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4 CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005 A Química Inorgânica na Química Medicinal Introdução M uitos metais têm um papel importante nos sistemas vi- vos, uma vez que se ligam e interagem com moléculas biológicas tais como proteínas e o ADN, e apresentam afinidade por moléculas cruciais para a vida, como a de oxigênio, O 2 , ou a de óxido nítrico, NO. Sendo assim, a evo- lução natural incor- porou os metais às funções essenciais à vida. Sabemos que o transporte de oxigê- nio e de elétrons é feito respectivamente pelo ferro da he- moglobina e dos citocromos, que o zinco exerce função estrutural impor- tante, e que minerais contendo cálcio são constituintes dos ossos. Se a natureza usa os metais em sistemas biológicos, surge a pergun- ta: seria possível empregá-los como medicamentos? Ainda que a elucidação dos meca- nismos de ação dos metais no orga- nismo seja relativamente recente, seu uso em Medicina vem sendo pratica- do há aproximadamente 5000 anos. De fato, os egípcios usavam cobre para esterilizar a água 3000 anos an- tes de Cristo, e o ouro era empregado na fabricação de medicamentos na Arábia e na China há 3500 anos, mais em razão da natureza preciosa do metal do que de suas propriedades medicinais, pois se acreditava que um metal nobre deveria trazer benefícios ao organismo. Medicamentos con- tendo ferro eram usados no Egito 1500 anos antes de Cristo e já no século dezesseis o médico suíço Theophrastus Paracelsus (1493- 1541, Figura 1) de- senvolvia e usava medicamentos à base de mercúrio. No entanto, somente nos últimos cem anos as propriedades medicinais de compostos inorgânicos começa- ram a ser investigadas de forma racio- nal, com o emprego de compostos de ouro no tratamento da tuberculose, dos antimoniais para o tratamento de leishmaniose e de compostos à base de arsênio para o tratamento da sífilis. A Química Inorgânica Medicinal em sua forma atual teve suas origens nos trabalhos de Paul Ehrlich, prêmio Nobel em Medicina e Fisiologia em 1908 (Figura 2) e Alfred Werner, prêmio Nobel de Química em 1913, o primeiro a ser conferido a um quí- mico inorgânico (Figura 3). Ehrlich foi o fundador da quimioterapia e intro- duziu as primeiras idéias sobre rela- ções estrutura-atividade e o conceito Heloisa Beraldo Sabemos que a Química Orgânica tem feito inúmeras contribuições para a Medicina, através da descoberta de princípios ativos, do planejamento e da síntese de fármacos. No entanto, a Química Inorgânica tem igualmente papel importante, tanto na clínica quanto na pesquisa e no desenvolvimento de novos medicamentos, como veremos neste Caderno Temático. Mostramos aqui algumas possibilidades de intervenção da Química Inorgânica na Química Medicinal, através de exemplos de compostos inorgânicos em uso clínico ou que estão sob investigação, bem como de compostos orgânicos cujo mecanismo de ação envolve a interação com um metal. Química Medicinal, Química Inorgânica Todas as substâncias são venenos. O que diferencia um medicamento de um veneno é a dose Theophrastus Paracelsus (1493-1541) Figura 1: Theophrastus Paracelsus (1493- 1541), que usava medicamentos à base de mercúrio (cedida por Edgar Fahs Smith Collection, University of Pennsylvania Li- brary).

Contribuições da Química Inorgânica para a Química Medicinal

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CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005A Química Inorgânica na Química Medicinal

Introdução

Muitos metais têm um papelimportante nos sistemas vi-vos, uma vez que se ligam e

interagem com moléculas biológicastais como proteínas e o ADN, eapresentam afinidade por moléculascruciais para a vida, como a deoxigênio, O2, ou a deóxido nítrico, NO.Sendo assim, a evo-lução natural incor-porou os metais àsfunções essenciais àvida. Sabemos que otransporte de oxigê-nio e de elétrons éfeito respectivamente pelo ferro da he-moglobina e dos citocromos, que ozinco exerce função estrutural impor-tante, e que minerais contendo cálciosão constituintes dos ossos.

Se a natureza usa os metais emsistemas biológicos, surge a pergun-ta: seria possível empregá-los comomedicamentos?

Ainda que a elucidação dos meca-nismos de ação dos metais no orga-nismo seja relativamente recente, seuuso em Medicina vem sendo pratica-do há aproximadamente 5000 anos.De fato, os egípcios usavam cobre

para esterilizar a água 3000 anos an-tes de Cristo, e o ouro era empregadona fabricação de medicamentos naArábia e na China há 3500 anos, maisem razão da natureza preciosa dometal do que de suas propriedadesmedicinais, pois se acreditava que ummetal nobre deveria trazer benefíciosao organismo. Medicamentos con-

tendo ferro eramusados no Egito1500 anos antes deCristo e já no séculodezesseis o médicosuíço TheophrastusParacelsus (1493-1541, Figura 1) de-senvolvia e usava

medicamentos à base de mercúrio.No entanto, somente nos últimos

cem anos as propriedades medicinaisde compostos inorgânicos começa-ram a ser investigadas de forma racio-nal, com o emprego de compostosde ouro no tratamento da tuberculose,dos antimoniais para o tratamento deleishmaniose e de compostos à basede arsênio para o tratamento da sífilis.

A Química Inorgânica Medicinalem sua forma atual teve suas origensnos trabalhos de Paul Ehrlich, prêmioNobel em Medicina e Fisiologia em1908 (Figura 2) e Alfred Werner,

prêmio Nobel de Química em 1913,o primeiro a ser conferido a um quí-mico inorgânico (Figura 3). Ehrlich foio fundador da quimioterapia e intro-duziu as primeiras idéias sobre rela-ções estrutura-atividade e o conceito

Heloisa Beraldo

Sabemos que a Química Orgânica tem feito inúmeras contribuições para a Medicina, através da descoberta deprincípios ativos, do planejamento e da síntese de fármacos. No entanto, a Química Inorgânica tem igualmente papelimportante, tanto na clínica quanto na pesquisa e no desenvolvimento de novos medicamentos, como veremosneste Caderno Temático. Mostramos aqui algumas possibilidades de intervenção da Química Inorgânica na QuímicaMedicinal, através de exemplos de compostos inorgânicos em uso clínico ou que estão sob investigação, bem comode compostos orgânicos cujo mecanismo de ação envolve a interação com um metal.

Química Medicinal, Química Inorgânica

Todas as substâncias sãovenenos. O que diferenciaum medicamento de um

veneno é a doseTheophrastus

Paracelsus(1493-1541)

Figura 1: Theophrastus Paracelsus (1493-1541), que usava medicamentos à basede mercúrio (cedida por Edgar Fahs SmithCollection, University of Pennsylvania Li-brary).

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CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005A Química Inorgânica na Química Medicinal

de índice terapêutico. Fez ainda usode complexos metálicos, em especialos de arsênio, na preparação dedrogas para o tratamento da sífilis. Éinteressante notar que os primeirosestudos relacionando a estrutura àatividade foram feitos por Ehrlich paraesses compostos inorgânicos dearsênio. Werner é considerado o paida Química de Coordenação pelodesenvolvimento de sua teoria paraexplicar a estrutura e a ligação quími-ca nos complexos metálicos.

A importância da descoberta daspropriedades antitumorais do“cisplatina”

No entanto, apesar da grande im-portância dos trabalhos de Ehrlich eWerner, a Química Medicinal dedicava-se principalmente ao estudo de com-postos orgânicos e produtos naturaisaté a descoberta, feita pelo físicoBarnett Rosemberg (Figura 4) em 1965,das propriedades antitumorais docis[(diaminodicloro)platina(II)],cis[Pt(NH3)2Cl2], o chamado “cispla-tina”. O composto, que já era conhe-cido desde o final do século XIX, é umarquétipo de droga inorgânica, poisnão contém um só átomo de carbono.As investigações sobre o cisplatinaconstituem talvez o maior sucesso daQuímica Inorgânica Medicinal, uma vezque a partir do uso clínico do compos-to, em 1978, o número de mortes dehomens por tumor de testículo diminuiucerca de 80%.

Desde então, houve um grande in-teresse por complexos metálicos comopossíveis agentes terapêuticos, einiciou-se uma nova era de busca porcompostos metálicos com proprie-dades farmacológicas, investigação demecanismos de ação e tentativas demelhorar a atividade. O interesse nasaplicações da Química Inorgânica emMedicina continua a crescer, com aprocura por novos alvos e novas opor-tunidades de intervenção da Químicade Coordenação na Química Medici-nal.

Aplicações da Química Inorgânicaem Medicina

Nesse sentido, podemos subdivi-dir as aplicações da Química Inorgâ-nica em Medicina em duas catego-rias: a dos compostos orgânicos queagem através da coordenação a me-tais livres ou ligados a proteínas den-tro do organismo, e a das drogas oucompostos usados em diagnósticos,que já contêm metais, como os anti-tumorais de platina, os antimoniaisusados contra leishmania, antiartrí-ticos contendo ouro ou compostosmetálicos usados em diagnósticopara detecção e imagem.

Compostos orgânicos podem serusados como agentes quelantes para

o tratamento de excesso de íonsmetálicos, seja devido à intoxicaçãopor metais exógenos (como porexemplo na intoxicação por chumbo),seja por defeitos metabólicos quelevam ao excesso de metais endóge-nos, como na doença de Wilson (ex-cesso de cobre) ou na talassemia(excesso de ferro). O tratamento con-siste na administração de agentesquelantes orgânicos, os quais devemcumprir requisitos adequados deespecificidade, farmacocinética emetabolismo.

Metaloproteínas constituem alvosinteressantes para drogas orgânicas,que podem coordenar-se aos metaisno sítio ativo, inibindo a ação enzimá-tica. Uma estratégia no desenho denovos fármacos é o desenvolvimentode análogos do substrato, que se li-gam competitivamente ao metal nosítio ativo. Essa estratégia tem sidousada no desenho de drogas para otratamento da AIDS e do câncer, emque se procura inibir sítios de meta-loproteínas contendo zinco. Um outroexemplo seria o de drogas usadascomo agentes anti-hipertensivos, eque agem coordenando-se ao zincopresente na estrutura da enzima con-versora da angiotensina (ECA), envol-vida na regulação da pressão arterial.

A coordenação aos cátions me-tálicos pode alterar significativamenteo perfil fisiológico das drogas. De fato,a lipofilia modifica-se pela combi-nação metal-droga, o complexo pode

Figura 2: Paul Ehrlich (1854-1915), prêmioNobel de Medicina e Fisiologia, 1908 (ce-dida por The Nobel Foundation).

Figura 3: Alfred Werner (1866-1919), prê-mio Nobel de Química, 1913 (cedida porThe Nobel Foundation).

Figura 4: Barnett Rosenberg (1926-) (ce-dida por Technion - Israel Institute of Tech-nology).

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ser mais ativo do que o ligante livre,alguns efeitos colaterais podem dimi-nuir pela complexação, o mecanismode ação pode envolver ligação a ummetal in vivo, como no caso da liga-ção aos sítios metálicos de enzimas,e o complexo metálico pode ser umveículo para a ativação do ligantecomo agente citotóxico. Finalmente,a coordenação pode levar a uma sig-nificativa redução da resistênciacelular, já que os mecanismos deresistência que reconhecem um com-posto orgânico podem não reconhe-cê-lo quando complexado a umcátion metálico.

Exemplos interessantes de intera-ções metal-droga podem ser citados,como a captação celular de comple-xos de cobre de tiossemicarbazonas,que é facilitada com relação à dos li-gantes livres, em razão de um aumen-to da lipofilia, ou o fato de que com-plexos de cobre e zinco de váriosligantes podem exibir atividade simi-lar à das enzimas superóxido dismu-tases, importantes na remoção de ra-dicais livres superóxido, que sãoagentes tóxicos mediadores de infla-mação, câncer e AIDS.

O desenvolvimento da QuímicaInorgânica Medicinal: uma nova áreada Química

Como reflexo do desenvolvimentodessa nova área da Química Inorgâ-nica, em 1994 apareceu o primeironúmero da revista Metal-Based Drugs,que lista, nas suas áreas de interesse,estudos de drogas antitumorais à basede metais, como os análogos do cis-platina e outros complexos, agentesantimicrobianos, antiartríticos (comocomplexos de ouro), anti-hipertensivos,(como complexos de ferro e rutênio),antivirais, suplementos minerais, com-postos de bismuto ativos contra a bac-téria Helycobacter pylori, causadora daúlcera, e antiácidos (por exemplo, Al,Na, Mg, Ca).

A conferência intitulada “Metalions in Medicine: targets, diagnosticand therapeutics” (Íons metálicos emMedicina: alvos, diagnóstico a tera-

pêutica), teve lugar no campus do Ins-tituto Nacional de Saúde (National Ins-titute of Health, NIH), nos EstadosUnidos, em junho de 2002. Dela parti-ciparam pesquisadores e represen-tantes das indústrias farmacêuticas.O foco da conferência foi a pesquisabásica, mas com uma visão clara daspotenciais aplicações dos metais emMedicina.

Entre as várias questões aponta-das como essenciais durante a confe-rência, pode-se citar o desafio decontrolar a reatividade do metal paramelhorar a especificidade com redu-ção de toxidez. Contudo, esse desafionão é exclusivo aos compostoscontendo metais, uma vez que com-postos orgânicos devem fundamen-talmente cumprir com os mesmosrequisitos. A maior preocupação porparte das indústrias farmacêuticascom relação a drogas contendo me-tais pareceria ser a da toxidez, princi-palmente a de metais não-essenciais.No entanto, a dicotomia essencialversus tóxico vem sendo substituídapelo princípio dose-resposta, já quemetais essenciais podem tambémcausar efeitos deletérios, quando emaltas doses. De fato, Paracelsus jáhavia percebido, no século dezesseis,que “todas as substâncias são vene-nos; o que diferencia um medica-mento de um veneno é a dose”.

A Química Inorgânica Medicinal éuma área multidisciplinar, que com-bina Química Orgânica e Inorgânica,Farmacologia e Bioquímica. Comoárea recente, já apresenta muitas apli-cações mas poucos princípios teóri-cos que, felizmente, têm aumentadonos últimos tempos, tais como o deque a dose diferencia os efeitos bené-ficos dos indesejáveis, o de que osefeitos se devem não apenas ao me-tal, mas à entidade metal-ligante e ode que a biodisponibilidade de umcomposto contendo um metal é o quedetermina seu impacto bioquímico.

Contribuições da Química Inorgâ-nica à Química Medicinal são muitas,uma vez que a Química Inorgânicapode aproveitar-se, para o desenvolvi-

Abstract: It is well known that Organic Chemistry has made many contributions to Medicine through the discovery of active principles and by means of the design and syntheses of drugs. However,the interest in uses and applications of Inorganic Chemistry in Medicine continues to expand, both in clinically used compounds and in Inorganic Chemistry helping the development of newpharmaceuticals, as discussed in this thematic issue.Keywords: Medicinal Chemistry, Inorganic Chemistry

Referências bibliográficasFARRELL, N. Biomedical uses of

Inorganic Chemistry. An overview.Coordination Chemistry Reviews, v.232, p. 1-4, 2002.

ORVIG, C. e ABRAMS, M.J. MedicinalInorganic Chemistry: Introduction.Chemical Reviews, v. 9, n. 9, p. 2201-2203, 1999.

THOMPSON, K.H. e ORVIG, C. Boonand bane of metal íons in Medicine.Science, v. 300, p. 936-939, 2003.

Para saber maisChemical Reviews, Medicinal Inor-

ganic Chemistry, v. 9, n. 9, 1999, umcaderno temático dedicado à QuímicaInorgânica Medicinal.

mento de novas drogas e ampliaçãodo arsenal terapêutico, de proprieda-des que são exclusivas dos íons metá-licos, tais como suas característicaseletrônicas e nucleares, seus múltiplosestados de oxidação e seu compor-tamento em campos magnéticos.

Procuramos mostrar neste artigoa grande importância da QuímicaInorgânica tanto em Medicina quantoem pesquisas relacionadas à Quími-ca Medicinal. Muitos compostos ditosinorgânicos estão atualmente em usoclínico: antitumorais de platina, anti-moniais para tratamento de leishma-nia, compostos de bismuto para otratamento de distúrbios gástricos, a“auranofina”, um composto de ourousado contra a artrite, o “nitroprus-siato”, um complexo de ferro em usonas emergências hipertensivas, euma variedade de compostos inorgâ-nicos usados diariamente em todo omundo em diagnóstico e comoagentes de contraste. Um grande nú-mero de trabalhos vêm sendo realiza-dos sobre assuntos relacionados àQuímica Inorgânica Medicinal. EsteCaderno Temático aborda algunsaspectos dessa área de crescenteimportância.

Heloísa Beraldo ([email protected]), doutora pelaUniversité Paris VI, França, é professora titular doDepartamento de Química da Universidade Federalde Minas Gerais e trabalha na área de QuímicaInorgânica Medicinal.