Contos Famosos

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  • 8/12/2019 Contos Famosos

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    Contos

    Rubem Braga

    Rubem Fonseca

    Machado de Assis

    Clarice Lispector

    Isaac Asimov

    Lus Fernando Verssimo

    Charles Bauidelaire

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    ERA UMA NOITE DE LUAR

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    Otaxi ia rodando devagar pela rua mal iluminada, para que eu pudesse irvendo os nmeros das casas. Quando vi o 118, mandei parar. Tinha deir ao 227 e perguntar por dona Maria de Sousa. Era quase certo que nome seguiam; de qualquer modo no convinha parar o taxi diante da casa para nochamar a ateno. Tive, alem disso, o cuidado de deixar o carro se afastar sem que ochofer pudesse ver a casa em que eu entrava. Naquele tempo vivamos cercados deprecaues, porque o perigo estava em toda a parte. O menor descuido era a priso,e as noticias que vinham l de dentro eram de fazer tremer.

    Andei pela calada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente viviamfamlias ricas. Agora os ricos viviam em outras partes da cidade e aqueles casaresenvelhecidos, com seus parques de grandes arvores, pareciam dormir. Uma vez ououtra passava um auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.

    Apertei a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim, ao lado dacasa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.

    Ao bater, ouvi um rumor l dentro. Depois senti algum me espiava pela veneziana,sem dizer nada. Bati outra vez. Ouvi ainda uns rumores dentro do quarto, e, por m,uma voz nervosa perguntou:

    - Quem ?

    Marina no me havia reconhecido e, com certeza, estava inquieta. Tranqilizei-a:

    - Sou eu, Domingos.

    A porta abriu-se.

    Tinha visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua. Nunca

    havamos trocado mais de duas ou trs palavras ocasionais. No se podia dizer quefosse bonita, mas era agradvel, com seu ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seujeito de vestir-se com certa severidade. Agora estava diante de mim e no pude deixarde sorrir quando a vi metida em um macaco.

    - O macaco do Alberto? Trago notcias dele.

    Dei o recado que um poltico solto no dia anterior havia trazido. Alberto mandavadizer que estava bem, que h muito tempo j no o interrogavam, e que no tinhanenhuma esperana de sair to cedo. Era melhor que ela tentasse sair da capital,onde podia ser presa a qualquer momento, e fosse para um pequeno Estado doNordeste onde morava sua famlia. A viagem por mar seria impossvel. O melhor erair at Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo So Francisco. Havia uma pessoa quepodia arranjar uma parte do dinheiro e um endereo em Belo Horizonte onde talvez

    conseguisse mais. Era preciso abrir o caixote de livros e queimar um papel que estavadentro das Poesias de Olavo Bilac. Dei-lhe um numero para onde devia telefonar.

    - Acha que eles vo deixar o Alberto preso muito tempo?

    Dei-lhe minha opinio com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando opegou, a policia no sabia grande coisa dele, mas l dentro sua situao tinha pioradomuito. Parece que tinham aparecido umas historias velhas, de So Paulo...

    - E voc como vai?

    Ela fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito a comida,mais oito dias. No tinha mais dinheiro, nem para cigarros. Ofereci- lhe dos meus:

    - No sabia que voc fumava.

    No fumava antes. Mas ali, obrigada a car dentro do quarto dias e dias, semanas esemanas, comeara a fumar. H mais trs meses no saia rua. Andava apenas pelovelho e pequeno parque, nos fundos da casa, quando no chovia. Havia lido todos oslivros que tinha, e estava cansada de ler.

    - Isso aqui pior do que estar presa. s vezes tenho vontade de sair, tomar umnibus, andar por a, ir a um banho de mar...

    Arriscara-se certa vez a ir a um cinema do bairro e quase morreu de medo. Na volta,um homem a seguiu. Teve a certeza de que ia ser presa. Quando estava perto de casa,o homem, mal encarado, apertou o passo e a deteve, tocando-lhe o brao com a mo.Parou tremula e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando, emum desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa...

    Contava essas coisas sentada na cama, um pouco excitada e estava engraadaassim metida no macaco do marido, com uma rgua na mo, contando o seu susto.Rimos, mas logo ela se ps a andar no quarto para um lado e outro, batendo com argua na coxa.

    - Que que voc acha que devo fazer?

    Acendi um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse, de um

    pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar algum que fosse amigo do Governo.Talvez o doutor Antunes conseguisse...

    - Tambm est preso.

    - O dr. Antunes? No possvel!

    Vi que estava mal informada do que acontecia e lhe dei varias noticias.

    Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a rgua nojoelho. Ficamos em silencio. Achei que devia despedir-me, mas ela me deteve:

    - Espere, quero saber de uma coisa...

    Perguntou-me pelos Amaral, era verdade que a mulher se tinha suicidado. Eraboato, ou pelo menos parecia. Havia quem dissesse que o casal estava no Paraguai;outros diziam que ele estava preso no Norte do Paran, em Londrina...

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    Surgiram outros nomes. Eu quase no podia dar informaes sobre ningum, emuitos eu no conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a falar de Alberto. Elahavia perdido o nervosismo; falava agora em seu tom habitual, um pouco seco, umpouco distante. Falava do marido e de si mesma como se estivesse examinando umproblema alheio, com frieza e lgica. Tinha na gaveta um velho guia Levi, e consultoupreos de passagens e horrios. Certamente deveria tomar o trem em alguma estaodo Estado do Rio, se resolvesse ir para o Norte.

    - Vai?

    - Isso que estou pensando. Em Alagoas posso car na fazenda de minha tia, pertode So Miguel. Ali no haveria nenhum perigo, mas... Voltou a perguntar se no haviamesmo nenhum jeito de fazer alguma coisa pela libertao de Alberto. Talvez aqueleex-deputado amigo dos Amaral, pudesse...

    Balancei a cabea. A policia no estava soltando ningum. Prendera gente demais,inocentes e culpados, e enquanto no interrogava todo mundo, no apurava as coisas,no queria soltar ningum. Uma ou outra pessoa conseguia sair quando tinha proteomuito forte e estava completamente inocente . Alberto j fra preso antes, era umelemento marcado... A nica esperana estava numa mudana que diziam que iahaver no Ministrio. Mas estavam sempre dizendo essas coisas, e ningum saia doGoverno. Dava a impresso de que ia ser assim eternamente...

    - Que coisa!

    Voltou a falar de Alberto, contou detalhes de sua priso. Ela havia escapado

    por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa... Comeou quase alamentar-se e, subitamente, pareceu de novo tranquila. Os cabelos despenteados e omacaco lhe davam um ar ao mesmo tempo gracioso e cordial de rapazola. Devia teruns trinta anos. Agora sua voz parecia ter cinquenta.

    - A situao esta: se no fosse por causa do Alberto eu poderia ter fugido para oSul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na hora de alugar este quarto, estive quaseme resolvendo outra vez a fugir. Mas queria esperar Alberto... Est visto que posso

    car esperando a vida inteira. O senhor acha que h possibilidade...Era engraado que me chamasse de senhor, quando comeara me tratando de

    voc. Mas logo na frase seguinte, com uma pequena hesitao na voz, voltou a mechamar de voc.

    Levantei-me e procurei com a vista um cinzeiro para pr o cigarro. No havia. Abriuma banda da janela para jog-lo no jardim.

    - Posso deixar a janela aberta? Est quente... Sentada na cama ela cou em silencio.Resolvi ir-me embora e quei pensando se devia lhe dar dez mil reis que tinha nobolso. Eu voltaria de bonde. Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente, e me deuum aperto de mo rpido. Sua voz era tranquila, quase fria:

    - Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, aparea outra vez. Meu nome aqui

    Rubem Braga

    Maria de Sousa.

    - Sei. Tem telefone?

    - No. Ah, um momento! Pode pr uma carta no correio para mim? Tirou uma cartada gaveta, envelope e comeou a escrever o endereo. Junto janela l fora eu via asgrandes arvores gordas, beijadas pelo luar enquanto ouvia o ranger da pena no papel.

    Comentei ao acaso:

    - Bonito luar...

    Ela acabara de escrever o endereo e respondeu dando um olhar rpido a janela: -Foi um to seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse dito algumacoisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela veio para junto da janela, ondeeu estava. Para ver melhor l de fora abri o outro lado da janela e a lua apareceu,redonda, branca, entre as copas das arvores. Foi apenas um instante. Ela fechou os

    dois lados da janela com brutalidade:

    - No faa isso! Estpido! No v que eu no posso com isso? Que estou sozinha hquase um ano desde que Alberto foi preso? Ficou um momento diante de mim plida,os lbios trmulos; eu no sabia o que dizer.

    - V-se embora! Lanou-se na cama, escondeu a cabea nas mos e comeou achorar. Os soluos agitavam seu corpo magro e nervoso sob o macaco azul.

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    O JOGO DO MORTO

    Eles se reuniam no Bar do Ansio, todas as noites. Marinho, dono da principalfarmcia da cidade, Fernando e Gonalves, scios num armazm, e Ansio.Nenhum deles era natural da cidade ou mesmo da Baixada. Ansio e Fernandoeram mineiros e Marinho cearense. Gonalves viera de Portugal. Eram pequenoscomerciantes, prsperos e ambiciosos. Possuam modestas casas de veraneio nomesmo condomnio na regio dos lagos, eram do Lions, iam igreja, levavam umavida pacata. Tinham ainda em comum um grande interesse por todas as formas de

    jogo a dinheiro. Costumavam fazer apostas, entre eles, em jogos de cartas, jogos de

    futebol, corridas de cavalos, corridas de automvel, concursos de misses, em tudoque fosse aleatrio.

    Jogavam alto, mas nenhum deles costumava perder muito dinheiro, uma fase deperdas era sucedida quase sempre por uma de ganhos. Nos ltimos meses, todavia,Ansio, o dono do bar, vinha perdendo continuadamente.

    Jogavam cartas e bebiam cerveja na noite em que foi inventado o jogo do morto.Ansio inventou o jogo.

    Aposto que o esquadro este ms mata mais de vinte, ele disse.

    Fernando observou que mais de vinte era muito vago.

    Aposto que o esquadro mata vinte e um, este ms, disse Ansio.

    S aqui na cidade ou em toda a Baixada?, perguntou Gonalves. Apesar de estarno Brasil h muitos anos seu sotaque ainda era forte.Mil pratas que o esquadro matavinte e um, este ms, aqui em Meriti, insistiu Ansio.

    Aposto que mata sessenta e nove, disse Gonalves, rindo.

    Acho muito, disse Marinho.Estou brincando, disse Gonalves.

    Brincando porra nenhuma, disse Ansio jogando a carta com fora na

    mesa, falou est falado, azar de quem diz besteira, cansei de quebrar a cara assim.

    Era verdade.

    Vocs conhecem a histria do portugus e do sessenta e nove?, perguntou Ansio.Foram explicar para o portugus o que era sessenta e nove; ele cou horrorizadoe disse Meu Deus, que coisa mais nojenta, eu no faria isso nem com a minhamezinha.

    Todos riram, menos Gonalves.

    Sabe que esse jogo bom?, disse Fernando. Mil pratas que o esquadro mata uma

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    dzia. Ei Ansio! que tal um queijinho para acompanhar a cervejinha? E uma porodaquele salaminho?

    Anota a, disse Ansio para Marinho, que num livro de capa verde registrava asapostas, mais mil que dos meus vinte e um dez so mulatos, oito so pretos e doisso brancos.

    Quem vai decidir quem branco, preto ou mulato? Aqui tudo misturado.

    E como vamos saber se quem matou foi mesmo o esquadro?, perguntou Gonalves.

    O que sair em O Dia que vale. Se disser que preto, preto, se disser que foi oesquadro, foi o esquadro. De acordo?, perguntou Marinho.

    Outra milha que o mais moo dos meus tem dezoito anos e o mais velho vinte eseis, disse Ansio.

    Nesse instante entrou no bar O Falso Perptuo e logo osquatro parceiros se calaram.O Falso Perptuo tinha cabelos lisos, negros, feies ossudas, o olhar impassvel enunca ria, igual ao

    Perptuo Verdadeiro, um detetive famoso que haviam assassinado anos antes.Nenhum dos jogadores sabia o que O Falso Perptuo fazia, talvez fosse apenas umbancrio ou funcionrio pblico, mas a presena dele, que vez por outra ia ao Bar doAnsio, sempre atemorizava os quatro amigos. Ningum sabia o seu nome, sendo OFalso Perptuo um apelido colocado por Ansio, que dizia haver conhecido o Verdadeiro.

    Ele usava dois quarenta e cinco, um de cada lado da cintura, e a gente via acartucheira largona em cima da cala. Tinha o hbito de car esfregando de leve,entre os dedos, as abas do palet, como esses bebezinhos fazem com as fraldas,um sinal de alerta, estava sempre pronto para sacar as armas e atirava com as duasmos. Para matarem ele, teve que ser pelas costas.

    O Falso Perptuo sentou-se e pediu uma cerveja, sem olhar para os jogadores, masvirando um pouco a cabea, o pescoo retesado; talvez prestasse ateno ao que ogrupo dizia.

    Acho que s impresso da gente, murmurou Fernando, e seja l quem ele for, praque carmos preocupados? Quem no deve no teme.

    No sei, no sei, disse Ansio pensativo. Passaram a jogar as cartas em silncio,esperando O Falso Perptuo ir embora.

    No m do ms, de acordo com O Dia, o esquadro havia executado vinte e seispessoas, sendo dezesseis mulatos, nove pretos e um branco, o mais novo tinha quinzeanos, era egresso da Funabem, e o mais velho trinta e oito.

    Vamos comemorar a vitria, disse Gonalves para Marinho, que junto

    com ele havia ganho a maioria das apostas. Beberam cerveja, comeram queijo,presunto e pastis.Trs meses de azar, disse Ansio soturno. Ele havia perdido

    tambm no pquer, nos cavalos e no futebol; a lanchonete que comprara em Caxias

    estava dando prejuzo, seu crdito bancrio piorava e a jovem mulher com quem secasara h pouco mais de seis meses gastava muito.

    E agora vamos entrar em agosto, ele disse, o ms em que Getlio deu o tiro nocorao. Eu era garoto, trabalhava num bar da rua do Catete e vi tudo, o choro e osgritos, o povo deslando diante do caixo, o corpo sendo transportado para o SantosDumont, os soldados atirando de metralhadora na multido. Se dei azar em julho,imaginem em agosto.

    Ento no aposta este ms, disse Gonalves, que acabara de emprestar duzentosmil cruzeiros a Ansio.

    No, este ms eu pretendo recuperar parte do que perdi, disse Ansio com rancor.

    Os quatro amigos, para o ms de agosto, ampliaram as regras do jogo. Alm daquantidade, da idade e da cor dos mortos, foi acrescentada a naturalidade, o estado

    civil e a prosso. O jogo tornava-se complexo.Acho que inventamos um jogo que vai car mais popular do que o jogo do bicho,

    disse Marinho. J meio embriagados riram tanto que Fernando chegou a urinar nascalas.

    O m do ms se aproximava e Ansio, cada vez mais irritado, discutia freqentementecom os companheiros. Naquele dia ele estava mais exasperado e nervoso do quenunca e seus amigos esperavam, constrangidos, a hora de acabar a partida de cartas.

    Quem topa um mano a mano comigo?, disse Ansio.

    Mano a mano como?, perguntou Marinho, que de todos era o que ganhara maisvezes.

    Aposto que o esquadro este ms mata uma menina e um comerciante. Duzentasmil pratas.

    Que loucura, disse Gonalves, pensando no seu dinheiro e no fato de que o esquadrojamais matava meninas e comerciantes.

    Duzentos mil, repetiu Ansio, numa voz amarga, e voc, Gonalves, pra de chamar

    os outros de malucos, maluco voc que deixou a sua terra para vir para este pasde merda.

    Eu topo, disse Marinho, essa voc no tem chance de ganhar, j estamos quase nom do ms.

    Perto das onze horas os parceiros acabaram a partida e se despediram rapidamente.

    Os garons foram embora e Ansio cou sozinho no bar. Nos outros dias ele corriapara casa, para perto de sua jovem mulher.

    Mas naquele dia ele cou sentado bebendo cerveja at pouco depois de uma damanh, quando bateram na porta dos fundos.

    O Falso Perptuo entrou e sentou-se na mesa de Ansio.

    Quer uma cerveja? disse Ansio, evitando tratar O Falso Perptuo de senhor ou de

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    voc, em dvida quanto ao grau de respeito que devia lhe tributar.

    No. Qual o assunto? O Falso Perptuo falava baixo, uma voz macia, aptica,indiferente.

    Ansio relatou as apostas no jogo do morto que ele e os amigos faziam todos osmeses. O visitante ouvia em silncio, ereto na cadeira, as mos apoiadas nas pernas;por instantes pareceu a Ansio que O Falso Perptuo esfregava entre os dedos as abasdo palet, como o Verdadeiro, mas no, havia sido um engano.

    Ansio comeou a sentir-se mal com a suavidade do homem, talvez no passassemesmo de um funcionrio burocrtico. Meu Deus, pensou Ansio, duzentos mil jogadosfora, ia ter que vender a lanchonete de Caxias; inesperadamente pensou em sua

    jovem mulher, no seu corpo tpido e redondo.

    O esquadro tem que matar uma menina e um comerciante ainda este ms para eu

    sair do buraco, disse Ansio.E o que que eu tenho com isso? Suave.

    Ansio se encheu de coragem; havia bebido muita cerveja, estava beira da runae sentia-se mal, como se no pudesse respirar direito.

    Acho que voc do esquadro da morte.

    O Falso Perptuo manteve-se insondvel.

    Qual a proposta?

    Dez mil se voc matar uma menina e um comerciante. Voc ou os seus

    colegas, para mim tanto faz.

    Ansio suspirou, infeliz. Agora, que via o seu plano prestes a se realizar,

    uma sensao de fraqueza tomava conta do seu corpo.

    Voc tem o dinheiro aqui? Posso fazer o servio hoje mesmo. Tenho em casa.

    Por onde comeo?

    Os dois de uma vez.

    Alguma preferncia?

    Gonalves, o dono do armazm, e a lha.

    O galego seu amigo?

    Ele no meu amigo. Outro suspiro.

    Que idade tem a lha dele?

    Doze anos. A imagem da menina tomando refrigerante no bar surgia e

    desaparecia de sua cabea, como uma pontada de dor.

    Est bem, disse O Falso Perptuo, me mostra a casa do galego. Ansio notou entoque sobre o cinto da cala ele tambm usava um cinturo largo. Entraram no carro de

    O Falso Perptuo e rumaram para a casa de Gonalves. quela hora a cidade estavadeserta. Pararam a cinqenta metros da casa. Do cofre do painel O Falso Perptuotirou duas folhas de papelo onde desenhou, de forma tosca, duas caveiras com asiniciais EM embaixo.

    Vai ser rpido, disse O Falso Perptuo saindo do carro.

    Ansio colocou as mos nos ouvidos, fechou os olhos e curvou-se no banco do carroat que o seu rosto tocou o forro plstico do assento, de onde saa um cheiro ruim quelembrava a sua infncia. Seus ouvidos zumbiam. Passou-se um longo tempo, at queouviu trs tiros.

    O Falso Perptuo voltou, entrou no carro.

    Vamos apanhar o meu dinheiro, j despachei os dois. Matei a velha, de lambuja.

    Pararam na porta da casa de Ansio. Ele entrou em casa.

    Sua mulher estava deitada, as costas nuas viradas para a porta do quarto. Elacostumava deitar-se de lado e o seu corpo visto de costas era mais bonito. Ansioapanhou o dinheiro e saiu.

    Sabe que no sei o seu nome, disse Ansio no carro, enquanto O Falso Perptuocontava o dinheiro.

    melhor assim.

    Eu coloquei um apelido em voc.

    Qual?

    O Falso Perptuo. Ansio tentou rir, mas seu corao estava pesado e triste. Teria sidoiluso? O olhar do outro havia cado subitamente alerta e ele esfregava delicadamenteas abas do palet. Os dois caram se olhando na penumbra do carro. Ao perceber oque ia acontecer Ansio sentiu uma espcie de desafogo.

    O Falso Perptuo tirou da cintura um enorme engenho negro, apontou para o peitode Ansio e atirou. Ansio ouviu o estrondo e depois um silncio muito grande. Perdo,ele tentou dizer, sentindo o sangue na boca e procurando se lembrar de uma prece,

    enquanto o rosto ossudo de Cristo ao seu lado, iluminado pela luz da rua, escureciarapidamente.

    Rubem Fonseca

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    O Primeiro Beijo

    Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se onamoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto:cime.- Est bem, acredito que sou a sua primeira namorada, co feliz com isso. Mas me

    diga a verdade, s a verdade: voc nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Elefoi simples:

    - Sim, j beijei antes uma mulher.

    - Quem era ela? perguntou com dor

    Ele tentou contar toscamente, no sabia como dizer.

    O nibus da excurso subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio dagarotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe peloscabelos com dedos longos, nos e sem peso como os de uma me. Ficar s vezesquieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era to bom. A concentrao no sentir eradifcil no meio da balbrdia dos companheiros.

    E mesmo a sede comeara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que obarulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

    E nem sombra de gua. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunidana boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porm,a saliva, e no tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele prprio, que lhetomava agora o corpo todo.

    A brisa na, antes to boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e rida e aopenetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

    E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto?Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvezminutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

    No sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da gua, pressentia-a maisprxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrandoentre os arbustos, espreitando, farejando.

    O instinto animal dentro dele no errara: na curva inesperada da estrada, entrearbustos estava... o chafariz de onde brotava num lete a gua sonhada. O nibusparou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafarizde pedra, antes de todos.

    De olhos fechados entreabriu os lbios e colou-os ferozmente ao orifcio de ondejorrava a gua. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito at a barriga.

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    Clarice Lispector

    Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso at se saciar.Agora podia abrir os olhos.

    Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de esttua tando-o e viu que eraa esttua de uma mulher e que era da boca da mulher que saa a gua. Lembrou-sede que realmente ao primeiro gole sentira nos lbios um contato glido, mais frio doque a gua.

    E soube ento que havia colado sua boca na boca da esttua da mulher de pedra.A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra. Intuitivamente, confuso nasua inocncia, sentia intrigado: mas no de uma mulher que sai o lquido vivicador,o lquido germinador da vida... Olhou a esttua nua.

    Ele a havia beijado.

    Sofreu um tremor que no se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-

    lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trs ou parafrente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atnito, percebeu que uma parte deseu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tenso agressiva, e issonunca lhe tinha acontecido.

    Estava de p, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de corao batendofundo, espaado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, eraoutra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilbrio frgil.

    At que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade.Que logo o encheu de susto e logo tambm de um orgulho antes jamais sentido: ele...

    Ele se tornara homem.

    O Orculo

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    Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a m fortunaquando se dispe a perseguir um pobre mortal.Leonardo (era o nome dele) comeara por ser mestre de meninos, mas tomal se houve que no m de um ano perdera o pouco que possua e achou-se reduzidoa trs alunos.

    Tentou depois um emprego pblico, arranjou as cartas de empenho necessrias,chegou mesmo a dar um voto contra as suas convices, mas quando tudo lhe sorria,

    o ministrio, na forma do geral costume, achou contra si a maioria da vspera e pediudemisso. Subiu um ministrio do seu partido, mas o infeliz tinha-se tornado suspeitoao partido por causa do voto e teve uma resposta negativa.

    Auxiliado por um amigo da famlia, abriu uma casa de comrcio; mas, tanto a sorte,como a velhacaria de alguns empregados, deram com a casa em terra, e o nossonegociante levantou as mos para o cu quando os credores concordaram em receberuma certa quantia inferior ao dbito, isto em tempo indeterminado.

    Dotado de alguma inteligncia e levado pela necessidade mais que pelo gosto, fundouuma gazeta literria; mas os assinantes, que eram da massa dos que preferem lersem pagar a impresso, deram gazeta de Leonardo uma morte prematura no m decinco meses.

    Entretanto, subiu de novo o partido a que ele sacricara a sua conscincia e pelo qualsofrera os dios de outro. Leonardo foi a ele e lembrou-lhe o direito que tinha suagratido; mas a gratido no a bossa principal dos partidos, e Leonardo teve de ver-se preterido por algumas inuncias eleitorais de quem os novos homens dependiam.

    Nesta sucesso de contratempos e azares, Leonardo no chegara a perder a

    conana na Providncia. Doam-lhe os golpes sucessivos, mas uma vez recebidos,ele preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado neste pensamento que havialido, no me lembra aonde: A fortuna como as mulheres, vence-a a tenacidade.

    Preparava-se, pois, a tentar novo assalto, e para isso tinha arranjado uma viagemao norte, quando viu pela primeira vez Ceclia B..., lha do negociante Atansio B...

    Os dotes desta moa consistiam nisto: um rosto simptico e cem contos limpos, emmoeda corrente. Era a menina dos olhos de Atansio. S constava que tivesse amadouma vez, e o objeto do seu amor era um ocial de marinha de nome Henrique Paes.O pai ops-se ao casamento por antipatizar com o genro, mas parece que Ceclia noamava muito Henrique, visto que apenas chorou um dia, acordando no dia seguinteto fresca e alegre como se lhe no houvesse empalmado um noivo.

    Dizer que Leonardo se apaixonou por Ceclia mentir histria, e eu prezo, antesde tudo, a verdade dos fatos e dos sentimentos; mas por isso mesmo que eu devodizer que Ceclia no deixou de fazer alguma impresso em Leonardo.

    O que causou profunda impresso no nimo do nosso mal-aventurado e conquistoudesde logo todos os seus afetos, foram os cem contos que a pequena trazia em dote.Leonardo no hesitou em abenoar o mau destino que tanto o perseguira para atirar-lhe aos braos uma fortuna daquela ordem.

    Que impresso produziu Leonardo no pai de Ceclia? Boa, excelente, maravilhosa.Quanto menina, recebeu-o indiferente. Leonardo conou em que venceria aindiferena da lha, visto que j possua a simpatia do pai.

    Em todo o caso desfez a viagem.

    A simpatia de Atansio foi ao ponto de fazer de Leonardo um comensal indispensvel.

    espera do mais, o mal-aventurado Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.Dentro de pouco tempo era ele um ntimo da casa.

    Um dia Atansio mandou chamar Leonardo ao gabinete e disse-lhe com ar paternal:

    Tem sabido corresponder minha estima. Vejo que um bom moo, e segundome disse tem sido infeliz.

    verdade, respondeu Leonardo, sem poder conter um sorriso de jbilo

    que lhe assomou aos lbios.

    Pois bem, depois de estud-lo tenho resolvido faz-lo aquilo que o cu

    no me concedeu: um lho.

    Ah!

    Espere. J o pela estima, quero que o seja pelo auxlio nossa casa.

    Tem, desde j, um emprego no meu estabelecimento.

    Leonardo cou um pouco enado; esperava que o prprio velho fosse oferecer-lhe alha, e apenas recebia dele um emprego. Mas depois reetiu; um emprego era aquilo

    que depois de tanto cuidado vinha encontrar; no era pouco; e da podia ser que lheresultasse mais tarde o casamento.

    Assim, respondeu beijando as mos do velho: Oh! obrigado!

    Aceita, no?

    Oh! sem dvida!

    O velho ia levantar-se quando Leonardo, tomando subitamente uma resoluo, f-lo conservar-se na cadeira.

    Mas escute...

    O que ?

    No quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe tantas bondades que no posso deixar

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    de ser inteiramente franco. Eu aceito o ato de generosidade com uma condio. AmoD. Ceclia com todas as foras de minha alma. V-la aumentar este amor j toardente e to poderoso. Se o corao de V. S. leva a generosidade ao ponto de meadmitir na sua famlia, como me admite na sua casa, aceito. De outro modo sofrerde um modo que est acima das foras humanas.

    Em honra da perspiccia de Leonardo devo dizer que, se ele ousou arriscar assimo emprego, foi por ter descoberto em Atansio uma tendncia para dar- lhe todas asfelicidades.

    No se enganou. Ouvindo aquelas palavras, o velho abriu os braos a Leonardo eexclamou:

    Oh! se eu no desejo outra coisa!

    Meu pai! exclamou Leonardo abraando o pai de Ceclia.

    O quadro tornou-se comovente.

    De h muito, disse Atansio, que eu noto a impresso produzida por

    Ceclia e pedia no meu ntimo que uma to feliz unio se pudesse efetuar. Creio queagora nada se opor. Minha lha uma menina sisuda, no deixar de corresponderao seu afeto. Quer que lhe fale j ou esperemos?

    Como queira...

    Ou antes, seja franco; possui o amor de Ceclia?

    No posso dar uma resposta positiva. Creio que no lhe sou indiferente. Eume incumbo de investigar o que h. Demais, a minha vontade h de entrar por muitoneste negcio; ela obediente...

    Oh! forada, no!

    Qual forada! sisuda e h de ver que lhe convm um marido inteligente elaborioso...

    Obrigado!

    Separaram-se os dois.No dia seguinte devia Atansio instalar o seu novo empregado.

    Nessa mesma noite, porm, o velho tocou no assunto de casamento lha.

    Comeou por perguntar-lhe se acaso no tinha vontade de casar-se. Ela respondeuque no havia pensado nisso; mas disse-o com um sorriso tal que o pai no hesitouem declarar que tivera um pedido formal da parte de Leonardo.

    Ceclia recebeu o pedido sem dizer palavra; depois, com o mesmo sorriso, disse queia consultar o orculo.

    O velho no deixou de admirar-se com esta consulta de orculo e interrogou a lhasobre a signicao das suas palavras.

    muito simples, disse ela, vou consultar o orculo. Nada fao sem consultar;

    no dou uma visita, no fao a menor coisa sem consult-lo. Este ponto importante;como v, no posso deixar de consult-lo. Farei o que ele mandar.

    esquisito! mas que orculo esse? segredo.

    Mas posso dar esperanas ao rapaz? Conforme; depende do orculo.

    Ora, tu ests caoando comigo... No, meu pai, no.

    Era necessrio conformar-se vontade de Ceclia, no porque realmente fosseimperiosa, mas porque no modo e no sorriso com que a moa falou o pai descobriuque ela aceitava o noivo e apenas fazia aquilo por esprito de casquelhice.

    Quando Leonardo soube da resposta de Ceclia no deixou de car um tantoatrapalhado. Mas Atansio tranqilizou-o comunicando ao pretendente as suasimpresses.

    No dia seguinte que Ceclia devia dar a resposta do orculo. A inteno do velhoAtansio estava decidida; no caso de ser contrria a resposta do misterioso orculo,ele persistiria em obrigar a lha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia ocasamento.

    Ora, no dia aprazado apresentaram-se em casa de Atansio duas sobrinhas dele,casadas ambas, e de muito tempo retiradas da casa do tio pelo interesse que tinhamtomado por Ceclia quando esta quis casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas sobrinhas, no.

    A que lhes devo esta visita?

    Vimos pedir-lhe desculpa do nosso erro.

    Ah!

    Tinha razo, meu tio; e, demais, parece que h um novo pretendente. Comosouberam?

    Ceclia mandou-nos dizer.

    Vm ento opor-se?

    No; apoiar. Ora, graas a Deus!

    Nosso desejo que Ceclia se case, com este ou com aquele; todo o

    segredo da nossa interveno em favor do outro.

    Feita assim a reconciliao, Atansio participou s sobrinhas o que havia e qual aresposta de Ceclia. Disse igualmente que era aquele o dia marcado pela moa para dara resposta do orculo. Riram-se todos da singularidade do orculo, mas resolveramesperar a resposta dele.

    Se for contrria, apoiar-me-o?

    Decerto, responderam as duas sobrinhas.

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    Os maridos destas chegaram pouco depois.

    Enm apareceu Leonardo de casaca preta e gravata branca, trajo muito diversodaquele com que os antigos iam buscar as respostas dos orculos de Delfos e deDodona. Mas cada tempo e cada terra com seu uso.

    Durante todo o tempo em que as duas moas, os maridos e Leonardo estavam deconversa, Ceclia demorava-se no seu quarto consultando, dizia ela, o orculo.

    A conversa versou a respeito do assunto que reunia a todos.

    Enm, seriam oito horas da noite quando Ceclia apareceu na sala. Todos foram aela.

    Depois de feitos os primeiros cumprimentos, Atansio, meio srio, meio risonho,perguntou lha:

    Ento? que disse o orculo?

    Ah! meu pai! o orculo disse que no!

    Ento o orculo, continuou Atansio, contrrio ao teu casamento com o sr.Leonardo?

    verdade.

    Pois sinto dizer que sou de opinio contrria ao sr. orculo, e como a minhapessoa conhecida enquanto a do sr. orculo inteiramente misteriosa, h de fazer-se o que eu quiser, mesmo apesar do sr. orculo.

    Ah! no!

    Como, no? Queria ver isso! Se eu aceitei essa idia de consultar bruxarias foi parabrincar. Nunca me passou pela cabea ceder l s decises de orculos misteriosos.Tuas primas so de minha opinio. E demais, eu quero desde j saber que bruxariasso essas... Meus senhores, vamos descobrir o tal orculo.

    A este tempo apareceu um vulto na porta e disse:

    No precisa!

    Todos voltaram-se para ele. O vulto deu alguns passos e parou no meio da sala.Tinha um papel na mo.

    Era o ocial de marinha de que falei acima, trajando casaca e luva branca. Quefaz aqui o senhor? perguntou o velho espumando de raiva.

    Que fao? Sou o orculo.

    No aturo caoadas desta natureza. Com que direito se acha neste lugar? HenriquePaes por nica resposta deu a Atansio o papel que trazia na mo. Que isto?

    E a resposta sua pergunta.

    Atansio chegou-se para a luz, tirou os culos do bolso, p-los no nariz e leu opapel.

    Durante este tempo, Leonardo tinha a boca aberta sem compreender nada.

    Quando o velho chegou ao meio do escrito que tinha na mo, voltou-se para Henriquee disse com o maior grau de assombro:

    O senhor meu genro!

    Com todos os sacramentos da igreja. No leu?

    E se isto for falso!

    Alto l, acudiu um dos sobrinhos, ns fomos os padrinhos, e estas

    senhoras as madrinhas do casamento de nossa prima D. Ceclia B... com o sr.Henrique Paes, o qual se efetuou h um ms no oratrio de minha casa.

    Ah! disse o velho caindo numa cadeira.

    Mais esta! exclamou Leonardo procurando sair sem ser visto. Eplogo

    Se perdeu a noiva, e to ridiculamente, nem por isso Leonardo perdeu o lugar.Declarou ao velho que faria um esforo, mas que cava para corresponder estimaque o velho lhe tributava.

    Mas estava escrito que a sorte tinha de perseguir o pobre rapaz.

    Da a quinze dias Atansio foi acometido de uma congesto de que morreu. Otestamento, que fora feito um ano antes, nada deixava a Leonardo. Quanto casa,teve de liquidar-se. Leonardo recebeu a importncia de quinze dias de trabalho.

    O mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo e foi atirar-se ao mar, na praia deIcara.

    Henrique e Ceclia vivem como Deus com os anjos.

    Machado de AssisPublicado originalmente em

    Jornal das Famlias (1866)

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    RobAL-76 Extraviado

    Jonathan Quell franziu as sobrancelhas, preocupado, por trs dos culos semaro, ao transpor a porta marcada com gerente geral.

    Depositando com fora o papel dobrado sobre a escrivaninha, falou, incisivo:

    - Veja isto, chefe!

    Sam Tobe passou o charuto para o outro lado da boca e leu, esfregando o queixoprecisado de barbear.

    - Que inferno! Que que eles querem dizer?

    - Que expedimos cinco robs al explicou Quell, desnecessariamente.

    - Expedimos seis replicou Tobe.

    - Claro, seis! Mas receberam apenas cinco. Remeteram os nmeros seriados e o al-76 desapareceu.

    Tobe fez cair a cadeira, ao erguer seu vigoroso corpo, e transps a porta comose deslizasse sobre rodinhas lubricadas. Depois disso, cinco horas se passaram. Afbrica fora vasculhada desde as salas de montagem at as cmaras de vcuo. Cadaum dos duzentos empregados havia passado por minucioso interrogatrio, e Tobe,suando e descabelado, enviou uma mensagem de emergncia fbrica central, emSchenectady.

    Ali houve uma sbita exploso de pnico. Pela primeira vez na histria da U.S.Robs e Homens Mecnicos S.A., um rob fugira para o exterior. O mais srio no eraa lei proibindo a presena de robs na Terra, fora da fbrica licenciada da corporao.As leis podiam ser contornadas. O que melhor denia a situao era a declarao feitapor um dos matemticos do departamento de pesquisas.

    - Aquele rob foi criado para dirigir um Disinto sobre a Lua. Seu crebro positrnicoestava equipado para o ambiente lunar, somente para o ambiente lunar. Na Terrareceber setenta e cinco zilhes de impresses sensoriais para as quais jamais foipreparado. Impossvel prever suas reaes. Impossvel! E com as costas da moenxugou a testa coberta de suor.

    Dentro de uma hora um estratoplano partiu para a fbrica de Virgnia. Levavainstrues muito simples:

    - Agarrem o rob! E depressa! al-76 estava confuso! Na verdade, confuso era anica impresso retida por seu delicado crebro positrnico. Tudo comeou quandoele se viu naquele estranho ambiente. De que modo havia acontecido ele ignorava.Tudo se confundia.

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    O solo era coberto de verde, e estacas marrons erguiam-se a sua volta, encimadaspor outra camada de verde. O cu era azul quando devia ser negro. O sol estavacorreto redondo, amarelo e quente -, mas onde o solo poroso, onde os imensosanis das crateras?

    Via-se apenas o verde aqui embaixo e o azul l no alto. Todos os sons que o rodeavameram estranhos. Passara por gua corrente que lhe chegava cintura. Era azul, fria emolhada. E quando cruzava com pessoas, o que ocorria de vez em quando, elas nousavam trajes espaciais, como deveriam. E ao v-lo, gritavam e saam correndo.

    Um homem apontara-lhe uma arma. O projtil assobiara pela sua cabea. Depois ohomem sara correndo tambm.

    No tinha a menor idia do tempo que passara vagueando a esmo antes de encontrara cabana de Randolph Payne, a dois quilmetros da cidadezinha de Hannaford, nomeio da oresta. Randolph Payne, chave de parafusos numa das mos e cachimbo naoutra, aspirador de p em conserto entre os joelhos, estava agachado diante da porta.

    Payne cantarolava baixinho, pois era um camarada bem-humorado quando seencontrava na sua cabana. Possua em Hannaford uma moradia mais respeitvel,ocupada principalmente por sua mulher, fato que ele sincera mas silenciosamentelamentava. Talvez por isso houvesse aquela sensao de alvio e liberdade quandoconseguia fugir para a sua casa de cachorro de luxo, onde podia fumar em paz,enquanto se dedicava ao seu hobby, consertar utenslios domsticos.

    No era grande coisa como hobby, mas s vezes algum surgia com um rdio, ouum despertador, e o dinheiro que ento tilintava em seus bolsos era o nico que nopassava pelas mos avarentas de sua mulher.

    Aquele aspirador de p representava seis dlares ganhos sem esforo.

    Pensando nisso comeou a cantar, ergueu a vista e suou frio. A cano engasgou-se na sua garganta, os olhos arregalaram-se, a transpirao tornou-se mais intensa.Tentou levantar-se, como preparativo para correr desabaladamente, mas as pernasno cooperaram.

    Foi ento que al-76 agachou-se ao seu lado e perguntou:- Diga, por que todos os outros saram correndo?

    Payne sabia muito bem por que, mas o n que se formara no seu diafragma

    no permitiu resposta. Tentou afastar-se ligeiramente do rob. al-76 prosseguiu,ressentido:

    - Um deles at atirou em mim. Se acertasse dois centmetros abaixo teria arranhadoo revestimento do meu ombro.

    - D-devia estar 1-louco gaguejou Payne.

    - possvel. O tom do rob tornou-se condencial. Oua, que h de errado pora?

    Payne olhou rapidamente ao redor. Notara que o rob falava em tomextraordinariamente manso para algum de aparncia to pesada e brutalmentemetlica. Lembrou-se tambm de ter ouvido dizer que os robs eram mentalmenteincapazes de fazer mal ao ser humano e sentiu um certo alvio.

    - No h nada errado.

    - No? replicou al-76, tando-o acusadora-mente. Voc est todo errado. Ondedeixou seu traje espacial?

    - No tenho nenhum.

    - Ento, por que no est morto? Isto surpreendeu Payne.

    - Bem... no sei.

    - Est vendo! replicou o rob, triunfante. Tudo est errado. Onde se encontrao Monte Coprnico? Onde a Estao Lunar 17? E onde est o meu Disinto? Querotrabalhar. Parecia perturbado e tinha a voz trmula ao prosseguir: Venho andandoh horas, tentando conseguir que algum me diga onde est o meu Disinto, mas todosfogem. Agora provvel que esteja atrasadssimo, e o chefe vai car furioso. Que belasituao!

    Aos poucos Payne foi conseguindo estabelecer ordem no caos da sua mente.Perguntou ento:

    - Como mesmo o seu nome?

    - Meu nome de srie al-76.

    - Al basta para mim. Se voc est procurando a Estao Lunar 17, ela ca

    na Lua, sabia?

    al-76 meneou gravemente a cabea.

    - Claro. Mas estive sua procura...

    - Fica na Lua. E ns no estamos na Lua.

    Foi a vez do rob mostrar-se confuso. Observou Payne especulativamente e depois

    indagou devagar:

    - Que quer dizer com essa histria? Aqui no a Lua? Claro que a Lua. Se nofosse, o que seria ento? Responda essa pergunta.

    Payne emitiu um estranho rudo e respirou fundo. Agitando um dedo na frente dorob falou:

    - Oua! Sbito, teve uma brilhante idia e interrompeu-se com uma exclamaoabafada.

    al-76 tou-o com ar de reprovao.

    - Isso no resposta. Creio que tenho direito a uma resposta bem-educada quandofao uma pergunta bem-educada.

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    Payne no o ouvia. Ponderava consigo mesmo. Claro como o dia. Aquele rob foraconstrudo para ir Lua, mas por qualquer motivo encontrava-se perdido na Terra.Era natural que estivesse confuso, j que seu crebro positrnico fora construdoexclusivamente para o ambiente lunar, e o meio terrestre lhe era totalmente estranho.

    Se pudesse conservar ali o rob, at entrar em contato com a fbrica de Petersboro...Robs valiam dinheiro. O mais barato custava cinqenta mil dlares, haviam dito, ealguns chegavam a valer milhes. Imagine a recompensa!

    Oba, rapaz, imagine s a recompensai E tudo para ele, at o ltimo

    centavo. Nem um nquel furado para Mirandy. No, que diabo! Levantando-se,nalmente disse:

    - Al, ns dois somos amigos! Amiges! Gosto de voc como de um irmo.

    E estendeu-lhe a mo: Aperte!

    O rob engoliu em seco, estendeu a pata de metal e apertou de leve a mo que lheera oferecida. No entendia muito bem.

    - Isto signica que voc me ensinar a chegar Estao Lunar 17?

    Payne cou um tanto embaraado.

    - No, no exatamente. Para falar a verdade, gosto tanto de voc que quero queque algum tempo aqui comigo.

    - Ah, isso eu no posso. Preciso trabalhar. E meneou a cabea. Gostaria deatrasar sua quota de trabalho hora aps hora, minuto a minuto? Quero trabalhar.Preciso trabalhar.

    Payne pensou consigo mesmo que gostos variam e respondeu:

    - Est bem, vou lhe explicar uma coisa, porque estou vendo pela sua aparncia quevoc uma pessoa inteligente. Tenho ordens do seu chefe de seo para conserv-loaqui por algum tempo, at que ele mande busc-lo.

    - Para qu? indagou al-76, desconado.

    - No posso dizer. Segredo de Estado. Payne rezou intimamente para que o robengolisse aquilo. Sabia que alguns eram inteligentes, mas aquele parecia um modeloantiquado.

    E enquanto Payne rezava, al-76 ponderava. Seu crebro, ajustado para dirigirum Disinto na Lua, no dava o mximo rendimento quando entregue ao raciocnioabstrato. Ainda assim, desde que se perdera, al-76 descobrira que seus processosmentais mostravam-se cada vez mais estranhos. O meio ambiente exercia sobre elealguma inuncia.

    Sua pergunta seguinte foi quase astuta:

    - Como se chama o meu chefe de setor?

    Payne engoliu em seco e raciocinou rpido. Em tom magoado respondeu: - Al, voc

    me ofende com essa desconana. No posso dizer o nome dele.

    As rvores tm ouvidos.

    AL-76 examinou muito srio a rvore mais prxima e respondeu:

    - No tm.

    - Eu sei. Quero dizer que h espies em toda parte.

    - Espies?

    - Sim. Gente m, que quer destruir a Estao Lunar 17.

    - Por qu?

    - Porque so ms. Querem destruir voc tambm, e por isso que precisa car aquialgum tempo, seno eles o encontraro.

    - Mas... mas preciso de um Disinto. No posso me atrasar.

    - Voc ter o seu Disinto. Ter mesmo prometeu Payne muito srio, amaldioandoo crebro unilateral do rob. Mandaro um amanh. Sim, amanh.

    Isso lhe daria muito tempo para entrar em contato com a fbrica e receber lindaspilhas de notas de cem dlares.

    Mas al-76 tornou-se progressivamente obstinado medida que a presso daqueleambiente estranho agia sobre seu mecanismo pensante.

    - No, preciso de um Disinto agora. Movimentando rigidamente as

    articulaes, levantou-se. Melhor continuar a procur-lo. Adiantando-se, Payneagarrou um ombro frio e gritou:

    - Espere! Voc precisa car aqui...

    Algo emitiu um sinal na mente do rob. Todas as coisas estranhas que

    o rodeavam reuniram-se numa bolha, explodiram, deixando o crebro a funcionarcom um estranho aceleramento de ecincia. Voltando-se para Payne, disse:

    - Sabe de uma coisa? Construirei um Disinto aqui mesmo. Depois poderei trabalhar.

    Payne parecia duvidoso.

    - No creio que consiga. E perguntou a si mesmo se valeria a pena ngir ocontrrio.

    - No se preocupe. al-76 percebeu que os canais positrnicos do seu crebrotraavam novos sinais e sentiu uma estranha exultao. Vou construir um. Eolhando para a casa de cachorro, modelo de luxo, pertencente a Payne, acrescentou: Voc tem aqui todo o material necessrio.

    Randolph Payne relanceou para a confuso que enchia a cabana: rdios com asvsceras para fora, um refrigerador sem a parte de cima, motores enferrujados deautomvel, um fogo a gs imprestvel, vrios quilmetros de arame farpado e cercade cinqenta toneladas do mais heterogneo amontoado de ferro velho, diante do

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    qual todo negociante de sucata torceria o nariz.

    - Tenho mesmo? murmurou.

    Duas horas depois, duas coisas aconteceram quase simultaneamente. Primeira:Sam Tobe, da lial de Petersboro da U.S. Robs e Homens Mecnicos S.A., recebeuuma chamada pelo videofone, de Randolph Payne, morador de Hannaford, com umrecado relativo ao rob desaparecido. Tobe, com um rosnado profundo, interrompeu aligao, ordenando que todos os outros chamados fossem encaminhados para o sextovice-presidente encarregado dos controles.

    No se tratava de um verdadeiro absurdo. Na semana anterior, embora o Rob al-76tivesse desaparecido completamente, havia audo para ali uma enxurrada de notciassobre o seu paradeiro, vindas de todos os recantos do pas. Pelo menos catorze pordia em geral de catorze diferentes Estados.

    Tobe estava cansado da histria, sem mencionar que j andava meio louco por outrosmotivos. Falava-se at em inqurito governamental, embora todos os roboticistas,fsicos e matemticos de renome do mundo inteiro jurassem que o rob era inofensivo.

    Naquele estado de esprito no era surpreendente que levasse trs horas paraponderar de que modo aquele Randolph Payne soubera que o rob estava programadopara a estao Lunar 17 e que seu nmero de srie era al-76. Estes detalhes nohaviam sido divulgados pela companhia.

    Ponderou durante um minuto e meio e depois entrou em ao.

    Contudo, nas trs horas que transcorreram entre a chamada e a ao, deu-seo segundo acontecimento. Randolph Payne, depois de interpretar corretamente ainterrupo de sua chamada como descrena generalizada por parte do ocial que oouvia na fbrica, regressou sua cabana munido de uma objetiva.

    Impossvel discutir diante de uma foto e ele no seria idiota de mostrar-lhes o artigogenuno antes de ver a cor do dinheiro.

    al-76 continuava ocupado com seu trabalho. Metade do contedo da cabanaencontrava-se espalhado pelos dois acres de terreno, e no meio daquilo via- se o

    rob agachado, mexendo com vlvulas de rdio, pedaos de ferro, ao de cobre eoutras complicaes, sem prestar a mnima ateno a Payne que, deitado de bruos,procurava ngulos para uma bonita foto.

    Foi ento que Lemuel Oliver Cooper fez a curva da estrada e imobilizou-se diantedo espetculo. A razo da sua presena ali era uma torradeira eltrica, que adquirira oirritante costume de atirar longe as fatias de po, mesmo quando ainda no estavamtorradas. O motivo da sua partida foi mais bvio. Chegara em marcha tranqila, alegre,prpria de manh de vero. Partia com uma velocidade que levaria qualquer treinadorde corridas a erguer as sobrancelhas e franzir os lbios com ar aprovador.

    E no diminuiu a velocidade at entrar no gabinete do delegado, sem chapu e semtorradeira, colidindo direto com a parede.

    Mos prestimosas levantaram-no. Tentou falar, mas durante meio minuto noconseguiu nem sequer se acalmar para respirar direito.

    Deram-lhe usque e o abanaram, e quando nalmente falou saiu-se com esta:

    - Monstro... dois metros e meio de altura... cabana destruda... coitado do RonniePayne... etc.

    Aos poucos foram sabendo da histria: havia um imenso monstro metlico, dedois metros e meio de altura, talvez trs ou quatro, na cabana de Ran- dolph Payne.O coitado do Payne estava cado de bruos, um corpo sangrento, dilacerado. Omonstro ocupava-se em destruir a cabana por puro prazer de destruio. Voltara-separa Lemuel Ohver Cooper, que escapara por um triz.

    O Delegado Saunders apertou o cinto na ampla cintura e disse:

    - aquela mquina que fugiu da fbrica de Petersboro. Recebi um aviso no sbado

    passado. Ei, Jake, rena todos os homens de Hannaford capazes de atirar e coloqueno peito deles um distintivo de delegado. Rena-os aqui ao meio-dia. E oua, Jake,antes disso, passe pela casa da viva Payne e d-lhe a m notcia com todo o cuidado.

    Diz-se que Mirandy Payne, ao saber do ocorrido, fez uma pausa para certicar-se de que a aplice de seguro do marido se encontrava no cofre, emitiu algumasobservaes relativas ao fato dele no ter dobrado a quantia, e depois entregou-se aum prolongado choro de cortar o corao, como cabe a qualquer viva que se preza.

    Horas depois, Randolph Payne ignorando sua horrvel mutilao e morte estudouos negativos das fotos. Estava satisfeito. As seqncias de ngulos do rob trabalhandono deixavam pairar dvidas. Poderiam intitular-se: Rob Contemplando Pensativoum Aspirador de P, Rob Dividindo Fios, Rob Manejando Chaves-de-Parafusos,

    Rob Despedaando Refrigerador com Grande Violncia etc.

    Como s restava a tarefa simples de revelar as fotos, saiu da cmara escuraimprovisada, a m de fumar um pouco e bater um papo com al-76.

    Ignorava completamente que a oresta ao redor pululava de fazendeiros nervosos,carregando as mais variadas espcies de objetos contundentes, assim como uma

    innidade de armas, desde um arcabuz colonial, verdadeira relquia, at umametralhadora porttil, empunhada pelo delegado.

    Ignorava tambm que meia dzia de roboticistas, sob a chea de Sam Tobe,percorriam a estrada de Petersboro a mais de duzentos quilmetros por hora, com analidade exclusiva de ter o prazer e a honra de conhec-lo.

    Enquanto essas duas ocorrncias caminhavam para um clmax, Randolph Paynesuspirava, satisfeito consigo mesmo, riscava um fsforo nos fundilhos das calas,tirava uma fumaa do cachimbo e observava al-76 com ar divertido.

    Tornara-se bvio que o rob estava mais do que luntico. Randolph Payne erabastante hbil com aparelhos domsticos, tendo construdo vrios que no podiamser expostos luz do dia sem ferir os olhos de quem os contemplava, mas nunca

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    concebera algo parecido com a monstruosidade que al-76 estava criando.

    Faria os Rube Goldbergs da poca morrerem de inveja. Faria Picasso (se vivesseainda para contempl-lo) desistir da arte, convicto de estar totalmente obsoleto.Azedaria o leite nas tetas de todas as vacas, numa circunferncia de meio quilmetro.

    Era de fato horripilante!

    De uma base de ferro macia e enferrujada, que se parecia vagamente com umaparte de trator de segunda mo, erguia-se um amontoado de entontecer: os, rodas,tubos, horrores inominveis sem conta, terminando num megafone de aparnciadecididamente sinistra.

    Payne sentiu mpetos de espreitar pelo megafone, mas conteve-se. Vira aparelhosmais sensatos que aquele explodirem violentamente.

    - Ei, Al chamou.

    O rob levantou a cabea. Estava deitado de braos, ajustando uma na placa demetal.

    - Que quer, Payne?

    - Que isto? perguntou, no tom de quem se refere a algo sujo, em decomposio,mal seguro entre duas varas de trs metros de comprimento. - um Disinto, paraeu poder comear a trabalhar. Aperfeioei o modelo anterior. Erguendo-se, tirouruidosamente o p de seus joelhos metlicos e sorriu, orgulhoso.

    Payne estremeceu. Um aperfeioamento! No era para admirar que escondessemo original nas cavernas da Lua. Pobre satlite! Pobre satlite morto! Sempre quiserasaber o que seria sorte pior que a morte. Agora sabia.

    - Funciona?

    - Claro.

    - Como sabe?

    - Tem de funcionar. Fui eu que z, no fui? S preciso de uma coisa agora. Tem uma

    lanterna de bolso?- Creio que sim. Payne entrou na cabana e voltou logo em seguida.

    O rob desatarraxou a extremidade e ps-se a trabalhar. Dentro de cinco minutoshavia terminado. Recuando, disse:

    - Tudo pronto. Agora vou entrar em ao. Pode olhar, se quiser.

    Uma pausa, enquanto Payne tentava ponderar a magnitude do oferecimento.

    - seguro?

    - At uma criana seria capaz de manej-lo.

    - Ah Payne teve um dbil sorriso e colocou-se por trs da rvore mais volumosadas imediaes.

    Vamos, tenho a maior conana em voc. al-76 apontou para o espantosoamontoado de ferro velho e disse:

    - Observe! E ps-se a trabalhar.

    Os fazendeiros de Hannaford, Virgnia, em p de guerra, aproximavam- se da cabanade Payne, apertando o cerco. Com o sangue de seus hericos antepassados circulandorpido nas veias e arrepios descendo a espinha esgueiravam-se de rvore emrvore.

    O Delegado Saunders ordenou:

    - Atirem quando eu der o sinal. E apontem para os olhos.

    Jacob Linker Lank Jake para os amigos e assistente de delegado para si mesmo aproximou-se.

    - Acha que a mquina deu o fora? No conseguiu conter o tom esperanoso davoz.

    - No sei resmungou o delegado. Acho que no. Teramos encontrado com elana oresta, e no encontramos.

    - Mas est tudo to quieto. E parece que j estamos bem perto da cabana de Payne.

    O lembrete era desnecessrio. O Delegado Saunders tinha um bolo to grande nagarganta que precisou engoli-lo em trs prestaes.

    - Recue ordenou e mantenha o dedo no gatilho.

    Encontravam-se na orla da clareira. O delegado fechou os olhos e espreitou pelocantinho de um deles, por trs de uma rvore. No vendo coisa alguma, fez umapausa, tentou novamente, olhos abertos, desta vez.

    Os resultados, naturalmente, foram melhores.

    Para ser exato, viu um imenso homem mecnico, de costas para ele, inclinado sobreum aparelho de arrepiar, de origem incerta e nalidade idem. O nico detalhe que lheescapou foi a trmula gura de Randolph Payne agarrado terceira rvore na direo

    nor-noroeste.O delegado saiu para terreno descoberto e ergueu a metralhadora. O rob, voltando-

    lhe ainda amplas costas de metal, disse em voz baixa, para pessoa ou pessoasdesconhecidas:

    - Veja! E quando o delegado abriu a boca para ordenar a fuzilaria geral, dedosmetlicos comprimiram uma alavanca.

    Impossvel fazer uma descrio adequada do que ocorreu ento, apesar da presenade setenta testemunhas oculares. Nos dias, meses e anos seguintes, nem um s dossetenta seria capaz de descrever os segundos subseqentes ao momento em que odelegado abriu a boca para dar a ordem de fogo. Quando interrogados empalideciame afastavam-se oscilantes.

    bvio, porm, graas a provas circunstanciais, que o que aconteceu foi mais ou

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    menos o seguinte:

    O Delegado Saunders abriu a boca, al-76 puxou uma alavanca. O Disinto funcionou,e setenta e cinco rvores, dois celeiros, trs vacas e os trs quartos superiores domorro Duckbill deszeram-se no ar.

    Fundiram-se, por assim dizer, com as neves de antanho.

    A boca do delegado permaneceu aberta por um espao indenido de tempo, masnada nem ordem de fogo, nem coisa alguma dali saiu. E ento...

    Ento ouviu-se uma agitao no ar, uma srie de raios cor de prpura cortou aatmosfera, tendo a cabana de Randolph Payne como centro. Dos componentes dogrupo atacante, no sobrou vestgios.

    Restaram diversas armas espalhadas pelo local, inclusive a metralhadora niquelada,de fogo extra-rpido, garantida contra enguios, pertencente ao delegado. Viam-

    se tambm cerca de cinqenta chapus, algumas pontas de charutos e artigos deindumentria variados, que se haviam desprendido na agitao. Mas ser humano nohavia um s.

    exceo de Lank Jake, nenhum espcime humano surgiu por ali durante trs dias,e a exceo s ocorreu porque sua fuga meterica foi interrompida por meia dzia dehomens da fbrica de Petersboro, penetrando no bosque com igual velocidade.

    Foi Sam Tobe quem o deteve, segurando habilmente a cabea de Lank Jake, quecolidira com o seu estmago. Quando recuperou o flego, Tobe perguntou:

    - Onde a cabana de Randolph Payne? Lank Jake permitiu que seus olhos ofocalizassem por um instante e respondeu:

    - Amigo, siga na direo oposta minha.

    E, com isso, miraculosamente desapareceu. Viu-se um ponto no horizonte, que sedesviava das rvores e talvez fosse ele, mas Sam Tobe no seria capaz de jurar.

    Isso foi o que aconteceu com o grupo. Mas resta saber o que ocorreu com Payne,cujas reaes assumiram forma um tanto diferente.

    Para Randolph Payne, o intervalo de cinco segundos subseqentes ao puxar daalavanca e ao desaparecimento do morro Duckbill foram um branco total. A princpioespreitara atravs das moitas espessas, por trs das rvores. Quando tudo terminouencontrava-se pendurado nos mais altos galhos.

    O mesmo impulso que impelira o grupo horizontalmente impulsionara-o verticalmente.

    Quanto ao modo como percorrera os quinze metros entre razes e topo da rvore se galgara, saltara ou voara isso no sabia nem queria saber.

    O que ele sabia que a propriedade fora destruda por um rob temporariamenteem seu poder. Desapareciam assim todas as vises de recompensas, substitudas porpesadelos de cidados hostis, multides ululantes, processos, acusaes de assassinatoe recriminaes de Mirandy Payne. Principalmente as recriminaes de Mirandy Payne.

    Rouco e furioso, gritou:

    - Ei, rob, destrua essa coisa, ouviu? Destrua completamente! E esquea de que eutenho algo a ver com a histria. No o conheo, ouviu? Nunca mais fale no assunto.Esquea, ouviu?

    No esperava que suas ordens surtissem efeito, eram apenas um reexo. O queignorava que um rob obedece sempre a ordens humanas, a menos que envolvaperigo para outro ser humano.

    al-76, portanto, ps-se a demolir, tranqila e metodicamente, o seu Disinto,transformando-o num monte de sucata.

    Quando estava amassando o ltimo centmetro cbico de metal, Sam Tobe chegoucom o seu contingente, e Randolph Payne, percebendo que se tratava dos verdadeirosdonos do rob, caiu de cabea do alto da rvore e desapareceu em regies desconhecidas.

    Nem esperou pela recompensa.

    Austin Wilde, engenheiro robtico, voltou-se para Sam Tobe e indagou: - Conseguiuobter alguma coisa do rob?

    Tobe meneou a cabea, com um grunhido surdo.

    - Nada. Nada absolutamente. Esqueceu tudo o que aconteceu depois que saiu dafbrica. Deve ter recebido ordens para esquecer, caso contrrio no estaria to embranco. Que pilha de ferro velho era aquela com que estava brincando?

    - Exatamente isso: uma pilha de ferro velho. Mas deve ter sido um Disinto antes deser destrudo e eu gostaria de matar o camarada que lhe deu ordens para amass-lo usando tortura lenta, se possvel. Veja isto!

    Estava a meia encosta do que fora o morro Duckbill no ponto exato em que foracortada, e Wilde colocou a mo sobre a superfcie perfeitamente reta que talhara soloe rocha.

    - Que Disinto! Arrancou a montanha pela base.

    - Por que o ter construdo?

    Wilde deu de ombros.

    - No sei. Algum fator ambiental. Impossvel saber o que reagiu sobre

    seu crebro positrnico programado para a Lua, levando-o a fabricar um Disintocom um monte de ferros velhos. H um bilho de chances contra uma de descobriresse fator, agora que o prprio rob o esqueceu. Nunca possuiremos aquele Disinto.

    - No importa. O principal que temos o rob.

    - Ao diabo com ele! Havia um pungente lamento na voz de Wilde. Tem algumaidia do que so os Disintos na Lua? Consomem energia como porcos eletrnicos es funcionam quando se obtm um potencial de milho de volts. Mas este Disintofuncionava diferente. Examinei os destroos com microscpio. Gostaria de ver a nicafonte de energia que encontrei?

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    Isaac AsimovPublicado originalmente no

    livro Ns, Robs, Hemus Editora

    - Que isso?

    - Apenas isso! E jamais saberemos como as utilizou.

    E Austin Wilde exibiu a fonte de energia que possibilitara a um Disinto

    cortar uma montanha em meio segundo: duas baterias de lanterna porttil!

    A FBULA DOS PORCOS ASSADOS

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    Certa vez, aconteceu um incndio num bosque onde havia alguns porcos,que foram assados pelo fogo. Os homens, acostumados a comer carne crua,experimentaram e acharam deliciosa a carne assada. A partir da, toda vezque queriam comer porco assado, incendiavam um bosque... At que descobriram umnovo mtodo.

    Mas o que quero contar o que aconteceu quando tentaram mudar o sistema paraimplantar um novo. Fazia tempo que as coisas no iam l muito bem: s vezes, osanimais cavam queimados demais ou parcialmente crus. O processo preocupavamuito a todos, porque se o sistema falhava, as perdas ocasionadas eram muito grandes- milhes eram os que se alimentavam de carne assada e tambm milhes os que seocupavam com

    a tarefa de ass-los. Portanto, o sistema simplesmente no podia falhar. Mas,curiosamente, quanto mais crescia a escala do processo, mais parecia falhar e maioreseram as perdas causadas.

    Em razo das inmeras decincias, aumentavam as queixas. J era um clamorgeral a necessidade de reformar profundamente o sistema.

    Congressos, seminrios e conferncias passaram a ser realizados anualmente parabuscar uma soluo. Mas parece que no acertavam o melhoramento do mecanismo.Assim, no ano seguinte, repetiam-se os congressos, seminrios e conferncias.

    As causas do fracasso do sistema, segundo os especialistas, eram atribudas indisciplina dos porcos, que no permaneciam onde deveriam, ou inconstantenatureza do fogo, to difcil de controlar, ou ainda s rvores, excessivamente verdes,ou umidade da terra ou ao servio de informaes meteorolgicas, que no acertava

    o lugar, o momento e a quantidade das chuvas.As causas eram, como se v, difceis de determinar - na verdade, o sistema para

    assar porcos era muito complexo. Fora montada uma grande estrutura: maquinriodiversicado, indivduos dedicados exclusivamente a acender o fogo - incendiadoresque eram tambm especializados (incediadores da Zona Norte, da Zona Oeste,etc, incendiadores noturnos e diurnos - com especializao matutina e vespertina- incendiador de vero, de inverno etc). Havia especialista tambm em ventos - osanemotcnicos. Havia um diretor geral de assamento e alimentao assada, um diretorde tcnicas gneas (com seu Conselho Geral de Assessores), um administrador geralde reorestamento, uma comisso de treinamento prossional em Porcologia, uminstituto superior de cultura e tcnicas alimentcias (ISCUTA) e o bureau orientador dereforma igneooperativas.

    Havia sido projetada e encontrava-se em plena atividade a formao de bosques eselvas, de acordo com as mais recentes tcnicas de implantao - utilizando-se regiesde baixa umidade e onde os ventos no soprariam mais que trs horas seguidas.

    Eram milhes de pessoas trabalhando na preparao dos bosques, que logo seriamincendiados. Havia especialistas estrangeiros estudando a importao das melhoresrvores e sementes, o fogo mais potente etc. Havia grandes instalaes para manteros porcos antes do incndio, alm de mecanismos para deix-los sair apenas nomomento oportuno.

    Foram formados professores especializados na construo dessas instalaes.Pesquisadores trabalhavam para as universidades para que os professores fossemespecializados na construo das instalaes para porcos. Fundaes apoiavam ospesquisadores que trabalhavam para as universidades que preparavam os professoresespecializados na construo das instalaes para porcos etc.

    As solues que os congressos sugeriam eram, por exemplo, aplicar triangularmenteo fogo depois de atingida determinada velocidade do vento, soltar os porcos 15 minutosantes que o incndio mdio da oresta atingisse 47 graus e posicionar ventiladoresgigantes em direo oposta do vento, de forma a direcionar o fogo. No precisodizer que os poucos especialistas estavam de acordo entre si, e que cada um embasavasuas idias em dados e pesquisas especcos.

    Um dia, um incendiador categoria AB/SODM-VCH (ou seja, um acendedor debosques especializado em sudoeste diurno, matutino, com bacharelado em verochuvoso) chamado Joo Bom-Senso resolveu dizer que o problema era muito fcil deser resolvido - bastava, primeiramente, matar o porco escolhido, limpando e cortandoadequadamente o animal, colocando-o ento numa armao metlica sobre brasas,at que o efeito do calor - e no as chamas - assasse a carne.

    Tendo sido informado sobre as idias do funcionrio, o diretor geral de assamentomandou cham-lo ao seu gabinete, e depois de ouv-lo pacientemente, disse-lhe:

    Tudo o que o senhor disse est muito bem, mas no funciona na prtica.

    O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotcnicos, caso vissemos a aplicara sua teoria? Onde seria empregado todo o conhecimento dos acendedores de diversasespecialidades?.

    No sei, disse Joo.

    E os especialistas em sementes? Em rvores importadas?

    E os desenhistas de instalaes para porcos, com suas mquinas puricadoresautomticas de ar?. No sei. E os anemotcnicos que levaram anos especializando-se no exterior, e cuja formao custou tanto dinheiro ao pas? Vou mand-los limparporquinhos?

    E os conferencistas e estudiosos, que ano aps ano tm trabalhado no Programade Reforma e Melhoramentos? Que fao com eles, se a sua soluo resolver tudo?Heim?.

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    No sei, repetiu Joo, encabulado.

    O senhor percebe, agora, que a sua idia no vem ao encontro daquilo de quenecessitamos? O senhor no v que se tudo fosse to simples, nossos especialistas jteriam encontrado a soluo h muito tempo atrs?

    O senhor, com certeza, compreende que eu no posso simplesmente convocar osanemotcnicos e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas! Oque o senhor espera que eu faa com os quilmetros e quilmetros de bosques jpreparados, cujas rvores no do frutos e nem tm folhas para dar sombra? Vamos,diga-me?. No sei, no, senhor.

    Diga-me, nossos trs engenheiros em Porcopirotecnia, o senhor no considera quesejam personalidades cientcas do mais extraordinrio valor?. Sim, parece que sim.

    Pois ento. O simples fato de possuirmos valiosos engenheiros em Porcopirotecniaindica que nosso sistema muito bom. O que eu faria com indivduos to importantespara o pas? No sei. Viu?

    O senhor tem que trazer solues para certos problemas especcos - por exemplo,como melhorar as anemotcnicas atualmente utilizadas, como obter mais rapidamenteacendedores de Oeste (nossa maior carncia) ou como construir instalaes paraporcos com mais de sete andares. Temos que melhorar o sistema, e no transform-loradicalmente, o senhor, entende?

    Ao senhor, falta-lhe sensatez!.

    Realmente, eu estou perplexo!, respondeu Joo. Bem, agora que o senhorconhece as dimenses do problema, no saia dizendo por a que pode resolver tudo.O problema bem mais srio e complexo do que o senhor imagina.

    Agora, entre ns, devo recomendar-lhe que no insista nessa sua idia - issopoderia trazer problemas para o senhor no seu cargo. No por mim, o senhor entende.Eu falo isso para o seu prprio bem, porque eu o compreendo, entendo perfeitamenteo seu posicionamento, mas o senhor sabe que pode encontrar outro superior menoscompreensivo, no mesmo?.

    Joo, coitado, no falou mais um a.Sem despedir-se, meio atordoado, meio assustado com a sua sensao de estar

    caminhando de cabea para baixo, saiu de ninho e ningum nunca mais o viu.

    A PARBOLA DO FILHO PRDIGO

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    Certo homem tinha dois lhos ;- o mais moo deles disse ao pai : Pai, d-me a parte dos bens que mecabe . E ele repartiu os haveres.- Passados no muitos dias, o lho mais moo, ajuntando tudo o que era seu , partiu

    para uma terra distante e l dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente.

    -Depois de ter consumido tudo, sobreveio quele pas uma grande fome, e elecomeou a passar necessidade .

    - Ento , ele foi e se agregou a um dos cidados daquela terra ., e este o mandoupara os seus campos a guardar porcos.

    -Ali, desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam ; mas ningum lhedava nada .

    - Ento, caindo em si, disse : Quantos trabalhadores de meu pai tm po comfartura, e eu aqui morro de fome !

    - Levantar-me-ei , e irei ter com o meu pai, e lhe direi : Pai, pequei contra o cu ediante de ti ;

    - j no sou digno de ser chamado teu lho ; trata-me como um dos teus trabalhadores;

    - E, levantando-se , foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai oavistou, e, compadecido dele, correndo, o abraou, e beijou .

    -E o lho lhe disse : Pai, pequei contra o cu e diante de ti ; j no sou digno de serchamado teu lho.-

    - O pai, porm, disse aos seus servos :Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandlias nos

    ps;

    - trazei tambm e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemos-nos ;

    -porque este meu lho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. Ecomearam a regozijar-se

    -Ora, o lho mais velho estivera no campo; e, quando voltava, ao aproximar- se dacasa, ouviu a msica e as danas.

    - Chamou um dos criados e perguntou-lhe que era aquilo .

    - E ele informou : veio teu irmo, e teu pai mandou matar o novilho cevado, porqueo recuperou com sade .

    - Ele se indignou e no queria entrar, saindo, porm, o pai procurava concili- lo.

    -Mas ele respondeu a seu pai. H tantos anos que te sirvo sem jamais transgrediruma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar- me com os meusamigos ;

    -vindo, porm, esse teu lho, que desperdiou os teus bens com meretrizes , tumandaste matar para ele o novilho cevado

    -Ento, lhe respondeu o pai : Meu lho, tu sempre ests comigo ; tudo o que meu teu.

    -Entretanto, era preciso que nos regozijssemos e nos alegrssemos, porque esseteu irmo estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado .

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    E POR FALAR EM LADRO DE GALINHAS...

    Pegaram o cara em agrante roubando galinhas de um galinheiro e levarampara a delegacia- Que vida mansa, heim, vagabundo ? Roubando galinha para ter o quecomer sem precisar trabalhar. Vai para cadeia!

    - No era para mim no. Era para vender.

    - Pior. Venda de artigo roubado. Concorrncia desleal com o comrcio estabelecido.Sem-vergonha!

    - Mas eu vendia mais caro. - Mais caro?

    - Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas no.E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovosmarrons.

    - Mas eram as mesmas galinhas, safado.

    - Os ovos das minhas eu pintava.

    - Que grande pilantra...

    Mas j havia um certo respeito no tom do delegado.

    - Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...

    - J me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a no espalhar mais boatosobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preos dos produtos delepara carem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiro a entrar nonosso esquema. Formamos um oligoplio.

    Ou, no caso, um ovigoplio.

    - E o que voc faz com o lucro do seu negcio?

    - Especulo com dlar. Invisto alguma coisa no trco de drogas. Comprei algunsdeputados. Dois ou trs ministros. Consegui exclusividade no

    suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentao do governo esuperfaturo os preos.

    O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeiraestava confortvel, se ele no queria uma almofada. Depois perguntou:

    - Doutor, no me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor no est milionrio?

    - Trilionrio. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenhodepositado ilegalmente no exterior.

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    - E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas? - s vezes. Sabe como .

    - No sei no, excelncia. Me explique.

    - que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa.

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    Do risco, entende? Daquela sensao de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida,da iminncia do castigo. S roubando galinhas eu me sinto

    realmente um ladro, e isso excitante. Como agora. Fui preso,nalmente. Voupara a cadeia. uma experincia nova.

    - O que e isso, excelncia? O senhor no vai ser preso no. - Mas fui pego em agrantepulando a cerca do galinheiro! - Sim. Mas primrio, e com esses antecedentes...

    Lus Fernando Verssimo Os Dons das Fadas

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    Realizava-se a grande reunio das fadas, a m de procederem partilha dosdons entre todos os recm-nascidos das ltimas vinte e quatro horas.Muito diferiam umas das outras, todas essas antigas e fantasistas Irmsdo Destino, todas essas Mes estranhas da alegria e da dor: umas tinham aparnciasombria e rebarbativa, outras a tinham folgaz e maliciosa; umas eram jovens, esempre o haviam sido, outras eram velhas, e tambm sempre o haviam sido.

    Todos os pais que acreditam nas Fadas haviam comparecido, cada qual tra- zendo

    nos braos o seu recm-nascido.Os Dons, as Faculdades, os Bons Acasos, as Circunstncias Invencveis, estavam

    amontoados ao lado do Tribunal, como os prmios sobre o tablado, em dia dedistribuio de prmios. O que havia de particular no caso que os Dons no erama recompensa de um esforo, mas pelo contrrio, uma graa concedida quele queainda no vivera, uma graa capaz de determinar seu destino e de se tornar tanto aorigem de seu desdita, quanto de sua felici- dade.

    As pobres Fadas estavam sobrecarregadas de trabalho, porque era grande o nmerodos solicitantes, e o mundo intermedirio colocado entre o homem e Deus estsubmetido, tanto quanto ns, lei terrvel do Tempo e de sua in- nita posteridade,os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.

    Na realidade, elas estavam to atordoadas quanto ministros em dia de audincia, ouempregados do Estabelecimento de Penhores, quando um dia de festa nacional autorizaas restituies sem pagamento. Acho mesmo que olhavam, de vez em quando, para oponteiro do relgio, com impacincia igual de juizes humanos que, por estarem emfuno desde cedo, no po- dem deixar de sonhar com o jantar, a famlia e os queridos

    chinelos. Se, na justia sobrenatural, h um pouco de precipitao e de acaso, nonos ad- miremos que o mesmo acontea s vezes na justia humana. Ns mesmosseramos, em tal caso, juizes injustos.

    Dessarte foram cometidas, nesse dia, algumas tolices - que poderamos estra- nhar,se a prudncia, e no a fantasia, fosse a caracterstica peculiar, eterna, das Fadas.

    Assim o poder de atrair magneticamente a fortuna foi concedido ao nico herdeirode uma famlia riqussima que, no possuindo noo alguma de caridade, comotambm nenhuma cobia dos bens visveis da terra, devia encontrar-se, mais tarde,grandemente atrapalhado com seus milhes.

    Assim foram concedidos o amor ao Belo e a Fora Potica ao lho de um tristepobreto, um cavoqueiro absolutamente incapaz quer de favorecer os dotes, quer deprover s necessidades de sua lamentvel prognie.

    Esquecia-me de lhes dizer que a distribuio, em tais casos solenes, no comportaapelao, e que nenhum dom pode ser recusado...

    Todas as Fadas j se estavam levantando, julgando concluda sua tarefa, porqueno restava mais presente algum, municncia alguma para atirar a toda aquelanulidade humana, quando um bom homem, um pobre e modes- to negociante, creioeu, ergueu-se e, agarrando por sua veste de vapores policrmicos a Fada que lhecava mais prxima, exclamou:

    - Oh! Senhora! est-nos esquecendo! Ainda falta meu pequeno! No quero carsem receber coisa alguma!

    A Fada deveria car perplexa, porque no restava mais nada.

    Todavia, lembrou-se ela a tempo de uma lei bastante conhecida, embora raramenteaplicada, no mundo sobrenatural, habitado pelas deidades etreas, amigas do homem,

    e muitas vezes foradas a se adaptarem s suas paixes, tais como as Fadas, osGnomos, as Salamandras, as Sldes, os Silfos, os Nixos, os Ondinos e as Ondinas, -quero referir-me lei que concede s Fa- das, em semelhante caso, isto , no casode os presentes se acabarem, a fac- uldade de concederem mais um, suplementar eexcepcional, sob condio, todavia, de ela possuir imaginao bastante para cri-loimediatamente.

    Por isso a boa Fada respondeu, com uma segurana digna de sua situao: - Dou ateu lho... dou-lhe... o Dom de agradar!

    - Mas agradar como? agradar? por que agradar? - perguntou teimosamente opequeno comerciante, que sem dvida era um desses raciocinadores to comuns,incapazes de se elevarem at a lgica do absurdo.

    - Porque sim! porque sim! - replicou a Fada, colrica, voltando-lhe as costas; e,reunindo-se ao cortejo de suas companheiras, dizia-lhes:

    - Que acham desse francesinho vaidoso que tudo quer compreender e que, havendoobtido para o lho o melhor quinho, ainda ousa interrogar e discutir o indiscutvel?

    Charles Bauidelaire

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    Formosa Vassilissa

    H muito, muito tempo atrs, num reino distante, vivia um rico mercador coma mulher e a nica lha: Vassilissa. A beleza da menina era deslumbrante,mas ela cativava, igualmente, pela meiguice e delicadeza. Ao completaroito anos, sua me adoeceu e, sentindo que no viveria por muito tempo, presenteouVassilissa com uma bonequinha mgica. Filha, cuide muito bem dela e ela sempre aproteger. Nunca, jamais, fale dela a ningum. Este ser nosso segredo. Promete?

    Ahe tem outra coisa: sempre que voc sentir-se em perigo, d-lhe de comer ede beber. Alimentada ela lhe dar sempre bons conselhos e a ajudar em todas as

    diculdades.

    Passado algum tempo a me de Vassilissa faleceu e seu pai, preocupado por noter com quem deix-la, sempre que viajava, casou-se com uma viva que tinha duaslhas.

    Ele pensou que assim, Vassilissa caria amparada e protegida. Ledo engano! Amadrasta e suas lhas odiaram a menina. Tinham inveja de sua beleza e meiguice e,toda vez que o pai viajava, a madrasta inventava mil trabalhos, na casa, para ocup-la.

    No importava quanto, nem qual fosse o servio. No tempo certo, tudo estavaconcludo. Como isso era possvel?

    Simples! Quando cava sozinha, Vassilissa pegava sua bonequinha mgica e aalimentava:

    Coma tudo, meu amor, e me ajude no que for!

    A boneca ouvia Vassilissa, dava-lhe conselhos e, enquanto ela dormia, o trabalhose fazia!

    O tempo passou, e as meninas cresceram. Estava na hora de arrumar um bompartido.

    Muitos pretendentes apareceram, mas todos tinham olhos apenas para a maisjovem: Vassilissa! A madrasta, furiosa, decretou: Voc s se casar depois de suasirms, e se eu permitir! Ah! O dio e a inveja consumiam as trs malvadas!

    Certo dia, quando seu pai precisou partir para mais uma longa viagem de negcios,a madrasta exultou de felicidade! Era a oportunidade pela qual aguardara por longotempo! Com o pretexto de mudar de ares, desfez-se da casa em que moravam emudou-se com as lhas e a enteada para outra, que cava prxima oresta. Florestaonde morava a temida Baba Yag! A bruxa simplesmente devorava qualquer pessoaque se aproximasse de sua cabana ( isb) E que cabana! Ela foi construda em meio

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    a uma clareira e se apoiava sobre quatro enormes ps de galinha. Seu trinco era umabocarra cheia de dentes aados, que arrancavam os dedos de quem ousasse toc-loE a cerca era feita de longos ossos humanos encimados por caveiras de enormesolhos esbugalhados, que noite brilhavam com uma luz vermelha, assustadora, naescurido

    A madrasta, todos os dias, inventava alguma tarefa que Vassilissa precisava fazerna oresta, na esperana de que a Baba Yag logo a encontrasse e a comesse! Paraespanto das trs malvadas, no entanto, Vassilissa sempre voltava s e salva. Assim quesaia de casa, ela tirava a bonequinha, bem guardada no bolso do avental, e lhe davade comer. A boneca, ento, lhe indicava caminhos pelos quais sempre contornava aisb da temida bruxa. Morrendo de raiva, a madrasta pensou e pensou e, certa noite,teve uma idia. Apagou todos os lampies da casa e ordenou enteada que fossepedir fogo, l na cabana da Baba Yag, que era a nica que poderia ceder-lhe o lume.

    Vassilissa, sem ter como escapar da tarefa, pegou sua trouxinha de comida, e, tologo afastou-se da casa, comeou a alimentar sua boneca:

    Coma tudo, minha querida, e cuide da minha vida!

    No tenha medo, Vassilissa! V casa de Baba Yag, mas nunca se separe demim! Eu no deixarei que nada de mal lhe acontea!

    E Vassilissa entrou na oresta. Andou, andou e andou na escurido, at que, llonge, viu uma luz branca, muito brilhante, se aproximando: Era um cavaleiro branco,todo vestido de branco, montado sobre um majestoso cavalo branco, que passou sua frente galope. E comeou a clarear!

    Vassilissa caminhou mais algum tempo, quando viu uma luz vermelha seaproximando. Era outro cavaleiro, todo vermelho, de cabelos cor de fogo, vestido comuma riqussima armadura vermelha, sobre um cavalo vermelho, que passou suafrente, galopando. E o sol surgiu, com todo o seu brilho, iluminando a oresta.

    Vassilissa estava cansada de tanto andarLogo a noite cairia de novo sobre aoresta, e nada de chegar ao seu destino!

    A pobre menina, cansada, tremia dentro de seu vestidinho leve, quando um terceirocavaleiro surgiu por entre as rvores. Ele era todo negro, vestido de negro, montandoum maravilhoso corcel negro, que, ao passar, trouxe consigo a noite sem estrelas

    E ento ela viu: numa clareira que se abria sua frente, de repente acenderam-sedezenas de luzes vermelhas que brilhavam assustadoramente. Ela apurou a vista econseguiu enxergar, atrs da cerca, nalmente, a isb de Baba Yag! EVRUUUMMMcom um barulho ensurdecedor, surgiu a prpria bruxa, montada em seu pilo voador,bramindo uma vassoura!

    Quem voc, criatura, que ousa invadir a minha propriedade? gritou a bruxacom sua voz estridente, cuspindo as palavras com sua boca, onde s se via um denteenorme, enquanto falava.O fedor que ela emitia era insuportvel! Baba Yag tinhaum nariz enorme, com uma verruga maior ainda, que quase alcanava o queixo. Seus

    cabelos desgrenhados e cheios de gravetos estavam protegidos por um chapelo negropontudo, e sua mos de dedos nos e compridos, terminavam em unhas horrveis quemais pareciam garras!

    Sou Vassilissa, vovozinha. Eu no ia entrar em sua isb sem a Senhora! Vimaqui a mando de minha madrasta, pedir-lhe, por favor, que nos empreste um poucode fogo!

    E porque eu iria emprestar-lhe fogo? Heim? Me diga, me responda!, grunhiu abruxa, chegando to perto de Vassilissa com seus olhos esbugalhados, que a meninaquase caiu no cho! Voc quer fogo? Quer fogo? Pois antes ter que car comigo oquanto eu quiser e fazer todo o servio que eu mandar! E j vou-lhe avisandose euno car satisfeitahahahavoc dar um belo almoo!

    E assim, a nossa Vassilissa cou morando e trabalhando na casa de Baba Yag! E,mais uma vez sua bonequinha encantada veio em seu auxlio. Todo o servio que abruxa ordenava, ela cumpria em tempo e sem reclamar!

    Por mais que a bruxa se esforasse, no conseguia entender como isso era possvel.Ningum, mas ninguenzinho at ento, conseguira fazer nem a metade das tarefas, eestava, h muito tempo, dentro de seu barrigo!

    Baba Yag cumpria diariamente a mesma rotina. Acordava sempre de madrugada.Assim que o Cavaleiro Branco passava, ela saa montada em seu pilo. Pelo caminhocruzava com o Cavaleiro Vermelho, que trazia o sol, e regressava depois que o CavaleiroNegro trouxesse a noite. Voltava e no tinha nada do que reclamar. A sua isb estavaarrumada, o ptio varrido, o fogo aceso, a mesa posta e o jantar, sempre delicioso,prontinho no panelo.

    Vassilissa, j estava at comeando a perder o medo da bruxa horrvel, tanto que,uma bela noite, durante o jantar, pediu licena para lhe fazer uma pergunta:

    Vovozinhaquem so os cavaleiros que sempre passam galopando por aqui? Umbranco, um vermelho e outro negro?

    Eles so os meus vassalos; o Cavaleiro Branco o meu dia claro! O Vermelho o

    meu Sol radiante, e o Negro a minha noite escura! Eles esto a meu servio!E agora a minha vez de lhe fazer perguntas: Diga-me, como voc consegue dar

    conta de todo o servio que lhe dou?

    Ah, vovozinhaminha mame que j partiu que me ajuda. Eu sou uma lhaabenoada!

    Quando Vassilissa completou a frase, Baba Yag pulou da cadeira, berrando: Fora!Ponha-se j para fora daqui! Gente abenoada me faz um mal danado! Fora, fora!

    Enquanto berrava, a bruxa foi empurrando Vassilissa para fora de sua cabana.Arrancou da cerca uma caveira de olhos acesos, espetou-a num pedao de pau edisse. A est seu pagamento, agora suma de minha vista e no se atreva a voltar!

    Assim que se viu livre, Vassilissa comeou a correr, a correr, a correr com a caveira

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    iluminando seu caminho. Ao amanhecer, os olhos da caveira se apagaram e tornarama acender ao cair da noite. Na manh do segundo dia, Vassilissa prosseguiu correndoe s avistou a casa da madrasta ao anoitecer. Novamente os olhos da caveira seacenderam, e, como a casa estava s escuras, Vassilissa apressou-se em entregar achama madrasta.

    Qual no foi a sur