Contos e Novelas - Entrada - Centro Virtual Camões · PDF file... disse o rapaz por fim - também, às vezes, que sou outra ... O que eu quero dizer é que eu sou o eu normal

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SC.XIX

Contos eNovelas PortuguesasDO

Biblioteca Online do Conto

Contos e Novelas Portuguesas do Sculo XIX

2014, Cames, Instituto da Cooperao e da Lngua, IP

Orientao: Lusa Costa Gomes

Digitalizao e Correo: Ins Fonseca Santos

Revista Fices / Instituto Cames / Instituto do Livro

Lusa Costa Gomes

DA ESCADA

Adelaide chega a casa bastante tarde, pelas trs e meia da manh, e chama o elevador,

que no funciona. Carrega de novo no boto, o prdio est completamente silencioso, ela decide

subir os cinco andares a p. Sente-se pesada, bebeu demais, pra ao fundo das escadas e olha

para cima, a espiral do corrimo de mrmore. Suspira e avana, acelerando sem se aperceber

disso, a partir do segundo andar.

Pouco depois, ouve vozes na escada.

Pra, com medo de que sejam ladres ou drogados. Choveu sem parar todo o dia. Com

o Jorge tinha corrido mal outra vez. Ela vestira pela manh uns collants que lhe estavam grandes

e arrependera-se logo sada de casa de no os ter mudado. Esse escorregar de collants,

constante, corrosivo, num dia de muitas urgncias que a obrigavam a estar de p, acabara por

transtorn-la. No tinha querido ir danar, e danar era um passo importante da sua rotina com o

Jorge. Eles encontravam-se para jantar e dormir juntos uma vez a meio da semana e de novo ao

sbado, se ela no estava de banco, para passarem o domingo descansados. Ele ia busc-la ao

hospital, no centro comercial faziam horas para o jantar, escolhiam o restaurante, comiam, iam

danar, iam para a cama, se era quarta-feira ela voltava para casa, se era sbado dormia em casa

dele. Mas hoje no houvera dana e decidiram ir para casa do Jorge mais cedo. J iam amuados

porque ele quisera debater mais uma vez a questo da existncia ou no de classes sociais,

questo que no conseguia despertar o interesse de Adelaide ; quando isto acontecia, ela deixava-

o falar, entretinha-se a olhar as pessoas das outras mesas e a criticar intimamente o modo como

comiam. Em dada altura, por mero desfastio, ou enojada com um desses gordos pequeno-

burgueses, comeara a contradizer o Jorge. Para pr uma pedra em cima das classes sociais

foram bebendo brandis, ele no quis desperdiar a noite e props uma sesso de sexo , ela nem

chegou a despir-se, e enquanto o acusava das coisas do costume e ouvia dele as acusaes do

costume, chegara-se porta e sara.

As vozes, algures no patamar de cima, suaves, uma pouco mais grave do que outra,

continuavam , alternadas. A voz do rapaz, mudando, adolescente, hesitava nos princpios, muitas

vezes tornava inaudveis os fins das frases, que despachava para dentro, temendo talvez a

interrupo da rapariga ; parecia no controlar o seu prprio volume de som , o riso era um

guinchinho de rato, havia afirmaes cuja veemncia se frustrava na sbita falha da voz que se

tornava de repente excessivamente velada e grave. Ela, por seu lado, atacava com verve e

esprito todas as suas deixas e mantinha um ligeiro tom interrogativo que muitas vezes no era

suficiente para provocar as respostas. Adivinhava-se que fizesse gestos, pausas expressivas,

deitasse olhares intensos, porque havia ali no meio silncios srios, e o retomar da conversao

parecia a Adelaide que se fazia sempre noutra clave, num patamar superior.

Passando-lhe o medo, Adelaide sentara-se.

- Porque assim : - disse a rapariga - o corpo morre e a alma imortal, quer dizer que

sobra. O tipo morre, vai para debaixo da terra, passam os anos e abre-se o caixo e no est l

nada; foi-se, ficou um monte de ossos, s vezes nem isso. Ou queima-se e fica feito em cinzas e

depois mistura-se no estrume e serve para pr nos campos e qualquer dia ests tu muito

descansado a comer na fruta um bocado do desgraado. J imaginaste os milhes e montes de

almas imortais que ficam livres, olha s para o passado da Humanidade, os milhes e bilies de

almas , onde que isso est tudo? Ho-de estar em qualquer lado...

- As almas no ocupam espao, no ? Podem estar em todo o lado e em lado nenhum,

a mesma coisa...

- No ocupam espao se forem uma ou duas. Agora milhes e bilies... De vez em

quando sinto isso. O peso dessas almas todas em cima de mim.

- Se no ocupam espao, no ocupam nem uma nem duas, nem um bilio.

- Mas h vrios tipos de espao e o espao que no se ocupa tambm existe. Tambm

faz peso.

- No acredito nisso das almas - disse ele - quando se morre, morre-se todo e pronto.

No sobra nada. Nem p.

- Ento - perguntou ela, mas o seu tom no era de desafio - porque que eu tenho medo

de morrer fome?

- Tens medo de morrer fome? - perguntou o rapaz com o seu riso de rato. - Porqu?

- Sei l! At tenho pesadelos com isso e acordo e vou ao frigorfico s para ver se h

alguma coisa para o pequeno-almoo. Acho que a minha me at j percebeu e deixa-me sempre

tudo bem vista, para eu no me assustar.

- Mas acordas com fome?

- No tenho fome. Nunca sequer cheguei a ter fome. por isso que eu acho que as

almas que sobram das pessoas que morrem, voltam ao mundo nos bebs que vo nascendo.

- E os bebs choram porque tm fome? isso?

- Eu que acho que devo ter morrido fome noutra vida. E que por isso que me faz

impresso nesta vida.

- Nasceste com a alma doutra pessoa? Uma coisa j gasta, em segunda mo? No achas

um bocado porco isso tudo? como usar uns sapatos velhos ou comer a pastilha elstica doutra

pessoa.

- No se consegue explicar isso, mas a morte capaz de ser uma forma de lavar as

almas, de apagar o que l est, como nos dvd , para se poder gravar outra vez.

- Mas se apagam o que l est, como que te podes lembrar que morreste fome?

- Ficam l uns restos, no sei. Podem apagar as coisas, mas no as sombras que elas

deixam.

- Mas tu no achas - disse ele, pela primeira vez com uma certa veemncia - que esta

vida...quer dizer, uma merda to grande, e ainda por cima nos obrigam a voltar?

- Ningum te obriga a voltar.

- Ento para onde que vai a minha alma?

- No sei.

- Ou voltam todas ou no volta nenhuma. Porque que h-de haver umas almas que

voltam e outras que no?

-Sim, se calhar obrigam-te a voltar. No tens outra hiptese. Mas h pessoas que no

acham nada que esta vida uma merda. So felizes. Querem c voltar, no querem morrer tudo

de uma vez. Mas que nem sequer se trata de querer ou no, porque uma alma no tem para

onde ir a no ser para dentro de outro corpo. O que que achas que uma alma andava por a a

fazer sozinha a voar, para onde que ia? Isso so almas penadas. E eu se calhar tenho esta mania

porque a minha alma, ou a alma que agora a minha, j pertenceu a um tipo que morreu fome,

num campo de concentrao ou a uma criana, em frica, ou noutro stio.

Houve aqui um silncio prolongado que fez Adelaide hesitar. Sabia que bastava mexer

um msculo, arranhar com o p no degrau, para que eles se calassem, se debruassem a ver quem

ali estava. E aquilo que iriam dizer a seguir, a frase misteriosa e salvadora que os faria ligarem-se

para sempre, ou continuarem hesitantes procura do caminho de um para o outro, perder-se-ia,

provavelmente sem apelo.

- Eu sinto - disse o rapaz por fim - tambm, s vezes, que sou outra pessoa. Se eu fosse

eu, ests a ver, seria o eu do dia-a-dia, mas o eu no o meu eu do dia-a-dia, porque eu sou

outro, ou ento, o eu normal j no sou eu, j fui eu, mas agora j no sou eu, ou ele que sou

eu...? O que eu quero dizer que eu sou o eu normal do dia-a-dia, o eu que tu vs e os outros

vem, o que vai escola e ouve... mas sou diferente disso, sou outro que no esse. Se eu fosse

eu j c no estava.

- E essa pessoa que tu sentes que s, capaz de ser uma alma doutra pessoa dentro do

teu corpo a fazer-te medo de coisas de que no tens nada que ter medo.

- Eu no tenho medo - disse ele - sinto que no sou eu.

- Sentes que s pessoas diferentes, como que sabes qual que s tu e qual que no

s?

- Sou sempre eu.

- Mas umas vezes mais do que outras...

- Sim, por exemplo agora.

- Agora s tu.

- H uns dias tive que ir ao dentista e estava de boca aberta e ele tem um espelho

enorme frente da cadeira, daquelas que sobem e descem e deitam e levantam, vi-me no espelho

e no era eu, com um babete frente e uma coisa pendurada na boca. No era o eu de todos os

dias, era um tipo que eu vi num vdeo, um mdico ou coisa assim, que matava gente, violava as

mulheres e depois matava-as com uma anestesia e ningum o apanhava, s l para a quinta ou

sexta mulher que a polcia comeou a desconfiar do homem.

- Mas no eras tu.

- No.

- E porque que foste pensar que eras um mdico maluco que mata mulheres e no

pensaste que eras um homem do talho com um cachimbo esquisito na boca?

- Tambm podia ser.

- Mas no foi. o mesmo comigo. Porque que eu tenho medo de morrer fome? L

em casa sempre houve tudo, muito, a minha me fantica da cozinha, mata e esfola coelhos

mo, j te contei essa? Pega nos coelhos pelas orelhas e d-lhes uma cacetada com o rolo-da-

massa e depois tira-lhes a pele como se lhes despisse uma camisola.

- Achas que os animais tambm sabem que vo morrer? - pergunto