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Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente 1 EXMO. SR. DR. DESEMBARGADOR DO PLANTÃO NOTURNO DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Paciente: XXXXXXX Autoridade Coatora: EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE E DO IDOSO DA COMARCA DA CAPITAL autos: XXXXXXX EUFRÁSIA MARIA SOUZA DAS VIRGENS, Defensora Pública titular da 1ª DP da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) e GUSTAVO CIVES SEABRA, Defensor Público, matrícula 3032.138-4, subcoordenador da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) e FREDDERICO BIZZOTTO, Defensor Público da Vara de Infância e Juventude da Capital, vêm, respeitosamente, perante uma das Colendas Câmaras desse Egrégio Tribunal, com fulcro no art. 5 o , LXVIII, da Constituição da República, impetrar ordem de HABEAS CORPUS COM PEDIDO DE LIMINAR em favor de XXXXXXX, adolescente com 17 anos, nascida em XXXXX, ID número XXXX SSP/DETRAN, residente na XXXXXX (qualificação de acordo com oitiva informal realizada no MP) que se encontra em cumprimento de medida de internação provisória no PACGC , e seu filho XXXXXX, acolhido institucionalmente de apenas 2 meses de idade, indicando como

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Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente

1

EXMO. SR. DR. DESEMBARGADOR DO PLANTÃO NOTURNO

DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE

JANEIRO

Paciente: XXXXXXX

Autoridade Coatora: EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA

DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE E DO IDOSO DA COMARCA DA

CAPITAL – autos: XXXXXXX

EUFRÁSIA MARIA SOUZA DAS VIRGENS, Defensora

Pública titular da 1ª DP da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança

e do Adolescente (CDEDICA) e GUSTAVO CIVES SEABRA, Defensor

Público, matrícula 3032.138-4, subcoordenador da Coordenadoria de Defesa

dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) e FREDDERICO

BIZZOTTO, Defensor Público da Vara de Infância e Juventude da Capital,

vêm, respeitosamente, perante uma das Colendas Câmaras desse Egrégio

Tribunal, com fulcro no art. 5o, LXVIII, da Constituição da República,

impetrar ordem de

HABEAS CORPUS COM PEDIDO DE LIMINAR

em favor de XXXXXXX, adolescente com 17 anos, nascida em XXXXX, ID

número XXXX SSP/DETRAN, residente na XXXXXX (qualificação de

acordo com oitiva informal realizada no MP) que se encontra em cumprimento

de medida de internação provisória no PACGC , e seu filho XXXXXX,

acolhido institucionalmente de apenas 2 meses de idade, indicando como

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Autoridade Coatora a EXMA. SRA. DR. JUÍZA DE DIREITO DA VARA

DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE DA COMARCA DA CAPITAL, nos

autos XXXXXXXX, de acordo com os argumentos a seguir aduzidos:

I.

DOS FATOS

A Paciente foi representada pela prática de ato infracional análogo

ao descrito no art. 33, caput da Lei 11.343/06, tendo o magistrado, mesmo

ausente violência ou grave ameaça, determinado a internação provisória, o que

enseja o presente habeas corpus.

Fato é que o ato imputado à adolescente não pode ensejar medida

privativa de liberdade tais como internação e semiliberdade.

II.

DA IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MEDIDA PRIVATIVA

DE LIBERDADE A ADOLESCENTE QUE RESPONDE A

PROCEDIMENTO POR ATO ANÁLOGO A TRÁFICO

De acordo com o artigo 227, § 3°, V, da Constituição da

República, a aplicação de medidas privativas de liberdade está sujeita aos

princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de

pessoa em desenvolvimento.

Não há dúvida de que a internação implica privação de liberdade.

Aliás, a internação é a medida mais gravosa e em tudo se assemelha a uma

prisão preventiva

Como o ato infracional em tela foi cometido sem grave ameaça ou

violência à pessoa, impõe-se a imediata colocação da adolescente em meio

aberto, ou seja, em liberdade assistida.

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Vale transcrever a súmula 492 do STJ: O ato infracional

análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à

imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente.

Mais do que os argumentos jurídicos, é importante demonstrar as

peculiaridades do caso:

a) A adolescente foi apreendida com 4 gramas de maconha e 3

gramas de cocaína, ou seja, estamos diante de quantidade ínfima

de entorpecente;

b) Em oitiva informal (juntada a esse writ a adolescente esclareceu

que a droga se destinava ao próprio consumo e não há outros

elementos que possam afastar essa versão);

c) A adolescente estava com seu filho de apenas 2 meses. É de se

dizer: uma criança que se alimenta única e exclusivamente do

leite materno, como recomenda a OMS, foi afastada de sua mãe.

Os efeitos de dar complemento vitamínico e alimentos outros

são nefastos nessa fase da vida, pois podem causar alergias, além

de diminuir a imunidade da criança que, pelo leite materno,

recebe os anticorpos da mãe. Além da questão alimentar, existe

ainda a questão do vínculo afetivo e os efeitos prejudiciais desse

rompimento nos primeiros anos de vida;

d) O STF recentemente concedeu HC coletivo a mães que tenham

filhos ou estejam grávidas para determinar que aguardem o

julgamento em liberdade (HC 143641).

Aprofundando nos argumentos acima:

Não faz qualquer sentido manter a privação de liberdade (a

internação sem dúvida possui esse caráter) de uma mãe com criança tão

pequena sob sua responsabilidade.

O ato praticado, mesmo que não seja desclassificado para análogo a

uso de drogas, não possui violência ou grave ameaça (ausente a condição do

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artigo 122, I da Lei 8069/90, portanto). Nesse sentido, importante ressaltar que

a adolescente não foi apreendida em local de domínio de facção criminosa,

mas sim em uma praça.

Outro ponto merece destaque: a Defensoria ingressou com pedido

de reconsideração da decisão, mas até o momento não foi apreciado.

Em relação ao HC coletivo deferido pelo STF, extraem-se os

seguintes trechos:

As narrativas acima evidenciam que há um descumprimento sistemático de regras

constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus filhos. Por isso,

não restam dúvidas de que “cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização

da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro” de violações a direitos humanos que vem se

evidenciando, na linha do que já se decidiu na ADPF 347, bem assim em respeito aos compromissos

assumidos pelo Brasil no plano global relativos à proteção dos direitos humanos e às recomendações

que foram feitas ao País A atuação do Tribunal, nesse ponto, é plenamente condizente com os textos

normativos que integram o patrimônio mundial de salvaguarda dos indivíduos colocados sob a

custódia do Estado, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional

de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, os Princípios e Boas

Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, a Convenção das Nações

Unidas contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e as

Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros (Regras de Mandela).

No dispositivo do julgamento o Ministro relator enfatiza:

Em face de todo o exposto, concedo a ordem para determinar a substituição da prisão

preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas

previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de

crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com

Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo

DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de

crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda,

em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que

denegarem o benefício. Estendo a ordem, de ofício, às demais as mulheres presas, gestantes,

puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a

medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições

previstas no parágrafo acima.

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Os argumentos acima deixam claro que a internação da adolescente

não pode subsistir. Insta acentuar que a decisão da autoridade coatora negou a

aplicação da decisão do STF ao argumento de que a paciente e seu filho são

moradores de rua. Nada mais equivocado! Com efeito, não é possível que a

pobreza seja base para negativa de direitos; além disso, pessoas e famílias em

situação de rua merecem receber apoio da assistência social, e não serem

privadas da liberdade e do convívio familiar.

Apesar de ser matéria afeta à área protetiva do Direito da Criança e

Adolescente, vale transcrever o artigo 23 e seu parágrafo primeiro da Lei

8069/90:

Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo

suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.

§ 1o Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida,

a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá

obrigatoriamente ser incluída em serviços e programas oficiais de proteção, apoio e

promoção.

Ora, a pobreza foi utilizada no caso concreto para retirar uma

pequena criança de sua mãe, além de privar a adolescente de sua liberdade.

Como último argumento desse tópico, frisamos que a criança

XXXXX foi acolhida e levada para instituição de acolhimento situada em

Jacarepaguá e, mesmo com a presença de integrantes da família extensa, foi

colocado em medida protetiva excepcional longe na região de residência da

paciente de seus familiares (residem no centro do Rio de Janeiro).

Conforme consulta realizada na página desse E. Tribunal de Justiça

acerca dos bairros de abrangência das Varas de Infância, seja a residência da

avó paterna da criança, com quem a mãe também residia, seja de acordo com a

moradia da avó materna, com quem também mantinha convivência a Vara da

Infância competente para aplicação de medidas protetivas, a exemplo do

acolhimento institucional, é a 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da

Capital, não havendo justificativa para a determinação do acolhimento

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institucional em área de competência da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do

Idoso da Capital, dificultando, sobremaneira, a visitação, além da privação da

criança do cuidado parental sem a necessária fundamentação, violando o artigo

19 da Lei 8069/90, artigo 227 da Constituição da República e artigo 9 da

Convenção da ONU sobre Direitos da Criança.

III

VIOLAÇÃO DA CONVENÇÃO 182 DA OIT

Participação no tráfico como uma das piores formas de trabalho infantil

E DA CONVENÇÃO DA ONU SOBRE DIREITOS DA CRIANÇA

Ainda sobre o ato infracional análogo ao tráfico de drogas (que

provavelmente será desclassificado para uso), outras considerações devem

ser feitas:

A parcela da população submetida a essa prática encontra-se em

especial situação de vulnerabilidade uma vez que são pessoas em

desenvolvimento, conforme a Lei 8.069/90 reconhece expressamente em

seu art. 6°.

Soma-se a tal circunstância o inegável fato de que o Estado falha

em fornecer oportunidades para todos, inclusive e especialmente para

crianças e adolescentes, mesmo diante das exigências constitucionais e

legais de promoção de políticas públicas que visem a garantir a tal segmento

populacional com “prioridade absoluta” a proteção integral de seus direitos.

Em consonância com a dura realidade envolvendo o trabalho

adolescente em atividades ilícitas como o tráfico de entorpecentes, o Brasil,

pelo Decreto 3597/00, internalizou a Convenção n. 182 – Sobre Proibição

das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua

Eliminação - da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

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O referido Acordo Internacional, em seu artigo 3°, inclui sob a

denominação de “as piores formas de trabalho infantil” a utilização,

recrutamento ou a oferta de crianças para a realização de atividades

ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais com

definidos nos tratados internacionais pertinentes.

O artigo 3° da Convenção sobre as piores formas de trabalho

infantil foi regulamentado através do Decreto n° 6481 de 12 de junho de

2008, que prevê no seu artigo 4°:

Para fins de aplicação das alíneas “a”, ‘b” e “c” do artigo 3° da

Convenção n° 182, da OIT, integram as piores formas de

trabalho infantil: I- todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como

venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho

forçado ou obrigatório;

II- a utilização, demanda, oferta ou aliciamento para fins de

exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações

pornográficas;

III- a utilização, recrutamento e oferta de adolescentes para

outras atividades ilícitas, particularmente para a produção e

tráfico de drogas;

IV- o recrutamento forçado ou obrigatório de adolescente para ser

utilizado em conflitos armados.

Cabe salientar que a Convenção utiliza o termo “criança” para

designar toda pessoa menor de 18 anos, conforme artigo 1° da Convenção

sobre Direitos da Criança ratificada pelo Brasil através do Decreto 99.710,

de 21 de novembro de 1990.

O artigo 33 da Convenção sobre Direitos da Criança, por sua

vez, prevê como compromisso do Brasil ao ratificar a referida Convenção

da ONU

Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas, inclusive medidas

legislativas, administrativas, sociais e educacionais, para proteger a criança contra o uso

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ilícito de drogas e substâncias psicotrópicas descritas nos tratados internacionais

pertinentes e para impedir que crianças sejam utilizadas na produção e no tráfico ilícito

dessas substâncias.

Cabe ainda destacar o artigo 37, alínea b, da Convenção sobre

Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil através do Decreto 99.710/90:

“Os Estados Partes zelarão para que:

b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou

arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será

efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso

durante o mais breve período de tempo que for apropriado.”

Numa interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico

brasileiro, incluindo-se naturalmente os tratados internacionais acima

mencionados, é preciso reconhecer que o adolescente que se encontra

submetido a um trabalho degradante e arriscado como o tráfico de drogas

está em situação de flagrante perigo e desrespeito aos seus direitos mais

básico, e é, portanto, vítima.

De tal modo, afigura-se incongruente que seja o mesmo

adolescente submetido a uma medida socioeducativa de cunho tão drástico

como a internação ou mesmo a semiliberdade, quando deveriam ser

aplicadas medidas de proteção, inclusive voltadas para o aprendizado de

trabalho lícito e práticas de esportes e lazer. Ressalte-se que outra não é a

situação em que se encontra o Paciente deste remédio constitucional.

No caso em tela, a adolescente está sendo duplamente violada em

sua dignidade e direito a um desenvolvimento moral, social e mentalmente

sadio, além da violação do direito de uma criança em tenra idade, que

nasceu prematura, ao convívio familiar, seja com a mãe ou com a família

extensa, através das avós.

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Pedimos vênia para trazer a lição do mestre Emílio García Mendez,

jurista argentino e que já foi consultor do UNICEF para a América do Sul, no

comentário ao art. 121 da Lei 8069/90, a propósito da excepcionalidade da

medida de internação:

“A utilização da expressão “privação da liberdade” resulta

altamente conveniente no sentido de não se ignorar o complexo

sistema de garantias de fundo e processuais que devem acompanhá-la.

Tradicionalmente, os sistemas de Justiça de “menores” produzem

uma alta quota de sofrimentos reais encobertos por uma falsa

terminologia tutelar. Neste sentido, o espírito e a letra do art. 121

traduzem, plenamente, aquilo que está disposto no inc. “b”, ponto 10,

das “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens

Privados de Liberdade”.

Os três instrumentos internacionais que se referem

explicitamente ao tema da privação da liberdade dos jovens

(Convenção Internacional, Regras de Beijing e Regras Mínimas das

Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade) são

absolutamente claros em caracterizar a medida de privação da

liberdade como sendo de: a) última instância; b) caráter excepcional; e

c) mínima duração possível. Os instrumentos internacionais são tão

categóricos neste ponto que permitem afirmar que “invertem o

ônus da prova”, no sentido de que praticamente obrigam a

demonstrar ao sistema de Justiça que todas as alternativas

existentes à internação já foram tentadas ou, pelo menos,

descartadas racional e equitativamente. Refiro-me, aqui, aos arts.

13, 13.1, 13.2, 17b, 17c e 19.1 das Regras de Beijing; ao ponto 45 do

capítulo de Política Social das Diretrizes de Riad; ao ponto 1 das

Perspectivas Fundamentais das Regras Mínimas citadas, que,

inclusive, chegam a utilizar o termo “abolir”(“o sistema de Justiça da

Infância e Adolescência deverá respeitar os direitos e a segurança dos

jovens e fomentar seu bem-estar físico e mental. Não deveriam

poupar-se esforços para abolir , na medida do possível, o

encarceramento de jovens”).

O art. 37 da Convenção Internacional refere-se com a

mesma clareza e intensidade no que diz respeito a essa situação”.

(Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Coordenador

Munir Cury, 12ª edição, revista e atualizada, Malheiros Editores,

2012, pág. 606, grifei)

IV.

VIOLAÇÃO DO ARTIGO 227 DA CONSTITUIÇÃO DA

REPÚBLICA

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O artigo 227, § 3°, V, da Constituição da República, determina:

O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

[...] obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e

respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando

da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade.

V

DA NECESSÁRIA CONCESSÃO DA ORDEM DE HABEAS

CORPUS A XXXXXXXXX

Na mesma decisão que decretou a internação provisória de XXXXXX,

a autoridade coatora determinou também o acolhimento institucional de XXXXXXX.

De plano, consigne-se que o acolhimento institucional, apesar de não

ser medida de privação de liberdade, pode ser atacado por habeas corpus, de acordo

com jurisprudência do STJ sobre o assunto:

“DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RELAÇÃO DE PARENTESCO. ADOÇÃO.

BUSCA E APREENSÃO DE MENOR. SUSPEITA DE SIMULAÇÃO.

MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL.

HABEAS CORPUS.

1. O Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, ao preconizar a doutrina da

proteção integral (artigo 1º da Lei n. 8.069/1990), torna imperativa a

observância do melhor interesse da criança. As medidas de proteção, tais

como o acolhimento institucional, são adotadas quando verificada quaisquer

das hipóteses do art. 98 do ECA.

2. No caso em exame, a avaliação realizada pelo serviço social judiciário

constatou que a criança E K está recebendo os cuidados e atenção adequados

às suas necessidades básicas e afetivas na residência do impetrante. Não há,

assim, em princípio, qualquer perigo em sua permanência com o pai registral,

a despeito da alegação do Ministério Público de que houve adoção intuitu

personae, a chamada ‘adoção à brasileira’, ao menos até o julgamento final

da lide principal.

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3. A hipótese dos autos, excepcionalíssima, justifica a concessão da ordem,

porquanto parece inválida a determinação de acolhimento de abrigamento da

criança, vez que não se subsume a nenhuma das hipóteses do art. 98 do ECA.

4. Esta Corte tem entendimento firmado no sentido de que, salvo evidente

risco à integridade física ou psíquica do infante, não é de seu melhor interesse

o acolhimento institucional ou o acolhimento familiar temporário.

5. É verdade que o art. 50 do ECA preconiza a manutenção, em comarca ou

foro regional, de um registro de pessoas interessadas na adoção.

Porém, a observância da preferência das pessoas cronologicamente

cadastradas para adotar criança não é absoluta, pois há de prevalecer o

princípio do melhor interesse do menor, norteador do sistema protecionista da

criança.

6. As questões suscitadas nesta Corte na presente via não infirmam a

necessidade de efetiva instauração do processo de adoção, que não pode ser

descartado pelas partes. Na ocasião, será imperiosa a realização de estudo

social e aferição das condições morais e materiais para a adoção da menor.

Entretanto, não vislumbro razoabilidade na transferência da guarda da

criança - primeiro a um abrigo e depois a outro casal cadastrado na lista

geral -, sem que se desatenda ou ignore o real interesse da menor e com risco

de danos irreparáveis à formação de sua personalidade na fase mais

vulnerável do ser humano.

7. Ordem concedida.

(HC 279.059/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,

julgado em 10/12/2013, DJe 28/02/2014)

Visto isso, percebe-se que a decisão viola todas as normas do Estatuto

da Criança e do Adolescente a respeito da família natural e substituta. Isso porque a

prioridade é que a criança seja educada e criada no seio de sua família natural. Caso

não seja possível, com a família extensa e, somente na absoluta impossibilidade, e de

forma excepcional, deve ser afastada do convívio familiar e em última hipótese,

colocada em família substituta.

Essa ordem lógica não foi obedecida e UMA CRIANÇA DE

APENAS DOIS MESES DE IDADE se encontra atualmente acolhida no Lar de

Baltazar e Augusto, localizado na Rua Gazeta da Tarde, 55, Taquara, telefone 3689-

0941.

Também é importante mencionar que XXXXX tem avó paterna

conhecida e preocupada com o caso: trata-se de XXXXX, residente na XXXXX.

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Além disso, a avó materna também se faz presente: XXXX, residente

na Rua XXXXX.

Imediatamente após tomarem conhecimento do local onde a criança

estava acolhida as avós compareceram na Defensoria Pública junto ao Juízo da

Infância, da Juventude e do Idoso Regional de Madureira e já realizaram visita ao

neto nesta data, conforme encaminhamento da Defensoria Pública e confirmação pela

assistente social Renata, presente nesta data na instituição e com quem a primeira

signatária manteve contato por telefone.

Como se vê, a medida de acolhimento é teratológica e apenas

contribui para que um recém-nascido perca o necessário alimento de leite materno e

seja afastado da família natural e extensa, com a privação do cuidado parental que

pode trazer graves consequências para o seu desenvolvimento físico e psicológico,

cabendo destacar que se trata de bebê que nasceu prematuro.

Ao se afastar a criança da referência materna e não substituir

adequadamente esse vínculo nas hipóteses de descumprimento dos deveres inerentes ao

poder familiar, e não mera suposição de incapacidade para exercício da maternidade por

mulheres pobres e alegadamente usuária de alguma substância entorpecente, ou vivendo

em situação de rua, o que está acontecendo é uma violação do direito dessas pessoas em

formação à manutenção e fortalecimento do vínculo essencial ao desenvolvimento

humano.

A lei é muito clara ao dizer que a falta de condições materiais não pode

ser causa para perda do poder familiar. A despeito disso, seguem decisões que utilizam

qualquer pretexto para o afastamento da criança do convívio materno, prejudicando

muitas vezes de forma irreversível o desenvolvimento saudável da criança, em especial

quando se trata de famílias pobres.

Em nome de suposta proteção acaba-se por violar o direito fundamental à

convivência familiar e comunitária, impondo uma institucionalização em momento que

o vínculo estabelecido com a mãe não poderia ser rompido.

Conforme Bowlby, em Formação e rompimento dos laços afetivos1,

indispensável para quem trabalha com a temática da infância, os efeitos do rompimento

dos vínculos maternos podem ser muito trágicos: “Voltemos agora ao nosso tema e vejamos o que acontece quando, por

qualquer razão, as necessidades de um bebê não são suficientemente satisfeitas no

momento certo. Há alguns anos venho investigando os efeitos nocivos que

acompanham a separação de crianças pequenas de suas mães, depois que entre elas se

formaram relações emocionais. Foram muitas as razões pelas quais escolhi esse tópico

para as minhas pesquisas: em primeiro lugar, os resultados têm aplicação imediata e

valiosa; em segundo lugar, é uma área em que podemos obter dados comparativamente

1Bowlby, John. Formação e rompimento dos laços afetivos, tradução Álvaro Cabral, revisão da tradução

Luís Lorenzo, Rivera, 5. ed. - São Paulo: Martins Fontes, selo Martins, 2015, p. 23/24

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sólidos e, assim, mostrar àqueles que ainda são hipercríticos da psicanálise que esta

possui boas razões para reivindicar o status científico; finalmente, a experiência de

uma criança pequena, ao ser separada de sua mãe, fornece-nos um exemplo

dramático, quando não trágico, desse problema central da psicopatologia – a

geração de um conflito de tal envergadura que os meios normais para resolvê-lo

são destroçados.

Parece existir agora uma razoável certeza de que é por causa da

intensidade da demanda libidinal e do ódio gerados que a separação de uma criança

de sua mãe, depois que formou com ela uma relação emocional, pode acarretar

efeitos tão devastadores para o desenvolvimento de sua personalidade.

Conhecemos há vários anos a saudade intensa e a agitação que tantas crianças

pequenas manifestam quando da internação num hospital ou instituição residencial, o e

o modo desesperado como, mais tarde, depois que seus sentimentos acalmaram com o

regresso ao lar, se agarram a suas mães e as seguem obstinadamente. O aumento de

intensidade de suas necessidades libidinais não precisa ser enfatizado. Também

tomamos conhecimento do modo como essas crianças rejeitam suas mães quando

voltam a vê-las pela primeira vez, e as acusam amargamente por as terem abandonado.

Muitos exemplos de intensa hostilidade contra a figura mais amada foram

registradas por Anna Freud e Dorothy Burlingham nos relatórios das Hampstead

Nuseries durante a guerra. Um exemplo particularmente pungente é o de Reggie, que, com exceção de um intervalo de dois meses, passou toda a sua vida em creches desde

os cinco meses de idade. Durante sua estada, ele formara

duas relações apaixonadas duas jovens assistentes que

cuidaram dele em diferentes períodos. A segunda relação foi subitamente quebrada aos dois anos e oito meses, quando “sua” assistente casou. Reggie

sentiu-se completamente perdido e desesperado quando ela saiu, recusou a

olhá-la quando, quinze dias depois, ela o visitou. Virou a cabeça para o outro

lado quando ela lhe falou, mas fixou os olhos na porta, que a moça fechou ao

sair. À noite, sentou-se na cama e disse: “Minha, muito minha, Mary-Ann!

Mas não gosto dela” (Burlingham e Freud, 1944:51).

Experiências como essa, especialmente se repetidas, levam a um sentimento

de desamor, abandono e rejeição. São esses sentimentos que se expressam nos poemas

tragicômicos de um delinquente de onze anos cuja mãe morreu quando ele estava apenas com

quinze meses de idade e que, a partir de então, conhecera numerosas mães-substitutas. (…

VI

DO PEDIDO

Assim, restou, concessa venia, demonstrado o constrangimento

ilegal sofrido pela Paciente em sua liberdade de locomoção, pois está

privada de liberdade em razão de procedimento onde foi aplicada medida de

internação provisória por ato SUPOSTAMENTE análogo a tráfico de

drogas.

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Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente

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Sobre o respeito à condição peculiar de pessoa em

desenvolvimento, também não pode prosperar a decisão de internação,

considerando a completa ilegalidade na aplicação da medida privativa de

liberdade.

No caso concreto fica evidente a violação do direito à liberdade

da paciente, que somente poderia ser restringida nas hipóteses legais

previstas no artigo 122 da Lei 8069/90, diante do princípio constitucional da

excepcionalidade da aplicação da medida privativa de liberdade (artigo 227,

§ 3°, V).

Ex positis, requer seja concedida a ordem para determinar:

1 - imediata cessação da internação provisória aplicada

concedendo-se LIMINARMENTE a ordem a fim de afastar o evidente

periculum in mora consistente na privação à liberdade de locomoção

imposta à paciente, determinando-se a colocação da paciente em

liberdade e, na hipótese alternativa, a aplicação de medida de

Liberdade Assistida;

2- o imediato retorno da criança XXXXXXXXXXXXX ao

seio de sua família natural ou extensa, concedendo a ordem de Habeas

Corpus, para determinar a entrega do recém-nascido a membro de sua

família natural ou extensa, com a revisão da medida de acolhimento

emergencial aplicada, oficiando-se o Lar de Balthazar e Augusto para

entrega à família (mãe ou avó), comunicando-se o Juízo da 3ª Vara da

Infância, da Juventude e do Idoso da Capital.

3- caso seja concedida a ordem, total ou parcialmente, seja

expedido ofício ao DEGASE informando o conteúdo do V. acordão.

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Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente

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Rio de Janeiro, 6 de abril de 2018

EUFRÁSIA MARIA SOUZA DAS VIRGENS

Defensora Pública/Mat 819.908-4

GUSTAVO CIVES SEABRA

Defensor Público/Mat 3032.138-4

Fredderico Bizzotto

Defensor Público/ Matr. 860.730-1