”.Na mesa ao meu lado ardia uma lamparina, e junto dela havia uma

pequenacaixa.Estanadatinhadenotáveleeujáaviramuitasvezesantes,pois era de propriedade do médico da família; mas como foi parar ali,sobre minha mesa, e por que estremeci ao contemplá-la? Tais coisas demodo algummereciamminha atenção, emeus olhos acabarampousandosobreaspáginasabertasdeumlivro,enumafrasesublinhadaali.EramassingularesmassimplespalavrasdopoetaEbnZaiat.“Dicebantmihisodalessi sepulchrumamicaevisitarem,curasmeasaliquantulumfore levatas .” Porque então, conforme sobre elas me debruçava, os cabelos em minhacabeçaficaramtodoeriçados,eosanguegelouemminhasveias?Entãoumalevebatidasefezouvirnaportadabibliotecae,pálidocomo

o ocupante de uma tumba, entrou um criado na ponta dos pés. Tinha osolhos esgazeados de terror e falou comigo numa voz trêmula, rouca emuito baixa. O que disse? — escutei algumas sentenças entrecortadas.Informava-me de um grito agudo perturbando o silêncio da noite — de

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todosnacasasereunindo—deumabuscanadireçãodosom;—eentãosua voz ganhou tons cada vez mais penetrantes e distintos conformesussurrava para mim sobre um túmulo violado — sobre um corpoamortalhadoedes igurado,econtudoaindarespirando,aindapalpitando,aindacomvida!Apontou minhas roupas; — estavam sujas de lama e encrostadas de

sangue. Eu nada dizia, e ele tomou minha mão delicadamente; — havianelamarcasdeunhashumanas.Elechamouminhaatençãoparaumobjetoapoiado contra a parede;—olhei aquilo por algunsminutos;—era umapá.Comumgrito, corriparaamesa,eagarreia caixasobreela.Masnãoconsegui abri-la; e, em meu tremor, deixei que escorregasse de minhasmãos,eelacaiupesadamente,esefezempedaços;edeseuinterior,comestrépito, saíram rolando alguns instrumentos de cirurgia dentária, emmeioatrintaeduaspequenasmatériasbrancas,comoquedemar im,queseesparramaramaquiealipelosoalho.

*PoiscomoJúpiter,duranteaestaçãodoinverno,forneceporduasvezessete dias de calor, os homens batizaram esse período clemente etemperadodeaamadalindaAlcyone.Simônides.(N.doA.)

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LIGEIA

Eavontadeaídentroreside,enãomorre.Quemhaverádeconhecerosmistériosdavontade,comseuvigor?

PoisDeusnadaésenãoumagrandevontadepermeandotodasascoisaspelanaturezadesuaintencionalidade.

Ohomemnãoseentregaaosanjos,tampoucoàmorteincondicionalmente,salvoapenaspeladebilidadedesuafrágilvontade.

JosephGlanvillNão sou capaz, por minha alma, de lembrar como, quando ou mesmoprecisamenteondeconheciadamaLigeia.Muitosanossepassaramdesdeentão,eminhamemóriasedebilitoude tamanhosofrimento.Outalvezeunão seja mais capazhoje de trazer esses detalhes à mente porque, naverdade,ocaráterdeminhaamada,seurarosaber,onaipesingularmasplácido de sua beleza e a eloquência cativante e arrebatadora de suaentonação de voz baixa e musical abriram caminho até meu coração apassos tão irmes e furtivos que permaneceram despercebidos eincógnitos.Contudo,creioquenosencontramospelaprimeiravez,edepoiscom mais frequência, em certa cidade grande, antiga e decadente àsmargensdoReno.De sua família— certamenteme falou a respeito.Queestaprovémdeumaépocadasmaisremotasnãohádúvida.Ligeia!Ligeia!Absorto em estudos de uma natureza mais do que tudo adaptada aentorpecer as impressões do mundo exterior, é por meio dessa docepalavra apenas — Ligeia — que trago diante de meus olhos, naimaginação, a igura daquela que não existe mais. E agora, conformeescrevo, vem-me num lampejo a lembrança de quenunca soube o nomepaterno daquela que foi minha amiga e noiva, e que se tornou acompanheira de meus estudos, e inalmente minha esposa amantíssima.TerásidoalgumagracejadoraimposiçãodapartedeminhaLigeia?outerásido um teste para a força de minha afeição o fato de eu não instituirquaisquerinquiriçõesacercadesseponto?outerásidoantesumcaprichomeu — uma oferenda loucamente romântica no santuário da maisapaixonada devoção? O fato em si recordo apenas vagamente — quesurpresa haverá então que eu tenha esquecido completamente ascircunstânciasqueooriginaramouacompanharam?E,defato,sejamaiso

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espíritoqueédenominadoRomance—sejamaisela,apálidaAshtophetdeasas nebulosas, do idólatra Egito, presidiu, como dizem, os casamentosmalfadados,entãocertamenteelapresidiuomeu.Há,entretanto,umtemaquemeécaroearespeitodoqualamemória

não me falha. É apessoa de Ligeia. Sua estatura era elevada, em certamedida esguia e, em seus últimos dias, atémesmo emaciada. Eu tentariaem vão descrever amajestade, a tranquila naturalidade, de sua conduta,ou a incompreensível leveza e elasticidade de suas passadas. Ela seaproximava e partia como uma sombra. Eu nuncame dava conta de suaentrada emmeu gabinete fechado salvo pela queridamúsica de sua vozbaixa e doce, quandopousava amãodemármore sobremeu ombro. Embelezaderostonenhumadonzela jamaisa igualou.Eraaradiânciadeumsonhoopiáceo—umavisãoetéreaeexaltantemaisdelirantementedivinaqueasfantasiaspairandosobreasalmasadormecidasdas ilhasdeDelos.Contudo seus traços não eram daquele feitio que fomos erroneamenteensinadosavenerarnasclássicasobrasdopaganismo.“Nãoexistebelezarara”, a irmaBacon, LordVerulam, falando verdadeiramente de todas asformas e gêneros de beleza, “sem algumaestranheza na proporção.” Econtudo, embora eu notasse que os traços de Ligeia não eram de umaregularidade clássica— embora eu percebesse que seu encanto era defato “raro”, e sentisse que havia demasiada “estranheza” a permeá-la,contudo eu tentara em vão detectar a irregularidade e rastrear até aorigem o que percebia como “estranho”. Eu examinava o contorno dafrontealtaepálida—erasemfalhas—quãofrianaverdadeessapalavraaplicadaaumamajestadetãodivina!—apelerivalizandocomomaispuromar im, a imponente extensão e compostura, a suave proeminência dasregiõesacimadastêmporas;eentãoosanéisdeseuscabelos,negroscomoocorvo,reluzentes,bastosenaturalmentecacheados,dandovozemtodaaplenitude de sua força ao epíteto homérico “jacintino”! Observava odelicado desenho do nariz — e em nenhum outro lugar senão nosgraciosos medalhões dos hebreus contemplara semelhante perfeição. Láestava amesma exuberante suavidade de super ície, amesma tendênciavagamenteperceptívelparaoaquilino,amesmacurvaturaharmoniosadenarinas a manifestar um espírito livre. Olhava para a boca adorável. Aliresidia de fato o triunfo de todas as coisas celestiais — a magní icacurvatura do curto lábio superior — a suave, voluptuosa lassidão doinferior — as covinhas que brincavam, e a cor que falava — os dentesalém re letindo comuma luminosidade quase alarmante cada raio da luz

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sacrossanta que incidia sobre eles naquele que era sereno e plácido econtudo o mais radiantemente exultante de todos os sorrisos. Euperscrutava a conformação do queixo — e aqui, também, encontrei adelicadeza de amplitude, a suavidade e a majestade, a plenitude e aespiritualidade dos gregos — o contorno que o deus Apolo revelousomenteemumsonhoparaCleomenes,o ilhodoateniense.Eentão itavaosenormesolhosdeLigeia.Para os olhos não encontramosmodelos na remota Antiguidade. Podia

acontecertambémdenessesolhosdeminhaadoradaresidirosegredoaoqualaludeLordVerulam.Eram,querocrer,muitomaioresdoqueosolhosordináriosdenossaprópria raça.Eramaindamais rasgadosqueosmaisrasgados olhosde gazela dentre a tribodo vale deNourjahad. E contudoapenas a intervalos — em momentos de intensa excitação — essapeculiaridadesetornavamaisdoqueligeiramentenotávelemLigeia.Eemtaismomentossuabelezaera—emminhafebril imaginaçãotalvezassimparecesse—abelezade criaturasqueestãoacimaou forada terra—abeleza da fabulosa huri dos turcos. O matiz de suas íris era do maisbrilhante negro e, muito acima, pestanejavam os longos cílios cor deazeviche.Assobrancelhas,ligeiramenteirregularesnodelineamento,eramdomesmotom.Entretanto,a“estranheza”queeuencontravanosolhoserade uma natureza distinta de sua conformação, ou de sua cor, ou de seubrilho característicos, e deviam, a inal, ser atribuídos àexpressão. Ah,palavra sem signi icado! por trás de cuja vasta latitude de mero somentrincheiramos nossa ignorância sobre tanto do espiritual. A expressãodos olhos de Ligeia! Como por longas horas ponderei acerca dela! Como,durantetodaumanoitenoaugedoverão,laboreiporsondá-los!Oqueeraaquilo—aquelacoisamaisprofundaqueopoçodeDemócrito—quejaziaentranhado nas pupilas de minha adorada? O que era aquilo? Eu estavapossuído por um furor em descobrir. Aqueles olhos! aqueles enormes,aqueles cintilantes, aqueles divinos olhos! eles se tornaram paramim asestrelasgêmeasdeLeda,eeu,deles,omaisdevotadodosastrólogos.Não existe questão, entre as inúmeras incompreensíveis anomalias da

ciência da mente, mais arrebatadoramente excitante do que o fato —jamais, acredito, observado nas escolas— de que, em nossas diligênciaspor trazeràmemóriaalgumacoisahámuitoesquecida,muitasvezesnosvemosbemàbeirada lembrançasemsermoscapazes,no im,de lembrar.E assim quão frequentemente, em meu intenso escrutínio dos olhos deLigeia,sentiacercar-medoplenoentendimentodesuaexpressão—senti

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queme icavapróximo—econtudonãocompletamenteemminhaposse— para então por im ir-se inteiramente! E (estranho, oh,mais estranhomistériodetodos!)eudescobria,nosobjetosmaiscomunsdouniverso,umcírculo de analogias para essa expressão. Quero dizer que,subsequentemente ao período em que a beleza de Ligeia penetrava emmeu espírito, habitando-o como que num santuário, eu extraía, dasinúmerascoisasexistentesnomundomaterial,umsentimentotalcomoerasempredespertadodentrodemimporseusolhosgrandese luminosos.Econtudonemporissoeuseriamaiscapazdedefiniressesentimento,oudeanalisá-lo,ouaomenosdeenxergá-locommaiorsegurança.Euporvezesoreconhecia, permita-me repetir, no exame de uma hera vicejante — nacontemplaçãodeumamariposa, umaborboleta, uma crisálida, um regatode águas rápidas. Sentia-o no oceano; na queda de ummeteoro. Sentia-onos relances de pessoas notavelmente idosas. E há umaou duas estrelasno céu — (uma especialmente, uma estrela de sexta grandeza, dupla emutável,queseencontrapróximaàmaiorestreladeLira)queumexameaotelescópiofezcomquemedessecontadasensação.Fuiinvadidoporelaao som de determinados instrumentos de cordas e, com não poucafrequência, ante passagens de livros. Entre os inumeráveis outrosexemplos, recordo-me vivamente de algo em um livro de Joseph Glanvill,que (talvez meramente por seu caráter de estranheza — quem poderáa irmar?)jamaisdeixoudeinspiraremmimosentimento;—“Eavontadeaí dentro reside, e não morre. Quem poderá conhecer os mistérios davontade, com seu vigor? Pois Deus nada é senão uma grande vontadepermeando todas as coisas pela natureza de sua intencionalidade. Ohomem não se entrega aos anjos, tampouco à morte incondicionalmente,salvoapenaspeladebilidadedesuafrágilvontade”.O transcorrer dos anos, e a subsequente re lexão, capacitaram-me a

identi icar, de fato, certa conexão remota entre essa passagem do velhomoralista inglês e uma parte do caráter de Ligeia. Uma intensidade depensamento,açãooufalaerapossivelmente,emseucaso,umresultado,oupelomenos indício, dessa descomunal voliçãoque, durante nossas longasrelações, fracassou em fornecer uma outra emais imediata evidência desua existência. Dentre todas as mulheres que vim a conhecer, ela, aaparentemente calma, sempre plácida Ligeia, era a mais violentamentepresados tormentososabutresdo furor implacável.Ede tal furoreunãotinha como conceber estimativa alguma, salvo pela miraculosa dilataçãodaquelesolhosqueaomesmotempotantomedeleitavameatemorizavam

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—pelaquasemágicamelodia,modulação,nitidezeserenidadedesuavozmuito baixa — e pela feroz energia (tornada duplamente efetiva pelocontrastecomseumododepronunciar)daspalavrasdescontroladasquehabitualmentepronunciava.FaleidosaberdeLigeia:eraimenso—talcomonuncaconheciemuma

mulher.Naslínguasclássicaseraelalargamentepro icientee,atéondeseestendiaminhaprópria familiaridadecomrespeitoaosmodernos idiomasdaEuropa,jamaisasurpreendiemdeslize.Edefatoemquetemadosmaisadmiradosjustamenteporseremosmaisabstrusosdapropaladaerudiçãoda academia eualguma vez surpreendi Ligeia em deslize? Quãosingularmente—quãoarrebatadoramenteesseúnicoaspectonanaturezademinhaesposase impôs,apenasnesseperíodotardio,àminhaatenção!Disse que seu conhecimento era tal que nunca presenciei em mulheralguma—masonderespiraohomemquehajatransposto,ecomsucesso,todas as vastas áreas da ciência moral, ísica e matemática? Eu nãoenxergueinaépocaoquehojepercebocomclareza,queasconquistasdeLigeia eram gigantescas, espantosas; contudo eu era su icientementeconsciente de sua in inita supremacia parame resignar, com a con iançade um menino, a sua orientação pelo mundo caótico da investigaçãometa ísica de que me ocupei sobremaneira durante os anos iniciais denossocasamento.Comquevastotriunfo—comquevívidodeleite—comque vasta parcela de tudo que há de etéreo na esperança — eu sentia,conformeelasedebruçavaameuladoemestudostãopoucoinvestigados— mas menos ainda conhecidos — aquele delicioso panorama seexpandindo gradativamente diante de mim, por cuja senda longa,deslumbrante e inteiramente não palmilhada eu podia en im passaradiante ao objetivo de uma sabedoria por demais divinamente preciosaparanãoserproibida!Quãopungente,então,devetersidoopesarcomque,apósalgunsanos,

contempleiminhasbem fundadasexpectativas ganharemasaspróprias esaírem voando! Sem Ligeia eu não passava de uma criança tateante nastrevasda ignorância. Suapresença, suas interpretaçõesapenas tornavamvividamente luminosos os inúmeros mistérios do transcendentalismo emque estávamos mergulhados. Carecendo do esplendor radiante de seusolhos, a literatura luminosa e reluzente tornava-se mais baça que ochumbo saturnino. E agora aqueles olhosbrilhavamcomcada vezmenosfrequênciapelaspáginassobreasquaiseumedebruçava.Ligeiaadoeceu.Os olhos desvairados fulgiam com um lume por demais — por demais

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glorioso; os dedos pálidos adquiriram o céreo matiz transparente dotúmulo, e as veias azuis sobre a fronte altiva intumesciam e cediamimpetuosamentecomos luxosdamaissuaveemoção.Percebiqueamorteera iminente — e lutei desesperadamente em espírito com o austeroAzrael. E as lutas de minha ardorosa esposa foram, para minhaestupefação,aindamaisenérgicasdoqueaminha.Emsuanaturezagravehouveraosuficienteparaafetaremmimacrençadeque,paraela,amorteviriasemseusterrores;—mastalnãosedeu.Aspalavrassãoimpotentesparatransmitirqualquer justa ideiadaferocidadederesistênciacomquese bateu contra a Sombra. Eu gemia de angústia ante o lastimávelespetáculo.Queriaconfortá-la—queriadizer-lhepalavrasracionais;mas,naintensidadedeseudesejodescontroladoporvida—porvida—apenaspor vida — consolo e razão eram igualmente a mais rematada dasloucuras. Contudo, não foi senão no derradeiro instante, em meio àscontorções mais convulsivas de seu espírito agonizante, que a placidezexternade sua conduta semostrou abalada. Sua voz icoumais suave—icou mais baixa — contudo eu não desejava me deter no signi icadodesvairado das palavras quietamente pronunciadas. Meu cérebro giravaconformeeuescutava,enlevado,umamelodiaalémdomortal—escutavaconjecturas e aspirações de que a mortalidade nunca antes tiveraconhecimento.Queme amasse eu não podia duvidar; e possivelmente eu tinha plena

consciênciadeque,numpeitocomooseu,oamornãoreinavacomoumapaixão ordinária. Mas foi na morte apenas que me impressionouprofundamente toda a força de sua afeição. Por longas horas, segurandominhamão,elavertiadiantedemimotransbordardeumcoraçãoemquea devoção mais apaixonada beirava a idolatria. O que izera eu paramerecer a bênção de tais con issões?— o que izera eu paramerecer amaldição de ver minha adorada sendo levada no momento em que asfazia?Mas é insuportável paramim seguirme detendo nesse ponto. QuemesejapermitidodizerapenasquenoabandonomaisdoquefemininodeLigeia a um amor, ai de mim! de todo imerecido, de todo indignamenteconcedido,eu reconheciaen imaessênciadeseuanseiocomoumdesejofervorosamenteintensopelavidaqueagoralheescapavatãorapidamente.É esse anseio ardente— é essa ávida veemência de desejo pela vida—nada além da vida — que não tenho a capacidade de descrever —nenhumapalavraàalturadeexpressá-lo.Nomeiodanoiteemquepartiu,acenando,peremptoriamente,paraque

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me achegasse ao seu lado, instou-me a repetir certos versos que elaprópriacompuseraalgunsdiasantes.Obedeci.—Ei-losaqui:

“Vede!énoitedegalaNessesanosúltimosesolitários!Umamultidãodeanjos,alados,trajadosEmvéus,eafogadosemlágrimas,Sentam-seemumteatro,paraassistirAumapeçadeesperançasemedos,EnquantoaorquestrasussurravacilanteAmúsicadasesferas.

Mímicos,àfeiçãodoDeusaltíssimo,Murmuramefalambaixo,Evoamdaquiparalá—MerasmarionetesquevêmevãoAocomandodevastascriaturasinformesQuemudamocenáriodeláparacá,EspalhandocomobaterdesuasasasdeCondorInvisívelDesgraça!

Essedramavariegado!oh,estaicertoNãopoderáseresquecido!ComseuEspectrosempreperseguido,Porumamultidãoquenuncaoalcança,EmumcírculoquesempreregressaAolugarondecomeçou,EgrandedosedeLoucuraemaisaindadePecadoEdeHorroréaalmadaintriga.

Mas,olhai,emmeioàturbademímicos,Umaformarastejanteseinsinua!Umacriaturavermelho-sanguequesecontorcendoSurgeemsuacênicasolitude!

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Elasecontorce!—Elasecontorce!—commortaisespasmosOsmímicostornam-seseualimento,EosserafinssoluçamanteaspresasdobichoTingidasdesanguehumano.

Apagam-se—apagam-seasluzes—apagam-setodas!EsobrecadaformaquealiestremeceAcortina,mortalhafúnebre,Descecomoímpetodeumatempestade,Eosanjos,todoselespálidosesemforças,Erguendo-se,desvelando-se,afirmamQueapeçaéatragédia'Homem'Eseuherói,oVermeVencedor.”27

“ÓDeus!”,quasegritouLigeia,pondo-sebruscamentedepée lançandoos braços para o alto com um movimento espasmódico assim que euterminavaessesversos—“ÓDeus!ÓDivinoPai!—deverãotaiscoisasserinexoravelmente desse modo? — nem uma única vez deverá oConquistador ser conquistado? Acaso não somos parte integrante de Ti?Quem—quemhaverádeconhecerosmistériosdavontadecomseuvigor?Ohomemnão se entregaaos anjos, tampoucoàmorte incondicionalmente,salvoapenaspeladebilidadedesuafrágilvontade.”Eentão, comoqueesgotadapela emoção,deixou cairos alvosbraçose

voltou gravemente ao seu leito de Morte. E quando exalava os últimossuspiros, entremeado a eles brotou de seus lábios um surdo murmúrio.Baixei para junto delesmeu ouvido e distintamente, outra vez, escutei asúltimaspalavrasdapassagememGlanvill—“Ohomemnãoseentregaaosanjos,tampoucoàmorteincondicionalmente,salvoapenaspeladebilidadedesuafrágilvontade”.Elamorreu;— e eu, reduzido amero pó pela tristeza, nãomais podia

suportarasolitáriadesolaçãodeminhamoradanaquelacidadedetorporedissoluçãojuntoaoReno.Nãocareciadissoqueomundochamariqueza.Ligeia trouxera-memais,muitomais do que ordinariamente cabe à sortedosmortais.Apósalgunsmeses,portanto,devagarexaustivamenteesemrumo, adquiri, emandei reformar, uma abadia, cujo nomeomitirei, numadas regiões mais ermas e menos frequentadas da bela Inglaterra. A

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soturna e desolada imponência da construção, o aspecto quase bravio dapropriedade, as inúmerasmemóriasmelancólicas e venerandas ligadas aambas harmonizavam-se grandemente com os sentimentos de totalabandonoquemehaviamcompelidoàquelasplagasremotaseantissociaisdo país. Não obstante, conquanto o exterior da abadia, com seudecomposto verdor a pender-lheda estrutura, admitissepoucamudança,dei vazão, comperversidade infantil, e porventuranadébil esperançadealiviar minhas tristezas, a uma ostentação de magni icência mais do querégia em seu interior. Por tais desatinos, mesmo na infância, eu criaragosto,eagoraelesvoltavamamimcomoquenumasenilidadedopesar.Aidemim,sintoquantodeloucuraatémesmoincipientepodiaserobservadanos magni icentes e fantásticos reposteiros, nas solenes esculturas doEgito, nas extravagantes cornijas e mobília, nos motivos desvairados dostapetescomfelpasdeouro!Eumetornaraumescravocompelidoàspeiasdoópio,emeuslaboreseminhasordenshaviamassumidoacoloraçãodemeussonhos.Masnãodevomedeteremesmiuçartaisabsurdos.Quemeseja permitido falar apenas daquele aposento, para sempre amaldiçoado,aoqualemummomentodealienaçãomental trouxedoaltarnacondiçãode esposa — na condição de sucessora da inesquecível Ligeia — LadyRowenaTrevanion,deTremaine,donadelouroscabeloseolhosazuis.Nãoháumúnicodetalheindividualnaarquiteturaedecoraçãodaquele

quartonupcialquenãoestejanessemomentobemvisíveldiantedemim.Onde estavam as almas da orgulhosa família da noiva quando, com suasededeouro,permitiramquepassassepelo limiardeumaposentode talmodo ornamentado a donzela e ilha tão adorada? A irmei lembrar-meminuciosamente dos detalhes do ambiente — e contudo a memóriatristementemeescapaacercadepormenoresdeprofundasigni icação—quando ali não havia sistema algum, harmonia alguma na fantásticaostentação que fosse capaz de se ixar na lembrança. O aposento icavanuma elevada torre da abadia acastelada, tinha a forma pentagonal econsideráveisdimensões.Ocupando toda a face sul dopentágonohavia aúnicajanela—umaimensavidraçainquebráveldeVeneza—umalâminade vidro inteiriça, pintada de um plúmbeo matiz, de modo que os raios,fossem do sol, fossem da lua, ao passar através dela, incidiam com umbrilhofantasmagóricosobreosobjetosalidentro.Acimadapartesuperiordessa imensa janela estendia-se a treliça de uma vinha envelhecida quetrepava pelasmaciças paredes da torre. O forro, de um escuro carvalho,eraexcessivamenteelevado,abobadadoeelaboradamenteornadocomos

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mais fantásticos e sumamente grotescos exemplos de um motivosemigótico, semidruídico. No centro dos recessos mais profundos dessamelancólica abóbadapendia,porumaúnica correntedeouro com longoselos, um imenso incensóriodomesmometal, depadrão sarraceno, e cominúmerasperfuraçõesdetalmodoconcebidasqueatravésdelasedelasseprojetando contorcia-se, como que investida da vitalidade de umaserpente,umacontínuasucessãodechamasmulticores.Umas poucas otomanas e candelabros de ouro, de feitio oriental, eram

dispostosempontosvariados—ehavia tambémodivã—odivãnupcial—deummodeloindiano,baixo,esculpidoemébanosólido,encimadoporum dossel semelhante a um pálio fúnebre. Em cada um dos cantos doaposento fora colocado de pé um gigantesco sarcófago de granito negro,das tumbas dos reis diante de Luxor, com suas tampas antiquíssimascobertas de entalhes imemoriais. Mas era na colgadura do apartamentoque residia,hélas! a principal fantasia de todas. As elevadas paredes,gigantescas na altura—beirandomesmo a desproporção—, cobriam-sede alto a baixo, em bastos pregueados, por uma tapeçaria pesada e deaspecto maciço — feita de um material que era igualmente encontradocomotapetenochão, comocobertaparaasotomanaseacamadeébano,como dossel para a cama e como as cortinas de suntuosas volutas quetampavamparcialmente a janela. Omaterial era um riquíssimo tecido deouro. Pintado inteiramente, a intervalos irregulares, com padrões dearabescos, medindo cerca de trinta centímetros de diâmetro, e lavradossobre o tecido em padrões do mais negro azeviche. Mas esses padrõespartilhavam da genuína característica do arabesco apenas quandoobservadosdeumpontodevistasingular.Porumarti íciohojecomum,ecujas origens na verdade remontam a um período muito longínquo daAntiguidade, eram feitos de modo a assumir um aspecto mutável. Paraalguém adentrando o ambiente, exibiam a aparência de simplesmonstruosidades; mas ao se avançar mais além, essa aparênciagradualmentedesaparecia;e,passoapasso,conformeovisitantemudassede posição no aposento, via-se cercado por uma in inita sucessão dasformasespectraispertencentesàsuperstiçãodosnormandosousurgidasnos sonos culpados do monge. O efeito fantasmagórico era vastamenteampliado pela introdução arti icial de uma corrente de vento forte epersistente por trás dos reposteiros — emprestando ao todo umaanimaçãohediondaeinquietante.Em acomodações como essas — em um quarto nupcial como esse —

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passei,nacompanhiadeLadydeTremaine,ashorasprofanasdoprimeiromês de nosso casamento— passei-as com quase nenhuma preocupação.Queminhaesposatemesseoferozmauhumordeminhaíndole—quemeevitasseepoucomeamasse—eunãopodiadeixardeperceber;masissomeocasionavamaisprazerdoqueoutracoisa.Euaexecravacomumódiomais próprio de um demônio que de um homem. Minha memóriaretrocedia (oh, com que intensa saudade!) para Ligeia, a adorada, aaugusta, a bela, a sepultada. Eu me deleitava em recordações de suapureza, de sua sabedoria, de sua natureza altiva, etérea, de seu amorapaixonado,idólatra.Agora,pois,meuespíritoardiademodoplenoelivrecommaiscalordoquetodasaschamasdelaprópria.Naexcitaçãodemeussonhos opiáceos (pois vivia acorrentado aos grilhões da droga), euchamava seu nome em voz alta, na calada da noite, ou, de dia, entre osresguardadosrecantosdosvales,comose,medianteaânsiadesvairada,apaixão solene, o abrasivo ardor demeu anseio pela falecida, eu pudessedevolvê-la à vereda que ela havia abandonado — ah,seria possível queparasempre?—nestemundo.

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Próximo ao início do segundo mês de casamento, Lady Rowena foiacometidaporummalsúbito,doqualorestabelecimentoveiolentamente.

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A febre que a consumia tornava suas noites inquietas; e em seuperturbado estado de semissonolência, falava de sons, e de movimentos,indo e vindo pelo aposento da torre, cuja origem concluí não ser outrasenão a desordem de seus pensamentos, ou talvez as fantasmagóricasin luênciasdoambienteemsi.Emseguidapassouaconvalescer—atéqueinalmente curou-se. Contudo, apenas transcorreu o mais breve períodoantesqueumasegundaemaisviolentaagitaçãoalançassedevoltaemumleito de sofrimento; e desse ataque seu corpo, que sempre fora frágil,jamais se recuperou por completo. Sua enfermidade foi, a partir dessaépoca, de um caráter alarmante, e de recorrência aindamais alarmante,desa iando igualmente os conhecimentos e os enormes esforços de seusmédicos. Com o aumento da doença crônica que desse modo,aparentemente,apoderara-sedesuaconstituiçãocomfirmezademaisparaser erradicada por meios humanos, não pude deixar de observar umaumento similar na irritação nervosa de seu temperamento, e em suaexcitabilidadeperantetriviaiscausasdemedo.Voltouafalar,eagoracommais frequência e obstinação, dos sons — dos leves sons — e dosincomuns movimentos entre as tapeçarias, aos quais aludiraanteriormente.Certanoite, lápelos insde setembro, ela trouxeo angustiante assunto

com ênfase mais do que costumeira à minha atenção. Havia recém-despertado de um sono inquieto, e eu estivera a observar, comsentimentosempartedeansiedade,empartedevagoterror,asagitaçõesdesuaemaciada isionomia.Eumesentavaaoladodesuacamadeébano,sobre uma das otomanas da Índia. Soerguendo o corpo ela falou, numsussurrofracoesolene,desonsqueescutavanessemomento,masqueeueraincapazdeescutar—demovimentosquevianessemomento,masqueeu era incapaz de perceber. O vento soprava lestamente atrás dastapeçarias,eeuqueria lhemostrar (coisanaqual,quemesejapermitidoconfessar, era incapaz de crer inteiramente) que aquelas respiraçõesquase inarticuladas e aquelas oscilações muito tênues das iguras naparedenadamaiseramqueosefeitosnaturaisdessecostumeirosoprodovento. Mas uma palidez mortífera, espalhando-se por todo seu rosto,provaraparamimquemeusesforçosporreconfortá-laseriaminfrutíferos.Elaameaçavadesmaiar,enenhumcriadoachava-seàdisposição.Lembrei-me de onde fora deixado umdecanter de vinho leve que havia sidoreceitadoporseusmédicoseapressei-mepeloquartoparaprocurar.Mas,ao passar sob a luz do incensório, duas circunstâncias de alarmante

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natureza chamaram minha atenção. Eu havia sentido que um objetopalpável,emborainvisível,passaraligeiramentejuntoaminhapessoa;eviali jazendosobreo tapetedourado,bemnomeiodoricoclarãoprojetadopelo incensório, uma sombra— um vulto tênue, inde inido, de angelicalaspecto—talcomosepoderiatomarpelasombradeumasombra.Maseuestavadelirantecomaexcitaçãodeumaimoderadadosedeópio,epresteipouca atenção a essas coisas, tampouco as comentei comRowena. Tendoencontradoovinho,volteiaatravessaroaposento,eserviumataçaatéaborda,quesegurei juntoaos lábiosdasenhoradesfalecente.Elaagoraserecobraraparcialmente,porém,esegurouocopoporsimesma,enquantoeu afundava em uma otomana próxima, com os olhos cravados em suapessoa.Foinesseinstantequemedeicontanitidamentedeumsuavesomde passos no tapete, perto do divã; e um segundo depois disso, quandoRowenaachava-senoatodelevarovinhoaoslábios,euvi,outalveztenhasonhado que vi, cair dentro da taça, como que vindas de alguma fonteinvisível na atmosfera do aposento, três ou quatro grossas gotas de umlíquidobrilhante e rubi. Posso ter visto—masnãoRowena. Ela tragouovinho sem hesitar, e abstive-me de lhe falar de uma circunstância quedevia,afinaldecontas,assimconsiderei,tersidoapenasasugestãodeumaimaginaçãomuitovivaetornadamorbidamenteativapeloterrordadama,peloópioepelahora.E contudo não posso ocultar de minha própria percepção que,

imediatamente após aquedadas gotas corde rubi, uma rápidamudançapara pior se operou no distúrbio deminhamulher; de talmodo que, naterceiranoitesubsequente,asmãosdesuascriadasprepararam-naparaotúmulo e, na quarta, quedei-me sentado, solitário, com seu corpoamortalhado, naquele fantástico aposento que a acolhera como minhaesposa. Visões delirantes, engendradas pelo ópio, adejavam, como vultos,diantedemim.Euobservavacomolhosinquietosossarcófagosnoscantosdoquarto, as cambiantes igurasdos cortinadoseos contorcionismosdaschamas multicores no incensório acima. Meus olhos então pousaram,conformeeutraziaàmemóriaascircunstânciasdeumanoiteanterior,noponto sob o fulgor do incensório onde avistara os tênues vestígios dasombra.Nãomais,entretanto,estavalá;erespirandocommaiorliberdade,volteimeus olhares para a pálida e rígida igura sobre a cama. Então fuiinvadidopormil lembrançasdeLigeia—e então voltou aomeu coração,comaturbulentaviolênciadeumdilúvio,emtodasuacompletude,aquelainefável angústia com que eu icara a contemplá-la,ela, igualmente

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amortalhada. A noite avançava; emesmo assim, com o peito opresso porpensamentos amargosdaquelaque fora aúnica e supremamente amada,permanecicontemplandoocorpodeRowena.Pode tersidoàmeia-noite,ou talvezmaiscedo,oumais tarde,poisnão

fazia caso da hora, quando um soluço, baixo, suave, mas muito nítido,arrancou-medemeusdevaneios.Minhasensaçãofoidequevieradacamade ébano—o leito demorte. Estiquei os ouvidos numa agonia de terrorsupersticioso—masnenhuma repetiçãodo somse seguiu. Forcei a vistapara tentar detectar alguma perturbação no cadáver— mas não houvesequer omais levemovimento perceptível. E contudo era impossível quehouvesse me enganado. Euescutara o ruído, pormais débil que fosse, emeu espírito estava desperto dentro de mim. Resoluta eperseverantementemantive a atenção cravada no corpo.Muitosminutossepassaramantesque alguma circunstância ocorressedemodo a lançarluz sobreomistério.Após certo tempo icouevidentequeum tomde corleve,muitotênueequaseimperceptívelenrubesceraasmaçãsdorosto,aomesmotempoquedesciapelasminúsculasveiasencovadasdaspálpebras.Com uma espécie de indizíveis horror e assombro, para os quais alinguagem dos mortais não possui expressão su icientemente vigorosa,iquei ali sentindo a cabeça girar, meu coração cessar de bater, meusmembros cada vez mais rígidos. Contudo, uma sensação de deverinalmente se apoderou demim e restaurouminha presença de espírito.Não podia mais duvidar de que havíamos nos precipitado em nossospreparativos— de que Rowena ainda vivia. Era necessário que algumaimediatatentativafossefeita;contudoatorreeracompletamenteafastadada parte da abadia atendida pela criadagem — não havia um criadosequeraoalcancedavoz—eunãotinhameiosdechamá-losparaacorreremmeu auxílio sem deixar o aposento por vários minutos— e isso eracoisaquenãopodiamearriscarafazer.Dessemodoluteisozinhoemmeuempenho por trazer de volta o espírito que ainda pairava. Em um curtoperíodo icou evidente, entretanto, que uma recaída tivera lugar; a cordesapareceutantodaspálpebrasquantodasmaçãs,deixandoumalividezaindamaiorqueadomármore;oslábios icaramduplamenteenrugadosecontraídos namacabra expressão damorte; uma repulsiva viscosidade efrieza espalhou-se rapidamente pela super ície do corpo; e toda a usualrigidez austera sobreveio imediatamente. Desabei de volta com umestremecimento no divã de ondeme erguera com tamanho sobressalto emaisumavezentreguei-me,desperto,aapaixonadasvisõesdeLigeia.

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Uma hora assim transcorreu, até que (seria possível?) tive consciênciapela segunda vez de um som vago e incerto vindo das proximidades dacama.Escutei—numextremodehorror.Osomveiooutravez—eraumsuspiro.Correndoparao cadáver, vi—vinitidamente—um tremornoslábios.Umminuto depois eles relaxaram, revelando a linha brilhante dosdentes perolados. A estupefação agora lutava em meu peito com oprofundo assombro que até então reinara ali sozinho. Senti que minhavisãoseturvavaequeminharazãodivagava;efoiapenaspormeiodeumviolento esforço que en im consegui reunir coragem para a tarefa que odeverdessemodomaisumavezsemeapresentava.Haviaagoraumruborparcialna fronte,nasmaçãsdorostoenagarganta;umcalorperceptívelinvadiatodoseucorpo;haviaatéumalevepulsaçãonocoração.Asenhoravivia; e com redobrado ardor entreguei-me à tarefa de seurestabelecimento. Friccionei e umedeci as têmporas e asmãos, e envideitodososesforçosqueaexperiência,enãopoucaliteraturamédica,podiamsugerir.Masemvão.Subitamente,acorsefoi,apulsaçãocessou,oslábiosretomaramaexpressãodosmortose,uminstantedepois,ocorpotodoserevestiu da frieza do gelo, do lívido matiz, da intensa rigidez, do per ilencovado e de todas as repugnantes peculiaridades de alguém que fora,durantemuitosdias,ocupantedeumatumba.EmaisumavezmergulheinasvisõesdeLigeia—emaisumavez(que

espanto haverá em que eu estremeça enquanto escrevo?),mais uma vezchegou aos meus ouvidos um soluço abafado vindo das imediações dacama de ébano. Mas por que detalhar minuciosamente os inefáveishorrores daquela noite? Por que me deter relatando o modo como, vezapós outra, até quase o momento do cinzento alvorecer, esse hediondodramaderevivescênciaserepetiu;comocadaterrívelrecaídaeraapenaspara umamais austera e aparentementemais irremediávelmorte; comocadaagoniaportavaoaspectodeuma lutacomalgum inimigo invisível; ecomo cada luta era sucedida por não sei que fantástica alteração naaparência pessoal do cadáver? Que me seja permitido apressar-me aconcluir.Amaiorpartedaassustadoranoite transcorrera,eaquelaqueestivera

entreosmortosmaisumavezsemexia—eagoracommaisvigordoquenunca, embora despertando de um óbito mais consternador por suaabsolutadesesperançadoquequalqueroutro.Eucessarahaviamuitodeempreender qualquer diligência ou gesto, e permanecera sentadorigidamente na otomana, presa indefesa de um turbilhão de violentas

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emoções,dasquaisoextremochoqueeratalvezamenosterrível,amenosconsumidora.Ocadáver,repito,semoveu,eagoracommaisvigordoqueantes. As nuanças da vida enrubesceram com energia incomum osemblante—osmembrosrelaxaram—e,anãoserpelaspálpebras,aindafortementecerradas,epelasbandagenseataviosdotúmulo,investindodeseucaráterfúnebrea igura,eupoderiatersonhadoqueRowenahaviaselibertado inteiramente, de fato, dos grilhões da Morte. Mas se essa ideianãofoi,mesmoentão,detodoaceitável,eunãomaispudeduvidarquando,erguendo-se da cama, cambaleante, com passos débeis, olhos fechados eprocedendo como que sob a desorientação de um sonho, a criaturaamortalhada avançou em carne e osso, palpavelmente, para o centro doaposento.Não falei — não me mexi — pois uma hoste de inefáveis fantasias

ligadasàaparência,àestatura,aocomportamentoda igura,percorrendovelozmentemeucérebro,haviammeparalisado—haviammecongeladoepetri icado.Nãomemexi—mas iteiaaparição.Umadesordemdemencialtomou conta de meus pensamentos — um tumulto implacável. Podia defato ser Rowena,viva, quem me confrontava? Podia de fato sermesmoRowena—LadyRowenaTrevanion,deTremaine,donade louroscabelose olhos azuis? Por que,por que eu duvidava? A bandagem cingiatensamentesuaboca—masacasopodianãoserabocaexalantedaLadydeTremaine?Easfaces—láestavaorosadocomonoapogeudesuavida—sim, aquelaspodiamde fato ser as formosas facesdaviventeLadydeTremaine.Eoqueixo,comsuascovinhas,comonasaúde,podianãoserodela? — masacaso icara mais alta desde sua enfermidade? Queinexprimível loucura apossou-se de mim com esse pensamento? De umsalto, caí a seus pés! Encolhendo aomeu toque, ela se desvencilhou dasmacabras ataduras funerárias que con inavam sua cabeça, e daliesvoaçaram,soboarrevoltodoquarto,enormescachosdecabeloslongose desgrenhados;mais negros que as asas da meia-noite! E entãovagarosamente foram se abrindo osolhosda iguradiantedemim. “Ei-losaqui, inalmente”, gritei alto, “eu jamais poderia — jamais poderia meenganar—eisaquiosolhosrasgados,negros,veementes—demeuamorperdido—deminhasenhora—daLADYLIGEIA!”

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AQUEDADACASADEUSHER

Seucoraçãoéumalaúdesuspenso;Tãologootocamoseleressoa.

DeBérangerDurante todoumdiacarregado, silentee soturnonooutonodaqueleano,quando as nuvens pairavam opressivamente baixas no irmamento, eupassava sozinho, a cavalo, por um trato de terra singularmentedesalentador;eempouco tempomevi,aocairdassombrasdoanoitecer,diante da melancólica Casa de Usher. Não sei dizer como foi—mas, aoprimeiro relance do edi ício, uma sensação de insuportável desesperoinvadiu meu espírito. Digo insuportável; pois a impressão não eraatenuada por nada desse sentimento parcial de prazer, pois que poético,com que a mente normalmente recebe até mesmo as imagens maisausterasdedesolaçãooudissabor.Contempleiacenadiantedemim—amera casa, e os simples aspectos panorâmicos da propriedade — asparedesnuas—asjanelasvagassemelhantesaolhos—ocapimesparsoeespesso—unspoucos troncosesbranquiçadosdeárvores fenecidas—comumadepressãodealmatãoabsolutaquenãoapossocompararmaisadequadamentecomnenhumaoutrasensaçãoterrenasenãocomoestadopós-onírico daquele que se entregou às dissipações do ópio— a amargarecaída na vida cotidiana— o hediondo cair do véu. Havia uma gelidez,uma prostração, uma repulsa no coração — uma irremediávelconsternação do pensamento que estímulo algum da imaginação podiainstigar ao que quer que fosse de sublime. O que era isso— parei parapensar — o que era isso que me debilitava ao contemplar a Casa deUsher?Eraummistériodetodoinsolúvel;tampoucopodiaeulutarcomassinistrasquimerasqueseabatiamsobremimconformeponderava.Vi-meforçadoarecorreràinsatisfatóriaconclusãodequeembora,semamenorsombra de dúvida, hajade fato combinações de objetos muito simplesdotados do poder de dessemodonos afetar, ainda assim a análise dessepoder reside em considerações além de nosso alcance. Possivelmente,re leti, um mero arranjo diferente dos pormenores da paisagem, dosdetalhes do quadro, bastaria para modi icar, ou talvez aniquilar, suacapacidadeparaapesarosaimpressão;e,agindosegundoessaideia,dirigias rédeas de meu cavalo para a beira escarpada de um pequeno lagolúgubreenegroreluzindoplacidamentenasproximidadesdaresidência,e

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baixeiosolhos—mascomumtremoraindamaisintensodoqueantes—para as imagens remodeladas e invertidas do capim pardacento, dosfantasmagóricostroncosdeárvore,dasjanelasvagassemelhantesaolhos.E contudo, nesse solar da melancolia eu agora me propunha a passar

algumas semanas. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um de meusalegres companheiros na infância; mas muitos anos haviam se passadodesde nosso último encontro. Uma carta, entretanto, alcançara-merecentementeemumapartedistantedopaís—umacartasua—que,pelanatureza febrilmente urgente, não admitira outra coisa além de umarespostaempessoa.Acaligra iaevidenciavaagitaçãonervosa.Omissivistafalavadeumaagudaenfermidade ísica—deumdistúrbiomentalqueooprimia — e de um desejo sincero de me ver, como seu melhor e naverdade único amigo pessoal, com vistas a ensejar,mediante a satisfaçãodeminha companhia, algum alívio para seumal. Foi amaneira com quetudoisso,emuitomais,sedizia—foioaparenteardorqueacompanhavaseu pedido— que não me permitiu a menor margem para hesitação; eassim acatei incontinente o que ainda considerava um convite deverassingular.Muito embora quando crianças houvéssemos desfrutado de alguma

intimidade,eunaverdadepoucosabiademeuamigo.Suareservasempreforaexcessivaehabitual.Eutinhaconsciência,entretanto,quesuafamília,das mais antigas, se distinguira, desde tempos imemoriais, por umapeculiarsensibilidadedetemperamento,patenteando-seatravésdelongaseraseminúmerasobrasdeexaltadaarteemanifestada,ultimamente,emrepetidas ações de generosa e mesmo pródiga caridade, bem como emuma apaixonada devoção às complexidades, talvez aindamais do que àsbelezasortodoxasefacilmentereconhecíveis,daciênciamusical.Eu icarasabendo, também, o fato deveras notável de que o tronco familiar dosUsher, a despeito da reputação inigualável desde sempre, jamais haviagerado, no período que fosse, nenhum ramo duradouro; em outraspalavras,quea família inteiraderivavada linhadiretadedescendênciaedesse modo se perpetuara, com variações muito insigni icantes e muitoefêmeras. Era essa de iciência, considerava eu, enquanto examinava empensamentosaperfeitaconformidadeentreanaturezadapropriedadeeareconhecidanaturezadaspessoaseenquantoespeculavasobreapossívelin luência que uma, no longo intervalo dos séculos, devia ter exercidosobreaoutra—eraessade iciência,talvez,deumaprogêniecolateral,eaconsequente transmissão invariável, de pai para ilho, do patrimônio

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acompanhadodonome,quehavia, inalmente,de talmodo identi icadoosdois a ponto de fundir o título original da propriedade na denominaçãoestranha e equívoca de “Casa de Usher” — denominação que pareciaabranger,nasmentesdoscamponesesqueausavam,tantoafamíliacomoamansãofamiliar.Eu disse que o único efeito de meu procedimento em certa medida

pueril—odecontemplaro lago—foraaprofundarasingular impressãoinicial. Não pode haver dúvida de que a consciência do rápidoagravamentodeminhasuperstição—poisporquenãodeveriachamá-laassim?— serviu principalmente para acelerar o agravamento em si. Tal,bemoseihámuitotempo,éaleiparadoxaldetodasassensaçõesquetêmoterrorcomobase.Etalveztenhasidoporessarazãounicamenteque,aovoltar a erguer os olhos para a própria casa, desviando-os do re lexo naágua,emminhamentecresceuumaestranhafantasia—umafantasiatãoridícula, de fato, que amenciono apenas paramostrar a vívida força dassensações que me oprimiam. A tal ponto estimulara a imaginação quechegueirealmenteacrerqueportodooentornodamansãoedodomíniopairava uma atmosfera peculiar a eles próprios e a suas imediatasredondezas—atmosferaquenão guardavaqualquer a inidade como ardocéu,masquetresandavadasárvoresapodrecidas,daparedecinzenta,do lago silente — um vapor pestilento e místico, pesado, letárgico,fracamentediscernível,eplúmbeo.Livrandomeu espírito do quedevia ter sidoum sonho, perscruteimais

detidamente o verdadeiro aspecto do edi ício. Sua característica principalpareciaseraexcessivaantiguidade.Adescoloraçãodotempoforaenorme.Fungos minúsculos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais comoredes intrincadas.Enoentanto tudo issoassimsedavaàpartequalquerdilapidação extraordinária. Nenhuma seção da alvenaria desabara; eparecia haver uma incongruência incompreensível entre a ainda intactaadaptaçãodesuasparteseacondiçãodeterioradadaspedrasindividuais.Muita coisa naquilo me lembrava a especiosa totalidade de ummadeiramento antigo apodrecendo por longos anos em alguma criptadecrépita semnunca ter sidoperturbadopelo soprodoarexterior.Alémdessaindicaçãodeextensadecadência,entretanto,aestruturadavapoucosinal de instabilidade. O olho de um observador atento teria talvezpercebido uma issura quase imperceptível que, estendendo-se desde otelhadodoedi ício,nafrente,desciapelaparedeemumzigue-zague,atéseperdernassoturnaságuasdolago.

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Notando essas coisas, atravessei a curta estrutura elevada demadeiraque conduzia à casa.Umcriadoà espera tomoumeu cavalo e entreipelaarcadagóticadovestíbulo.Umpajem,defurtivospassos,guiou-meapartirdaí, em silêncio, por inúmeras passagens escuras e complicadas rumo aogabinete de seu senhor. Grande parte do que encontrei no caminhocontribuiu,nãoseicomo,para intensi icarosvagossentimentosdeque jáfalei.Emboraosobjetosemtornodemim—emboraosentalhesdostetos,as solenes tapeçarias das paredes, o negror de ébano dos soalhos e osfantásticostroféusarmoriaisquechacoalhavamàminhapassagemfossemcoisas com as quais, ou similares às quais, eu me acostumara desde ainfância — embora eu não hesitasse em reconhecer quão familiar eraaquilo tudo— eu mesmo assim me admirava em descobrir quão poucofamiliareseramas fantasiasqueessas imagensordináriassuscitavamemmim. Numa das escadas, encontrei o médico da família. Seu semblante,pensei,exibiaumaexpressãomistadevilastúciaeperplexidade.Abordou-me comar agitado e seguiu em frente.O pajem então abriu umaporta econduziu-meàpresençadeseusenhor.O aposento onde eu me encontrava era muito amplo e elevado. As

janelaseramlongas,estreitasepontudas,eaumadistânciatãograndedonegrosoalhodecarvalhoquenãosepodiamacessardochão.Tênuesraiosde uma luz avermelhada iltravam pelo padrão de treliça das vidraças eserviam para tornar su icientemente distintos os objetos maisproeminentes em torno; o olho, entretanto, lutava em vão por atingir osângulos mais remotos do ambiente, ou os recessos do teto abobadado eornadode frisos. Escuros reposteirospendiamdasparedes.Amobília demodo geral era profusa, desconfortável, antiquada e dilapidada. Muitoslivros e instrumentos musicais jaziam espalhados aqui e ali, mas semconseguiremprestarqualquervitalidadeàcena.Sentiquerespiravaumaatmosfera de tristeza. Um ar de austera, profunda e irremediávelmelancoliapairavanoambiente,impregnandotudo.Quandoentrei,Usher levantou-sedosofáondeestiveraesparramadoe

saudou-me com um vivo entusiasmo que tinha muito, foi o que penseiinicialmente, de cordialidade exagerada — do constrangido esforço domundano homemennuyé. Bastou-me, entretanto, um relance em suaisionomiaparameconvencerdesuaperfeitasinceridade.Sentamo-nos;eporalgunsmomentos,conformesequedavamudo,euoobservavacomumsentimentoqueerapartepiedade,parteassombro.Homemalgumdecertojamais sofrera alteração tão terrível, em tão breve período, quanto

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RoderickUsher! Era comdi iculdade que eu podiame forçar a admitir aidentidade daquele ser macilento diante de mim como sendo ocompanheiro de minha tenra infância. Contudo o caráter de seu rostosempre fora notável. O semblante cadavérico; os olhos grandes, claros eluminosos,semcomparação;lábiosemcertamedida inosemuitopálidos,mas de curvatura insuperavelmente bela; um nariz de delicado moldehebraico,mascomamplitudedenarinasincomumemformaçõessimilares;um queixo lindamente modelado, expressando, em sua falta deproeminência, faltade energiamoral; cabelosmais inos emaciosdoqueteias de aranha; esses traços, com uma imoderada expansão acima dasregiões das têmporas, compunham em seu conjunto uma isionomia quenãoeradasmaisfáceisdeesquecer.Eagora,nomeroexagerodocaráterprevalecente dessas feições, e da expressão que costumavam transmitir,residiatalmudançaqueeutinhadúvidassobreaquelecomquemfalava.Alividezagoraespectraleobrilhoagoramiraculosodosolhos,maisdoquetudo, me sobressaltavam e mesmo assombravam. O cabelo sedoso,também, fora deixado crescer em absoluta negligência e na medida emque,comsuaindomáveltexturadegaze,antes lutuavaquecaíaemtornode seu rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, ligar sua expressãoarabescaaqualquerideiadesimpleshumanidade.Quantoaosmodosdemeuamigo,noteinamesmahoraumaincoerência

— uma inconsistência; e logo percebi que isso brotava de uma série deesforçosdébeisefúteisemdominarumhabitualtremor—umaexcessivaagitação nervosa. Para algo dessa natureza eu havia na verdade mepreparado, não só pela carta, como também pela lembrança de certostraços de meninice, e pelas conclusões deduzidas de sua peculiarconformação ísica e temperamento. Seus gestos eram alternadamentejoviaisetaciturnos.Suavozvariavarapidamentedeumaindecisãotrêmula(quandoavitalidadeanimalpareciainteiramenteemsuspenso)paraessaespécie de concisão enérgica — essa enunciação abrupta, momentosa,calma e cavernosa — essa elocução gutural morosa, equilibrada eperfeitamentemoduladaque se pode observar no ébrio arruinado ounoinveterado comedor de ópio durante os períodos de sua mais intensaexcitação.Foidessemodoque falouda inalidadedeminhavisita, de seu sincero

desejodemeveredoconfortoqueesperavarecebercomminhapresença.Demorou-se, em algumaminúcia, no que concebia ser a natureza de suaenfermidade.Era,a irmou,ummaldeconstituiçãoedefamília,paraoqual

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procurava desesperadamente achar remédio — uma mera afecçãonervosa, acrescentou imediatamente, que iria sem dúvida passar.Manifestava-senumain inidadedesensaçõesantinaturais.Algumasdelas,do modo como as detalhou, ocasionaram-me interesse e perplexidade;embora, talvez, os termos que usou, e o modo geral de sua narrativa,tivessem seu peso. Sofria na maior parte de uma agudez mórbida dossentidos; somente o alimento mais insípido era-lhe suportável; só podiausar trajes de uma determinada textura; os odores de todas as loreseram-lhe opressivos; torturava seus olhos até a mais débil luz; e haviaapenasalgunssonspeculiares,estessaídosdeinstrumentosdecorda,quenãooenchiamdehorror.A uma espécie anômala de terror descobri que era escravizado.

“Perecerei”, disse-me, “estou fadado a perecer nesta deplorável loucura.Dessemodo,edenenhumoutro,conhecereiminharuína.Temooseventosdo futuro não em si mesmos, mas em seus resultados. Estremeço aopensamento de qualquer incidente, mesmo o mais trivial, que possain luenciaressaintolerávelagitaçãodeminhaalma.Nãoabominodefatooperigo, a não ser por seu absoluto efeito — o terror. Nessa condiçãoperturbada—lamentável—sintoquechegarámaiscedooumaistardeomomentoemquedevereiabandonarvidaerazãosimultaneamente,numalutacomestesinistrofantasma,oMEDO.”Percebi,alémdomais,a intervalos,epormeiodealusõesintermitentes

edúbias, outro traço singularde sua condiçãomental.Eleeraprisioneirodecertasimpressõessupersticiosascomrespeitoàmoradaqueocupava,eaqual, pormuitos anos, jamais se aventurara a deixar—com respeito auma in luência cuja força espúria era transmitida em termos obscurosdemais para serem aqui reiterados — uma in luência que algumaspeculiaridades na mera forma e substância de sua mansão familiarhaviam,porforçadolongosofrimento,disse-me,obtidosobreseuespírito—umefeitoqueaconstituiçãodasparedesetorrescinzentas,edoescurolago dentro do qual tudo isso semirava, havia, en im, produzido sobre oânimodesuaexistência.Ele admitia, entretanto, embora com hesitação, que grande parte da

peculiarmelancoliaquedessemodooa ligiapodiaserrastreadaatéumaorigem mais natural e muito mais palpável — à enfermidade grave eprolongada — na verdade, ao óbito evidentemente próximo — de umairmã ternamente adorada— sua única companheira por longos anos—sua última e única relação de sangue neste mundo. “Seu falecimento”,

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disse, com um amargor que jamais esquecerei, faria dele (ele, odesesperado e frágil), “o último da antiga estirpe dos Usher.” Enquantofalava,LadyMadeline(poisassimsechamava)passouvagarosamenteporuma parte remota do aposento e, sem dar por minha presença,desapareceu.Observei-acomamaisabsolutaperplexidade,nãodestituídade certa apreensão — e contudo julguei impossível justi icar taissentimentos. Uma sensação de estuporme oprimia conformemeus olhosseguiam seus passos ao se retirar. Quando uma porta, inalmente, sefechou às suas costas, meu olhar buscou instintiva e ansiosamente osemblantedo irmão—maselehavia enterradoo rostonasmãos, e tudoque pude perceber foi que um palormais do que ordinário se difundirapelos dedos emaciados, entre os quais escorriam muitas lágrimasapaixonadas.AdoençadeLadyMadeline iludiahaviamuito tempoaperíciade seus

médicos. Uma apatia permanente, um gradual esgotamento ísico efrequentes ainda que transitórios acessos de um caráter parcialmentecataléptico eram os incomuns sintomas. Até então suportara bravamenteas a lições de sua enfermidade, e não se con inara em de initivo à cama;masaoencerrar-seodiademinhachegadaàcasa,elasucumbiu(comomerelatouseuirmão,ànoite,cominexprimívelagitação)aopoderdestruidordoalgoz;epercebiqueaefêmeravisãoqueobtiverade suapessoa teriadessemodosidoaúltima—queasenhora,pelomenosenquantoviva,nãomaisseriavistapormim.Por vários dias depois disso, seu nome não foi mencionado nem por

Usher, nem por mim: e durante esse período envidei enérgicos esforçospara aliviar a melancolia de meu amigo. Pintamos e lemos juntos; ouescutei, como em sonho, as delirantes improvisações de seu expressivoviolão.Edessemodo, àmedidaqueuma intimidademais emaispróximaadmitia-me com cada vez menos reservas nos recessos de seu espírito,mais amargamente eume dava conta da futilidade de qualquer tentativaem alegrar aquela mente de onde trevas, como que constituindo umaqualidade positiva inerente, vertiam sobre todos os objetos do universomoralefísico,emumaincessanteradiaçãodenegramelancolia.Carregarei para sempre comigo a lembrança dasmuitas horas solenes

que dessemodo passei a sós comomestre da Casa deUsher. E contudofracassareiemqualquertentativadetransmitirumaideiadoexatocaráterdos estudos, ou das ocupações, em que me envolveu, ou por cujoscaminhos me conduziu. Uma idealidade excitável e consideravelmente

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destemperadalançavaumbrilhosulfurososobretudo.Suasnêniaslongase improvisadas ecoarão para sempre em meus ouvidos. Entre outrascoisas,retenhodolorosamentenamemóriaumacertasingularperversãoeampli icação da atmosfera exaltada da última valsa de Von Weber. Daspinturas sobre as quais sua elaborada imaginação se debruçava, e queganhavam, a cada pincelada, uma obscuridade diante da qual euestremecia tantomais abaladoporque estremecia sem saber por quê;—dessaspinturas(vívidascomosesuasimagensestivessemnessemomentodiante de mim) eu em vão me empenharia em haurir mais do que umapequena parte capaz de caber no âmbito da palavrameramente escrita.Pelaabsolutasimplicidade,pelanudezdosesboços,eleprendiaeabismavaa atenção. Se algum mortal um dia pintou uma ideia, esse mortal foiRoderickUsher.Aomenosparamim—nas circunstâncias que entãomecercavam—brotavadaspurasabstraçõesqueohipocondríaco intentavalançar sobresua telauma intensidadede intolerávelassombro,doqualomaislevevestígiojamaissentinemnacontemplaçãodasfantasiasdecertoradiantes,contudodemasiadoconcretas,deFuseli.Uma das fantásticas concepções demeu amigo que não partilhava tão

estritamente do espírito da abstração pode ser vagamente representada,emboradebilmente,empalavras.Umpequenoquadroexibiaointeriordeumacriptaoutúnelimensamentelongoeretangular,comparedesbaixas,liso, branco e sem interrupção ou adornos. Certos pontos acessórios dodesenhoserviambemparatransmitiraideiadequeessaescavação icavaemumaprofundidadeexcepcionalmentegrandesobasuper íciedaterra.Nenhumasaídasepodiaobservarempartealgumadesuavastaextensão,e tochaalguma,ouqualqueroutra fontede luminosidadeeradiscernível;contudo uma profusão de intensos raios difundia-se por toda parte e atudobanhavanumesplendorfantasmagóricoeincongruente.Conteiagorahápoucodaquelamórbidacondiçãodonervoauditivoque

tornava toda música intolerável para o enfermo, com exceção de certosefeitos de instrumentos de corda. Foram, talvez, os estreitos limites aosquais ele desse modo se restringiu no violão que ensejaram, em grandemedida, o caráter fantástico de suas apresentações. Mas a fervorosafacilidadedeseusimprovisosnissonãoencontravaexplicação.Elesdevemtersido,eeram,nasnotas,bemcomonaspalavrasdesuasdesenfreadasfantasias (pois ele com não pouca frequência se fazia acompanhar deimprovisaçõesverbaisrimadas),oresultadodaquelaintensaserenidadeeconcentraçãomentalàqualaludipreviamentecomoobservávelapenasem

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momentos particulares da excitação arti icialmais aguda. A letra de umadessas rapsódias veio-me facilmente à memória. Fiquei, talvez,sobremaneira impressionado com ela, conforme a entoava, porque,carregado pela correnteza subterrânea ou mística de seu signi icado,imagineiperceber,epelaprimeiravez,umaplenaconsciênciadapartedeUsher acerca da oscilação de sua elevada razão em seu trono.Os versos,intitulados “O palácio assombrado”, eram muito próximos, se nãoexatamente,doseguinte:“INomaisverdejantedenossosvalesquebonsanjostêmpormorada,outrora,umnobreemajestosopalácio—Radiantepalácio—assomava.NosdomíniosdomonarcaPensamento—Eraláqueeleficava!SerafimalgumjamaisesticousuasrêmigesSobreumaconstruçãonemametadetãobela.

IIPendõesamarelos,gloriosos,dourados,Noseutelhadoadejavametremulavam;(Isso—tudoisso—foinumaancestralÉpoca,muitotempoatrás)Ecadasuavesoprodearquebrincava,Nessedocedia,Aolongodosbaluartesempenachadosepálidos,Umodoraladocarregava.

IIIViandantesnessefelizvalePorduasjanelasiluminadasviramEspíritossemovendomusicalmenteConduzidosporumbemafinadoalaúde,

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Emtornodeumtrono,ondesentado(Porfirogênito!)Emmagnificência,suaglóriabemcondizente,Osoberanodoreinoeravisto.

IVEtodareluzentedepérolaserubisEstavaabelaportadopalácio,Pelaqualentroufluindo,fluindo,fluindo,Ecintilandoaindamais,UmahostedeEcoscujodocedeverEraapenascantar,Comvozesdesobejabeleza,Asagacidadeesabedoriadeseurei.

VMascriaturasmalignas,emmantosdeaflição,Atacaramoventurososolardorei;(Ah,pranteemos,poisnuncamaisumamanhãAlvorecerásobreele,desolado!)E,àvoltadeseular,aglóriaQuecoravaefloresciaNãoésenãoumahistóriavagamentelembradaDeumaantigaerasepultada.

VIEviajantesagoranessevale,Atravésdasjanelasiluminadasdeluzvermelha,veemVastasformasquesemovemfantasticamenteAumamelodiadissonante;Enquanto,comoumrápidorioespectral,Pelaportapálida,Umhediondotropelparasempresaiemdebandada,

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Eri—masnãomaissorri.”28

Bem me recordo de que as sugestões brotando dessa baladaconduziram-nos por uma cadeia de pensamentos emque icoumanifestaumaopiniãodeUsherquemenciononãotantoporcontadesuanovidade(pois outros homens* assim o pensaram), como por conta da pertináciacomqueamantinha.Essaopinião,emsuaformageral,eraadasenciênciade todas as coisas vegetais. Mas, em sua imaginação perturbada, a ideiaassumiraumcarátermaisousado,e invadia,sobdeterminadascondições,o reino do inorgânico. Careço das palavras para expressar a plenaextensão, ou o severoabandono, de sua convicção. A crença, entretanto,estava ligada (como já aludi previamente) às pedras cinzentas do lar deseus antepassados. As condições da senciência aqui haviam sido,imaginava ele, cumpridas pelométodo de colocação dessas pedras— naordem de seu arranjo, bem como devido à in inidade de fungos que ascobriam,eàsárvoresde inhadasquehaviaemtorno—acimadetudo,naprolongadapersistênciaimperturbáveldessearranjo,eemsuaduplicaçãonas águas inertes do lago. Sua evidência — a evidência desse carátersenciente— podia ser vista, ele disse (e nisso levei um susto ao ouvi-lofalar), na gradual e contudo indiscutível condensação de uma atmosferaque lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado sepodiadescobrir,acrescentou,naquelamudaecontudoinsistenteeterrívelin luência que por séculos moldara os destinos de sua família, e que otornaraaelenaquiloqueeuagoravia—oqueeleera.Taisopiniõesnãonecessitamdecomentário,enãofareinenhum.Nossos livros—os livrosque,poranos,haviamcompostonãopequena

parte da existência intelectual do inválido— estavam, como seria de sesupor, em estrita consonância com essa natureza de fantasmagoria.Debruçávamo-nos juntossobreobras taiscomooVervertetChartreuse ,deGresset; oBelfegor, de Maquiavel;O Céu e o Inferno, de Swedenborg; aViagem subterrânea de Nicholas Klimm , de Holberg; aQuiromancia, deRobertFlud,JeanD'IndaginéeDelaChambre;a Jornadanadistânciaazul,deTieck; eACidadedoSol,deCampanella.Umdosnossos livros favoritosera uma pequena edição in-oitavo doDirectorium Inquisitorium , dodominicano Eymeric de Gironne; e havia passagens em Pomponius Melaacercadosantigossátirosafricanoseegipãs,nosquaisUsherpermaneciaabsorvido por horas. Seu maior deleite, entretanto, era encontrado noexame de um raro e curioso in-quarto gótico — manual de uma igrejaesquecida —, oVigiliae Mortuorum secundum Chorum Ecclesiae

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Maguntinae.Eunãoconseguiadeixardepensarnoextravaganteritualdessaobrae

em sua provável in luência sobre o hipocondríaco quando, certa noite,tendo-meinformadoabruptamentequeLadyMadelinenãomaisseachavaentre nós, ele revelou sua intenção de preservar o corpo por duassemanas (antes de seu sepultamento de initivo) numa das numerosascriptas que havia nas principais paredes da casa. A razão mundana,entretanto, apontada para esse singular procedimento era uma que nãome sentia livre para questionar. O irmão fora levado a essa resolução(assimmecontou)porconsideraçãodoinusualcaráterdaenfermidadedafalecida,decertasinquiriçõesimportunaseincisivasdepartedosmédicosedalocalizaçãoremotaeexpostadocemitériofamiliar.Nãovounegarqueao trazer àmemória a sinistra isionomia da pessoa comquem cruzei naescada,nodiaemchegueiàresidência,nãotiveomenordesejodeobstaraoqueencarava,namelhordashipóteses,comoapenasumainofensiva,edemodoalgumantinatural,precaução.ApedidodeUsher,ajudei-opessoalmentenosarranjosdosepultamento

temporário.Umavezo corponoataúde, encarregamo-nosapenasosdoisde carregá-lo para seu repouso. A cripta em que o depositamos (e quepermanecerapor tanto temposeladaquenossas tochas, semiabafadasnaatmosfera opressiva, pouca oportunidade ofereciam para nossainvestigação) era pequena, úmida e inteiramente destituída de qualquermeioparaadmitiraluz; icava,agrandeprofundidade,imediatamentesoba parte do prédio onde se situavam meus próprios aposentos.Aparentemente forautilizada, emremotos tempos feudais, comomais vildos propósitos, comomasmorra, e, em períodosmais recentes, como umdepósitoparapólvoraouqualqueroutrasubstânciaaltamente in lamável,namedidaemqueumapartede seupisoe todoo interiordeuma longaarcadapelaqual a acessamoshaviamsido cuidadosamente revestidosdecobre. A porta, de ferro maciço, recebera também proteção equivalente.Seu peso imenso, ao girar nos gonzos, provocava um som rangenteextraordinariamentecortante.Tendodepositadonossolutuosofardosobrecavaletesnointeriordesse

espaço de horror, empurramos parcialmente para o lado a tampa aindadesatarraxada do caixão e itamos o rosto de sua ocupante. Umasemelhançaespantosaentreoirmãoeairmãagoraeraoqueinicialmentechamavaminhaatenção;eUsher,adivinhando,talvez,meuspensamentos,murmurou algumas palavras pelas quais iquei sabendo que a falecida e

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eleeramgêmeos,equea inidadesdeumanaturezadi icilmenteinteligívelhaviam sempre existido entre ambos. Nossos olhares, entretanto, nãorecaírammuitotemposobreamorta—poisnãopodíamosencará-lasemalgum temor. A doença que daquele modo sepultara a dama na lor daidade deixara, como é de praxe em qualquer enfermidade de caráterestritamente cataléptico, a caricatura de um tênue rubor no busto e nasfaces,eessesorrisosuspeitosamenterelutanteno lábioqueé tão terrívelnamorte.Repusemoseatarraxamosatampae,tendotrancadoaportadeferro, seguimos nosso caminho, morosamente, pelos aposentos quaseigualmentesoturnosdapartesuperiordacasa.E então, transcorridos alguns dias de amargo luto, uma mudança

observávelseoperounocaráterdodesarranjomentaldemeuamigo.Seusmodosordinárioshaviamdesaparecido. Suasocupaçõesordinárias foramnegligenciadasouesquecidas.Elevagavadequartoemquartocompassosapressados,desiguaisesemobjetivo.Alividezdeseusemblanteadquirira,se é que isso era possível, um matiz ainda mais espectral — mas aluminosidadede seu olhar se fora completamente.A ocasional rouquidãode outrora em sua voz nãomais se fazia ouvir; e um balbuciar trêmulo,como que de extremo terror, caracterizava habitualmente suas palavras.Havia momentos, de fato, em que eu pensava que sua menteincessantemente agitada se debatia com algum segredo opressivo, paracujarevelaçãoele lutavaporreuniracoragemnecessária.Àsvezes,alémdisso,eueraobrigadoaatribuirtudoaosmeroscaprichosinexplicáveisdaloucura,poisosurpreendiacontemplandoovaziopor longashoras,numaatitudedamaisprofundaconcentração, comoqueàescutadealgumsomimaginário. Não admira que sua condição me aterrorizasse — mecontagiasse. Senti rastejarem sobre mim, num avanço lento poréminequívoco, as tumultuosas in luências de suas superstições fantásticas econtudoimpressionantes.Foiespecialmenteaomeretirarparaacamatardedanoitenosétimoou

oitavo dia após termos depositado Lady Madeline na masmorra queexperimentei a plena força de tais sentimentos. O sono nãome vinha emmeudivã—aopassoqueashoraseramconsumidaslentamente.Eulutavapor dominar o nervosismo que se apossara de mim. Empenhava-me emacreditarquegrandeparte,quandonão tudoqueeu sentia, eradevidoàdesconcertante in luênciadamobíliasombriadoaposento—dascortinasescurasepuídasque,emmovimentosatormentadoscomosoprodeumatempestade iminente, dançavam espasmodicamente junto das paredes e

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roçavam com ruídos inquietantes as decorações do leito. Mas meusesforçosforaminfrutíferos.Umirreprimíveltremorgradualmenteinvadiumeucorpo;e,apósalgumtempo, instalou-sesobremeuprópriocoraçãooíncubodeumalarmeabsolutamenteinfundado.Afastando-odali,ofeganteeagitado,soerguiocorponostravesseirose,perscrutandogravementeasintensastrevasdoaposento,estiqueiosouvidos—nãoseidizerporque,anão ser que um espírito instintivo me impeliu a fazê-lo — paradeterminados sons baixos e indistintos que me chegavam, entre uma eoutra pausa na tempestade, a longos intervalos, não sabia dizer de onde.Subjugado por um intenso sentimento de horror, inexplicável e contudoinsuportável, en iei-me às pressas emminhas roupas (pois senti quenãomais dormiria nessa noite) e esforcei-me por me desvencilhar dadeplorável condição em que mergulhara, andando rapidamente de umladoparaoutrodoquarto.Euderaumaspoucasvoltasdessamaneiraquandolevespassosemuma

escada adjacente captaramminha atenção. Não demorei a reconhecê-loscomopertencendoaUsher.Uminstantedepoisdissoeleveio,comsuavesbatidas,àminhaporta,eentrouportandoumalâmpada.Suasfeiçõeseram,como sempre, de uma lividez cadavérica — mas, além disso, havia umaespéciede loucahilaridade em seus olhos—umahisteria evidentementecontidaemtodoseucomportamento.Fiqueiapavoradocomseuaspecto—mas qualquer coisa era preferível à solidão que por tanto tempo eusuportara,eacolhisuapresençaatémesmocomalívio.“Viuisso?”,disseeleabruptamente,apósolharemtornodesiporalguns

momentos em silêncio — “viu isso? — mas, espere! já vai ver.” Assimfalando, e tendo cuidadosamente protegido sua lâmpada, dirigiu-seapressadoaumadasjanelaseescancarou-aparaatempestade.Afúriaimpetuosadarajadaqueentrouquasenosergueudochão.Era,

defato,umanoitefuriosa,econtudoausteramentearrebatadora,edeumaselvageria singular em seu terror e beleza. Um remoinho aparentementeganharaforçaemnossasimediações;poisocorriamfrequenteseviolentasalterações na direçãodo vento; e a extraordinária densidadedas nuvens(que pairavam tão baixas a ponto de oprimir as torres da casa) não nosimpedia de perceber a velocidade manifesta com que se deslocavamrapidamentedetodosospontosnadireçãoumasdasoutras,semsumirnadistância. A irmei que mesmo sua extraordinária densidade não nosimpediadeperceber isso—contudonãotínhamosvisãonemda luanemdas estrelas — tampouco clarão algum relampejava dos raios. Mas as

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super íciessobas imensasmassasdevaporemagitação,bemcomotodososobjetosterrestresimediatamenteemtornodenós,brilhavamcomaluzantinatural de uma exalação gasosa debilmente luminosa e nitidamentevisívelquepairavaaoredoreamortalhavaamansão.“Nãodeve—nãovaicontemplarisso!”,disseeu,tremendo,paraUsher,

conformeoguiava,comsuavecoerção,dajanelaparaumacadeira.“Essasmanifestaçõesqueoconfundemsãomeramentefenômenoselétricos,nadaincomuns—outalvezaconteçadedeveremsuaorigemespectralaofétidomiasmadolago.Vamosfecharessajanela;—oarestágeladoeéperigosopara sua constituição. Eis aqui umde seus romances favoritos. Vou ler, evocêescuta;—edessemodopassaremosestaterrívelnoitejuntos.”O antigo livroque eupegara eraoMadTrist de SirLauncelotCanning;

mas eu o chamara de um dos favoritos de Usher mais como um tristegracejodoqueasério;pois,naverdade,hápoucacoisaemsuaprolixidadedeselegante e sem imaginação que teria sido capaz de interessar oidealismoelevadoeespiritualdemeuamigo.Era,entretanto,oúnicolivroimediatamenteàmão;edeixei-melevarporumavagaesperançadequeaexcitaçãoqueoraagitavaohipocondríacopudesseencontraralívio(poisahistória dos distúrbiosmentais está cheia de anomalias semelhantes) atémesmonograuextremodedisparatesdoqueeuirialer.Edefato,ajulgarpelodesmesuradoardevivacidadecomqueescutava,oupareciaescutar,aspalavrasdanarrativa,eupoderiamuitobemterfelicitadoamimmesmopelosucessodemeuintento.EuchegaraàquelamuitoconhecidapartedahistóriaemqueEthelred,o

herói de Trist, tendo buscado em vão ser admitido paci icamente namoradadoeremita,procurafazersuaentradaàforça.Aqui,comohaverãodeselembrar,aspalavrasdanarrativadizemassim:“EEthelred,queerapornaturezaumcoraçãovaloroso,equeseachava

agora sobremodo imbuído de vigor por conta da poderosa in luência dovinho que bebera, nãomais esperou por qualquer parlamentação com oeremita, que, de fato, era dono de uma índole obstinada e malevolente,mas, sentindo a chuva em seus ombros, e temendo a chegada datempestade,ergueudeimediatosuamaçae,aosgolpes,rapidamenteabriuumvãopara suamanopla entre as tábuasdaporta; e então, forçandoalicomrobustez,detalmodoarachouefendeuefeztudoempedaçosqueoalarmanteruídosecoeocodamadeirarepercutiuportodaafloresta.”Aotérminodesseperíodoleveiumsustoe,poruminstante,parei;poisa

mimmepareceu(aindaquenamesmahoraconcluíssequeminhaexcitada

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imaginaçãometapeara)—pareceuquedealgumapartedeverasremotada mansão chegava, indistintamente, aos meus ouvidos, o que podia tersido, em sua exata similitude de natureza, o eco (mas um eco abafado esurdo,semdúvida)dessemesmoruídodemadeirarachandoequebrandoqueSirLauncelottãoenfaticamentedescrevera.Era,semamenorsombradedúvida,apenasacoincidênciaqueprenderaminhaatenção;pois,entreos caixilhos das janelas chacoalhando, e os barulhos ordinárioscombinados da tempestade que continuava a ganhar força, o som em sinada tinha, decerto, que pudesse ter me interessado ou perturbado.Prosseguicomahistória:“MasobomcampeãoEthelred,entrandoagorapelaporta, icouloucode

fúriaeaturdidoaonãover sinaldomalevolenteeremita;masaodar, emseulugar,comumdragãoescamosoedeaparênciaprodigiosa,edelíngualamejante,quemontavaguardaperanteumpaláciodeouro,comchãodeprata; e na parede pendia um escudo de latão reluzente, onde se lia ainscrição—

AQUELEQUEAQUIENTROU,UMCONQUISTADORTERÁSEMOSTRADO;AQUELEQUEMATARODRAGÃO,OESCUDOTERÁCONQUISTADO;

EEthelredergueusuamaça,egolpeouacabeçadodragão,quecaiudiantedele e exalou seu hálito pestilento com um guincho tão apavorante edissonante, e sobremodo penetrante, que Ethelred viu-se compelido atapar os ouvidos com as mãos para se proteger do pavoroso ruído, umcomotalatéentãojamaisseouviraantes.”Aquimaisumavezpareiabruptamente,eentão, comumasensaçãode

descontrolada perplexidade — pois não restava a menor sombra dedúvida de que, nesse caso, eu de fato escutara (embora de que direçãoviesse fosse-me impossível dizer) o som de algo gritando ou raspando,baixo, aparentemente distante,mas dissonante, prolongado e sumamenteincomum—aexatacontrapartidadoqueminhafantasiajáhaviaevocadoparaoabominávelguinchododragãotalcomodescritopeloromancista.Oprimido, como certamente iquei, com a ocorrência dessa segunda e

maisextraordináriacoincidência,pormilsensaçõescon litantes,emqueaadmiração e o extremo terror predominavam, retive ainda su icientepresençadeespíritoparaevitarprovocar,mediantequalquerobservação,a sensibilidade nervosa demeu companheiro. Não estava certo demodo

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algum de que notara os sons em questão; embora, seguramente, umaestranhaalteraçãohouvesse,aolongodosúltimosminutos,seoperadoemseucomportamento.Deumaposiçãodefrenteparamim,elegradualmentehavia girado a cadeira, de modo a sentar-se com o rosto voltado para aportadoaposento;edessemodoeusópodiadivisarempartesuasfeições,embora visse que seus lábios tremiam como se estivesse murmurandoinaudivelmente. Sua cabeça pendia junto ao peito— e contudo eu sabiaque não estava dormindo, pelo modo amplo e rígido com que abria umolho, e que captei ao relanceá-lo de per il. O movimento de seu corpo,também, era algoque contradizia essa ideia—pois ele balançavadeumlado para o outro com uma oscilação suave, ainda que constante euniforme. Tendo rapidamente me apercebido disso tudo, retomei anarrativadeSirLauncelot,queassimprosseguia:“E agora, o campeão, tendo escapado da terrível fúria do dragão,

relembrandooescudodelatão,eaquebradoencantamentoquesobreelepairava, removeu a carcaça do caminho diante de si e aproximou-sevalorosamente do pavimento de prata na parte do castelo onde o escudoicava preso à parede; o qual na realidade não aguardou sua completaaproximação,mastombouaosseuspéssobreochãodeprata,comumsompoderosamentealtoeterrivelmenteestrondoso.”Nembemessaspalavrasdeixarammeus lábios,eisque—comoseum

escudo de latão houvesse de fato, naquele momento, caído pesadamentesobreumpisodeprata—tomeiconsciênciadeumecodistinto,cavernoso,metálico, clangoroso e contudo aparentemente abafado. Em completaagitação, pus-me de pé;mas o cadenciadomovimento oscilante de Usherpermaneceuimperturbado.Corriparaacadeiraondemeuamigosentava.Seus olhos cravavam-se ixamente à frente, e todo seu semblante eradominado por uma rigidez de pedra. Mas, quando pousei amão em seuombro,um forte tremorpercorreu todaa suapessoa;umsorrisodoentiodançouemseuslábios;eviquefalavaemummurmúriobaixo,apressadoe incoerente, comoque alheio aminhapresença. Curvando-meparabemperto dele, pude por im absorver a hedionda signi icação de suaspalavras.“Nãoestáescutando?—eusim,euescuto,eeutenhoescutado .Durante

longos— longos— longos—muitosminutos,muitas horas,muitos dias,tenho escutado — e contudo, não ousei — oh, tenha piedade de mim,desgraçado miserável que sou! — não ousei — não ousei falar!Nós asepultamos viva na tumba! Não disse eu que meus sentidos eram

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aguçados? Estou lhe dizendoagora que escutei seus primeiros débeismovimentosnocavernosocaixão.Escutei-os—muitos,muitosdiasatrás—econtudonãoousei—eunãoouseifalar!Eagora—estanoite—Ethelred—rá!rá!—adestruiçãodaportadoeremita,ogritodemortedodragão,o clangor do escudo! — digamos, antes, seu caixão sendo rachado, orangido dos gonzos de ferro de sua prisão, sua luta dentro da arcada decobre da masmorra! Oh, para onde fugirei? Acaso não estará aqui numsegundo?Nãovirá correndome censurarporminhapressa?Nãoescuteieu os passos na escada? Não estou captando os batimentos pesados ehorríveis de seu coração? LOUCO!”—nisso pôs-se furiosamente de pé egritou, destacando sílaba a sílaba, como se, no esforço, estivesse abrindomão da própria alma — “SEU LOUCO! AFIRMO QUE ELA ESTÁ AGORAMESMOATRÁSDAPORTA!”.Como se na energia sobre-humana dessas palavras tivesse sido

encontrada a potência de um encantamento — as imensas e antigasalmofadas da porta para onde apontava começaram vagarosamente arecuar,nesseexatoinstante,suasmaciçasmandíbulasdeébano.Porobradotormentosovendaval—porém,alémdaquelasportas, láestavadefatoa iguraaltivaeamortalhadadeLadyMadelinedeUsher.Haviasangueemsuas vestes brancas, e evidência da amarga luta em cada parte de seucorpo emaciado. Por ummomento permaneceu ali no limiar, tremendo eoscilando de um lado para o outro — então, com um gemido baixo eatormentado, caiu pesadamente dentro do quarto sobre a pessoa de seuirmãoe,emsuasviolentaseagorade initivasagoniasdamorte,prostrou-oaochão,jáumcadáver,evítimadosterroresqueelehaviaantecipado.

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Desse aposento, e daquela mansão, fugi consternado. A tempestade láfora continuava em todo seu furor quando me vi atravessando o velho

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tabladodemadeira.De repenteno caminhouma luz fantástica brilhou, evireiparaverdeondeumfulgortãoincomumpodiaprovir;poisapenasavastidãodacasaesuassombrasestavamatrásdemim.Oclarãovinhadalua cheia que se punha, sanguínea, e que agora irradiava vividamenteatravésdaquela issuraantesquaseindiscernívelaquejámerefericomoseestendendodesdeotelhadodoprédio,emumpercursodezigue-zague,até a base. Enquanto eu olhava, a issura rapidamente se alargou— umfurioso sopro do remoinho sobreveio — o completo orbe do satélitedesvelou-se de uma vez diante de meus olhos — minha cabeça girouquando vi as poderosas paredes desmoronando — um tumultuoso somtrovejantecomooclamordeincontáveiságuasassomou—eolagofundoehumoroso aos meus pés engoliu lúgubre e silente as ruínas da “Casa deUsher”.

* Watson, dr. Percival, Spallanzani e particularmente o bispo de Landaff.VerChemicalEssays,vol.V.(N.doA.)

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OCOLÓQUIODEMONOSEUNA

Essascoisasestãonofuturo.Sófocles,Antígona

Una.“Nasceroutravez?”Monos. Sim, formosíssima e adorada Una, “nascer outra vez”. Essas

foram as palavras sobre cujo signi icado místico eu por tanto tempoponderei,rejeitandoasexplicaçõesdaclassesacerdotal,atéqueaprópriaMorteresolvesseparamimomistério.Una.Morte!Monos.Quãoestranhamente,doceUna,ecoasminhaspalavras!Observo,

ainda, uma hesitação em teus passos — uma jovial inquietude em teusolhos. Estás confusa e opressa pela majestosa novidade da Vida Eterna.Sim, era da Morte que eu falava. E quão singularmente aqui soa essapalavra que costumava outrora levar terror a todos os corações —cobrindodebolortodososprazeres!Una. Ah, Morte, o espectro que se sacia em todos os festins! Quantas

vezes,Monos,perdemo-nosemespeculaçõesacercadesuanatureza!Quãomisteriosamente agiu ela como um empecilho à felicidade humana —dizendo-lhe “até aqui, e não mais além!”. Esse amor sincero e mútuo,Monosmeu,queardiaemnossospeitos—quãofutilmentealimentamosailusãodeque,sentindo-nosfelizesassimqueelenascia,nossafelicidadesefortaleceriacomsuaforça!Hélas!àmedidaquecrescia,igualmentecresciaemnossos corações o temor daquela hora ominosa que se apressava emnos separar para sempre! Assim, com o tempo, amar tornou-se algodoloroso.Oódioentãoteriasidomercê.Monos. Desses pesares nãomais fales, querida Una—minha, agora e

parasempre,minha!Una. Mas a lembrança da tristeza passada — não é ela a alegria

presente?Muitotenhoadizeraindadascoisasqueseforam.Maisdoquetudo,anseiosaberos incidentesde tuapassagempeloValeescuroepelaSombra.Monos.Equandoa radianteUnapediuqualquercoisaa seuMonosem

vão? Serei minucioso em relatar tudo — mas em que ponto deve essaestranhanarrativacomeçar?

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Una.Emqueponto?Monos.Tuodisseste.Una. Monos, eu te compreendo. Na Morte, ambos descobrimos a

propensão do homem em de inir o inde inível. Não direi, desse modo:começa pelo momento da cessação da vida — mas, começa por aqueletriste, triste instante em que, tendo-te a febre abandonado, mergulhastenum torpordesalentado e inerte, e emque cerrei tuaspálidaspálpebrascomosdedosapaixonadosdoamor.Monos.Umapalavraprimeiro,minhaUna,comrespeitoàcondiçãogeral

dohomemdessaépoca.Haverásdelembrarqueumoudoissábiosdentrenossos antepassados— sábios deveras, emboranão aos olhos domundo— ousaram duvidar da justeza do termo “aperfeiçoamento” quandoaplicado ao progresso de nossa civilização. Houve períodos em cada umdos cinco ou seis séculos imediatamente precedentes à nossa morte emque se ergueu algum vigoroso intelecto, batendo-se audaciosamente poressesprincípioscujaverdadepareceagora,diantedenossarazãoprivadados direitos, tão inteiramente óbvia — princípios que deveriam terensinadonossaraçaasubmeter-seàorientaçãodasleisnaturais,emlugarde tentar controlá-las. A longos intervalos algumas mentes superioressurgiram, encarando cada avanço na ciência prática como um retrocessona genuína utilidade. Ocasionalmente o intelecto poético— esse intelectoque agora sentimos ter sido o mais sublime de todos — uma vez queaquelas verdades que para nós eram damais duradoura importância sópodiam ser alcançadas por aquelaanalogia que se expressa em timbresindeléveisàimaginaçãoapenasesóaela,equeparaarazãodesamparadasigni icação alguma comporta — ocasionalmente aconteceu de esseintelectopoéticoprocederumpasso adiante nodesenvolvimentoda vagaideia do ilosó ico e descobrir namística parábola que fala da árvore doconhecimento, e de seu fruto proibido, agente da morte, uma clarainsinuação de que o conhecimento não convinha ao homem na condiçãoinfantedesuaalma.Eesseshomens—ospoetas—vivendoeperecendosoboescárniodos“utilitários”—de incultospedantes,quesearrogavamumtítuloquese teriaaplicadoapropriadamenteapenasaosescarnecidos— esses homens, os poetas, meditaram com anelo, embora não semargúcia, nos antigos tempos em que nossas carências eram tão maissimplesquantointensoseramnossosgozos—diasemquealegriaeraumapalavra desconhecida, tão solenemente grave era o tom da felicidade—dias sagrados, augustos, jubilosos, quando rios azuis corriam

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desimpedidos, entre colinas agrestes, rumo às profundezas de solitudesflorestais,primevas,olorosas,inexploradas.E contudo essas nobres exceções do desgoverno geral não serviam

senão para fortalecê-lo por oposição.Hélas! caíramos no mais malignodentre todos os nossosdiasmalignos.O grande “movimento”— tal era ojargãoutilizado—seguiaadiante:umamolestacomoção,morale ísica.AArte — as Artes — assomaram, supremas, e, uma vez entronizadas,lançaram grilhões sobre o intelecto que as elevara ao poder. O homem,poisquenãopodia senãoaceder ante amajestadedaNatureza, incorreuempueril exultaçãopelodomínio conquistado e continuamente crescentesobre seus elementos. Mesmo quando espreitava um Deus em suaimaginação, uma imbecilidade infantil desceu sobre ele. Como se podesupor pela origem de sua afecção, icou cada vez mais contaminado porsistemas,eporabstrações.Eleserecobriudegeneralidades.Entreoutrasbizarras ideias, a da igualdade universal ganhou terreno: e diante daanalogia e deDeus— a despeito da elevada voz admonitória das leis dagradação, tão conspicuamente tudo permeando, na Terra e no Céu —delirantes tentativas de uma onipresente Democracia foram feitas. Econtudo esse mal brotou necessariamente do mal primeiro, oConhecimento.Ohomemnãopodiaaomesmotempoconheceresucumbir.Entrementes imensas cidades fumarentas assomaram, inumeráveis. Asverdes folhas murcharam sob o hálito quente das fornalhas. O formosorosto da Natureza foi deformado como que pela devastação de algumarepulsiva enfermidade. E parece-me, doce Una, que até mesmo nossaadormecidapercepçãodo forçadoedoarti icialpode ternosdetidoaqui.Mas agora ao que tudo indica operamos nossa própria ruína pelaperversão de nossogosto, ou,antes,pelocegodesleixodeseucultivonasescolas.Pois,emverdade,eranessacrisequeogostounicamente—essafaculdadeque,detendoumaposiçãointermediáriaentreopurointelectoeo senso moral, jamais poderia, sem risco, ter sido negligenciada — eraagora que o gosto unicamente poderia nos ter conduzido nobremente devoltaàBeleza,àNaturezaeàVida.Masaidopuroespíritocontemplativoeda intuição majestosa de Platão! Ai da μουσική que ele justamenteencaravacomoumaeducaçãoemsimesmasu icienteparaaalma!Aidelee ai dela!— pois que ambos forammais desesperadamente necessáriosquandoambosforammaisinteiramenteesquecidosoudesprezados.*

Pascal, ilósofo que ambos amamos, disse, quão verdadeiramente! —“que tout notre raisonnement se réduit à céder au sentiment ”;29 e não é

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impossívelqueosentimentodonatural,o tempoassimopermitisse, teriarecuperadosuaantigaascendênciasobreaausterarazãomatemáticadasescolas. Mas tal não era para ser. Prematuramente induzida pelaintemperança do conhecimento, a velhice do mundo se aproximava. Issonão o percebeu a massa da humanidade, ou, vivendo com entusiasmo,embora sem felicidade, ingiu não perceber.Mas, quanto amim, os anaisdaTerraensinaram-meaprocurarpelamaisvastaruínacomoopreçodamaiselevadacivilização.EuabsorveraapresciênciadenossoDestinoporcomparaçãocomaChina,simpleseduradoura,comaAssíria,aarquiteta,comoEgito,oastrólogo,comaNúbia,maisengenhosadoquetodosestes,atumultuosamãedetodasArtes.Nahistória**dessasparagensdepareicomuma luz do Futuro. As arti icialidades particulares dos três últimos eramdoenças locais da Terra e em suas destruições particulares conhecemosremédios locais sendo aplicados; mas para o mundo infectado como umtodoeunãopodiaanteverregeneraçãoalgumasalvonamorte.Paraqueohomem, como raça, não se tornasse extinto, percebi que devia “nasceroutravez”.E agora se dava, formosíssima e adorada, que envolvíamos nossos

espíritos, diariamente, em sonhos. Agora se dava que, ao crepúsculo,tratávamos dos dias por vir, quando a super ície da Terra, riscada pelascicatrizesdaArte,etendosesujeitadoàquelaúnicapuri icação***capazdeobliterar suas retangulares obscenidades, devia se revestir outra vez doverdor,dasencostasmontanhosas,daságuassorridentesdoParaíso,esertornadacomotemponumajustamoradaparaohomem:—paraohomem,purgado pela Morte— para o homem cujo intelecto agora exaltado nãomais devia envenenar-se no conhecimento — para o homem redimido,regenerado,bem-aventuradoeagoraimortal,masaindahomemmaterial.Una.Bemmerecordodessasconversas,queridoMonos;masaépocada

destruição pelo fogo não estava tão próxima quanto acreditávamos, equanto a corrupção a que aludes certamente nos autoriza a crer. Oshomens viveram; e morreram individualmente. Tu próprio adoeceste, epassaste ao túmulo; e por tal vereda tua constante Una lestamente teseguiu.Eemborao séculoquedesdeentão transcorreu, e cujodesenlacenos põe os dois juntos uma vezmais, não torturasse nossas adormecidaspercepçõescomaimpaciênciadaduração,aindaassim,meuMonos,foiumséculo,nãoobstante.Monos.Digamos,antes,umpontonovago in inito. Inquestionavelmente,

foi na decrepitude da Terra quemorri. Exaurido emmeu íntimo com as

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ansiedades que tinham sua origem no tumulto e decadência gerais,sucumbi à febre feroz. Após alguns dias de dor, e muitos de oníricosdelírios plenos de êxtase, cujas manifestações tomaste por dor, em queansiei por te tirar do enganomas estava impotente para fazê-lo— apósalgunsdiasabateu-sesobremim,comodisseste,umtorpordesalentadoeinerte; e a isso foi denominadoMorte por aqueles que estavamem tornodemim.Palavrassãocoisasvagas.Minhacondiçãonãomeprivoudasenciência.

Nãomepareceumuitodiferentedaextremaquietudedaqueleque, tendoadormecido longa e profundamente, jazendo imóvel e inteiramenteprostrado em pleno dia de verão, principia a voltar vagarosamente a sipela mera su iciência de seu sono, e sem ter sido despertado porperturbaçõesexternas.Meu alento se fora. Os pulsos cessaram. O coração havia parado de

bater. A volição não me abandonara, mas estava impotente. Os sentidoscontinuavamextraordinariamente ativos, embora de ummodo excêntrico—assumindomuitasvezesasfunçõesumdooutro,aoacaso.Opaladareoolfatoconfundiam-seinextricavelmenteetornaram-seumaúnicasensação,anormaleintensa.Aáguaderosascomaqualemtuaternuraumedecerasmeus lábiosnomomento inal, emmimsuscitou adoce imagemde lores— lores fantásticas, muito mais encantadoras do que qualquer uma daantiga Terra, mas cujos protótipos tivemos por aqui, desabrochando emtorno de nós. As pálpebras, transparentes e exangues, não constituíamcompletoimpedimentoparaavisão.Comoavoliçãoestavaemsuspenso,osgloboseramincapazesderolaremsuasórbitas—mastodoobjetonoraiodeabrangênciadohemisfériovisualeraenxergadocomrelativadistinção;aluzqueatingiaaparteexteriordaretina,ouocantodoolho,produziaumefeitomais vívidodoqueaquelaque incidia sobrea super ície frontal ouinterna. Contudo, no primeiro caso, esse efeito era de tal modo anômaloque eu o apreciava apenas enquantosom — um som agradável oudissonante conforme as coisas ocorrendo junto a mim fossem claras ouescuras em vulto — curvas ou angulares em contorno. A audição, aomesmo tempo,emboraexcitadaemgrau,nãoestava irregularnaação—estimandoossonsreaiscomumaextravagânciadeprecisão,tantoquantode sensibilidade. O tato sofrera uma alteração mais peculiar. Suasimpressões eram recebidas tardiamente, mas tenazmente retidas, eresultavamsemprenomaisagudoprazer ísico.Demodoqueapressãodeteusdocesdedossobreminhaspálpebras,deiníciopercebidaunicamente

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pela visão, após algum tempo, muito depois de havê-los removido,encheramtodomeusercomumincomensuráveldeleitesensual.Digocomumdeleitesensual.Todasasminhaspercepçõeserampuramentesensuais.Os materiais providos pelos sentidos ao cérebro passivo não eram emmínimo grau forjados numa forma pelo inado entendimento. De dor,poucohavia;oprazereramuito;masdedorouprazermoral,nemvestígio.Assimteusdescontroladossoluços lutuaramaosmeusouvidoscomtodassuas pesarosas cadências, e foram apreciados em cada variação de suastristestonalidades;masconstituíamsuavessonsmusicaisenadamais;nãotransmitiamàrazãoextintaqualquersugestãodastristezasqueoshaviamgerado; ao passo que as lágrimas copiosas e constantes que caíam sobremeurosto, fazendosaberaospresentesdeumcoraçãopartido,vibravamcada ibrademeu serunicamente como êxtase. E isso erana verdade aMortedequeospresentesreverentementefalavam,emsuavessussurros—etu,doceUna,ofegante,emelevadoslamentos.

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Ataviaram-me para o caixão — três ou quatro silhuetas escurasmovendo-seatarefadasdeumladoparaooutro.Aocruzardiretamentea

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linha deminha visão suscitavamformas paramim;mas ao passar ameulado suas imagens impressionavam-me com a ideia de gritos, gemidos eoutrassombriasexpressõesdeterror,oudehorror,oudeambasascoisas.Tu somente, em teu hábito branco, passava musicalmente por mim emtodasasdireções.O dia chegava ao im; e, conforme sua luz se dissipava, fui tomado de

uma vaga inquietude — uma ansiedade tal como sente quem dormequando tristes sons reais penetram continuamente em seus ouvidos —dobres baixos e distantes, solenes, a intervalos longos mas uniformes, efundindo-se a sonhos melancólicos. A noite chegou; e trouxe em suassombras um pesado desconforto. O sentimento oprimiu meus membroscomaopressãodeumfardoentorpecedor,eerapalpável.Havia tambémum som lamentoso, não muito diferente da distante reverberação deondas,porémmaiscontínuo,que,iniciandoaocairdocrepúsculo,ganharaforçacomoavolumardastrevas.Subitamenteluzesinvadiramoambiente,e a reverberação interrompeu-se de imediato em irrupções frequentes edesiguaisdessemesmoruído,porémmenosdesoladoremenosdistinto.Aponderosaopressãofoiemgrandemedidaaliviada;e,saindodachamadecada lâmpada (pois muitas havia), ininterruptamente luiu para meusouvidos uma melodiosa sucessão de sons monótonos. E quando, então,querida Una, aproximando-te do leito sobre o qual jazia eu estendido,sentastegentilmenteaomeulado,exalandooaromadeteusdoceslábios,epressionando-oscontraminhafronte,entãobrotoutrêmulodentrodemeupeito, combinando-se às sensações meramente ísicas que ascircunstâncias haviam evocado, um não sei que análogo ao própriosentimento — uma disposição que era parte apreciação, partecorrespondência ao teu sincero amor e pesar; mas esse sentimento nãolançou raízes no coração inerte, e pareceu de fato antes uma sombra doque uma realidade, e desvaneceu rapidamente, primeiro na placidezextrema,edepoisemumprazerpuramentesensual,comoantes.E então, da ruína e do caos dos sentidos normais, pareceu emanar de

dentro de mim um sexto, todo perfeição. Em seu exercício conheci umincontroladodeleite—contudo,umdeleiteainda ísico,namedidaemqueo entendimento dele não tomava parte. A atividade no corpo animalcessara por completo. Músculo algum estremecia; nervo algum vibrava;artéria alguma palpitava. Mas ele parecia ter brotado no cérebro, isso arespeitodoqualpalavraalgumapodiatransmitiràinteligênciameramentehumana uma concepção até mesmo vaga. Permita-me denominá-lo uma

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pulsaçãopendularmental.EraaencarnaçãomoraldaideiaabstrataqueohomemfazdoTempo.Pelaabsolutauniformizaçãodessemovimento—oude tais como ele — os ciclos dos próprios orbes do irmamento foramajustados. Com seu auxílio medi as irregularidades do relógio sobre alareira,edosrelógiosdebolsodosatendentes.Otique-taquedeleschegou-me sonoramente aos ouvidos. Os mais ligeiros desvios da autênticaproporção — e esses desvios predominavam em todos — afetavam-meexatamente como as violações da verdade abstrata costumavam, nomundo, afetar o sensomoral. Embora não houvesse ali no aposento doisrelógios capazes de dar os segundos individuais pontualmente juntos,mesmo assim não tive di iculdade em manter com irmeza em minhamenteos tonseos respectivoserrosmomentâneosdecadaum.E isso—esse penetrante, perfeito, incriado sentimento deduração — essesentimento existindo (na medida em que homem algum poderiaprovavelmente ter concebido que existisse) independentemente dequalquersucessãodeeventos—essaideia—essesextosentido,brotandodas cinzas dos demais, foi o primeiro passo óbvio e certeiro da almaintemporalpelolimiardaEternidadetemporal.Erameia-noite; e seguias sentadaameu lado.Todososdemaishaviam

deixado o aposento da Morte. Haviam-me depositado no caixão. Aslamparinas bruxuleavam; pois que isso eu percebia pela vibração damelodiamonótona.Masderepenteessessonsdiminuíramemintensidadee volume. Finalmente cessaram. O perfume em minhas narinas se foi.Formas nãomais imprimiram-se emminha visão. A opressão das Trevasassomou emmeu peito. Um choque entorpecedor como o da eletricidadeinvadiumeucorpo,efoiseguidopelatotalperdadaideiadecontato.Tudoque o homem denomina sensação fundiu-se na isolada consciência daentidadeenosentimentoúnicoeperpétuodaduração.OcorpomortalforaenfimatingidopelamãodamortíferaDecomposição.E contudo nem toda a senciência partira; pois a consciência e o

sentimento remanescentes satisfaziamalgumasde suas funçõespormeiodeuma letárgica intuição.Apreciei amedonhamudançaora se operandona carne e, como o sonhador às vezes tem consciência da presençacorpóreadealguémquesedebruçasobreele,tambémeu,doceUna,aindasentia entorpecidamente que sentavas a meu lado. Assim, também, aochegar omeridiano do segundo dia, eu não estava inconsciente daquelesmovimentos que te desalojaram de junto de mim, que me con inaramdentro do caixão, que me depositaram no coche funerário, que me

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carregaram até o túmulo, que me baixaram ali dentro, que amontoaramlaboriosamente a terra sobre mim e que desse modo me deixaram, nonegrorenacorrupção,entregueaomeutristeesolenesonocomoverme.E ali, na prisão que tem poucos segredos a revelar, passaram-se dias,

semanas, meses; e a alma observavaminuciosamente cada segundo quepassava, e, sem esforço, registrava sua rápida marcha— sem esforço esemobjetivo.Umanosepassou.Aconsciênciadeser icaraacadahoramaisindistinta

e a demera localização, emgrandemedida,usurpara-lheoposto.A ideiadeenteiasefundindoàdelugar.Oexíguoespaçoimediatamenteemtornodoqueforaocorpotornava-secadavezmaisoprópriocorpo.Finalmente,comotantasvezessucedeàquelequedorme(somentenosonoenomundodo sonoaMorte éexcogitada)—como tempo, comoàsvezes sucedianaTerra àquele que dormia profundamente, quando alguma luz efêmeraparcialmente o alarmava e despertava, embora deixando-o parcialmenteimersoemsonhos—igualmenteparamim,noausteroabraçoda Sombra,chegouessa luz que, somente ela, tem o poder de alarmar — a luz dopereneAmor. Homens laboraram no túmulo em que eu jazia em trevas.Revolveramaterraúmida.SobremeusossosemdeterioraçãobaixaramocaixãodeUna.E então outra vez tudo foi vazio. Aquela luz nebulosa se extinguira.

Aquela débil palpitação estremecera até a placidez. Muitos lustrossobrevieram. O pó tornara ao pó. O verme não mais tinha alimento. Asensaçãodeseren impartiratotalmente,ereinaramemseu lugar—emlugardetodasascoisas—dominanteseperpétuos—osautocratasLugareTempo. Paraaquilo quenãoera— para aquilo que não tinha forma—para aquilo que não tinha pensamento — para aquilo que não tinhasenciência—paraaquiloqueera semalma,e contudodoqualamatérianão constituíaparte alguma—para todo essenada, e contudopara todaessa imortalidade, o túmulo ainda era um lar, e as corrosivas horas,parceiraseamigas.

* “Serádi ícildescobrirmelhor[métododeeducação]doqueessequeaexperiênciadetantaserasjádescobriu;eissopodeserresumidocomoconsistindodeginásticaparaocorpoemúsicaparaaalma.”República,livro 2. “Por esse motivo a educaçãomusical é de suma importância;poisfazcomqueoRitmoeaHarmoniapenetremmaisintimamentenaalma,impressionando-acomomaisfortevigor,enchendo-ade belezae

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emprestandoaohomembelezadeespírito.[…]Elelouvaráeadmirará obelo; ele o receberá com alegria em sua alma, alimentar-se-á dela eassimilarásuaprópriacondiçãoàdela .” Ibid., livro3.Amúsica ( )detinha, porém, entre os atenienses, uma signi icação muito maisabrangente do que entre nós. Incluía não apenas as harmonias detempoede tom,masadicçãopoética, sentimentoe criação, cadaumaem seu sentido mais amplo. O estudo damúsica, para eles, era naverdade o cultivo geral do gosto—daquele que reconhece o belo—,emdistinçãocontrastanteàrazão,quelidaunicamentecomaverdade.(N.doA.)

**“História”,de ,“contemplar”.(N.doA.)*** A palavra “puri icação” parece aqui ser usada com referência à suaraiznogrego ,“fogo”.(N.doA.)

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SILÊNCIO30

Umafábula

Dormemoscumesmontanhosos;vales,penhascosecavernasestãoemsilêncio.

Álcman

“Escutabem”, disse o Demônio, pousando a mão em minha cabeça. “AregiãodequefaloéumaregiãoausteranaLíbia,àsmargensdorioZaire.Enãoexistequietudeali,tampoucosilêncio.“As águas do rio exibem um insalubre matiz cor de açafrão; e não

corremnadireçãodomar,maspulsampor toda a eternidade sobo olhovermelhodo sol comummovimento tumultuoso e convulso. Pormilhas emilhas em ambos os lados do leito lodoso do rio estende-se um desertopálidodenenúfaresgigantescos.Elessuspiramunsparaosoutrosnaquelasolidão e esticam na direção do céu seus pescoços longos e espectrais eacenam aquiescentes suas cabeças perpétuas. E um indistintomurmúrioseelevadentreeles comoo rumordeágua subterrânea.Eeles suspiramunsparaosoutros.“Masháumafronteiraparaseureino—a fronteirada lorestaescura,

horrível,elevada.Ali,comoasondasemtornodasHébridas,osarbustosseagitam incessantemente. Mas vento algum sopra em todo o céu. E asárvoresaltaseprimevasbalançameternamentedecáparalácomumsompoderosodegalhosdespedaçados.Edeseusdistantescimos,umaauma,caemperpétuas gotasde orvalho. E junto às suas raízes jazemestranhaslores venenosas contorcidas em sono inquieto. E no alto, com um ruídoforteecrepitante,asnuvenscinzentascorremparasemprenorumooeste,até despencar, uma catarata, pela muralha lamejante do horizonte. Masnãoháventoalgumnocéu.EàsmargensdorioZairenãoháquietudenemsilêncio.“Era noite, e a chuva caiu; e, caindo, era chuva, mas, tendo caído, era

sangue. E eu permanecia no palude entre os altos nenúfares, e a chuvacaiusobreminhacabeça—eosnenúfaressuspiravamunsparaosoutrosnasolenidadedesuadesolação.“E,derepente,aluasurgiuporentreatênuenévoaespectral,esuacor

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era escarlate. Emeus olhos pousaram sobre uma imensa rocha cinzentaque havia à margem do rio, e que foi banhada pelo luar. E a rocha eracinzenta, espectral, alta— e a rocha era cinzenta. Em sua face de pedrahaviasinaisgravados;eeucaminheientreopaludedenenúfaresatémeaproximar da margem, de modo a conseguir ler os sinais inscritos napedra.Masnãopudedecifrá-los.E já ia voltandoaopaludequandoa luabrilhoucomumvermelhomaisvivo,emevireieolheiarochaoutravez,eolheiossinais;—eossinaisdiziamDESOLAÇÃO.“Eerguiorosto,eláhaviaumhomemsobreocumedarocha;eocultei-

me entre os nenúfares de modo a espreitar as ações do homem. E ohomemera alto e imponente em sua forma, e estava envolto dos ombrosaos pés na toga da antiga Roma. E os contornos de sua igura eramindistintos — mas suas feições eram as feições de uma deidade; pois omanto da noite, e da névoa, e da lua, e do orvalho haviam revelado asfeições de seu rosto. E sua fronte era elevada e pensativa, e seu olhar,perturbadodepreocupação;enospoucosvincosdesuasfacesliasfábulasdetristeza,fadiga,repúdioàhumanidadeeanseiopelasolidão.“Eohomemsentou-se sobrea rocha, e apoioua cabeçaemsuamão, e

contemplou a desolação. Ele baixou os olhos para os arbustos rasteiros einquietos,eosergueuparaasárvoresaltaseprimevas,eergueu-osaindamais para o céu crepitante, e para a lua escarlate. E eu permaneciencolhido ao abrigo dos nenúfares, e observei as ações do homem. E ohomem tremiana solidão;—masanoitedeclinavae ele sentava sobrearocha.“E o homem desviou sua atenção do céu, e contemplou o austero rio

Zaire,esuasespectraiságuasamarelas,easlegiõespálidasdosnenúfares.Eohomemescutouossuspirosdosnenúfares,eomurmúrioqueseerguiadeentreeles.Eeupermaneciencolhidoemmeuesconderijoeobserveiasaçõesdohomem.Eohomemtremianasolidão;—masanoitedeclinavaeelesentavasobrearocha.“Entãomedirigiaosrecessosdopalude,evadeeioalagadiçoporentrea

vastidãodenenúfares,echameioshipopótamosquehabitavamoscharcosnos recessos do palude. E os hipopótamos ouviram meu chamado, evieram, com o beemot, até a base da rocha, e rugiram ruidosa emedonhamentesobalua.Eeupermaneciencolhidoemmeuesconderijoeobserveiasaçõesdohomem.Eohomemtremianasolidão;—masanoitedeclinavaeelesentavasobrearocha.“Então amaldiçoei os elementos com a maldição da comoção; e uma

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apavorante tempestade se formou no céu onde, antes, vento algumsoprava. E o céu icou lívido com a violência da tempestade — e aspancadas de chuva se abateram sobre a cabeça do homem— e houvecheiasnorio—eoriotornou-seumtormentoespumoso—eosnenúfaresguincharamemseusleitos—ea lorestafoidestroçadapelovento—eotrovãoreverberou—eoraiocaiu—earochasacudiuemsuasfundações.E eu permaneci encolhido em meu esconderijo e observei as ações dohomem. E o homem tremia na solidão; — mas a noite declinava e elesentavasobrearocha.“Entãotomei-medefúriaeamaldiçoei,comamaldiçãodosilêncio,orio,e

osnenúfares,eovento,ea loresta,eocéu,eo trovão,eossuspirosdosnenúfares. E foram amaldiçoados, eacalmaram-se. E a lua cessou decambalearemseutrajetocelestial—eotrovãomorreu—eorelâmpagonãomaisbrilhou—easnuvenspairaramimóveis—easáguasbaixaramaoseuníveleaípermaneceram—easárvorespararamdebalançar—eosnenúfaresnãomaissuspiraram—eomurmúrioentreelesnãomaissefez ouvir, tampouco o menor vestígio de som em todo o deserto vasto eilimitado.E eu contemplei os sinaisna rocha, e os sinais haviammudado;—eossinaiseramSILÊNCIO.“E meus olhos pousaram no semblante do homem, e seu semblante

estava lívido de terror. E apressadamente ergueu a cabeça damão ondeelaseapoiava,esepôsdepésobreorochedoeescutou.Masnenhumavozse ouviupor todoodeserto vasto e ilimitado, e os sinais na rochadiziamSILÊNCIO.Eohomemestremeceuconvulsivamente,evirouorosto,efugiuparalonge,demodoquenãomaisoavistei.”

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Ora, há belas narrativas nos livros dos Magos — nos livrosencadernadosemferro,osmelancólicoslivrosdosmagos.Neles,a irmo,hágloriosas histórias do Céu, e da Terra, e do poderoso oceano — e dosGêniosquegovernaramooceano, e a terra, e o céu elevado.Muito saberhaviatambémnosditosqueforamproferidospelasSibilas;ecoisasmuitosagradas foram escutadas em tempos antigos pelas folhas estioladas quetremiamnosarredoresdeDodona—mas,tãocertoquantoviveAlá,essafábulaqueodemôniomecontouquandosentávamosladoaladoàsombrada tumba,considero-aamaismaravilhosade todas!EquandooDemônioencerrava suahistória, ele caiude costasnoburacoda tumbae riu.Eeufui incapaz de rir junto com o Demônio, e eleme amaldiçoou porque fuiincapazderir.Eolincequehabitaatumbaportodaaeternidadesaiudaliedeitou-sejuntoaospésdoDemônio,eofitoufixamentenorosto.

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OESCARAVELHODEOURO

Oh!oh!essesujeitoestádançandocomoumlouco!ElefoipicadopelaTarântula.

AllintheWrongMuitos anos atrás, travei amizade comum certo sr.WilliamLegrand. Eraele de antiga família huguenote, e fora rico outrora; mas uma série deinfortúnios haviam-no reduzido à penúria. Para evitar a consequentemorti icação com suas calamidades, partiu de New Orleans, a cidade deseus antepassados, e se estabeleceu na ilha de Sullivan, perto deCharleston,naCarolinadoSul.Essailhaédasmaissingulares.Consistedepoucacoisaalémdeareiado

mar e tem cerca de cinco quilômetros de extensão. Sua largura emnenhumpontoexcedeomeioquilômetro.Ficaseparadadocontinenteporumalagunaquaseimperceptível,quecorremorosaatravésdopantanaldecaniços e lodo, refúgio favorito das aves aquáticas. A vegetação, como sepode supor, é escassa, ou, quando muito, anã. Não se vê árvore dequalquer magnitude por ali. Perto da extremidade oeste, onde se ergueFort Moultrie, além de algumas miseráveis construções de madeira,ocupadas, durante o verão, pelos fugitivos da poeira e da febre deCharleston,pode-seencontrar,naverdade,aeriçadapalmeirasalba;masailha toda, com exceção dessa extremidade oeste, e de uma faixa de praiadura e branca na costa, é coberta por uma densa vegetação do cheirosomirto, tão apreciado pelos horticultores da Inglaterra. O arbusto aquimuitas vezes atinge uma altura entre cinco e seis metros e forma ummatagalquaseimpenetrável,impregnandooarcomsuafragrância.Nos recessos mais recônditos desse matagal, não muito longe da

extremidadeleste,ouamaisremota,dailha,Legrandergueraparasiumapequenacabana,queocupavanaocasiãoemque,pormeroacidente,vimaconhecê-lo. Isso logo amadureceu numa amizade— pois muito havia noreclusoparasuscitaro interesseeaestima.Achei-obem-educado,dotadode incomuns faculdades espirituais,mas contaminadopelamisantropia, esujeito a perversas disposições de entusiasmo e melancoliaalternadamente. Tinha consigo muitos livros, mas raramente osempregava. Seus principais passatempos eram a caça e a pesca, ou ascaminhadas pela praia e através da murta, buscando conchas ou

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espécimesentomológicos;—suacoleçãodesteseradignadainvejadeumSwammerdamm. Nessas excursões, ia em geral acompanhado por umpreto velho, de nome Júpiter, que fora alforriado antes dos reveses dafamília, mas que não podia ser persuadido, fosse por meio de ameaças,fossedepromessas,aabandonaroqueconsideravaseudireitodeseguircadapassodeseujovem“MassaWill”.31Nãoéimprovávelqueosparentesde Legrand, crendo-o dono de um intelecto razoavelmente inquieto,houvessemdadoumjeitodeinstilaressaobstinaçãoemJúpiter,comvistasasupervisionaretutelaroviandante.OsinvernosnalatitudedailhadeSullivandi icilmentesãoseverose,no

imdoano,éumacontecimentorarodefatoqueumfogosejaconsideradonecessário.Pertodemeadosdeoutubrode18—,ocorreu,entretanto,umdiadenotávelfriagem.Poucoantesdopôrdosol,atravesseiacustocomosempreavegetaçãopereneatéacabanademeuamigo,aquemnãofaziaumavisitahaviaváriassemanas—minharesidência icando,nessaépoca,emCharleston, aumadistânciadequinzequilômetrosda ilha, quandoasfacilidades de ir e vir eram muito aquém do que são hoje. Ao chegar àcabana,bati, comodecostumee, semobterresposta,procureipelachavequesabiaestarescondida,destranqueiaportaeentrei.Umbelofogoardiana lareira. Era uma novidade, e demodo algum desagradável. Tireimeusobretudo, acomodei-me numa poltrona junto às achas crepitantes eaguardeipacientementeachegadademeusanfitriões.Pouco após o escurecer eles chegaram e saudaram-me com a mais

cordial das boas-vindas. Júpiter, sorrindo de orelha a orelha, atarefou-seem preparar algumas aves aquáticas para o jantar. Legrand achava-senum de seus acessos— que outro nome dar àquilo?— de entusiasmo.Haviaencontradoumbivalvedesconhecido, formandoumnovogênero,e,mais do que isso, havia caçado e capturado, com ajuda de Júpiter, umscarabæus que, assim acreditava, era totalmente novo,mas a respeito doqualdesejavaterminhaopiniãonodiaseguinte.“Eporquenãoestanoitemesmo?”,perguntei,esfregandoasmãosacima

dofogoedesejandoqueainteiraraçadosscarabæifosseparaoinferno.“Ah,seaomenoseusoubessequeestavaaqui!”,disseLegrand,“masjá

faz tanto tempodesdeaúltimavezemquenosvimos;ecomopoderiaeuadivinharquejustamentenestanoitemefariaumavisita?Quandovoltavapara casa, cruzei com o tenente G——, do forte, e,muito estupidamente,emprestei-lheoescaravelho;demodoquevaiserimpossívelqueovejaatéamanhã. Fique aqui hoje à noite, quemandarei Jup buscá-lo ao raiar do

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dia.Éacoisamaisadoráveldacriação!”“Oquê?—oraiardodia?”“Quebobagem!não!—oescaravelho.Édeumabrilhante cordourada

—maisoumenosdo tamanhodeumanozgrande—comduasmanchasnegras cor de azeviche numa ponta do dorso, e outra, um pouco maisalongada,naoutra.Asantennæsão—”“Num tem latani'uma nelas não, Massa Will, já cansei de falar pro

senhor”,32interrompeu-oJúpiter;“oescar'vel'oédeouropuroeletudinho,por dentro e por fora, menos as asas— nunca segurei escar'vel'o maispesadonaminhavida.”“Bem, suponho que sim, Jup”, respondeu Legrand, um pouco mais

gravemente,assimmepareceu,doqueasituaçãoexigia,“háalgumarazãoparadeixarasavesqueimar?Acor”—aquielevirouparamim—“defatoquase basta para justi icar a ideia de Júpiter. Nunca se viu um lustremetálicomaisbrilhantedoqueesseemitidoporsuacasca—masissovocêsó poderá julgar pela manhã. Entrementes, posso lhe dar uma ideia daforma.”Dizendoisso,sentou-seaumamesinha,sobreaqualhaviapenaetinta, mas nada de papel. Procurou em uma gaveta, mas não encontrounenhum.“Não importa”, disse, en im, “isso servirá”; e sacoudobolsodo colete o

quetomeiporumpedaçomuitosujodealmaço,executandosobreeleumgrosseiroesboçocomapena.Enquantoofazia,conservei-mesentadojuntoaofogo,poiscontinuavacomfrio.Quandoodesenhofoicompletado,elemoestendeusemselevantar.Nomomentoemqueeuoapanhava,umaudívelrosnadosefezouvir,sucedidoporalgoraspandoaporta.Júpiterabriu-aeumenormeterra-nova,pertencenteaLegrand,entrourapidamente,saltousobre meus ombros e cumulou-me de carinhos; pois eu lhe dedicaragrandeatençãoemvisitasanteriores.Quandocessoudefazerfestas,olheipara o papel e, para falar a verdade, peguei-me deveras perplexo com oquemeuamigohaviadesenhado.“Bom!”,eudisse,apóscontemplá-loporalgunsminutos, “eisdefato um

estranhoscarabæus,devoconfessar:paramiménovidade:nuncavinadaparecido antes— amenos que fosse um crânio, ou uma caveira— comque se parece mais do que qualquer outra coisa que eu já tenhaobservado.”“Umacaveira!”,repetiuLegrand—“Oh—é—bem,guardaalgodessa

aparência quando posto no papel, sem dúvida. As duas manchas negras

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superioresparecemserolhos,hein?eamaisextensanapartedebaixoécomoumaboca—eoformatodotodoéoval.”“Talvez assim seja”, disse eu; “mas, Legrand, receio que lhe faltem

pendores artísticos. Devo esperar até ver o próprio besouro, se queroformaralgumaideiadesuaaparênciapeculiar.”“Bem,nãosei”,disseele,umpoucoofendido,“desenhorazoavelmente—

desenharia, pelomenos— tivesse tido eubonsprofessores, epossodizercomorgulhoquenãosounenhumimbecil.”“Mas,meucarocolega,entãoestádebrincadeira”,disseeu,“issoaquié

umcrânio bastante passável— na verdade, devo dizer que é um crâniodeverasexcelente, segundo as noções vulgares sobre tais espécimes daisiologia — e seuscarabæus deve ser oscarabæus mais estranho domundo, se se parece com isso. Ora, podemos conceber um bocado desuperstição muito emocionante com base nessa sugestão. Presumo quechamará o inseto descarabæus caput hominis, ou algo dessa natureza—existem muitas designações semelhantes na História Natural. Mas ondeestãoasantennæquemencionou?”“ A santennæ!”, disse Legrand, que parecia cada vez mais

inexplicavelmente irritado com o assunto; “estou certo de que deve tervisto asantennæ. Desenhei-as tão distintamente quanto aparecem noinsetooriginal,epresumoquesejasuficiente.”“Bem,bem”,eudisse,“talvezotenhafeito—aindaassimnãoasvejo”;e

estendi-lheopapeldevolta semmaisqualquer comentárioadicional,nãodesejando perturbar seu temperamento; mas eu estava muito surpresocom o rumo que os acontecimentos haviam tomado; seumau humormedesconcertava — e, quanto ao desenho do besouro, não haviapositivamentequaisquerantennævisíveis,enotodoguardavadefatoumasemelhançamuitopróximacomafiguraordináriadeumacaveira.Elerecebeuopapelcomgrandeenfadoejáestavaprestesaamassá-lo,

aparentemente para atirá-lo ao fogo, quando um relance casual nodesenhopareceuderepenteprendersuaatenção.Numinstante,seurostoicou violentamente vermelho— no seguinte, excessivamente pálido. Poralgunsminutos,continuousentadoexaminandooesboçominuciosamente.Finalmente se levantou, pegou uma vela namesa e foi sentar sobre umaarcademarujono canto opostoda sala.Aímais umavezprocedeu a ummeticuloso exame do papel, virando-o em todos os sentidos. Entretantonadadisseesuacondutacausou-meimensaperplexidade;contudo,julguei

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prudente não exacerbar o crescente amuo de seu temperamento comqualquer comentário. Em seguida, tirou do bolso do casaco uma carteira,en iouopapelcuidadosamentealieguardouambosemumaescrivaninha,que trancou. Ele agora se mostrava cada vez mais composto em seusmodos; mas seu ar original de entusiasmo havia desaparecido porcompleto. Contudo, parecia menos taciturno do que abstraído. Com oavançar da noite mostrou-se cada vez mais absorto em devaneios, dosquaisnenhumcomentário espirituosodeminhaparte conseguiademovê-lo. Foraminha intenção passar a noite na cabana, como frequentementeizeraantes,mas,vendomeuan itriãonaquelehumor, julgueiapropriadome retirar. Ele não insistiu para que eu icasse, mas, quando eu partia,apertouminhamãocomcordialidadeaindamaiordoqueausual.Foi cerca de ummês depois disso (e ao longo desse intervalo não tive

notícia algumadeLegrand)que recebi umavisita, emCharleston, de seuhomem, Júpiter. Eu nunca vira o bom preto velho parecendo tãodesconsolado, e temi que alguma grave calamidade houvesse se abatidosobremeuamigo.“Bem, Jup”, disse eu, “qual o problema agora? — como anda seu

senhor?”“Ora,prafalaraverdade,massa,elenumandatãobemcomodevia.”“Nãoandabem!Ficorealmentetristeemsaberdisso.Doquesequeixa

ele?”“Diacho!aíéquetá!—meusenhornuncasequeixadenada—masele

támuitodoente.”“Muito doente, Júpiter!—porquenãodisse logodeumavez?Ele está

acamado?”“Não, isso não! — ele num para sossegado — aí é que o sapato me

aperta—tôcomacabeçainchadaporcausadopobreMassaWill.”“Júpiter,eugostariadeentenderdoquevocêestáfalando.Dissequeseu

senhorestádoente.Elenãolhecontouquemaloaflige?”“Ora,massa, numvale a pena se apoquentar por causa disso—Massa

Willdizquenumtemproblemani'umcomelenão—masentão,oquefazele icarandandodeum ladoprooutro,olhandoondepisa, comacabeçabaixa e os ombros caídos, branco como um ganso? E também segurandoumsifãootempotodo—”“Umoquê,Júpiter?”

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“Umsifãocomnúmerosna tabuleta—osnúmerosmaisesquisitosqueeujávinavida.Tôcomeçandoa icarcommedo,faloprosenhor.Eutenhoque icardeolhoneleotempotodo.Outrodiaelemeescapouantesdosolapareceresumiuobenditodiainteiro.Eutavacomumabelavaraprontap-pradarumcorretivonelequandovoltasse—massoutãomolengoquenumtiveacoragem,nofim—elepareciatodomazelento.”“Hein?—como?—ah,sei!—nogeral,achoquefoiamelhorcoisa,não

tersidoseverodemaiscomopobrecoitado—nadadechibatadas,Júpiter—podemuitobemserqueelenãoaguente—masvocênãofazamenorideia do que causou essa enfermidade, ou, antes, essa mudança decomportamento? Ele não sofreu nenhum aborrecimento desde nossoúltimoencontro?”“Não,massa,numteveaborrecimentoni'umdepoisdisso—éoantesque

mepreocupa—foibemnodiaqueosenhorteveemcasa.”“Como?oquevocêquerdizer?”“Ai,massa,tôfalandodoescar'vel'o—pronto,taí.”“Doquê?”“Do escar'vel'o — tenho certeza absoluta que Massa Will foi picado

nalgumlugardacabeçaporaqueleescar'vel'odeouro.”“Eoqueolevouasuportalcoisa,Júpiter?”“Pinças pra isso ele tem,massa, e também tem boca. Nunca vi um

escar'vel'o assim—ele chuta emorde tudo que chega perto.MassaWillprimeirocatouele,mastevequelargarelelogo,faloprosenhor—daífoinessahoraqueeledeve ter tomadoapicada.Eumesmonumgosteinemumpouquinhodojeitodaquelaboca,nãosenhor,entãoeuéquenãoiapôrmeu dedo naquele escar'vel'o,mas daí eu peguei ele com um pedaço depapel que eu achei. Embrulhei ele no papel e en iei um pedaço na bocadele—foiassimqueeufiz.”“E você acha, então, que seu senhor realmente foi picado pelo

escaravelho,equeapicadaodeixouenfermo?”“Eunumachocoisanenhuma—eusei.Porqueele icasonhandocom

ouroo tempotodo,senumfoiporque levouumapicadadoescar'vel'odeouro?Eujátinhaouvidofalarqueescar'vel'odeourofaziaisso.”“Mascomosabevocêqueelesonhacomouro?”“Comoeusei?ah,porqueelefaladormindo—éporissoqueeusei.”“Bom,Jup,talveztenharazão;masaquefelizcircunstânciadevoatribuir

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ahonradesuavisitahoje?”“Comoassim,massa?”“VocêtrazalgumrecadodosenhorLegrand?”“Recado ni'um,massa,mas tragoaqui essepapelzinho”; e assim Júpiter

estendeu-meumbilhete,quediziaoseguinte:

Meucaro——Porquenãoovejohátantotempo?Esperoquenãotenhasidotoloapontode se ofender com alguma pequenabrusquerie deminha parte;mas não,issoéimprovável.Desdenossoúltimoencontro tenho tido grandesmotivospara ansiedade.Tenhoalgoa lhecontar,emboramalsaibacomofazê-lo,ouseéquedevofazê-lo,afinal.Nãotenhoandadolámuitobemfazalgunsdias,eopobreevelhoJupmeaborrecequasealémdosuportávelcomseusbem-intencionadoscuidados.Podeacreditarnumacoisadessas?—elepreparouumalongavara,outrodia, com a qual pretendiame castigar por haver escapulido e passado odia ,solus, entre as colinas do continente. Acredito piamente que foisomentemeuaspectoenfermiçoquemepoupoudeumaschibatadas.Nadaacrescentei à minha coleção desde a última ocasião em que nosencontramos. Sepuder,dealgummodo, e julgar conveniente, acompanheJúpiteratéaqui.Venha.Gostariadevê-loestanoite,paratratardeassuntoimportante.Asseguro-lhequeéassuntodamaiorimportância.Sempreseu,

WilliamLegrand

Haviaalgumacoisano tomdessebilhetequemedeixou incomodado.OestilotododiferiasubstancialmentedodeLegrand.Comquepoderiaestarsonhando?Quenovocaprichoseapoderavadeseucérebroexcitável?Que“assuntodamaiorimportância”podiaeleteratratar?OrelatodeJúpiteraseu respeito não pressagiava nada de bom. Eu temia que a contínuapressão do infortúnio houvesse, en im, desarranjado até certo ponto arazão de meu amigo. Sem hesitar mais um instante, então, preparei-meparaacompanharonegro.Ao chegar no píer, notei uma gadanha e três pás, tudo aparentemente

novo,nofundodoboteemquedeveríamosembarcar.“Oquesignificatudoisso,Jup?”,perguntei.

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“Gadanha,massa,epá.”“Defato;masoqueessascoisasestãofazendoaqui?”“É a gadanha e as pás queMassaWillmandou eu comprar pra ele na

cidade,epreciseidarumdinheirãodosdiabosporelas.”“Mas o que, em nome de tudo que há de mais misterioso, seu 'Massa

Will'pretendefazercomgadanhasepás?”“Issoeuéquenumsei,eodiabomecarreguesenumachoquenemele

tambémnãosabe.Masétudoculpadoescar'vel'o.”Percebendoquenenhumaexplicaçãosatisfatóriapoderiaserobtidacom

Júpiter, cujo intelecto parecia inteiramente absorvido no “escar'vel'o”,entrei no bote e estiquei a vela. Com a brisa agradável e irme logochegamosàpequenaangraanortedeFortMoultrie,eumacaminhadadecerca de três quilômetros nos conduziu à cabana. Legrand estivera nosesperando com ansiosa expectativa. Agarrou minha mão com umempressementnervosoquemealarmouefortaleceuassuspeitasqueeujáacalentava.Suas feiçõesestavampálidasatéparaumfantasmaeemseusolhos encovados cintilava um brilho antinatural. Após alguma inquiriçãoacercade seuestadode saúde,perguntei-lhe, sem imaginar coisamelhorquedizer,seobtiveradevoltaoscarabæusdotenenteG——.“Ah, claro”, respondeu, corando violentamente, “peguei-o na manhã

seguinte.Nadavaimeseparardessescarabæus.SabiaqueJúpitertemtodarazãoacercadele?”“Emquesentido?”,perguntei,comumtristepressentimentonocoração.“Emsuporqueoescaravelhoédeourodeverdade .”Disseele,comarda

maisprofundaseriedade,comoquemesentiindizivelmentechocado.“Esse escaravelho vai fazerminha fortuna”, continuou, com um sorriso

triunfante, “restituir-me as posses familiares. É de causar algumaadmiração,então,meuapreçoporele?UmavezqueaFortunaachouporbemmo concedê-lo, tudo que tenho a fazer é usá-lo apropriadamente echegarei ao ouro de que ele é o indicador. Júpiter, traga-me aquelescarabæus!”“Arre! o escar'vel'o,massa? Pre iro nãomemeter com aquele bicho—

melhor o senhor mesmo pegar.” Nisso Legrand se levantou, com um argraveealtivo,etrouxe-meobesouroquedeixaraguardadoemumestojode vidro. Era um lindo scarabæus e, nessa época, desconhecido dosnaturalistas—semdúvidaumgrandeachado,dopontodevistacientí ico.

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Haviaduasmanchasnegrasarredondadasjuntoaumadasextremidades,no dorso, e uma mais alongada, na outra. A casca era excepcionalmentedura e reluzente, com toda a aparência de ouro polido. O peso do insetoeradeverasnotávele,levandotudoemconsideração,di icilmentesepodiaculpar Júpiterpor sua crença respeitante ao espécime;masqueLegrandcompartilhasse dessa opinião era algo que eu não podia, sob nenhumacircunstância,admitir.“Mandei chamá-lo”, disse ele, em um tom grandiloquente, após eu ter

completadomeu examedobesouro, “mandei chamá-lo para quepudessecontar com seu conselho e assistência no cumprimento dos desígnios doDestinoedoescaravelho”—“Meu caro Legrand”, exclamei, interrompendo-o, “certamente não está

bem, e melhor seria se tomasse determinadas precauções. Deve serecolher à cama, e permanecerei a seu lado por alguns dias, até tersuperadoisso.Estáfebrile”—“Sintameupulso”,disseele.Tomei-lheapulsaçãoe,para falaraverdade,nãoencontreiomais leve

indíciodefebre.“Maspodeestar enfermoemesmoassimnão ter febre.Permita-meao

menosdessavezlhepassarumaprescrição.Emprimeirolugar,váparaacama.Emseguida”—“Você se equivoca”, interveio ele, “estou tão bem quanto seria de se

esperar, no presente estado de empolgação em que me encontro. Se defatoquermeverbem,devealiviaressaempolgação.”“Ecomoissopodeserfeito?”“Muito fácil. Júpiter e eu estamosdepartidaparaumaexpediçãopelas

colinas, no continente, e, nessa expedição, precisaremos da ajuda dealguém em quem possamos con iar. É o único de nossa con iança. Sendobem ou malsucedidos, essa empolgação que ora vê em mim seráigualmentemitigada.”“Fico ansioso em obsequiá-lo damelhormaneira”, repliquei; “mas está

a irmando que esse besouro infernal guarda alguma ligação com suaexpediçãopelascolinas?”“Issomesmo.”“Poisnessecaso,Legrand,nãoposso tomarparteemprocedimento tão

absurdo.”

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“Lamento—lamentomuito—entãootentaremosnósmesmos.”“Tentar por si mesmos! O homem certamente enlouqueceu! — mas

espere!—quantotempopretendemseausentar?”“Provavelmente, a noite toda. Deveremos começar imediatamente, e

voltar,emtodocaso,aonascerdosol.”“E me promete, por sua honra, que quando essa sua extravagância

houverterminado,eonegóciodoescaravelho(bomDeus!),acertadoaseucontento, voltarápara casae seguirámeuconselho semdiscutir, comosevindodeseuprópriomédicopessoal?”“Sim;prometo;eagoraacaminho,poisnãotemostempoaperder.”Comocoraçãopesadoacompanheimeuamigo.Começamosporvoltadas

quatro da tarde— Legrand, Júpiter, o cão e eu. Júpiter levava consigo agadanha e as pás — insistindo em carregar tudo sozinho — mais pormedo, assim me pareceu, de deixar alguma daquelas ferramentas aoalcance de seu mestre, do que por qualquer excesso de diligência oupréstimo. Sua conduta era obstinada ao extremo e “esse diachod'escar'vel'o” foramasúnicaspalavrasquedeixaramseus lábiosdurantea jornada.Deminhaparte,eu icaraencarregadodeumparde lanternasfurta-fogo, enquanto Legrand se dispunha a levar oscarabæus, que iapresoàpontadeumpedaçodechicote;eleogiravadeumladoparaoutro,comaresde feiticeiro, conforme caminhava.Quandoobservei essaúltimaevidência indiscutível de aberração mental em meu amigo, mal pudeconter as lágrimas. Achei melhor, entretanto, condescender com suafantasia, pelo menos por ora, ou até ser capaz de adotar medidas maisenérgicas com alguma chance de sucesso. Nesse meio-tempo empenhei-me,masemvão,emsondá-locomrespeitoaointuitodaexpedição.Tendoconseguido induzir-mea acompanhá-lo,pareciapouco inclinadoamanterconversasobrequalquerassuntodemenorimportância,eatodasminhasperguntasnãosedignavaaresponderoutracoisaalémde“veremos!”.Atravessamos o braço de mar na ponta da ilha usando um esquife e,

subindo pelo terreno elevado no litoral do continente, prosseguimos nadireção noroeste, por uma extensão de terra excessivamente bravia edesolada,ondenenhumsinaldepassadashumanas sevia. Legrand ianafrentecomdeterminação;parandoapenasporuminstante,aquieali,paraconsultar oquepareciam serdeterminadosmarcos feitospor elemesmoemumaocasiãoanterior.Desse modo excursionamos por cerca de duas horas e o sol mal

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começara a se pôr quando entramos numa região in initamente maislúgubre do que qualquer outra que havíamos visto. Era uma espécie deplatô, próximo ao cume de uma colina quase inacessível, densamentearborizada da base até o pico, e coberta de imensos rochedos quepareciam soltos no solo e que em muitos casos eram impedidos de seprecipitarnosvalesabaixomeramentepeloarrimodasárvorescontraasquais se apoiavam. Profundas ravinas, em várias direções, emprestavamumaatmosferaaindamaisausteraàsolenidadedocenário.A plataforma natural que havíamos galgado abrigava uma densa

touceira de sarças, na qual logo percebemos que teria sido impossívelpenetrar senão com a gadanha; e Júpiter, por ordem de seu senhor,procedeuàaberturadeumapicadaparanósatéabasedeumgigantescotulipeiroqueassomava,juntocomunsoitooudezcarvalhos,naelevação,esuplantavaemmuitotodoseles,bemcomotodasasdemaisárvoresqueeuum dia já vira, pela beleza de sua folhagem e sua forma, pela ampladisposiçãodeseusgalhosepelamajestadegeraldesuaaparência.Quandochegamos a essa árvore, Legrand virou para Júpiter e lhe perguntou seachavaque era capazde trepar ali. O velhohomempareceu titubear umpoucocomapergunta,eporalgunsmomentosnãorespondeu.Apósalgumtempo, aproximou-se do imenso tronco, contornou-o vagarosamente eexaminou-ocomescrupulosaatenção.Apóscompletarseuescrutínio,disseapenas:“Sim,massa, Jupconsegue treparemqualquerárvorequeele jáviuna

vida.”“Entãoponha-se a subir, quanto antespossível, pois logo estará escuro

demaisparaenxergaroqueestamosfazendo.”“Atéondeéprasubir,massa?”,inquiriuJúpiter.“Suba pelo tronco principal primeiro, depois eu lhe digo por onde

prosseguir—eolhe—espere!leveessebesourocomvocê.”“O escar'vel'o, Massa Will! — o escar'vel'o de ouro!”, gemeu o negro,

encolhendo-se, descorçoado— “pra que eu tenhoque levar o escar'vel'opracimadaárvore?—odiabomecarreguesevoufazerisso!”“Seestácommedo,Jup,umnegrograndeefortecomovocê,desegurar

umbesourinhomorto inofensivo, por que não o leva com esse cordão—mas senão levardeummodooudeoutro, serei obrigadoaquebrar suacabeçacomestapá.”“O que é isso agora,massa?”, disse Jup, evidentemente aquiescendo de

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puravergonha; “osenhor temsempreque implicarcomestepretovelho.Eusótavabrincando.Eu,commedodoescar'vel'o!eeuligoamínimaproescar'vel'o?”E,dizendoisso,seguroucuidadosamenteapontadocordãoe,mantendo o inseto o mais longe possível de sua pessoa que ascircunstânciasopermitiam,preparou-separasubirnaárvore.Quando novo, o tulipeiro, ouLiriodendron tulipiferum , omaismagní ico

dos habitantes da loresta, tem um tronco peculiarmente liso, e muitasvezes cresce até grandes alturas sem galhos laterais; mas, em idademadura,acascasetornarugosaedesigual,enquantomuitosramoscurtosaparecem em seu caule. De modo que a di iculdade de escalada, nopresente caso, residemais na aparência do que na realidade. Cingindo oimenso cilindro da melhor forma possível com seus braços e pernas,agarrando certas saliências com as mãos e apoiando os dedos dos pésdescalçosemoutras,Júpiter,apósescapardecairpormuitopoucoemumaou duas ocasiões, en im se contorceu até chegar à primeira grandeforquilha, e pareceu considerar o negócio todo como virtualmenteconcluído. Orisco da empresa estava, de fato, terminadoagora, emboraoescaladorestivesseacercadecincometrosdochão.“Praqueladoeuvouagora,MassaWill?”,perguntou.“Continuepelogalhomaisgrosso—aqueledesselado”,disseLegrand.O

negroobedeceuprontamentee,aoqueparecia,semmaioresdi iculdades;escalando cada vez mais alto, até que nenhum vislumbre de sua iguradobrada pudesse ser colhido através da densa folhagem que o envolvia.Umpoucodepoissuavozfoiouvida,numaexclamaçãoinarticulada.“Atéondemaiséprair?”“Emquealturavocêestá?”,perguntouLegrand.“Alto pra burro”, replicou o negro; “dá pra ver o céu pelo topo da

árvore.”“Esqueçaocéu,maspresteatençãonoqueeuvoufalar.Olheparabaixo

pelo tronco e conte os galhos embaixo de você, desse lado. Por quantosgalhosvocêpassou?”“Um,dois,três,quatro,cinco—jápasseicincogalhos,massa,desse lado

aqui.”“Entãosubamaisum.”Em algunsminutos a voz se ouviu outra vez, anunciando que o sétimo

galhoforaatingido.

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“Agora, Jup”, gritou Legrand, evidentemente muito empolgado, “queroque avance por esse galho o mais longe que puder. Se vir alguma coisaestranha,meavise.”Nesseponto,apoucadúvidaqueeuaindapudessealimentaracercada

insanidadedemeupobreamigofoi inalmentedescartada.Nãomerestavaalternativa senão concluir que estava tomado pela demência, e iqueiseriamenteansiosoemlevá-loparacasa.Enquantore letiasobreomelhorafazer,avozdeJúpiterseouviumaisumavez.“Tôcommedode tentar irmuito longenessegalho—ogalho támorto

quaseeletodinho.”“Vocêdissequeogalhoestámorto, Júpiter?”,gritouLegrandcomavoz

trêmula.“É,massa,mortinhodasilva—bateuasbotas—foidessapramelhor.”“Oqueemnomedoscéusdevo fazer?”,perguntouLegrand,parecendo

sofrerdeextremaaflição.“O que fazer!”, disse eu, feliz com a oportunidade de interpor uma

opinião, “ora, voltar para casa e recolher-se à cama. Vamos!— seja umbomrapaz.Estáficandotardee,alémdomais,lembredoqueprometeu.”“Júpiter”,gritouele,semmedaramínimaatenção,“estámeescutando?”“Tô,MassaWill,escutandotudinho.”“Experimenteogalhodireito, então, coma sua faca, e veja seachaque

estámuitopodre.”“Tápodre sim,massa, certeza 'bsoluta”, respondeuonegroapósalguns

instantes, “masnão tãopodre quanto a gente imagina. Euposso tentar irumpouquinhomaisporessegalhoseforsozinho,éverdade.”“Sozinho!—doquevocêestáfalando?”“Estoufalandodoescar'vel'o.Esseescar'vel'oédanadodepesado.Acho

que se eu soltasse ele primeiro, daí o galho não quebrava só como pesodumnegro.”“Seupatifedosinfernos!”,gritouLegrand,aparentementemuitoaliviado,

“oqueestáquerendodizercomumabobagemdessas?Podeapostarquesedeixarobesourocaireuquebroseupescoço.Olhebem,Júpiter!—estámeouvindo?”“Tô,massa,numprecisaberrarcomopobrenegrodessejeito.”“Bom!agoraescute!—sevocê tentar seguirporessegalhoatéomais

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longequeacharseguro,enãodeixarobesourocair,vaiganharumdólardeprataassimquedesceraquiembaixo.”“Já fui,MassaWill—está feito”,respondeuonegromuitoprontamente

—“játôquasenapontaagora.”“Quase na ponta!”, berrou entusiasmado Legrand, “está dizendo que

chegounapontadessegalho?”“Logo, logo,massa — o-o-o-o-oh! Sinhormisericordioso! que negócio é

esseaquiemcimadaárvore?”“Então!”,gritouLegrand,emjúbilo,“oqueé?”“Bom,ésóumcrânio—alguémdeixouissoaquiemcimadaárvore,eos

corvoslimparameleatéoúltimopedacinhodacarne.”“Umcrânio,vocêdisse!—muitobem!—comoeleestápresonogalho?

—oqueestásegurandoeleaí?”“Certeza 'bsoluta,massa; peraí, precisa olhar. Puxa, é a coisa mais

esquisita, palavra — tem um baita prego no crânio prendendo ele naárvore.”“Bom, Júpiter, agora faça exatamente como eu mandar — está

escutando?”“Tô,massa.”“Prestebastanteatenção!—acheoolhoesquerdodocrânio.”“Hum!uuh!essaéboa!arre,numtemolhoesquerdoni'um.”“Maldita seja sua estupidez! sabe diferenciar sua mão direita da

esquerda?”“Sei,issoeusei—jáaprendiisso—minhamãoesquerdaéoqueeuuso

pracortarlenha.”“Certamente!porquevocêécanhoto;eoseuolhoesquerdoédomesmo

ladodasuamãoesquerda.Bom,agoraachoqueconsegueencontraroolhoesquerdodocrânio,ouolugarondeoolhoesquerdoficava.Jáachou?”Nissohouveumalongapausa.Finalmente,onegroperguntou:“O olho esquerdo do crânio ica do mesmo lado da mão esquerda do

crânio, também? — porque o crânio não tem nem sombra de mão pracontarhistória—deixapralá!acheioolhoesquerdoagora—taquioolhoesquerdo!oquequeéprafazercomele?”“Deixeobesourodescerporele,omais longequeocordãoalcançar—

mascuidadopranãosoltarocordão.”

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“Prontinho, Massa Will; a coisa mais fácil, passar o escar'vel'o peloburaco—vejasedápraenxergareledaídebaixo!”Duranteessediálogo,nenhumapartedocorpodeJúpiterpôdeservista;

mas o besouro, que ele izera descer, estava visível agora na ponta docordão,ecintilava,comoumglobodeouropolido,sobosderradeirosraiosdosolpoente,algunsdosquaisaindailuminavamdebilmenteocumeondenos encontrávamos. Oscarabæus pendia livre de qualquer galho e, sedeixado cair, teria pousado aos nossos pés. Legrand pegou a gadanhaimediatamente e abriu com ela um espaço circular, com três ou quatrometros de diâmetro, bem abaixo do inseto, e, tendo feito isso, ordenou aJúpiterquesoltasseocordãoedescessedaárvore.Cravandoumpinonaterracomgrandecuidado,noprecisopontoonde

o besouro caíra, meu amigo agora tirava do bolso uma ita métrica.Prendendoumaextremidadedelanopontodotroncodaárvoreque icavamais próximo ao pino, ele a desenrolou até chegar ao pino, e depoiscontinuou desenrolando, na direção agora já determinada pelos doispontos, o da árvore e o do pino, pela distância de cinquenta pés33 —Júpiter ia carpindo os arbustos com a gadanha. No local desse modoatingido,umsegundopinofoienterrado,eemtornodele,comoumcentro,um círculo grosseiro, com mais de um metro de diâmetro, foi traçado.Pegandoagoraumapáelemesmo,edandooutraparaJúpitereumaparamim,Legrandinstou-nosacavaromaisdepressaqueconseguíssemos.Para ser sincero, nunca foi muito de meu agrado entregar-me a

passatempos desse tipo, em tempo algum, e, naquele momento emparticular, eu teria de bom grado declinado da tarefa; pois a noite seaproximava, eme sentia extremamente fatigado com todo o exercício atéali empreendido; mas não via modo de escapar e receava perturbar aserenidade de meu amigo caso recusasse. Na verdade, pudesse eu tercontadocomaassistênciadeJúpiter,teriasemhesitaçãotentadocarregarolunáticodevoltaparacasaàforça;mastinhademasiadaconvicçãosobrea disposição do preto velho para esperar que fosse me ajudar, sobquaisquer circunstâncias, emumacontendapessoal comseu senhor.Nãomerestavadúvidadequeesteforacontagiadoporalgumasdasinúmerassuperstiçõesdossulistasacercadedinheiroenterrado,equesuafantasiaencontraracon irmaçãonoachadodo scarabæus,ou, talvez,naobstinaçãode Júpiter em a irmar que era “um escaravelho de ouro de verdade”. Amente inclinadaà loucura facilmente sedeixa levarpor tais sugestões—sobretudoquandofazemcoroasuasideiaspreconcebidas—,eentãoveio-

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me à lembrança a declaração do pobre coitado de que o besouro era “oindicadordesuafortuna”.Comtudoisso,sentia-metristementeaborrecidoeperplexo,mas, en im, concluíquedevia extrairomelhorda situação—cavarcomtodaaboavontadeequantoantesconvencerovisionário,pelaevidênciaocular,dafaláciadasopiniõesporeleentretidas.Tendoacendidoaslanternas,pusemo-nostodosatrabalharcomumzelo

dignodecausamaisracional;e,comoclarãobanhandonossas iguraseasferramentas, não pude deixar de pensar que grupo mais pitorescocompúnhamosequãoestranhosesuspeitosnossosesforçosdeveriamterparecido a qualquer intrusoque, por acaso, calhassede topar comnossoparadeiro.Cavamos com grande determinação por duas horas. Pouco falamos; e

nosso principal estorvo consistia nos ganidos do cão, que tomavaextraordinário interesse em nossos afazeres. Após algum tempo, ele semostroutãoobstinadamenteruidosoquepassamosarecearquealertassealgum caminhante sem rumo que pudesse estar nos arredores; — oumelhor, essa era uma apreensão de Legrand; — quanto a mim, teriaexultadocomqualquerinterrupçãoquemehouvessepermitidoconduziroextraviadodevoltaparacasa.Obarulhofoien imsilenciadodomodomaise icaz por Júpiter, que, deixando o buraco com um empedernido ar deresolução, amarrou a boca do animal com um de seus suspensórios, edepoisvoltou,comumarisadinhagutural,asuatarefa.Quando o tempo mencionado expirara, havíamos atingido uma

profundidade de ummetro e meio, e contudo sinal algum de tesouro semanifestou.Umapausageralsedeuecomeceia teresperançasdequeoabsurdo estivesse chegando ao im. Legrand, entretanto, ainda queevidentemente muito desconcertado, limpou a testa cuidadosamente erecomeçou.Havíamosescavadoportodoocírculodeummetroepoucodediâmetro,eagoraalargávamos ligeiramenteesse limite, eprosseguimosauma profundidade demaismeiometro. Ainda nada apareceu. O caçadorde ouro, de que eu sentia uma piedade sincera, en im deixou o poçoescavado, com a decepção mais amarga marcada em cada traço de seusemblante, e começou,demodovagarosoe relutante, a vestir seu casaco,queatiraraforanoiníciodotrabalho.Entrementes,nãoaventeicomentárioalgum.Júpiter,aumsinaldeseusenhor,começouajuntarasferramentas.Isso feito, e o cão tendo sido desamordaçado, retomamos em profundosilêncioorumodecasa.Havíamos dado, talvez, uma dúzia de passos nessa direção, quando,

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soltando uma sonora praga, Legrandmarchou na direção de Júpiter e oagarroupelocolarinho.Onegroatônitoabriuosolhoseabocanamáximaamplitude,vergouosombrosecaiudejoelhos.“Seupatife”,disseLegrand,sibilandoassílabasentreosdentescerrados

—“seuvilãopretodo inferno!—diga,estoumandando!—merespondaneste instante sem nenhum rodeio! — qual — qual é o seu olhoesquerdo?”“Ai, Deus meu, Massa Will! não é esse aqui meu olho esquerdo, com

certeza 'bsoluta?”, grunhiu o aterrorizado Júpiter, pondo a mão sobre oórgãodireitodavisão,emantendo-aalicomumatenacidadedesesperada,comoquenumpavorimediatodequeseumestretentassearrancá-lo.“Foi o que pensei! — eu sabia! — viva!”, urrou Legrand, liberando o

negro e passando a executar uma série de piruetas e cabriolas, paragrande perplexidade de seu criado, que, pondo-se de pé, olhava,emudecido,deseusenhorparamim,edepoisdemimparaseusenhor.“Vamos!temosdevoltar”,disseeste,“ojogoaindanãoterminou”;emais

umavezliderouocaminhoparaotulipeiro.“Júpiter”,disse,quandochegamosaopédaárvore,“venhaaqui!ocrânio

estavapresonogalhocomorostoviradopara foraoucomorostoviradoparaogalho?”“Orostotavaprafora,massa,assimoscorvospuderambicarosolhosà

vontade,semdificuldade.”“Bom, nesse caso, foi por esse olho ou por esse que você passou o

besouro?”—aquiLegrandtocouumolhoedepoisooutrodeJúpiter.“Foi esse,massa—oolhoesquerdo—comoosenhor falou”,edizendo

issoonegroindicouseuolhodireito.“Tudobementão—vamostentarnovamente.”Nisso meu amigo, em cuja loucura eu agora enxergava, ou imaginava

enxergar, certos indícios de método, removeu o pino marcando o lugaronde o besouro caíra, para um outro ponto cerca de três polegadas 34 aoestedesuaposiçãoanterior.Partindoagoracoma itamétricadopontomais próximo do tronco em relação ao pino, como antes, e prosseguindoemestendê-lanuma linha reta até adistânciade cinquentapés, um localfoiindicado,distante,váriosmetros,dopontoondeestivéramosaescavar.Em torno da nova posição um círculo, pouco maior do que o

anteriormente feito, foi agora traçado, e mais uma vez pusemo-nos a

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trabalhar com as pás. Eu estava terrivelmente cansado, porém, malcompreendendo o que ocasionara a mudança em meus pensamentos, jánão sentia grande aversão pelo trabalho imposto. Fora tomado pelomaisinexplicável interesse— não, empolgação, até. Talvez houvesse qualquercoisa,emmeioatodoaquelecomportamentoextravagantedeLegrand—algum ar de presságio, ou de deliberação, queme impressionasse. Caveiavidamente e, de vez em quando, peguei-me de fato buscando, com algomuito próximo de uma genuína expectativa, o tesouro imaginado, cujasvisõeshaviamlevadomeucompanheiroàdemência.Nomomentoemquetais caprichos do pensamento haviam em grande medida me possuídointeiramente, e após termos trabalhado por cerca de uma hora e meia,fomos mais uma vez interrompidos pelos uivos violentos do cão. Suainquietude, no primeiro caso, fora, evidentemente, ocasionada por umespírito brincalhão ou impulsivo, mas ele agora assumia um tom maisausteroegrave.QuandoJúpitertentoumaisumavezamordaçá-lo,opôs-sefuriosamente e, pulando dentro do buraco, começou a cavar a terrafreneticamente comsuaspatas.Empoucos segundos,haviadesenterradoum amontoado de ossos humanos, compondo dois esqueletos completos,entremeadosadiversosbotõesdemetal,eoquepareciamserrestosdelãapodrecida.Umoudois golpes depá revelarama lâminadeuma grandefaca espanhola e, ao cavarmos um pouco mais, três ou quatro moedassoltasdeouroepratavieramàluz.Aover isso a alegriade Júpitermalpôde ser contida,maso semblante

de seu mestre exibia um ar de extremo desapontamento. Ele insistiuconosco,entretanto,quecontinuássemoscomnossosesforços,enembemsuaspalavrasforampronunciadaseutropeceiecaí,aoprenderapontademinhabotaemumgrandeaneldeferroquecomeçaraaaparecerentreaterrasolta.Agoratrabalhávamoscomdeterminaçãoenuncapasseidezminutosde

excitação mais intensa. Durante esse intervalo desenterramos em boaparte uma arca oblonga demadeira, que, por sua perfeita preservação emagní ica dureza, havia sido claramente sujeitada a algum processo demineralização — talvez o do dicloreto de mercúrio. A caixa tinhaaproximadamente um metro de comprimento, noventa centímetros delargura e oitenta centímetros de altura. Estava irmemente presa porcintasdeferrofundido,rebitadaseformandoumaespéciedetreliçasobretoda a estrutura. Em ambas as laterais da arca, perto do topo, havia trêsanéisdeferro—seisaotodo—,pormeiodosquaisumapreensão irme

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seriapossibilitadaparaseispessoas.Nossosmáximosesforçosconjugadosserviram apenas para deslocar o cofre muito ligeiramente em seu leito.Percebemos na mesma hora a impossibilidade de remover um peso tãogrande.Felizmente,osdoisúnicosfechosdatampaconsistiamdeferrolhosde correr. Nós os puxamos— tremendo e ofegando de ansiedade. Numinstante, um tesouro de valor incalculável cintilava sob nós. A luz daslanternasqueverteudentrodopoçore letiudevoltaaoincidirsobreumapilha confusa de ouro e joias, um brilho e um fulgor que ofuscaramcompletamentenossosolhos.Não pretendo descrever os sentimentos com que contemplei aquilo. A

estupefação era, é claro, predominante. Legrand parecia exausto pelaexcitação, e poucas palavras disse. As feições de Júpiter exibiram, poralgunsminutos,umalivideztãomortalquantoépossível,pelanaturezadascoisas, o semblantedeumnegro assumir. Parecia entorpecido—atônito.Poucodepoisprostrou-sede joelhosnopoçoe, enterrandoosbraçosnusatéos cotovelosnoouro, deixouque ali icassem, comoque apreciandooluxodeumbanho.Finalmente,comumprofundosuspiro,exclamou,comoemumsolilóquio:

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“E tudo isso veio do escar'vel'o de ouro! o lindo escar'vel'o de ouro!pobrezinhodoescar'vel'odeouro,queeutantoescul'ambeidaquelejeito!

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Numtemvergonhadevocêmesmo,negro?—merespondeisso!”Fez-se necessário, en im, que eu instigasse tanto senhor como criado

paraprocederàremoçãodotesouro.Estava icandotardeeconvinhaquepuséssemos mãos à obra, de modo a transportar tudo aquilo para casaantes do raiar do dia. Era di ícil dizer qual a melhor coisa a ser feita; egrandetempofoigastoemdeliberações—tãoconfusasestavamasideiasde todos. Então, inalmente, deixamos a arca mais leve removendo doisterços do conteúdo, o que nos possibilitou, não sem alguma di iculdade,tirá-la do buraco. Os artigos separados nós os depositamos entre osarbustosdesarçaseocãofoideixadoamontarguarda,recebendoordensestritasde Júpiterparaque,sobnenhumpretexto,deixasseo local,equetambém não desse um pio até nosso regresso. Seguimos entãoapressadamenteatéacasacarregandoaarca; chegamosemsegurançaàcabana, mas após excessivo esforço, à uma da manhã. Exaustos comoestávamos, seria contra a natureza humana fazer mais de imediato.Descansamosatéasduas,eceamos;partimosparaascolinas logodepois,munidos de três fortes sacos, que, por uma boa sorte, ali se achavam.Poucodepoisdasquatrochegamosaoburaco,dividimosentrenós,omaisequanimementepossível,orestantedobutime,deixandoaescavaçãoporencher, novamente partimos para a cabana, onde, pela segunda vez,depositamos nossos fardos preciosos, no exato instante em que osprimeirosfeixesbrilhantesdaauroraroçavamodosseldasárvoresaleste.Estávamos a essa altura completamente esgotados; mas a intensa

excitação do momento negou-nos repouso. Após um inquieto cochilo deumas três ouquatrohoras deduração, levantamos, comoque a um sinalpré-combinado,paraexaminarnossotesouro.Aarcaforaenchidaatéaborda,epassamosodiatodo,eamaiorparte

da noite seguinte, em um exame de seu conteúdo. Nada havia ali que separecesse com alguma ordem de arrumação. Tudo fora amontoadoindiscriminadamente.Após separar tudo com cuidado, vimo-nosdepossede uma riqueza aindamais vasta da que havíamos inicialmente suposto.Emmoedas,haviapoucomaisdequatrocentosecinquentamildólares—estimando o valor das peças, o mais acuradamente que podíamos, pelastabelasdaépoca.Nãohaviaumapartículadepratasequer.Tudoeraourode data antiga e de grande variedade — dinheiro francês, espanhol ealemão, com alguns guinéus ingleses, e certas moedas das quais jamaishavíamos visto qualquer exemplar antes. Havia inúmeras moedas muitograndes e pesadas, tão gastas que não pudemos decifrar nada da suas

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inscrições.Nadadedinheiro americano.O valor das joias, nós o julgamosmais di ícil de estimar. Havia diamantes — alguns delesextraordinariamente grandes e belos— cento e dez no total, e nem umúnico pequeno; dezoito rubis de brilho notável; — trezentas e dezesmeraldas,todaslindíssimas;evinteeumasa iras,comumaopala.Essaspedrashaviamsidoarrancadasdeseusengastesejaziamsoltaspelaarca.Os engastes de onde saíram, que achamos entre o resto do ouro, haviamsidodeformadoscommarteladas,comoqueaimpediraidenti icação.Alémdissotudo,haviaumavastaquantidadedeornamentosdeourosólido;—quaseduzentosanéisebrincosemargolamaciços;—correntessuntuosas—trintadelas,semerecordo;—oitentaetrêscruci ixosmuitograndesepesados; — cinco incensórios de ouro de grande valor; — umamaravilhosa poncheira de ouro ornamentada com uma magní icacinzeladuradefolhasdeparreiraemotivosdebacanálias;doispunhosdeespadacomdelicadosrelevosemaisinúmerosoutrosartigosmenoresqueme escapam àmemória. O peso dessas preciosidades excedia os cento ecinquentaquilos;enessaestimativadeixeide incluiroscentoenoventaesete soberbos relógios de ouro; três deles valendo sozinhos quinhentosdólares, pelo menos. Muitos deles eram antiquíssimos e, para marcar otempo,inúteis;seusmecanismoshaviamsofrido,emmaioroumenorgrau,com a corrosão — mas eram todos ricamente cravejados e com estojosmuito valiosos. Estimamos o conteúdo total da arca, nessa noite, comosendo de um milhão e meio de dólares; e, depois que separamos asbijuteriaseoutrasgemas(tendo icadocomalgumasdelasparanossousopessoal),percebemostersubestimadograndementeotesouro.Quando,en im,concluímosnossoexame,eapósaintensaempolgaçãodo

momento ter, em certamedida, se esvaído, Legrand, percebendo que eumorria de impaciência em saber a solução daquele enigma dos maisextraordinários, entrou em escrupulosos detalhes acerca dascircunstânciasaeleligadas.“Há de se lembrar”, disse ele, “da noite em que lhe mostrei o rude

esboço que izera doscarabæus. Recorde-se, também, de como iqueideverasagastadocomsuainsistênciadequemeudesenhosepareciacomuma caveira. No momento em que fez essa a irmação, achei que estavabrincando;masdepoisdissomevieramàmenteaspeculiaresmanchasnodorsodoinseto,eadmitiparamimmesmoqueocomentáriotinhadefatoalgum fundamento.Mesmoassim, sua zombaria acercademeusdotesdedesenhista me irritaram — pois sou considerado um bom artista — e,

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dessemodo,quandomeestendeuoretalhodopergaminho,estiveprestesaamassá-loeatirá-loraivosamenteaofogo.”“Opedaçodepapel,querdizer”,afirmei.“Não; parecia-semuito compapel, e inicialmente imaginei que fossede

fato,mas, quandome pus a rabiscar sobre ele, percebi, namesma hora,que se tratava de um pedaçomuito ino de pergaminho. Estava bastantesujo,deveselembrar.Bem,noprecisomomentoemqueiaamassá-lo,meuolhar recaiu sobre o esboço que você estivera observando, e pode bemimaginarminha perplexidade quandome dei conta, de fato, da igura deumacaveiraexatamenteonde,assimmeparecera,eu izeraodesenhodeum besouro. Por um momento, iquei demasiado pasmo para conseguirpensar com clareza. Eu sabia que os detalhes de meu desenho diferiammuito daquilo — embora houvesse uma certa similaridade no contornogeral.Poucodepois, tomeideumavelae, acomodando-menooutro cantoda sala, passei a examinar o pergaminhomais detidamente. Ao virá-lo, vimeupróprioesboçonoverso,exatamentecomoeuo izera.Meuprimeiropensamento,então,foiamerasurpresapelasemelhançaverdadeiramentenotável de contorno— pela coincidência singular envolvida no fato, pormim ignorado, de haver um crânio do outro lado do pergaminho,imediatamente sobminha igura doscarabæus, e de que esse crânio, nãoapenasnocontorno,mastambémemtamanho,pudesseseassemelhardetal modo a meu desenho. Repito, a singularidade dessa coincidência medeixou absolutamente atônito por ummomento. Tal é o efeito costumeirodecoincidênciascomoessa.Océrebrolutaparaestabelecerumaligação—umasequênciadecausaeefeito—e,sendoincapazdefazê-lo,sofreumaespécie de paralisia temporária. Mas, ao me recobrar desse estupor, fuigradualmente tomadodeuma convicçãoqueme sobressaltou aindamaisdo que a coincidência. Comecei a lembrar distintamente, positivamente,que não havia desenhoalgum no pergaminho quando iz o esboço doscarabæus. Fiquei perfeitamente segurodisso; pois recordava-mede tê-lovirado primeiro de um lado e depois do outro à procura da área maislimpa.Casoocrâniojáestivesselá,semdúvidanãopoderiaterdeixadodenotá-lo. Ali estava um mistério cuja explicação me parecia impossível;porém, mesmo naquele momento inicial, eu como que vislumbrei,debilmente, nos recessos mais remotos e secretos de meu intelecto, acentelhaincipientedeumaideiadecujaveracidadeaaventuradessanoitedeuumademonstraçãotãomagní ica.Levantei-medeprontoe,guardandoopergaminhoemsegurança,deixeide ladoqualquerulteriorre lexãoaté

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quemevissesozinho.“Depoisquevocêpartiu,equandoJúpiterdormiaasonosolto,debrucei-

menumainvestigaçãomaismetódicadaquestão.Emprimeirolugar,re letisobre o modo como o pergaminho caíra em minha posse. O ponto ondedescobrimososcarabæusficavanacostadocontinente,cercadeumamilhaalestedailha,eaumacurtadistânciaacimadalinhadamaréalta.Quandoopeguei, leveiumadolorosamordida, oque fez comqueodeixasse cair.Júpiter, comsua cautela costumeira, antesde seguraro inseto,quevoarapara seu lado, olhou em torno àprocuradeuma folha ouqualquer coisadessanaturezacomqueenvolvê-lo.Foinesseinstantequeseusolhos,bemcomoosmeus,pousaramsobreoretalhodepergaminho,queentãosupusser um papel. Estava semienterrado na areia, uma ponta se projetando.Junto ao ponto onde o encontramos, notei parte do casco do que pareciater sido o escaler de algum navio. Os destroços pareciam jazer ali haviamuito tempo; pois a semelhança com um madeiramento de embarcaçãomalsepodiaidentificar.“Bem,Júpiterapanhouopergaminho,embrulhouobesouroeodeupara

mim. Logo em seguida começamos a voltar e, no caminho, encontrei otenenteG——.Mostrei-lheoinsetoeeleinsistiuquelhepermitisselevá-loconsigoparaoforte.Quandoconsenti,en iou-onamesmahoranobolsodeseucolete,semopergaminhoemqueestiveraenvolto,equeeucontinueiasegurar na mão durante sua inspeção. Talvez tenha receado que eumudasse de ideia e julgasse a melhor coisa assegurar logo o achado—sabequãoentusiasmadoeleéacercadequalquerassuntoligadoàHistóriaNatural. Ao mesmo tempo, sem que atinasse com o fato, devo terdepositadoopergaminhoemmeuprópriobolso.“Hádelembrarquenomomentoemquefuiatéamesacomopropósito

de fazer um esboçodo besouro, não encontrei papel onde geralmente osguardo.Procureinagavetaenãoencontreinenhumali.Apalpeiosbolsos,esperandoencontrar talvezumavelha carta—e entãominhamão tocouno pergaminho. Detalho assim o modo preciso como ele caiu em minhaposse;poisascircunstânciasmeimpressionaramcomforçapeculiar.“Sem dúvida, dirá que sou dado a fantasias — mas eu já havia

estabelecido um tipo derelação. Eu juntara dois elos de uma grandecadeia.Haviaumboteenterradono litorale,nãomuito longedobote,umpergaminho —não um papel — com um crânio nele representado. Comcerteza vaime perguntar, 'Qual a relação?'. Respondo que o crânio, ou acaveira, é o notório emblema da pirataria. A bandeira da caveira é içada

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emtodasassuasinvestidas.“A irmei queo retalho eradepapiro, nãopapel.Opapiro é durável—

quase imperecível. Assuntos de pouca importância raramente sãoconsignados ao papiro; uma vez que, para os propósitos meramenteordinários de desenhar ou escrever, não é nem de longe tão adequadoquanto o papel. Essa consideração sugeriu algum signi icado — algumarelevância—nacaveira.Nãopudedeixardenotar,alémdisso,a formadopapiro. Embora um de seus cantos tivesse sido, por algum acidente,destruído, dava para perceber que a forma original era oblonga. Eraexatamente o tipo de retalho, na verdade, que poderia ter sido escolhidopara documentar algo — para fazer o registro de alguma coisa a serlembradapormuitotempoecuidadosamentepreservada.”“Mas”, interpus, “você disse que o crânio não estava no papiro quando

fezodesenhodobesouro.Como,então,estabeleceuqualquerrelaçãoentreoboteeocrânio—umavezqueeste,segundovocêmesmoadmitiu,deveter sido desenhado (sabe Deus como ou por quem) em algum períodosubsequenteaoseuesboçodoscarabæus?”“Ah,emtornodissogiratodoomistério;emboraosegredo,nesseponto,

eu tivesse relativamente pouca di iculdade em solucionar. Meus passosforamseguros,esópodiamconduziraumúnicoresultado.Raciocinei,porexemplo, assim: Quando desenhei oscarabæus, não havia crânio algumvisível no pergaminho. Após completar meu desenho, passei-o a você, eiquei observando atentamente até me devolvê-lo.Você, decerto, nãodesenhou o crânio, e não havia mais ninguém presente para fazê-lo. Demodoquenãofoifeitoporintervençãohumana.Etodaviafoifeito.“Nesseestágiodeminhas re lexões, empenhei-meemme lembrar, e de

fato lembrei-me, com perfeita nitidez, de cada incidente ocorrido noperíodo emquestão. Fazia frio (ah, que acidente raro e feliz!), e um fogoardia na lareira. Eu estava acalorado pelo exercício e sentei-me perto damesa. Você, entretanto, puxara uma cadeira para junto da lareira. Assimquepusopergaminhoemsuamão,evocêestavanoatodeinspecioná-lo,Wolf, o terra-nova, entrou e saltou sobre seus ombros. Com sua mãoesquerda, o acariciou e omanteve à distância, enquanto suamão direita,segurandoopergaminho,pôdepender frouxamenteentre seus joelhos, eemestreitaproximidadecomofogo.Acertaalturaimagineiqueachamaoalcançara,eestavaprestesaadverti-lo,mas,antesquepudessefalar,vocêo recolheu, e passou a examiná-lo. Quando considerei todas essasparticularidades, nãoduvidei sequer por ummomento queocalor fora o

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agente que trouxera à luz, sobre o pergaminho, o crânio que ali videsenhado. Está bem ciente de que tais preparados químicos existem, eexistiram desde sempre, pormeio dos quais é possível escrever seja empapel, seja em velino, de modo que os sinais se tornem visíveis apenasquando submetidos à ação do fogo. A safra, macerada emaqua regia, ediluídaaquatrovezesseupesoemágua,éàsvezesempregada;umatintaverde resulta do processo. O régulo de cobalto, dissolvido em aquaforte,fornece um vermelho. Essas cores desaparecem a intervalosmais longosoumais curtos após o material escrito esfriar, mas tornam-se aparentescomareaplicaçãodocalor.“Examineientãoacaveiracuidadosamente.Seuscontornosexteriores—

asbordasdodesenhomaispróximasdasbordasdovelino—erammuitomaisnítidas do que as outras. Ficou claro que a ação térmica foraimperfeitaoudesigual. Imediatamenteacendiumachamae submeti cadaárea do pergaminho a um calor ardente. No início, o único efeito foi aacentuação das fracas linhas do crânio; mas, perseverando noexperimento, pouco a pouco tornou-se visível, no canto do fragmento,diagonalmenteopostaaopontoemqueacaveiraestavadelineada,a igurado que imaginei de início ser uma cabra. Um exame mais detido,entretanto,convenceu-medequeaintençãoforadesenharumcabrito.”“Rá!rá!”,exclamei,“parafalaraverdade,nãotenhodireitoalgumderir

devocê—ummilhãoemeioéassuntosériodemaisparaachargraça—mas não tem como estabelecer um terceiro elo em sua cadeia — nãoencontrará qualquer ligação especial entre seus piratas e uma cabra—piratas, bemo sabe,não temnadaa ver comcabras; estaspertencemaodomíniodasfazendas.”“Masacabeidedizerqueafiguranãoeradeumacabra.”“Bom,umcabrito,pois—dánomesmo,praticamente.”“Praticamente, mas não exatamente”, disse Legrand. “Deve ter ouvido

falar de um certocapitão Kidd. Na mesma hora olhei para a igura doanimalcomoumaespéciedetrocadilhoouassinaturahieroglífica.35Repito,assinatura; pois sua posição no velino sugeria essa ideia. A caveira nocanto diagonalmente oposto tinha, igualmente, a aparência de um timbreou sinete.Mas iquei extremamente incomodado com a ausência de tudomais—do corpusdemeu imaginadodocumento—do textoparaomeucontexto.”“Presumo que esperava encontrar uma carta entre o timbre e a

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assinatura.”“Algonessalinha.Ofatoéquemesentiirresistivelmenteafetadoporum

pressentimento de alguma vasta fortuna iminente.Mal sei dizer por quê.Talvez, a inal, fosse antes um desejo do que uma crença verdadeira; —massabequeastolaspalavrasdeJúpiter,sobreoescaravelhoserdeouromaciço,exerceramumefeitonotávelemminhafantasia?Eentãoasériedeacidentes e coincidências—estas foramdeveras extraordinárias.Percebecomofoimeroacidentequeesseseventostenhamocorridonoúnicodiadoano que foi, ou podia ser, su icientemente frio para o fogo, e que, sem ofogo, ou sem a intervenção do cachorro no preciso momento em queapareceu, eu jamais teriame dado conta da caveira, e assim jamais teriaentradoempossedotesouro?”“Masprossiga—soupuraimpaciência.”“Bem; naturalmente já escutou os inúmeros relatos que correm— os

milhares de vagos rumores que circulam sobre dinheiro enterrado, emalgum ponto da costa do Atlântico, por Kidd e seus comparsas. Taisrumores decerto algum fundamentonos fatos tiveram. E que os rumorestenham existido por tanto tempo e com tal continuidade só poderia serresultado,assimmeparece,dacircunstânciadeotesouroenterradoaindacontinuarsepultado.CasoKiddhouvesseocultadosuapilhagemporalgumtempo,edepoisarecuperado,osrumoresdi icilmenteteriamchegadoaténósemsuapresenteformainvariável.Perceberáqueashistóriascontadassão acerca de caçadores de tesouros, não de homens que encontraramtesouros. Parecia-me que algum acidente — digamos, a perda de umdocumento indicando sua localização — o teria privado dos meios deresgatá-lo, e que esse acidente teria chegado aos ouvidos de seusseguidores,quedeoutromodotalveznuncaviessemasabersequerqueotesouroforaescondido,eque,ocupando-seemvãodeencontrá-lo,devidoasuastentativasàscegas,haviamdadoorigeminicialmente,edepoisfeitocircularuniversalmente,osrelatosquesãohojetãocomuns.Jáouviudizerdealgumtesouroimportanteserdesenterradoaolongodolitoral?”“Nunca.”“Masquea fortunaamealhadaporKiddera imensa, issoébemsabido.

Desse modo supus que a terra continuava a encerrá-la; e di icilmenteicarásurpresoquandoeulhecontarquesentiumaesperança,beirandoacerteza,dequeopergaminhotãoestranhamenteencontradocontinhaumregistroperdidodolocaldodepósito.”

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“Mascomoprosseguiu?”“Aproximeiovelinooutravezdofogo,apósaumentarocalor;masnada

apareceu. Então achei possível que a cobertura de sujeira pudesse teralguma relação com o fracasso; de modo que lavei cuidadosamente opergaminho derramando água quente sobre ele e, tendo feito isso,depositei-o numa frigideira de metal, com o crânio para baixo, e pus apanela sobre os carvões em brasa de um fogão. Em poucos minutos, apanela tendo icado inteiramente aquecida, retirei o documento e, paraminha inexprimível alegria, vi que estavamarcado, em inúmeros lugares,comoquepareciamser igurasdispostasem linhas.Voltei amergulhá-lonapanelaedeixeitranscorrermaisumminuto.Quandootirei,estavatudoexatamentetalcomovêagora.”Nisso Legrand, tendo reaquecido o pergaminho, submeteu-o a minha

inspeção. Os seguintes caracteres estavam grosseiramente traçados, comtintavermelha,entreacaveiraeacabra:

“Mas”, disse eu, devolvendo-lheopedaçodepergaminho, “continuo tãono escuro quanto antes. Estivessem todas as joias de Golconda à minhaesperasobacondiçãodequeeusolucionasseesseenigma,estoucertodequeseriaincapazdeobtê-las.”“Econtudo”,a irmouLegrand,“asoluçãonãoédemodoalgumtãodi ícil

quantovocêpoderia imaginaraumprimeiroexameapressadodossinais.Esses sinais, como qualquer um pode facilmente deduzir, formam umacifra—ouseja,elestransmitemumsigni icado;porém,atéondeseisobreKidd, não imagino que fosse capaz de construir criptograma dos maiscomplicados. Tive certeza, na mesma hora, de que este era de um tiposimples—demodotal,entretanto,quepareceria,paraorudeintelectodeummarujo,absolutamenteinsolúvelsemachave.”“Evocêdefatoodecifrou?”“Prontamente; já resolvi outros dez mil vezes mais complicados. As

circunstâncias, e uma certa inclinação de espírito, levaram-me a me

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interessar por tais quebra-cabeças, e é de se duvidar se o engenhohumano consegue construir um enigma de algum tipo que o engenhohumanonãopossa,comodevidoempenho,resolver.Naverdade,umaveztendo estabelecido os sinais ligados e legíveis, mal parei para pensar nameradificuldadederevelarsuasignificação.“Nopresente caso—naverdade, em todo casode escrita secreta—a

primeiraquestãodizrespeitoà língua emqueacifraestá;poisabasedasolução, em certa medida, sobretudo, no que diz respeito às cifras maissimples,dependedogêniodoidiomaparticular,variandosegundoele.Emgeral, àquele que busca uma solução, não há alternativa a não serexperimentar (orientado pelas probabilidades) cada língua de seuconhecimento,atéchegaràquesejaverdadeira.Mascomestacifradiantede nós, toda di iculdade some graças à assinatura. O trocadilho com apalavra'Kidd'nãofazsentidoemoutralínguaanãoseroinglês.Nãofosseesse detalhe, eu teria iniciado minhas tentativas com o espanhol e ofrancês, sendo as línguas em que um segredo desse tipo muitonaturalmente teria sido escrito por um pirata de mares espanhóis. Domodocomoera,presumiqueocriptogramaestivesseeminglês.“Observe que não há divisões entre as palavras. Se houvesse, a tarefa

teriasidorazoavelmentefácil.Nessecasoeuteriacomeçadocomumcotejoe uma análise das palavras mais curtas, e, caso houvesse ocorrido umapalavradeumasóletra,comoédeverasprovável(um a,'um,uma',ouumI, 'eu', por exemplo), teria dado a solução por assegurada. Mas nãohavendo tal divisão, meu primeiro passo foi determinar as letraspredominantes, bem como a menos frequente. Contando todas, construíumatabela,assim:

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“Ora, em inglês, a letra que ocorre commaior frequência é o e. Depoisdela,asucessãoéaseguinte:aoidhnrstuycfglmwbkpqxz. Oe,entretanto, predomina tão notavelmente que raramente se vê umasentençaindividualdequalquerextensãoemqueessaletranãoconstituaseusinalpredominante.“Eisque temosaqui,então, logodesaída,abaseparaalgomaisdoque

umameraconjectura.Ousogeralquepodeser feitoda tabelaéóbvio—mas, nesta cifra em particular, devemos recorrer a seu apoio apenasparcialmente. Como nosso sinal predominante é 8, começaremospresumindoqueelerepresenteo edoalfabetonatural.Paraveri icaressasuposição,vamosobservarseo8podeservistomuitasvezesemduplas—pois oe aparece frequentemente dobrado no inglês, em palavras como'meet','fleet', 'speed', 'seen', 'been', 'agree'etc.Nopresenteexemplo,vemosesse caractere duplicado nada menos que cinco vezes, embora ocriptogramasejabreve.“Vamos presumir que o 8, então, seja e. Ora, de todas aspalavras de

nossa língua,oartigode inido 'the' é amaisusual; vamosveri icar,dessemodo,senãohárepetiçõesdequaisquer trêssinais,namesmaordemdecolocação,oúltimodelessendo8.Sedescobrimosrepetiçõesdetaisletras,assimarranjadas,elasmuitoprovavelmenterepresentarãoapalavra' the'.Aumainspeção,encontramosnãomenosdoquesetearranjosdessetipo,

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ossinaissendo;48.Podemospresumir,dessemodo,queopontoevírgularepresenta t, que o 4 representah e que o 8 representa e — o últimoestandojábemconfirmado.Assim,umgrandepassofoidado.“Porém, tendo estabelecido uma única palavra, estamos capacitados a

estabelecerumpontovastamenteimportante;ouseja,diversoscomeçosetérminos de outras palavras. Vamos atentar, por exemplo, ao penúltimocasoemquea combinação ;48ocorre—nãomuito longedo imdacifra.Sabemos que o ponto e vírgula imediatamente posterior é o começo deumapalavra, e, dos seis sinais sucedendo esse 'the', temos conhecimentodenãomenos que cinco. Vamos então substituir esses sinais pelas letrasquesabemosqueelesrepresentam,deixandoumespaçoparaa incógnita—

teeth.

“Aqui icamos capacitados, de imediato, a descartar o ' th' como nãoformandopartealgumadapalavraquecomeçacomoprimeiro t;umavezque, experimentando todoo alfabeto à procuradeuma letra adequada àvaga, percebemos que palavra alguma pode ser formada de que esse thtomeparte.Ficamosdessemodolimitadosa

tee,

e, repassando o alfabeto, se necessário, como antes, chegamos à palavra'tree' como única leitura possível. Assim obtemos outra letra, r,representadapelo(,comaspalavras'thetree'emjustaposição.“Observando pouco além dessas palavras, a uma curta distância, mais

uma vez vemos a combinação ;48, e a empregamos a título deencerramento do que imediatamente a precede. Desse modo temos oarranjo:

thetree;4(‡?34the,

ou,substituindoasletrasnaturais,ondeconhecidas,lê-seassim:

thetreethr‡?3hthe.

“Ora,se,emlugardossinaisdesconhecidos,deixamosespaçosvazios,ouossubstituímosporpontinhos,assimlemos:

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thetreethr…hthe,

demodo que a palavra 'through' se evidencia namesma hora.Mas essadescobertanosdátrêsnovasletras,o,ueg,representadospor‡,?e3.“Procurandoagora, limitadamente, em toda a cifrapor combinaçõesde

sinaisconhecidos,descobrimos,nãomuitolongedoinício,essearranjo,

83(88,ouseja,egree,

que, indubitavelmente, é a conclusão da palavra 'degree', o que nos dáoutraletra,d,representadapor†.“Quatroletrasalémdapalavra'degree'percebemosacombinação

;46(;88*

“Traduzindo os caracteres conhecidos, e representando osdesconhecidosporpontos,comoantes,assimlemos:

th.rtee.

umarranjoimediatamentesugestivodapalavra' thirteen'e,maisumavez,nosmuniciandodeduasnovasletras,ien,representadaspor6e*.“Atentandoagoraparaoiníciodocriptograma,vemosacombinação,

53‡‡†.

“Traduzindo,comoantes,obtemos

.good,

que nos assegura que a primeira letra é A, e que as primeiras duaspalavrassão'Agood'.“Paraevitarconfusão,éomomentoagoradeorganizarnossachave,até

ondedesvendada,naformadeumatabela.Dessemodo:

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“Temos, logo, não menos do que dez das letras mais importantesrepresentadas, e será desnecessário prosseguir com os detalhes dasolução.Disseo su icientepara convencê-lodeque cifrasdessanaturezasão facilmente solucionáveis, e proporcionei-lhe alguma compreensão darationale envolvida em seu desenvolvimento. Mas esteja certo de que oexemplar diante de nós pertence à espéciemais simples de criptograma.Sómerestaagoramostrar-lheatraduçãocompletadossinaisencontradosnopergaminho,apósdesvendados.Ei-laaqui:'A good glass in the bishop's hostel in the devil's seat twenty-one degrees

andthirteenminutesnortheastandbynorthmainbranchseventhlimbeastside shoot from the left eye of the death's-head a bee-line from the treethroughtheshotfiftyfeetout.'36

“Mas”, disse eu, “o enigma parece ainda em tão má situação quantoantes. Como é possível extrair signi icado de todo esse palavreado sobre'devil'sseats','death's-heads'e'bishop'shotels'?”“Confesso”,respondeuLegrand,“queaquestãoaindaguardaumgrave

aspecto,quandoencaradasobumolharcasual.Meuprimeiroesforçofoiode dividir a sentença na divisão natural pretendida pelo autor docriptograma.”“Querdizer,inserirapontuação?”“Algodogênero.”“Mascomoépossívelefetuartalcoisa?”“Re letiqueoautor izeraquestãodeen ileiraraspalavrastodasjuntas

semdivisão,demodoaampliaradi iculdadedasolução.Ora,umhomemnão muito arguto, perseguindo um objetivo assim, quase certamenteexceder-se-ianaquestão.Quando,nocursodesuacomposição,chegassea

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umainterrupçãoemseuassuntoquerequererianaturalmenteumapausa,ou um ponto, ele icaria excessivamente inclinado a agrupar seus sinaisnesse lugar mais do que a proximidade normal pediria. Se observar omanuscrito de que ora tratamos, detectará facilmente tais casos deaglutinação incomum. Agindo segundo esse palpite, iz a divisão doseguintemodo:“ 'A good glass in the Bishop's hostel in the Devil's seat — twenty-one

degrees and thirteen minutes — northeast and by north — main branchseventhlimbeastside—shootfromthelefteyeofthedeath's-head—abee-linefromthetreethroughtheshotfiftyfeetout.'”“Mesmoessadivisão”,disseeu,“aindamedeixanoescuro.”“Também eu iquei no escuro”, replicou Legrand, “por alguns dias;

durante os quais iz diligentes investigações, pelos arredores da ilha deSullivan, de qualquer prédio atendendo pelo nome de 'Bishop's Hotel';pois, é claro, descartei a obsoleta palavra 'hostel'. Sem obter informaçãoalguma a respeito, estava prestes a ampliar minha esfera de busca, eproceder de maneira mais sistemática, quando, certa manhã, veio-me àcabeça, muito repentinamente, que esse 'Bishop's Hostel' podia serreferência a uma velha família, de nome Bessop, que, em temposimemoriais, fora possuidora de uma antiga casa-grande, cerca de seisquilômetrosaonortedailha.Detalmodoquemedirigiàfazendaevolteiaempreenderminhasinvestigaçõesentreosvelhosnegrosdolocal.Atéqueinalmenteumadasmulheresmais idosasa irmouterouvido falardeumcertolugarconhecidocomoBessop'sCastleequeachavasercapazdemeguiar até ele, aindaquenão se tratassede castelonenhum,nem taverna,massimdeumgranderochedo.“Ofereci-mepara lhepagarumaboa recompensapelo seu incômodoe,

após algumas objeções, ela consentiu em me acompanhar até o local.Encontrando-o semmuita di iculdade, dispensei-a e procedi a um exameda paisagem. O 'castelo' consistia de uma composição irregular depenhascoserochedos—umdestesúltimossendodeverasnotávelporsuaaltura, bem como pelo aspecto isolado e arti icial. Galguei-o até o topo eentãomesentiinteiramenteperdidoacercadoquefazeremseguida.“Enquantome entregava a re lexões,meus olhos pousaram sobre uma

estreitasaliênciana face lestedorochedo,a cercadeummetro talvezdocume onde me encontrava. A saliência se projetava a uns cinquentacentímetrose,emlargura,nãoexcediatrêspalmos,aopassoqueumnichono despenhadeiro logo acima emprestava-lhe uma grosseira semelhança

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com uma dessas cadeiras de espaldar côncavo usadas por nossosantepassados. Não tive dúvida de que ali estava o 'assento do diabo' aoqualaludiraomanuscrito,eagoraeujulgavacaptarplenamenteosegredodoenigma.“O'bomvidro',eusabia,nãopodiasereferiraoutracoisaquenãouma

luneta; pois apalavra 'vidro' raramente é empregada emqualquer outrosentidopeloshomensdomar.Ora,ali,euopercebinamesmahora,haviauma luneta a ser usada, e um ponto de vista preciso,não admitindovariação alguma, de onde usá-la. Tampouco hesitei em acreditar que asexpressões 'vinte e um graus e treze minutos' 37 e 'nordeste quarta anorte' eram planejadas como orientações para o nivelamento da luneta.Muito empolgado com essas descobertas, corri para casa, encontrei umalunetaevolteiparaarocha.“Acomodei-me na saliência e descobri que era impossível manter-me

sentado a não ser numa determinada posição particular. Esse fatocon irmouminha ideia preconcebida. Procedi ao uso da luneta. Claro, os'vinte eumgraus e trezeminutos' sópodiam referir-se à elevação acimado horizonte visível, uma vez que a direção horizontal era claramenteindicada pelas palavras 'nordeste quarta a norte'. Essa última direçãodetermineinamesmahoracomoauxíliodeumabússoladebolso;então,apontandoa lunetaomaispróximodeumângulodevinteeumgrausdeelevação que me era possível fazer por palpite, movi o instrumentocuidadosamente para cima e para baixo, até minha atenção ser captadapor uma fenda ou abertura circular na folhagem de uma enorme árvorequedominavaasdemaisàdistância.Nocentrodafendapercebiumpontobranco,masnãopude,inicialmente,distinguirdoquesetratava.Ajustandoo foco da luneta, olhei outra vez, e então percebi que era um crâniohumano.“Após essa descoberta, iquei con iante em considerar o enigma

resolvido; pois a expressão 'galho principal, sétimo ramo, lado leste' sópodia aludir à posição do crânio na árvore, ao passo que 'atirar do olhoesquerdo da caveira' também admitia uma única interpretação relativa àbuscado tesouroenterrado.Percebiquea ideiaeradeixarcairumabalapeloolhoesquerdodocrânio,equeumalinhadeabelha,38 ou,emoutraspalavras,umalinhareta,traçadaapartirdopontomaispróximodotroncodiretamenteaté'otiro'(ouopontoondecaiuabala),edaíesticadaaumadistânciadecinquentapés,indicariaumpontodefinido—esobessepontoacheipelomenospossívelquealgodevalorhouvessesidoescondido.”

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“Tudo isso”, disse eu, “está sumamente claro e, embora engenhoso,permanece simples e cristalino. Quando deixou o Hotel do Bispo, o quesucedeu?”“Bom,tendocuidadosamentememorizadoalocalizaçãodaárvore,tomei

o rumodecasa.No instanteemquedeixeio 'assentododiabo',porém,afenda circular sumiu; foi-me impossível sequer vislumbrá-la, para ondequer que me virasse. O que me parece a maior engenhosidade de todoessenegócioéo fato(poisrepetidos testesconvenceram-medeque é umfato)dequeaaberturacircularemquestãonãoévisíveldenenhumoutropontodevistaanãosercomoqueépossibilitadopelaestreitasaliêncianafacedopenhasco.“Nessaexpediçãoao 'HoteldoBispo' fui acompanhadopor Júpiter,que

estivera,semdúvida,aobservar,duranteassemanasanteriores,ocaráterabstraídodemeu comportamento, eque tomava todo cuidadodenãomedeixarsó.Mas,nodiaseguinte,tendoacordadobemcedo,conseguievadir-me a sua vigilância, e saí pelas colinas à procura da árvore. Depois degrandeesforçoconseguiencontrá-la.Quandochegueiemcasaànoite,meucriado manifestou sua intenção de aplicar-me umas chibatadas. Sobre orestodaaventura,creioqueestátãofamiliarizadoquantoeumesmo.”“Suponho”, falei, “queerrouopontonaprimeiratentativadeescavação

devidoàestupidezde Júpiteremdeixarqueoescaravelhodescessepeloolhodireito,enãopeloesquerdo,docrânio.”“Precisamente. O equívoco ocasionou uma diferença de cerca de duas

polegadas e meia39 no 'tiro' — ou seja, na posição do pino próximo àárvore;ecasootesouroestivesseenterradosobo'tiro',oerroteriasidodepouca importância; mas o 'tiro' combinado ao ponto mais próximo daárvoreerammeramentedoispontosparaadeterminaçãodeumalinhadedireção;claroqueoerro,embora trivialnopontodepartida,aumentouàmedida que prosseguimos ao longo da linha, e no momento em quechegamos à marca de cinquenta pés, fomos despistados totalmente. Nãofosse minha convicção inabalável de que o tesouro estava ali de fatoenterradoemalgumlugar,nossoesforçopoderiatersidotodoeleemvão.”“Presumo que o capricho de usar umcrânio— ou de deixar cair uma

balapeloolhodo crânio— foi sugeridoaKiddpelabandeirapirata. Semdúvida,eleenxergouumaespéciedecoerênciapoéticaemrecuperarseudinheiroporintermédiodessesímboloominoso.”“Podeser;mesmoassim,nãoconsigodeixardepensarqueobom-senso

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tinhatantoavercomaquestãoquantoacoerênciapoética.Paraservisíveldoassentododiabo,eranecessárioqueoobjeto,sepequeno,fossebranco;e não há nada como um crânio humano para reter e até acentuar suabrancurasobexposiçãoatodasasvicissitudesdoclima.”“Massuagrandiloquência,esuacondutaaobalançarobesouro—que

coisamais esquisita! Tive certeza de que estava louco. E por que insistiuemdeixarcairoescaravelho,emvezdeumabala,pelocrânio?”“Bem, para ser franco, iquei um pouco irritado com sua evidente

descon iança relativa a minha sanidade, e desse modo determinei-me apuni-lo calmamente, ao meu próprio modo, com uma dose calculada demisti icação.Poressemotivobalanceiobesouro,efoiporessarazãoqueoizpenderdaárvore.Umaobservaçãosuaarespeitodograndepesodelesugeriu-meestaúltimaideia.”“Certo, entendo; e agora há apenas mais um ponto que ainda me

confunde.Oquepensardaquelesesqueletosencontradosnoburaco?”“Essaéumaquestãoquenãosoumaiscapazderesponderdoquevocê

próprio.Parecehaver,entretanto,umaúnicaexplicaçãoplausívelparaela— e contudo é pavoroso acreditar numa tal atrocidade como a que estáimplicada em minha sugestão. Está claro que Kidd — se Kidd de fatoescondeuessetesouro,doquenãomerestadúvida—estáclaroquedevetertidoassistêncianatarefa.Mas,umavezconcluídaaescavação,podeterjulgado conveniente eliminar todos que participaram de seu segredo.Talvezumpardepancadascomapicaretatenhasidosu iciente,enquantoseusassistentesseocupavamdoburaco;talvezumadúzia—quempoderádizer?”

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OSASSASSINATOSDARUEMORGUE40

QuecançõescantavamasSereias,ouquenomeassumiuAquilesquandoseescondeuentreasmulheres,emboraquestões

enigmáticas,nãoestãoalémdetodaconjectura.SirThomasBrowne

As características intelectuais tidas como analíticas são, em si mesmas,pouco suscetíveis de análise. Nós as apreciamos apenas em seus efeitos.Sabemosaseurespeito,entreoutrascoisas,queconstituemsempreparaseu possuidor, quando possuídas em grau imoderado, fonte do maisintensoprazer.Assimcomoohomemforteexultaemsuacapacidade ísica,deleitando-se em exercícios que exigem a ação de seus músculos,igualmente se rejubila a mente analítica na atividade moral dedeslindaralgo. Seu dono extrai prazer até mesmo das ocupações mais triviaisexigindo a intervenção de seus talentos. É um apreciador de enigmas,charadas, hieróglifos; exibe na solução de cada um deles um grau deacumen que para a percepção comum assume ares sobrenaturais. Seusresultados, obtidos pelo próprio espírito e essência do método, têm, naverdade,todoumaspectodeintuição.A faculdade de resolução é possivelmente bastante fortalecida pelo

estudodamatemáticae,sobretudo,poresseramomaiselevadodela,que,injustamente,emeramenteporcontadesuasoperaçõesretrógradas, temsidochamado,comoqueparexcellence,deanálise.Contudo,calcular,emsi,não é analisar. O jogador de xadrez, por exemplo, faz uma coisa semrecorrer à outra. Segue-se que o jogodo xadrez, em seus efeitos sobre ocaráter intelectual, é amplamente incompreendido. Não escrevo aqui umtratado, mas estou simplesmente prefaciando uma narrativa até certoponto peculiar com observações razoavelmente aleatórias; vou, dessemodo, aproveitar o ensejo para a irmar que as faculdadesmais elevadasdo intelecto re lexivo são mais decididamente e mais proveitosamentepostas à prova pelo despretensioso jogo de damas do que por toda aelaborada frivolidade do xadrez. Neste último, em que as peças têmmovimentosdiferentesebizarros,comvaloresdiversosevariáveis,oqueéapenas complexo é tomado (um erro nada incomum) por profundo. Aatenção nele desempenhapoderosopapel. Se ela relaxa por um instante,um descuido é cometido, resultando em prejuízo ou derrota. Os

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movimentos possíveis sendo não apenas variados como tambémintrincados,aschancesdetaisdescuidossemultiplicam;emnovedecadadez casos é antes o jogadormais concentrado do que omais arguto quevence.Nojogodedamas,pelocontrário,emqueosmovimentossãoúnicose apresentam pouca variação, em que a probabilidade de algumainadvertência é menor e a mera atenção é comparativamente menosexigida, as vantagens conquistadas de parte a parte devem-se àsuperioridade deacumen.Parasermenosabstrato.Vamossuporumjogodedamasemqueaspeças icaramreduzidas aquatrodamas, e emque,decerto, nenhum descuido é de esperar. Fica óbvio aqui que a vitória sópodeserdecidida(os jogadoresestandoabsolutamente iguais)poralgummovimentorecherché,41 resultante de uma forte aplicação do intelecto.Privadados recursosordinários, amente analíticapenetrano espíritodeseuoponente,identi ica-secomeleenãorarodessemodoenxerga,deumgolpedevista,osúnicosmétodos(àsvezesdefatoabsurdamentesimples)mediante os quais pode induzi-lo ao erro ou precipitá-lo a dar um passoemfalso.Hámuito jáseobservoua in luênciadouísteparaoquedenominamos

capacidade do cálculo; e sabe-se que homens damais elevada ordem deintelectodeleextraemumdeleiteaparentementeextraordinário,aopassoqueevitamoxadrezportê-locomofrívolo.Semamenorsombradedúvidanão há nada de natureza similar tão enormemente desa iador para afaculdadedeanálise.Omelhorenxadristadetodaacristandadetalvezsejapoucomaisdoqueomelhor jogadordexadrez;maspro iciêncianouísteimplica capacidade para o sucesso em todas essas empreitadasimportantes em que a mente duela contra a mente. Quando digopro iciência, re iro-me àquela perfeição no jogo que inclui umacompreensão detodas as fontesdeondepode serderivadauma legítimavantagem. Essas são não apenas múltiplas, mas também multiformes, ejazem com frequência entre recessos do pensamento completamenteinacessíveis ao entendimento ordinário. Observar atentamente é lembrardistintamente; e, até aí, o enxadrista concentrado se sairá perfeitamentebemnouíste;poisqueasregrasdeHoyle(elasprópriasbaseadasnomeromecanismo do jogo) são su icientemente e em geral compreensíveis. Demodoquepossuirumaboamemóriaeproceder“comorezaacartilha”sãocoisas comumenteconsideradascomoo suprassumodobem jogar.Maséemquestõesquevãoalémdos limitesdameraregraqueahabilidadedamente analítica se evidencia. Seu possuidor faz, em silêncio, um sem-

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número de observações e inferências. Igualmente o fazem, talvez, seuscolegas; e a diferençana extensãoda informaçãoobtida residenão tantona validade da inferência quanto na qualidade da observação. Oconhecimento necessário é odo que observar. Nosso jogador não serestringe em absoluto ao jogo; tampouco, por ser este o objeto, rejeitadeduçõesorigináriasdefatoresexternosaojogo.Eleexaminaosemblantede seu parceiro, comparando-o cuidadosamente com o de cada um dosoponentes.Consideraomodocomoestãodispostasascartasemcadamão;muitasvezescalculandoos trunfoseashonrasdecadaumpelosolhareslançadosasuasprópriasmãos.Observacadavariaçãonosrostosàmedidaque o jogo progride, amealhando uma reserva de pensamento pelasdiferentes expressões de certeza, surpresa, triunfo ou decepção. Pelomodocomorecolheumavazaavaliaseapessoaqueofazpodeconseguiroutra daquele naipe. Reconhece umblefe pela atitude comque a carta éjogadanamesa.Umapalavracasualou inadvertida;umacartaquecaiouvira acidentalmente, com a subsequente ansiedade ou descaso no modocomo é ocultada; a contagemdas vazas, com a ordemde sua arrumação;constrangimento, hesitação, impaciência ou agitação— tudo proporciona,parasuapercepçãoaparentementeintuitiva,indíciosdoverdadeiroestadode coisas.Asduasou trêsprimeiras rodadas tendo sido jogadas, ele estáde plena posse dos conteúdos de cadamão e, daí por diante, baixa suascartas com uma precisão de propósito tal que é como se o restante dogrupohouvesseviradoseuslequesparaoladocontrário.A capacidade analítica não deve ser confundida com a simples

engenhosidade; pois embora o dono de uma mente analítica sejanecessariamente engenhoso, o homem engenhoso é muitas vezesnotavelmente incapaz de análise. A capacidade construtiva oucombinatória, mediante a qual a engenhosidade normalmente semanifesta,eàqualos frenólogos(acreditoqueerroneamente)atribuíramum órgão separado, supondo-a uma faculdade primitiva, tem sido tãofrequentementenotadanesses cujo intelectoem tudomaisbeira a idiotiaque issoatraiuaatençãogeraldosmoralistas.Entreaengenhosidadeeacompetência analítica existe uma diferença ainda maior, na verdade, doqueentreafantasiaeaimaginação,masdeumcarátermuitoestritamenteanálogo.Veri icar-se-á,comefeito,queosdotadosdeengenhosãosemprefantasiosos e que osverdadeiramente imaginativos nunca são outra coisaquenãodadosàanálise.Anarrativaquesegueirásea igurarao leitormaisoumenoscomoum

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comentáriosobreasproposiçõesatéaquiaventadas.Residindo em Paris durante a primavera e parte do verão de 18—,

traveiconhecimentocomumcertoMonsieurC.AugusteDupin.Essejovemcavalheiroeradeexcelente,naverdade,deilustrefamília,porém,devidoaumasériedeadversidades, icarareduzidoatalpobrezaqueaenergiadeseu caráter sucumbira sob o peso disso e ele desistira de se devotar aomundooudeprocurarrecuperarafortunaperdida.Porobséquiodeseuscredores, continuava possuidor de um pequeno resquício de seupatrimônio;e, comarendadaíadvinda, conseguia,graçasaumarigorosaeconomia,prover-sedonecessárioparaviver, semsemolestarporcoisassupér luas.Oslivros,naverdade,eramseuúnicoluxo,eestesemParissãofacilmenteobtidos.Conhecemo-nos numa obscura biblioteca na Rue Montmartre, onde o

acasodeestarmosambosàprocuradomesmolivromuiraroemuinotávelnos uniu emmais estreita relação. Víamo-nos com frequência. Interessei-me profundamente pela breve história familiar que pormenorizou paramimcomtodaessasinceridadequesepermitemosfrancesessemprequeseutemaseresumemeramenteasuapessoa.Também iqueipasmocomavasta amplitude de suas leituras; e, acima de tudo, entusiasmei-mevivamentecomoexuberante fervoreovívido frescordesua imaginação.AlmejandoemPariscertosobjetivos taiscomoeuentãoalmejava,percebique a companhia daquele homem constituiria para mim um tesouro devalorinestimável;econ idencie-lheessesentimentocomtodaafranqueza.Após algum tempo icou acertado quemoraríamos juntos duranteminhaestada na cidade; e, como minhas circunstâncias mundanas eramrazoavelmentemenoscomplicadasqueasdele,foicomseuconsentimentoquemeencarregueidealugaredecorar,emumestiloqueseadequavaàmelancolia um tanto fantástica de nosso temperamento em comum, umamansão dilapidada e grotesca, havia muito abandonada devido asuperstiçõescujoteor jamais indagamos,eequilibrando-seprecariamenterumo ao colapso em uma área afastada e desolada do Faubourg St.Germain.Houvesse a rotinadenossa vidanesse lugar chegado ao conhecimento

do mundo, teríamos sido reputados loucos — embora, talvez, loucos denatureza inofensiva. Nossa reclusão era absoluta. Não recebíamos visitaalguma. Na verdade, a localização de nosso refúgio fora cuidadosamentemantida em segredo demeus próprios antigos companheiros; e já haviamuitos anos que Dupin deixara de ver e ser visto em Paris. Vivíamos

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exclusivamenteparanósmesmos.Era uma excentricidade de gosto emmeu amigo (pois que outro nome

daràquilo?)serumenamoradodaNoiteemsimesma;eaessabizarrerie,assimcomoatodasasdemais,eucalmamenteacedi;entregando-measeusdesvairados caprichos com perfeitoabandon. Mas a negra divindade nãopoderia nos fazer companhia permanente; então, simulávamos suapresença. Aos primeiros raios da aurora fechávamos todas as maciçasvenezianas de nossa casa, acendendo um par de círios que, fortementeperfumados, lançavam apenas a luz mais débil e espectral. Com a ajudadeles enchíamos nossas almas de sonhos — lendo, escrevendo ouconversando,atésermosadvertidospelorelógiodachegadadasgenuínasTrevas. Então passeávamos pelas ruas, de braços dados, continuando osassuntos do dia, ou perambulando para muito longe até avançada hora,buscando,emmeioàsfantásticasluzesesombrasdacidadepopulosa,essain inidade de excitação mental que a tranquila observação podeproporcionar.Em momentos como esse, eu não podia deixar de notar e admirar

(embora, dada sua fecunda idealidade, estivessepreparadopara esperartalcoisa)umapeculiarcapacidadeanalíticaemDupin.Elepareciatambémextrair um vivo deleite em exercê-la — quando não propriamente emexibi-la —, e não hesitava em confessar o prazer que disso obtinha.Vangloriava-se para mim, com uma pequena risada, que a maioria doshomens, no que lhe dizia respeito, portava janelas em seus peitos, ecostumava fazer acompanhar tais asserções de provas diretas e assazsurpreendentes de seu conhecimento sobre minha própria pessoa. Seusmodosemmomentoscomoesseeramfrioseabstratos;seusolhos icavamcomumaexpressãovazia;aopassoquesuavoz,emgeraldeummelodiosotenor,erguia-senumagudodesopranoqueteriasoadoinsolentenãofosseo caráter deliberado e inteiramente lúcido da enunciação. Observando-onessesestadosdeespírito,eumuitasvezesmepunhaameditarnaantigailoso iadaAlmaBiparte, emedivertia fantasiandoumduploDupin—ocriativoeoresolutivo.Que não se julgue aqui, com base no que acabei de dizer, que estou

particularizando algum mistério ou redigindo algum romance. O querecentemente descrevi no francês era apenas o resultado de umainteligência exaltada ou, talvez, enferma. Mas do caráter de suasobservações nos períodos em questão um exemplo transmitirá melhor aideia.

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Caminhávamoscertanoiteporumaruasujaecomprida,nosarredoresdo Palais Royal. Estando ambos, aparentemente, perdidos empensamentos, nenhum de nós dissera uma palavra durante pelo menosquinzeminutos.DerepenteDupinquebrouosilênciocomaseguintefrase:“Ele éde fatoumsujeitobempequeno, é verdade, e estariamelhorno

ThéâtredesVariétés.”“Não pode haver dúvida disso”, repliquei, inadvertidamente, e sem

observar de início (de talmaneira estivera absorto em re lexão) omodoextraordináriocomquesuaspalavras izeramcoroàsminhasmeditações.Uminstantedepoiscaíemmimefiqueiprofundamenteestupefato.“Dupin”, disse eu, gravemente, “isso está além deminha compreensão.

Não hesito em dizer que estou perplexo, e mal posso crer em meussentidos.Comoerapossívelquesoubessequeeupensavaem——?”Aquiiz uma pausa, para veri icar se realmente sabia sem sombra de dúvidaquemocupavameuspensamentos.—— “de Chantilly”, disse ele, “por que hesitou? Você re letia consigo

mesmoquesuafiguradiminutanãoeraapropriadaparaatragédia.”Era isso precisamente que compunha o teor de minhas re lexões.

Chantilly era umquondam42 sapateiro da Rue St. Denis que, tendo sidomordidopelobichodoteatro,candidatara-seao rôledeXerxesnatragédiadeCrébillondemesmonome,equeforaalvodenotóriaspasquinadasporseusesforçosdramáticos.“Diga-me,peloamordosCéus”,exclamei,“ométodo—sealgummétodo

há—quelhepossibilitousondarminhaalmanessaquestão.”Naverdade,euestavaaindamaisatônitodoquemedispunhaademonstrar.“Foiofruteiro”,respondeumeuamigo,“queolevouàconclusãodeque

oremendãodesolasnãotinhaalturaparaXerxesetidgenusomne.”43

“Fruteiro!—vocêmedeixapasmo—nãoseidefruteiroalgum.”“Osujeitocomquemdeuumencontrãoquandodobramosarua—cerca

dequinzeminutosatrás,talvez.”Euagoramerecordavaque,defato,umfruteiro,carregandonacabeça

umgrandecestodemaçãs,quasemeatiraraaochão,poracidente,quandodeixávamos a Rue C——para entrar na rua onde ora estávamos;mas oque isso tinha a ver com Chantilly era algo que eu não podiaabsolutamentecompreender.Não havia um isto decharlatanerie emDupin. “Explicarei”, disse ele, “e

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para que possa compreender tudo claramente, retrocederei primeiro aolongo de suas meditações, desde o momento em que lhe falei até o dorencontre com o referido fruteiro. Os elos principais dessa cadeia são osseguintes—Chantilly, Órion, dr.Nichol, Epicuro, estereotomia, pedras docalçamento,fruteiro.”Existem poucas pessoas que não tenham, em algummomento de suas

vidas, buscado se distrair relembrando os passos ao longo dos quaisparticulares conclusões de suas próprias mentes foram alcançadas. Opassatempo é muitas vezes bastante interessante; e aquele que o tentapelaprimeiravez icaatônitocomasaparentementeilimitáveisdistânciaeincoerênciaentreopontodepartidaeoobjetivo inal.Qualnão foi entãominha perplexidade quando escutei o francês dizendo o que acabara dedizer, e quando não pude deixar de admitir que dissera a verdade. Elecontinuou:“Estávamosfalandodecavalos,semelembrocorretamente,poucoantes

dedeixar aRueC——.Esse foi oúltimo tema sobreoqual conversamos.Quando dobrávamos a esquina, um fruteiro, com um grande cesto nacabeça, passando apressadamente por nós, jogou-o contra uma pilha depedrasdepavimentaçãoretiradasdeumtrechodaruaqueestáemobras.Vocêpisounumapedrasolta,escorregou,torceuligeiramenteotornozelo,pareceu irritado ou amuado, murmurou algumas palavras, virou paraolharparaapilhaeprosseguiuemsilêncio.Nãopresteiparticularatençãoao que fez; mas a observação se tornou para mim, ultimamente, umaespéciedenecessidade.“Você manteve os olhos no chão — relanceando, com expressão mal-

humorada, os buracos e sulcosno calçamento (demodoquepercebi quecontinuava pensando nas pedras), até chegarmos à pequena vielachamada Lamartine, que fora pavimentada, a título de experimento, comessesblocos justapostoserebitados.Aquiseusemblantesedesanuvioue,notandoqueseus lábiossemoviam,nãotivedúvidadequemurmuravaapalavra 'estereotomia', termo que muito afetadamente é aplicado a essaespéciedepavimento.Eu sabiaquenãoera capazdedizer a simesmoapalavra 'estereotomia' sem ser levado a pensar em átomos, e,consequentemente,nasteoriasdeEpicuro;eumavezque,aodiscutirmosoassuntohánãomuitotempo,mencionei-lhequãosingularmente,emboraquão pouco se tenha notado, as vagas hipóteses desse nobre gregoencontraramcon irmaçãonacosmogonianebular recente, 44 imagineiquenão poderia deixar de erguer os olhos para a grandenebula emÓrion, e

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decertoesperavaqueo izesse.Comefeito,vocêolhouparaoalto;enessemomentotiveaconvicçãodequeacompanharacorretamenteseuspassos.Mas na acerbatirade acerca de Chantilly, que apareceu noMusée deontem, o satirista, fazendo ignominiosas alusões à mudança de nome dosapateiro ao calçar o coturno, citou um verso latino sobre o qual muitasvezes conversamos. Re iro-me ao verso: 'Perdidit antiquum litera primasonum'.45Euhavialhea irmadoqueissoeraumamençãoaÓrion,outroragrafada Urion; e, devido a certas pungências ligadas a essa explicação,estavacientedequenãopoderiatê-laesquecido.Ficouclaro,dessemodo,quevocênãodeixariadecombinarasduasideiasdeÓrioneChantilly.Quedefatoascombinoupercebipelanaturezadosorrisoqueperpassouseuslábios.Vocêpensouna imolaçãodopobresapateiro.Atéentão, seuandareracurvado;masemseguidanoteiqueaprumavaocorpoaplenaaltura.Nesse instante tive certeza de que re letia sobre a igura diminuta deChantilly. Foi aí que interrompi suas meditações para comentar que, defato,eramesmo um sujeitinho pequeno— o tal Chantilly—, que estariamelhornoThéâtredesVariétés.”Não muito depois, líamos uma edição vespertina daGazette des

Tribunauxquandoosseguintesparágrafoschamaramnossaatenção.“ASSASSINATOSEXTRAORDINÁRIOS.—Nessamadrugada,porvoltadas

três damanhã, os moradores do Quartier St. Roch foram tirados de seusono por uma sucessão de gritos aterrorizantes, provenientes,aparentemente, do quarto andar de uma casa na Rue Morgue,sabidamente ocupada apenas por Madame L'Espanaye e sua ilha,Mademoiselle Camille L'Espanaye. Após alguma demora, ocasionada porumatentativainfrutíferadeconseguirpassardamaneirausual,aportadosaguãofoiarrombadacomumpédecabraeoitooudezvizinhosentraram,acompanhadosdedoisgendarmes.Aessaaltura,osgritoshaviamcessado;mas,quandoogruposubiucorrendooprimeirolancedeescadas,duasoumaisvozesríspidas,emin lamadaaltercação,se izeramouvir,epareciamproceder da parte superior da casa. Quando o segundo patamar foialcançado,tambémessessonshaviamcessado,etudopermanecianamaisperfeitaquietude.Ogruposedispersou,ecorreramdequartoemquarto.Ao chegarem em um grande aposento de fundos no quarto andar (cujaporta, achando-se trancada com a chave do lado de dentro, teve de serabertaà força),presenciaramumespetáculoqueencheucadaumdosalipresentesnãoapenasdehorrorcomotambémdeassombro.“O apartamento encontrava-se na mais furiosa desordem— a mobília

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destruída e jogada em todas as direções. Restara uma única armação decama; e o colchão fora removido e atirado no meio do soalho. Em umapoltrona havia uma navalha manchada de sangue. No chão da lareirajaziam duas ou três mechas de cabelos humanos grisalhos, tambémsalpicadas de sangue, e ao que parecia arrancadas pela raiz. No chãoencontraram-se quatro napoleões, um brinco de topázio, três colheresgrandesdeprata, trêsmenores,de métald'Alger , eduasbolsas, contendocercadequatromil francosemouro.Asgavetasdeum bureauque icavaemumcantoestavamabertasehaviam,aparentemente,sidovasculhadas,embora muitos artigos ainda permanecessem dentro. Um pequeno cofredeferrofoiencontradosobocolchão(nãosobacama).Estavaaberto,comachaveaindanatampa.Nãocontinhacoisaalgumaexcetoalgumascartasvelhaseoutrosdocumentosdepoucaimportância.“De Madame L'Espanaye nenhum vestígio se via; mas uma incomum

quantidade de fuligem tendo sido observada na lareira levou a que sedesseumabuscanachaminé,e(coisahorrívelderelatar!)daliseretirouocadáver da ilha, de cabeça para baixo; havia sido forçado pela estreitaabertura até profundidade considerável. O corpo estava razoavelmentequente.Quandoexaminado,muitasescoriaçõesforamnotadas,semdúvidaocasionadaspelaviolênciaempregadaaoseren iadoedepoisretirado.Norosto viam-se inúmeros arranhões e, pela garganta, negros hematomas,alémdemarcasprofundasdeunhas,comoseavítimahouvessesidomortaporestrangulamento.“Apósumacuidadosainvestigaçãoemcadacantodacasa,semquemais

nadasedescobrisse,ogruposedirigiuaumpequenopátionosfundosdoedi ício, onde estava o corpo da velha senhora, com a garganta tãocompletamente dilacerada que, ao se tentar erguê-la, a cabeça caiu. Ocorpo,assimcomoacabeça,foraterrivelmentemutilado—oprimeiroatalpontoquemalconservavaqualquersemelhançacomalgohumano.“Dessehorrívelmistérioatéomomentonãohá,acreditamos,amaisleve

pista.”Ojornaldodiaseguintetraziaessespormenoresadicionais.“ATragédianaRueMorgue .Muitosindivíduostêmsidointerrogadosem

relação a esse tão extraordinário e assombroso caso [a palavra affaireaindanãocarrega,naFrança,essalevezadesigni icadoqueoinglês affair,caso,transmiteentrenós],masnadaaindasurgiucapazdelançaralgumaluz sobre ele. Fornecemos abaixo todos os depoimentos relevantesextraídos.

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“Pauline Dubourg, lavadeira, declara que conhecia ambas as vítimashavia três anos, tendo se encarregado de suas roupas durante esseperíodo. A velha senhora e a ilha pareciam em bons termos — muitoafetuosas uma com a outra. Eram excelentes pagadoras. Nada pôdeinformarcomrespeitoaomodoouaosmeiosdevidadasduas.Acreditavaque Madame L. lesse a sorte como sustento. Dizia-se que tinha dinheiroguardado em casa. Nunca encontrou ninguém na casa quando precisoubuscar ou entregar as roupas. Estava certa de que não contavam comquaisquer empregados aos seus serviços. Não parecia haver mobília empartealgumadoprédio,excetonoquartoandar.“Pierre Moreau , dono de tabacaria, declara que costumava vender

pequenasquantidadesdefumoerapéaMadameL'Espanayehaviaquasequatroanos.Énascidonavizinhançaesempreresidiuali.Afalecidaesuailha ocuparam a casa onde seus corpos foram encontrados pormais deseisanos.Oinquilinoanteriordolugarforaumjoalheiroquesublocaraosquartos superiores para várias pessoas. A casa era de propriedade deMadame L. Descontente com o uso indevido do imóvel por parte de seulocatário, mudou-se para lá ela própria, recusando-se a alugar qualquerparte do prédio. A madame estava senil. A testemunha viu a ilha umascinco ou seis vezes durante os seis anos. As duas levavam uma vidaexcepcionalmente reclusa — supunha-se que tinham dinheiro. Ouviradizer por alguns vizinhos queMadame L. fazia a leitura da sorte— nãoacreditava.Nuncavirapessoaalgumaentrarporaquelaporta,anãoseraprópriavelhasenhoraesua ilha,umencarregadodemanutençãoumaouduasvezeseummédico,umasoitooudez.“Muitas outras pessoas, também vizinhos, forneceram depoimentos

nesse mesmo sentido. Nenhum frequentador da casa foi mencionado.Ninguém soube dizer se havia algum parente vivo de Madame L. e suailha.Asvenezianasdas janelasda frente raramenteeramabertas.Asdetrás viviam fechadas, com exceção do aposento dos fundos, no quartoandar.Acasaeradeboaconstrução—nãomuitovelha.“IsidoreMuset ,gendarme, declaraque foi chamadoà casaporvoltadas

trêsdamanhã,equeencontroucercadevinteoutrintapessoasdiantedaentrada, tentando passar. Arrombou inalmente a porta do saguão com abaioneta — não com um pé de cabra. Encontrou pouca di iculdade emfazercomqueabrisse,pelofatodeserumaportadupla,ouretrátil,esemferrolhos em cima ou embaixo. Os gritos continuaram até a porta serforçada — e depois subitamente cessaram. Pareciam os gritos de uma

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pessoa(oupessoas)emgrandeagonia—altoseprolongados,nãocurtoserápidos. A testemunha liderou o caminho pelas escadas. Ao chegar noprimeiropatamar,escutouduasvozesnumaaltercaçãoaltaein lamada—umaerarouca,aoutra,maisesganiçada—umavozmuitoestranha.Pôdediscernir algumas palavras da primeira, que eram de um francês. Tinhacertezaabsolutadequenãoeravozdemulher.Pôdediscerniraspalavras'sacré' e 'diable'. A voz aguda pertencia a alguém estrangeiro. Não sabiadizerseeravozdehomemoudemulher.Nãopôdedistinguiroquedizia,mas acreditouquea língua fosseo espanhol.O estadodoaposento edoscorposfoidescritoporessatestemunhadomodocomodescritosontem.“HenriDuval, vizinho, e, por ocupação, artesãodeprataria, declara que

tomou parte no grupo que entrou na casa. Corrobora o depoimento deMuset,demodogeral.Assimqueforçaramaentrada,voltarama fecharaporta, de modo a impedir a passagem da multidão, que se juntou muitorápido, não obstante o adiantado da hora. A voz aguda, acredita atestemunha, era de um italiano. Certamente não era francês. Não sabedizer ao certo se era voz de homem. Podia ser de mulher. Não estáfamiliarizadocomalínguaitaliana.Nãopôdediscernirquaisquerpalavras,mas icouconvencidopelaentonaçãoqueforamditasemitaliano.ConheciaMadameL.esua ilha.Conversaracomambasemdiversasocasiões.Tinhacertezadequeavozagudanãoeradenenhumadasfalecidas.“ ——Odenheimer, restaurateur.46 Essa testemunha apresentou-se

voluntariamenteparadepor.Pornão falar francês, foi inquiridamedianteumintérprete.ÉnaturaldeAmsterdã.Passavapelacasanomomentodosgritos. Eles duraram por vários minutos — provavelmente dez. Foramlongosealtos—muitoapavoranteseperturbadores.Estavaentreogrupoque entrou no prédio. Corroborou os depoimentos prévios em todos osaspectos menos um. Tinha certeza de que a voz aguda pertencia a umhomem—aumfrancês.Nãoconseguiudiscerniraspalavrasenunciadas.Foram altas e rápidas — desiguais — ditas aparentemente com medo,embora também com raiva. A voz era dissonante—não tão aguda,maispara dissonante. Não chamaria de uma voz aguda. A voz rouca disserepetidamente'sacré','diable'e,umavez,'monDieu'.“JulesMignaud,banqueiro,da irmadeMignaudetFils,RueDeloraine.É

oMignaudpai.MadameL'Espanayepossuíaalgumaspropriedades.Abrirauma conta em sua casa bancária na primavera do ano —— (oito anosantes). Fazia depósitos frequentes de pequenas quantias. Jamais haviasacado, até três dias antes de sua morte, quando retirou pessoalmente

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quatromil francos.O valor foi pago emouro, e um funcionário enviado asuacasacomosaque.“AdolpheLeBon, funcionáriodeMignaudetFils, declaraquenodia em

questão, por volta do meio-dia, acompanhou Madame L'Espanaye a suaresidênciacomosquatromil francos,divididosemduasbolsas.Quandoaportaeraaberta,MademoiselleL.apareceuepegoudesuasmãosumadasbolsas, enquanto a velha senhora apanhava a outra. Ele então ascumprimentou e partiu. Não viu ninguém na rua nessemomento. É umapequenatravessa—muitoisolada.“WilliamBird, alfaiate, declaraque estava entreo grupoque entrouna

casa.Éinglês.MoraemParishádoisanos.Foiumdosprimeirosasubirasescadas. Escutou as vozes se altercando. A voz rouca era de um francês.Pôde distinguir diversas palavras, mas não se recorda de todas. Ouviudistintamente 'sacré' e 'monDieu'. Houve um somnomomento como quede várias pessoas lutando — um som de coisas raspando e gente seengal inhando.Avozaguda falavamuitoalto—maisaltodoquearouca.Temcertezadequenãoeraavozdeuminglês.Pareciaserdeumalemão.Podiaservozdemulher.Nãoentendealemão.“Quatro das supracitadas testemunhas, tendo sido reconvocadas,

declararam que a porta do aposento em que se encontrou o corpo deMademoiselleL.estavatrancadapordentroquandoogrupochegou.Tudonomaisperfeitosilêncio—nenhumgrunhidooubarulhodequalquertipo.Ao forçarem a porta, ninguém foi visto. As janelas, tanto do quarto dosfundos como do frontal, estavam abaixadas e irmemente trancadas pordentro.Umaportaentreosdoisquartosestavafechada,masnãotrancada.Aportaquehaviaentreoquartoda frenteeo corredorestava trancada,comachavedoladodedentro.Umquartinhonafrentedacasa,noquartoandar, na extremidade do corredor, tinha a porta entreaberta. Essecômodoestavaabarrotadodecamasvelhas,caixasecoisasassim.Tudofoicuidadosamenteretiradoeexaminado.Nãohaviaumcentímetroempartealguma da casa que não tenha passado por uma busca cuidadosa.Varredores foram en iados de cima a baixo nas chaminés. A casa tinhaquatro andares, alémde águas-furtadas (mansardes). Um alçapão no tetofora irmemente pregado — parecia que não era aberto havia anos. Otempo transcorrido entre a altercação de vozes que ouviram e oarrombamento da porta do aposento foi estimado com variações pelastestemunhas. Alguns disseram três minutos— outros, cinco. A porta foiabertacomdificuldade.

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“AlfonzoGarcio,agentefunerário,declaraserresidentedaRueMorgue.É natural da Espanha. Tomou parte no grupo que entrou na casa. Nãosubiu as escadas. É nervoso, e icou apreensivo quanto às consequênciasdotumulto.Escutouasvozesemaltercação.Avozroucaeradeumfrancês.Não pôde discernir o que foi dito. A voz aguda era de um inglês— temcertezadisso.Nãocompreendealínguainglesa,masjulgapelaentonação.“AlbertoMontani , confeiteiro, declara que estava entre os primeiros a

subir as escadas. Escutou as vozes em questão. A voz rouca era de umfrancês. Distinguiu diversas palavras. Seu dono parecia protestar. Nãoconseguiudiscerniraspalavrasdavozaguda.Falavademodoapressadoeirregular. Acha que é voz de um russo. Corrobora o testemunho geral. Éitaliano.NuncaconversoucomalguémnaturaldaRússia.“Diversas testemunhas,nareinquirição,a irmaramqueaschaminésde

todososaposentosnoquartoandareramestreitasdemaisparaadmitirapassagem de um ser humano. Por 'varredores' queriam dizer escovõescilíndricos, como os que são empregados pelos limpadores de chaminés.Esses escovões foram passados de ponta a ponta em todos os ductos dacasa. Não havia qualquer passagem de fundos pela qual qualquer umpudesse ter descido enquanto o grupo subia as escadas. O corpo deMademoiselle L'Espanaye estava tão irmemente enterrado na chaminéquesóconseguiramdescê-lodepoisquequatrooucincodogrupouniramforças.“PaulDumas,médico,declaraquefoichamadoparaexaminaroscorpos

aonascerdodia.Haviamambossidocolocadossobreoenxergãodacamano aposento onde Mademoiselle L. foi encontrada. O cadáver da jovemestavamuitoesfoladoecontundido.Ofatodetersidoen iadonachaminéteria sido su iciente para dar conta desse aspecto. A garganta foragravemente esfolada. Havia inúmeros arranhões profundos pouco abaixodo queixo, junto com uma série de manchas lívidas, que eramevidentementemarcasdededos.Orostoestavaterrivelmentemanchadoeas órbitas oculares protraídas. A língua fora parcialmente mordida. Umenorme hematoma foi descoberto sobre a boca do estômago, produzido,aparentemente, pela pressão de um joelho. Na opinião de MonsieurDumas, Mademoiselle L'Espanaye fora morta por estrangulamento poruma ou várias pessoas desconhecidas. O cadáver da mãe estavahorrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e do braço direitosestavamquebradoscommaioroumenorgravidade.Atíbiaesquerdaforaestilhaçada, bem como todas as costelas do lado esquerdo. O corpo todo

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horrivelmente contundido e manchado. Era impossível dizer como osferimentoshaviamsidoin ligidos.Umpesadoporretedemadeira,ouumagrandebarradeferro—umacadeira—qualquerarmagrande,pesadaerombudateriaproduzidotaisresultados,seempunhadapelasmãosdeumhomem muito forte. Mulher alguma teria sido capaz de provocar taisferimentoscomaarmaque fosse.Acabeçadavítima,quandoexaminadapela testemunha, estava inteiramente separada do corpo, e tambémgravemente fraturada.Agarganta foraevidentementecortadacomalguminstrumentoafiado—provavelmente,umanavalha.“Alexandre Etienne, cirurgião, foi chamado junto com Monsieur Dumas

para examinar os corpos. Corroborou o depoimento e as opiniões docolega.“Nenhum outro fato relevante veio a lume, embora diversas outras

pessoas tenham sido interrogadas. Um assassinato tão misterioso, e tãodesconcertante em todas suasparticularidades, jamais foi cometido antesem Paris— se é que de fato um assassinato foi cometido. A polícia estácompletamente às escuras — uma ocorrência incomum em casos dessanatureza.Nãohá,entretanto,nemsombradepistaàvista.”A edição vespertina do jornal informava que o Quartier St. Roch

continuava ainda em grande agitação— que o edi ício passara por umacuidadosanovabusca,equenovosdepoimentosforamcolhidos,mastudoemvão.UmanotadeúltimahoraporémmencionavaqueAdolpheLeBonhavia sido detido e feito prisioneiro — embora nenhuma evidênciaparecesseincriminá-lo,alémdosfatosjáespecificados.Dupinpareceusingularmenteinteressadonoprogressodocaso—pelo

menos foi o que julguei por sua conduta, pois não fez comentário algum.Apenas após o anúncio de que Le Bon fora preso pediu minha opiniãorespeitandoaosassassinatos.Eu só podia concordar com toda Paris em considerá-los um mistério

insolúvel.Nãoviameiospelosquaisfossepossívelrastrearoassassino.“Não devemos julgar os meios”, disse Dupin, “segundo a super ície

desses depoimentos. A polícia parisiense, tão elogiada por seuacumen, éhábil, mas só isso. Não existe método em seus procedimentos além dométodo domomento. Fazem vasta ostentação demedidas;mas, não raro,estassãotãomaladaptadasaosobjetivospropostosquenosvemàmenteMonsieur Jourdain, pedindo seurobe-de-chambre— pourmieux entendrela musique.47 Os resultados atingidos por eles são não raro

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surpreendentes, mas, na maior parte, obtidos pela simples diligência eatividade. Quando essas qualidades estão indisponíveis, seus esquemasfracassam. Vidocq, por exemplo, era bom em conjecturas, e perseverava.Mas, sem uma mente treinada, enganava-se continuamente pela própriaintensidadedesuasinvestigações.Eleprejudicavasuavisãosegurandoosobjetos perto demais. Podia enxergar, talvez, um ou dois pontos comclareza incomum, mas, ao fazê-lo, necessariamente perdia de vista aquestão como um todo. Isso é o que podemos chamar de ser profundodemais.Averdadenemsempreestádentrodeumpoço.Comefeito,noquetoca aos conhecimentos mais importantes, acredito de fato que ela éinvariavelmente super icial. A profundidade reside nos vales onde abuscamos,enãonoscumesmontanhososondeelaéencontrada.Osmodose origens desse tipo de equívoco estão bem tipi icados na contemplaçãodos corpos celestiais. Relancear brevemente uma estrela — observá-laobliquamente,voltandoemsuadireçãoasáreasmaisexterioresda retina(que é mais sensível a impressões luminosas tênues do que a parteinterna),écontemplá-lacomnitidez—éobteramelhorapreciaçãodeseubrilho—brilhoque se turvana exataproporção emquevoltamosnossoolhardiretamente para a estrela. Umamaior quantidade de raios de fatoincide sobre o olho nesse caso,mas, no primeiro, ocorre uma capacidadede compreensão mais re inada. A profundidade indevida confunde edebilita o pensamento; e é possível fazer com que até mesmo Vênusdesapareça do irmamento por meio de uma observação demasiadoprolongada,concentradaoudireta.“Quanto a esses assassinatos, vamos proceder a um exame deles nós

mesmos antes de formar qualquer opinião a respeito. Uma investigaçãopoderá nos proporcionar boa diversão [julguei esse um termo estranhopara usar aqui, mas nada disse] e, além do mais, Le Bon certa vez meprestouumserviçopeloqualnãomemostrarei ingrato.Vamosverolocalcom nossos próprios olhos. Conheço G——, o chefe de polícia, e nãodeveremosterdificuldadeemobterapermissãonecessária.”Apermissãofoiobtida,eseguimosimediatamenteparaaRueMorgue.É

umadaquelastravessasmuitopobresque icamentreaRueRichelieueaRue St. Roch. Já era im de tarde quando chegamos; o bairro icando agrande distância desse em que residíamos. Encontramos a casaprontamente; pois havia ainda inúmeras pessoas olhando para asvenezianasfechadas,comumacuriosidadesempropósito,dooutroladodarua.Eraumaresidênciaparisiensecomum,comumsaguãodeentrada,ao

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lado de cuja porta havia um cubículo de vidros opacos, com um paineldeslizante na janela, indicando umaloge de concierge. Antes de entrar,andamos pela rua, dobramos uma viela e depois, entrando em outra,passamospelosfundosdoprédio—Dupin,nessemeio-tempo,examinavatoda a vizinhança, bem como a casa, comumameticulosidade de atençãoparaaqualnãoviaeuobjetivopossível.Voltando por onde viéramos, fomos outra vez para a entrada da

residência, tocamos a campainha e, apósmostrarmos nossas credenciais,fomosadmitidospelospoliciaisencarregados.Subimosasescadas—atéoaposento onde o corpo de Mademoiselle L'Espanaye fora encontrado, eonde ambas as falecidas continuavam. A desordem no quarto, como decostume, permanecia do jeito que fora deixada.Não vi nada alémdoquehavia sido relatado naGazette des Tribunaux. Dupin examinava cadadetalhe—semexcetuaroscorposdasvítimas.Depoisprosseguimosparaosdemaisquartos,eparaopátio;umgendarmenosacompanhouotempotodo.A investigaçãonosocupouatéescurecer,quandosaímos.Acaminhode casa,meu companheiro se deteve por alguns instantes na redação deumdosjornaisdiários.Já tive ocasiãode dizer que os caprichos demeu amigo erammuitos e

variados, e queJe les ménageais:48 — para essa expressão, não existeequivalente em inglês. Agora, ele cismara de declinar qualquer conversasobre a questão dos assassinatos até mais ou menos o meio-dia do diaseguinte. E então me perguntou, repentinamente, se eu observara algopeculiarnacenadasatrocidades.Houve alguma coisa nomodo como enfatizou a palavra “peculiar” que

meprovocoucalafrios,semsaberporquê.“Não, nadapeculiar”, disse eu; “pelo menos, nada além do que ambos

vimospublicadonojornal.”“ReceioqueaGazette”,replicou,“nãotenhapenetradonohorrorinsólito

da coisa. Mas descartemos as fúteis opiniões desse periódico. Parece-meque o mistério é considerado insolúvel pelo mesmo motivo que deveriafazercomquefossetidocomodefácilsolução—querodizer,pelocaráteroutré de suas circunstâncias. A polícia está perplexa com a aparenteausênciademotivo—nãocomocrimeemsi—mascomaatrocidadedocrime. Estão desconcertados, também, pela aparente impossibilidade deconciliar as vozes ouvidas em altercação com o fato de que ninguém foiencontrado no andar de cima além da assassinada MademoiselleL'Espanaye,edequenãohaviameiosdesairsempassarpelogrupoque

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subia.Adesordemselvagemdoquarto;ocadáveren iado,decabeçaparabaixo, pela chaminé; a pavorosa mutilação do corpo da velha senhora;essasconsiderações,juntamentecomasqueacabodemencionar,eoutrasa que não é necessário fazer menção, bastaram para paralisar asautoridades, deixando completamente às escuras seu tão propaladoacumen. A polícia caiu no erro grosseiro mas comum de confundir oinsólitocomoabstruso.Masénessesdesviosdoplanodoordinárioquearazãoencontraseucaminho,seéqueoencontra,nabuscadaverdade.Eminvestigações tais como as que empreendemos agora, não deve tanto serperguntado'oqueocorreu'como'oqueocorreuquenuncaocorreuantes'.Na verdade, a facilidade com que chegarei, ou cheguei, à solução dessemistério está em proporção direta com sua aparente insolubilidade aosolhosdapolícia.”Encareimeucolega,mudodeespanto.“Estou à espera”, prosseguiu ele, olhando para a porta de nosso

apartamento—“estouàesperadeumapessoaque,embora talveznãooperpetrador dessa carni icina, deve em certa medida ter tido algumenvolvimento em suaperpetração.Da pior parte dos crimes cometidos, éprovável que seja inocente. Espero estar correto nessa suposição; pois énisso quebaseeiminha expectativa de deslindar todo o enigma.Aguardoesse homem aqui— nesta sala— a qualquer momento. É verdade quepodenãoaparecer;masaprobabilidadeédequeofaça.Casovenha,seránecessáriodetê-lo.Eisaquiumaspistolas;eambossabemoscomousá-las,quandoaocasiãoassimoexige.”Tomeiaspistolas,malsabendooquefazia,outampoucoacreditandono

que escutava, enquanto Dupin prosseguia, muito à maneira de umsolilóquio. Já tive oportunidade de comentar seus modos abstraídos emmomentos assim. Seu discurso era endereçado aminha pessoa;mas suavoz, embora de modo algum elevada, exibia essa entonação que écomumente empregada ao se falar com alguém que está a grandedistância.Seusolhos,comexpressãovazia,fitavamapenasaparede.“Que as vozes ouvidas em altercação”, disse, “pelo grupo que subia as

escadas não pertenciam às própriasmulheres icou plenamente provadopelasevidênciasdocaso.Issoafastaqualquerdúvidaquantoàquestãodesaber se a velha senhora poderia primeiro ter dado cabo da ilha e emseguida cometido suicídio. Menciono esse ponto puramente em nome dométodo; pois a força de Madame L'Espanaye teria sido absolutamenteinsu icientepara a tarefade en iaro corpoda ilhana chaminé, tal como

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foiencontrado;eanaturezadosferimentossobresuapessoaimpossibilitatotalmente a ideia de suicídio. O assassinato, então, foi cometido por umaterceiraparte; easvozesdessa terceiraparteeramasque seescutaramem altercação. Deixe-me adverti-lo agora — não sobre todos osdepoimentosnoquedizrespeitoàsvozes—masnoquehaviadepeculiaracercadosdepoimentos.Observoualgumacoisapeculiaracercadeles?”Comentei que embora todas as testemunhas concordassem em supor

queavozroucapertenciaaumfrancês,haviagrandediscordânciaacercadavozaguda,ou,comoumindivíduoachamou,dissonante.“Isso são os próprios testemunhos”, disse Dupin, “mas não a

peculiaridade dos testemunhos. Você não observou nada característico.Contudo,havia algo a ser observado. As testemunhas, como a irma,concordaram quanto à voz rouca; nesse ponto foram unânimes. Mas emrespeitoàvozaguda,apeculiaridadenãoéofatodediscordarem,masqueum italiano, um inglês, um espanhol, um holandês e um francês, em suatentativadedescrevê-la,falassemcadaumcomosendodeumestrangeiro .Cada umdeles tem certeza de que não é a voz de um conterrâneo. Cadaumarelacionanãoàvozdeumindivíduodealgumanaçãodecujalínguaeleprópriosejafalante,muitopelocontrário.Ofrancêssupõequeéavozde um espanhol, e que talvez pudesse ter distinguido algumas palavras,casotivessealgumafamiliaridadecomoespanhol.Oholandêssustentaquepertencia a um francês; mas, conforme lemos,por não compreenderfrancês,atestemunhafoiinquiridamedianteumintérprete.Oinglêscrêqueavozeradeumalemão,masnãoconhecealemão.Oespanhol'temcerteza'dequepertenciaauminglês,mas'julgapelaentonação'enadamais,umavezquenãocompreendenadado inglês.O italianoacreditaqueé a vozdeum russo, mas 'nunca conversou com alguém natural da Rússia '. Umsegundo francês, além domais, diverge do primeiro, e a irma que a vozpertencia a um italiano; mas,por não conhecer essa língua, foi, como oespanhol, 'convencido pela entonação'. Ora, quão estranhamente insólitadeviaserdefatoessavozparaquedepoimentoscomoessespudessemsercolhidos! — em cujostons, até, cidadãos das cinco grandes divisões daEuropanãopuderamreconhecernadafamiliar!Dir-se-iaquepodetersidoa voz de um asiático — de um africano. Nem asiáticos nem africanosabundam em Paris; mas, sem negar a inferência, chamarei sua atençãoagora para três pontos. A voz é descrita por uma das testemunhas como'não tão aguda, mais para dissonante'. É caracterizada por outras duascomo falando 'de modo apressado e irregular'. Palavra alguma — som

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algum que se assemelhasse a palavras — foi mencionada pelastestemunhascomodiscernível.“Nãoseidizer”,continuouDupin,“queimpressãopossotercausado,até

aqui, em seu próprio entendimento; mas não hesito em a irmar quededuções legítimas até mesmo dessa parte dos depoimentos — a parterespeitanteàsvozesroucaeaguda—sãoporsimesmassu icientesparaengendraruma suspeita capazdeorientar todooposteriorprogressodainvestigação desse mistério. Disse 'deduções legítimas'; mas o que quiscomunicarnão icouplenamenteexpresso.Minhaintençãofoisugerirqueas deduções sãoas únicas apropriadas e que a suspeita brotainevitavelmente delas como o resultado isolado. Qual seja essa suspeita,entretanto, ainda não vou dizer. Apenas quero que tenha emmente que,quantoamim,foisu icientementepoderosaparadarumaformade initiva—umadeterminadatendência—àsminhasinvestigaçõesnoaposento.“Transportemo-nos,naimaginação,paraoquarto.Qualaprimeiracoisa

que buscaremos ali?Osmeios de egressão empregados pelos assassinos.Vale dizer que nenhum de nós acredita em eventos sobrenaturais.Madame e Mademoiselle L'Espanaye não forammortas por espíritos. Osperpetradores desse crime eram feitos de matéria, e escaparammaterialmente.Então, como?Felizmente,nãohásenãoumúnicomododeraciocinarsobreesseponto,eessemododevenosconduziraumadecisãoperemptória. — Vamos examinar, um a um, os possíveis meios de fuga.Está claro que os assassinos estavam no quarto onde MademoiselleL'Espanaye foi encontrada, oupelomenosnoquartoadjacente, quandoogrupo subiu as escadas. É dessemodo apenas nesses dois cômodos quedevemos buscar uma rota de evasão. A polícia arrancou as tábuas dosoalho, os forros do teto e a alvenaria das paredes em todas as direções.Nenhuma saídasecreta poderia ter escapado a sua vigilância. Mas, nãocon iando nos olhosdeles, procedi a um exame com os meus. Não havia,então,nenhumasaídasecreta.Asduasportasdosquartosquedavamparao corredor estavam devidamente trancadas, com as chaves do lado dedentro.Voltemosàschaminés.Estas,emboradacostumeiraalturadeunsdezmetros,mais oumenos, acima das lareiras, não admitirão, em toda asuaextensão,ocorpodeumgatogrande.Aimpossibilidadedefugir,pelosmeiosjáindicados,sendodessemodoabsoluta,ficamosrestritosàsjanelas.Por aquelas do quarto da frente ninguém poderia ter escapado sem servisto pela multidão na rua. Os criminososdevem ter passado, então, poruma das janelas do quarto nos fundos. Ora, tendo chegado a essa

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conclusão de umamaneira tão inequívoca como chegamos, não nos cabe,como homens de raciocínio que somos, rejeitá-la por conta de aparentesimpossibilidades. Só nos resta provar que essas aparentes'impossibilidades'nãosão,narealidade,nadadogênero.“Há duas janelas nesse quarto. Uma está desimpedida de qualquer

mobília,einteiramentevisível.Aparteinferiordaoutraestáobstruídapelacabeceira de uma pesada cama que foi empurrada contra ela. Como severi icou,aprimeirafoifortementetrancadapordentro.Resistiuaosmaisenérgicos esforços de todos que tentaram erguê-la. Um grande buracofeito comuma verruma fora aberto em suamadeira do lado esquerdo e,comoseviu,umpregomuitogrossoen iadoalidentro,praticamenteatéacabeça.Aoseexaminaraoutra janela,umpregosimilar foiencontrado;evigorosas tentativas de erguer o caixilho desta também fracassaram. Apolíciasedeuentãointeiramenteporsatisfeitadequeafuganãoocorrerapor nenhuma dessas rotas. E, logo, julgou-se uma questão de excesso dezeloretirarospregoseabrirasjanelas.“Minha própria investigação foi de certo modo mais minuciosa, pelo

motivorecém-exposto—poisaliestava,eusabia,umadessasocasiõesemquesedeviaprovarquetodasasaparentesimpossibilidades,narealidade,nãosãonadadogênero.“Prossegui então em meu raciocínio —a posteriori. Os assassinos

escaparamporumadessasjanelas.Talsedando,nãopoderiamtervoltadoa travar os caixilhos, pois que foram assim encontrados;— consideraçãoquepôsumponto inal,devidoasuaobviedade,aoexamedapolícianesseaposento.Contudo,oscaixilhosestavam travados.Elesdeviam, então, teracapacidadedesetravarsozinhos.Nãohácomofurtar-seaessaconclusão.Aproximei-me do batente desobstruído, retirei o prego com algumadi iculdade e tentei abrir a janela. A guilhotina resistiu a todos os meusesforços,comoprevira.Umamolaoculta,eupercebiaagora,deviaexistir;eacorroboraçãodeminhaideiaconvenceu-medequeminhaspremissas,aomenos, estavam corretas, pormaismisteriosas que ainda parecessem ascircunstâncias envolvendo os pregos. Uma busca cuidadosa logo trouxe àluzamolaoculta.Pressionei-ae,satisfeitocomadescoberta,abstive-medeerguerocaixilho.“Então voltei a en iar o prego no lugar e observei-o atentamente. Uma

pessoa que passasse por aquela janela poderia tê-la fechado, e amola ateria travado—masopregonãopoderia ter sidonovamente inserido.Aconclusão era clara, e mais uma vez restringiu o campo de minhas

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investigações. Os assassinosdeviam ter escapado pela outra janela.Supondo, então,queosmecanismosemambosos caixilhos fossem iguais,comoeraprovável,umadiferençadeviaserencontradaentreospregosou,pelomenos, nomodo comohaviam sido ixados. Subindono enxergão dacama, olhei por cimada cabeceira e examineiminuciosamenteo segundobatente. Passando a mão por trás da cabeceira, descobri e pressioneiprontamente a mola, que era, como eu presumira, de caráter idêntico àoutra. Então examinei o prego. Era tão grosso quanto o outro e,aparentemente,fixodamesmamaneira—enfiadoquaseatéacabeça.“Dirá vocêque issomedeixoudesnorteado;mas, sepensa assim,deve

tercompreendidomalanaturezadasdeduções.Parausarumaexpressãopitoresca, eu não icara 'às escuras' emmomento algum. Não perdera orastrosequerporuminstante.Nãohavia falhaemnenhumelodacadeia.Eu farejara o segredo até seu resultado inal — e esse resultado era oprego.Tinha,repito,emtodososaspectos,aaparênciadeseusemelhantenaoutrajanela;masessefatofoideumaabsolutainsigni icância(pormaisconclusivoquepossaparecer)quandocomparadoà consideraçãodequeali,nesseponto,terminavaatrilha.'Devehaveralgumacoisaerradanesseprego', falei.Toquei-o;eacabeça,comcercadeseismilímetrosdaespiga,saiu entre meus dedos. O restante da espiga permaneceu no buraco deverruma, onde havia se quebrado. A fratura era antiga (pois asextremidades exibiam uma crosta de ferrugem) e fora aparentementeprovocadaporumamartelada,quehaviacravadoparcialmente,noaltodocaixilhoinferior,apartedopregocomacabeça.Euentãovolteiaencaixarcuidadosamente essa parte do prego com a cabeça no furo de onde elahavia saído e a semelhança com um prego perfeito era completa — aissura era invisível. Pressionando a mola, ergui o caixilho suavementealgumas polegadas; a cabeça subiu junto, permanecendo irme em seulugar.Fecheiajanela,eaaparênciadeumpregointeiroeraperfeitaoutravez.“Oenigma,atéali, estavadesvendado.Oassassinoescaparapela janela

que icava acima da cama. Fechando sozinha após sua fuga (ou talveztendo sido intencionalmente fechada), ela fora travada pela ação domecanismo; e foi a ixação por meio dessa mola que a polícia tomouequivocadamente pela do prego— considerando portanto desnecessárioprocederamaisinvestigações.“Aquestãoseguinteéadomododadescida.Acercadesseponto,dei-me

porsatisfeitocomminhacaminhadaemtornodoprédio.Apoucomaisde

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ummetro e meio da janela em questão ergue-se um para-raios. De suahaste teria sido impossível para qualquer pessoa chegar à janela, quantomais entrar por ela. Observei, entretanto, que as folhas das janelas noquarto andar eram de um tipo peculiar que os marceneiros parisienseschamam deferrades— um tipo raramente empregado nos dias de hoje,masfrequentementevistoemantigasmansõesdeLyonseBourdeaux.Elassãona formadeumaportacomum(simples,enãodobrável),excetuandoqueapartesuperioréentalhadaoutrabalhadacomumpadrãodetreliçasvazadas—proporcionandodessemodoumexcelentepontodeapoioparaasmãos.Nopresentecaso,asfolhastêmummetrodelargura.Quandoasvimosdosfundosdacasa,estavamambasparcialmenteabertas—ouseja,icavamemumângulo reto comaparede.Muitoprovavelmenteapolícia,assimcomoeu,examinouosfundosdoprédio;mas,seofez,aoolharparaessasferrades em toda a sua largura (como deve ter feito), eles nãoperceberam como esta era ampla ou, em todo caso, deixaram de levar ofatoemdevidaconsideração.Naverdade,umaveztendoseconvencidodeque nenhuma fuga podia ter sido empreendida por ali, naturalmenteconcederam ao ponto um exame assaz super icial. Ficou claro paramim,entretanto,queafolhadajanelaacimadacama icaria,seabertaatéo im,renteàparede,apoucomaisdemeiometrodahastedopara-raios.Ficoutambémevidenteque,exigindoumgraubastante incomumdeprestezaecoragem, a penetração pela janela, a partir do para-raios, podia dessemodotersidoefetuada.—Esticandoobraçopeladistânciadeunssetentae cinco centímetros (supondoagoraquea janelaestáabertaaomáximo),um ladrão poderia agarrar com irmeza o padrão de treliça. Soltando-se,então, do para-raios, apoiando o pé com irmeza na parede e dando umaudacioso salto em seguida, pode ter balançado com a folha de modo afechá-la e, se imaginarmos que a janela estava nesse momento aberta,podeteratémesmosebalançadoparadentrodoquarto.“Quero que tenha particularmente em mente que falo de um grau

bastante incomum de presteza como sendo exigido para o sucesso numfeito tãoarriscadoedi ícil.Éminha intenção lhemostrar,primeiro,queacoisa pode possivelmente ter sido realizada:—mas, em segundo, emaisimportante, desejo inculcar em seu entendimento o caráterdeverasextraordinário— o caráter quase sobrenatural dessa agilidade capaz detê-loexecutado.“Dirávocê,semdúvida,usandoo linguajardodireito,que,para 'provar

meu caso', eu deveria antes negligenciar, que enfatizar, uma plena

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apreciação da presteza exigida nessa situação. Essa talvez seja a práticalegal,masnãoédessemodoqueprocedearazão.Meuobjetivoúltimoéaverdade. Meu propósito imediato é levá-lo a efetuar uma justaposiçãodessa prestezabastante incomum de que falei há pouco com aquela vozaguda (ou dissonante)muito peculiar eirregular, acerca de cujanacionalidade não houve duas pessoas capazes de concordar, e em cujapronúncianenhumasilabaçãopôdeserdetectada.”Ao ouvir essas palavras, uma ideia vaga e ainda não formada do que

Dupin queria dizer perpassou minha mente. Eu parecia à beira dacompreensão sem a capacidade de compreender — como às vezes seachamoshomens,prestesalembrar,semseremcapazes,no im,detrazerodadoàlembrança.Meuamigoprosseguiuemseuraciocínio.“Verá”, disse, “que mudei a questão do método de evasão para o de

invasão. Foi meu intento sugerir a ideia de que ambas efetuaram-se damesmamaneira,nomesmoponto.Voltemosagoraaointeriordoaposento.Inspecionemos o que se apresenta ali. As gavetas dobureau, conformeinformado, haviam sido vasculhadas, embora muitas peças de roupacontinuassemdentro.Aconclusãoaquiéabsurda.Émeraconjectura—edas mais tolas — nada além disso. Como podemos saber que as peçasencontradas nas gavetas não eram tudo que essas gavetas continhamoriginalmente? Madame L'Espanaye e sua ilha viviam uma vidaexcepcionalmente retirada— nunca recebiam visita— raramente saíam—tinhampoucousoparaartigosdevestuárioemgrandenúmero.Osquese encontraram eram de qualidade no mínimo tão boa quanto qualquerpeça que as damas pudessem ter possuído. Se um ladrão levara alguma,porquenãolevouasmelhores—porquenãolevoutudo?Numapalavra,porqueabandonouelequatromilfrancosemouroparasaircarregadodeartigosdelinho?Oouro foiabandonado.QuaseaquantiatotalmencionadaporMonsieurMignaud, o banqueiro, foi encontrada, em sacolas, no chão.Desejo que você, por conseguinte, descarte de seus pensamentos a ideiaprecipitada de ummotivo, engendrada na cabeça da polícia por aquelaparte dos depoimentos que fala do dinheiro entregue na porta da casa.Coincidênciasdezvezestãonotáveisquantoessa(aentregadodinheiroeoassassinatocometidotrêsdiasapósseurecebimento)acontecemconoscoa todo instante de nossas vidas sem que isso atraia atenção sequermomentânea. Coincidências, de modo geral, são o grande obstáculo nocaminho dessa classe de pensadores educados no mais completodesconhecimento da teoria das probabilidades — essa teoria à qual os

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mais gloriosos objetos de pesquisa humana devem suas mais gloriosaselucidações.Nopresentecaso,houvesseoourodesaparecido,ofatodetersido entregue três dias antes teria constituído algo mais do que umacoincidência.Teriasidoumacorroboraçãodessaideiademotivo.Mas,sobas reais circunstâncias do caso, se supusermos o ouro como amotivaçãodessabarbaridade,devemostambémimaginarseuperpetradorsendoumidiota de tal forma vacilante a ponto de ter abandonado completamentetantooourocomoomotivo.“Conservando agora emmente demodo irme os pontos para os quais

chamei suaatenção—avozpeculiar, a agilidade incomumeaespantosaausênciademotivoemumassassinatotãosingularmenteatrozcomoesse—, atentemos para a carni icina em si. Eis a mulher morta porestrangulamentoàforçadasmãoseenfiadanumachaminédecabeçaparabaixo.Homicidasordináriosjamaisempregammétodosdeassassíniocomoesse.Muitomenos fazem tal coisa com o corpo da vítima.Namaneira deen iar o cadáver pela chaminé deve você admitir que há algo deexcessivamente outré — algo completamente incompatível com nossasnoções comuns de atos humanos, até mesmo quando supomos seusautoresosmaisdepravadosdoshomens.Pense,ainda,quãograndedevetersidoessaforçacapazdeempurrarocorpoporumatalaberturadeummodotãopoderosoqueoesforçoconjuntodediversosbraços,comoseviu,quasenãobastouparatirá-lodali!“Atente agora para outros indícios do emprego de uma força assim

portentosa.Na lareira haviamechas grossas—mechasmuito grossas—de cabelos grisalhos. Haviam sido arrancados pela raiz. Sabe vocêperfeitamente da grande força necessária para arrancar desse modo dacabeça atémesmovinte ou trinta ios de cabelo juntos. Viu os cachos emquestão tão bem quanto eu próprio. Suas raízes (que visão hedionda!)exibiamgrumossanguinolentoscompedaçosdecarnedocourocabeludo— sem dúvida evidência da força prodigiosa empreendida para extirpartalvezmeiomilhãode iosdeumasóvez.Agargantadavelhasenhoranãoestava simplesmente cortada,masa cabeça fora seccionadapor completodocorpo:oinstrumento,umameranavalha.Queroqueolhetambémparaaferocidadebrutaldessesatos.DoshematomassobreocorpodeMadameL'Espanaye nada direi.MonsieurDumas, e seu digno ajudante,MonsieurEtienne, a irmaramque foram in ligidospor algum instrumentoobtuso; eatéaíessessenhoresestãocorretos.Oinstrumentoobtusofoiclaramenteopisodepedradopátio,sobreoqualavítimacaíradajanelaque icaacima

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dacama.Essaideia,pormaissimplesqueagorapossaparecer,escapouàpolíciapelomesmomotivoquealarguradasfolhasdejanelalhesescapou— porque, com o negócio dos pregos, suas percepções icaramhermeticamentefechadascontraamerapossibilidadedeasjanelasteremsidoabertas.“Se agora, além de todas essas coisas, você re letir adequadamente

sobre a esquisita desordem do quarto, teremos chegado ao ponto decombinar as ideias de agilidade surpreendente, força sobre-humana,ferocidade brutal, carni icina semmotivo, umagrotesquerie cujo horror éabsolutamente discrepante com a natureza humana e uma voz cujaentonação pareceu estrangeira aos ouvidos de homens de váriasnacionalidades, bem como destituída de qualquer articulação distinta ouinteligível.Queresultado,então,sesegue?Queimpressãocauseisobresuaimaginação?”SentiumarrepionacarnequandoDupinmefezapergunta.“Umlouco”,

a irmei, “cometeu esse ato— algum maníaco desvairado fugido de umamaisondesantédosarredores.”“Em alguns aspectos”, respondeu, “sua ideia não é irrelevante. Mas as

vozes dos loucos, mesmo no paroxismo mais descontrolado, jamais secomparam a essa voz peculiar que foi escutada das escadas. Loucosalguma nacionalidade hão de ter, e sua língua, pormais incoerentes quesejam suas palavras, sempre guarda a coerência da silabação. Além domais,oscabelosdeumlouconãoseparecememnadacomissoquetenhoemminhamão. Soltei essepequeno tufodosdedos rigidamente fechadosdeMadameL'Espanaye.Diga-meoqueachadisto.”“Dupin!”,disseeu,muitoagitado;“estecabeloéacoisamaisincomum—

istonãoécabelohumano.”“Nãoa irmeiquefosse”,disseele;“mas,antesdedecidirmosesseponto,

quero que dê uma olhada no pequeno esboço que rabisquei sobre estepapel. É um desenhofac-simile do que foi descrito em uma parte dosdepoimentos como 'negros hematomas emarcas profundas de unhas' nagargantadeMademoiselleL'Espanayee,emoutra(pelosmessieursDumaseEtienne),comouma'sériedemanchaslívidas,evidentementemarcasdededos'.“Perceberá”, prosseguiu meu amigo, abrindo o papel sobre a mesa

diantedenós,“queodesenhodáumaideiadepreensão irmee ixa.Nãohá sinal aparente de dedosescorregando. Cada dedo se manteve —

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possivelmente até amorte da vítima— terrivelmente agarrado ao pontooriginal.Experimenteagoracolocartodososseusdedos,aomesmotempo,nasrespectivasmarcas,talcomovê.”Fizatentativa,emvão.“Nós,possivelmente,nãoestamosprocedendoaumjulgamentolegítimo

dessa questão”, disse. “O papel está aberto sobre uma super ície plana;mas a garganta humana é cilíndrica. Eis aqui uma acha de lenha, cujacircunferência é aproximadamente a de uma garganta. Enrole o desenhoemtornodelaetenteaexperiênciamaisumavez.”Fiz como instruído; mas a di iculdade icou ainda mais óbvia do que

antes.“Isso”,disseeu,“nãoémarcadenenhumamãohumana.”“Leiaagora”,replicouDupin,“estapassagemdeCuvier.”Eraumrelatocomminúciasanatômicasedescriçõesgeraisarespeitodo

grande orangotango fulvo das ilhas indonésias. A estatura gigantesca, aforça e agilidade prodigiosas, a ferocidade selvagem e as propensõesimitativasdessesmamíferossãosu icientementebemconhecidasdetodos.Compreendiplenamenteenamesmahoraoshorroresdosassassinatos.“Adescriçãodosdedos”,disseeu,ao terminarde ler, “estáexatamente

deacordocomodesenho.Perceboquenenhumoutroanimalalémdeumorangotango da espécie aqui mencionada poderia ter deixado marcascomoasquerabiscou.Este tufodepelomarrom-avermelhado, também,éidêntico em caráter ao da fera de Cuvier. Mas não consigo conceber demodo algum os detalhes desse pavoroso mistério. Além do mais, foramduasasvozesouvidasemaltercação,eumadelaserainquestionavelmenteadeumfrancês.“De fato; e vocêháde lembrar uma expressão atribuídaquase quede

formaunânime,pelosdepoimentos,aessavoz—aexpressão'monDieu!'.Isso, sob as circunstâncias, foi legitimamente caracterizado por uma dastestemunhas(Montani,oconfeiteiro)comoumaexclamaçãodeadvertênciaouprotesto. Sobre essasduaspalavras, portanto, erguiminhasprincipaisesperanças de solucionar plenamente o enigma. Um francês tinhaconhecimentodocrime.Épossível—naverdade,maisdoqueprovável—quesejainocentedequalquerparticipaçãonossangrentosacontecimentosque ali tiveram lugar. O orangotango talvez tenha lhe escapado. Pode teracontecido de tê-lo seguido até o aposento; porém, sob as perturbadorascircunstâncias que se sucederam, talvez nunca o tenha recapturado. Oanimal continua à solta. Não vou prosseguir nessas conjecturas — pois

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nenhum direito tenho de reputá-las nada além disso—, uma vez que osvestígiosdere lexãosobreosquaisseassentammalexibemprofundidadesu icienteparaseremapreciadospormeuprópriointelecto,edessemodoeu não poderia torná-las inteligíveis para a compreensão alheia. Vamoschamá-las,portanto,deconjecturas,eseguirnosreferindoaelascomotal.Se o francês em questão é, de fato, como suponho, inocente dessasatrocidades, este anúncio, que deixei ontem à noite, quando voltávamospara casa, na redação doLe Monde (um jornal voltado a assuntosmercantis e muito procurado pelos marinheiros), o trará até nossaresidência.”Estendeu-meumpapel,queassimdizia:

CAPTURADO—NoBoisdeBoulogne,hojecedopelamanhãdo——corrente(amanhãdosassassinatos),umenormeorangotangofulvodaespéciedeBornéu.Seudono(queseaveriguouserummarinheiropertencenteaumaembarcaçãomaltesa)poderáreaveroanimalidentificando-sedeformasatisfatóriaepagandoalgumasdespesasdevidasasuacapturaecuidados.Procurarono——,Rue——,FaubourgSt.Germain—terceiroandar.“Como foipossível”,perguntei, “saberqueohomeméummarinheiroe

pertenceaumaembarcaçãomaltesa?”“Nãosei de fato”, disse Dupin. “Não tenho certeza disso. Aqui está,

porém, um pequeno pedaço de ita que, pela forma, e pelo aspectoencardido, tem sido evidentemente usada para amarrar o cabelo numadessas longasqueues49 tãoaogostodosmarujos.Alémdomais,essenóéum que poucos senão marinheiros conseguem dar, e é peculiar aosmalteses. Encontrei a ita ao pé da haste do para-raios. Não podia terpertencido a nenhuma das vítimas. Bem, e se, a inal de contas, erro emdeduzirporessa itaqueofrancêseraummarinheiropertencenteaumaembarcaçãomaltesa,aindaassimnenhummalcauseidizendooquedissenoanúncio.Semeequivoco,osujeito irámeramentesuporquemedeixeiiludir por alguma circunstância sobre a qual não se dará o trabalho deindagar.Mas,seestivercorreto,umgrandeobjetivoterásidoconquistado.Sabedor, ainda que inocente, do assassinato, o francês naturalmentehesitará em responder ao anúncio — em reclamar o orangotango. Eleassim raciocinará: — 'Sou inocente; sou pobre; meu orangotango vale

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muito— para alguém emminhas condições, uma verdadeira fortuna—por que deveria perdê-lo com essas fúteis apreensões de perigo? Ei-loaqui, ao meu alcance. Foi encontrado no Bois de Boulogne — a umaenormedistânciadacenadacarni icina.Comosesuspeitaráqueumaferabruta possa ter realizado tal coisa? A polícia está às escuras —fracassaram em encontrar a mais leve pista. Mas, caso conseguissemrastrear o animal, seria impossível provar que tenho conhecimento docrime, ou imputar-me culpa por conta desse conhecimento. E, além domais,jásesabedeminhapessoa.Oanuncianteserefereamimcomodonodacriatura.Nãotenhocertezasobreatéondevãosuas informações.Casodeixedereclamarumapropriedadedetãograndevalor,queésabidoquepossuo,corrooriscodelevantarsuspeitas,aomenossobreoanimal.Nãoéprudente de minha parte atrair a atenção seja sobre mim, seja sobre afera. Vou atender ao anúncio, recuperar o orangotango emantê-lo presoatéoassuntoteresfriado'.”Nessemomento,escutamospassosnasescadas.“Fiqueapostos”,disseDupin, “comsuaspistolas,massemusá-lasnem

mostrá-lasatéqueeudêalgumsinal.”A porta de entrada da casa fora deixada aberta e o visitante entrara,

sem tocar a campainha, e já avançara vários degrauspela escada.Agora,porém,pareciahesitar.Poucodepois,nósoescutamosdescendo.Dupinsedirigiarapidamenteàportaquandonovamenteouvimosquesubia.Elenãodeumeia-voltaumasegundavez,masavançoucomdeterminaçãoebateunaportadenossogabinete.“Entre”,disseDupin,emumtomalegreecordial.Um homem entrou. Era um marinheiro, evidentemente — um sujeito

alto, robusto e musculoso, com um quê de valentia no semblante, nãointeiramente destituído de distinção. Mais dametade de seu rostomuitobronzeado ocultava-se sob as suíças e ummustachio. Portava consigoumenorme bordão de carvalho, mas parecia, de resto, desarmado. Fez umadesajeitadamesuraedirigiu-nosum“boatarde”comsotaquefrancêsque,embora ligeiramente tirante ao suíço de Neuchâtel, ainda assim erasuficientementeindicativodeumaorigemparisiense.“Sente,meuamigo”,disseDupin.“Presumoqueestejaaquiporcausado

orangotango.Palavradehonra,quasechegoainvejá-loporsuaposse;umanimal sumamentebelo e, semdúvida,muito valioso.Que idadepresumequetenha?”

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Omarinheirorespiroufundo,comaaparênciadeumhomemaliviadodealgumintolerávelfardo,eentãorespondeu,emtomconfiante:“Nãomeépossíveldizer—masnãopode termaisdequatroou cinco

anosdeidade.Estãocomeleaqui?”“Oh, não; não contávamos com instalações paramantê-lo aqui. Ele está

emumestábulodealuguelnaRueDubourg,aquiperto.Podebuscá-lopelamanhã.Claroqueestápreparadoparaidentificarsuapropriedade?”“Certamentequeestou,senhor.”“Lamentareimeseparardele”,disseDupin.“Não é minha intenção que tenha tido todo esse trabalho por nada,

senhor”,disseohomem.“Nãopoderiaesperartalcoisa.Estouinteiramentedisposto a pagar uma recompensa por ter encontrado o animal— querdizer,qualquercoisadentrodorazoável.”“Bom”, respondeu meu amigo, “isso tudo é muito justo, com certeza.

Deixe-me pensar! — quanto devo pedir? Ah! Já lhe digo. Minharecompensa seráa seguinte.Queroqueme forneça todasas informaçõesemseupoderacercadosassassinatosnaRueMorgue.”Dupin disse essas últimas palavras em um tom muito baixo, e muito

tranquilamente.Tãotranquilamentequanto,também,andounadireçãodaporta,trancou-aeen iouachaveemseubolso.Depoiselepuxouapistoladeseupeitilhoeapousou,semamínimaagitação,sobreamesa.Orostodomarinheiro icouvermelhocomoselutasseparanãosufocar.

Levantou-sederepenteeagarrouseubordão;mas,nomomentoseguinte,desabou de volta em sua cadeira, tremendo violentamente, e com osemblante da própriamorte. Não disse uma palavra. Apiedei-me dele dofundodemeucoração.“Meu amigo”, disse Dupin, num tom bondoso, “está se alarmando

desnecessariamente—defatoestá.Nãopretendemoslhefazermalalgum.Douminha palavra de cavalheiro, e de francês, que não temos a menorintenção de prejudicá-lo. Sei perfeitamente bem que é inocente dasatrocidades na RueMorgue. Entretanto, de nada adianta negar que estáem certa medida implicado nelas. Pelo que já a irmei, deve saber quetenhotidomeiosdemeinformaracercadesseepisódio—meiossobreosquais jamaissonharia.Agoraacoisaestánessepé.Osenhornãofeznadaque pudesse ter evitado — nada, decerto, que o torne culpável. Não ésequerculpadoderoubo,quandopoderiaterroubadoimpunemente.Nãotemoqueesconder.Nenhummotivoparaseesconder.Poroutrolado,está

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obrigado,segundotodososprincípiosdahonra,aconfessartudoquesabe.Umhomeminocenteacha-sepresonestemomento,acusadodocrimecujoperpetradorestáemsuasmãosapontar.”O marinheiro havia recobrado a presença de espírito, em grande

medida, conforme Dupin pronunciava essas palavras; mas sua atitudeoriginaldeaudáciaseforacompletamente.“Que Deus me ajude”, disse ele, após breve pausa, “voumesmo lhes

contar tudo que sei acerca desse negócio; — mas não espero queacreditemnametadedoquedirei—euseriaumtolodefatoseesperasse.Mesmoassim,souinocente,evoumeabririnteiramente,aindaqueissomecusteavida.”Oqueelea irmoufoi,substancialmente,oseguinte.Haviarecentemente

empreendidoumaviagemaoarquipélagoindonésio.Umgrupodoqualeletomava parte desembarcou em Bornéu e saiu numa expedição pelointerior da ilha, a passeio. Ele e um colega haviam capturado oorangotango. Com a morte do amigo, o animal passou a sua posseexclusiva. Depois de grande transtorno, ocasionado pela intratávelferocidade de seu cativo durante a viagem de volta, ele en im conseguiualojá-loasalvoemsuaprópriaresidência,emParis,onde,paranãoatrairsobre si a incômoda curiosidade de seus vizinhos, manteve-ocuidadosamenteisolado,atéquesecurassedeumferimentonopé,sofridocomumalascademadeira,abordodonavio.Seuobjetivoeravendê-lo.Voltando para casa após uma farra de marinheiros certa noite, ou,

melhordizendo,namanhãdosassassinatos,deucomacriaturaocupandoseu próprio quarto, que invadira por um closet contíguo, onde estivera,assim ele pensara, seguramente con inado. Navalha na mão, edevidamenteensaboado,oanimal sentavadiantedoespelho,ensaiandoaoperação de se barbear, na qual sem dúvida assistira seu dono peloburaco da fechadura no closet. Aterrorizado com a visão de arma tãoperigosanapossedeumanimaltãoferoz,etãobemcapacitadoausá-la,ohomem,poralgunsmomentos, icouperdidoquantoaoquefazer.Haviaseacostumado, entretanto, a acalmar a criatura, mesmo nos momentos emque se mostrava mais furiosa, com o uso de um chicote, e então dissolançoumão.Aovero instrumento,oorangotangodisparouimediatamentepela porta do quarto, desceu as escadas e dali, por uma janela,desgraçadamenteaberta,ganhouarua.O francês o seguiu em desespero; o macaco, com a navalha ainda na

mão,ocasionalmenteparavaa imdeolharparatrásegesticularparaseu

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perseguidor,atéestequasealcançá-lo.Depoisdisparavaoutravez.Dessemodo a caçada prosseguiu por um longo tempo. As ruas estavamprofundamente tranquilas, sendo cerca de três damanhã. Ao passar porumavielaatrásdaRueMorgue,aatençãodo fugitivo foiatraídaporumaluz brilhando na janela aberta do aposento de Madame L'Espanaye, noquarto andar da casa. Indo na direção do prédio, percebeu o para-raios,trepou na haste com incrível agilidade, agarrou a folha da janela, queestavaabertaaomáximo,renteàparede,e,porseuintermédio,balançou-sediretamentesobreacabeceiradacama.Aproeza todanãoocupouumminuto.Comocoicedoorangotangoaoentrarnoquarto,afolhadajanelavoltouaseabrir.Omarinheiro, entrementes, icouaomesmo tempoexultante e confuso.

Tinhafortesesperançasderecapturaracriatura,agora,jáquedificilmenteescapariadaarmadilhaemquesemeteraanãoserpelopara-raios,ondepodiaserinterceptadoaodescer.Poroutrolado,haviagrandesmotivosdeinquietaçãoquantoaoqueoanimalpodiafazerdentrodacasa.Esteúltimopensamento redobrou o empenho do homem na perseguição do fugitivo.Umahastedepara-raiospodeserescaladasemdi iculdade,especialmenteporummarinheiro;mas,umavez tendochegadonaalturada janela,queicavamuitolongeasuaesquerda,seuavançofoiinterrompido;omáximoquepodiafazereraseesticardemodoaobteralgumavisãodointeriordoaposento. E a cena que presenciou quase o fez perder o apoio e cair, talseu horror. Foi nesse instante que se elevaram na noite os hediondosgritos que tiraram de seu sono os moradores da Rue Morgue. MadameL'Espanayeesua ilha,emroupasdedormir,aparentementeocupavam-sede arrumar alguns papéis no cofre de ferro já mencionado, que haviampuxado para o meio do quarto. Ele estava aberto, e o conteúdo jazia aolado, no soalho. As vítimas deviam estar de costas para a janela; e, pelotempotranscorridoentreainvasãodoanimaleosgritos,pareceprovávelque sua presença não fora notada de imediato. A batida da janela terianaturalmentesidoatribuídaaovento.Quando o marinheiro olhou ali dentro, o gigantesco animal havia

agarrado Madame L'Espanaye pelo cabelo (que estava solto, pois que oestivera penteando) e executava loreios com a navalha diante de seurosto, imitando os movimentos de um barbeiro. A ilha jazia prostrada eimóvel; desmaiara. Os gritos e debatidas da velha senhora (durante osquais os cabelos foram-lhe arrancados da cabeça) tiveram por efeitomudarospropósitosprovavelmentepací icosdoorangotangonumataque

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defúria.Comumpuxãodeterminadodobraçomusculosoquasearrancousua cabeça do corpo. A visão do sangue in lamou sua ira ao ponto dofrenesi.Rilhandoosdentes,e comosolhosdardejando,elepulousobreocorpodagarotaecravouastemíveisgarrasemsuagarganta,mantendooaperto até que expirasse. Seu olhar esgazeado e enlouquecido dirigiu-senessemomentoàcabeceiradacama,acimadaqualsepodiaverorostodeseudono,rígidodehorror.Afúriadoanimal,quesemdúvidatraziaaindana lembrançao temido chicote, converteu-se instantaneamente emmedo.Consciente de merecer punição, pareceu desejoso de ocultar seus feitossanguinários,esaiupulandopeloquartonumaagoniadeagitaçãonervosa;derrubando e quebrando a mobília conforme se movimentava, earrastando o colchão para fora da cama. Por im, agarrou primeiro ocadáverda ilha,een iou-onachaminé, tal como foiencontrado;depoisodavelhasenhora,queatirounamesmahorapelajanela,decabeça.

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Quando o macaco se aproximava da janela com seu fardo mutilado, omarinheiro encolheu-se horrorizado no para-raios e, mais deslizando do

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que descendo, disparou imediatamente para casa — temeroso dasconsequênciasdaquelacarni icina,edebomgradoabandonando,emseuterror, qualquer consideração acerca do destino do orangotango. Aspalavrasouvidaspelogrupoquesubiaasescadaseramasexclamaçõesdehorroremedodofrancês,entremeadasaosdiabólicosbalbuciosdobruto.Quasemaisnadatenhoaacrescentar.Oorangotangodeveterescapado

doaposentopelopara-raiospoucoantesdoarrombamentodaporta.Deveterfechadoajanelaaopassar.Foiposteriormentecapturadopeloprópriodono, que obteve pelo animal uma grande quantia no Jardin des Plantes.Le Bon foi solto imediatamente, assim que relatamos as circunstâncias(comalgumasobservaçõesdeDupin)nobureau do chefedepolícia. Essefuncionário, por mais que mostrasse boa disposição em relação ao meuamigo, foi incapazdeocultarcompletamentesuamorti icaçãocomorumoque os acontecimentos haviam tomado, e não pôde resistir ao gracejo deum ou dois comentários sarcásticos, no sentido de como seriamelhor secadaumcuidassedaprópriavida.“Deixemosquefale”,disseDupin,quenãojulgaranecessárioresponder.

“Deixemos que discurse; aliviará sua consciência. Fico satisfeito de tê-loderrotado em seus próprios domínios. Todavia, que tenha fracassado nasolução desse mistério, não é de modo algum todo esse motivo deadmiraçãoqueelesupõe;pois,naverdade,nossoamigochefedepolíciaéde certa forma astuto demais para ser profundo. Em sua argúcia não háqualquerstamen.Elaé todacabeçaenenhumcorpo,comoas imagensdadeusa Laverna — ou, na melhor das hipóteses, toda cabeça e ombros,comoumbacalhau.Mastrata-sedeumbomsujeito,a inaldecontas.Gostodele sobretudopor seugolpedemestreemdizerplatitudes,medianteasquaisconquistousuareputaçãodeengenhosidade.Re iro-meaomodoquetem'deniercequiest,etd'expliquercequin'estpas'.”*

*“Negaroqueéeexplicaroquenãoé.”Rousseau,NouvelleHéloïse. (N.doA.)

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OMISTÉRIODEMARIEROGET*

Umacontinuaçãode“OsassassinatosdaRueMorgue”

Hásériesideaisdeacontecimentosquecorremparalelamenteàsreais.Elasraramentecoincidem.Oshomenseascircunstânciasgeralmente

modificamacadeiaidealdeacontecimentos,demodoqueelapareceimperfeita,

esuasconsequênciassãoigualmenteimperfeitas.TalsedeucomaReforma;emvezdoprotestantismoveiooluteranismo.

Novalis[onomdeplumedeVonHardenburg],MoralischeAnsichten

Existem poucas pessoas, mesmo entre os pensadores mais serenos, quenão tenham sido ocasionalmente surpreendidas por uma vaga emboraempolgante crença parcial no sobrenatural, devido a coincidências de umcaráteraparentementetãoespantosoque,enquantomerascoincidências,ointelecto foi incapaz de apreendê-las. Tais sentimentos — pois essascrençasparciaisdeque faloaquinunca têmaplena forçado pensamento—di icilmentesãoreprimidosporcompletoanãoserquandoreferidosàdoutrinadoacaso,ou,comoelasedenominatecnicamente,aoCálculodasProbabilidades. Ora, esse cálculo é, em sua essência, puramentematemático; e desse modo temos a anomalia do que há de maisrigorosamenteexatonasciênciasaplicadoàobscuridadeeespiritualidadedoquehádemaisintangívelnaespeculação.Ver-se-á que os extraordinários detalhes que ora sou levado a tornar

públicosformam,comrespeitoàsequênciadotempo,oramoprincipaldeuma série decoincidências di icilmente inteligíveis, cujo ramo secundárioou concludente será reconhecido por todos os leitores no recenteassassinatodeMARYCECILIAROGERS,emNovaYork.Quando, num artigo intitulado “Os assassinatos na Rue Morgue”,

empenhei-me, há cerca de um ano, em retratar alguns traços deverasnotáveis no carátermental demeu amigo, o Chevalier C. Auguste Dupin,nãomepassoupelacabeçaqueumdiaretomariameutema.Aretrataçãodessecaráterconstituíameu intento;eesse intento foi cumpridonasériede circunstâncias apresentadas para exempli icar a idiossincrasia deDupin.Eupodiateraduzidooutrosexemplos,masnãoteriaprovadonadaalémdoque iz.Eventosposteriores,entretanto,emseussurpreendentes

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desdobramentos, motivaram-me a entrar em mais detalhes, quecarregarãoconsigoumardecon issãoarrancadaà força.Tendoouvidooque ouvi recentemente, seria de fato estranho que eu permanecesse emsilênciocomrespeitoaoquehátantotempovieouvi.Com o desfecho da tragédia implicada nas mortes de Madame

L'Espanaye e sua ilha, o Chevalier afastou o episódio imediatamente desua atenção, e recaiu em seus antigos hábitos de temperamentaisdevaneios. Inclinado, a todo momento, à abstração, prontamenteharmonizei-mecomseuestadodeespírito;e,continuandoaocuparnossasacomodaçõesnoFaubourgSaintGermain,abandonamosoFuturoaosabordosventosedormitamostranquilamentenoPresente, tecendoemsonhosatramainsípidadomundoquenoscercava.Mas esses sonhos não foram completamente ininterruptos. Pode-se

presumirfacilmentequeopapeldesempenhadopormeuamigonodramada Rue Morgue não deixou de causar espécie na imaginação da políciaparisiense. Entre seus agentes, o nome de Dupin tornou-se mençãofamiliar.Dadoocarátersimplesdaquelasdeduçõespelasquaiselucidaraomistérionuncaexplicadosequerparaochefedepolícia,ouparaqualqueroutroindivíduosenãoeumesmo,semdúvidanãoédesurpreenderqueoepisódio fosse encarado comopoucomenosdoquemiraculosoouqueascapacidadesanalíticasdoChevalierhouvessemlhegranjeadoocréditodaintuição. Sua franqueza o teria levado a desabusar quem quer que oinquirisse com tal opinião preconcebida; mas seu estado de espíritoindolenteimpediaqualquerulterioragitaçãoarespeitodeumassuntocujointeresse para ele próprio havia muito deixara de existir. Desse modoaconteceudesevercomoocentrodeatençõesaosolhosdapolícia;enãoforam poucos os casos em que se izeram tentativas de empregar seusserviçosnapréfecture.50UmdosmaisnotáveisfoiodoassassinatodeumajovemchamadaMarieRoget.Esse evento ocorreu cerca de dois anos após a atrocidade na Rue

Morgue. Marie, cujo nome de batismo e de família irão imediatamentechamar a atenção por sua semelhança com os da infeliz “garota doscharutos”,51eraa ilhaúnicadaviúvaEstelleRoget.Opaimorreraquandoelaeracriançae,daépocadesuamorte,atédezoitomesespreviamenteaoassassinatoque compõeo temadenossanarrativa,mãe e ilhamoraramjuntasnaRuePavéeSaintAndrée[NassauStreet];aMadameaímantinhaumapension, assistida porMarie. As coisas continuaram dessemodo atéesta última ter completado vinte e dois anos, quando sua grande beleza

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atraiuaatençãodeumperfumista,queocupavaumadas lojastérreasdoPalais Royal, e cuja clientela se compunha sobretudo dos perigososaventureirosque infestavamavizinhança.MonsieurLeBlanc [Anderson]nãoignoravaasvantagensadvindasdeterabelaMarieatendendoemsuaperfumaria; e seu pródigo oferecimento foi ansiosamente acolhido pelagarota,emboracomumpoucomaisdehesitaçãoporpartedaMadame.O que o lojista previra se concretizou, e seu estabelecimento logo se

tornou notório graças aos encantos da animadagrisette. Ela ocupavaaquele emprego havia quase um ano quando seus admiradores foramsurpreendidosporseusúbitodesaparecimentodaloja.MonsieurLeBlancera incapaz de explicar sua ausência e Madame Roget icou tomada dea liçãoeterror.Osjornaisabordaramimediatamenteoassuntoeapolíciaestava prestes a empreender sérias investigações quando, numa belamanhã, após transcorrida uma semana, Marie, gozando de boa saúde,embora com ar um pouco entristecido, tornou a aparecer em seucostumeirobalcãonaperfumaria.Todaaveriguação,excetoumadecaráterprivado, foi é claro imediatamente abafada.Monsieur LeBlanc professoutotalignorância,comoantes.Marie,assimcomoaMadame,responderamatodasasperguntasdizendoqueasemanaanteriorforapassadanacasadeparentes, no campo. Desse modo o assunto morreu, e foi por todosesquecido;poisagarota,alegadamenteparaselivrardaimpertinênciadacuriosidade geral, pouco depois disse adeus ao perfumista e buscourefúgionaresidênciadesuamãe,naRuePavéeSaintAndrée.Foi cerca de três anos após ter voltado para casa que seus amigos

icaram alarmados com seu súbito desaparecimento pela segunda vez.Trêsdiassepassaramsemquesetivessequalquernotíciadela.Noquarto,seu cadáver foi encontrado lutuandono Sena [Hudson], junto àmargemoposta aoQuartierdaRue SaintAndrée, enumpontonãomuitodistantedosisoladosarredoresdaBarrièreduRoule[Weehawken].A atrocidadedesse assassinato (pois icou imediatamente evidenteque

umassassinatoforacometido),a juventudeebelezadavítimae,acimadetudo, sua anterior notoriedade combinaram-se para gerar uma intensaagitaçãonamentedos impressionáveisparisienses.Sou incapazde trazerà memória qualquer outra ocorrência similar que tenha produzido umefeitotãogerale intenso.Porváriassemanas,nadiscussãodesseassuntoabsorvente, atémesmo as importantes questões políticas foram deixadasde lado. O chefe de polícia empreendeu esforços fora do comum; e osrecursos de toda a corporação parisiense foram, é claro, exigidos ao

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máximo.Assimqueseencontrouocadáver,ninguémimaginavaqueoassassino

seria capaz de se evadir, por mais do que um período muito breve, àinvestigação que foi imediatamente posta em ação. Somente ao inal deuma semana julgou-se necessário oferecer uma recompensa; e mesmoentão o prêmio se limitou a mil francos. Nesse meio-tempo, as buscasprosseguiram com vigor, ainda que nem sempre com bom-senso, einúmeros indivíduos foram interrogados sem resultado; ao passo que,devidoàcontínuaausênciadequaisquerpistasparaomistério,aagitaçãopopular só fez crescer. Ao inal do décimo dia julgou-se aconselháveldobrar a quantia originalmente oferecida; e, inalmente, após transcorrerumasegundasemanasemquesechegasseanenhumarevelação,etendo-sedadovazãoà intolerânciacontraapolíciaquesempreexistiuemParismediante inúmeros graves émeutes,52 o chefe de polícia encarregou-sepessoalmentedeofereceraquantiadevintemilfrancos“peladenúnciadoassassino” ou, se mais de um se provasse envolvido, “pela denúncia dequalquerumdosassassinos”.Noanúncioemqueseofertouarecompensa,pleno perdão era prometido a qualquer cúmplice que apresentassealgumaevidência contra seuparceiro; e a isso tudo ia apenso, ondequerqueoanúncioaparecesse,umcartazprivadodeumacomissãodecidadãosoferecendo dez mil francos, além da quantia proposta pela chefatura depolícia. A recompensa toda assim chegava a não menos que trinta milfrancos, o que há de se convir ser uma soma extraordinária quandoconsideramos a condição humilde da garota e a enorme frequência, nascidadesgrandes,detaisatrocidadescomoaquesedescreveu.Ninguém duvidava agora que o mistério desse assassinato seria

imediatamente esclarecido.Mas, embora em uma ou duas oportunidadestenham sido feitas detenções coma promessa de elucidação, ainda assimnadaveioà tonacapazde implicaros indivíduos suspeitos; e estes foramliberadosincontinente.Porestranhoquepossaparecer,aterceirasemanadadescobertadocorpohaviapassado,epassousemqueluzalgumafosselançada sobreo assunto, antesdeatémesmoumrumordoseventosquetantoagitavamaopiniãopúblicachegaraosouvidosdeDupineaosmeus.Debruçados em pesquisas que absorviam toda a nossa atenção,transcorreraquaseummês semquenenhumdenós saíssede casanemrecebesse uma única visita, quando muito correndo os olhos pelosprincipaisartigospolíticosdeumdosjornaisdiários.Aprimeiranotíciadoassassinato foi-nos trazidaporG——,pessoalmente. Ele nos procurouno

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iníciodatardedodia13dejulhode18—,epermaneceuconoscoatétardeda noite. Estava indignado com o fracasso de todas suas tentativas emdesentocar os assassinos. Sua reputação — conforme disse com um arpeculiarmente parisiense — estava em jogo. Mesmo sua honra corriaperigo. Os olhos do público estavam sobre ele; e decerto não haviasacri ícioquenãosedispunhaa fazerporalgumprogressonaelucidaçãodomistério.Concluiusuaspalavrasatécertopontorisíveiscomumelogioao que tinha a satisfação de chamar de otato de Dupin, e lhe fez umoferecimento direto e, certamente, pródigo cuja natureza precisa nãomesintoàvontadepararevelar,masquenãotemqualquerrelevânciaparaoassuntomesmodeminhanarrativa.O elogio meu amigo o refutou o melhor que pôde, mas a proposta

aceitou-a na mesma hora, embora seus bene ícios fossem inteiramentecondicionais. Uma vez isso acertado, o chefe de polícia passouimediatamente às explanações de seus próprios pontos de vista,entremeadosalongoscomentáriossobreosdepoimentos;destesaindanãoestávamosde posse. Ele falou longamente e, sem sombra de dúvida, comconhecimentodecausa;quantoamim,aventuravaumaououtrasugestãoocasional conforme a noite sonolentamente se estendia. Dupin, sentadoereto em sua poltrona costumeira, era a personi icação da atençãorespeitosa.Permaneceudeóculosdurantetodaaconversa;eumocasionalrelanceporbaixodeseusvidrosverdesbastouparameconvencerdequedormiu, não menos pesadamente pois que em silêncio, durante todas asseteouoitohorasmorosasimediatamenteprecedentesàpartidadochefedepolícia.Pela manhã, obtive, na chefatura, um relatório completo com todos os

testemunhos colhidos e, nas redações dos diversos jornais, um exemplarde cada jornal em que, desde o início até o im, fora publicada qualquerinformaçãoconclusivasobreotristeepisódio.Livredetudoquantoestavapositivamenterefutado,amassadeinformaçãoeraaseguinte:MarieRogetdeixou a residênciade suamãe, naRuePavée St.Andrée,

porvoltadasnovehorasdamanhãdedomingo,nodia22dejunhode18—.Aosair,comunicouaumcertoMonsieurJacquesSt.Eustache,somentea ele e a mais ninguém, sua intenção de passar o dia com uma tia queresidianaRuedesDrômes.ARuedesDrômeséumaviacurtaeestreita,masmovimentada,nãomuito longedasmargensdorio,eaumadistânciadeunstrêsquilômetros,nocursomaisdiretopossível,desdea pensiondeMadameRoget. St.EustacheeraopretendentedeMarie, e sehospedava,

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bem como fazia suas refeições, napension. Fora sua intenção buscar suanoiva ao escurecer, demodoa acompanhá-lana voltapara casa.À tarde,porém, choveupesadamente;e, supondoqueelapassariaanoitenacasada tia (como izera sob circunstâncias similares antes), não julgounecessáriocumprirocombinado.Comocairdanoite,MadameRoget(queeraumavelhadoente,de setenta anosde idade)manifestouo receio “deque nunca veria Marie outra vez”; mas o comentário chamou poucaatenção,naquelemomento.Na segunda-feira, veri icou-se que a moça não estivera na Rue des

Drômes;equandoodiapassousemquesetivessenotíciadelaumabuscatardia foi instituída em diversos pontos da cidade e dos arredores.Entretanto, não foi senão no quarto dia após seu desaparecimento quealgumacoisasatisfatóriaseveri icoucomrespeitoaela.Nessedia(quarta-feira, dia 25 de junho), um certo Monsieur Beauvais [Crommelin], que,junto com um amigo, estivera indagando a respeito de Marie perto daBarrièreduRoule,namargemdoSenaopostaàRuePavéeSt.Andrée, foiinformadodequeumcadáveracabaradeserretiradodaáguaporalgunspescadores, que o haviam encontrado lutuando no rio. Ao ver o corpo,Beauvais, após alguma hesitação, identi icou-o como sendo da garota daperfumaria.Seuamigoreconheceu-omaisprontamente.O rostoestava cobertode sangueescurecido,partedele escorridopela

boca.Nãoseviaespumaalguma,comoéocasodosmeramenteafogados.Não havia descoloração do tecido celular. Perto da garganta viam-sehematomasemarcasdededos.Osbraçosestavamdobradossobreopeitoe rígidos. A mão direita estava fechada com irmeza; a esquerda,parcialmenteaberta.Nopulsoesquerdohaviaduasescoriaçõescirculares,aparentemente causadas por cordas, ou uma corda dando mais de umavolta.Umaparte do pulso direito, também, estava bastante esfolada, bemcomo as costas em toda a sua extensão, mas, mais particularmente, nasomoplatas. Ao puxar o corpo para a margem os pescadores haviam-noamarradoaumacorda;masnenhumadasescoriaçõesforaprovocadaporisso.Acarnedopescoçoestavamuitoinchada.Nãohaviacortesvisíveis,oucontusões que parecessem efeito de golpes. Descobriu-se um pedaço deita amarrado tãoapertadoem tornodopescoçoquenãopodia servisto;estavacompletamenteenterradonacarne,epresoporumnólogoabaixodaorelhaesquerda.Só isso já teriasidosu icienteparacausaramorte.Olaudo médico atestou com segurança o caráter virtuoso da falecida. Elafora submetida, dizia, a uma violência brutal. Nas condições em que o

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corpo foi encontrado não poderia haver qualquer di iculdade em seureconhecimentopelosamigos.A roupa estava muito rasgada e, no mais, desfeita. No exterior do

vestido, uma faixa, com cerca de trinta centímetros de largura, forarasgada da barra inferior até a cintura, mas não arrancada. Estavaenroladatrêsvezesemtornodacinturaepresaporumaespéciedenóàscostas. A roupa, imediatamente sob o vestido, era de ina musselina; edessaparteuma faixadequarenta e cinco centímetros fora inteiramentearrancada—arrancadamuitouniformementee comgrandecuidado.Foiencontrada em torno do pescoço, enrolada de ummodo frouxo, e presacomumnócego.Sobreessafaixademusselinaeafaixaderendaestavamamarradososcordõesdeumbonnet;ochapéuaindapendente.Onópeloqual os cordões desse chapéu estavam amarrados não era tipicamentefeminino,masumnócorrediçodemarinheiro.Após o reconhecimento do corpo, ele não foi levado, como de costume,

para a Morgue (essa formalidade sendo supér lua), mas enterrado àspressasnãomuito longedopontoonde fora resgatadodas águas.GraçasaosesforçosdeBeauvais,oassunto foidiligentementeabafado,omáximopossível; e vários dias se passaram antes que qualquer comoção públicadisso adviesse.Um jornal hebdomadário [New YorkMercury ], entretanto,inalmente noticiou o caso; o cadáver foi exumado e procedeu-se a umnovo exame; mas nada apareceu que já não houvesse sido antesobservado. As roupas, entretanto, foram agora submetidas à mãe e aosamigosda vítima e identi icadas seguramente comoas que amoçausavaaosairdecasa.Entrementes,aexcitaçãocresciahoraahora.Diversosindivíduosforam

detidose liberados.EspeciaissuspeitasrecaíramsobreSt.Eustache;eelefoiincapaz,nocomeço,defornecerumrelatocoerentedeseuparadeironodomingo em que Marie saiu de casa. Subsequentemente, entretanto,apresentou a Monsieur G—— uma declaração juramentada prestandocontas de cada hora passada no dia em questão. Àmedida que o tempopassava sem que nenhum avanço fosse feito no caso, um milhão derumorescirculoueos jornalistasocupavam-sede tecer insinuações. Entreelas,aqueatraiumaioratençãofoiaideiadequeMarieRogetaindavivia—queo cadáver encontradonoSenaeraode algumaoutra infeliz. Serábom que eu apresente ao leitor alguns trechos que exempli icam ainsinuação acima aludida. Esses trechos são traduções literais doL'Etoile[New York Brother Jonathan , editado por H. Hastings Weld,Esq.], jornal

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dirigido,emgeral,comgrandecompetência.“MademoiselleRogetdeixouacasadesuamãenodomingopelamanhã,

dia 22 de junho de 18—, com o propósito ostensivo de visitar a tia, oualgum outro parente, na Rue des Drômes. Desse momento em diante,ninguémmais a viu, comprovadamente. Não há absolutamente qualquerrastro ou notícia dela. […] Ninguém, seja quem for, se apresentou, até opresente instante,dandocontadetê-lavistonessedia,depoisquepassoupelaportadacasadesuamãe.[…]Ora,aindaquenãotenhamosqualquerevidênciadequeMarieRogetestivessenomundodosvivosapósasnovehoras do domingo, dia 22 de junho, temos prova de que, até essa hora,continuavacomvida.Aomeio-diadaquarta-feirao corpodeumamulherfoi encontrado lutuando à beira d'água na Barrière du Roule. Isso foi,mesmopresumindo-sequeMarieRoget tenhasidoatiradaao rioaté trêshoras após ter deixado a casa de suamãe, apenas três dias a contar domomentoemquesaiudecasa—trêsdias,umahoraamais,umahoraamenos. Mas é tolice supor que o assassinato, se um assassinato foicometidocontraseucorpo,poderiaterseconsumadocedoobastanteparaqueosassassinoshouvessemjogadoocorponorioantesdameia-noite.Osculpadosde tais crimeshorrendospreferemaescuridãoà luz. […]AssimentendemosqueseocorpoencontradonorioeradefatoodeMarieRogetele sópoderia ter icadona águadois dias emeio, ou três, nomáximo.Aexperiência nesses casosmostra que corpos afogados, ou corpos jogadosnaáguaimediatamenteapósamorteviolenta,exigemdeseisadezdiasdesu iciente decomposição até voltarem à super ície. Mesmo se um canhãohouversidodisparadonopontoondeestáumcadáver,eelesubirantesdepelomenos cincoou seisdiasde imersão, voltará a afundar sedeixadoàprópria sorte. Ora, perguntamo-nos, o que aconteceu nesse caso paraprovocarumdesviodocursonormaldanatureza? […]Seocorpo tivessesidomantidonamargememseuestadodes iguradoatéterça-feiraànoite,algum vestígio dos assassinos teria sido encontrado na margem. É umaquestão duvidosa, ainda, se o corpo teria vindo à tona tão cedo, mesmotendo sido lançado na água dois dias após a morte. E, além do mais, ésumamente improvávelque algumvilãoquehouvesse cometido tal crimecomo o que se supõe aqui teria jogado o corpo sem lhe atar algum pesoparaafundá-lo,quandotalprecauçãopoderiafacilmentetersidotomada.”Oeditorentãoprossegueargumentandoqueocorpodeviater icadona

água “nãomeramente três dias, mas, pelomenos, cinco vezes três dias”,pois estava tão decomposto que Beauvais teve grande di iculdade em

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reconhecê-lo. Esse último ponto, entretanto, foi plenamente refutado.Continuoatradução:“Quais são então os fatos em que Monsieur Beauvais se apoia para

a irmarsemdúvidaqueocorpoeradeMarieRoget?Elerasgouamangado vestido e diz ter encontrado marcas que o satis izeram acerca daidentidade. O público em geral supôs que tais marcas consistiam decicatrizesdealgum tipo.Eleesfregouobraçoeencontrou cabelos nele—algotãoimpreciso,achamos,quantosepodeprontamenteimaginar—tãopouco conclusivo quanto encontrar um braço dentro da manga. M.Beauvaisnãovoltounessanoite,masmandouinformarMadameRoget,àssete horas da noite de quarta-feira, que uma investigação com relação asua ilhacontinuavaemcurso.SeadmitimosqueMadameRoget,devidoàidade e ao luto, não podia ter ido até lá (o que é admitir muita coisa),decertodeveterhavidoalguémparaacharquevaliaapenacompareceraim de auxiliar na investigação, se achavam que o corpo era de Marie.Ninguémapareceu.NadafoiditoououvidosobreoassuntonaRuePavéeSt. Andrée que chegasse sequer aos ocupantes do mesmo prédio. M. St.Eustache,onoivoefuturoesposodeMarie,queerainquilinonapensãodesuamãe,disseemseudepoimentoquenãosoubedadescobertadocorpodesuanoivasenãonamanhãseguinte,quandoM.Beauvaisentrouemseuquartoelhecomunicouarespeito.Paraumanotíciacomoessa,parece-nosquefoimuitofriamenterecebida.”Dessemodo o jornal tentava criar uma impressão de apatia por parte

das pessoas ligadas aMarie, inconsistente com a suposição de que essaspessoas acreditassem que o cadáver fosse dela. Chegava a ponto desugerir o seguinte: — que Marie, com a conivência de seus amigos,ausentara-se da cidade por motivos ligados a uma acusação contra suacastidade; e que esses amigos, quando da descoberta de um cadáver noSena,emcertamedidaparecidocomodamoça,haviamseaproveitadodaoportunidade para inculcar no público a crença em sua morte. Mas oL'Etoile foi novamente apressadodemais. Ficounitidamentedemonstradoque nenhuma apatia, tal como se imaginara, existia; que a velha senhoraestava extraordinariamente fraca, tão agitada a ponto de ser incapaz decumprir qualquer obrigação; que St. Eustache, longe de receber a notíciacom frieza, icou enlouquecido de pesar, e portou-se de modo tãodescontrolado que M. Beauvais persuadiu um amigo e parente a seencarregardele,e impediuquepresenciasseoexamenaexumação.Alémdomais, embora fosse a irmado peloL'Etoile que o cadáver voltou a ser

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enterrado às expensas públicas — que um vantajoso oferecimento desepultura particular foi absolutamente declinado pela família — e quenenhummembrodafamíliacompareceuaocerimonial:—embora,repito,tudo isso tenha sido asseverado peloL'Etoile, enfatizando ainda mais aimpressão que o jornal objetivava transmitir — contudo, tudo isso foisatisfatoriamenterefutado.Emumnúmerosubsequente,umatentativafoifeitadelançarsuspeitasobreopróprioBeauvais.Oeditordiz:“Agora, então, uma mudança surge na questão. Fomos informados de

que,emcertaocasião,enquantoumataldeMadameB——encontrava-senacasadeMadameRoget,M.Beauvais,queestavadesaída,disse-lhequeumgendarme era aguardado ali, e que ela, Madame B., não devia dizercoisa alguma aogendarme até seu regresso,mas que deixasse o assuntocom ele. […] Na presente situação das coisas, M. Beauvais parece ter aquestão toda engatilhada na cabeça.Nemumúnico passo pode ser dadosem M. Beauvais; pois, independentemente do caminho escolhido, éimpossível não esbarrar nele. […] Por algum motivo, determinou queninguémdeveria terqualquer envolvimento comosprocedimentos anãoser ele mesmo, e tirou do caminho os homens da família, segundo sequeixaram, de uma maneira assaz singular. Ao que parece, tem semostradomuitoavessoapermitirqueosparentesvejamocorpo.”Pelofatoseguinte,algumaplausibilidadefoidadaàsuspeitadessemodo

lançada sobreBeauvais.Umvisitantede seuescritório,poucosdias antesdo desaparecimento damoça, e na ausência de seu ocupante, observaraumarosa no buraco da fechadura da porta e o nome “Marie” escrito emumalousapenduradabemàmão.A impressão geral, até onde fomos capazes de extrair dos jornais,

parecia ser de queMarie fora vítima deumagangue de delinquentes—quehaviamsidoelesquealevaramparaooutroladodorio,maltrataram-naeaassassinaram.OLeCommercial[JournalofCommercedeNovaYork],entretanto, periódico de extensa in luência, combateu severamente essaideiapopular.Citoumapassagemouduasdesuascolunas:“Estamosconvencidosdequeaperseguiçãoatéagoravemseguindoum

rastrofalso,namedidaemquetemsidodirigidaparaaBarrièreduRoule.É impossível que uma pessoa tão bem conhecida pormilhares, como eraessajovem,tenhatranspostotrêsquadrassemqueninguématenhavisto;e qualquer um que a tivesse visto teria se lembrado do fato, pois eladespertava interesse em todos que a conheciam. Aconteceu nomomentoemqueasruasestavamcheiasdegente,quandoelasaiu.[…]Éimpossível

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que tenha ido à Barrière du Roule, ou à Rue des Drômes, sem serreconhecidaporumadúziadepessoas;econtudonãoapareceuninguémqueatenhavistoapósterpassadopelaportadacasadesuamãe,enãoháevidência,excetoo testemunhorelativoa suas intençõesexpressas , dequesequertenhasaído.Seuvestidoestavarasgado,enroladoemtornodeseucorpoeamarrado;e, a julgarpor isso, foi carregadacomoum fardo.SeoassassinatohouvessesidocometidonaBarrièreduRoule,nãoteriahavidonecessidadedetalarranjo.Ofatodequeocorpofoiencontrado lutuandoperto da Barrière não constitui prova acerca do lugar onde foi atirado àágua. […]Umpedaçodeumadasanáguasda infelizgarota, comsessentacentímetrosdecomprimentoetrintadelargura,foiarrancadoeamarradosob seu queixo e em torno da nuca, provavelmente para impedir quegritasse.Issofoifeitoporsujeitosquenãocarregamlençosdebolso.”Umdiaoudoisantesdeochefedepolícianosprocurar,porém,chegouà

polícia alguma informação importante que pareceu lançar por terra pelomenos a maior parte da argumentação doLe Commercial . Dois meninos,ilhos de uma certa Madame Deluc, enquanto perambulavam pelosbosques nos arredores da Barrière du Roule, penetraram por acaso emuma espessa moita, no interior da qual havia três ou quatro pedrasgrandes,formandoumaespéciedebanco,comencostoedescansoparaospés. Na pedra de cima estava uma anágua branca; na segunda, umaecharpe de seda. Uma sombrinha, luvas e um lenço de bolso tambémforam encontrados. O lenço exibia o nome “Marie Roget”. Fragmentos devestidoforamencontradosnosarbustosemtorno.Aterraestavapisoteadaehaviagalhosquebradosesinaisdeluta.Entreamoitaeorio,descobriu-se que as tábuas da cerca haviam sido derrubadas e o solo mostravaevidênciadequealgumpesadofardoforaarrastado.Umhebdomadário,LeSoleil[SaturdayEveningPost,deFiladél ia,editado

por C. J. Peterson,Esq.], publicou os seguintes comentários sobre essadescoberta—comentáriosquemeramenteecoavamosentimentodetodaaimprensaparisiense:“Os objetos evidentemente icaram ali pelo menos por três ou quatro

semanas; estavam todos fortemente embolorados pela ação da chuva, ecolados com o bolor. A relva crescera em volta e cobrira alguns deles. Aseda da sombrinha era resistente, mas as ibras haviam grudado pordentro. A parte de cima, onde ela fora fechada e enrolada, estava todaembolorada e podre, e rasgou quando aberta. […] Os pedaços de seuvestido arrancados pelos arbustos tinham cerca de oito centímetros de

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larguraequinzedecomprimento.Umaparteeraabainhadovestido,quefora remendada; a outra peça era parte da saia, não a bainha. Pareciamtiras arrancadas e estavam no arbusto espinhento, a cerca de trintacentímetros do chão. […] Não pode haver dúvida, portanto, que o lugardessamacabrabarbaridadefoiencontrado.”Como consequência dessa descoberta, novas evidências surgiram. Em

seu depoimento, Madame Deluc informou que mantém uma hospedarianãomuito longedamargemdorio,dooutro ladodaBarrièreduRoule.Aáreaéafastada—particularmenteafastada.Éousualpontodeencontroaosdomingosdosmeliantesdacidade,queatravessamorioembotes.Àstrês horas, aproximadamente, na tarde do domingo em questão, umajovemchegouàhospedaria, acompanhadadeumrapazde tezescura.Osdois permaneceramali por algum tempo.Ao saírem, tomarama trilhadeumespessobosquedosarredores.ChamouaatençãodeMadameDelucovestidousadopelamoça,devidoasuasemelhançacomodeumaparentesua, falecida. A echarpe foi particularmente notada. Pouco depois dapartida do casal, uma gangue de malfeitores chegou, comportaram-seruidosamente, comeram e beberam sem pagar, seguiram o caminhotomado pelo jovem e pela moça, voltaram à hospedaria ao entardecer etornaramacruzarorio,aparentandograndepressa.Pouco depois de escurecer, nessamesma tarde, Madame Deluc, assim

como seu ilho mais velho, escutou gritos de mulher nos arredores dahospedaria.Osgritos foramviolentosmasbreves.MadameD.reconheceunão só a echarpe encontrada na moita como também o vestido queacompanhava o cadáver. Um cocheiro de ônibus, Valence [Adam], agoratambém testemunhava ter visto Marie Roget atravessar o Sena em umabalsa,nodomingoemquestão,nacompanhiadeum jovemde tezescura.Ele,Valence,conheciaMarie,eeraimpossívelquehouvesseseequivocadoem relação a sua identidade. Os objetos encontrados na moita forampositivamenteidentificadospelosparentesdeMarie.Asevidênciaseasinformaçõesdessemodopormimreunidascombase

nos jornais,porsugestãodeDupin,compreendiamapenasmaisumponto— mas este um ponto, ao que tudo indicava, de amplas consequências.Parece que, imediatamente após a descoberta das roupas tal como sedescreveu acima, o corpo sem vida, ou quase sem vida, de St. Eustache,noivo deMarie, foi encontrado nos arredores da suposta cena do crime.Um frasco rotulado “láudano”, vazio, estava ao seu lado. O hálito davaevidência do veneno. Morreu sem dizer uma palavra. Junto ao corpo foi

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encontrada uma carta, a irmando brevemente seu amor por Marie, e aintençãodesuicídio.“Di icilmente tenho necessidade de lhe dizer”, a irmou Dupin, quando

terminavadeexaminarminhasanotações,“queessecasoédelongemuitomais intricado que o da Rue Morgue; do qual difere num importanteaspecto.Trata-sedeumexemplodecrime comum,pormaisatrozqueseja.Nãohánadadepeculiarmenteoutréemsuanatureza.Deveobservarque,poressemotivo,omistériotemsidoconsideradode fácilsolução,quando,por esse motivo, é que deveria ser considerado di ícil. Assim, no início,julgou-sedesnecessáriooferecerumarecompensa.OsbeleguinsdeG——foram capazes de compreender namesma hora como e por que uma talatrocidadepoderia ter sido cometida. Conseguiam conceber em suaimaginaçãoummodo—muitosmodos—eummotivo—muitosmotivos;ecomonãoeraimpossívelquenenhumdessesnumerososmodosemotivospudessetersidooverdadeiro,chegaramàconclusãodequeumdeles deviaser. Mas a naturalidade com que foram acalentadas essas diversasfantasias e a própria plausibilidade que assumiu cada uma deve sercompreendida como um indicativo antes das di iculdades do que dasfacilidades que devem acompanhar a elucidação. Já tive oportunidade deobservarqueéalçando-seacimadoplanodoordinárioquearazãotateiaseu caminho, se é que o faz, na busca da verdade, e que a perguntaapropriadaemcasoscomoessenãoétanto'oqueaconteceu?'como'oqueaconteceuquenuncaaconteceuantes?'.NasinvestigaçõesnaresidênciadeMadameL'Espanaye[ver“OsassassinatosnaRueMorgue”],oshomensdeG—— icaram desencorajados e confusos com a própria estranheza que,para um intelecto devidamente regulado, teria proporcionado o maisseguroprognósticodesucesso;aopassoqueessemesmointelectopoderiater mergulhado no desespero com o caráter ordinário de tudo que seapresentavaàobservaçãonocasodamoçadaperfumaria,econtudonadacomunicavasenãoofáciltriunfoaosfuncionáriosdachefaturadepolícia.“NocasodeMadameL'Espanayeesua ilha,nãohavia,mesmonoinício

de nossa investigação, nenhuma dúvida de que um assassinato foracometido. A ideia de suicídio foi excluída imediatamente. Aqui, também,estamosdesobrigados,desdeocomeço,defazerqualquersuposiçãosobreaocorrênciadesuicídio.OcorponaBarrièreduRoule foiencontradoemcircunstânciastaisquenãooferecemargemalgumaparadi iculdadenesseimportanteponto.Massugeriu-sequeocorpoencontradonãoédeMarieRoget, pela denúncia de cujo assassino, ou assassinos, a recompensa é

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oferecida,erespeitandoaoqual,exclusivamente,nossoacordofoi irmadocom o chefe de polícia. Ambos conhecemosmuito bem esse senhor. Nãoconvém con iar demais nele. Se, datando nossas investigações dadescoberta do corpo, e a partir daí rastreando um assassino, no entantodescobrimosseressecorpodealgumaoutrapessoaquenãoMarie;ou,secomeçandoporMariecomvida,chegamosatéela,econtudodescobrimosque não foi assassinada— tanto num caso como no outro terá sido umtrabalho perdido; pois que é com Monsieur G—— que estamos lidando.Logo, em nosso próprio proveito, se não em proveito da justiça, éindispensávelquenossoprimeiropassosejaadeterminaçãodaidentidadedocadávercomosendoodadesaparecidaMarieRoget.“Para o público, os argumentos doL'Etoile têm sido de peso; e que o

próprio jornal está convencido da importância deles pode-se inferir pelomodo como inicia umde seus ensaios a respeito do assunto— 'Diversosmatutinosdehoje', a irma, 'falama respeitodo artigo conclusivo saído noEtoile de segunda'. Paramim, esse artigo parece conclusivo sobre poucacoisa alémdo fervor de seu autor. Devemos ter emmente que, demodogeral, o objetivo de nossos jornais é antes criar uma sensação— venderseu peixe — que promover a causa da verdade. Este último im só éperseguido quando parece coincidir com o primeiro. O periódico quesimplesmente se adapta à opinião normal (por mais bem fundamentadaque essaopiniãopossa ser)não conquistapara si crédito algum junto aopopulacho. A massa do povo vê como profunda apenas a opinião quesugerepungentescontradiçõescomaideiageral.Naartedoraciocínio,nãomenos do que na literatura, é o epigrama que é mais imediata euniversalmenteapreciado.Emambas,édamaisbaixaordemdemérito.“Oquequerodizeréquefoiomistodeepigramaemelodramanaideia

dequeMarieRogetaindavive,maisdoquequalquerplausibilidadedessaideia,quesugeriuissoaoL'Etoileeassegurou-lheumarecepçãofavorávelentreopúblico.Examinemososprincipaispontosdoargumentodojornal;empenhando-nosemevitara incoerênciacomqueéapresentadodesdeoinício.“Oprimeiroobjetivodojornalistaémostrar,pelabrevidadedointervalo

entreodesaparecimentodeMarieea revelaçãodocorpoboiando,queocorpo não pode ser o de Marie. A redução desse intervalo à sua menordimensão possível se torna assim, na mesma hora, um objetivo para oautor do artigo. Na apressada busca desse objetivo, ele se precipita namera suposiçãodesdeo início. 'É tolice supor', diz ele, 'queo assassinato,

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se um assassinato foi cometido contra seu corpo, poderia ter sidoconsumado cedo o bastante para permitir que os assassinos jogassem ocorponorioantesdameia-noite.'Aperguntaquenosocorredeimediato,muito naturalmente, épor quê? Por que é tolice supor que o crime foicometidocincominutos apósa jovemterdeixadoa casadesuamãe?Porqueé tolicesuporqueoassassinato foicometidoemumdadoperíodododia?Assassinatosocorremaqualquerhora.Porém,casoocrimehouvesseocorridoemalgummomentoentreasnovedamanhãdedomingoequinzepara a meia-noite, ainda assim teria havido tempo su iciente para ter'jogadoocorponorioantesdameia-noite'.Essasuposição,assim,resume-seprecisamentea isso—queoassassinatonão foicometidonodomingo,absolutamente — e, se permitirmos aoL'Etoile supor tal coisa,possivelmente estaremos lhes permitindo liberdades em tudo mais. Oparágrafoquecomeçacom 'É tolicesuporqueoassassinatoetc.', emboraapareça impresso noL'Etoile, pode ser imaginado como tendo existidoassimnocérebrodeseuautor—'Étolicesuporqueoassassinato,seumassassinatofoicometidocontraseucorpo,poderiatersidocometidocedoobastanteparaterpossibilitadoaseusassassinosjogarocorponorioantesda meia-noite; é tolice, repetimos, supor tudo isso, e supor ao mesmotempo(jáqueestamosdeterminadosa supor)queocorponão foi jogadosenãoapós a meia-noite' — uma frase bastante inconsequente em simesma, mas não tão completamente absurda quanto a que vimosimpressa.“Caso fosse meu propósito”, continuou Dupin, “meramente provar a

fragilidadedoargumentonessetrechodoL'Etoile,eupoderiaseguramenteparar por aqui.Não é, entretanto, comoL'Etoile que temos de lidar,mascoma verdade. A frase emquestão, domodo como está, signi ica apenasuma coisa; e esse signi icado eu já determinei razoavelmente: mas é desumaimportânciairmosalémdasmeraspalavras,embuscadeumaideiaque essas palavras obviamente pretendiam transmitir, e falharam. Aintençãodojornalistaeradizerque,independentementedoperíodododiaou da noite do domingo em que esse crime foi cometido, era improvávelqueosassassinosteriamseaventuradoacarregarocorpoparaorioantesdameia-noite. E nisso reside, na verdade, a suposiçãode quemequeixo.Ficou presumido que o assassinato foi cometido em tal lugar, e sob taiscircunstâncias, quecarregar o corpo para o rio fez-se necessário. Ora, oassassinatopodeterocorridoàsmargensdorio,ounoprópriorio;e,dessemodo,jogarocadávernaáguapodeterconstituído,aqualquerhoradodia

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ou da noite, o recursomais óbvio e imediato de que lançarmão para selivrar dele. Você deve compreender que não estou sugerindo aqui algocomo sendo provável ou coincidente com minha própria opinião. Minhaintenção,atéagora,nãoguardaqualquerreferênciacomos fatos do caso.Desejo meramente precavê-lo contra todo o tom sugerido noL'Etoile,chamando sua atenção para a natureza ex parte53 do jornal desde oprincípio.“Tendo prescrevido assim um limite para acomodar suas próprias

noções preconcebidas; tendo presumido que, se aquele era o corpo deMarie, não podia ter permanecido na água senão por um período muitobreve;ojornalprossegueafirmando:“'A experiência nesses casos mostra que corpos afogados, ou corpos

jogadosnaáguaimediatamenteapósamorteviolenta,exigemdeseisadezdias de su iciente decomposição até voltarem à super ície.Mesmo se umcanhãohouversidodisparadonopontoondeestáumcadáver,eelesubirantes de pelomenos cinco ou seis dias de imersão, voltará a afundar sedeixadoàprópriasorte.'“Essas alegações foram tacitamente admitidas por todos os jornais de

Paris, com exceção doLe Moniteur [New York Commercial Advertiser ,dirigidopelocoronelStone].Esteúltimoseempenhaemcombaterapenasotrechodoparágrafoquefazreferênciaa'corposafogados',citandocercade cinco ou seis casos em que os corpos de indivíduos sabidamenteafogadosforamencontrados lutuandoapósumintervalodetempomenordoqueodefendidopeloL'Etoile.Masháqualquercoisadeexcessivamenteanti ilosó ica na tentativa por parte doLeMoniteur de refutar a asserçãogeral doL'Etoile mencionando casos particulares que militem contra talasserção.Tivessesidopossíveladuzircinquentaemvezdecincoexemplosde corpos encontrados lutuando ao cabo de dois ou três dias, essescinquenta exemplos ainda assim poderiam ser encarados propriamenteapenas como exceções à regra do L'Etoile, até a chegada dessemomentoemqueaprópriaregradevesseserrefutada.Admitindo-searegra(eissoo Le Moniteur não nega, insistindo meramente em suas exceções), oargumento doL'Etoile pode permanecer com plena força; pois esseargumento não pretende envolver mais do que uma questão daprobabilidadedeocorpoterascendidoàsuper ícieemmenosdetrêsdias;e essa probabilidade continuará a favor da posição doL'Etoile até queessescasosaduzidosdemodotãopuerilsejamemnúmerosu icienteparadeterminarumaregraantagônica.

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“Vocêvaivernamesmahoraque todoargumentoquantoaessepontodeveserdirigido,seofor,contraaprópriaregra;ecomesse imdevemosexaminar aracionalidade da regra. Ora, o corpo humano, demodo geral,nãoémuitomaislevenemtampoucomuitomaispesadodoqueaáguadoSena; ou seja, a gravidade especí ica do corpo humano, em sua condiçãonatural,émaisoumenosigualaovolumedeáguadocequeeledesloca.Oscorpos de pessoas gordas e lácidas, com ossos pequenos, e os dasmulheresemgeral,sãomaislevesdoqueosdepessoasmagrasedeossosgrandes,edoqueosdoshomens;eagravidadeespecí icadaáguadeumrioé emcertamedida in luenciadapelapresençadamarévindadomar.Mas deixando a maré fora da discussão, pode-se dizer quepouquíssimoscorpos humanos afundarão,mesmona água doce,por si só. Praticamentequalquer um, caindo emum rio, será capaz de lutuar se suportar que agravidadeespecí icadaáguaseja razoavelmenteaduzidaemcomparaçãocom a sua própria — ou seja, se suportar que toda a sua pessoa iquesubmersa com a mínima exceção possível. A posição apropriada paraalguémquenãosabenadaréaposturaeretadequemcaminhaemterra,comacabeçajogadainteiramenteparatrás,eimersa;somenteabocaeasnarinas permanecendo acima da super ície. Nessas circunstâncias,perceberemosque lutuamossemdi iculdadeesemesforço.Ficaevidente,entretanto,queasgravidadesdocorpoedovolumedeáguadeslocadasãomuito delicadamente equilibradas e que a coisa mais ín ima levará umadasduasapreponderar.Umbraço,porexemplo,erguidodaágua,edessemodoprivadodeseuapoio,éumpesoadicionalsu icienteparasubmergiracabeçatoda,enquantoumaajudaacidentaldomenorpedaçodemadeiranos possibilita elevar a cabeça o su iciente para olhar em torno. Bem,quandoalguémdesacostumadoanadarsedebatenaágua,osbraços sãoinvariavelmente projetados para cima, conforme é feita uma tentativa demanter a cabeça em sua posição perpendicular usual. O resultado é aimersão da boca e das narinas, e a introdução, durante os esforços derespirar enquanto se está soba super ície, de águanospulmões.Grandepartevaiparartambémnoestômago,eocorpotodo icamaispesadocomadiferençaentreopesodoaroriginalmentedistendendoessascavidadese o do luido que agora as preenche. Essa diferença, via de regra, ésu iciente para fazer o corpo afundar; mas é insu iciente nos casos deindivíduos com ossos pequenos e uma quantidade anormal de matériaflácidaougorda.Taisindivíduosflutuammesmodepoisdeafogados.“Ocadáver,supondo-sequeestejanofundodorio,permaneceráaliaté

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que, de algum modo, sua gravidade especí ica mais uma vez se tornemenor do que a do volume de água que ele desloca. Esse efeito éocasionado pela decomposição ou por algum outro meio. O resultado dadecomposiçãoéageraçãodegás,dilatandoostecidoscelularesetodasascavidades,eproporcionandooaspecto inchadoqueétãohorrível.Quandoessa dilatação progrediu a um ponto em que o volume do corpo estámaterialmente aumentado sem que haja um aumento correspondente demassaoupeso,suagravidadeespecí icasetornamenordoqueadaáguadeslocada,eocorpodessemodosurgeàsuper ície.Masadecomposiçãoémodi icada por inúmeras circunstâncias— é acelerada ou retardada porinúmeros agentes; por exemplo, pelo calor ou frio da estação, pelaimpregnação mineral ou pela pureza da água, por sua maior ou menorprofundidade,porsercorrenteouestagnada,pela temperaturadocorpo,poralguma infecçãooupelaausênciadedoençaantesdamorte.Assim,éevidentequenãotemoscomoindicarumperíodo,comnadaquesequerseaproximedaexatidão,emqueocadáverdeverásubirpeladecomposição.Sob determinadas condições, esse resultado ocorreria em uma hora; soboutras, poderia nem ocorrer. Há infusões químicas mediante as quais aconstituição animal pode icar preservadapara sempre da corrupção; odicloreto de mercúrio é uma delas. Mas, à parte a decomposição, podehaver,enormalmentehá,umageraçãodegásdentrodoestômago,devidoà fermentaçãoacetosadematériavegetal (oudentrodeoutrascavidadespor outros motivos) su iciente para induzir uma dilatação que levará ocorpo à super ície. O efeito produzido pelo disparo de um canhão é o desimples vibração. Isso pode soltar o corpo da lama macia ou do lodo noqualeleestáatolado,permitindoassimque lutuequandooutrosagentesjá o prepararam para fazê-lo; ou pode superar a tenacidade de algumaspartesapodrecidasdotecidocelular;permitindoqueascavidadesdilatemsobainfluênciadogás.“Tendo assim diante de nós toda a iloso ia do assunto, podemos

facilmente testar por meio dela as a irmações doL'Etoile. 'A experiêncianessescasos',dizojornal,'mostraquecorposafogados,oucorposjogadosnaáguaimediatamenteapósamorteviolenta,exigemdeseisadezdiasdesu iciente decomposição até voltarem à super ície. Mesmo se um canhãohouversidodisparadonopontoondeestáumcadáver,eelesubirantesdepelomenos cincoou seisdiasde imersão, voltará a afundar sedeixadoàprópriasorte.'“Esseparágrafoagoradevepareceremsuatotalidadeumemaranhado

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de inconsequência e incoerência. A experiêncianão mostra que 'corposafogados'exigem de seis a dez dias para que su iciente decomposiçãotenha lugar de modo a alçá-los à super ície. Tanto a ciência como aexperiênciamostramqueoperíodoparasubiré,edevenecessariamenteser, indeterminado.Se,alémdomais,umcorposubiuà tonapelodisparode um canhão, elenão 'voltará a afundar se deixado à própria sorte' atéqueadecomposiçãotenhaprogredidodetalmodoapermitiroescapedogás gerado. Mas desejo chamar sua atenção para a distinção que é feitaentre 'corpos afogados' e 'corpos jogados na água imediatamente após amorte violenta'. Embora o jornalista admita a distinção, elemesmo assiminclui todosnumamesmacategoria.Mostreicomoacontecedeocorpodeum homem afogado se tornar especi icamente mais pesado do que ovolumedeáguadeslocado,equeelenãoafundariaabsolutamente,excetopelas debatidas com que eleva os braços acima da super ície, e astentativas de respirar quando está sob a super ície — tentativas queintroduzem água no lugar do ar original, nos pulmões. Mas essa luta eessas tentativas não ocorreriamno corpo 'jogado na água imediatamenteapósamorteviolenta'.Assim,nesseúltimoexemplo, ocorpo,viaderegra,nãoafundariaabsolutamente — fato que oL'Etoile evidentemente ignora.Quandoadecomposiçãoprogrediuaumestadomuitoavançado—quandoa carne em grande medida separou-se dos ossos— então, de fato, masapenasentão,deixaremosdeverocadáver.“E agora o que pensar do argumento de que o corpo encontrado não

podia ser o deMarie Roget porque, três dias apenas tendo transcorrido,esse corpo foi encontrado lutuando? Se afogada, sendo mulher, podeacontecer de nunca ter afundado; ou, tendo afundado, pode terreaparecidoemvinte equatrohoras, oumenos.Masninguémsupõequetenha se afogado; e, morrendo antes de ter sido jogada no rio, pode tersidoencontradaboiandoemqualqueroutroperíodoposterior.“Mas,dizoL'Etoile, 'seocorpotivessesidomantidonamargememseu

estado des igurado até terça-feira à noite, algum vestígio dos assassinosteria sido encontrado na margem'. Aqui inicialmente é di ícil perceber aintençãodo jornal. Eleprocura anteciparoque imagina serumapossívelobjeçãoasuateoria—asaber:dequeocorpofoimantidonamargempordoisdias, sofrendorápidadecomposição—mais rápidadoquese icasseimersonaágua.Supõeque,houvesseessesidoocaso,teriatalvezvindoàtona na quarta-feira, e acha quesomente sob tais circunstâncias poderiateraparecidona super ície.Logo, ele seapressaemmostrarqueo corpo

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não foi mantido na margem; pois, nesse caso, 'algum vestígio dosassassinos teria sido encontrado na margem'. Presumo que vai rir dosequitur. Não existe meio pelo qual fazê-lo ver como a meraduração docorpo na margem seria capaz de agir paramultiplicar os vestígios doscriminosos.Tampoucoeuconsigover.“ 'E, alémdomais, é sumamente improvável', continuanossoperiódico,

'que algum vilão que houvesse cometido tal crime como o que se supõeaquiteriajogadoocorposemlheataralgumpesoparaafundá-lo,quandotalprecauçãopoderia facilmente ter sido tomada.'Observe, aqui, a risívelconfusãodepensamento!Ninguém—nemmesmooL'Etoile—discute oassassíniocometidocontraocorpoencontrado .Asmarcasdaviolênciasãodemasiado óbvias. A intenção de nosso argumentador é meramentemostrarque aquelenão é o corpodeMarie. EledesejaprovarqueMarienão foi assassinada—não que o corpo não foi. Contudo, sua observaçãoprovaapenasoúltimoponto.Eisaliumcadáversemumpesoatadoaele.Osassassinos,aoatirá-loàágua,nuncateriamdeixadodeprendê-loaumpeso.Logo,nãofoijogadopelosassassinos.Issoétudoqueseprovou,seéque alguma coisa foi provada. A questão da identidade não é sequerabordada e oL'Etoile então se empenha comomaior afã emmeramentenegar o que admitiu apenas ummomento antes. 'Estamos perfeitamenteconvencidos', a irma, 'de que o corpo encontrado era o de uma mulherassassinada.'“E esse não é o único exemplo,mesmo nessa divisão de seu tema, em

que nosso argumentador involuntariamente argumenta contra simesmo.Seu objetivo evidente, como já disse, é reduzir, tanto quanto possível, ointervalo entre o desaparecimento de Marie e a descoberta do corpo.Contudo,vemoscomoinsistenopontodequeninguémviuamoçaapartirdo instante em que deixou a casa de sua mãe. 'Não temos qualquerevidência',a irma,'dequeMarieRogetestivessenomundodosvivosapósas nove horas do domingo, 22 de junho.' Na medida em que suaargumentaçãoéobviamenteexparte,eledeveria,pelomenos,terdeixadoessepontode fora;pois, caso aparecesse alguémque tivesse vistoMarie,digamosnasegunda,ounaterça,ointervaloemquestãoteria icadomuitoreduzidoe,porseupróprioraciocínio,aprobabilidademuitodiminuídadeocorposerodagrisette.ÉtodaviadivertidoobservarqueoL'Etoile insistenessepontonaplenacrençadequefavoreceseuargumentogeral.“Reexamine agora essa parte do argumento que faz referência à

identi icação do corpo por Beauvais. Em relação aoscabelos no braço, o

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L'Etoilefoiobviamentedesonesto.M.Beauvais,nãosendoumidiota,jamaisteria frisado, numa identi icação do cadáver, simplesmente cabelos nobraço. Não existe braçosem cabelos. Ageneralidade com que oL'Etoile seexpressouéumameradeturpaçãodafraseologiadatestemunha.Eledeveter se referido a algumapeculiaridade nesses cabelos.Possivelmenteumapeculiaridadedecor,quantidade,comprimentooucondições.“'Seupé',a irmaojornal, 'erapequeno—assimcomomilharesdepés.

Sua liga também não constitui prova alguma— tampouco seu sapato—poissapatoseligassãovendidosemembalagens.54Omesmopodeserditodas lores em seu chapéu. Um dos pontos em que insiste fortemente M.Beauvaisédequeapresilhada ligahaviasidopuxadaparatrása imdemantê-la no lugar. Isso não diz nada; pois a maioria das mulheres julgaapropriado levar o par de ligas para casa e ajustá-las ao tamanho daspernasque irão cingir, em lugardeexperimentá-lasnaprópria lojaondeas adquiriram.' Aqui é di ícil supor que o jornal esteja falando sério.Houvesse M. Beauvais, em sua procura pelo corpo de Marie, descobertoum corpo correspondendo em tamanho geral e aparência ao da moçadesaparecida, ser-lhe-ia justi icável (sem fazer qualquer referência àquestãodotraje)formaraopiniãodequesuabuscaforafrutífera.Se,alémdodetalhedetamanhogeralecontorno,elehouvesseencontradonobraçouma característica peculiar dos pelos que tivesse observado em Mariequandoviva,suaopiniãopoderiater icado,comtodajustiça,fortalecida;eo aumento da convicção poderia perfeitamente ter sido proporcional àpeculiaridade, ou raridade, da marca peluda. Se, os pés de Marie sendopequenos, os do cadáver também fossem pequenos, o aumento daprobabilidade de que o corpo era o de Marie não seria um aumento naproporção meramente aritmética, mas um de ordem elevadamentegeométrica,ouacumulativa.Acresça-seatudoissosapatoscomoosqueelaestiverasabidamenteusandonodiadeseudesaparecimentoe,aindaqueesses sapatos possam ser 'vendidos em embalagens', aumentamos nesseponto a probabilidade de pender na direção da certeza. O que, em simesmo, não seria qualquer evidência de identidade, torna-se, mediantesua posição corroborativa, a provamais segura. Consideremos, então, aslores no chapéu como correspondendo às usadas pela garotadesaparecida,edeixamosdeprocurarqualqueroutracoisa.Seforapenasuma lor, não precisamos ir além—que dizer de duas ou três, oumais?Cada lor sucessiva é uma evidência múltipla — não provaadicionada àprova, masmultiplicada por centenas demilhares. Descobrindo-se agora

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na falecida ligas como as que a moça usava em vida, é quase loucuraprosseguir.Mascomoseviuessasligasestavamapertadascomumajusteda presilha, exatamente como as da própria Marie haviam sido por estaajustadaspoucoantesdesairdecasa.Nessepontoédesatinoouhipocrisiaduvidar. O que oL'Etoile diz com respeito a esse ajuste da liga ser umaocorrência usual nada revela além de sua própria obstinação no erro. Anaturezaelásticadapresilhadaligaéemsiumademonstraçãodararidadedo encurtamento. É inevitável que o que foi feito para se ajustar sozinhodevemuito di icilmente exigir um ajuste alheio. Deve ter sido por algumacidente, em seu sentido estrito, que essas ligas deMarie precisaram doajustedescrito.Sóelasjáteriambastadoamplamenteparadeterminarsuaidentidade.Masnãopelofatodeocadáverencontradoterasligasdamoçadesaparecida,ouossapatos,ouseuchapéu,ouas loresdeseuchapéu,ouseus pés, ou umamarca peculiar no braço, ou seu tamanho e aparênciagerais — é o fato de o corpo ter cada uma dessas coisas, etodascoletivamente. Pudesse ser provado que o editor doL'Etoile, sob taiscircunstâncias, alimentoude fato uma dúvida, não haveria necessidade,nesse caso, de uma autorizaçãode lunatico inquirendo.55 Ele achou sagazarremedar a conversa mole dos advogados, que, na maior parte, secontentam em arremedar os preceitos quadrados dos tribunais. Euobservaria aqui que grande parte do que é rejeitado como evidência emum tribunal é a melhor das evidências para o intelecto. Pois o tribunal,pautando-se pelos princípios gerais da evidência — os princípiosreconhecidoseregistradosnoslivros—,éavessoaguinadasperantecasosparticulares. E essa adesão irme ao princípio, com rigorosadesconsideração da exceção con litante, é um modo seguro de atingir omáximo de verdade atingível, em qualquer longa sequência de tempo. Aprática, in mass, é desse modo ilosó ica; mas não é menos certo queengendravastoerroindividual.*

“Com respeito às insinuações dirigidas contra Beauvais, você de bomgradoasdescartaránumpiscardeolhos.Játeveoportunidadedesondaroverdadeirocaráterdessebomcavalheiro.Trata-sedeumbisbilhoteiro,commais romance do que tino na cabeça. Qualquer um assim constituídoprontamenteseconduzirá,porocasiãodeuma realcomoção,demodoasetornar sujeito a suspeitas por parte dos muito argutos ou dos mal-intencionados.M.Beauvais(aoqueparecedesuasanotações)entreviu-seem algumas ocasiões com o editor doL'Etoile, e ofendeu-o aventando aopiniãodequeocorpo,nãoobstantea teoriadoeditor,era,semamenor

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sombradedúvida,odeMarie. 'Ele insiste',dizo jornal, 'ema irmarqueocadáver era o deMarie,mas é incapaz de fornecer uma particularidade,alémdaquelassobreasquaisjácomentamos,parafazercomqueosoutrosacreditem.' Ora, sem voltar a aludir ao fato de que uma forte evidência'para fazercomqueosoutrosacreditem' jamaispoderia tersidoaduzida,vale observar que um homem pode perfeitamente partilhar de umacrença, num caso dessa espécie, sem ser capaz de apresentar umaúnicarazão para que uma segunda parte nela também acredite. Nada é maisvagoqueimpressõesdeidentidadeindividual.Todohomemreconheceseupróximo, contudo há poucas situações em que a pessoa está preparadaparadar um motivo para esse reconhecimento. O editor doL'Etoile nãotinhaomenordireitodeseofendercomacrençailógicadeM.Beauvais.“Ver-se-á que as circunstâncias suspeitas que o envolvem casam-se

muitomelhorcomminhahipótesedebisbilhoticeromântica doque comainsinuaçãodeculpaquefazojornal.Umavezadotadaainterpretaçãomaisbenevolente, não encontraremos di iculdade em compreender a rosa noburacodefechadura;o'Marie'sobrealousa;oshomensdafamíliatiradosdocaminho;arelutânciaemqueosparentesvissemocorpo;aadvertênciafeitaaMadameB——dequenãodeveriaempreenderqualquerconversacom ogendarme até seu regresso (Beauvais); e, por último, sua aparentedeterminaçãodeque'ninguémdeveriaterqualquerenvolvimentocomosprocedimentos a não ser ele mesmo'. Parece-me inquestionável queBeauvaiseraumpretendentedeMarie;queela lertavacomele;equeeleambicionava dar a entender que gozava de toda sua intimidade econ iança. Nada mais direi a esse respeito; e, na medida em que ostestemunhosrefutamcompletamenteasalegaçõesdoL'Etoile,notocanteàquestão daapatia por parte da mãe e dos demais parentes — apatiainconsistentecomasuposiçãodeacreditaremseraquelecorpoodamoçada perfumaria —, deveremos agora passar a ver se a questão daidentidadefoiresolvidademodoplenamentesatisfatórioparanós.”“E o que”, perguntei aqui, “pensa você sobre as opiniões do Le

Commercial?”“Que, em espírito, são de longe muito mais dignas de atenção que

quaisquer outras já aventadas sobre o assunto.Asdeduções a partir daspremissassão ilosó icaseargutas;masaspremissas,emdoiscasos,pelomenos, estão fundamentadas na observação imperfeita. OLe Commercialquer sugerir que Marie foi capturada por alguma gangue de vis ru iõesnãomuito longe da porta de suamãe. 'É impossível', insiste o jornalista,

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'que uma pessoa tão bem conhecida pormilhares, como era essa jovem,tenha transposto três quadras sem que ninguém a tenha visto.' Essa é aideia de um homem residindo há muito tempo em Paris — um homempúblico— e um cujas caminhadas pela cidade têm se limitado namaiorparte às vizinhanças dos prédios públicos. Ele tem consciência de quedi icilmenteele chega a percorrer uma dúzia de quadras de seu própriobureau sem ser reconhecido e abordado. E, sabedor da extensão de suaprópria familiaridade com os outros, e dos outros consigo, compara suanotoriedadecomadamoçadaperfumaria,nãovêgrandediferençaentreos dois e chega na mesma hora à conclusão de que ela, em suascaminhadas, seria igualmente sujeita a reconhecimento como ele o é nassuas. Esse só poderia ser o caso se os trajetos dela fossem sempre domesmo caráter invariável, metódico, e restritos ao mesmo tipo de áreadelimitadaqueosdele.Elevaievem,aintervalosregulares,nointeriordeumperímetrolimitado,repletodeindivíduosquesãoinduzidosaobservá-lopelointeressequeanaturezaanálogadaocupaçãodojornalistacomasdelesprópriosdesperta.MasdevemossuporqueascaminhadasdeMariesejam, em geral, erráticas. Nesse caso em particular, entende-se como omais provável que ela tenha seguido um trajeto com variação emmédiamaior do que de costume. O paralelo que imaginamos ter existido nacabeça doLeCommercial se sustentaria apenas na eventualidade de doisindivíduos cruzando a cidade toda. Nesse caso, admitindo-se que asrelações pessoais sejam iguais, as chances também seriam iguais de queum igual número de encontros pessoais ocorresse. De minha parte,sustento ser não só possível, como tambémmuitomais do que provável,queMariepode ter seguido, aqualquerhoradada,porqualquerumdosinúmeros trajetos entre sua própria residência e a de sua tia, semencontrar um único indivíduo que conhecesse, ou de quem fosseconhecida. Ao ver essa questão sob sua luz plena e apropriada, devemoster com irmeza em mente a grande desproporção entre os conhecidospessoais até mesmo do indivíduo mais notado de Paris e a populaçãointeiradaprópriacidade.“Mas seja qual for a eloquência que aparentemente ainda exista na

insinuação doLe Commercial , ela icará grandemente diminuída quandolevarmosemconsideraçãoahoraemqueamoçasaiu.'Foinomomentoemqueas ruas estavamcheiasdegente', dizoLeCommercial , 'que ela saiu.'Mas não foi assim. Eram nove horas da manhã. Ora, às nove horas dequalquerdiadasemana,comexceçãodedomingo,asruasdacidadeestão,

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de fato, repletas de gente. Às nove horas de uma manhã dominical, apopulaçãoseencontranamaiorpartedentrodecasa,preparando-se parair à igreja. Nenhuma pessoa observadora terá deixado de notar o arpeculiarmentedesertodacidadeentrecercadeoitoedezdamanhãtododomingo.Entreasdezeonzeasruas icamcheias,masnãoemumhoráriotãocedocomooquefoiindicado.“Háumoutropontonoqualparecehaverumade iciênciade observação

porpartedoLeCommercial . 'Umpedaço',a irma, 'deumadasanáguasdainfeliz garota, com sessenta centímetros de comprimento e trinta delargura, foi arrancado e amarrado sob seu queixo e em torno da nuca,provavelmente para impedir que gritasse. Isso foi feito por sujeitos quenão carregam lenços de bolso.' Se essa ideia está ou não bemfundamentada é algo que nos empenharemos em vermais adiante; maspor 'sujeitos que não carregam lenços de bolso' o editor entende amaisbaixa classe de ru iões. Esses, entretanto, são exatamente o gênero depessoas que sempre carregam consigo algum lenço, mesmo quandodestituídos de camisa. Você já deve ter tido ocasião de observar quãoabsolutamente indispensável, em anos recentes, para esses rematadosmeliantes,temseconstituídoolençodebolso.”“Eoquedevemospensar”,perguntei,“doartigonoLeSoleil?”“Éumapenaque seueditornão tenhanascidopapagaio—nesse caso

ele teria sido o mais ilustre papagaio de sua raça. Ele tem meramenterepetido os itens individuais da opinião já publicada; coligindo-as, comlouváveldiligência,oradessejornal,oradaquele.'Osobjetosestavamtodosevidentemente ali', a irma, 'havia pelos menos três ou quatro semanas, enãopode haver dúvida, portanto, que o lugar dessamacabra barbaridadefoi encontrado.' Os fatos aqui rea irmados pelo Le Soleil estão realmentemuito longe de eliminarminhas dúvidas quanto a esse assunto e iremosdentro em breve examiná-los com maiores particularidades em suasconexõescomoutrapartedoassunto.“No presente momento, devemos nos ocupar de outras investigações.

Decertovocênãodeixoudeobservaraextremanegligêncianoexamedocadáver. Naturalmente, a questão da identidade foi prontamentedeterminada, ou deveria ter sido; mas havia outros pontos a seremveri icados.Acasoocorpofoiemalgumaspectodespojado?Avítimausavaalgumartigodejoalheriaaosairdecasa?seusava,continuavacomalgumajoia ao ser encontrada? Essas são questões centrais absolutamente nãoabordadas nos testemunhos; e há outras de igual importância, que não

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receberam atenção alguma. Devemos nos empenhar em nos satisfazermediante uma investigação pessoal. O caso de St. Eustache deve serreexaminado. Não alimento a menor suspeita em relação a ele; masprocedamos commétodo.Vamos averiguar alémdadúvida a validadedadeclaração juramentada respeitante a seu paradeiro no domingo.Documentosdessaespécie são facilmente tornadosobjetodemisti icação.Senadaerradoseapresentaraí,entretanto,descartaremosSt.Eustachedenossasinquirições.Seusuicídio,pormaiscorroborantedesuspeitacasosedescobrisse alguma falsidade no depoimento, de modo algum constitui,sem tal falsidade, circunstância inexplicável, ou uma a exigir que nosdesviemosdalinhadaanáliseordinária.“Nissoqueagoraproponho,negligenciaremosospontos internosdessa

tragédia,efocaremosnossaatençãoemseusdetalhesperiféricos.Nãoéomenor dos erros em investigações como essa restringir o escopo aoimediato,comtotaldesprezodoseventoscolateraisoucircunstanciais.Éomau costume dos tribunais con inar a apresentação de provas e aargumentação aos limites da aparente relevância. Contudo, a experiênciamostrou,eumaverdadeira iloso iasempremostrará,queumavastaparteda verdade, talvez amaior, surge do que é aparentemente irrelevante. Épormeio do espírito desse princípio, quando não precisamente pormeiode sua letra, que a ciênciamoderna temoptadoporcalcular combase noimprevisto.Mas talvez eu não estejame fazendo compreender. A históriado conhecimento humano tem tão ininterruptamente mostrado que aeventoscolaterais, incidentaisouacidentaisdevemosasdescobertasmaisnumerosas e valiosas, que acabou se tornando necessário, em qualquervisão em perspectiva do aperfeiçoamento, conceder não apenas vultosos,mas osmais vultosos subsídios para invenções que surgirão por acaso, ecompletamente fora do alcance da expectativa comum. Já não é maisilosó ico basear no que foi uma visão do que será.Oacidente é admitidocomo parte da subestrutura. Fazemos do acaso matéria de cálculoabsoluto. Sujeitamos o inesperado e o inimaginado às fórmulasmatemáticasdasescolas.“Repitoque issonadamais équeum fato, que aporçãomaisampla de

toda verdade brota do que é colateral; e não é senão de acordo com oespíritodoprincípio implicadoneste fatoqueeudesviaria a investigação,no presente caso, do terreno repisado e até aqui infrutífero do próprioevento em si para as circunstâncias contemporâneas que o cercam.Enquantovocêveri icaavalidadedodepoimentojuramentado,examinarei

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os jornais de ummodomais geral do que fez até agora. Até omomento,inspecionamosapenasocampodeinvestigação;masserádefatoestranhose um levantamento abrangente dos periódicos, tal como proponho, nãonos proporcionar alguns pontos minuciosos que irão determinar umadireçãoparaoinquérito.”Seguindo a sugestão de Dupin, procedi a um escrupuloso exame da

questãododocumento.Oresultadofoia irmeconvicçãodesuavalidade,eda consequente inocência de St. Eustache. Nessemeio-tempo,meu amigose ocupou, com o que parecia ser uma minúcia absolutamente sempropósito, em um escrutínio dos vários jornais arquivados. Ao inal dasemanapôsdiantedemimosseguintestrechos:“Cerca de três anos e meio atrás, uma agitação muito semelhante à

presente foi causadapelodesaparecimentodessamesmaMarieRogetdaparfumeriedeMonsieurLeBlancnoPalaisRoyal.Ao inaldeumasemana,entretanto, ela reapareceu em seu comptoir costumeiro, tão bem comosempre, comexceçãodeuma ligeirapalideznão inteiramentenormal.Foidito porMonsieur LeBlanc e suamãe que ela haviameramente visitadoumaamiganocampo;eoassuntofoiprontamenteencerrado.Presumimosque a presente ausência seja um capricho damesma natureza e que, aoexpirar-se o prazo de uma semana, ou talvez um mês, teremos suapresençaentrenósmaisumavez.” Jornal vespertino [ New York Express ],segunda-feira,23dejunho.“Um jornal vespertino de ontem faz referência a um anterior

desaparecimento misterioso de Mademoiselle Roget. É bem sabido que,duranteasemanadesuaausênciadaparfumeriedeLeBlanc,encontrava-se ela na companhiade um jovemo icial damarinha,muito afamadoporseu comportamento dissoluto. Uma briga, supõe-se, providencialmentelevou a jovem a voltar para casa. Sabemos o nome do casanova emquestão, que, no presente momento, encontra-se aquartelado em Paris,mas,pormotivosóbvios,abstemo-nosdetornarpúblico.”LeMercurie [NewYorkHerald],terça-feira,24dejunho.“Uma barbaridade do caráter mais atroz foi perpetrada perto desta

cidade anteontem. Um cavalheiro, acompanhado de esposa e ilha,requereu, ao im do dia, os serviços de seis rapazes que remavamociosamente um bote entre uma e outra margem do Sena, para que ostransportassematéooutroladodorio.Aochegaremnamargemoposta,ostrês passageiros desembarcaram e já haviam se distanciado a ponto deperder o bote de vista quando a ilha percebeu que esquecera a

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sombrinha. Ao voltar para recuperá-la, foi dominada pela gangue, levadapelo rio, amordaçada, brutalizada e inalmente conduzida de volta àmargemnumpontonãomuito longedaqueleondeoriginalmentesubiraabordocomseuspais.Osvilõesacham-sefugidosnomomento,masapolíciaestá em seu rastro, e alguns deles em breve serão capturados.” Jornalmatutino[NewYorkCourierandInquirer],25dejunho.“Recebemos uma ou duas missivas cujo propósito é ligar o crime da

recente atrocidade a Mennais [Mennais foi um dos envolvidosoriginalmente considerado suspeito e detido,mas solto por absoluta faltade evidência]; mas como esse cavalheiro foi plenamente exonerado poruma investigação legal, e como os argumentos de nossos diversoscorrespondentes parecem exibir mais fervor do que profundidade, nãojulgamos aconselhável torná-las públicas.” Jornal matutino [New YorkCourierandInquirer],28dejunho.“Temos recebido diversas missivas veementemente redigidas, ao que

parece de fontes variadas, e que interpretam em grande medida comocoisa certa que a desafortunada Marie Roget foi vítima de um dosinúmeros bandos demeliantes que infestam os arredores da cidade aosdomingos.Nossaprópriaopiniãoédecididamenteafavordessasuposição.Empenhar-nos-emos daqui por diante em expor alguns dessesargumentos.”Jornalvespertino[NewYorkEveningPost ],terça-feira,31dejunho.“Na segunda-feira, um dos balseiros empregados no serviço iscal

avistouumbotevazio lutuandopeloSena.Asvelasestavamno fundodobarco. O balseiro rebocou-o à administração das barcaças. Na manhãseguinte,alguémolevoudalisemservistopornenhumdosfuncionários.Oleme encontra-se nesse momento na administração das barcaças.” LeDiligence[NewYorkStandard],quinta-feira,26dejunho.Depois de ler esses vários excertos, eles não só me pareceram

irrelevantes, como também fui incapaz de perceber um modo pelo qualqualquer um deles poderia se aplicar ao assunto em questão. AguardeialgumaexplicaçãodeDupin.“Nopresentemomentonãotenhoaintenção”,disseele,“de deter-meno

primeiro eno segundodesses excertos. Euos copiei principalmenteparamostrar o extremo desleixo das autoridades, que, até onde possodepreender pelo chefe de polícia, não se deram o trabalho, em nenhumaspecto, de proceder a um exame do o icial naval ao qual se aludiu.Contudo, não passa de mera insensatez dizer que entre o primeiro e o

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segundodesaparecimentodeMarienãoexistequalquerligaçãopresumível.Vamosadmitirque aprimeira fuga tenha terminadoemumabriga entreos enamorados, e a volta para casa da moça desiludida. Estamos agorapreparados para entender uma segunda fuga (sesabemos que uma fugamaisumavez teve lugar) como indicativadeumarenovaçãodosavançosdosedutor,maisdoquecomoresultadodenovaspropostasfeitasporumsegundo indivíduo — estamos preparados para encarar isso como 'aspazes' de um velhoamour, mais do que como o início de um novo. Aschances são de dez contra um de que aquele que fugira com Mariepropusesse uma nova fuga, mais do que ela, a quem propostas de fugahaviamsidofeitasporumindivíduo,receberessasmesmaspropostasporpartedeoutro.Eaquideixe-mechamarsuaatençãoparao fatodequeotempo transcorrido entre a primeira fuga e a segunda suposta fuga é dealguns meses mais do que o período geral de cruzeiro de nossasbelonaves. Teria sido o enamorado interrompido em sua primeira vilaniapela necessidade de se fazer ao mar, e teria aproveitado o primeiromomento de seu regresso para retomar as vis intenções ainda nãointeiramente consumadas — ou ainda não inteiramentepor eleconsumadas?Dissotudonadasabemos.“Dirávocê,entretanto,que,nosegundocaso,nãohouvefugaalguma, tal

como imaginado. Decerto não — mas estamos preparados para a irmarquenãohouveintençãofrustrada?ÀparteSt.Eustache,etalvezBeauvais,nãoencontramosnenhumpretendentereconhecido,declaradoouhonradodeMarie.Denenhumoutroháqualquercoisasendodita.Quem,então,éoenamoradosecreto,dequemosparentes(pelomenosamaioriadeles)nadasabe,mascomquemMarieseencontrounamanhãdedomingo,equegozatão profundamente de sua con iança que ela não hesita em permaneceremsuacompanhiaatéocairdassombrasnoturnas,emmeioaossolitáriosbosquesdaBarrièreduRoule?Quemé esse amante secreto, pergunto, arespeitodequem,pelomenos,amaioriadosparentesnadasabe?Equalosigni icadodasingularprofeciadeMadameRogetnamanhãemqueMariepartiu?—'ReceioquenuncamaisvereiMarieoutravez'.“Mas se não imaginamos Madame Roget a par do plano de fuga, não

podemosaomenossuporqueessafosseaintençãoacalentadapelamoça?Aosairdecasa,eladeuaentenderquepretendiavisitaratianaRuedesDrômes, eSt.Eustache foi solicitadoabuscá-laapósescurecer.Ora, aumprimeiroolhar,essefatodepõefortementecontraminhasugestão;—masre litamos.Queeladefatoencontrou-secomalguém,eprosseguiucomele

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atéooutroladodorio,chegandoàBarrièreduRoulejábemtarde,àstrêshoras,ésabido.Masaoconsentiremacompanharesseindivíduo(comsejaláquepropósito—conhecidoou ignoradopor suamãe ),deve terpensadona intençãoqueexpressaraaosairdecasa,enasurpresaedescon iançasuscitadanopeitodaqueleaquemestavaprometida,St.Eustache,quando,indo à sua procura, na hora designada, na Rue des Drômes, viesse adescobrirqueelanãoapareceraporlá,equando,alémdomais,aovoltaràpension comsuaalarmante informação,viessea tomarconsciênciadesuaprolongada ausência de casa. Ela deve ter pensado nessas coisas, repito.Deve terprevistoamorti icaçãodeSt.Eustache, adescon iançade todos.Nãopoderiaterpensadoemvoltarparaconfrontaressadesconfiança;masa descon iança se torna um ponto de trivial importância para ela sesupomosquenãopretendevoltar.“Podemos imaginá-la pensando assim — 'Vou encontrar determinada

pessoa como propósito de fugir, ou comdeterminados outros propósitosconhecidos apenas de mim mesma. É necessário que não haja qualqueroportunidade de interrupção — devemos ter tempo su iciente para nosesquivardequalquerbusca—dareiaentenderquevouvisitarepassarodiaemminhatianaRuedesDrômes—direiaSt.Eustachequesóvenhamebuscaraoescurecer—dessemodo,minhaausênciadecasapelomaislongo período possível, sem causar descon iança ou ansiedade, icaráexplicado, e ganhareimais tempo do que de qualquer outramaneira. SepeçoaSt.Eustacheparamebuscaraoescurecer,elecomcertezanãoviráantesdisso;massemeomitirporcompletodepedirquevenhamebuscar,meutempodefuga icaráreduzido,umavezqueseriadeseesperarmeuregressoquantoantes,eminhaausênciadespertaráansiedademaiscedo.Ora,sefosseminhaintençãovoltardeummodooudeoutro—seestivessecontemplandomeramenteumpasseiocomoindivíduoemquestão—nãoseriaminhaestratégiapedirqueSt.Eustachefosseaomeuencontro;pois,ao buscar-me, elecertamente perceberá que o enganei— fato acerca doqual posso mantê-lo para sempre na ignorância, saindo de casa semnoti icá-lo de minha intenção, voltando antes de escurecer e depoisa irmandoquevisitaraminha tianaRuedesDrômes.Mas comoéminhaintençãojamaisregressar—ounãoregressarporalgumassemanas—oupelomenosnãoatéquecertosacobertamentossejamefetuados—oganhodetempoéoúnicopontosobreoqualprecisomepreocupar'.“Como você observou em suas anotações, a opinião mais geral acerca

dessetristeepisódioé,esemprefoidesdeoinício,adequeagarotahavia

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sidovítimadeumaganguedemeliantes.Ora,aopiniãopopular,sobcertascondições, não deve ser desprezada. Quando surgida por si mesma —quando se manifestando de um modo estritamente espontâneo —devemosolharparaelacomoanálogaaessaintuiçãoqueéaidiossincrasiadohomemde gênio individual. Emnoventa enovede cada cem casos eume pautaria pelo que ela decidir. Mas é importante não encontrarmos omenor vestígio palpável desugestão. A opinião deve ser rigorosamenteapenas do público; e a distinção é muitas vezes sumamente di ícil deperceber e de manter. No presente caso, parece-me que essa 'opiniãopública'emrelaçãoaumaganguefoiintroduzidapeloeventocolateralqueestádetalhadonoterceirodemeusexcertos.TodaParis icouagitadacoma descoberta do cadáver de Marie, uma moça jovem, muito bonita econhecida. Esse corpo foi encontrado exibindo marcas de violência eboiandonorio.Masédepoisdivulgadoque,nessemesmoperíodo,ouporvoltadessemesmoperíodo,emquesesupõequeagarotafoiassassinada,uma barbaridade de natureza similar à que se submeteu a falecida,embora em menor extensão, foi perpetrada por uma gangue de jovensru iõescontraapessoadeumasegunda jovem.Nãoéextraordinárioqueuma atrocidade conhecida in luencie o juízo popular em relação à outra,desconhecida? Esse juízo aguardava uma orientação, e a conhecidabarbaridade pareceu tão oportunamente concedê-la! Marie, também, foiencontradanorio;efoiprecisamentenesserioqueabarbaridadedequese tem conhecimento foi cometida. A ligação entre os dois eventos tevetanto de palpável que o verdadeiro motivo de espanto teria sido apopulaçãodeixardepercebê-laedelaseapoderar.Mas,naverdade,umaatrocidade, reconhecidamente admitida como tal, é, se alguma coisa for,evidênciadequeaoutra,cometidaemumperíodoquasecoincidente,nãoo foi. Teria sido ummilagre de fato se, enquanto uma gangue de ru iõesperpetrava,emumadadalocalidade,umainiquidadedasmaisultrajantes,tivessehavidooutraganguesimilar,emumalocalidadesimilar,namesmacidade, sob as mesmas circunstâncias, com os mesmos meios einstrumentos, envolvida em iniquidade precisamente do mesmo aspecto,precisamentenomesmoperíododetempo!Econtudoemquesenãonessamaravilhosacadeiadecoincidênciasaopiniãoacidentalmentesugestionadadopopulachoesperaqueacreditemos?“Antesdeirmaisalém,consideremosasupostacenadoassassinato,em

meioàmoitadaBarrièreduRoule.Essamoita,emboradensa, icavabemnas proximidades de uma estrada pública. Dentro havia três ou quatro

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grandespedras, formandoumaespéciedebancocomencostoeescabelo.Na pedra de cima foi encontrada uma anágua branca; na segunda, umlençode seda.Uma sombrinha, luvas eum lençodebolso também foramencontrados.Olençoportavaonome'MarieRoget'.Fragmentosdevestidoforam vistos nos galhos em volta. A terra estava revolvida, os arbustos,quebrados,ehaviasinaisdeumaviolentaluta.“Não obstante a aclamação com que a descoberta dessa moita foi

recebida pela imprensa, e a unanimidade com que se imaginava queindicaria a precisa cena da barbaridade, deve-se admitir que havia ummotivomuitobomparadúvida.Quefoidefatoacena,possotantoacreditarcomonão—mashaviaumexcelentemotivoparadúvida.Sea verdadeiracena tivesse sido, como sugeriu oLe Commercial , nos arredores da RuePavéeSt.Andrée,osperpetradoresdocrime,supondoqueaindaresidamem Paris, teriam naturalmente sido tomados de pânico com a atençãopúblicadessemodotãoagudamentedirecionadaparaocanalapropriado;e, em certas classes demente, isso teria suscitado, namesma hora, umapercepçãodanecessidadedeempreenderalgumadiligênciaparadesviaressa atenção. E assim, a moita na Barrière du Roule tendo já levantadosuspeitas, a ideia de plantar os objetos onde foram encontrados podenaturalmentetersidoengendrada.Nãoexistequalquerevidênciagenuína,embora oLe Soleil assim o suponha, de que os objetos encontradosestivessemmaisqueunspoucosdiasnamoita; aopassoquehábastanteprovacircunstancialdequenãopodiamterpermanecidoali, sematrairaatenção, durante os vinte dias transcorridos entre o domingo fatídico e atarde em que foram descobertos pelos meninos. 'Estavam todosfortementeembolorados', diz oLe Soleil, adotando a opinião de seuspredecessores,'pelaaçãodachuva,ecoladoscomobolor.Arelvacresceraemvoltae cobriraalgunsdeles.Asedadasombrinhaera resistente,masas ibras haviam grudado por dentro. A parte de cima, onde ela forafechada e enrolada, estava toda embolorada e podre, e rasgou quandoaberta.' Em relação ao fato de que 'a relva crescera em volta e cobriraalgunsdeles',éóbvioqueofatosópoderiatersidoatestadocombasenaspalavras,enaslembranças,dedoismeninospequenos;poisessesmeninosremoveramos objetos e os levarampara casa antes de serem vistos poruma terceira parte. Mas a relva pode crescer, principalmente no tempoquenteeúmido(talcomoeraoperíododoassassinato),atécercadeseisousetecentímetrosnumúnicodia.Umasombrinhacaídasobreumsolodegramaviçosapode,numasemana, icarinteiramenteocultadadavistapela

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relva que cresceu. E no tocante aobolor em que o editor doLe Soleil tãoobstinadamente insiste, de tal modo que emprega a palavra não menosque três vezes no parágrafo acima citado, acaso será ele realmenteignorante da natureza dessebolor? Ninguém lhe contou que pertence auma das inúmeras classes de fungus, dos quais a característica maisordinária é o crescimento e a decadência no intervalo de vinte e quatrohoras?“Desse modo vemos, num rápido olhar, que o que foi mais

triunfantemente exempli icado em sustentação à ideia de que os objetoshaviamestadoali 'porpelomenos trêsouquatrosemanas'namoitaédamais absurda nulidade com respeito a qualquer evidência do fato. Poroutro lado, é sumamente di ícil crer que esses objetos tenhampermanecido na referidamoita por um períodomais prolongado do queumaúnicasemana—porumperíodomaislongodoqueodeumdomingoaté o seguinte.Qualquer umminimamente informado sobre os arredoresdeParissabeaextremadi iculdadedeseencontrar isolamento,anãoseraumagrandedistânciadossubúrbios.Algocomoumrecantoinexplorado,ou mesmo visitado com pouca frequência, em meio a seus bosques earvoredos, não é sequer por um instante algo imaginável. Que o tentequalquer um que, sendo no íntimo um amante da natureza, ainda queagrilhoadopelodeveràpoeiraeaocalordessagrandemetrópole—quequalquer um nessas condições tente, mesmo durante dias úteis, aplacarsuasededesolidãoemmeioaoscenáriosadoráveisdanaturezaquenoscercam.A cadadoispassos ele verá seu crescente encantodesmanchadopela voz e a intrusão pessoal de algum ru ião ou bando de patifesembriagados. Ele buscará privacidade emmeio às densas folhagens,masemvão.Sãoaíprecisamenteosrecessosondemaisgrassaessaralé—aíestão os templos mais profanados. Com o coração apertado nossotranseunte voltará correndo para a poluída Paris como sendo um lugarmenosodiosoporserummenosincongruenteantrodepoluição.Masseosarredoresdacidadesãodetalmodoperturbadosduranteosdiasúteisdasemana, o que não dizer do domingo! É especialmente então que,libertados das obrigações do trabalho, ou privados das costumeirasoportunidades de crime, osmeliantes urbanos buscam as vizinhanças dacidade, nãopor amor aomeio rural, coisa queno íntimodesprezam,mascomoummododeescapardasrestriçõeseconvençõesdasociedade.Elesdesejam menos o ar fresco e as verdes árvores do que a completalicenciosidadedocampo.Aqui,numaestalagemdebeiradeestrada,ousob

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a folhagemdo arvoredo, entregam-se, sem a restrição de qualquer olharexceto o de seus companheiros de pândega, a todos os descontroladosexcessosdeumarremedodehilaridade—acriacombinadadaliberdadee do rum. Não digo nada além do que já deve ser óbvio para qualquerobservador desapaixonado quando repito que a circunstância de osobjetos em questão terem permanecido sem ser descobertos por umperíodomaislongodoqueodeumdomingoaoutroemqualquermoitanosimediatos arredores deParis precisa ser encarado comopoucomais quemiraculoso.“Masnãosenecessitamdeoutros fundamentosparaasuspeitadeque

os objetos foram plantados na moita com vistas a desviar o olhar daverdadeira cena da barbaridade. E, antes demais nada, deixe-me dirigirsua atenção para adata em que os objetos foram descobertos. Compareessadatacomadoquintoexcertopormimpróprioseparadodos jornais.Vai perceber que a descoberta se sucedeu, quase imediatamente, àsinsistentesmissivasenviadasaojornalvespertino.Essasmissivas,emboravariadas, e aparentemente oriundas de várias fontes, tendiam todas aomesmoponto—a saber,direcionara atençãoa umagangue como sendoosperpetradoresdessabarbaridadeeàáreadaBarrièreduRoulecomosendo sua cena. Ora, aqui, é claro, a suspeita não é a de que, emconsequênciadessasmissivas,oudaatençãopúblicaporelasdirecionadas,osobjetostenhamsidoencontradospelosmeninos;masasuspeitapodeedeve ser de que os objetos não tenham sido encontradosantes pelosmeninospelomotivodequeosobjetosnãoestavamantesnamoita;tendosidodepositados ali somente emumperíodoposterior, comonadatadasmissivas, ou pouco antes disso, pelos autoresmesmo dessasmissivas, osculpados.“Essa moita era singular — sobremaneira singular. Era incomumente

densa. Entre suas paredes naturais havia três pedras extraordinárias,formandoumbancocomencostoeescabelo.Eessamoita,tãocheiadeartenatural, icavana imediatavizinhança,anãomuitosmetros , da residênciadeMadameDeluc,cujosmeninostinhamporhábitoexaminardetidamenteos arbustos em torno à procura da casca do sassafrás. Acaso seria umaapostainsensata—umaapostademilcontraum—crerquenemumdiasequer se passasse sobre a cabeça desses meninos sem dar com pelomenos um deles acomodado à sombra desse salão e entronizado em seutrononatural?Equemnumaapostadessashesitasse,oununcafoimenino,ou se esqueceu de como é a natureza dos meninos. Repito — é

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sobremaneira di ícil compreender como os objetos podiam terpermanecido nessamoita sem serem descobertos por um períodomaiordoqueumoudoisdias;edessemodoháumaboabaseparasuspeitar,adespeito da dogmática ignorância doLe Soleil, que foram, em datacomparativamenterecente,deixadosnolocaldesuadescoberta.“Mas há ainda outros motivos, mais fortes do que qualquer outro até

aqui enfatizado, para acreditar que foramdessemododeixados. E agora,permita-me chamar sua atenção para a disposição amplamente arti icialdosobjetos.Napedradecimahaviaumaanágua;nasegundaumaecharpedeseda;espalhadosemtorno,umasombrinha, luvaseumlençodebolsoexibindo o nome 'Marie Roget'. Esse é o tipo de arranjo que teria sidonaturalmente feitoporumapessoanãomuito inteligente tentandodisporos itensnaturalmente. Mas não é de modo algum um arranjorealmentenatural. Eu teria esperado antes ver os objetos todos caídos no chão episoteados. No estreito con inamento daquele caramanchão, di icilmenteteriasidopossívelqueaecharpeeaanáguafossempararsobreaspedras,quando sujeitadas ao contato repetido demuitas pessoas em luta. 'Haviasinais', foi dito, 'de uma luta; e a terra estava pisoteada, e os galhos,quebrados' — mas a anágua e a echarpe são encontrados como quearrumados em prateleiras. 'Os pedaços de seu vestido arrancados pelosarbustos tinham cerca de oito centímetros de largura e quinze decomprimento.Umaparte era abainhadovestido, que fora remendada; aoutra peça era parte da saia, não a bainha. Pareciam tiras arrancadas. 'Aqui, inadvertidamente, oLe Soleil empregou uma expressão sumamentesuspeita. Os pedaços, como descrito, de fato 'parecem tiras arrancadas';mas propositalmente, e com a mão. É acidente dos mais raros que umpedaço seja 'arrancado' de qualquer peça de vestuário tal como essa emquestãopelaaçãodeumespinho.Pelapróprianaturezadetaistecidos,umespinho ou prego neles enganchando os rasga demaneira retangular—divide-osemduasfaixaslongitudinais,emângulosretosumacomaoutra,e convergindo para um vértice onde entra o espinho—mas di icilmenteserá possível conceber um pedaço sendo 'arrancado'. Nunca vi tal coisa,você tampouco. Paraarrancar um pedaço de tal tecido duas forçasdistintas, em diferentes direções, serão, praticamente em qualquersituação, exigidas. Se houver duas extremidades no tecido — se, porexemplo, for um lenço de bolso, e se se desejar dele arrancar uma tira,então, e somente então, uma única força servirá ao propósito. Mas nopresente caso a questão é de um vestido, que não exibe senão uma

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extremidade. Arrancar um pedaço da parte interna, onde nenhumaextremidadeseapresenta,sópoderiaserefetuadopormilagrecomaaçãodeespinhos,enenhumespinhoisoladooteriafeito.Mas,mesmoondeumaextremidadeseapresenta,doisespinhosserãonecessários,operandoumemduasdireçõesdistintas,eooutroemuma.Eissonasuposiçãodequeaextremidade não tem bainha. Se houver bainha, é praticamente umassunto fora de questão. Vemos assim os diversos e grandes obstáculosnessa história de pedaços 'arrancados' pela simples ação de 'espinhos';contudo, é-nos exigido acreditar que não só um pedaço como tambémmuitos foram desse modo arrancados. 'E uma parte', além disso, ' era abainhadovestido!'Outropedaçoera'partedasaia,nãoabainha'—ouseja,foi completamente arrancado por ação dos espinhos na parte interna dovestido,nãoapartirdenenhumaextremidade!Essas,repito,sãocoisasemque facilmente se perdoará a descrença; contudo, tomadas em conjunto,formam, talvez, uma base para suspeita menos razoável do que asurpreendentecircunstânciadeosobjetosteremsidodeixadosalinaquelamoita por eventuaisassassinos precavidos o bastante para pensar emremover o corpo. Mas você não terá compreendido direito onde querochegarsesupuserqueémeuintentodesacreditaressamoitacomoacenadabarbaridade.Podeterocorridoalgumdelitoali,ou,maispossivelmente,um acidente na casa de Madame Deluc. Mas, na verdade, essa é umaquestão de menor importância. Não estamos empenhados em tentardescobrir a cena,mas emachar os perpetradores do crime.O que aduzi,não obstante a minuciosidade de minhas aduções, foi com vistas a,primeiro,mostrarainsensatezdasa irmaçõescon ianteseprecipitadasdoLeSoleil,mas,emsegundoesobretudo,conduzi-lo,pelarotamaisnatural,auma mais aprofundada contemplação da dúvida quanto a se esseassassinatofoiounãoobradeumagangue.“Retomaremos essa questão meramente aludindo aos revoltantes

detalhes do cirurgião consultado na investigação. É necessário dizerapenas que asinferências dele publicadas em relação ao número deru iões têm sido apropriadamente ridicularizadas como errôneas etotalmente infundadas por todos os anatomistas de reputação em Paris.Não que o casonão poderia ter sido como o inferido,mas por não haverbaseparaainferência:—nãohaviabastanteparaumaoutra?“Re litamos agora quanto aos 'sinais de luta'; e deixe-me perguntar o

que se supõe que esses indícios tenham demonstrado. Uma gangue.Masnãodemonstrameles antes a ausênciadeumagangue?Que luta poderia

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ter tido lugar — que luta tão violenta e tão demorada a ponto de terdeixado seus 'sinais' em todas as direções — entre uma jovem fraca eindefesaeaganguederu iõesimaginada?Asilenciosaaçãodeunspoucosbraços rudes e tudo estaria terminado. A vítima teria se mostradointeiramente passiva sob a vontade deles. Tenha em mente que osargumentosenfatizadoscontraamoitacomocenasãoaplicáveis,namaiorparte,apenascontraolugarcomocenadeumabarbaridadecometidapormais que um único indivíduo. Se imaginamos apenasum transgressor,podemos conceber, e apenas assim conceber, uma luta de natureza tãoviolentaeobstinadaapontodeterdeixado'sinais'aparentes.“Evoltoarepetir.Jámencioneiasuspeitadespertadapelofatodequeos

objetosemquestãopossamterpermanecidodealgummodonamoitaondeforamencontrados.Parecequaseimpossívelqueessasevidênciasdeculpatenham sido acidentalmente deixadas no lugar de sua descoberta.Houvesu iciente presença de espírito (ao que tudo indica) para a remoção docadáver;econtudoumaevidênciaaindamaisexplícitaqueoprópriocorpo(cujasfeiçõespodiamviraserrapidamenteobliteradaspelaputrefação)éabandonadaconspicuamentenacenadabarbaridade—estoualudindoaolenço comonome davítima. Se isso foiumacidente,não foio acidentedeuma gangue. Só podemos imaginá-lo como o acidente de um indivíduo.Vejamos.Um indivíduo cometeuo crime. Está sozinho como fantasmadafalecida. Apavorado com o corpo inerte diante de si. A fúria de suaspaixões se esvaiu e há espaço de sobra em seu coração para o terrornatural inspirado pelo ato. Nele nada existe dessa con iança que apresença de um grande número inevitavelmente inspira. Ele está sozinhocom a morta. Está tomado por tremores e confusão. Contudo há anecessidadedese livrardocorpo.Eleocarregaatéorio,masdeixaparatrás as demais evidências de culpa; pois é di ícil, quando não impossível,carregartudodeumasóvez,eseráfácilvoltaraoquedeixou.Masemsuaárdua jornada até a água seus medos redobram dentro dele. Sons deatividade o cercam pelo trajeto. Uma dúzia de vezes escuta ou imaginaescutar passos de algum observador. Até as próprias luzes da cidadeaumentam sua confusão. Contudo, com o tempo, e fazendo longas efrequentespausasdeprofundaagonia,elechegaàmargemdorio,elivra-se do macabro fardo — talvez com o uso de um bote. Masagora quetesouro haveria nestemundo—que ameaça de vingança poderia existir—capazdeincitaresseassassinosolitárioarefazerseuspassospelatrilhalaboriosa e arriscada até aquela moita com suas reminiscências de

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enregelar o sangue? Elenão volta, sejam quais forem as consequências.Nãoconseguiria voltar nem se quisesse. Seu único pensamento é a fugaimediata.Eledáascostasparasempreaoapavorantebosqueecorredairaqueestáporvir.

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“Mas, e com uma gangue? Seu número ter-lhes-ia infundido con iança;se,defato,acon iançaestáalgumavezausentenopeitodessesrematados

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meliantes; e unicamente de rematados meliantes imagina-se que asgangues sejam constituídas. Seu número, repito, ter-lhes-ia poupado adesorientação e o terror que segundo imaginei paralisariam o homemsolitário. Supuséssemos um descuido em um, ou dois, ou três, essedescuido teria sido remediado por um quarto. Eles não teriam deixadonada atrás de si; pois seu número lhes teria permitido carregar tudo deumavez.Nãoteriahavidonecessidadederegresso.“Considere agora a circunstância de que, no exterior do vestido, como

encontrado no cadáver, 'uma faixa, com cerca de trinta centímetros delargura, fora rasgadadabarra inferior até a cintura,masnão arrancada.Estava enrolada três vezes em tornoda cintura e presapor uma espéciedenóàscostas'.Issofoifeitocomoóbviopropósitodeconstituirumaalçapela qual carregar o corpo. Mas quenúmero de homens teria ideadorecorrer a tal expediente? Para três ou quatro, os braços e pernas docadáverteriamconstituídonãoapenaspontodepreensãosu iciente,masomelhor ponto possível. O recurso cabe a um único indivíduo; e isso nosconduzaofatodeque,'entreamoitaeorio,descobriu-sequeastábuasdacercahaviam sidoderrubadas e o solomostrava evidência deque algumpesadofardoforaarrastado'!Masquehomens,seemalgum número,dar-se-iam o trabalho supér luo de derrubar uma cerca com o propósito dearrastar por ela um corpo que poderiam tererguido por cima da cercanumpiscardeolhos?Quenúmero dehomens teriadessemodoarrastadoumcadáveredeixadoevidentesvestígiosdesuaação?“E aqui devemos fazer referência a umaobservaçãodoLe Commercial ;

observaçãosobreaqual,emcertamedida, jáaventeiumcomentário. 'Umpedaçodeumadas anáguasda infeliz garota', diz o jornal, 'com sessentacentímetrosdecomprimentoetrintadelargura,foiarrancadoeamarradosob seu queixo e em torno da nuca, provavelmente para impedir quegritasse.Issofoifeitoporsujeitosquenãocarregamlençosdebolso.'“Já tive oportunidade de sugerir anteriormente que um genuíno

meliantenuncaandasemseulençodebolso.Masnãoéparaessefatoqueparticularmenteadvirto.Quenãofoiporfaltadeumlençodebolsoparaopropósito imaginado peloLe Commercial que essa bandagem foiempregada icaóbvio como lençodebolso encontradonamoita; equeoitem não se destinava a 'impedir que gritasse' transparece, também, emter sido empregada a bandagempreferencialmente ao que com tãomaise icácia teria atendido a esse propósito. Mas o fraseado do depoimentorefere-se à faixa em questão como tendo sido 'encontrada em torno do

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pescoço, enrolada de um modo frouxo, e presa com um nó cego'. Taispalavras são bastante vagas, mas diferem substancialmente das queiguram noLe Commercial . Essa faixa de tecido tinha quarenta e cincocentímetros de largura e, logo, embora de musselina, teria funcionadocomo uma forte atadura quando dobrada ou torcida no sentidolongitudinal. E desse modo, torcida, foi encontrada. Minha inferência é aseguinte. O assassino solitário, tendo carregado o cadáver por certadistância (seja desde a moita, seja de outro lugar) com auxílio dabandagempresa em alça no meio, percebeu que o peso, nesse modo deproceder,eragrandedemaisparasuaforça.Eleresolveuarrastarofardo—aevidênciamostraquefoidefatoarrastado.Comtalobjetivoemmente,tornou-senecessárioataralgocomoumacordaaumadasextremidades.Omelhorpontopara isso revelou ser opescoço, onde a cabeça impediria olaçodeescapar.Edessemodooassassinoinquestionavelmenteconsideroua faixa em torno dos quadris. Dela poderia ter se servido, não fossem asvoltas com que se enrolava em torno do corpo, aalça que a obstruía e aconsideração de que não fora 'arrancada' acidentalmente da roupa. Eramais fácil rasgar uma nova tira da anágua. Ele assim o fez, prendendo-afirmementenopescoço,edessemodoarrastousuavítimaatéamargemdorio. Que essa 'bandagem', somente obtida a muito custo e com grandedemora, e prestando-se apenas imperfeitamente a sua inalidade— queessa bandagem tenhaainda assim sido empregada demonstra que anecessidadedeseuusoderivoudecircunstânciassurgidasnummomentoemqueolençodebolsonãomaisestavaacessível—istoé,surgidas,comoimaginamos,apósafastar-sedamoita(sedefatoeraamoita)enaestradaentreamoitaeorio.“Mas, dirá você, o depoimento de Madame Deluc (!) aponta

especialmenteparaapresençadeumaganguenascercaniasdamoita,noinstante ou perto da hora do crime. Isso eu admito. Duvido que nãohouvesseumadúziadegangues,talcomoadescritaporMadameDeluc,nolocalenosarredoresdaBarrièreduRoulenoinstante oupertodequandoocorreu essa tragédia. Mas a gangue que atraiu para si a referidaanimadversão, apesar do testemunho em certa medida tardio e deverassuspeito de Madame Deluc, é aúnica gangue descrita por essa velhasenhora honesta e escrupulosa como tendo comido seus bolos e tomadoseu brande sem haver se dignado a lhe pagar o que deviam.Et hinc illæiræ?56

“Mas qual éde fato o preciso depoimento de Madame Deluc? 'Uma

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ganguedemalfeitoreschegou,comportaram-seruidosamente,comeramebeberamsempagar,seguiramocaminhotomadopelo jovemepelamoça,voltaram à hospedariaao entardecer e tornaram a cruzar o rio,aparentandograndepressa.'“Ora,essa'grandepressa'possivelmentepareceu aindamaioraosolhos

de Madame Deluc, uma vez que ela se detém prolongada elamentosamenteemseusbolosesuacervejaprofanados—bolosecervejapara os quais talvez ainda acalentasse uma débil esperança decompensação.Ora,deoutromodo,umavezqueerao entardecer, porquefrisaraquestãodapressa?Nãocausaadmiração, certamente,quemesmouma gangue de meliantes deva estar compressa de chegar em casaquandoháumamplo rio a ser cruzado empequenosbotes, quandoumatempestadeéiminenteequandoanoiteseaproxima.“Digose aproxima; pois a noiteainda não havia chegado. Foi apenasao

entardecer que a pressa indecente desses 'malfeitores' constituiu ofensaaossóbriosolhosdeMadameDeluc.MassomosinformadosdequeénessamesmatardequeMadameDeluc,assimcomoseufilhomaisvelho,'escutougritos de mulher nos arredores da hospedaria'. E com que palavrasMadame Deluc descreve o período da tarde em que esses gritos foramouvidos? 'Foipouco depois de escurecer ', diz. Mas 'poucodepois deescurecer' jáé,pelomenos,escuro;e 'aoentardecer ' certamente aindaháluz do dia. Desse modo ica sobejamente claro que a gangue deixou aBarrière du Rouleantes dos gritos escutados (?) por Madame Deluc. Eemboranosinúmerosrelatosdostestemunhosasrelativasexpressõesemquestão sejam distinta e invariavelmente empregadas exatamente domodocomoeuasempregueinessanossaconversa,nenhumaobservação,por menor que seja, da grosseira discrepância foi, ainda, apontada porqualquerumdessesjornaisouporqualquerumdosbeleguinsdapolícia.“Aosargumentoscontraumaganguenãoacrescentareimaisqueapenas

um; mas esseúnico argumento, em meu próprio entendimento, pelomenos, tem um peso absolutamente irresistível. Sob as circunstâncias dagrande recompensa oferecida e do pleno perdão prometido a qualquercúmpliceconfessoédi ícilnão imaginar,porummomento,queomembrodealgumaganguedevisru iões,oudequalquerbandodehomens,jánãoteria hámuito traído seus comparsas. Qualquermembro de tais ganguesestaria tãoávidopor recompensa,ouansiosoporescapar,quanto receosodetraição.Osujeitosemostraráimpacienteeapressadoemtrair, antesdeser ele próprio traído . Que o segredo ainda não tenha sido revelado é a

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melhor prova de que permanece, efetivamente, um segredo. Os horroresdessenegrofeitosãoconhecidosapenasporum,oudois,sereshumanos,eporDeus.“Recapitulemosagoraosescassosporémseguros frutosdenossa longa

análise.Chegamosà ideiasejadeumacidentefatalsobotetodeMadameDeluc,sejadeumcrimeperpetrado,nobosquedaBarrièreduRoule,porumnamorado,ouaomenosporumconhecidoíntimoesecretodafalecida.Esseconhecidoédeteztrigueira.Essatez,a'alça'feitacomabandagemeo'nódemarinheiro'comquea itadochapéufoiamarradaapontamparaum homem do mar. Suas relações com a falecida, uma jovem alegre,embora não abjeta, sugere ser ele alguém acima da patente de marujocomum.Nissoasmissivasbemescritaseinsistentesdosjornaisprestam-sedevidamente à corroboração. A circunstância do primeiro sumiço, comomencionado peloLeMercurie, tende a combinar a ideiadessemarinheirocom a do 'o icial de marinha' que segundo se sabe primeiro induziu ainfelizacairemdesgraça.“E aqui,muito adequadamente, surge a consideração sobre a ausência

persistentedessehomemdetezescura.Permita-mefazerumapausaparaobservarquea tezdesse indivíduoéescurae trigueira;nãoeranenhumamorenado comum esse que constituiu oúnico detalhe a ser lembradotantoporValencecomoporMadameDeluc.Masporqueseachaausenteesse homem? Foi ele assassinado pela gangue? Nesse caso, por querestaram indícios apenas damoça assassinada? A cena das duasbarbaridades seria naturalmente de se supor amesma. E onde está seucorpo?Osassassinosteriammuitoprovavelmentese livradodeambosdomesmomodo.Mas pode-se dizer talvez que esse homem ainda vive e sefurtaavirapúblicopeloreceiodeseracusadodocrime.Podemossuporque tal consideração ocupe agora seus pensamentos — nesse momentoposterior— uma vez tendo sido a irmado nos testemunhos que foi vistoemcompanhiadeMarie—mas tal argumentonão teria força algumanoinstante do ato. O primeiro impulso de um homem inocente teria sidodenunciarabarbaridadeeajudarna identi icaçãodosru iões.Talseriaocursodeaçãoaconselhável.Eleforavistocomamoça.Haviaatravessadooriocomelaemumbarcoaberto.Adenúnciadosassassinosteriaparecido,mesmo para um parvo, o modo mais seguro e o único de afastar de siqualquer suspeita.Nãopodemossupô-lo,nanoitedo fatídicodomingo, aomesmo tempo inocente e ignorante da barbaridade cometida. E contudoapenassobtaiscircunstânciasépossívelimaginarqueeleteriadeixado,se

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vivo,dedenunciarosassassinos.“E que meios possuímos nós de alcançar a verdade? Veremos esses

meios semultiplicareme ganharemnitidez àmedidaqueprosseguirmos.Analisemos até o fundo esse episódio da primeira fuga. Informemo-nossobreahistóriacompletadesse'oficial',comsuaspresentescircunstâncias,e seu paradeiro no preciso momento do crime. Comparemoscuidadosamente entre si as várias missivas enviadas ao periódicovespertino cujo objetivo era inculparumagangue. Isso feito, comparemosessasmissivas, tanto em respeito ao estilo como à caligra ia, com as queforam enviadas ao periódicomatutino, emumperíodo precedente, e queinsistiam com tal veemência na culpa de Mennais. E, feito tudo isso,comparemos mais uma vez essas várias missivas com a conhecidacaligra ia do o icial. Empenhemo-nos em determinar, por intermédio dosrepetidos inquéritos de Madame Deluc e seus meninos, bem como dococheiro de ônibus, Valence, algo mais sobre a aparência pessoal e acondutado'homemdetezescura'.Perguntas,sehabilmentedirecionadas,não deixarão de extrair, de uma dessas partes, informação acerca desseponto particular (ou outros) — informação de cuja posse talvez nemmesmo as próprias partes envolvidas tenham consciência de estar. Erastreemos agora o barco recolhido pelo balseiro namanhã da segunda-feira, dia 23 de junho, e que foi retirado da administração das barcaçassem conhecimento do funcionário de plantão esem o leme, em algummomento anterior à descoberta do cadáver. Com precaução eperseverança apropriadas rastrearemos infalivelmente esse barco; poisnão só o balseiro que o apanhou pode identi icá-lo como tambémo lemeestá à mão. O leme deum barco à vela não teria sido abandonado, seminvestigação,porumaalma inteiramentedespreocupada.Eaquideixe-mefazer uma pausa para insinuar uma questão. Nãose anunciou de modoalgum o barco recolhido. Ele foi silenciosamente rebocado para aadministração das barcaças, e tão silenciosamente quanto removido.Masseuproprietário ou usuário— comopode teracontecido de ele, tão cedona terça demanhã, ter sido informado, sem o auxílio de um anúncio, doparadeiro do barco levadona segunda, amenos que imaginemos algumaligação sua com amarinha — alguma relação pessoal permanenteimplicando o conhecimento de seus mínimos assuntos — de suascorriqueirasnotíciaslocais?“Ao falardoassassinosolitárioarrastandoseu fardoparaamargem, já

sugeri a probabilidade de haver ele se servidodeumbarco. Agora cabe-

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nos compreender que Marie Roget foi de fato atirada de um barco. Essenaturalmente terá sido o caso. O corpo não poderia ter sido con iado àságuasrasasdabeiradorio.Aspeculiaresmarcasnascostasenosombrosda vítima dão indício do cavername no fundo de um barco. Que o corpotenhasidoencontradosemumpesotambémcorroboraaideia.Selançadoda margem, um peso ter-lhe-ia sido lastreado. Só podemos explicar suaausência supondo que o assassino negligenciou a precaução deprovidenciar algum antes de afastar-se da terra. No ato de consignar ocadáver à água, deve inquestionavelmente ter notado seu descuido;masentãoremédioalgumhaveriaàmão.Qualquerriscoteriasidopreferívelavoltar à malfadada margem. Tendo se livrado de seu macabro fardo, oassassino teria regressado apressadamente à cidade. Ali, em algum caisobscuro, teria saltado em terra irme.Mas e o barco— será que o teriaamarrado? Sua pressa seria grande demais para se ocupar de tal coisa,comoprenderobarco.Alémdisso,amarrando-oaocais,suasensaçãoteriasidodeconstituirumaevidênciacontrasimesmo.Seupensamentonaturalterá sido alijar de sua pessoa, tão longe quanto possível, tudo queguardasse relação com o crime. Ele não só fugiria do cais como tambémnão teria permitido queo barco ali permanecesse. Seguramente o terialançadoàderiva.Sigamosimaginando.—Pelamanhã,ocanalhaétomadode inenarrável horror ao descobrir que o barco foi resgatado e acha-serecolhidoemumlocalqueeletemohábitodiáriodefrequentar—emumlocal,talvez,queseusdeveresobrigam-noafrequentar.Nanoiteseguinte,semousarperguntarpelo leme , ele o tira de lá.Masonde está agora essebarco sem leme?Que seja umdenossosprimeiros objetivosdescobrir. Aum primeiro vislumbre que obtivermos disso, o início de nosso êxitocomeçará a se insinuar. Esse barco vai nos guiar, com uma rapidez quesurpreenderáatémesmoanóspróprios,àquelequeoempregounameia-noite do fatídico domingo. Corroboração após corroboração surgirá, e oassassinoserárastreado.”(Por motivos que não especi icaremos, mas que para muitos leitores

parecerãoóbvios, tomamosa liberdadeaquideomitir,domanuscritoqueora temos em mãos, a parte em que se detalha o levantamento da pistaaparentemente insigni icante obtida por Dupin. Julgamos aconselhávelapenas expor, em suma, que o resultado desejado foi satisfatoriamenteobtido; e que o chefe de polícia cumpriu prontamente, embora comrelutância, os termosde seu acordo como cavalheiro.O artigodo sr. Poeencerra-secomaspalavrasqueseguem.Eds.)57

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Compreender-se-á que falo de coincidênciase nada mais. O que jáa irmei acima a esse respeito deve bastar. Emmeu íntimo não reside féalguma no sobrenatural. Que a Natureza e seu Deus são dois, nenhumhomempensanteiránegar.Queesteúltimo,tendocriadoaprimeira,pode,à vontade, controlá-la oumodi icá-la também é inquestionável. Repito, “àvontade”;poisaquestãodizrespeitoavontade,enão,comoa insanidadeda lógica presume, a poder. Não se trata de pensar que aDivindade nãopossa modi icar suas leis, mas que é um insulto imaginar a possívelnecessidade de modi icação. Em sua origem, essas leis são criadas paraabrangertodas as contingências quepodem residir noFuturo. ParaDeus,tudoéAgora.Repito, assim, que falo dessas coisas apenas enquanto coincidências. E

digo mais: no que relato, ver-se-á que entre o destino da infeliz MaryCeciliaRogers,namedidaemqueessedestinoésabido,eodestinodeumacerta Marie Roget, até certo ponto de sua história pessoal, existiu umparalelo cuja prodigiosa exatidão a razão ica desconcertada aocontemplar.Repitoquetudoissover-se-á.Masquenãosesuponhasequerpor um momento que, procedendo à triste narrativa de Marie desde aépoca acima mencionada, e rastreando até seudénouement58 o mistérioque envolveu a jovem, seja minha intenção secreta insinuar umaextrapolaçãodoparalelo,oumesmosugerirqueasmedidasadotadasemParis para a descoberta do assassino de umagrisette, ou que medidasbaseadas em qualquer raciocínio similar, produziriam algum resultadosimilar.Pois,emrespeitoàúltimapartedasuposição,deve-seconsiderarquea

mais trivial variaçãonos fatosdosdois casospodedarorigemaerrosdecálculo assaz importantes, ao desviar inteiramente os dois cursos deeventos;muitoaomodocomo,emaritmética,umerroque,porsuaprópriaindividualidade, pode ser desprezível produz, ao im e ao cabo, por forçademultiplicaçãoemtodosospontosdoprocesso,umresultadoemenormedivergência coma verdade. E, em relação à primeiraparte, nãodevemosdeixar de ter emmente que o próprio Cálculo de Probabilidades ao qualmereferiobsta toda ideiadeextrapolaçãodoparalelo:—obstacomumapositividadeforteecategóricanaexataproporçãocomqueesseparalelojáfoi protraído e exigido. Eis uma dessas anômalas proposições que,aparentemente apelando ao pensamento inteiramente à parte domatemático,écontudoumaqueapenasosmatemáticospodemplenamenteapreciar. Nada, por exemplo, é mais di ícil do que convencer o leitor

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meramentecomumqueofatodequeoseistenhasidoduasvezeslançadoemsucessãoporumjogadordedadosécausasu icienteparaapostarcommaior probabilidade que o seis não será lançado na terceira tentativa. Asugestão desse fenômeno é em geral rejeitada pelo intelecto na mesmahora. Parece impossível que os dois lances que foram efetuados, e queresidem absolutamente no Passado, possam ter in luência sobre o lancequeresideunicamentenoFuturo.Achancedeselançaroseispareceserprecisamente a mesma a qualquer dado momento ordinário — ou seja,sujeita unicamente à in luência das várias outras faces que podem serobtidas no dado. E essa é uma re lexão que nos parece tão sobejamenteóbviaqueas tentativasdecontestá-lasãorecebidasmais frequentementecom um sorriso de escárnio do que com qualquer coisa próxima daatençãorespeitosa.Oequívoconissoenvolvido—equívocogrosseiroequecheiraanocivo—nãoéminhapretensãoexpornoslimitesqueorasemeapresentam; e, para a mente ilosó ica, ele não necessita ser exposto.Deverá ser su icientedizer aquiqueele formaumadeuma in inita sériede enganos que surgem no caminho da Razão em sua propensão aperseguiraverdadeemdetalhes.

*Porocasiãodapublicaçãooriginalde“MarieRoget”,asnotasderodapéaqui apresentadas [Na presente edição inseridas entre colchetes nocorpo do texto, para facilitar a leitura. (N. do T.)] foram consideradasdesnecessárias; mas o lapso de vários anos transcorrido desde atragédiaemquesebaseiaanarrativatornaoportunofornecê-las,bemcomo algumas palavras à guisa de explicação do plano geral. Umajovem,MaryCeciliaRogers,foiassassinadanosarredoresdeNovaYork;e embora sua morte tenha ocasionado uma intensa e duradouracomoção, o mistério que cercou o crime permanecia sem solução noperíodoemqueopresenteartigoeraescritoepublicado(novembrode1842). Aqui, sob o pretexto de relatar o destino de umagrisetteparisiense, o autor acompanhou, emminuciosos detalhes, o essencial,ao passo quemeramente comparando os fatos não essenciais do realassassinatodeMaryRogers.Assim, todoargumentobaseadona icçãoéaplicávelàverdade:eainvestigaçãodaverdadefoioobjetivo.

O “Mistério deMarieRoget” foi escrito longe da cena da atrocidade esem quaisquer outros meios de investigação além dos jornaisdisponíveis. Assim, muita coisa escapou ao autor que ele poderia terobtido por conta própria caso houvesse estado na cena do crime e

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visitadoas localidades.Talveznãoseja inapropriadoregistrar, todavia,que as con issões deduas pessoas (uma delas a Madame Deluc danarrativa), feitas, em diferentes períodos, muito subsequentes àpublicação, con irmaram, plenamente, não só a conclusão geral, mastambém positivamente todos os principais detalhes hipotéticos pelosquaisessaconclusãofoiobtida.(N.doE.paraPoe,E.A.Tales,WileyandPutnam, Nova York/Londres, 1845, no qual a narrativa foi publicadapelaprimeiravezemumaúnicaparte.)

* “Uma teoria baseada nas qualidades de um objeto impedirá que sejadesenvolvida segundo seus objetivos; e quem arranja tópicos emreferência a suas causas deixará de valorizá-los de acordo com seusresultados.Demodoqueajurisprudênciadetodanaçãomostraráque,quandoaleisetornaumaciênciaeumsistema,eladeixadeserjustiça.Os erros aosquaisumadevoção cega aprincípios de classi icação temconduzido acommon law serão vistos observando-se com quefrequênciaalegislaturatemsidoobrigadaaintervirpararestabelecera equidade que seumétodo perdeu.” [Walter Savage] Landor. (N. doA.)

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OREIPESTE

Umanarrativacomumaalegoria

OsdeusesaturamepermitemnosreisAscoisasqueabominamnosrumosdaralé.Buckhurst,TragedyofFerrexandPorrex

Por volta da meia-noite, certa noite no mês de outubro, e durante ocavalheirescoreinadodoterceiroEduardo,doismarinheirospertencentesà tripulação doFreeandEasy, uma escunamercante que trafegava entreSluyseoTâmisa,eentãoancoradanesterio,sentavam-semuitoperplexosno interior de uma cervejaria na paróquia de St. Andrew, Londres —cervejariacujaplacaeraoretratodeum“AlegreLobodoMar”.Olugar,emboramalprojetado,enegrecidopelafumaça,detetobaixoe,

em todos os demais aspectos, harmonizando com o caráter geral de taisantros na época, era, não obstante, na opinião dos grotescos gruposdispersos aqui e ali em seu ambiente, su icientemente bemadaptado aosseuspropósitos.Desses grupos, nossos dois marujos formavam, creio, o mais

interessante,oupelomenosomaisconspícuo.O que parecia ser o mais velho, e a quem seu companheiro se dirigia

pelopeculiarapelidode“Legs”,eratambémdelongeomaismal-apanhadoe, aomesmo tempo, de longe omais alto dos dois. Deviamedir perto dedois metros e uma habitual curvatura de ombros parecia ser aconsequêncianecessáriadeestaturatãocolossal.—Adesmesuradaalturaporémeramaisdoquecompensadapelasde iciênciasemoutrosaspectos.Era excessivamente magro, e poderia, como seus companheirosa irmavam, fazerasvezes,quandobêbado,de lâmulano topodomastro,ouservir,quandosóbrio,depaudabujarrona.Mastaisgracejos,eoutrosdesimilarnatureza,evidentementenuncaproduziam,emmomentoalgum,qualquer efeito sobre os músculos casquinadores do lobo do mar. Commalares salientes, um grande nariz adunco, queixo afundado e caído,imensos olhos brancos e esbugalhados, a expressão de seu semblante,embora perpassada por uma espécie de obstinada indiferença aosassuntoseàscoisasemgeral,nãodeixavadeserabsolutamentesoleneesériaalémdequalquertentativadeimitaçãooudescrição.

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Omarujomais jovem era, em todo o seu aspecto exterior, o oposto deseucompanheiro.Suaalturanãoultrapassavaometroevinte.Umpardeatarracadas pernas tortas sustentava sua igura troncuda e desgraciosa,enquanto os braços extraordinariamente curtos e grossos, com punhosnada prosaicos nas extremidades, pendiam frouxos ao seu lado como asnadadeirasdeumatartarugamarinha.Olhosmiúdos,denenhumacoremparticular,cintilavamnofundodesuasórbitas.Onariz jaziaenterradonamassadecarnequeenvolviaseurostoredondo,cheioearroxeado;eseugrosso lábio superior repousava sobre o inferior ainda mais grosso comum ar de complacente autossatisfação que era ainda mais realçado pelohábito de seu possuidor de lambê-los a intervalos. Evidentementeconsiderava o espigado camarada de bordo com um sentimento que eraem parte de admiração, parte de zombaria; e ocasionalmente erguia orosto para encará-lo tal qual o rubro sol poente encara os penhascos deBenNevis.Várias e acidentadas, entretanto, haviam sido as peregrinações da

insigne dupla entrando e saindo das diversas tascas nos arredoresduranteasprimeirashorasdanoite.Fundos,mesmoosmaisamplos,nemsempre sãoduradouros: e foi comosbolsos vaziosquenossos amigos seaventuraramnapresenteestalagem.No preciso momento, pois, em que esta história propriamente dita

começa, Legs, e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, sentavam-se amboscomoscotovelosfincadossobrealargamesadecarvalhonomeiodobar,eambos com a mão no queixo. Fitavam, para além da imensa jarra dehumming-stuff aindaporpagar,asagourentaspalavras “NOCHALK”que,para sua indignação e perplexidade, haviam sido riscadas na portaprecisamentecomessemesmomineralcujapresençapretendiamnegar. 59Não que o dom de decifrar caracteres escritos— dom considerado pelaplebe da época pouco menos cabalístico do que a arte de escrever —pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado ao encargo de um ou outrodaqueles discípulos do mar; mas havia, a bem da verdade, uma certacurvaturanaformaçãodasletras—umaindescritívelguinadaasotaventono conjunto — que pressagiava, na opinião dos dois marujos, um longoperíodo de clima borrascoso; e os determinou imediatamente, nasalegóricaspalavrasdopróprioLegs,a“bombearasentina,ferrarospanosezarpardeventoempopa”.Tendo desse modo liquidado o que restava de sua forte cervejaale, e

abotoado até o colarinho seus curtos gibões, os dois inalmente correram

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paraarua.EmboraTarpaulinhouvesseporduasvezesentradonalareira,tomando-apelaporta,afugadelesfoien imlevadaabomtermo—emeiahoraapósameia-noiteencontramosnossosheróisprontosparaencrencaepassandosebonascanelasporumavielaescuranadireçãodaescadariadeSt.Andrew,perseguidosfuriosamentepelasenhoriado“AlegreLobodoMar”.Naépocadestaacidentadanarrativa,eperiodicamentepormuitosanos

antes e depois, em toda a Inglaterra, mas mais especialmente nametrópole, ecoava o assustador grito de “Peste!”. A cidade estava emgrandepartedespovoada—enessashorríveisregiões,nosarredoresdoTâmisa, onde, entre os escuros, estreitos e imundos becos e vielas, sesupunha que o Demônio da Doença conhecera seu berço, o Assombro, oTerroreaSuperstiçãoeramosúnicosquesepodiamencontraràespreitaportodaparte.Porautoridadedoreitaisdistritosforam interditadosetodasaspessoas

icaram proibidas, sob pena de morte, de penetrar em seus ermosdesolados. E contudo, nem o decreto do monarca, nem as imensasbarreiras erguidas na entrada das ruas, nem a perspectiva dessamorterepugnante que, com infalibilidade quase absoluta, esmagava osdesgraçados que risco nenhum conseguia dissuadir de por ali seaventurar, poupava asmoradias desmobiliadas e desocupadas de seremdespojadas,porobradepilhagemnoturna,detodoartigo,comoferro,latãoou chumbo, que pudesse de algummodo ser convertido em importâncialucrativa.Acimade tudo, emgeral se descobria, na retirada anual das barreiras,

todo inverno, que fechaduras, trancas e adegas secretas provavam-seproteção insu iciente para os ricos estoques de vinhos e bebidas que,considerando o risco e a di iculdade de remoção, muitos dos numerososnegociantes com estabelecimentos na vizinhança haviam consentido emconfiar,duranteoperíododeseuexílio,asegurançatãoprecária.Mas pouquíssimos dentre a gente aterrorizada atribuíam essas

iniquidadesàaçãodemãoshumanas.Espíritosdapraga,duendesdapesteedemôniosdafebreeramosdiabretestidospelopovocomoseuautores;etantashistóriasdeenregelarosangueeramcontadashoraapóshoraquetodooconjuntodeedi íciosproibidos icou,comotempo,envoltocomoquenuma mortalha de terror, e os próprios saqueadores muitas vezes sedeixavam afugentar pelos horrores que suas próprias pilhagens haviamcriado; entregando todo o vasto perímetro de distrito interditado à

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melancolia,aosilêncio,àpestilênciaeàmorte.Foi por uma dessas barreiras jámencionadas, e que indicava a região

alémdelacomoestandosobinterdiçãoporPeste,que,aoentrarcorrendopor uma viela, Legs e o insigne Hugh Tarpaulin viram seu avançosubitamenteimpedido.Voltarestavaforadequestão,enãohaviatempoaperder, com seus perseguidores tão perto de seus calcanhares. Paracalejados marinheiros, escalar o tapume de pranchas grosseiramenteerguido era brincadeira de criança; e assim, exaltados com a duplaexcitaçãodoexercícioedabebida,elespularamsemhesitarparaoladodedentro do cercado e, prosseguindo em sua ébria carreira aos urros eberros,viram-seempoucotempoperdidosemseusrecessosrepelenteseintrincados.Não estivessem ambos, na verdade, embriagados além de todo senso

moral, seus trôpegos passos teriam sido paralisados pelo horror de suasituação.O ar estava frio e enevoado. As pedras do pavimento, soltas emseu leito, jaziamembárbaradesordementreomato alto edenso, que seprojetava em torno de seus pés e tornozelos. Casas desmoronadasbloqueavam as ruas. Os odoresmais fétidos e venenosos predominavampor toda parte;— e com auxílio dessa luz espectral que,mesmo àmeia-noite, nunca deixa de emanar de uma atmosfera vaporosa e pestilencial,podiam-se discernir, caídos pelos becos e ruelas, ou apodrecendo nointeriordashabitaçõessemjanelas,ascarcaçasdeinúmerossaqueadoresnoturnosdetidospelamãodapesteemplenaperpetraçãodesuarapina.Masnãoestavaempoderdetaisimagens,sensaçõesouobstáculos icar

nocaminhodehomensque,naturalmentecorajosose,nessemomentoemparticular, transbordando de bravura e humming-stuff, teriamcambaleado, omais em linha reta que sua condição ter-lhes-ia permitido,destemidamenteparaasmandíbulasdaprópriaMorte.Adiante—sempreadiantemarchavaoincansávelLegs,suscitandoadesoladaausteridadedeecos e reverberações que bradam como o terrível grito de guerra dosíndios; e adiante, sempre adiante gingava o atarracado Tarpaulin,segurando o gibão de seumais expedito companheiro e suplantando emmuito os mais vigorosos esforços daquele a título de música vocal,extraindo in basso o som de um rombo das profundezas estentóreas deseuspulmões.Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da pestilência. Seu

avanço a cada passo ou tropeção tornava-se cada vez mais repelente ehorrível—oscaminhos,maisestreitosemaisintrincados.Imensaspedras

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e vigas desabando de tempos em tempos dos telhados acima delesevidenciavam, por sua quedamorosa e pesada, a vasta altura das casascircundantes; e embora um efetivo esforço fosse necessário para forçarpassagempelasfrequentespilhasdeentulho,nãoerademodoalgumraroque a mão tocasse um esqueleto ou pousasse sobre um cadáver aindacarnudo.De repente, quando os marujos tropicavam contra a entrada de um

prédio alto e de aspectomacabro, um chamadomais do que usualmenteestridentesaídodagargantadoafogueadoLegs foi respondidodedentroporumarápidasucessãodegritosselvagens,derrisórios,diabólicos.Nemum pouco intimidados com sons que, por sua mera natureza, em ummomentocomoaquele,eemumlugarcomoaquele,poderiamtergeladoosangue de corações menos irrevogavelmente in lamados, a embriagadaduplafezcargacontraaporta,arrombou-aeentroucambaleantenomeiodacenacomumatorrentedeimprecações.Asalanaqualseachavamrevelou-seao icinadeumagentefunerário;

mas um alçapão aberto, em um canto do soalho perto da entrada, davaparaumalonga ileiradeadegas,cujasprofundezas,peloocasionalsomdegarrafas quebrando, evidentemente estavam bem abastecidas com oconteúdo apropriado. No meio do aposento havia uma mesa— em cujocentrovia-seaindaumaimensacubadoquepareciaserponche.Garrafasdediversosvinhosecordiais,alémde jarras,bilhase frascosde todososformatos e qualidade, espalhavam-se profusamente sobre sua super ície.Emtornodela,sentadossobrecatafalcos,haviaumgrupodeseispessoas.Tentareidescrevê-lasumaporuma.Defrenteparaaentrada,eelevando-seligeiramenteacimadosdemais,

estava um personagem que parecia presidir a mesa. Era macilento e degrande estatura, e Legs icou desconcertado por contemplar uma iguraaindamaisemaciadaqueasua.Tinhaorostoamarelodacordoaçafrão—mas traço algum, exceto um único, era su icientemente marcante paramerecer descrição particular. Consistia de uma testa tão insólita emedonhamente alta que mais parecia uma touca ou coroa de carneacrescentadaàcabeçanatural.Suabocaeraenrugadaecheiadecovinhasnumaexpressãodeespectralafabilidadeeseusolhos,comonaverdadeosolhosde todos àmesa, estavamvidrados comos vaporesda embriaguez.Esse cavalheiro cobria-se dos pés à cabeça por umamortalha de veludoacetinado ricamente bordada, envolvendo negligentemente sua forma àmaneira de uma capa espanhola. Tinha a cabeça cheia de espigadas

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plumasfuneráriascordesable,quefaziabalouçardeumladoaoutrocomarsábioegarboso;e,namãodireita,seguravaumenormefêmurhumano,com o qual ao que parecia acabara de castigar algummembro do grupoparaquecantasse.Diante dele, e de costas para a porta, havia uma dama de aspecto em

nada menos extraordinário. Embora tão alta quanto o indivíduo acimadescrito, não tinha por que se queixar de uma mesma emaciação tãoantinatural. Encontrava-se evidentemente no último estágio de umahidropisia;esua iguraassemelhava-semuitoàdoimensobarrildealedeoutubroque icava,comatampaforçadaparadentro, logoaseu lado,emumcantodoaposento.Seurostoeraexcessivamenteredondo,vermelhoecheio; e amesmapeculiaridade, ouantes faltadepeculiaridade, ligava-seao seu semblante, que mencionei acima no caso daquele que presidia àmesa—ou seja, nãomais que umaúnica característica de seu rosto erasu icientementedistintaparanecessitaruma caracterização separada: defato, o perceptivo Tarpaulin observou imediatamente que a mesmaconsideraçãopodia ser aplicada a todos os indivíduos ali presentes; cadaum deles parecia deter o monopólio de alguma porção particular deisionomia. Com a dama em questão essa parte se revelou ser a boca.Começandopelaorelhadireita, estendia-seemumamedonha fendaatéaesquerda— os curtos brincos que usava em cada lóbulo continuamentebalançando para dentro da abertura. Empreendia, entretanto, o maioresforço paramanter a boca fechada e aparentar dignidade, em um trajeconsistindodeumamortalha recém-engomada epassada a ferroque lhechegava bem junto ao queixo, com um rufo plissado de musselina decambraia.Àsuadireitasentava-seumadiminutajovemqueaparentementegozava

de sua proteção. A delicada criaturinha, no tremor de seus dedosdescarnados,nolívidopalordeseuslábiosenamanchalevementehécticaque lhe tingia a tez em tudomais de um plúmbeomatiz, dava evidentesindíciosdeconsumpçãogalopante.Umardeextremohautton ,entretanto,permeavatodaasuaaparência;vestiademaneiragraciosaedegagée60umgrandeebelo sudáriodomais re inado linho indiano; seuscabelos caíamemcachossobreseupescoço;umsuavesorrisobrincavaemsuaboca;masseu nariz, extremamente longo, ino, sinuoso, lexível e pustulento pendiaatébemabaixodeseu lábio inferiore,adespeitododelicadomodocomodevezemquandoomoviaparaumladoeoutrocomalíngua,emprestava-lheaosemblanteumaexpressãoumtantoduvidosa.

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Diante dela, e à esquerda da dama hidrópica, sentava-se um velhinhoresfolegante, asmático e gotoso cujas bochechas repousavam sobre osombrosdeseupossuidorcomodois imensosodresdevinhodoPorto.Debraços cruzados, e com uma perna enfaixada pousada sobre a mesa,parecia ver-se a si mesmo no direito de alguma consideração.Evidentementeorgulhava-sebastantede cadapolegadade suaaparênciapessoal, mas extraía deleite todo especial de chamar a atenção para seusobretudo de cores espalhafatosas. O casaco, verdade seja dita, devia terlhe custado um bom dinheiro, e era de um feitio que lhe assentavaesplendidamente— talhado como fora a partir de uma dessas capas deseda curiosamente bordadas pertencentes a esses gloriosos brasõesd'armas que, na Inglaterra e em toda parte, costumam icar penduradosemalgumlugaràvistanasresidênciasdeantigasaristocracias.Ao seu lado, e àdireitadopresidente, haviaumcavalheiro vestindo as

pernas comuma compridamalhabranca emestilomedieval e calçõesdealgodão. Seu corpo tremia, de maneira ridícula, num acesso do queTarpaulinchamoude“chiliques”.Seusmaxilares,quehaviamsidorecém-barbeados, estavam fortemente presos por uma faixa demusselina; e osbraçosestandoamarradosdeformasimilarjuntoaospulsosimpediam-nodeservir-semuitoliberalmentedasbebidassobreamesa;precauçãofeitanecessária, na opinião de Legs, pelo aspecto peculiarmente ébrio echumbadodeseusemblante.Umpardeprodigiosasorelhas,nãoobstante,que eram sem dúvida alguma impossíveis de con inar, assomavamsobranceirasnoambientedo recinto, e seesticavamocasionalmentenumespasmoaosomdealgumarolhaespocada.De frente para ele, o sexto e último, situava-se um personagem de

aparência singularmente hirta, que, sendo a ligido pela paralisia, devia,para falar a sério, estar se sentindo muito pouco à vontade em seudesairoso vestuário. Trajava-se, um tanto unicamente, com um caixão demognonovoebelo.Suatampaoucoroaapertava-sesobreseucrânioeseestendiasobreeleàmaneiradeumcapuz,emprestandoaorostocomoumtodo um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços haviam sidoabertasnaslaterais,menosemnomedaelegânciadoquedaconveniência;mas o traje, não obstante, impedia seu dono de sentar tão ereto quantoseus colegas; e ali reclinado contra seu catafalco em um ângulo dequarenta e cinco graus, um par de imensos olhos esbugalhados reviravasuas pavorosas escleróticas brancas para o teto em absoluta estupefaçãocomsuaprópriaenormidade.

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Diante de cada um daquele grupo havia um crânio cortado, que erausadocomotaça.Acima icavasuspensoumesqueletohumano,penduradoporumacordaamarradaaumadaspernasepresaaumaargolanoteto.Aoutraperna,livredequalquerpeia,projetava-sedocorpoemânguloreto,levando todaaossada solta e chocalhante abalançar e girar ao sabordequalquer ocasional sopro de vento que porventura invadisse o ambiente.No crânio dessa coisa hedionda havia um punhado de carvão em brasaque lançava uma luz indecisa mas vívida sobre toda a cena; enquantocaixões e outros artigos pertencentes à o icina de um agente funerárioempilhavam-se até o teto em tornoda sala, obstruindo todas as janelas eimpedindoqualquerraiodeluzdeescaparparaarua.À visão dessa extraordinária assembleia, e de seus ainda mais

extraordináriosaparatos,nossosdoismarujosnãoseconduziramcomessegraudedecoroqueseriadeseesperar.Legs,recostandocontraaparedequecalhavadelheestarpróxima,deixoucairomaxilarinferioraindamaisbaixo do que de costume, e arregalou os olhos na máxima amplitude;enquanto Hugh Tarpaulin, curvando-se a ponto de deixar seu nariz nomesmo nível da mesa, e batendo com a palma das mãos nos joelhos,explodiunorugido longo,altoeestrondosodeumadeveras inoportunaeimoderadagargalhada.Sem todavia ofender-se diante de comportamento tão excessivamente

rude,ocompridopresidentesorriumuigraciosamenteparaosintrusos—acenou-lhesdeummododignocomsuacabeçadenegrospenachos—e,erguendo-se,tomou-oscadaumpelobraçoeconduziu-osaosseuslugares,quenessemeio-tempoosdemaishaviamarranjadoparasuaacomodação.Legsnenhumaresistênciaofereceuatudoisso,pelocontrário,feztalcomoorientado; ao passo que o galante Hugh,movendo seu catafalco do lugarjunto à cabeceira da mesa para a proximidade da pequena dama tísicaenvoltanosudário,desabouaseuladocomgrandejúbilo,e,servindo-sedeumcrâniodevinhotinto,esvaziou-onumbrindeaoestreitamentodesuasrelações. Mas diante de tal impudência o rígido cavalheiro no caixãopareceu sumamente incomodado; e graves consequências poderiam terdaíadvindonãohouvesseopresidente,batendonamesacomseuporrete,dirigidoaatençãodetodososconvivasparaoseguintediscurso:“Sóisernossodevernaauspiciosaocasiãoqueoraseapresenta——”“Alto lá!”, interrompeu Legs, com armuito sério, “alto lá ummomento,

repito,edizei-nosquemdiabossoistodosvós,equeassuntostendesaqui,aparelhados como os demônios em pele de cracas e acendendo a

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lamparina com o digníssimo grogue estivado para o inverno pelo meuhonestocamaradadebordo,WillWimble,ocangalheiro!”Ante essa imperdoável amostra de malcriadez, todo o grupo original

soergueu-se nos pés e emitiu a mesma rápida sucessão de guinchosselvagens e diabólicos que anteriormente já chamara a atenção dosmarujos.Opresidente,entretanto,foioprimeiroarecobraracompostura,até que inalmente, virando-se para Legs com grande dignidade,recomeçou:“De muito bom grado satisfaremos qualquer curiosidade razoável da

partedeconvidadostãoilustres,porinesperadosquesejam.Ficaisabendoentão que destes domínios sou monarca, e aqui governo com indivisopodersobotítulode'ReiPesteI'.

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“Este aposento, que vós sem dúvida profanamente supondes ser ao icinadeWillWimble,cangalheiro—homemquedesconhecemos,ecuja

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plebeiadesignaçãonuncaantesdessanoiteferiranossosreaisouvidos—,este aposento, repito, é o Salão deDignitários de nosso Palácio, devotadoaosconselhosdoreinoeaoutrospropósitosaltivosesacrossantos.“A nobre dama que senta a vossa frente é a Rainha Peste, nossa

Sereníssima Consorte. Os demais augustos personagens que contemplaispertencemtodosanossafamíliaeportamainsígniadosanguerealsobosrespectivostítulosde'SuaGraçaoArquiduquePest-Ifero'—'SuaGraçaoDuque Pest-Ilencial' — 'Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso' — e 'SuaSereníssimaAltezaaArquiduquesaAna-Peste'.“Noquerespeita”,prosseguiuele,“avossainterpelaçãosobreoassunto

que nos traz aqui em conselho, haveremos de ser perdoados porresponder que concerne, e concerneapenas e tão somente , ao nossoparticular e régio interesse, e não é de modo algum importante paraqualquer outro além de nós mesmos. Mas em consideração àsprerrogativas que, na condição de convidados e estrangeiros, podeisachar-vosnodireito,explicar-vos-emosaindaqueestamosaquiessanoite,preparadosporintensapesquisaecuidadosainvestigação,paraexaminar,analisaredeterminarcabalmenteoespíritoinde inível—asqualidadeseanaturezaincompreensíveis—dessesinestimáveistesourosdopalato,osvinhos, cervejas e licores desta aprazível metrópole; e em fazendo-ofomentarmenosnossosprópriosdesígniosqueogenuínobem-estardessasoberanatranscendentecujoreinoestáacimadetodosnós,cujosdomíniossãoilimitadosecujonomeé'Morte'.”“Cujo nome é Davy Jones!”, proferiu Tarpaulin, oferecendo à dama ao

seuladoumcrâniodelicor,eservindoumsegundoparasi.“Biltreprofano!”,disseopresidente,agoravoltandosuaatençãoparao

insigne Hugh, “canalha profano e execrável! — já dissemos que emconsideração às prerrogativas que, mesmo em tua imunda pessoa, nãosentimos inclinação algumapor violar, condescendemos em responder àstuasrudeseinoportunasindagações.Nãoobstante,devidoatuamundanaintrusão em nossos conselhos, cremos por bem penalizar-te, a ti e a teucompanheiro, em um galão de Black Strap 61 — que bebereis àprosperidadedenossoreino—deumúnicotrago—edejoelhos—sendoque icareisincontinentelivressejaparaprosseguirdesemvossocaminho,seja para permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossamesa,segundovossosrespectivoseindividuaisdesejos.”“Seriacoisadamaisabsolutaimpossibilidade”,replicouLegs,emquema

presunção e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado

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algunssentimentosderespeito,equeselevantoue irmouocorpojuntoàmesaconformefalava—“seria,comagraçadevossamajestade,coisadamais absoluta impossibilidade estivar emmeuporão atémesmoaquartapartedessatalbeberagemquevossamajestadeacabademencionar.Paranadadizerdassubstânciastrazidasabordopelamanhãatítulodelastro,esemmencionarasváriasalese licoresembarcadosestanoiteemdiversosportosmarítimos,trago,presentemente,umacargacompletadehumming-stuffacomodadaedevidamentepaganatabuletado'AlegreLobodoMar'.De talmodoque concederávossamajestadea graçade tomara intençãopelo feito— pois não há de initivamentemodo algum nestemundo peloqualeupossaouqueiraengolirmaisumaúnicagota—quedizerentãodeuma gota dessa ignóbil água de sentina que atende pela saudação de'BlackStrap'.”“Um momento aí!”, interrompeu Tarpaulin, espantado menos pela

extensão do discurso de seu companheiro do que pela natureza de suarecusa—“Seguraasamarras,marinheirodeáguadoce!—erepito,Legs,chega dessa palração! Omeu casco ainda está leve, embora deva admitirqueo teupareceumpoucoadernado; equantoàquestãoda tua cotadacarga, ora, em lugar de fazer uma tempestade em copo d'água, pre iroacharespaçodeestivaemmeupróprioporão,mas—”“Esse proceder”, interpôs o presidente, “não está absolutamente de

acordocomostermosdapenalidadeousentença,queé,porsuanatureza,Mediana,semprestar-seaapelaçõesourevogações.Ascondiçõespornósimpostas devem ser cumpridas à risca, e sem hesitar por mais ummomento sequer — no insucesso de cujo cumprimento decretamos quesejais amarrados, pescoço e calcanhares unidos, e devidamente afogadoscomorebeldesalinaquelapipadecervejadeoutubro!”“Que sentença!—que sentença!—que sentençamais correta e justa!

— que decreto glorioso! — que condenação mais insigne, direita esacrossanta!”,berrouafamíliaPesteemuníssono.Oreielevouatestaeminumeráveisrugas;ovelhinhodagotabufoucomoumpardefoles;adamado sudário agitou seu nariz de um lado para o outro; o cavalheiro emcalçõesdealgodãoesticouasorelhas;amulherdamortalhaofegoucomoumpeixe agonizante; e o homemdo caixão continuou rígido e revirou osolhosparaoalto.“Ugh! ugh! ugh!”, casquinou Tarpaulin, sem se dar conta da comoção

geral, “ugh! ugh! ugh!—ugh!ugh! ugh! ugh!—ugh! ugh! ugh!—eu iadizendo”,falou,“euiadizendo,quandoosenhorReiPesteaquiveiometer

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o seu agulhãodemerlim, quenoquediz respeito a dois ou três galões amaisouamenosdeBlackStrap,issoeraumabagatelaparaumbarcorijocomoeu,esemcargaemexcesso—masquandosetratadebeberàsaúdedoDemônio(queDeusodesacoime)edemepôrde joelhosperanteestamal-apanhadamajestadeaí,queporacasosei,tãobemquantoseiquesouumpecador,nãosernenhumoutronestemundosenãoTimHurlygurly,ohomemdospalcos!—ora!écoisadecaráterbemdiferente,eultrapassacompletamenteminhacompreensão.”Nãolhefoipermitidoencerrarseudiscursocomtranquilidade.Aoouvir

onomedeTimHurlygurly,todaaassembleiapuloudesuascadeiras.“Traição!”,gritouSuaMajestadeoReiPesteI.“Traição!”,disseohomenzinhodagota.“Traição!”,berrouaArquiduquesaAna-Peste.“Traição!”,grunhiuohomemdocaixão.“Traição! traição!”, guinchou sua majestade bocuda; e, agarrando pela

parte traseira das calças o desafortunado Tarpaulin, que havia nessemomento começado a se servir de um crânio de licor, ergueu-o no ar edeixou-o cair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua tão adoradaale.Boiandoeafundandoporalgunssegundoscomoumamaçãnumatinade grogue, ele inalmente desapareceu emmeio ao turbilhão de espumaque,nabebidajáborbulhante,suasdebatidasrapidamentehaviamcriado.Não foi submissamente, contudo, que o alto marujo contemplou o

embaraço de seu companheiro. Empurrando o Rei Peste pelo alçapãoaberto, o valoroso Legs bateu a tampa, aprisionando-o com umaimprecação,emarchouparaocentrodasala.Ali, arrancandooesqueletoque pendia sobre a mesa, distribuiu bordoadas a torto e a direito comtamanhaenergiaegostoque,comosúltimosvislumbresde luzmorrendonorecinto,conseguiufazersaltarosmiolosdopequenocavalheirodagota.Arremetendoemseguidacomtodaa forçacontraa fatídicapipacheiadecerveja de outubro e de Hugh Tarpaulin, emborcou-a e a fez rolar numpiscar de olhos. Dali jorrou um dilúvio de bebida tão feroz — tãoimpetuoso — tão esmagador — que a sala foi inundada de parede aparede—amesacheiavirou—oscatafalcos icaramdepernasparaoar—a cubadeponche foi pararna lareira—e asdamas se entregaramàhisteria.Montes de acessórios funerários boiavampor toda parte. Jarras,pichéis e garrafões misturavam-se promiscuamente namelée, enquantobotijas forradas de vime chocavam-se desesperadamente contra botelhas

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em trançados de junco. Crânios lutuaram en masse; penachos fúnebresacenaramparabrasões;ohomemdoschiliquesafogou-senamesmahora;o pequeno cavalheiro hirto lutuou em seu caixão; e o vitorioso Legs,segurando pela cintura a dama gorda da mortalha, foi carregado juntoparaarua,e ixouocursomaisdiretoparao FreeandEasy,seguidoatodopanopeloformidávelHughTarpaulin,que,tendoespirradotrêsouquatrovezes, arquejava e resfolegava ao seu encalço com a Arquiduquesa Ana-Peste.

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LEONIZANDO62

Todomundoficounapontadospés,emexaltadaadmiração.

BispoHall,SatiresSou—querdizer, fui—umgrandehomem;masnãosounemoautordeJunius,nemohomemdamáscara,poismeunomeéJohnSmith,enasciemalgum lugar da cidade de Fum-Fudge. O primeiro ato de minha vida foisegurar meu nariz com as duas mãos. Minha mãe presenciou isso echamou-megênio;meupaichoroudealegria,ecomprou-meumtratadodeNosologia.63Antesdeusarcalçascompridaseunãosódominavaotratadocomo também coligira num caderno de apontamentos e citações tudoquanto é dito a respeito do tema por Plínio, Aristóteles, Alexander Ross,Minutius Felix, Hermanus Pictorius, Del Rio, Villarêt, Bartholinus e SirThomasBrowne.*

Então comecei tateante a trilhar o caminho da ciência, e logo vim acompreender que, dado que um homem tivesse o nariz su icientementegrande, ele poderia, meramente o seguindo, alcançar a leonicidade. Masminha atenção não permaneceu restrita a teorias somente; todas asmanhãseuentornavaumoudoistragosedavaemminhaprobóscideumbompardepuxões.Quandochegueiàidadeadulta,meupaisolicitou,certodia,queoacompanhasseaoseugabinete.“Meu ilho”, disse ele, quando estávamos sentados, “qual é a principal

finalidadedatuaexistência?”“Pai”,disseeu,“éoestudodaNosologia.”“Eoque,John”,prosseguiu,“vemaserNosologia?”“Meusenhor”,repliquei,“éaCiênciadosNarizes.”“Esabesmedizer”,perguntou,“qualosignificadodeumnariz?”“Umnariz,meupai”,disseeu,“foidasmaisvariadasformasde inidopor

cercademilautoresdiferentes. (Nisso,puxeimeurelógio.)Agoraémeio-dia, oupoucomais oumenos;— creio quedispomosde tempo su icienteparapassarpor todoselesantesdameia-noite.Comecemos,pois.Onariz,segundo Bartholinus, é essa protuberância, esse inchamento, essaexcrescência,ess—”“Isso basta, John”, disse o velho cavalheiro. “Estou abismado com a

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extensãode teusconhecimentos.Estou,positivamente—porminhaalma.Vemaqui!(Nissofechouosolhosepôsamãosobreocoração.)Vemaqui!(Nisso tomou-mepelobraço.)Tuaeducaçãoaindanãopodeserdadaporencerrada, e já está mais do que na hora de lutares por ti mesmo— emelhor não podes fazer do quemeramente seguir teu nariz— então—então—então—(Nissochutou-mepelaescadaabaixoepelaportaafora.)—entãosaijádaminhacasa,equeDeusteabençoe!”Como sentia dentro demim oafflatus divino, considerei esse incidente

antes afortunado do que outra coisa. Resolvi me deixar guiar peloaconselhamento paterno. Determinei-me a seguirmeu nariz. Apliquei-lheumoudois puxões semmais delongas e redigi incontinenteumopúsculoacercadaNosologia.TodaFum-Fudgeficouempolvorosa.“Gênioprodigioso!”,disseaQuarterly.“Fisiologistasoberbo!”,disseoWestminster.“Sujeitosabido!”,disseoForeign.“Ótimoescritor!”,disseoEdinburgh.“Pensadorprofundo!”,disseoDublin.“Grandehomem!”,disseBentley.“Almadivina!”,disseFraser.“Umdenós!”,disseBlackwood.“Quempodeser?”,disseasra.Bas-Bleu.“Oquepodeser?”,disseasrta.Bas-Bleu,agrande.“Onde pode ser?”, disse a srta. Bas-Bleu, a pequena.—Mas não dei a

menoratençãoaessaspessoas—apenasfuiparaoateliêdeumartista.ADuquesadeBless-My-Soulposavaparaumretrato;oMarquêsdeSo-

and-Soseguravaopoodledaduquesa;oCondedeThis-and-That lertavacom os sais dela; e Sua Alteza Real de Touch-me-Not reclinava contra oespaldardesuapoltrona.Aproximei-medoartistaeempineionariz.“Ah,lindo!”,suspirousuaGraça.“Minhanossa!”,ceceouoMarquês.“Oh,chocante!”,gemeuoConde.“Oh,abominável!”,resmungouSuaAltezaReal.

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“Quantoquerporele?”,perguntouoartista.“Porseunariz!”,gritouSuaGraça.“Millibras”,disseeu,sentando-me.“Millibras?”,perguntouoartista,refletindo.“Millibras”,disseeu.“Lindo!”,disseele,enlevado.“Millibras”,disseeu.“Dá-megarantia?”,perguntouele,virandoonarizsobaluz.“Dou”,disseeu,assoando-obem.“Étotalmenteoriginal?”,inquiriuele,tocando-ocomreverência.“Humpf!”,disseeu,virando-oparaolado.“Nenhuma cópia ainda foi feita?”, quis saber ele, examinando-o ao

microscópio.“Nenhuminha”,disseeu,empinando-o.“Admirável!”, ele exclamou, pegando-se completamente desprevenido

comabelezadamanobra.“Millibras”,disseeu.“Millibras?”,disseele.“Precisamente”,disseeu.“Millibras?”,disseele.“Nemmais,nemmenos”,disseeu.“Tuas terás”, disse ele. “Que re inadaobrade arte!”Assim,preencheu

umcheque alimesmo, e fezumesboçodemeunariz.Arranjei aposentosna Jermyn Street e enviei para SuaMajestade a nonagésimanona ediçãod aNosologia, com um retrato da probóscide. — Aquele libertinozinhodesprezível,oPríncipedeGales,convidou-meparaumjantar.

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Éramostodosleõeserecherchés.Havia um neoplatônico. Ele citou Por írio, Jâmblico, Plotino, Proclo,

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Hiérocles,MáximodeTiroeSiriano.Haviaumestudiosodaperfectibilidadehumana.ElecitouTurgot,Price,

Priestly,Condorcet,DeStäeleoAmbitiousStudentinIllHealth.Havia Sir Positive Paradox. Observou ele que todos os tolos eram

filósofos,equetodososfilósofoseramtolos.Havia Æstheticus Ethix. Ele falou sobre fogo, unidade e átomos; alma

biparte e alma preexistente; a inidade e discordância; inteligênciaprimitivaehomeomeria.HaviaTheologosTheology.Ele faloudeEusébioedeÁrio;deheresia e

do Concílio de Niceia; do puseyismo e do consubstancialismo; dehomoousiosedehomoouioisios.Havia Fricassée, do Au Rocher de Cancale. Ele mencionou a línguaà

l'écarlate; a couve- lor aomolhovelouté; a vitelaàla Sainte-Menehould; amarinadaàlaSaint-Florentin;easgeleiasdelaranjaenmosaïques.Havia Bibulus O'Bumper. Ele comentou sobre o Latour e o

Markbrünnen;sobreoMousseauxeoChambertin;sobreoRichebourgeoSaint-Georges;sobreoHaut-brion,oLéovilleeoMédoc;sobreoBarsaceoPreignac;sobreoGraves,sobreoSauterne,sobreoLa itteesobreoSaint-Péray. Abanou a cabeça para o Clos de Vougeot e explicou, com os olhosfechados,adiferençaentrexerezeamontillado.Havia o Signor Tintontintino, de Florença. Ele discorreu a respeito de

Cimabue, D'Arpino, Carpaccio e Agostino — a respeito das sombras emCaravaggio, da amenidadedeAlbano, das cores emTiciano, dasbacantesdeRubensedasalegrescenasdeJanSteen.HaviaoreitordaUniversidadedeFum-Fudge.Eleeradaopiniãoquea

lua se chamava Bendis na Trácia, Bubastis no Egito, Diana em Roma eÁrtemisnaGrécia.HaviaoGrão-TurcodeIstambul.Elenãoconseguiadeixardepensarque

os anjos eram cavalos, galos e touros; que alguémno sexto paraíso tinhasetenta mil cabeças; e que a Terra era suportada por uma vaca azul-celestecomnúmeroincalculáveldechifresverdes.HaviaDelphinusPolyglott.Contou-nosoquesepassaracomasoitentae

trêstragédiasperdidasdeÉsquilo;comoscinquentaequatrodiscursosdeIseu;comostrezentosenoventaeumdiscursosdeLísias;comoscentoeoitenta tratados de Teofrasto; com o oitavo livro das seções cônicas deApolônio; comoshinoseditirambosdePíndaro; e comquarentae tantas

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tragédiasdeHomeroJúnior.Havia Ferdinand Fiz-Fossilius Feltspar. Ele nos falou sobre fogos

internos e formações terciárias; sobre aeriformes, luidiformes esolidiformes;sobrequartzoemarga;sobrexistoeturmalina;sobregipsitae basalto; sobre talco e calcário; sobre blenda e hornblenda; sobremalacacheta e conglomerado; sobre cianita e lepidolita; sobre hematita etremolita; sobre antimônio e calcedônio; sobre manganês e o que maisquiseres.Haviaeumesmo.Faleidemimmesmo;—demim,demim,demim;—

deNosologia,demeuopúsculoedemimmesmo.“Quehomemmaravilhosamenteinteligente!”,disseoPríncipe.“Soberbo!”, disseram seus convidados: — e na manhã seguinte, Sua

GraçadeBless-my-Soulmefezumavisita.“GostariasdecompareceraoAlmack's, lindacriatura?”,disseela,dando

umsoquinhoemmeuqueixo.“Seráumahonra”,disseeu.“Comnarizetudo?”,perguntouela.“Certamente”,repliquei.“Eis aqui então um convite, minha vida. Posso contarmesmo com tua

presença?”“QueridaDuquesa,ireidetodocoração.”“Orabolas,não!—viráscomtodoteunariz?”“Cadapedacinhodele,meuamor”,disseeu:—entãolheapliqueiumaou

duastorceduras,evi-menoAlmack's.Ossalõesestavamlotadosaopontodasufocação.“Aívemele!”,dissealguémnaescadaria.“Aívemele!”,dissealguémmaisnoalto.“Aívemele!”,dissealguémaindamaisalto.“Eleveio!”,exclamouaDuquesa.“Eleveio,oamorzinho!”—e,tomando-

mefirmementepelasduasmãos,beijou-metrêsvezesnonariz.Umanotávelcomoçãosesucedeuimediatamente.“Diavolo!”,gritouoCondeCapricornutti.“DiosGuarda!”,murmurouDonStiletto.“Milletonnerres!”,exclamouoPríncipedeGrenouille.

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“TousandTeufel!”,resmungouoEleitordeBluddennuff.Aquilo era insuportável. Fiquei furioso. Virei abruptamente para

Bluddennuff.“Senhor!”,disse-lhe,“ésumbabuíno.”“Senhor”,replicouele,apósumapausa,“DonnerundBlitzen!”Isso era tudo quanto se poderia desejar. Trocamos cartões. Em Chalk-

Farm, na manhã seguinte, alvejei-lhe o nariz— e depois procurei meusamigos.“Bête!”,disseoprimeiro.“Tolo!”,disseosegundo.“Pateta!”,disseoterceiro.“Asno!”,disseoquarto.“Idiota!”,disseoquinto.“Estúpido!”,disseosexto.“Somedaqui!”,disseosétimo.Diantedissotudo,fiqueimortificado,eassimfuiàprocurademeupai.“Meu ilho”, replicou ele, “isso ainda é o estudo da Nosologia; mas ao

acertar o nariz do Reitor, erraste o alvo. Tens um belo nariz, é verdade;masagoraBluddennuffnãotemnenhum.Estáscondenado,eelesetornouo herói do dia. Garanto que em Fum-Fudge a grandeza de um leão éproporcional ao tamanho de sua probóscide — mas, bom Deus! não sepodecompetircomumleãoquenãotemprobóscidealguma.”

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*Osautoresaquinomeadosdefatotrataramtodos,emalgumaextensão,donariz.(N.doA.)

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NOTASAOPREFÁCIO

1 Texto publicado originalmente em 1857, como prefácio à antologia decontos de Poe traduzida por Baudelaire e intituladaNouvelles histoiresextraordinaires[Novashistóriasextraordinárias].2TermocomumparasereferiramulherescultasnosséculosXVIIIeXIX.Emfrancês,basbleu.3EscravopúbliconaGréciaantiga,emoposiçãoaoescravoparticular.4 Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838), político ediplomatafrancês.5 Latim; literalmente “a Itália que foge”, também pode ser lido como “aItáliaperdida”.6Rousseau.7Deusaasteca.8Deuscelta.9Personagembíblicorelacionadoàavareza,àganânciaeaodinheiro.10Latim:“Raçairritáveldosvates”.

NOTASAOSCONTOS

1Optou-se,comalgumasexceções(e,comoaqui,eventualmenteadespeitoda norma), pela idelidade à pontuação original, bastante peculiar, àsvezes, sobretudo no uso do travessão. Em 1848, um ano antes de suamorte, Poe assinou um artigo naGraham'sMagazine em quemanifestavasuaintenção(nãoconcretizada)deescreverumtratadosobreoassunto,ea irmava:“Otravessãoproporcionaao leitorumaescolhaentreduas, trêsoumaisexpressões,umadelaspodendosermaisfortequeasoutras,mastodascontribuindoparaaideia”.2 Dominie: mestre-escola;peine forte et dure : punição que consistia emempilhar pedras sobre o peito do réu que se recusasse a se declararculpadoouinocente,atéelefalaroumorrersufocado.3“Anticonvencional”;“excêntrico”;“bizarro”.4“Oh,nãohátempostãobonscomoesteséculodeferro.”Versodopoema“Lemondaine”,deVoltaire.5 Poemodi icou a data nas diversas edições desse conto ao longo de suavida (inicialmente 1811, depois 1809 e, por im, 1813). Aqui mantida a

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maissignificativa,emqueopróprioescritornasceu.(N.doT.)6“Indignação.”7Nooriginalarrondées: forma inexistente, refere-sesemdúvidaaarrondi(masculino singular), ou cartasarrondies, “arredondadas” (aqui e nosdemais casos, a tradução optou por simplesmente corrigir os ocasionaiserros de gra ia e acentuação cometidos por Edgar Allan Poe emdeterminadas palavras estrangeiras). E, adiante, “honras”: as quatro oucinco cartas mais altas em jogos como uíste e seus derivados (como opróprioécartéetambémobridge,porexemplo).8KingofTerrors:aMorte(eminglês,deathémasculino).9Paces,unidadedecomprimento;cercadequinzemetros,nestecaso.10 Em 1845, Poe tornou-se proprietário e editor-chefe doBroadwayJournal, de breve vida, no qual republicou vários de seus contos,incorporandocorreçõesmanuscritasque izeraemseuexemplarimpressodosTales of the Grotesque and Arabesque (que planejava publicar com onovotítulodePhantasyPieces).Dessemodo,quandojulgoudeinteressedoleitor, a tradução procurou observar essas alterações ou assinalou asdivergênciasnasedições.Aqui,aseguinteepígrafedeLongfellowfoientãosuprimida: “Art is long and Time is leeting/ And our hearts, though stoutand brave,/ Still, like muf led drums, are beating/ Funeral marches to thegrave”(“Aarteélonga,oTempo,fugaz/Enossoscorações,emborafortese corajosos,/ Ainda assim, como tambores abafados, seguem tocando/Marchasfúnebresrumoaotúmulo”).11Deathwatch beetle (Xestobium ruffovillosum ), um tipo de caruncho queaopenetrarnamadeiraemiteestalidos,tidoscomomauagouro.12Cercade70m.13“Ninguémmefereimpunemente.”14 Príncipe soberano que governa um ducado independente em algunspaísesdaEuropa.15RicardoII,ato3,cena2:“Let'stalkofgraves,ofworms,andepitaphs”.16 Até 1840, este conto ( “The Assignation”, no original) era conhecidocomo “TheVisionary” [O visionário]. Em1845, aparece como novo títulonoBroadwayJournal.17PoeserefereaquiaGelos,emboraainscriçãodigagelasma(“risada”).18 “Omelhordosartistasnãotemideiaalguma/quejánãoesteja inscritanoprópriomármore.”

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19“Thouwast thatall tome, love,/Forwhichmy souldidpine—/Agreenisle inthesea, love,/A fountainandashrine,/Allwreathedwith fairy fruitsand lowers,/Andallthe lowersweremine.//Ah,dreamtoobrighttolast!/Ah, starryHope! thatdidst arise/But tobeovercast!/A voice fromout theFuturecries,/ “On!on!”—buto'er thePast/ (Dimgulf!)myspirithoveringlies/Mute,motionless, aghast!// For alas! alas!withme/ The light of life iso'er./ “Nomore—nomore—nomore”/ (Such languageholds the solemnsea/Tothesandsupontheshore)/Shallbloomthethunder-blastedtree,/Orthe stricken eagle soar!//Nowallmydays are trances,/Andallmynightlydreams/Arewherethygreyeyeglances,/Andwherethyfootstepgleams—/Inwhatetherealdances,/BywhatItalianstreams.//Alas! forthataccursedtime/ They bore thee o'er the billow,/ From Love to titled age and crime,/Andanunholypillow—/Fromme,andfromourmistyclime,/Whereweepsthesilverwillow!”20“Heisup/TherelikeaRomanstatue!Hewillstand/TillDeathhathmadehimmarble!”21“Stayformethere!Iwillnotfail/Tomeettheeinthathollowvale.”22 “Sancta Maria! turn thine eyes/ Upon the sinner's sacri ice/ Of ferventprayer,andhumblelove,/Fromthyholythroneabove.//Atmorn,atnoon,attwilightdim,/Maria!thouhastheardmyhymn,/In joyandwo, ingoodandill,/MotherofGod!bewithmestill.//Whenmyhours lewgentlyby,/Andnostormswereinthesky,/Mysoul,lestitshouldtruantbe,/Thylovedidguidetothineandthee.//Now,whencloudsofFateo'ercast/AllmyPresent,andmyPast,/LetmyFutureradiantshine/Withsweethopesoftheeandthine.”O poema, bem como a sentença que o anuncia, foi cortado noBroadwayJournal.23DailhadeTeos.24“O ilhodeDeusestámorto;oabsurdoécrível;eressuscitoudotúmulo;oimpossívelécerto.”25“Quetodososseuspassoseramsentimentos”;“quetodososseusdenteseramideias”.2626Poeeliminouosdoisparágrafosacimaquandodapublicaçãodoconton oBroadway Journal, após terem sido criticados como excessivamenterepulsivos.27Lo! 'tisagalanight/Within the lonesome latteryears!/Anangel throng,bewinged,bedight/Inveils,anddrownedintears,/Sitinatheatre,tosee/Aplayofhopesand fears,/While theorchestrabreathes itfully/Themusicof

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thespheres.//Mimes,intheformofGodonhigh,/Mutterandmumblelow,/Andhitherandthither ly/Merepuppetsthey,whocomeandgo/Atbiddingofvastformlessthings/Thatshiftthescenerytoandfro,/Flappingfromouttheir Condorwings/ InvisibleWoe!// Thatmotley drama— oh, be sure/ Itshallnotbeforgot!/WithitsPhantomchasedforevermore,/Byacrowdthatseizeitnot,/Throughacirclethateverreturnethin/Totheself-samespot,/AndmuchofMadness, andmoreof Sin,/AndHorror the soulof theplot.//Butsee,amidthemimicrout,/Acrawlingshapeintrude!/Ablood-redthingthatwrithesfromout/Thescenicsolitude!/Itwrithes!—itwrithes!—withmortalpangs/Themimesbecomeitsfood,/Andseraphssobatverminfangs/Inhumangoreimbued.//Out—outarethelights—outall!/And,overeachquiveringform,/Thecurtain,afuneralpall,/Comesdownwiththerushofastorm,/ While the angels, all pallid and wan,/ Uprising, unveiling, af irm/That the play is the tragedy, 'Man,'/ And its hero the ConquerorWorm.” Opoemafoipublicadopelaprimeiravez, isoladamente,emjaneirode1843,naGraham'sMagazine, tendo igurado posteriormente em coletâneas. Em1845,Poeoincorporouaoconto,publicadonoBroadwayJournal.28“Inthegreenestofourvalleys,/Bygoodangelstenanted,/Onceafairandstately palace —/ Radiant palace — reared its head./ In the monarchThought'sdominion—/Itstoodthere!/Neverseraphspreadapinion/Overfabric half so fair.// Banners yellow, glorious, golden,/ On its roof did loatand low;/ (This—all this—was in theolden/Time longago)/Andeverygentleair thatdallied,/ In that sweetday,/Along the rampartsplumedandpallid,/ A winged odor went away.// Wanderers in that happy valley/Through two luminouswindows saw/ Spiritsmovingmusically/Toa lute'swell-tuned law,/Roundabout a throne,where sitting/ (Porphyrogene!)/ Instatehisglorywellbe itting,/Theruleroftherealmwasseen.//Andallwithpearl and ruby glowing/ Was the fair palace door,/ Through which camelowing, lowing, lowing,/Andsparklingevermore,/AtroopofEchoeswhosesweet duty/Was but to sing,/ In voices of surpassing beauty,/ Thewit andwisdom of their king.// But evil things, in robes of sorrow,/ Assailed themonarch's high estate;/ (Ah, let us mourn, for never morrow/ Shall dawnuponhim,desolate!)/And,roundabouthishome,theglory/Thatblushedandbloomed/ Isbutadim-remembered story/Of theold timeentombed.//Andtravellersnowwithinthatvalley,/Throughthered-littenwindows,see/Vastforms thatmove fantastically/ To a discordantmelody;/While, like a rapidghastly river,/ Through the pale door,/ A hideous throng rush out forever,/Andlaugh—butsmilenomore.”

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29“Quetodonossoraciocíniosereduzacederaosentimento.”30OriginalmentepublicadoemTheBaltimoreBook ,em1838,como“Siope— Uma fábula (À maneira das autobiogra ias psicológicas)”, com aepígrafe: “O nosso é um mundo de palavras: Quietamente chamamos/Silêncio—queéapalavramaispuradetodas”,AlAaraaf.31Massa,formareduzidadofrancêsMonsieur(aexemplodesinhô/senhorouMistah/Mister); a região onde se passa a narrativa é de colonizaçãofrancesa.32 Júpiter, cujo inglês estropiado reproduz em parte o patoá crioulo deNew Orleans, confunde a pronúncia do latim cientí icoantennæ (“antenas”)comtin(“estanho”ou“flandres”):“Deyaintnotininhim”.33Cercade15m.34Ou7,62cm.35Eminglês,kidsignifica,entreoutrascoisas,“cabrito”.36 “Umbomvidronahospedariadobisponoassentododiabovinteeumgrausetrezeminutosnordestequartaanortegalhoprincipalsétimoramoladolesteatirardoolhoesquerdodacaveiraumalinhadeabelhaapartirdaárvorediretamentedotirocinquentapésdistante.”37 Curiosamente, em outras versões, a cifra indicava “quarenta e umgraus” (omitindo-se portanto o sinal ] para ow, detwenty). Poeprovavelmente corrigiu o ângulo, considerando a excessiva elevação daluneta.38Nooriginal,bee-line (oubeeline):expressãoquedesignaocaminhomaiscurtoentredoispontos(segundoacrençadequeéoquefazemasabelhasparavoltaràcolmeia).39Ou6,35cm.40 Morgue, como em inglês e francês, signi ica em português, emboradesusado, “necrotério”. Uma curiosidade: o título inicialmente pretendidopeloescritorem1841,“TheMurdersintheRueTrianon-Bas”,foiriscadoemudadopara“RueMorgue”nomanuscritooriginal,quesobreviveuparaaposteridadegraçasaumfuncionáriodatipogra iaqueorecuperoudolixoapósarevisãodacomposição.41“Raro”;“rebuscado”;“incomum”.42Latim,“ex-”.43“Nemnadadogênero.”

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44Amençãoadr.Nichol,acima,entreÓrioneEpicuro,aquiobliquamentealudidaporDupin,refere-seaJohnPringleNichol(1804-1859),professorda Universidade de Glasgow, autor de Views of the Architecture of theHeavens(1837),defensordahipótesenebular,propostaporKantem1755e desenvolvida por Laplace em 1796 em sua Exposition du système dumonde.45 “Aprimeira letraperdeuo somantigo.”Do Fasti, deOvídio, emque semencionaonascimentodeÓrionpelaurina(emgrego,ouron)dosdeuses.46Donoderestaurante.47“Seuroupão—paramelhorouviramúsica.”48“Euostolerava.”49“Rabodecavalo.”50“Chefatura.”51MaryRogerserabalconistadeumatabacaria.52“Tumultos.”53“Parcial.”54Istoé,defabricaçãoindustrial.55Mandado requeridopara averiguar se aparte citada estádepossedesua sanidade ou deve ter seus direitos alienados pornon composmentis(incapacitaçãomental).56“Edeonde[vem]essaira?”57 O texto entre parênteses é uma nota dos editores da revista Ladies'Companion,naqualocontofoioriginalmentepublicado,emtrêspartes,em1843.58“Desenlace.”59Chalksignificatanto“giz”como“fiado”.60Hautton:distinção,elegância;dégagée:casual.61Blackstrap:melaço.62 Versões deste conto com ligeiras variações surgiram em diferentespublicaçõesaolongodosanos(numadelas,comotítulode“SomePassagesin theLife of a Lion”), identi icando-se onarrador tambémcomoThomasSmith, Thomas Jones ou Robert Jones, segundo o caso, todos nomes quesigni icam simplesmente um fulano de tal, um sujeito qualquer (supõe-seque a sátira seja endereçada a Nathaniel Parker Willis, famoso escritorcontemporâneodePoe).

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63 O tom farsesco da história apela para diversos trocadilhos infames:Fum-Fudge, por exemplo, evoca a ideia de disparate, bobagem; aexpressão médica nosologia, estudo das moléstias, é subvertida comosigni icando o estudo dosnoses, isto é, “narizes”, em inglês; e assim pordiante.