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COPA DOS MORTOS Os refletores do estádio ofuscavam sua visão, embora insistisse em erguer a cabeça e fitá-los como se buscasse o Céu, o amparo de uma força maior. Os nervos em frangalhos e o traje suado condiziam com a ansiedade reinante, que parecia polarizar-se em si a partir do campo para ampliar-se e contaminar toda a torcida na arquibancada atrás. Os fiéis torcedores da República Tupamaro, faces pintadas, continuavam com os gritos encorajadores e as “ôlas” por todo o estádio, agitando as imensas bandeiras e faixas com as cores alva e anil nacionais. Por mais que o jogo se mostrasse complicado e desencorajador, jamais deixavam de acreditar na Seleção – tanto que haviam atravessado milhares de quilômetros só para poder assistir de perto às partidas da Copa do Mundo no país vizinho. Aquela era a disputa decisiva do grupo “E”, e determinaria qual seleção ficaria em segundo lugar na classificação final do mesmo – ou seja, a última vaga disponível para as oitavas de final. A primeira posição, numa “zebra” inacreditável (como dizia a gíria dos anfitriões do evento, embora não fosse uma palavra que fizesse muito sentido ao castelhano indígena tupamaro), fora conquistada pela seleção da Martínia do Sul, um paizinho minúsculo da América Central que tinha tanta tradição no futebol quanto os tupamaranos tinham em andar de esqui. Não, ele não cairia em ufanismos pan-latino- americanos de que o importante era uma seleção do continente vencer, tirando a taça das sempre ganhadoras nações europeias... Ele queria a República Tupamaro campeã. Ponto. Mesmo isso ocorrendo numa Copa tão estranha, em que a atenção nos estádios vinha sendo desviada para os hospitais, tomados por pacientes com uma doença esquisita – qualquer tipo de intoxicação alimentar ou problema de pele. Aversão patológica pelo péssimo desempenho do time anfitrião, talvez. Não conteve um sorriso ao considerar a ideia. Aturdido, ajeitou-se melhor no banco da reserva, evitando os olhares dos jogadores ao seu lado – que sabia

Copa dos Mortos

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Dia de jogo tenso na Copa do Mundo. As seleções da República Tupamaro e da Toscana disputam a última vaga do Grupo E para as oitavas de final. Para o nervoso técnico dos tupamaranos, o zero a zero e os erros do juiz se mostram o maior problema... até que um de seus jogadores resolve agir de maneira... estranha com o adversário.E acabará descobrindo que, num apocalipse zumbi, não há Fair Play.

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COPA DOS MORTOS

Os refletores do estdio ofuscavam sua viso, embora insistisse em erguer a cabea e fit-los como se buscasse o Cu, o amparo de uma fora maior.

Os nervos em frangalhos e o traje suado condiziam com a ansiedade reinante, que parecia polarizar-se em si a partir do campo para ampliar-se e contaminar toda a torcida na arquibancada atrs. Os fiis torcedores da Repblica Tupamaro, faces pintadas, continuavam com os gritos encorajadores e as las por todo o estdio, agitando as imensas bandeiras e faixas com as cores alva e anil nacionais. Por mais que o jogo se mostrasse complicado e desencorajador, jamais deixavam de acreditar na Seleo tanto que haviam atravessado milhares de quilmetros s para poder assistir de perto s partidas da Copa do Mundo no pas vizinho.

Aquela era a disputa decisiva do grupo E, e determinaria qual seleo ficaria em segundo lugar na classificao final do mesmo ou seja, a ltima vaga disponvel para as oitavas de final. A primeira posio, numa zebra inacreditvel (como dizia a gria dos anfitries do evento, embora no fosse uma palavra que fizesse muito sentido ao castelhano indgena tupamaro), fora conquistada pela seleo da Martnia do Sul, um paizinho minsculo da Amrica Central que tinha tanta tradio no futebol quanto os tupamaranos tinham em andar de esqui. No, ele no cairia em ufanismos pan-latino-americanos de que o importante era uma seleo do continente vencer, tirando a taa das sempre ganhadoras naes europeias...Ele queria a Repblica Tupamaro campe. Ponto. Mesmo isso ocorrendo numa Copa to estranha, em que a ateno nos estdios vinha sendo desviada para os hospitais, tomados por pacientes com uma doena esquisita qualquer tipo de intoxicao alimentar ou problema de pele. Averso patolgica pelo pssimo desempenho do time anfitrio, talvez. No conteve um sorriso ao considerar a ideia.

Aturdido, ajeitou-se melhor no banco da reserva, evitando os olhares dos jogadores ao seu lado que sabia estarem pousados sobre si sem que precisasse encontr-los. Cobravam dele uma soluo para aquele iminente desastre, sendo que j fizera tudo que podia. A seleo da Toscana era uma das melhores da Europa, tetracampe do mundo e conseguirem segurar um zero a zero num jogo com ela at ali j era louvvel triunfo, embora no suficiente. Algumas vezes nem o mais astuto estrategista conseguia transpor um obstculo cuja extenso fugia at ao seu alcance...

Ou ao alcance desse juiz hijo de puta...

No, o sujeitinho era mesmo mal-intencionado, no podia ser simplesmente erro ou distrao. Duas faltas para a Tupamaro que ele no havia marcado, sem contar o gol tambm desta que ele e o bandeirinha anularam alegando impedimento, l no incio do jogo...

Ai, se eu pudesse levantar daqui e realmente impedir algo para esse cabrn... remoeu raspando os dentes dentro da boca e acompanhando o movimento do rbitro para l e para c do campo feito uma barata tonta, la cucaracha... enquanto o goleiro da Tupamaro cobrava um tiro de meta.

A bola atravessou o ar at o meio de campo, onde o meia Gonzles a matou no peito. O tcnico estreitou os olhos e inclinou-se adiante, tentando acompanhar o avano de seus jogadores... quando um insistente burburinho dos reservas ao seu lado roubou-lhe a ateno, e acabou por irrit-lo:

- Querem calar a boca? exclamou, sem medo do que os intrpretes de leitura labial, detalhistas ou fosse l que canalhas surgissem achariam por ele se dirigir assim sua equipe.

- O Juan Carlos est passando mal, seor, no vai aguentar mais muito tempo dentro de campo! um dos que conversavam dirigiu-se a ele. Coloque o Pea no lugar dele. do que o ataque est precisando!

O tcnico num primeiro instante considerou ignorar completamente a fala e voltar a atentar-se ao jogo, pois o reserva em questo, Henriques, era um brincalho irresponsvel conhecido por sempre apoiar o atacante Pea na rivalidade que este tinha com o capito, Juan Carlos, dentro do time. Mas, buscando Juan Carlos com os olhos pelo campo, encontrou-o aproximando-se da rea adversria tendo a bola aos ps... a camisa manchada com imensas rodelas de suor, o band-aid num dos braos descolando-se pegajoso, o cabelo desgrenhado e a expresso bastante cansada. Retrato tpico de um jogador no segundo tempo de uma partida se no fosse a mrbida palidez, que o tcnico conseguiu perceber mesmo distncia.

- Ele deve estar saindo para tomar pileque escondido de noite, s pode! outro reserva caoou. Ou ento foi aquela f histrica na descida do nibus que o arranhou, e isso o deixou atordoado. A namorada dele l na terrinha deve estar uma fera!

- Est vendo, seor? Henriques insistiu. Coloca o Pea!

Mas a jogada em curso ficou to promissora que o tcnico levantou do assento e caminhou para a beira do campo. As mos tremeram e as pernas bambearam quando Juan Carlos, mesmo parecendo prestes a cair desmaiado, driblou um zagueiro da Toscana, avanou para a grande rea... s para ter a bola roubada por outro jogador, numa investida cuidadosa que no pde levantar a mnima suspeita de pnalti.

O tcnico ergueu os braos e j ia berrar; de certo cumprir a sugesto de Henriques, por mais que lhe doesse, e tirar o capito de campo por no apresentar mais quaisquer condies de continuar jogando, graas ao seu maldito vcio em bebida e mulher... quando um fato inesperado interrompeu a retomada de bola pelo time da Toscana.

Empurrando o zagueiro que driblara primeiro para o lado com insana violncia j fazendo o tcnico contrair os pulsos ao se perguntar o que diabos aquele nio estava fazendo Juan Carlos avanou para Benitio, o outro zagueiro que lhe roubara a bola... e, enlaando-o por trs com um dos braos feito um cadeado, levou a boca at seu pescoo... e mordeu-o. Pura e simplesmente mordeu-o.

A torcida urrou confusa, um vozerio desordenado e grave que por alguns segundos aparentou ser capaz de botar abaixo todo o estdio. Vaias vieram das arquibancadas opostas, abrigando os torcedores da Toscana enquanto um desconcertado silncio tomava paulatinamente as fileiras dos tupamaranos, que no compreendiam o que se sucedia.

O tcnico correu mais alguns metros pela lateral para se aproximar o mximo que pde da rea adversria sem adentrar o campo. A essa altura j praticamente arrancava os cabelos, considerando que o atentado selvagem de Juan Carlos ao Fair Play justo ele, to admirado por toda a nao lhe providenciaria merecida expulso da Copa.

Um cerco de jogadores das duas equipes fez-se prximo ao gol, em torno do toscano agredido e seu agressor tupamarano, obstruindo a viso de todos que tentavam delinear o que agora ocorria. Por fim, dois ou trs integrantes da Toscana, com seus uniformes azuis, recuaram... uma expresso em seus rostos que preparou o incauto tcnico para o pior. A abertura na roda deu-se justamente em sua direo, como se o destino quisesse privilegi-lo antes com o srdido espetculo, antes mesmo da maioria das cmeras da TV...

Benitio encontrava-se sentado na grama... aos prantos, enquanto uma das mos cobria a regio do pescoo, prxima nuca, mordida por Juan Carlos... na verdade estancando-a, visto que sangue jorrava aos borbotes, por entre os vos de seus dedos, ensopando tanto a eles quanto camisa com que defendia sua seleo. Gemendo, levantou a palma tingida de rubro por um momento... e todo um pedao de pele e msculo lhe faltava base da cabea, tal qual houvesse sido arrancado pelas presas de um leo ou crocodilo.

Ao lado do toscano ferido, Juan Carlos mantinha-se de p... porm trpego, tendo de alternar o peso entre suas pernas, em inclinaes para frente e para trs, feito um bbado ou sonmbulo. Os lbios estavam imersos em vermelho claro, tornado brilhante pela luz dos refletores. At um naco da carne de Benitio ainda podia ser mais ou menos vislumbrado junto boca, colado ao queixo como sobra de alimento...

Os demais jogadores ainda na roda afastaram-se horrorizados, alguns gritando, outros cobrindo os olhos. O meia Gonzalez fez o sinal da cruz... para cair de costas desmaiado logo em seguida. De todos ali, o ltimo a compreender o que se passava foi o juiz, fazendo o tcnico comprovar que era mesmo distrado, tolo, um obtuso a ponto de se arrepender de ter julgado seu carter anteriormente e gritando para que no sofresse o pior:

- Saia da, saia da!

Mas tanto a distncia quanto o clamor crescente no estdio tornaram-no surdo ao aviso do tcnico tupamarano, e o rbitro simplesmente dirigiu-se caminhando em linha reta at Juan Carlos, retirando o carto vermelho do bolso e erguendo-o para o capito a poucos passos de distncia, soprando forte seu apito...

O sangue que jorrou da garganta rasgada do juiz quando o jogador saltou sobre ele e abocanhou-a respingou sobre todo o gramado ao redor compondo irnica combinao com a cor do carto, que voou dos dedos do rbitro. Juan Carlos, dando o definitivo indcio de que no agia mais com conscincia humana, abaixou-se sobre o corpo espasmdico do juiz e passou a devorar seu pescoo... quando o caos tomou de vez o lugar.

Os ltimos jogadores, reprteres, assistentes e bandeirinhas abandonaram o campo correndo desordenados, inclusive chocando-se entre si, empurrando-se. O mesmo ocorreu nas arquibancadas, mas em escala bem maior e pior. Uma gritaria ensurdecedora se iniciou, os torcedores abrindo caminho aos socos e encontres, aglomerando-se em pilhas disformes de pessoas das quais muitas despencavam fileiras abaixo enquanto se dirigiam s sadas mais prximas. Grandes bandeiras com as cores das selees foram largadas para trs, seu tecido se contraindo e murchando; faixas acabaram rasgadas, calados e partes de roupa abandonados...

E o tcnico da Tupamaro permaneceu beira do campo, imvel, como se aguardando uma soluo mgica, uma providncia vinda dos mesmos refletores ainda ligados...

Ou apenas paralisado pelo medo.

Benitio, que at ento se contorcia de dor e descorava pela falta de sangue, subitamente ergueu-se do campo correndo... atirando-se por cima das placas de patrocinadores rumo a uma das arquibancadas, tentando agarrar alguns torcedores retardatrios com o mesmo furor canibal demonstrado por aquele que h pouco o agredira. Juan Carlos, por sua vez, cansara-se de mastigar o juiz e acelerava pelo campo vazio feito uma alma penada, um esprito das histrias de assombrao que o tcnico ouvia quando criana que de uma hora para outra decidira representar seu pas na Copa vestindo a camisa da Seleo...

E ento o rbitro tambm se levantou, o traje amarelo e preto agora todo empapado de rubro como se compusesse com as outras duas cores o uniforme de algum outro pas desconhecido, a Federao de Futebol da Zumbilndia; os pulmes emitindo um assovio disforme, feito um apito gutural, atravs do buraco em sua garganta enquanto corria, com os braos estendidos, na direo do tcnico.

Agarrado pelos ombros e empurrado de costas sobre o cho, Miguel Hablan Cortz, tcnico da Grandiosssima Seleo de Futebol da Repblica Tupamaro, sentiu-se ao menos satisfeito com o conforto de morrer sobre uma grama fofa, especialmente aparada para a Copa, enquanto tinha suas entranhas devoradas e esparramadas ao redor.

Luiz Fabrcio de Oliveira Mendes Goldfield.