50
ALEXANDRE CARVALHO DE ARAÚJO CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR MILITAR Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: Cel Juaris Weiss Gonçalves Rio de Janeiro 2013

controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

  • Upload
    voque

  • View
    224

  • Download
    4

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

ALEXANDRE CARVALHO DE ARAÚJO

CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR MILITAR

Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: Cel Juaris Weiss Gonçalves

Rio de Janeiro 2013

Page 2: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

C2013 ESG

Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________

Assinatura do autor

Biblioteca General Cordeiro de Farias

Araújo, Alexandre Carvalho de. Controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar /

Alexandre Carvalho de Araújo. - Rio de Janeiro : ESG, 2013.

48 f.

Orientador: Cel Juaris Weiss Gonçalves. Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao

Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2013.

1. Disciplina Militar. 2. Direito Militar. 3. Administração Pública. 4.

Habeas Corpus. I. Título

Page 3: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

A minha família pelos ensinamentos,

incentivo e compreensão.

Page 4: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

AGRADECIMENTOS

Ao Coronel Juaris Weiss Gonçalves por ter me orientado na elaboração

deste trabalho.

Ao Corpo Permanente da ESG pelos ensinamentos ministrados ao longo do

CAEPE 2013.

Page 5: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

RESUMO

Esta monografia aborda o controle jurisdicional do ato administrativo

disciplinar militar como mecanismo fundamental do Estado Democrático de Direito

para coibir possíveis arbitrariedades que a autoridade militar possa cometer no

exercício do poder disciplinar. O objetivo deste estudo é, por meio da análise da

legislação e do entendimento doutrinário e jurisprudencial, encontrar a limitação do

controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar, particularmente quando

o Poder Judiciário é instado a se manifestar em sede de habeas corpus. A

metodologia adotada comportou uma pesquisa realizada em legislação, bibliografia,

tais como livros e artigos doutrinários, e documentos, tais como decisões retiradas

de repositórios jurisprudenciais, sejam impressos ou disponibilizados na rede

mundial (internet). O campo de estudo delimitou-se ao processo disciplinar militar

positivado no Regulamento Disciplinar do Exército. Discorre sobre aspectos que

legitimem o controle jurisdicional do ato administrativo (Estado Democrático de

Direito, separação dos Poderes, conceitos e princípios da Administração Pública,

supremacia do interesse público versus legalidade, inafastabilidade do Poder

Judiciário) com intuito de mostrar os fundamentos do indigitado controle. Discorre

também sobre o processo preconizado pelo Regulamento Disciplinar do Exército e

sobre o habeas corpus. Por último, analisa a plausibilidade de cabimento de habeas

corpus em relação a punições disciplinares militares e a consequente limitação do

controle jurisdicional, bem como a competência para processar e julgar. Os

principais tópicos são: liberdade individual de locomoção, hierarquia e disciplina

militares, razoabilidade na dosimetria da pena, mérito da decisão administrativa

versus controle jurisdicional. A conclusão revela a limitação do controle jurisdicional

do ato administrativo disciplinar militar, particularmente quando o Poder Judiciário é

instado a se manifestar em sede de habeas corpus, bem como são oferecidas

recomendações e sugestões para aprimoramento do processo disciplinar militar.

Palavras chave: Controle jurisdicional. Processo disciplinar militar. Habeas Corpus.

Page 6: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

ABSTRACT

This monograph deals with judicial review of military disciplinary administrative act as

fundamental mechanism of the Democratic State of Law to curb possible

arbitrariness that the military authority may commit in the exercise of disciplinary

power. The objective of this study is, through the analysis of relevant legislation,

doctrine and understanding of jurisprudence to date, to find the limits of judicial

review of military disciplinary administrative act, particularly when the Judiciary is

urged to decide in case of Habeas Corpus Action. The adopted methodology

employed a research into legislation, bibliography, such as books and doctrinal

articles, and documents, such as judgments found in repositories of jurisprudence,

whether printed or made available on the worldwide web (internet). The field of study

was delimited to the military disciplinary procedures established in the Disciplinary

Regulations of the Army. This study discusses aspects that legitimize the judicial

review of administrative act (Democratic State of Law, separation of Powers,

concepts and principles of Public Administration, supremacy of public interest versus

legality, non-obviation of Judiciary jurisdiction) in order to show the basics of

mentioned control. Also it elaborates on the procedures established in the

Disciplinary Regulations for the Army and it covers habeas corpus. Finally, it

examines the plausibility of acceptance of habeas corpus in relation to military

disciplinary punishments and consequent limits of judicial review, as well as the

competence to prosecute and judge. The main topics are: individual freedom of

movement, military hierarchy and discipline, reasonableness in dosimetry of the

penalties, the merits of administrative decision versus judicial review. The conclusion

reveals the limits of judicial review of military disciplinary administrative act,

particularly when the Judiciary is urged to decide in case of Habeas Corpus Action,

as well as presents recommendations and suggestions for improvement of the

military disciplinary procedures.

Keywords: Judicial review. Military disciplinary procedures. Habeas Corpus.

Page 7: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 6

2 CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO ...................... 9

2.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...................................................... 9

2.2 SEPARAÇÃO DOS PODERES .................................................................... 10

2.3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ........................................................................ 11

2.4 ATO ADMINISTRATIVO ............................................................................... 11

2.5 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E LEGALIDADE ....................... 12

2.6 JURISDIÇÃO ÚNICA .................................................................................... 14

2.7 LIMITAÇÕES AO CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO

ADMINISTRATIVO ....................................................................................... 15

2.7.1 Conceito jurídico indeterminado ............................................................... 17

2.7.2 Princípios .................................................................................................... 19

3 PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR .......................................................... 21

3.1 HIERARQUIA E DISICPLINA ....................................................................... 21

3.2 DESCRIÇÃO DO PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR .............................. 21

4 HABEAS CORPUS ...................................................................................... 33

4.1 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL ............................................................ 33

4.2 FUNDAMENTO LEGAL ................................................................................ 34

4.3 PROCESSO E PROCEDIMENTO ................................................................ 34

4.4 EXAME DE PROVA ...................................................................................... 35

4.5 CABIMENTO DE HABEAS CORPUS EM RELAÇÃO A

PUNIÇÕES DISCIPLINARES MILITARES ................................................... 37

4.5.1 Competência para processar e julgar habeas corpus em

relação a punições disciplinares militares ............................................... 42

5 CONCLUSÃO. .............................................................................................. 44

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 46

Page 8: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

6

1 INTRODUÇÃO

No Estado Democrático de Direito a existência de um controle realizado pelo

Poder Judiciário sobre os atos emanados da Administração Pública é fundamental

para coibir possíveis arbitrariedades que a autoridade pública possa cometer no

exercício dos poderes administrativos.

Destarte, ao emanar atos administrativos disciplinares, assim como em

qualquer outra atividade administrativa, a autoridade pública deve se pautar pela

legalidade e pelos princípios da Administração Pública, sob pena de o ato ser

anulado pelo Poder Judiciário, segundo reza o ordenamento jurídico brasileiro.

Por outro lado, a independência e a harmonia dos Poderes, previstos na

Constituição Federal, exigem que se imponham limitações ao controle jurisdicional

do ato administrativo, seja disciplinar ou não.

Em consequência, há limitações quanto ao controle jurisdicional sobre atos

administrativos que, como no caso perquirido, tenham a finalidade específica de

aplicar uma punição ao militar, em decorrência de conduta por ele perpetrada, a qual

foi apurada e tipificada como transgressão disciplinar, punição esta resultante de um

processo instaurado e conduzido pela autoridade competente, no exercício do poder

administrativo disciplinar militar.

No âmbito militar há ainda uma particularidade quanto ao controle

jurisdicional, pois, ainda no exercício do poder disciplinar, há a possibilidade de a

autoridade militar aplicar uma punição ao transgressor que tenha por consequência

limitar a liberdade de locomoção do indivíduo, prisão disciplinar é o exemplo mais

característico, liberdade esta garantida constitucionalmente por meio do instituto

jurídico do habeas corpus.

Acontece, porém, que o artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição Federal,

prescreve que “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares

militares”. O dispositivo a princípio teria o condão de proibir a apreciação judicial de

punições disciplinares militares que cerceiam a liberdade de locomoção do

transgressor. Entretanto, constata-se que, mesmo com a vedação constitucional

expressa, há a impetração do instituto jurídico e a apreciação da punição disciplinar

militar pelo Poder Judiciário.

O problema a ser solucionado é revelar, a despeito da vedação

constitucional, se é aceitável o cabimento de habeas corpus em relação às punições

Page 9: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

7

disciplinares militares e, em caso afirmativo, encontrar a limitação do controle

jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar.

Assim, o presente trabalho tem por objetivo geral solucionar o problema

acima exposto, por meio da análise da legislação e do entendimento doutrinário e

jurisprudencial no tocante à limitação do controle jurisdicional do ato administrativo

disciplinar militar, particularmente quando o Poder Judiciário é instado a se

manifestar em sede de habeas corpus impetrado contra punição disciplinar militar

cerceadora da liberdade de locomoção do transgressor.

A citada análise adquire importância na medida em que tem o potencial de

apontar aspectos jurídicos a serem observados pelas autoridades militares, a fim de

se evitar falhas nos processos disciplinares e consequentes demandas judiciais,

proporcionando maior segurança e estabilidade das decisões administrativas.

A hipótese a ser verificada como solução do problema repousa no

entendimento de que o artigo 142, parágrafo 2°, da Constituição Federal, não deve

ser interpretado literalmente, mas sistematicamente com os demais dispositivos e

princípios constitucionais, em especial os direitos e garantias fundamentais

individuais, restando cabível o habeas corpus em relação a punições disciplinares

militares com vistas ao controle jurisdicional do ato administrativo punitivo aplicado

pela autoridade militar, desde que a apreciação judicial verifique apenas aspectos

ligados à legalidade e aos princípios administrativos.

A fim de verificar a hipótese como solução do problema, desenvolver-se-á o

trabalho no sentido de destacar os princípios e dispositivos legais que limitam o

controle jurisdicional dos atos administrativos; no de descrever o processo disciplinar

militar; no de identificar os fundamentos da interpretação doutrinária e jurisprudencial

para o artigo 142, parágrafo 2°, da Constituição Federal. Ao final do

desenvolvimento deverá haver fundamentação suficiente para a confirmação ou não

da hipótese.

Como limitação do trabalho, a descrição do processo disciplinar militar

restringir-se-á àquele positivado no Regulamento Disciplinar do Exército, o qual

possui estrutura normativa de tipificação de conduta e de cominação de pena

semelhante às estruturas normativas positivadas nos regulamentos disciplinares das

demais Forças.

Como metodologia adotada, os resultados estarão fundamentados em

pesquisa realizada em legislação, bibliografia, tais como livros e artigos doutrinários,

Page 10: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

8

e documentos, tais como decisões retiradas de repositórios jurisprudenciais, sejam

impressos ou disponibilizados na rede mundial (internet).

Apresentar-se-á o desenvolvimento do trabalho em três capítulos.

O primeiro capítulo abordará o controle jurisdicional do ato administrativo.

Para tanto, a fim de apresentar uma base teórica e geral para solução do problema,

discorrer-se-á sobre os fundamentos do citado controle, quais sejam, o Estado

Democrático de Direito e a separação dos Poderes. Em seguida discorrer-se-á sobre

conceitos e princípios da Administração Pública e sobre aspectos do ato

administrativo. Evidenciar-se-á nesse ponto a oposição da supremacia do interesse

público em face da legalidade. Comentar-se-á sobre o sistema adotado no Brasil de

jurisdição única em decorrência da inafastabilidade do Poder Judiciário. Por fim,

discorrer-se-á sobre as limitações ao controle jurisdicional do ato administrativo e a

relação do tema com os conceitos jurídicos indeterminados, bem como com os

princípios da razoabilidade, moralidade administrativa, princípios gerais do direito e

supremacia do interesse público.

O segundo capítulo abordará o processo disciplinar militar. Para tanto,

apresentar-se-ão os conceitos de hierarquia e disciplina, base das Instituições

Militares. Em seguida, descrever-se-á o processo disciplinar segundo o regulamento

do Exército.

O terceiro capítulo abordará o habeas corpus. Para tanto, discorrer-se-á

sobre os fundamentos constitucional e legal deste instituto jurídico, bem como

processo, procedimento e exame de prova. Em seguida, apresentar-se-á o

entendimento sobre a plausibilidade de cabimento de habeas corpus em relação a

punições disciplinares militares, as limitações do controle jurisdicional, bem como a

competência para processar e julgar.

Por fim, a conclusão encerrará o trabalho onde se apresentarão

considerações finais sobre o assunto desenvolvido, revelar-se-á a confirmação ou

não da hipótese em face dos resultados obtidos, bem como serão oferecidas

recomendações e sugestões para aprimoramento do processo disciplinar militar.

Page 11: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

9

2 CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO

O objetivo deste capítulo é apresentar aspectos relacionados ao controle

jurisdicional do ato administrativo ou, em outras palavras, ato emanado da

Administração Pública. Faz-se mister estabelecer que no presente trabalho o termo

controle jurisdicional se refere àquele controle realizado pelo Poder Judiciário no

exercício da função judicial propriamente dita (função jurisdicional do Poder

Judiciário), ou seja, a possibilidade do Poder Judiciário de dizer o direito no caso

concreto por meio dos processos judiciais. Outrossim, o ato administrativo no

presente trabalho se refere àquele emanado pelo Poder Executivo no exercício da

função executiva propriamente dita (função administrativa do Poder Executivo).

O controle do Poder Judiciário sobre atos da Administração Pública decorre

da separação dos Poderes que, por sua vez, é um princípio que tem sua origem na

concepção do Estado de Direito, cujo conceito evoluiu desde a fase liberal até os

dias de hoje para consolidar o que se denomina Estado Democrático de Direito.

2.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A instituição do Estado Democrático brasileiro está juridicamente

fundamentado, inicialmente, no preâmbulo da Constituição Federal (1988, p. 11).

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

O mesmo princípio constitucional volta a ser citado no artigo 1º da

Constituição Federal (1988, p. 13), estabelecendo que o Brasil constitui-se em

Estado Democrático de Direito.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Page 12: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

10

Segundo Silva (2006, p. 112) o Estado de Direito era um conceito

tipicamente liberal caracterizado por postulados básicos, quais sejam, submissão ao

império da lei, divisão de poderes e enunciado e garantia dos direitos individuais.

Posteriormente o conceito liberal deu lugar ao conceito social de Estado de Direito

na medida em que este se volta precipuamente para a afirmação dos direitos

sociais. Dessas características infere-se que o Estado de Direito é aquela estrutura

política em que o exercício do poder por seus detentores está limitado pelas normas

do seu próprio ordenamento jurídico. Por sua vez, o Estado Democrático se funda no

princípio da soberania popular, isto é, a efetiva participação do povo nos assuntos

públicos. O Estado Democrático visa, assim, realizar o princípio do poder que emana

do povo como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana. Por fim,

o Estado Democrático de Direito não é simplesmente a reunião formal de princípios

do Estado de Direito e Estado Democrático. Mais do que isso, O Estado

Democrático de Direito possui a tarefa fundamental de instaurar um regime

democrático que realize materialmente a justiça social.

2.2 SEPARAÇÃO DOS PODERES

A Constituição Federal (1988, p. 13) estabelece no artigo 2º os Poderes por

meio dos quais é manifestada a vontade estatal para consecução de seus objetivos.

É afirmado no mesmo dispositivo que os Poderes são independentes e harmônicos

entre si. É o princípio da separação de Poderes.

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Consagra a Constituição Federal (1988, p. 60) no artigo 60 a separação dos

Poderes como sendo cláusula pétrea, ou seja, norma constitucional estabelecida

pelo constituinte originário proibida de ser alterada pelo constituinte derivado.

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] III - a separação dos Poderes;

Segundo Silva (2006, p. 106), na Constituição Federal as expressões “o

Legislativo, o Executivo e o Judiciário” possuem duplo sentido, isto é, exprimem as

Page 13: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

11

funções legislativa, executiva e jurisdicional e indicam os respectivos órgãos os

quais estão discriminados ao longo do texto da própria Constituição Federal. Quanto

à expressão “independentes e harmônicos entre si”, explica o autor seu significado

aduzindo primeiramente que, no exercício das atribuições que lhe sejam próprias,

não precisa o titular de um determinado Poder consultar o titular de outro nem

necessita de sua autorização. Porém, há uma faceta quanto à harmonia entre os

Poderes que torna essa independência relativa. Nesse diapasão o autor infere que

“há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e

contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e

indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e

especialmente dos governados”.

É exatamente a separação dos Poderes, entendido esse princípio como um

sistema de freios e contrapesos, que serve de fundamento para a existência do

controle do Poder Judiciário sobre os atos emanados da Administração Pública. Por

outro lado, é evidente que esse controle não pode ocorrer sem que haja limitações

ao Poder Judiciário. Para tanto, necessita-se perquirir conceitos e princípios da

Administração Publica.

2.3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administração Pública é a estrutura executiva do Estado para consecução

de seus objetivos. Por isso que o conceito de Administração Pública relaciona-se

com o conceito de Governo, porém dele difere essencialmente. Para Silva (2006,

p. 107) a vontade do Estado é vontade humana expressa por meio de seus órgãos,

os quais podem ser classificados em supremos (constitucionais) ou dependentes

(administrativos).

Os órgãos supremos possuem a incumbência do exercício do poder político,

cujo conjunto se denomina Governo ou órgãos governamentais. Os órgãos

dependentes não possuem a incumbência do exercício do poder político,

desempenham as suas funções através de agentes públicos em plano hierárquico

inferior, portanto são dependentes do Governo e seu conjunto se denomina

Administração Pública ou órgãos administrativos.

2.4 ATO ADMINISTRATIVO

Page 14: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

12

Segundo Meirelles (2001, p. 59) a Administração Pública não pratica atos de

governo, haja vista estes serem atos resultantes do exercício de faculdade de opção

política, mas tão-somente pratica atos de execução, com maior ou menor autonomia

funcional, segundo a competência do órgão e de seus agentes. Esses atos são os

chamados atos administrativos.

Adverte ainda o autor que, apesar de a Administração Pública ser mero

instrumental de que dispõe o Estado para por em prática as opções políticas do

Governo, tem ainda a Administração Pública poder de decisão, porém somente na

área de sua atribuição e dentro dos limites legais de competência executiva. No

exercício do poder administrativo, o agente público se pauta pelos princípios que

regem a matéria.

A Constituição Federal (1988) dedica o Capítulo VII do Título III à

Administração Pública e explicita no artigo 37 os princípios que regem a matéria.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]

A Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo

administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, explicita outros tantos

princípios no artigo 2º.

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da

legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. (BRASIL, 1988).

Desses princípios faz-se mister, para fundamentar os limites do controle

jurisdicional do ato administrativo, confrontar principalmente o princípio da

supremacia do interesse público com o da legalidade.

2.5 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E LEGALIDADE

Segundo Di Pietro (2001, p. 217), o direito administrativo nasceu e

desenvolveu-se baseado na oposição da supremacia do interesse público em face

da legalidade. É a bipolaridade do direito administrativo. Se por um lado os direitos

individuais devem ser protegidos diante do Estado, razão que serve de fundamento

ao princípio da legalidade, por outro a Administração Pública deve possuir

Page 15: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

13

prerrogativas e privilégios para alcançar a satisfação de interesses públicos, seja

para limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do bem-estar coletivo

(poder de polícia), quer para a prestação de serviços públicos. Se por um lado

protege-se a liberdade do indivíduo impondo restrições à Administração Pública, por

outro lado resguarda-se a autoridade da Administração Pública conferindo-lhe

prerrogativas.

Consequentemente, para proteger a liberdade do indivíduo, sujeita-se a

autoridade pública à observância da lei. É a aplicação à Administração Pública, do

princípio da legalidade. Da mesma forma, para resguardar a autoridade da

Administração Pública, necessária à consecução de seus fins, são-lhe conferidos

prerrogativas e privilégios que assegura a supremacia do interesse público sobre o

particular.

Nesse diapasão, Meirelles (2001, p. 80) afirma que os fins da Administração

Pública resumem-se num único objeto, qual seja, o bem comum da coletividade

administrada. Assim, o autor alerta que do princípio da supremacia do interesse

público decorre a indisponibilidade do interesse público, entendendo que a

Administração Pública não pode dispor nem renunciar a poderes que a lei lhe deu

para exercer a tutela do interesse público, pois o titular é o Estado e somente ele

poderá autorizar a Administração Pública a dispor ou renunciar de tal interesse.

Aduz ainda o autor que, como consequência da indisponibilidade do

interesse público, o poder do administrador público é insuscetível de renúncia pelo

seu titular e, por isso, reveste-se ao mesmo tempo do caráter de dever para com a

coletividade administrada. É o poder-dever de agir da autoridade pública que o deve

exercer na conformidade do princípio da legalidade.

Segundo Di Pietro (2001, p. 60) no direito brasileiro o princípio da legalidade

é imposto à Administração Pública no artigo 37, caput, da Constituição Federal, e

completa-se com a regra do artigo 5º, inciso II, segundo a qual “ninguém será

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Observa a

autora que o primeiro dispositivo não define o conteúdo do princípio, porém o

segundo dispositivo tem um conteúdo muito preciso, que impede a Administração de

impor obrigações ou proibições por iniciativa própria, isto é, para fazê-lo depende de

fundamento legal.

Meirelles (2001, p. 82) afirma que o princípio insculpido no caput do artigo

37, da Constituição Federal, significa que o administrador público está, em toda a

Page 16: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

14

sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem

comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido.

Essa afirmação dá ensejo à máxima de que a Administração Pública só pode fazer o

que a lei permite, enquanto o particular pode fazer tudo que a lei não proíbe.

Infere-se da assertiva do autor que o princípio da legalidade deve então ser

visto no sentido amplo do conceito. De fato, a Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999,

estabelece no inciso I do parágrafo único do artigo 2º que nos processos

administrativos serão observados, entre outros, os critérios de atuação do

administrador público conforme a lei e o Direito, isto é, legalidade significa observar

não só a lei no sentido estrito, mas também a conformação da atuação do

administrador público aos princípios administrativos.

A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inc. I do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99. Com isso, fica evidente que, além da atuação conforme à lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos. (MEIRELLES, p. 82).

Mais adiante Meirelles (2001, p. 83) apresenta o conceito de legitimidade:

Além de atender à legalidade, o ato do administrador público deve conformar-se com a moralidade e a finalidade administrativas para dar plena legitimidade à sua atuação. Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade administrativas, no sentido de que tanto atende às exigências da lei como se conforma com os preceitos da instituição pública.

Infringindo as normas legais ou os princípios, o agente público vicia o ato

administrativo de ilegitimidade e tem por consequência sujeitá-lo à anulação pela

própria Administração Pública ou pelo Poder Judiciário.

2.6 JURISDIÇÃO ÚNICA

Além do princípio constitucional da separação de poderes, o controle

jurisdicional do ato administrativo tem fundamento também no artigo 5º, inciso

XXXV, da Constituição Federal, o qual estabelece que “a lei não excluirá da

apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos”, conhecido como

princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário.

Em decorrência também da separação de poderes e da inafastabilidade do

Poder Judiciário é que se afirma que o Brasil adotou o sistema de jurisdição única. O

outro sistema conhecido é denominado contencioso administrativo. Neste, somente

Page 17: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

15

a Administração Pública pode rever seus atos e decidir de forma definitiva, fazendo

destarte coisa julgada, vedada a interferência do Poder Judiciário. Diferentemente

do contencioso administrativo, na jurisdição única, todos os interesses, quer do

administrado, quer da Administração Pública, se sujeitam a uma única jurisdição

definitiva: a do Poder Judiciário. Meirelles (2001, p. 52) esclarece que isso não

significa que se negue à Administração Pública o poder de decisão, o que se lhe

nega é o caráter de decisão definitiva, a qual é própria das decisões judiciais que

fazem coisa julgada.

2.7 LIMITAÇÕES AO CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO

O controle jurisdicional do ato administrativo tem por limitação a legalidade e

a legitimidade do ato administrativo, sendo vedado ao Poder Judiciário pronunciar-se

sobre o mérito, substituindo-se à Administração Pública, em face do fundamento

constitucional da separação de Poderes.

A competência do Judiciário para a revisão de atos administrativos restringe-se ao controle da legalidade e da legitimidade do ato impugnado. Por legalidade entende-se a conformidade do ato com a norma que o rege; por legitimidade entende-se a conformidade com os princípios básicos da Administração Pública, em especial os do interesse público, da moralidade, da finalidade e da razoabilidade, indissociáveis de toda atividade pública. [...]. O que não se permite ao Judiciário é pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração, e não de jurisdição judicial. (MEIRELLES, 2001, p. 666).

Porém, em relação ao mérito do ato administrativo, Meirelles (2001, p. 146)

observa inicialmente que é um conceito de difícil fixação, porém não deixa o autor de

esclarecer que se consubstancia na valoração dos motivos e na escolha do objeto

do ato, feitas pela Administração Pública, porém somente quando está autorizada a

decidir sobre oportunidade, conveniência ou justiça do ato a realizar.

Neste caso, está o administrador público exercendo o poder discricionário ao

valorar motivos e escolhendo o objeto do ato a ser produzido. Em contraposição, há

atos vinculados em que a Administração Pública, ao atuar, tão-somente atende

imposições legais para produzi-los. Nas lições de Di Pietro (2001, p. 66):

[...] hipótese em que se diz que o poder da Administração é vinculado, porque a lei não deixa opções; ela estabelece que, diante de determinados pressupostos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. [...]. Em outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre

Page 18: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

16

várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é baseada em critérios de mérito [...].

Mais restrito quanto à margem de liberdade de decisão, Mello (2006, p. 48)

conceitua discricionariedade ressaltando que a adoção da solução pelo

administrador público deve ser baseada também em critérios de razoabilidade para

consecução da finalidade legal:

Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.

Então, no exercício do poder discricionário o administrador público, diante

das soluções possíveis, todas válidas perante o direito, tem o dever de adotar a

solução mais adequada à satisfação da finalidade legal. Mello (2006, p. 15) afirma

que há na verdade um dever discricionário:

Tomando-se consciência deste fato, deste caráter funcional da atividade administrativa (por isto se diz “função administrativa”), desta necessária submissão da administração à lei, percebe-se que o chamado “poder discricionário” tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal. Só assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado, compreendendo-se, então, que o que há é um dever discricionário, antes que um “poder discricionário”. Uma vez assentido que os chamados poderes são meros veículos instrumentais para propiciar ao obrigado cumprir o seu dever, ter-se-á da discricionariedade, provavelmente, uma visão totalmente distinta daquela que habitualmente se tem.

Observa o autor que, em face do dever de adotar a solução mais adequada,

o Poder Judiciário deve apreciar o ato administrativo, com vistas ao seu controle,

ainda que haja discricionariedade outorgada pela lei ao administrado público:

Em suma: casos haverá em que, para além de qualquer dúvida, qualquer sujeito em uma intelecção normal, razoável (e assim, também a fortiori, o Judiciário) poderá concluir que, apesar da discrição outorgada pela norma, em face de seus termos e da finalidade que anima, dada situação ocorrida não comportava senão uma determinada providência, ou então que, mesmo comportando mais de uma, certamente não era aquela que foi tomada. (MELLO, 2006, p. 41).

O autor ressalta ainda que o Poder Judiciário não deve adentrar questão de

mérito do ato administrativo, pois, neste caso, se apresentam ao administrador mais

de uma solução que atendem a finalidade legal e, consequentemente torna-se

impossível ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada:

Page 19: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

17

Sem dúvida, perante inúmeros casos concretos (a maioria, possivelmente) caberão dúvidas sobre a decisão ideal e opiniões divergentes poderão irromper, apresentando-se como razoáveis e perfeitamente admissíveis. Nestas hipóteses a decisão do administrador haverá de ser tida como inatacável, pois corresponderá a uma opção de mérito; [...]. (MELLO, 2006, p. 40).

Quanto ao conceito de mérito, aduz o autor que:

Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada. (MELLO, 2006, p. 38).

Nesse diapasão, Meirelles (2001, p. 666) afirma que o controle jurisdicional

do ato administrativo é exato para os atos vinculados ou regrados, porém não é

menos aplicável aos atos discricionários da Administração Pública.

Nos atos discricionários, aduz o autor, há maior liberdade no modo e

momento de sua prática, porém essa característica não fornece ao agente público o

direito de agir arbitrariamente, seja atuando além de sua competência, seja atuando

contrariamente a princípios administrativos, porquanto, nesses casos, está

caracterizado o abuso de poder.

O abuso de poder é conceituado por Meirelles (2001, p. 102) em termos de

ocorrência quando a autoridade, embora competente para praticar o ato

administrativo, ultrapassa o limite de suas atribuições ou se desvia das finalidades

administrativas.

Para fins didáticos, o abuso de poder reparte-se respectivamente em duas

espécies: excesso de poder e desvio da finalidade. Assim é que o Poder Judiciário

pode anular não só o ato praticado por agente público fora de sua competência, ou

além dela, pois neste caso o agente incorre no excesso de poder, como também o

ato que desatenda aos princípios administrativos, pois neste caso o agente incorre

no desvio do poder.

2.7.1 Conceito jurídico indeterminado

Vezes há que o administrador público se depara com textos legais ou

regulamentares nos quais a hipótese da norma (pressuposto de direito) contem

noções vagas expressos em vocábulos plurissignificativos, de significados

indeterminados, imprecisos, fluidos, que possibilitam a apreciação do fato concreto

Page 20: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

18

(pressuposto de fato) segundo valoração da própria autoridade competente para

emanar o ato administrativo. São os conceitos jurídicos indeterminados ou conceitos

imprecisos.

A expressão conceito jurídico indeterminado, embora bastante criticável, ficou consagrada na doutrina de vários países, como Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e, mais recentemente, no Brasil, sendo empregada para designar vocábulos ou expressões que não têm um sentido preciso, objetivo, determinado, mas que são encontrados com grande frequência nas normas jurídicas dos vários ramos do direito. Fala-se em boa fé, bem comum, conduta irrepreensível, pena adequada, interesse público, ordem pública, notório saber, notória especialização, moralidade, razoabilidade e tantos outros. (DI PIETRO, 2001, p. 97)

O conceito jurídico indeterminado possui características de significação

abstrata que varia no tempo e no espaço de acordo com as necessidades coletivas,

bem como deve ser perquirida pelo administrador público, seja pela adequada

interpretação, quando possível extrair determinada significação da norma legal ou

regulamentar, seja pelo exercício do poder discricionário, quando mais de uma

significação for possível de ser extraída da norma, desde que sempre pautado pelos

princípios administrativos, em especial a razoabilidade.

Em suma muitas vezes – exatamente porque o conceito é fluido – é impossível contestar a possibilidade de conviverem intelecções diferentes, sem que, por isto, uma delas tenha havida como incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis. (MELLO, 2006, p. 23).

Seja o ato administrativo produzido por meio de interpretação ou por meio de

discricionariedade do agente público quando diante da norma contendo conceito

jurídico indeterminado, é evidente que este ato está sujeito ao controle do Poder

Judiciário para que este verifique se a atuação do agente se pautou pela legalidade

e pelos princípios administrativos, isto é, se o agente não cometeu desvio de

finalidade na subsunção do caso concreto à norma.

Induvidosamente, havendo litígio sobre a correta subsunção do caso concreto a um suposto legal descrito mediante conceito indeterminado, caberá ao Judiciário conferir se a Administração, ao aplicar a regra, se manteve no campo significativo de sua aplicação ou se o desconheceu. Verificado, entretanto, que a Administração se firmou em uma intelecção perfeitamente cabível, ou seja, comportada pelo conceito ante o caso concreto – ainda que outra também pudesse sê-lo – desassistirá ao Judiciário assumir est’outra, substituindo o juízo administrativo pelo seu próprio. (MELLO, 2006, p. 24).

Observa-se que os conceitos jurídicos indeterminados são utilizados pelo

legislador na concepção dos pressupostos de direito por ser impossível prever todos

os pressupostos de fato que possam subsumir aos primeiros. Assim é que o

legislador atribui ao administrador público, por meio de normas contendo conceitos

Page 21: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

19

jurídicos indeterminados, a incumbência de interpretar esses conceitos segundo

entendimento aceito pela coletividade, bem como, no caso de mais de uma

possibilidade possível e válida para o direito, utilizar os critérios de oportunidade e

conveniência, à luz da razoabilidade, e desta forma encontrar a solução mais

adequada e atender às necessidades coletivas as quais estão em constante

evolução.

Em relação ao ato administrativo disciplinar, encontram-se conceitos

jurídicos indeterminados nas hipóteses das normas que descrevem condutas ilícitas

do direito administrativo disciplinar sancionador, tanto nos regulamentos disciplinares

de servidores civis quanto nos regulamentos disciplinares militares. Exige-se, nestes

casos, especial atenção da autoridade competente para apurar a transgressão

disciplinar e aplicar a correspondente sanção, pois deve considerar todas as

razoáveis possibilidades de interpretação do conceito jurídico indeterminado e

subsumir o fato à norma.

2.7.2 Princípios

Di Pietro (2001, p. 233) cita os princípios da razoabilidade, moralidade

administrativa, princípios gerais do direito e supremacia do interesse público como

princípios de origem pretoriana que foram acolhidos pela Constituição Federal e que

ampliam o controle jurisdicional do ato administrativo.

O princípio da razoabilidade [...] permite ao Poder Judiciário invalidar, por inconstitucionalidade, leis e atos administrativos cujo conteúdo contenha discriminações injustificadas ou medidas que não guardem relação ou proporção com os fins objetivados pelo legislador. [...] O princípio da moralidade administrativa [...] exige da Administração Pública comportamentos compatíveis com o interesse público que lhe cumpre tutelar, voltados para os ideais expressos, agora, de forma muito nítida, no preâmbulo da Constituição; a moralidade tem que estar não só na intenção do agente, mas também e principalmente no próprio objeto do ato e na interpretação que da lei faça o Administrador para aplica-la aos casos concretos. (DI PIETRO, 2001, p. 233).

Quanto aos princípios gerais do direito, positivados ou não, a autora aduz

que há casos em que estes princípios podem reduzir a margem de opções do

administrador público no exercício do poder discricionário citando, como exemplo, a

aplicação do princípio do devido processo legal.

Page 22: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

20

Quanto ao princípio da supremacia do interesse público, já abordado

anteriormente, a autora aduz que a Administração Pública só pode atender aos

interesses dos entes que exercem função administrativa quando não conflitarem

com os interesses da coletividade.

Esses princípios exigem que a ação do Poder Judiciário não se limite ao

exame puramente formal da lei e do ato administrativo, mas que se amplie ao exame

da atuação da autoridade administrativa conforme a lei e o Direito.

Page 23: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

21

3 PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR

O objetivo deste capítulo é apresentar os princípios da hierarquia e da

disciplina, bem como descrever o processo disciplinar militar no âmbito do Exército

Brasileiro.

3.1 HIERARQUIA E DISCIPLINA

Os princípios basilares das Instituições Militares são a hierarquia e a

disciplina assim expressas na Constituição Federal (1988, p. 99):

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

A Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que dispõe sobre o Estatuto dos

Militares, traz as definições de hierarquia militar e disciplina:

Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico. § 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade. § 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

O Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002, que aprova o Regulamento

Disciplinar do Exército (R-4 ou, em sua sigla mais utilizada, RDE) e dá outras

providências, repete literalmente as definições estabelecidas no Estatuto dos

Militares e acrescenta que são manifestações essenciais de disciplina a correção de

atitudes, a obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos, a dedicação

integral ao serviço e a colaboração espontânea para a disciplina coletiva e a

eficiência das Forças Armadas.

3.2 DESCRIÇÃO DO PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR

Page 24: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

22

O processo disciplinar militar é espécie do gênero processo administrativo,

porém reveste-se de características próprias decorrentes da finalidade de apuração

de transgressão disciplinar e do âmbito de aplicação da punição disciplinar, qual

seja, âmbito militar.

A Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo

administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelece no artigo 69

que os processos administrativos específicos, e o processo disciplinar militar é

específico pela sua finalidade e pelo seu âmbito de aplicação, continuarão a reger-

se por lei própria, aplicando-se ao processo específico apenas subsidiariamente os

preceitos daquela Lei.

O arcabouço legal que fundamenta o processo disciplinar militar é a

Constituição Federal, o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do

Exército.

A Constituição Federal (1988, p. 19), no artigo 5º, inciso LXI, ao preconizar

que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e

fundamentada de autoridade judiciária competente, ressalva os casos de

transgressão militar ou crime propriamente militar, e delega aos diplomas legais a

incumbência de defini-los.

No caso da incumbência de definição das transgressões militares, o diploma

legal primeiro é a Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que dispõe sobre o

Estatuto dos Militares. Porém, observa-se no artigo 42 que o Estatuto, por sua vez,

delega essa incumbência a outros diplomas legais, no momento em que preconiza

que a violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime,

contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou

regulamentação específicas. Observando mais além, percebe-se que o Estatuto

delega a incumbência de definir, colocados em termos de especificar e classificar, as

transgressões disciplinares militares aos regulamentos disciplinares das Forças

Armadas.

Art. 47. Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

Page 25: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

23

Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal verifica-se que o

estabelecido no artigo 47 do Estatuto dos Militares suscitou questionamentos sobre

a constitucionalidade do RDE, porém a questão não foi julgada no mérito.

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto no 4.346/2002 e seu Anexo I, que estabelecem o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro e versam sobre as transgressões disciplinares. 2. Alegada violação ao art. 5o, LXI, da Constituição Federal. 3. Voto vencido (Rel. Min. Marco Aurélio): a expressão ("definidos em lei") contida no art. 5o, LXI, refere-se propriamente a crimes militares. 4. A Lei no 6.880/1980 que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, no seu art. 47, delegou ao Chefe do Poder Executivo a competência para regulamentar transgressões militares. Lei recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Improcedência da presente ação. 5. Voto vencedor (divergência iniciada pelo Min. Gilmar Mendes): cabe ao requerente demonstrar, no mérito, cada um dos casos de violação. Incabível a análise tão-somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas deveriam ser devidamente atacadas na inicial. 8. Não conhecimento da ADI na forma do artigo 3º da Lei no 9.868/1999. 9. Ação Direta de Inconstitucionalidade não-conhecida. (ADI 3340, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2005, DJ 09-03-2007 PP-00025 EMENT VOL-02267-01 PP-00089)

Assim sendo, no artigo 1º o RDE estabelece as finalidades daquele

regulamento disciplinar, em consonância com o mandamento legal.

Art. 1o O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade

especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas.

No artigo 2º o RDE estabelece o âmbito de aplicação de suas disposições

regulamentares.

Art. 2o Estão sujeitos a este Regulamento os militares do Exército na ativa,

na reserva remunerada e os reformados. § 1

o Os oficiais-generais nomeados ministros do Superior Tribunal Militar

são regidos por legislação específica. § 2

o O militar agregado fica sujeito às obrigações disciplinares

concernentes às suas relações com militares e autoridades civis.

Quanto à finalidade de especificar as transgressões disciplinares (e também

de classificar, conforme ordena o Estatuto), o RDE inicialmente conceitua o que é

transgressão disciplinar no artigo 14.

Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à etica, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação

Page 26: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

24

elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.

Posteriormente, no artigo 15, o RDE especifica as transgressões

disciplinares como sendo as ações elencadas no Anexo I daquele Regulamento.

Quanto à finalidade de estabelecer normas relativas a punições

disciplinares, o RDE estabelece em vários de seus dispositivos o procedimento a ser

seguido quando da instauração de um processo administrativo disciplinar.

Depreende-se dos dispositivos a preocupação do legislador em balizar o RDE nos

princípios institucionais da hierarquia e da disciplina, nos princípios da Administração

Publica, bem como garantir ao suposto transgressor todas as oportunidades de

exercer e seu direito de contraditório e ampla defesa.

A notícia de ocorrência de transgressão disciplinar pode ser dada por todo

militar que tiver conhecimento de fato contrário à disciplina. Este deverá participá-lo

ao seu chefe imediato, por meio de documento escrito claro, preciso e conciso,

qualificar os envolvidos e as testemunhas e discriminar bens e valores. O local, data

e hora da ocorrência devem ser precisos e as circunstâncias que envolverem o fato

devem ser caracterizadas sem que sejam tecidos comentários ou emitidas opiniões

pessoais.

A autoridade, a quem a parte disciplinar é dirigida, deve dar a solução no

prazo máximo de oito dias úteis, devendo, obrigatoriamente, ouvir as pessoas

envolvidas, obedecidas as demais prescrições regulamentares. Caso não seja

possível solucionar a questão no prazo de oito dias úteis, o motivo disto deverá ser

publicado em boletim e, neste caso, o prazo será prorrogado para trinta dias úteis.

Ao fim do prazo a autoridade, se for a competente para tal, deve decidir pela

instauração do processo disciplinar ou não. Se não for a autoridade competente para

tal, deve encaminhar ao superior imediato. Se não for o caso de instauração de

processo disciplinar, deve verificar ainda se o fato enseja a instauração de inquérito

ou sindicância.

Quanto à competência para a aplicação, o RDE estabelece que é definida

pelo cargo e não pelo grau hierárquico.

Art. 10. A competência para aplicar as punições disciplinares é definida pelo cargo e não pelo grau hierárquico, sendo competente para aplicá-las: I - o Comandante do Exército, a todos aqueles que estiverem sujeitos a este Regulamento; e II - aos que estiverem subordinados às seguintes autoridades ou servirem sob seus comandos, chefia ou direção:

Page 27: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

25

a) Chefe do Estado-Maior do Exército, dos órgãos de direção setorial e de assessoramento, comandantes militares de área e demais ocupantes de cargos privativos de oficial-general; b) chefes de estado-maior, chefes de gabinete, comandantes de unidade, demais comandantes cujos cargos sejam privativos de oficiais superiores e comandantes das demais Organizações Militares - OM com autonomia administrativa; c) subchefes de estado-maior, comandantes de unidade incorporada, chefes de divisão, seção, escalão regional, serviço e assessoria; ajudantes-gerais, subcomandantes e subdiretores; e d) comandantes das demais subunidades ou de elementos destacados com efetivo menor que subunidade.

Uma vez decidindo a autoridade competente pela instauração do processo

disciplinar, ela deverá seguir o procedimento preconizado pelo RDE, descrito a

seguir. Este procedimento foi concebido pelo legislador a fim de padronizar a

apuração de transgressões disciplinares, tendo em vista assegurar ao suposto

transgressor o direito do contraditório e da ampla defesa, bem como auxiliar a

autoridade competente na tomada de decisão justa, serena e imparcial, referente à

aplicação de punição disciplinar.

Art. 35. O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade. § 1º Nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados. § 2º Para fins de ampla defesa e contraditório, são direitos do militar: I - ter conhecimento e acompanhar todos os atos de apuração, julgamento, aplicação e cumprimento da punição disciplinar, de acordo com os procedimentos adequados para cada situação; II - ser ouvido; III - produzir provas; IV - obter cópias de documentos necessários à defesa; V - ter oportunidade, no momento adequado, de contrapor-se às acusações que lhe são imputadas; VI - utilizar-se dos recursos cabíveis, segundo a legislação; VII - adotar outras medidas necessárias ao esclarecimento dos fatos; e VIII - ser informado de decisão que fundamente, de forma objetiva e direta, o eventual não-acolhimento de alegações formuladas ou de provas apresentadas. § 3º O militar poderá ser preso disciplinarmente, por prazo que não ultrapasse setenta e duas horas, se necessário para a preservação do decoro da classe ou houver necessidade de pronta intervenção.

O procedimento se inicia com a entrega do Formulário de Apuração de

Transgressão Disciplinar (FATD), conforme modelo previsto no RDE, ao militar

arrolado como suposto transgressor. A partir de então o militar arrolado terá três dias

Page 28: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

26

úteis para apresentar por escrito (de próprio punho ou impresso) e assinado, suas

alegações de defesa.

Este prazo para a apresentação das alegações de defesa pode ser

prorrogado justificadamente conforme discricionariedade da autoridade competente,

em caráter excepcional, sem comprometer a eficácia e a oportunidade da ação

disciplinar. Pode ser concedido, ainda, pela mesma autoridade, prazo para que o

interessado possa produzir as provas que julgar necessárias à sua defesa.

As justificativas ou razões de defesa serão apresentadas por escrito, de

próprio punho ou impresso, de forma sucinta, objetiva e clara, sem conter

comentários ou opiniões pessoais e com menção de eventuais testemunhas. Se

desejar, o suposto transgressor poderá anexar documentos que comprovem suas

razões de defesa e aporá sua assinatura e seus dados de identificação. Pode ainda

ocorrer de o suposto transgressor não desejar apresentar razões defesa. Neste

caso, deverá manifestar esta intenção, de próprio punho. Se o militar não

apresentar, dentro do prazo, as razões de defesa e não manifestar a intenção de

não apresenta-las, a autoridade que estiver conduzindo a apuração do fato

certificará no FATD, juntamente com duas testemunhas, que o prazo para

apresentação de defesa foi concedido, mas o militar permaneceu inerte.

Cumpridas as etapas anteriores, a autoridade competente para aplicar a

punição concluirá pela procedência ou não das acusações e das alegações de

defesa. Uma vez a autoridade competente concluindo pela procedência das

acusações, ela julgará a transgressão com base em análise que considere a pessoa

do transgressor, as causas que a determinaram, a natureza dos fatos ou atos que a

envolveram e as consequências que dela possam advir.

Para tanto, o RDE elenca causas que justificam a falta e circunstâncias que

atenuam ou a agravam a pena que devem ser levadas em conta no julgamento.

Art. 18. Haverá causa de justificação quando a transgressão for cometida: I - na prática de ação meritória ou no interesse do serviço, da ordem ou do sossego público; II - em legítima defesa, própria ou de outrem; III - em obediência a ordem superior; IV - para compelir o subordinado a cumprir rigorosamente o seu dever, em caso de perigo, necessidade urgente, calamidade pública, manutenção da ordem e da disciplina; V - por motivo de força maior, plenamente comprovado; e VI - por ignorância, plenamente comprovada, desde que não atente contra os sentimentos normais de patriotismo, humanidade e probidade. Parágrafo único. Não haverá punição quando for reconhecida qualquer causa de justificação. Art. 19. São circunstâncias atenuantes:

Page 29: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

27

I - o bom comportamento; II - a relevância de serviços prestados; III - ter sido a transgressão cometida para evitar mal maior; IV - ter sido a transgressão cometida em defesa própria, de seus direitos ou de outrem, não se configurando causa de justificação; e V - a falta de prática do serviço. Art. 20. São circunstâncias agravantes: I - o mau comportamento; II - a prática simultânea ou conexão de duas ou mais transgressões; III - a reincidência de transgressão, mesmo que a punição anterior tenha sido uma advertência; IV - o conluio de duas ou mais pessoas; V - ter o transgressor abusado de sua autoridade hierárquica ou funcional; e VI - ter praticado a transgressão: a) durante a execução de serviço; b) em presença de subordinado; c) com premeditação; d) em presença de tropa; e e) em presença de público.

Segundo esses critérios e desde que não haja causa de justificação, a

autoridade a qual couber aplicar a pena deve classificar a transgressão disciplinar

em leve, média e grave, sendo que será sempre classificada como "grave" a

transgressão disciplinar que constituir ato que afete a honra pessoal, o pundonor

militar ou o decoro da classe.

Art. 6o Para efeito deste Regulamento, deve-se, ainda, considerar:

I - honra pessoal: sentimento de dignidade própria, como o apreço e o respeito de que é objeto ou se torna merecedor o militar, perante seus superiores, pares e subordinados; II - pundonor militar: dever de o militar pautar a sua conduta como a de um profissional correto. Exige dele, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento ético que refletirá no seu desempenho perante a Instituição a que serve e no grau de respeito que lhe é devido; e III - decoro da classe: valor moral e social da Instituição. Ele representa o conceito social dos militares que a compõem e não subsiste sem esse.

O RDE acolhe a tese de que a pena tem caráter de resposta institucional à

sociedade, quanto à preservação dos preceitos constitucionais da hierarquia militar e

disciplina castrense, por meio da punição ao transgressor disciplinar (caráter

repreensivo da pena). Observa-se também que o RDE tem como crença a

recuperação disciplinar do transgressor (caráter educativo da pena) e a prevenção

contra nova ocorrência do fato (caráter preventivo da pena), na medida em que

preconiza que a punição disciplinar deve ter em vista o benefício educativo ao

punido e à coletividade a que ele pertence.

Nesse diapasão, uma vez classificada a transgressão, a autoridade

competente deve estabelecer a punição disciplinar ao transgressor dentre as que

estão sujeitos os militares, quais sejam, em ordem de gravidade crescente: a

Page 30: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

28

advertência, o impedimento disciplinar, a repreensão, a detenção disciplinar, a prisão

disciplinar, o licenciamento e a exclusão a bem da disciplina. Advertência é a forma

mais branda de punir, consistindo em admoestação feita verbalmente ao

transgressor, em caráter reservado ou ostensivo. Impedimento disciplinar é a

obrigação de o transgressor não se afastar da OM, sem prejuízo de qualquer serviço

que lhe competir dentro da unidade em que serve. Repreensão é a censura enérgica

ao transgressor, feita por escrito e publicada em boletim interno. Detenção disciplinar

é o cerceamento da liberdade do punido disciplinarmente, o qual deve permanecer

no alojamento da subunidade a que pertencer ou em local que lhe for determinado

pela autoridade que aplicar a punição disciplinar. Prisão disciplinar consiste na

obrigação de o punido disciplinarmente permanecer em local próprio e designado

para tal. Licenciamento e exclusão a bem da disciplina consistem no afastamento, ex

officio, do militar das fileiras do Exército, conforme prescrito no Estatuto dos

Militares.

Para tanto, a autoridade competente deve pautar-se nas normas de

dosimetria da pena preconizadas pelo RDE, dentre as quais a punição disciplinar

deve ser proporcional à gravidade da transgressão, dentro de determinados limites:

para a transgressão leve, de advertência até dez dias de impedimento disciplinar,

inclusive; para a transgressão média, de repreensão até a detenção disciplinar; e

para a transgressão grave, de prisão disciplinar até o licenciamento ou exclusão a

bem da disciplina. O RDE estabelece que as punições disciplinares de detenção e

prisão disciplinar não podem ultrapassar trinta dias e a de impedimento disciplinar,

dez dias.

O RDE estabelece ainda, no Anexo III, a punição disciplinar máxima que

cada autoridade pode aplicar ao transgressor. Observa-se que a aplicação da

punição classificada como "prisão disciplinar" somente pode ser efetuada pelo

Comandante do Exército ou comandante, chefe ou diretor de OM.

Diante de todas essas normas para dosar a punição que será imposta ao

transgressor, verifica-se que o RDE relaciona as transgressões disciplinares no

Anexo I sem fazer menção à sua gravidade, deixando, portanto, totalmente à

autoridade competente julgar, abstrata e subjetivamente, se a descrição se refere a

uma transgressão leve, média ou grave.

Page 31: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

29

Após ouvir o militar e julgar suas justificativas ou razões de defesa, a

autoridade competente lavrará no FATD, de próprio punho, sua decisão, a qual será

publicada em Boletim Interno, encerrando o processo de apuração.

Uma vez distribuído o Boletim Interno da OM a que pertence o transgressor,

publicando a aplicação da punição disciplinar e especificando as datas de início e

término, dar-se-á o início do cumprimento de punição disciplinar. Nenhum militar

deve ser recolhido ao local de cumprimento da punição disciplinar antes da

distribuição do boletim que publicar a nota de punição. No caso das punições

disciplinares que cerceiam a liberdade do transgressor, a contagem do tempo de

cumprimento da punição disciplinar tem início no momento em que o punido for

impedido, detido ou recolhido à prisão e termina quando for posto em liberdade. O

militar poderá ser preso disciplinarmente, por prazo que não ultrapasse setenta e

duas horas, se necessário para a preservação do decoro da classe ou houver

necessidade de pronta intervenção.

Contra o ato da autoridade competente que aplicar a punição disciplinar

podem ser impetrados os recursos regulamentares peculiares do Exército. São

recursos cabíveis segundo o RDE o pedido de reconsideração de ato e o recurso

disciplinar. Ressalta-se que a tramitação destes recursos deve ter tratamento de

urgência em todos os escalões. É também importante ressaltar que não só o militar

que se julgue, mas também aquele que julgue subordinado seu, prejudicado,

ofendido ou injustiçado por superior hierárquico tem o direito de recorrer na esfera

disciplinar.

Com relação ao recurso de reconsideração de ato, preconiza o RDE que:

Art. 53. Cabe pedido de reconsideração de ato à autoridade que houver proferido a primeira decisão, não podendo ser renovado. § 1º Da decisão do Comandante do Exército só é admitido o pedido de reconsideração de ato a esta mesma autoridade. § 2º O militar punido tem o prazo de cinco dias úteis, contados a partir do dia imediato ao que tomar conhecimento, oficialmente, da publicação da decisão da autoridade em boletim interno, para requerer a reconsideração de ato. § 3º O requerimento com pedido de reconsideração de ato de que trata este artigo deverá ser decidido no prazo máximo de dez dias úteis, iniciado a partir do dia imediato ao do seu protocolo na OM de destino. § 4º O despacho exarado no requerimento de pedido de reconsideração de ato será publicado em boletim interno.

Preconiza ainda o RDE, sobre o recurso de reconsideração de ato, que o

militar que o requerer, se necessário para preservação da hierarquia e disciplina,

Page 32: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

30

poderá ser afastado da subordinação direta da autoridade contra quem formulou o

recurso disciplinar, até que seja ele julgado.

Com relação ao recurso disciplinar, preconiza o RDE que:

Art. 54. É facultado ao militar recorrer do indeferimento de pedido de reconsideração de ato e das decisões sobre os recursos disciplinares sucessivamente interpostos. § 1º O recurso disciplinar será dirigido, por intermédio de requerimento, à autoridade imediatamente superior à que tiver proferido a decisão e, sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades, até o Comandante do Exército, observado o canal de comando da OM a que pertence o recorrente. § 2º O recurso disciplinar de que trata este artigo poderá ser apresentado no prazo de cinco dias úteis, a contar do dia imediato ao que tomar conhecimento oficialmente da decisão recorrida. § 3º O recurso disciplinar deverá: I - ser feito individualmente; II - tratar de caso específico; III - cingir-se aos fatos que o motivaram; e IV - fundamentar-se em argumentos, provas ou documentos comprobatórios e elucidativos. § 4º Nenhuma autoridade poderá deixar de encaminhar recurso disciplinar sob argumento de: I - não atendimento a formalidades previstas em instruções baixadas pelo Comandante do Exército; e II - inobservância dos incisos II, III e IV do § 3o. § 5º O recurso disciplinar será encaminhado por intermédio da autoridade a que estiver imediatamente subordinado o requerente, no prazo de três dias úteis a contar do dia seguinte ao do seu protocolo na OM, observando-se o canal de comando e o prazo acima mencionado até o destinatário final. § 6º A autoridade à qual for dirigido o recurso disciplinar deve solucioná-lo no prazo máximo de dez dias úteis a contar do dia seguinte ao do seu recebimento no protocolo, procedendo ou mandando proceder às averiguações necessárias para decidir a questão. § 7º A decisão do recurso disciplinar será publicada em boletim interno. Art. 55. Se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado. Parágrafo único. Se apenas em parte, a punição aplicada poderá ser atenuada, cancelada em caráter excepcional ou relevada.

O RDE cita também que a instalação, o funcionamento e o julgamento dos

Conselhos de Disciplina e Conselhos de Justificação obedecerão à legislação

específica. O dispositivo refere-se a conselhos que, uma vez instalados, funcionam

seguindo processo disciplinar próprio, com aspectos diferentes do processo

disciplinar sumário, até então apresentado no RDE, para apuração de determinadas

transgressões disciplinares e consequente julgamento do transgressor, desde que

este também possua qualificações específicas, conforme a seguir discorrido.

O Conselho de Disciplina, previsto no Decreto nº 71.500, de 5 de dezembro

de 1972, é destinado a julgar da incapacidade do Guarda-Marinha, do Aspirante-a-

Oficial e das demais praças das Forças Armadas com estabilidade assegurada, para

Page 33: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

31

permanecerem na ativa, criando-lhes, ao mesmo tempo, condições para se

defenderem. Este Conselho também pode ser aplicado ao Guarda-Marinha, ao

Aspirante-a-Oficial e às demais praças das Forças Armadas, reformados ou na

reserva remunerada, presumivelmente incapazes de permanecerem na situação de

inatividade em que se encontram.

Art . 2º É submetida a Conselho de Disciplina, " ex officio ", a praça referida no artigo 1º e seu parágrafo único. I - acusada oficialmente ou por qualquer meio lícito de comunicação social de ter: a) procedido incorretamente no desempenho do cargo; b) tido conduta irregular; ou c) praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou decoro da classe; II - afastado do cargo, na forma do Estatuto dos Militares, por se tornar incompatível com o mesmo ou demonstrar incapacidade no exercício de funções militares a ele inerentes, salvo se o afastamento é decorrência de fatos que motivem sua submissão a processo; III - condenado por crime de natureza dolosa, não previsto na legislação especial concernente à segurança do Estado, em tribunal civil ou militar, a pena restritiva de liberdade individual até 2 (dois) anos, tão logo transite em julgado a sentença; ou IV - pertencente a partido político ou associação, suspensos ou dissolvidos por força de disposição legal ou decisão judicial, ou que exerçam atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional. Parágrafo único. É considerada entre os outros, para os efeitos deste decreto, pertencente a partido ou associação a que se refere este artigo a praça das Forças Armadas que, ostensiva ou clandestinamente: a) estiver inscrita como seu membro; b) prestar serviços ou angariar valores em seu benefício; c) realizar propaganda de suas doutrinas; ou d) colaborar, por qualquer forma, mas sempre de modo inequívoco ou doloso, em suas atividades.

Conselho de Justificação, previsto na Lei nº 5.836, de 5 de dezembro

de1972, é destinado a julgar, através de processo especial, da incapacidade do

oficial das Forças Armadas - militar de carreira - para permanecer na ativa, criando-

lhe, ao mesmo tempo, condições para se justificar. Este Conselho também pode ser

aplicado ao oficial da reserva remunerada ou reformado, presumivelmente incapaz

de permanecer na situação de inatividade em que se encontra.

Art. 2º É submetido a Conselho de Justificação, a pedido ou "ex officio" o oficial das forças armadas: I - acusado oficialmente ou por qualquer meio lícito de comunicação social de ter: a) procedido incorretamente no desempenho do cargo; b) tido conduta irregular; ou c) praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe; II - considerado não habilitado para o acesso, em caráter provisório, no momento em que venha a ser objeto de apreciação para ingresso em Quadro de Acesso ou Lista de Escolha;

Page 34: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

32

III - afastado do cargo, na forma do Estatuto dos Militares por se tornar incompatível com o mesmo ou demonstrar incapacidade no exercício de funções militares a ele inerentes, salvo se o afastamento é decorrência de fatos que motivem sua submissão a processo; IV - condenado por crime de natureza dolosa, não previsto na legislação especial concernente a segurança do Estado, em Tribunal civil ou militar, a pena restrita de liberdade individual até 2 (dois) anos, tão logo transite em julgado a sentença; ou V - pertencente a partido político ou associação, suspensos ou dissolvidos por força de disposição legal ou decisão judicial, ou que exerçam atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional. Parágrafo único. É considerado, entre outros, para os efeitos desta Lei, pertencente a partido ou associação a que se refere este artigo o oficial das Forças Armadas que, ostensiva ou clandestinamente: a) estiver inscrito como seu membro; b) prestar serviços ou angariar valores em seu benefício; c) realizar propaganda de suas doutrinas; ou d) colaborar, por qualquer forma, mas sempre de modo inequívoco ou doloso, em suas atividades.

Observa-se que a Constituição Federal estabelece no artigo 142, inciso VI,

que o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou

com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em

tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra. Em consonância com o

mandamento constitucional, a Lei nº 5.836, de 5 de dezembro de1972, aponta o

Superior Tribunal Militar como sendo o tribunal competente para julgar o oficial

culpado e declará-lo indigno do oficialato ou com ele incompatível, determinando a

perda de seu posto e patente.

É importante ressaltar que no processo de apuração e julgamento das

transgressões disciplinares por meio do Conselho de Disciplina e pelo Conselho de

Justificação, tal como no processo disciplinar sumário, anteriormente apresentado no

RDE, deve ser garantida ao suposto transgressor a oportunidade de exercer o direito

do contraditório e da ampla defesa, bem como ser assegurada a observância dos

demais princípios norteadores da Administração Pública e das Instituições Militares.

Page 35: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

33

4 HABEAS CORPUS

O objetivo deste capítulo é apresentar aspectos relacionados ao habeas

corpus, haja vista que, apesar da vedação constitucional insculpida no artigo 142,

parágrafo 2º, da Constituição Federal, o qual prescreve que “não caberá habeas

corpus em relação a punições disciplinares militares”, é garantia constitucional e,

portanto, constitui meio pelo qual o militar transgressor requer perante o Poder

Judiciário a prestação jurisdicional quando não se conforma com a punição

disciplinar, cerceadora de sua liberdade de locomoção, aplicada por seu superior

hierárquico. Constitui assim uma via de controle jurisdicional do ato administrativo e

servirá, no presente trabalho, para se analisar os limites do indigitado controle sobre

os atos da autoridade militar de caráter disciplinar punitivo.

4.1 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL

A Constituição Federal dedica o Titulo II aos direitos e garantias

fundamentais e, neste título, o Capítulo I é dedicado aos direitos e deveres

individuais e coletivos. Neste capítulo, a Constituição Federal inscreveu em seu

artigo 5º, inciso LXVIII, que: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém

sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de

locomoção por ilegalidade ou abuso de poder”. Infere-se que o habeas corpus é o

garantia constitucional destinada a tutelar o direito fundamental de locomoção.

Assim o habeas corpus admite a modalidade preventiva e repressiva. Será

preventivo quando a violência ou coação está na iminência de ser praticada. Será

repressivo quando a violência ou coação já foi praticada, estando o paciente

cumprindo a pena cerceadora de liberdade de locomoção.

Em relação à liberdade de locomoção, o artigo 5º, inciso XV, da Constituição

Federal, preceitua que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz,

podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair

com seus bens”. Direito de locomoção é o direito de ir, vir e ficar. Em relação à

ilegalidade, vale a pena lembrar, o princípio está insculpido no artigo 5º, inciso II, da

Constituição Federal, o qual preceitua que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar

de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”, ou seja, a ilegalidade, no sentido

amplo do conceito, é aquilo que é contrário ao direito, Por sua vez, a ilegalidade

Page 36: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

34

pode ser manifestada na forma de abuso do poder que, reforça-se o anteriormente

dito, ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato

administrativo, ultrapassa o limite de suas atribuições ou se desvia das finalidades

administrativas.

4.2 FUNDAMENTO LEGAL

O Código de Processo Penal (CPP) regula o instituto do habeas corpus nos

artigos 647 a 667.

É importante ressaltar que, a pesar da previsão legal como recurso, o

habeas corpus é na realidade ação penal de conhecimento, haja vista que, através

desta ação, o paciente leva ao conhecimento do Poder Judiciário a existência de

constrangimento ilegal ou ameaça ao seu direito de locomoção.

Por outro lado, fulcrada no artigo 654, parágrafo 2º, do CPP, a autoridade

judiciária pode, em processo de sua competência, expedir de ofício ordem de

habeas corpus, quando ficar evidenciado que o sujeito sofre ou está na iminência de

sofrer coação ilegal em sua liberdade de locomoção: “os juízes e os tribunais têm

competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de

processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.

4.3 PROCESSO E PROCEDIMENTO

Conforme anteriormente exposto o habeas corpus não é um recurso, mas

sim ação penal de conhecimento. A impetração de habeas corpus enseja processo

de igual nome cujos atos dão forma a um procedimento sumaríssimo:

A relação jurídico-processual do habeas corpus se movimenta através do procedimento sumaríssimo, já que em lugar de citada a autoridade coatora, ou lhe serão requisitadas as informações (art.661 do CPP) ou, se for o caso, será ordenada a apresentação do paciente, desse que se encontre preso (art.657 do CPP), para os fins objetivados pelo art.660, caput, do Código de Processo Penal (interrogatório). Ainda, caracterizada fica também sua qualidade sumaríssima, pelo fato de que efetuadas as diligências e interrogado o paciente, se isto for necessário, o juiz decidirá fundamentadamente, dentro de 24 (vinte e quatro) horas (art.660 do CPP), ou o relator colocará o processo em mesa para o julgamento na primeira sessão, conforme norma preponderante os regimentos internos dos tribunais (MOSSIN, 2005, p. 323).

Page 37: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

35

Sobre o direito tutelado pelo habeas corpus, faz-se mister tecer algumas

considerações sobre liquidez e certeza, pois a própria Constituição Federal, no artigo

5º, inciso LXIX, ao tratar do mandado de segurança, preceitua: “conceder-se-á

mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por

habeas corpus”, estabelecendo desta forma a liquidez e a certeza do direito tutelado

como requisitos igualmente a serem verificados pela autoridade judiciária quando da

apreciação do habeas corpus.

Em sua obra sobre mandado de segurança, Meirelles (2001, p. 35)

conceitua direito líquido e certo.

Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser imparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais.

Certamente pode-se aplicar este conceito também ao habeas corpus.

Mossin (2005, p. 332) afirma que há condição para a ação de habeas corpus se

resta demonstrado de plano, sem dilação probatória, a ilegalidade ou o abuso de

poder da coação ou da ameaça ao direito de locomoção do paciente. Aduz ainda

que essa demonstração se faz normalmente por meio de prova documental.

Importante ressaltar que as controvérsias que possam surgir durante o

deslinde da questão sobre matéria de direito ou, ainda, matéria de fato que não seja

de alta indagação, não afasta liquidez e certeza do direito reclamado em habeas

corpus. Igualmente liquidez e certeza do mesmo direito não se confundem com

exame de prova que instrui o pedido do habeas corpus.

4.4. EXAME DE PROVA

Segundo Mossin (2005, p. 311), em sede de habeas corpus, diferentemente

das ações de conhecimento ordinárias e dos recursos ordinários, não serve este

instrumento jurídico para que a autoridade judiciária faça inspeção detida da prova,

de maneira aprofundada, a fim de constatar se houve ou não o constrangimento

ilegal ou ameaça ao direito de locomoção do paciente: “abrindo um horizonte bem

vasto, o processo de habeas corpus, devido à sua natureza jurídico-constitucional,

Page 38: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

36

aliada que seja ao procedimento sumaríssimo, não comporta dilação probatória, não

se presta à instrução nos moldes dos processos comuns”. Consequentemente, o

paciente deve demonstrar de plano o constrangimento ilegal ou ameaça em seu

direito de locomoção.

Por outro lado, não deve a autoridade judiciária tomar posição extrema de tal

modo que ao fim seja negada ao paciente a prestação jurisdicional adequada ao

deslinde uma questão que é de alta relevância para o ordenamento jurídico, eis que

se trata de direito fundamental do indivíduo tutelado constitucionalmente. Mossin

(2005, p. 315) adverte que a necessidade de análise do material probatório que

instrui o processo de habeas corpus deve ser vista de modo bastante cuidadoso,

para que o direito do paciente, ou mesmo do impetrante, não se veja prejudicado,

sob a afirmativa, às vezes bastante vaga, de que há óbice para que órgão julgador

não adentre no campo probatório.

Aduz ainda o autor que não se pode conceber regra rígida que não permite o

exame das provas produzidas, desde que não seja aprofundado, que não implique

em dilação probatória. Pelo contrário muitas vezes se torna necessária a valoração

de algum elemento de prova para se concluir quanto à existência ou não do

constrangimento ilegal ou ameaça ao direito de locomoção do paciente. A

autoridade judiciária deve apreciar ainda que de forma mínima, breve, superficial as

provas até então produzidas para verificar se é procedente ou não a ação de habeas

corpus.

Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma) assentou

posição jurisprudencial no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus

nº 7152, em 2 de abril de 1998:

O habeas corpus é um instrumento processual de dignidade constitucional, destinado a garantir o direito de locomoção, não podendo sofrer restrições a sua admissibilidade ao argumento de ser incompatível com a necessidade de exame das provas, se estas encontram-se acostadas à peça exordial e os fatos não apresentam natureza controvertida.

Se desta apreciação mínima, breve, superficial a autoridade judiciária

concluir que para o deslinde da questão há necessidade de aprofundamento do

exame de provas então a via de habeas corpus não é a adequada para a apreciação

da pretensão, devendo-se buscar as vias ordinárias para a tutela do direito.

Por sua vez, o exame aprofundado das provas é entendido como aquele

quer realizado de forma extensa e minuciosa leva inexoravelmente à instauração do

Page 39: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

37

contraditório de provas, a valoração, cotejo e o balanço das mesmas. A assertiva de

que em sede de habeas corpus não se admite o exame de prova é inconciliável com

a garantia constitucional do direito de locomoção, direito fundamental do indivíduo. A

ilegalidade ou abuso de poder passíveis de serem colhidos por habeas corpus não

admitem essa restrição. Restrição desta monta diminuiria a garantia constitucional

do habeas corpus, assenta o Tribunal de Justiça de São Paulo em acórdão proferido

no Habeas Corpus n° 0300785-06.2011.8.26.0000, em 14 de março de 2012:

A ilegalidade ou abuso de poder passíveis de serem tolhidos pelo writ não admitem essa restrição, autêntico amesquinhamento da garantia constitucional essencial a um estado de direito. O que não tem pertinência no âmbito mais restrito do procedimento de habeas corpus é a reabertura de um contraditório de provas, a valoração, o cotejo, o balanço da prova.

Pelo exposto, apesar de a ação de habeas corpus ensejar um procedimento

sumaríssimo, não há incompatibilidade entre o caráter sumaríssimo e a exame de

provas. O que não se permite é o aprofundamento do exame das provas com a

consequente dilação probatória, mas deve a prova que instrui o pedido ser

examinada pela autoridade judiciária e com bastante cuidado eis que se trata de

garantia constitucional. Assim, não se permite à autoridade judiciária que,

fundamentando-se em não se aprofundar no exame do conjunto probatório, deixe de

inspecionar ainda que de forma mínima, breve, superficial os elementos fáticos

comprovados.

É importante ressaltar que não se permite aprofundamento do exame de

provas e consequente dilação probatória na via do habeas corpus porém a matéria

de direito deve ser examinada pela autoridade judiciária sem que haja possibilidade

de se afastar esse exame ainda que seja imperioso o exame minucioso da tese

jurídica apresentada para tutelar o direito de locomoção do paciente. A restrição

imposta em face da finalidade da garantia constitucional do habeas corpus, reforça-

se, se refere tão-somente à matéria fática.

4.5 CABIMENTO DE HABEAS CORPUS EM RELAÇÃO A PUNIÇÕES

DISCIPLINARES MILITARES

O artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição Federal, prescreve que “não

caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. Certamente o

texto constitucional refere-se tão-somente àquelas punições disciplinares militares

Page 40: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

38

cerceadoras da liberdade de locomoção do militar transgressor, tais como a prisão e

detenção disciplinares.

Outrossim, verifica-se do texto constitucional que o legislador não explicitou

nenhuma exceção à vedação de cabimento de habeas corpus em relação a

punições disciplinares militares, apesar de o habeas corpus ser instituto jurídico

concebido para garantir direito fundamental do indivíduo, qual seja, o direito de

locomoção.

Incialmente parece que o legislador constituinte teve a intenção de prestigiar

os princípios basilares das Instituições Militares, quais sejam, a hierarquia e a

disciplina. Oliveira (2005, p. 151) opina nesse diapasão:

Com efeito, pelo fato de os militares encontrarem-se sujeitos a um regime de especial vinculação estatutária com a Administração Pública, ao se excluir o controle judicial sobre o cabimento das penas impostas, optou o legislador constituinte por fortalecer a disciplina nas Forças Armadas, no resguardo da fidelidade aos regulamentos de serviço e ao respeito hierárquico, alcançando-se ademais, a desejada eficiência no sistema de punições internas do serviço.

Acontece, porém, que esta norma constitucional tem que estar em harmonia

com as outras normas constitucionais. É cediço que o habeas corpus é instrumento

jurídico previsto no artigo 5°, inciso LXVIII, garantia constitucional para proteção do

direito fundamental de liberdade de ir, vir e permanecer. Não se trata de

inconstitucionalidade entre normas constitucionais, mas sim da adequada

interpretação no sentido de que a vedação constitucional, ainda que com a intenção

de prestigiar os princípios de hierarquia e disciplina castrenses, não pode estar, em

todos os casos, acima da garantia constitucional do direito fundamental da liberdade

individual de locomoção. Comprovada esta tese está pela simples observação da

posição das normas em questão na topografia do sistema constitucional brasileiro.

Assim é que a questão da adequada interpretação a ser dada ao dispositivo

constitucional teve que ser enfrentada pelo Poder Judiciário, em decorrência de o

transgressor militar disciplinar não se conformar com o cerceamento de sua

liberdade de locomoção, por ato administrativo do superior hierárquico, e em face

disso exigir a prestação jurisdicional para garantir o direito fundamental de ir e vir.

Em relação à adequada interpretação deste dispositivo constitucional o

Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma) assentou jurisprudência, conforme

acórdão proferido no julgamento do Habeas Corpus nº 108268/MS, em 20 de

setembro de 2011, no sentido de que não cabe habeas corpus nas hipóteses de

Page 41: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

39

punições disciplinares militares, salvo para apreciação dos pressupostos da

legalidade de sua inflição.

Esta jurisprudência tem origem no Habeas Corpus n° 70.648-7, julgado em 9

de novembro de 1993, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, cujo

relator foi o então Ministro Moreira Alves. Naquele julgamento, acordaram os

Ministros, por unanimidade de votos, que a vedação constitucional do artigo 142,

parágrafo 2º, não impede que o Poder Judiciário examine em sede habeas corpus a

ocorrência dos quatro pressupostos de legalidade do ato administrativo disciplinar

militar, quais sejam, a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e pena

suscetível de ser aplicada disciplinarmente.

Outrossim, o mesmo entendimento jurisprudencial foi assentado no Recurso

Extraordinário n° 338.840, julgado em 19 de agosto de 2003, pela Segunda Turma

do Supremo Tribunal Federal, cuja relatora foi a então Ministra Ellen Gracie. Naquele

julgamento, acordaram os Ministros, por unanimidade de votos, que não há que se

falar em violação ao artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição Federal, “se a

concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se

tão-somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de

questões referentes ao mérito”.

No caso, o recurso foi conhecido e provido, pois entenderam os Ministros

que a decisão impugnada concedeu habeas corpus pautando-se pela apreciação

dos aspectos fáticos da medida punitiva militar, invadindo seu mérito e, na esteira do

entendimento assentado no julgamento do Habeas Corpus n° 70.648-7,

anteriormente abordado, reforçaram que se a punição disciplinar militar atende aos

pressupostos de legalidade, também reforçando, a hierarquia, o poder disciplinar, o

ato ligado à função e a pena suscetível de ser aplicada disciplinarmente, torna

incabível a apreciação do habeas corpus.

Acontece, porém, que a decisão impugnada, proferida pelo Tribunal

Regional Federal da 4ª Região, também assenta que em relação ao disposto no

artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição Federal, o entendimento jurisprudencial é

pacífico no sentido do cabimento do habeas corpus quando o ato atacado revestir-se

de ilegalidade ou constituir abuso de poder, atingindo a liberdade de locomoção do

indivíduo. A única ressalva, assim ressalta aquele Tribunal, diz respeito ao mérito da

sanção administrativa emanada da autoridade militar, ponto que não pode ser objeto

de análise pelo Poder Judiciário.

Page 42: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

40

No caso em questão, entendeu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região

que afigurou-se o excesso na conduta da autoridade militar, tendo em vista que o

acréscimo de punição decorreu de causa injusta, ou seja, sentimento pessoal de

indignação do superior em razão das alegações apresentadas pelo paciente. Infere-

se, portanto, que aquele Tribunal entendeu que o processo que culminou na punição

disciplinar, ainda que revestido de todas as formalidades legais e regulamentares,

está eivado de vício, haja vista que não se pautou a autoridade militar pela

legalidade em sentido amplo, ou seja, não foram atendidos princípios da

Administração Pública, em especial, princípios do interesse público, da

impessoalidade, da razoabilidade. Destarte, o Tribunal Regional Federal da 4ª

Região entendeu procedente a concessão de habeas corpus, pois o ato atacado

revestia-se de ilegalidade, atingindo a liberdade de locomoção do indivíduo. Assim o

controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar emanado pela autoridade

militar não estava adentrando na questão do mérito.

Porém assim não entendeu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do

Recurso Extraordinário n° 338.840, ora em comento. Observou a Ministra Relatora

em seu voto que, da leitura do acórdão recorrido, por ocasião da concessão da

ordem, houve flagrante apreciação dos aspectos fáticos da punição, com a

consequente invasão do mérito da medida punitiva. Aduz ainda que não cabe ao

Poder Judiciário, nas questões atinentes a punições disciplinares militares, traçar

juízo de valor quanto à injustiça da punição, aplicada pela autoridade militar

hierarquicamente superior, também por consistir indubitavelmente em análise do

mérito da medida aplicada.

Não obstante a posição do Supremo Tribunal Federal, consubstanciada no

entendimento jurisprudencial anteriormente exposto, não se pode concordar que a

mera apreciação de aspectos fáticos ou, ainda, o juízo de valor quanto à injustiça da

punição, signifique inexoravelmente que o Poder Judiciário esteja analisando o

mérito da medida aplicada pela autoridade militar.

De fato, enfatiza-se mais uma vez que o controle jurisdicional do ato

administrativo, neste caso para aplicar punição disciplinar militar, deve verificar a

legalidade no sentido amplo (ou legitimidade), ou seja, o ato da autoridade militar

competente para aplicar a punição ao transgressor deve estar amparado por todos

os princípios que iluminam a atividade da Administração Pública.

Page 43: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

41

Obviamente que as Instituições Militares caracterizam-se universalmente por

seguirem rígidos princípios de hierarquia e disciplina, mas essa característica de

forma alguma pode ser utilizada para o desvio de finalidade no exercício do poder

disciplinar da autoridade militar.

Nesse diapasão, Oliveira (2005, p. 149) lembra:

E como a finalidade de todo ato administrativo é atingir o interesse público projetado pela Administração, inexistindo este há desvio de finalidade. Se o ato praticado, portanto, gerou fim diverso daquele previsto na lei, tem-se o chamado desvio de finalidade.

Como exemplo de desvio de finalidade, o autor cita o caso em que a

aplicação de sanção disciplinar com motivação de perseguição pessoal e não pelo

cometimento de uma efetiva transgressão militar.

Em relação ao interesse público projetado pela Administração, isto é, aquele

a ser satisfeito pela autoridade militar quando da aplicação de uma punição

disciplinar, vislumbra-se aquele projetado no Regulamento Disciplinar do Exército

(RDE), na medida em que este diploma regulamentador do processo disciplinar

acolhe a tese, como já exposto, de que a punição tem por fim preservar os princípios

da hierarquia militar e disciplina castrense (caráter repreensivo), bem como

recuperar disciplinarmente o transgressor (caráter educativo da pena) e prevenir

novas ocorrências do fato (caráter preventivo da pena), haja vista que a punição

disciplinar deve ter em vista educar não só ao punido como também a coletividade a

que ele pertence.

Se, nos moldes do citado exemplo, a aplicação de sanção disciplinar ao

transgressor tem motivação de caráter pessoal e a pena é cerceadora de sua

liberdade de locomoção, resta patente a exigibilidade de serem apreciados pela

autoridade judiciária os aspectos fáticos da punição, ainda que em sede de habeas

corpus, sem que essa apreciação judicial se consubstancie necessariamente em

invasão do mérito da medida punitiva.

Ainda sobre a possibilidade de haver desvio de finalidade quando da

aplicação de sanção disciplinar, em face de motivação de caráter pessoal, cabe

certamente ao Poder Judiciário traçar juízo de valor quanto à injustiça da punição,

isto é, cabe à autoridade judiciária fazer juízo de razoabilidade da punição aplicada

ao transgressor pela autoridade militar, sem que isso signifique necessariamente

afronta à discricionariedade da Administração Pública no exercício do poder

disciplinar.

Page 44: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

42

Na jurisprudência, às vezes, aparece a afirmação de que o Poder Judiciário não examina a substância da punição disciplinar, porque constituiria invasão indevida do mérito do ato administrativo. Tal afirmação resulta de indevida extensão da regra do art. 5º, III, da Lei 1.533/1951. É como se tudo que restasse da competência da autoridade e das formalidades essenciais constituísse mérito do ato administrativo. Ocorre que essa regra – aliás, já desatualizada – só foi instituída para o mandado de segurança, em razão da exigência de direito líquido e certo, ou seja, mesmo em sua origem não era válida para o controle judicial das sanções disciplinares nas vias ordinárias (MOREIRA, 2012, p. 43).

O controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar pode então ser

feito pela via do habeas corpus e, igualmente, pode a autoridade judiciária analisar a

matéria de fato que instrui o respectivo pedido e a razoabilidade da punição.

Observa-se entretanto que, por se tratar do habeas corpus, o que não pode ocorrer

é o aprofundamento do exame das provas do fato, isto é, a já citada dilação

probatória.

4.5.1 Competência para processar e julgar habeas corpus em relação a

punições disciplinares militares

A competência para processar e julgar habeas corpus contra ato

administrativo disciplinar punitivo praticado por autoridade militar das Forças

Armadas é da Justiça Comum Federal, nos termos do artigo 109, inciso VII, da

Constituição Federal (1988):

Art.109. Aos juízes federais compete processar e julgar: [...] VII - os "habeas-corpus", em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; [...].

Ressalte-se que não é da competência do Superior Tribunal Militar

processar e julgar habeas corpus contra ato administrativo disciplinar punitivo

praticado por autoridade militar das Forças Armadas, pois o artigo 124, caput, da

Constituição Federal, assim preconiza: “à Justiça Militar compete processar e julgar

os crimes militares definidos em lei”, não se aplicando o disposto no artigo 6º, inciso

I, alínea ‘c’, da Lei nº 8.457, de 4 de setembro de 1992, a qual organiza a Justiça

Militar da União e regula o funcionamento de seus Serviços Auxiliares.

A competência para processar e julgar habeas corpus contra ato

administrativo disciplinar punitivo praticado por autoridade militar estadual é da

Page 45: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

43

Justiça Militar estadual, nos termos do artigo 125, parágrafos 4º e 5º, da Constituição

Federal (1988), na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45.

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. [...] § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. § 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. [...].

Ressalte-se que, nesse sentido, a proposta de Emenda Constitucional nº

358/2005 apresenta uma nova redação para o artigo 124, da Constituição Federal,

nos seguintes termos: “à Justiça Militar da União compete processar e julgar os

crimes militares definidos em lei, bem como exercer o controle jurisdicional sobre as

punições disciplinares aplicadas aos membros das Forças Armadas”.

De acordo com a proposta, a Justiça Militar da União recebe competência

para exercer o controle jurisdicional sobre as punições disciplinares aplicadas aos

membros das Forças Armadas, pondo fim à cisão atual, que deixa tal controle à

Justiça Comum Federal. Outrossim, a redação proposta é consentânea com a

atribuição de competência à Justiça Militar estadual para julgar ações judiciais contra

atos disciplinares militares, feita pela Emenda Constitucional n.º 45.

Page 46: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

44

5 CONCLUSÃO

A fim de se buscar a solução do problema apresentado na introdução do

presente trabalho, seguindo a metodologia proposta, analisaram-se a legislação e o

entendimento doutrinário e jurisprudencial relacionados ao tema, tendo sido

abordados ao longo do desenvolvimento os princípios e dispositivos legais que

limitam o controle jurisdicional dos atos administrativos, o processo disciplinar militar

adotado pelo Exército e os fundamentos da interpretação doutrinária e

jurisprudencial para o artigo 142, parágrafo 2°, da Constituição Federal.

O controle jurisdicional dos atos administrativos foi abordado no primeiro

capítulo do desenvolvimento. Deste capítulo conclui-se pela possibilidade de o

Poder Judiciário controlar forma e conteúdo dos atos emanados pela Administração

Pública, sem que este controle signifique substituir a atividade administrativa, mas

sim a possibilidade de aquele Poder invalidar os atos que não estão de acordo com

a lei ou que aviltem os princípios administrativos, em especial os princípios da

razoabilidade, moralidade administrativa, princípios gerais do direito e supremacia do

interesse público, eis que princípios de origem pretoriana que ampliam o controle

jurisdicional do ato administrativo para além da mera verificação de aspectos

formais.

O processo disciplinar militar foi abordado no segundo capítulo do

desenvolvimento. Deste capítulo conclui-se pela imperiosa necessidade de o ato

administrativo disciplinar militar atender aos princípios basilares de hierarquia e

disciplina sem, no entanto, dar azo ao abuso de poder, principalmente em relação ao

desvio da finalidade. Percebeu-se que o processo é altamente subjetivo quanto à

dosimetria da pena na medida em que a infração administrativa disciplinar descrita

no RDE (preceito primário) não possui o seu respectivo intervalo de pena aplicável

pela autoridade competente (preceito secundário), diferentemente do que ocorre nas

infrações previstas no Código Penal, onde cada conduta tipificada como crime

possui a sua respectiva descrição (preceito primário) e intervalo de pena aplicável

pelo juiz (preceito secundário). Como meio de se evitar a arbitrariedade e tornar o

processo mais objetivo, poder-se-ia conceber um sistema de infrações e sanções

disciplinares nos mesmos moldes do sistema do Código Penal, corroborado pelo fato

de que as normas penais e disciplinares militares tem como ponto em comum a

previsão de sanções que repercutem na liberdade individual do transgressor.

Page 47: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

45

Os fundamentos da interpretação doutrinária e jurisprudencial para o artigo

142, parágrafo 2°, da Constituição Federal, foram abordados no terceiro capítulo do

desenvolvimento. Deste capítulo conclui-se pela verificação da hipótese como

solução do problema, isto é, conclui-se dos fundamentos apresentados que o artigo

142, parágrafo 2°, da Constituição Federal, não deve ser interpretado literalmente,

mas sistematicamente com os demais dispositivos e princípios constitucionais, em

especial os direitos e garantias fundamentais individuais, restando cabível o habeas

corpus em relação a punições disciplinares militares com vistas ao controle

jurisdicional do ato administrativo punitivo aplicado pela autoridade militar, desde

que a apreciação judicial verifique apenas aspectos ligados à legalidade e aos

princípios administrativos.

Tendo em vista apontar aspectos jurídicos a serem observados pelas

autoridades militares, a fim de se evitar falhas nos processos disciplinares e

consequentes demandas judiciais, proporcionando maior segurança e estabilidade

das decisões administrativas, é mister ressaltar que as autoridades competentes ao

conduzir os processos administrativos disciplinares militares, a par da preocupação

com os aspectos formais, como o atendimento ao princípio do contraditório e da

ampla defesa, não devem se olvidar que não menos importante é o atendimento à

finalidade do ato, com especial atenção à razoabilidade na aplicação da pena ao

transgressor.

Page 48: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

46

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:

Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 52/2006 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006.

______. Lei nº 9.784, de 20 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF,

01 fev. 1999. Seção 1, p. 1.

______. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 dez. 1980. Seção 1, p. 24777.

______. Lei nº 5.836, de 5 de dezembro de 1972. Dispõe sobre o Conselho de Justificação e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 dez.

1972. Seção 1, p. 10889.

______. Lei nº 8.457, de 4 de setembro de 1992. Organiza a Justiça Militar da União e regula o funcionamento de seus serviços auxiliares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 08 set. 1992. Seção 1, p. 12353.

______. Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências. Diário Oficial da União,

Brasília, DF, 27 ago. 2002. Seção 1, p. 5.

______. Decreto nº 71.500, de 5 de dezembro de 1972. Dispõe sobre o Conselho de Disciplina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 dez. 1972. Seção 1, p. 11065.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma). Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 7152/PR, do Tribunal Regional da 4ª Região, Brasília, DF, 2 de abril de 1998. Diário de Justiça de 15 de junho de 1998. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/ita/abreDocumento.jsp?num_registro=199800008624&dt_publicacao=15-06-1998&cod_tipo_documento=>. Acesso em: 2 set. 2013.

_____. Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma). Habeas Corpus nº 108268/MS, do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 20 de setembro de 2011. Diário de Justiça de 5 de outubro de 2011. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28108268%

Page 49: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

47

2ENUME%2E+OU+108268%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/brb4lv4>. Acesso em: 2 set. 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma). Habeas Corpus nº 70648/RJ, do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 9 de novembro de 1993. Diário de Justiça de 4 de março de 1994. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2870648%2ENUME%2E+OU+70648%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/d4frsqc>. Acesso em: 2 set. 2013.

_____. Supremo Tribunal Federal (Segunda Turma). Recurso Extraordinário nº 338840/RS, do Tribunal regional da 4ª Região, Brasília, DF, 19 de agosto de 2003. Diário de Justiça de 12 de setembro de 2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28338840%2ENUME%2E+OU+338840%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/cocad7f>. Acesso em: 2 set. 2013.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. 242 p.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo:

Malheiros, 2001. 782 p.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional.

2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 110 p.

MOREIRA, João Batista Gomes. Controle judicial das sanções disciplinares aplicadas aos servidores públicos. Revista do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Brasília, v. 24, nº 10, p. 40-47, out. 2012, Edição Especial

Servidor Público. Disponível em: <http://www.trf1.jus.br>. Acesso em: 29 jun. 2013.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Habeas Corpus. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Manole,

2005. 689 p.

OLIVEIRA, Farlei Martins de. Sanção disciplinar e controle jurisdicional. Rio de

Janeiro: Lúmen Júris, 2005. 189 p.

SÃO PAULO (Estado), Tribunal de Justiça (12ª Câmara de Direito Criminal). Habeas Corpus n° 0300785-06.2011.8.26.0000, da 20ª Vara Criminal Central, São Paulo, SP, 14 de março de 2012. Registrado em 10 de abril de 2012. Disponível em:

Page 50: controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar

48

<http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=5813039>. Acesso em: 2 set. 2013. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed. São

Paulo: Malheiros, 2006. 924 p.