CONVERSANDO SOBRE ETICA

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JUNGMO SUNG

eJOSU CNDIDO DA SILVA

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sung, Jung Mo, 1958Conversando sobre tica e socied,ade / Jung Mo Sung e Josu Cndido da Silva. - Petrpolis, RJ: Vozes, 1995.

CONVERSANDO SOBRE TICA E SOCIEDADE10" Edio

ISBN 85-326-1546-5

1. tica 2. tica social 3. Sociedade I. Silva, Josu Cndido da. 11. Ttulo.

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ndices para catlogo sistemtico:1. tica social 1771725957c

EDITORA Y VOZESPetrpolis 2002

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TICA E RELAESDE GNERO

Gnero e sexoi'Ningum nasce mulher: torna-se mulher". Esse famoso dito da filsofa feminista francesa Simone de Beauvoir tocou no ponto nevrlgco de uma situao de dominao que j perdura milhares de anos na histria da humanidade e que nas ltimas dcadas foi trazido tona na nossa sociedade: a opresso dos homens sobre as rnuI

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lheres. Ou melhor dito, de vares sobre as mulheres. A nossa lngua est to marcada pela dominao masculina que encontramos at dificuldades lingsticas para falarmos sobre este assunto. Estamos acostumados a utilizar o termo "homem" tanto para nos referirmos ao varo quanto para o ser humano, no sentido universal. Todos aprendemos desde cedo na escola que para nos referirmos a um grupo composto de um homem (varo) e de muitas mulheres. o plural deve estar no masculino. Este um pequeno exemplo de como a nossa lngua e toda a nossa cultura esto marcadas por esta relao de dominao. Dizer que no se nasce mulher ou homem-varo, mas que se torna mulher e homem-varo desmascarar a identificao feita entre o sexo (a identidade natural) e o gnero. Como vimos nos dois primeiros captulos deste livro, os seres humanos constroem um mundo humano para poderem se relacionar entre si e com a natureza. A identidade sexual, a sexualidade e as relaes entre sexos diferentes tambm so construdas socialmente e so interpretadas a partir da cultura. Ningum tem acesso sua sexualidade e do(a) outro(a), nem aos seus instintos sexuais, de. uma forma direta e "pura". sempre mediado pela cultura; so com os "culos" de uma determinada cultura que "vemos" a nossa identidade sexual, a nossa sexualidade e a de outros(as), e tomamos contato com os nossos instintos. o sexo socialmente construdo. As relaes de gnero. as relaes entre homens-va-

res e mulheres so socialmente construdas, e no determinadas biologicamente. A relao de gnero que vivemos hoje uma relao de desigualdade social e pessoal baseada na diferena entre os sexos e legitimada em nome de um determinismo biolgico da superioridade de um dos sexos, o masculino, e de uma determinada forma de viver a sexualidade, a heterossexual. Como sempre se busca legitimar a desigualdade socialmente construda em nome de cincias da natureza, que, nesses casos, no so nada mais que ideologias travestidas de pseudocientificidade. Esta desigualdade social est articulada com outras formas de desigualdades, distncias e hierarquias sociais.

Patriarcalismo nas sociedades antigasNas sociedades da Antiguidade a famlia se preocupava, em primeiro lugar, pela produo econmica para a qual as mulheres e escravos de ambos os sexos eram a fora de trabalho. O sistema patriarcal no se referia simplesmente a um sistema de relaes sociais, econmicas, culturais e legais entre o varo - chefe de famlia - e outros grupos (mulheres, meninos e meninas, escravos e escravas) e com a propriedade de terras e animais. Nestes sistemas patriarcais da Antiguidade, como os de hoje, o status das mulheres variava segundo sua classe social. As mulheres de classes dominantes desfrutavam de certos privilgios e comodidades que as servas e escravas no possuam. Entretanto, apesar dessas diferenas, to-

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Nas sociedades modernasEsta situao das mulheres nas sociedades patriarcais pr-modernas foimodificada nas sociedades industriais contemporneas. Como resultado da transferncia dos meios de produo da famlia patriarcal aos donos da fbrica, as mulheres e os escravos passaram a ser desnecessrios para a produo domstica. Pouco a pouco a escravido foi abolida, e as mulheres, com muita luta, foram conquistando os direitos civis. importante destacar que os principais movimentos libertrios e emancipatrios dos sculos XIX e XX - sejam no campo capitalista ou no socialista - sempre deram nfase quase que exclusiva transformao econmica e poltica. Relegando para segundo plano, ou at mesmo negando, a questo da mulher.

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~Os lderes da Revoluo Russa de 1917, por exemplo, escreveram leis que garantiam os mesmos direitos civis s mulheres e aos homens. Porm, ao mesmo tempo, denunciaram os movimentos feministas como sendo somente um movimento de mulheres da burguesia que buscavam os mesmos privilgios dos homens de sua prpria classe. Para estas lideranas comunistas, o feminismo no era necessrio para as mulheres operrias. Nenhuma crtica de gnero seria necessria para a emancipao das mulheres operrias. A igualdade no mbito da produo seria suficiente para a plena emancipao das mulheres trabalhadoras. No mundo ocidental- mesmo nos pases que se orgulham da sua defesa dos direitos universais do homem e da democracia universal- as mulheres s passaram a ter direito a voto, isto , serem consideradas como cidads, depois de muitos anos de luta. A luta pelo voto das mulheres comeou na segunda metade do sculo XIX, e s no final da dcada de 1910 e no incio dos anos 20 comea a obter algumas vitrias. Nos Estados Unidos, por exemplo, a emenda constitucional que proibiu a discriminao poltica com base no sexo s foi introduzida em 1920. A partir dessa emenda as mulheres comearam a adquirir o direito a voto. No Brasil, a Constituio de 1934 estabeleceu o sufrgio universal para homens e mulheres alfabetizados a partir de 18 anos. A condio "alfabetizados", numa poca em que o pas tinha um alto ndice de analfabetismo principalmente entre as mulheres - mostra que o sufrgio "universal" no era to universal assim. As mudanas nas sociedades modernas no significaram de maneira alguma o fim do patrarcalismo ou da dominao de vares sobre as mulheres. Houve uma melhora, mas no uma mudana radical.

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Diversas faces do patriarcalismoA violncia contra as mulheres por parte dos seus companheiros ou pais infelizmente ainda bastante comum, para acreditarmos que os problemas nas relaes de gnero foram resolvidos com a industrializao e a modernizao da economia. As recentes e poucas delegacias de mulheres mostram como o machismo ainda impera em nossa sociedade, e o espancamento e estupro continuam fazendo parte do cotidiano da nossa cultura machista. Mesmo no campo da economia e da poltica percebemos a pouca presena das mulheres nos postos de comando ou de deciso, alm do fato de que elas continuam, em geral, ganhando menos do que homens para fazer o mesmo servio. Sem contarmos a sobrecarga de trabalho de muitas dessas mulheres. que ao voltarem s suas casas tm que dar conta dos servios domsticos, como lavar, cozinhar, cuidar das crianas etc., e, se for o caso, ainda dar ateno ao seu companheiro. A dupla ou tripla jornada a dificil realidade da maioria das mulheres trabalhadoras pobres. prevalece tambm nas igrejas e nos movimentos religiosos, onde as mulheres constituem a maior parte dos seus membros, e somente uma pequena parcela delas tem acesso\,

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aos escales mdios ou SUP. erores. So poucas as Igrejas crists que ordenam mulheres para funes de P, stora (ou equivalentes). conhecida a posio a da, IgreJ,' cath,' , , que" em nome da Tradi,o,e,de a ca Deus, no permite o acesso das mulheres ao sacerdcio. Esta situao de subordinao das mulheres no muito diferente em outras religies. . . . . A propna Imagem de Deus esta fortemente mar~a?~ pela figura. masculina, As religies, que no ImcIOda humamdade adorava~ ~eusas e d~uses, co~ o.passar do tempo foram ehmI~ando as fIgu~as femnnas e se concentrando na figura masculna e patriarcal. Mesmo em religies que se referem a Deus no gnero neutro (oque no temos na gramtica portuguesa), acaba prevalecendo a viso pa triarcal. Por isso, muitas telogas, antroplogas, socilogas e historiadoras feministas esto resgatando os mitos e a histria das deusas e propondo uma imagem menos patriarcal, apresentando Deus como Pai-Me ou como Me-Pai. Essa "reletura" do passado no se esgota somente na rea religiosa. A prpria histria, como tantas outras cincias, est influenciada pelo pa~riarcalisI?o. H um dito famoso que e~pre, sa bem s ISSO: Atrs de todo grande homem esta uma gran" de mulher". s mulheres sobrou a condio subalterna e estereotipada de ficarem na retaguarda dos grandes hom~ns. E as grandes mulheres, qu~.foram protagomstas no seu tempo. foram sendo esquecdas" pelas cincias oficiais e desaparecendo dos livros sagrados das religies ou dos livros de histria.

A luta das mulheres e a tica A questo do gner~ ~st ligada: portanto, q~i10 q~~ se chamou de.c~Ihca ~o patnarcad~, ou seja, a ~nt~c~ do .pre?OmmIOda fI.guramasculina como pnncipio dreconador e onentador das grandes decises econrncas, sociais, polticas e culturais. Alm da afirmao de que a identidade sexual no est dissociada da identidade social, poltica, religosa etc. Na compreenso dos processos sociais acrescenta-se a variante do gnero da situao de classe e de raa. Afinal, uma mulher negra e pobre muito mais oprimida e marginalizada do que um homem branco e pobre.

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O declnio do patriarcalismo que vemos na nossa civilizao, apesar de sua persistncia, frutolll'ji: das lutas das mulheres. No uma simples evoluo da natureza ou uma concesso dos homens. Ess~ luta ~ o cons:qente ~eclnio da nossa civilizaao patnarcal sao sem duvida uma das marcas do nosso tempo.O movimento feminista no se restringe ao campo das relaes sociais. Questiona tambm todo o paradgma (modelo)de conhecimento ocidental moderno baseado somente na razo quantitativa e que exclui outras dimenses do conhecimento, como a memria, a intuio e imaginao. A perspectiva do gnero introduz u~a dimenso inclusiva tambm no campo do conhecmento. Uma das maneiras em que se pretende descaracterizar o movimento feminista transformar a causa feminista em uma disputa entre homens- e mulheres para ver quem tem mais poder, muito a gosto dos meios de comunicao social. A luta das

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