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Copyright © Devair Antônio Fiorotti, 2019.Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos © Devair Antônio Fiorotti

Coordenação e concepção: Devair Antônio FiorottiCapa: Otávio Coelho, Devair Antônio FiorottiDiagramação: Otávio Coelho, Abrão BatistaRevisão: Paulino Batista, Sonyellen Fonseca Ferreira

Boa Vista UERR Edições

Wei Editora2019

Fiorotti, Devair Antônio. Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos. Vol. I. Boa Vista: UERR edições; Wei, 2019.

343p. ISBN 978-85-61924-09-6 1. Narrativas indígenas 2. Circum-Roraima 3. Macuxi. 4. Taure-pang 5. História de vida. I Título

CDU 398

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SUMÁRIO

Créditos, 9

Apresentação, 13

ENTREVISTAS

Clemente Flores e Manoel Bento Flores, 25

Manoel Bento Flores, 71

Armando Magalhães, 115

Valdélio Perez Ribeiro, 157

Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães, 183

Lucinézio Peres Ribeiro, 223

Sebastiana Peres dos Santos, 239

José Vitor da Silva, 253

Aprígio Ramos, 287

Áurea da Silva Galvão e Seu Genário, 299

Seu Oliveira, 309

Domício Pereira da Silva e Regina Santos da Silva, 319

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A todos os entrevistados,

Principalmente a Clemente Flores e

Eduardo Magalhães

(in memoriam).

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente a todas as comunidades indíge-nas do Alto São Marcos que permitiram a minha presença em seu âmbito. Vocês são partes efetivas de minha vida, de minha memória.

Aos alunos de Iniciação Científica, sem eles esse trabalho não estaria pronto: Ana Maria Alves de Souza, Eliana Almeida, Keyty Almeida de Oliveira, Leonor Cravo, Michele Rubistein, Robson Félix de Souza, meus agradecimentos.

Agradeço ao apoio do Paulino Batista, Airton Vieira, Lucimar Sales, Rosiclei Liberal, Carmen Vera Nunes Spotti, Huarley Mateus do Vale Monteiro, Karlyson Roberto Veras Rodrigues.

Agradeço à Universidade Estadual de Roraima pelo apoio e confiança no trabalho a ser desenvolvido, bem como ao CNPQ pelo seu financiamento.

À Carla Monteiro de Souza, por ter me apresentado a metodologia da História Oral.

Ao Rivelino Pereira de Souza e Zacarias Fernando de Sou-za Loiola, meus agradecimentos pelas traduções de Macuxi e Taurepang, respectivamente.

A todos que direta e indiretamente contribuíram para realização do projeto.

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CRÉDITOS

Dentro da primeira fase do projeto Panton pia’: Narrativa Oral Indígena, registro e análise, seguem-se as atividades desenvolvidas por cada membro, quanto à coleta e proces-samento dos dados coletados. As atividades dividiram-se nas seguintes funções: entrevistador, assistente de entrevista, transcritor, conferência de entrevista e copidesque. Algumas atividades foram exercidas por mais de um componente do grupo. A seguir estão os responsáveis, a atividade exercida e as entrevistas trabalhadas. Algumas entrevistas tiveram participação de mais de um informante.

AIRTON VIEIRA

Conferência de fidelidade: Armando Magalhães; Áurea da Silva Galvão e seu Genario; José Vitor da Silva; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; seu Avelino; Valdélio Perez Ribeiro.

Copidesque: Sebastiana Peres dos Santos.

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ANA MARIA ALVES DE SOUZA

Transcritora: Aprígio Ramos; Clemente Flores e Manoel Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; José Vitor da Silva; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos.

CARMEN VERA NUNES SPOTTI

Assistente de entrevista: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli; dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

Transcritora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli; dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

DEVAIR ANTÔNIO FIOROTTI

Entrevistador: Aprígio Ramos; Armando Magalhães; Áu-rea da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães; Manoel Bento Flores; Regina Santos da Silva; Sebastiana Peres dos Santos; seu Oliveira; Valdélio Perez Ribeiro.

Copidesque: Aprígio Ramos; Armando Magalhães; Áurea da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli; dona Tereza, filha e intérprete dona Luisa; José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexan-dre Magalhães; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; seu Oliveira; tuxaua João; Valdélio Perez Ribeiro.

Conferência de Fidelidade: Armando Magalhães; Áurea da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; Estevan Alves; José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães; Manoel Bento Flores; Maria Luisa Magalhães; Narciso Macuxi; Sebastiana Peres dos Santos; seu Oliveira; Valdélio Perez Ribeiro.

HUARLEY M. DO VALE MONTEIRO

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Copidesque: Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Ma-galhães.

Conferência de fidelidade: dona Rosa, Filha, Filha Neli; dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

KEYTY ALMEIDA DE OLIVEIRA

Transcritora: Áurea da Silva Galvão e seu Genario; Estevan Alves; Valdélio Perez Ribeiro.

LUCIMAR SALES

Assistente de entrevista: Clemente Flores e Manoel Flores; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães; Lucinete Peres Ribeiro; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; Valdélio Perez Ribeiro.

MICHELE RUBISTEIN

Transcritora: Armando Magalhães; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães.

RIVELINO PEREIRA DE SOUZA.

Transcritor e tradutor de macuxi.

ROSICLEI LIBERAL

Entrevistadora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli; dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

ZACARIAS FERNANDO DE SOUZA LOIOLA

Transcritor e tradutor do taurepang

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Apresentação

Panton pia’ é um livro de histórias. “Panton” significa história em macuxi e “pia’ ”, junto, perto: junto, perto da história. Isso a princípio já seria muito, principalmente quando diz respeito a histórias indígenas, a suas narrativas. Mas tornou-se muito mais para mim, quase uma questão de honra, pois é uma tentativa de contribuir no processo de valorização dos indígenas do Alto São Marcos, localizado no município de Pacaraima, em Roraima, de três etnias: os indígenas macuxi, taurepang e wapixana.

Cheguei em Boa Vista há doze anos e ainda ressonam até hoje as palavras de Ana Vicentini de Azevedo: 1 “Já pensou o que você pode estudar lá?” Estávamos conversando sobre os estudos dos aspectos mitológicos indígenas, quando ela pronunciou essas palavras. Contudo, quando iniciei as entrevistas, veio o primeiro susto: onde estaria o que bus-cava? Onde estariam as histórias mitológicas desses povos, as grandes narrativas que buscava? Simplesmente, da forma como imaginava, elas não surgiram e nem mais existiam na boca da grande maioria dos entrevistados. Todavia algo novo surgia nessas entrevistas: a história de vida desses in-

1 Minha orientadora de Mestrado e Doutorado, pela Universidade de Bra-sília.

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divíduos, tão parecidas a da grande maioria dos brasileiros: explorados, escravizados algumas vezes, passando por um processo de angústia diante do contato com a modernidade e seu mercado cultural.

O presente material é parte do resultado do projeto de pesquisa intitulado Panton pia’: Narrativa oral indígena, registro e análise, que até o momento se focou nas terras indígenas do Alto São Marcos e Raposa Serra do Sol, está também localizada nos municípios de Normandia, Pacarai-ma e Uiramutã, em Roraima. Esse projeto é financiado pelo CNPQ desde 2007.

Até 2014, foram visitadas 23 comunidades e realizadas 39 entrevistas (27 homens e 12 mulheres), distribuídas as-sim por etnia: 24 macuxis; 6 taurepangues; 6 wapixanas; 1 indeterminada. Entre esses, merece menção uma etnia cuja tribo enquanto tal não mais existe: uma sapará-macuxi; e outro que menciona wapixana e sua relação com o nome karapiwa, sinônimo de wapixana ou mesmo da mistura de wapixana com macuxi. Vinte dos entrevistados residem no lavrado roraimense e 19 na região das serras, ao redor da cidade de Pacaraima, sendo que as comunidades das serras são em quase totalidade muito novas. Essas comunidades foram criadas e têm-se desenvolvido muito na região por causa da proximidade com o município de Pacaraima. Com exceção das comunidades taurepangues da serra, principal-mente Sorocaima I e Boca da Mata, e algumas macuxis, como Aleluia e Sol Nascente, as outras comunidades apresentam acentuada presença de indivíduos de etnias mistas, bem como é muito comum encontrar indivíduos de pais cujas etnias são diferentes, principalmente com casamentos entre macuxi, taurepang e wapixana.

Até o momento, há quatro volumes prontos: três de narrativas e um de cantos (eremukon) tradicionais. Este volume é o primeiro a ser publicado. Neste material, alguns relatos chamaram muita atenção. Por exemplo, a paixão de um fazendeiro por uma jovem indígena. Ao ser desprezado, ele simplesmente expulsou toda comunidade das terras

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dos próprios indígenas, que fazendeiro considerava suas. Noutro momento, encontramos histórias de pessoas que eram dadas para serem criadas pelos fazendeiros. Esses indígenas eram simplesmente escravizados, trabalhando de graça nas fazendas, apanhando muitas vezes, sendo tratados como animais. Ainda, a resistência dos indígenas é algo a ser ressaltado. Quando da demarcação, muitos indígenas foram literalmente guerreiros ao lutar por suas terras.

Longe de um imaginário nacional que associa o indígena a uma visão romântica e idealizada, um índio com belos co-cares, nu ou seminu, grandes e fortes, os entrevistados do Alto São Marcos são indivíduos marcados por um processo de desvalorização da própria cultura. Com a chegada dos brancos, principalmente da igreja, sua língua foi chamada de “gíria”, com toda carga pejorativa possível. Das comu-nidades, com a chegada dos fazendeiros, eles foram para fazenda ser empregados ou na cozinha ou como boiadeiros. Muitos também foram trabalhar no garimpo, principalmente na Venezuela.

Em relação à história de seu povo, panton, a igreja foi nefasta. Ela está presente na vida desses povos há pratica-mente dois séculos. A partir dos relatos, não houve nenhum tipo de tentativa de conciliação entre o mundo cristão e a realidade indígena. Como algumas entrevistas denunciam, simplesmente seria pecado recontar essas narrativas.2 Com isso, em algumas comunidades, há pessoas que não sabem essas histórias, a não ser alguns resquícios. Por outro lado, quando há ainda anciões que sabem essas narrativas em al-gumas comunidades, faltam pessoas para ouvi-las. A maioria, pelo contato com o mundo não índio, não se identifica com essas narrativas.3

Esse trabalho propõe-se a colaborar no entendimento do que seria o indígena da Região do Alto São Marcos, a partir do contato direto e contínuo com o mundo do outro, do nosso mundo não índio. Ainda, buscar contribuir no processo de valorização identitária desses povos, já que muitos já não se identificam como indígenas, por causa do preconceito e da

2 Devair Antônio Fiorotti. “Narrativa oral em ques-tão: cultura em contato e imaterialidade na TI São Marcos-RR”. In Allison Leão (Org.). Amazônia: Li-teratura e cultura. Manaus: UEA, 2012.

3 Devair Antônio Fiorotti . “Para pensar a realidade indígena atual: diversida-de cultural e identidade indígena na TI São Marcos. In Carla Monteiro de Souza [et all]. Boa Vista:EDUFRR, 2013.

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falta de informação dos não indígenas e mesmo dos próprios indígenas. Digo dos próprios indígenas, porque muitos não entendem o processo de contato com o não índio e simples-mente o vivem sem nenhuma reflexão.

Metodologia de trabalho

As narrativas aqui apresentadas seguiram a metodologia da História Oral, traduzida nos seguintes passos: Entrevista; Transcrição; Conferência de Fidelidade.4

Entrevista

Foi elaborado um roteiro para entrevista, contudo ele não era rígido, podendo ser modificado no decorrer da entrevis-ta. Essa flexibilidade objetivava não engessar a entrevista, já que qualquer entrevista está sujeita ao desconhecido, que é o outro, o entrevistado. Em praticamente todas as entrevistas o caminho era guiado por certas “deixas” do entrevistado, somente depois retomava-se o roteiro. Por questões técnicas, o roteiro somente não foi adotado na comunidade Boa Esperança.

O conteúdo do roteiro tratava desde a identificação do entrevistado, passando pela realidade da comunidade onde ele mora, até perguntas relacionadas às histórias de seu povo, como pantonkon.

A maioria das entrevistas foram satisfatórias, em que o entrevistado conseguia desenvolver o raciocínio, interagir e até caçoar do entrevistador, como no caso da dona Letícia, da comunidade Santa Rosa. Em outras, as respostas eram monossilábicas. Contudo, optou-se em também incluir todas as entrevistas transcritas aqui, pois é difícil definir o que é efetivamente irrelevante dentro dos Estudos Culturais, locus em que esse trabalho propõe a se inserir.

Com exceção da comunidade Nova Esperança, todas as outras entrevistas foram realizadas por Devair Antônio Fiorotti. Além disso, vale destacar que os assistentes de en-trevistas, algumas vezes, também fizeram perguntas. Ainda,

4 O trabalho guiou-se prin-cipalmente pelas orien-tações de Verena Alberti: Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Agradecimento especial à professora Carla Mon-teiro de Souza, da UFRR, por ter me apresentado à Metodologia da História Oral e mesmo me orien-tando no percurso de seu aprendizado.

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por serem realizadas em comunidades indígenas, em espaços abertos, algumas vezes pessoas chegavam e interferiam nas respostas, opinavam, como na entrevista com Clemente Flo-res. Quando isso ocorreu e não identificamos quem era e a fala era relevante, optou-se em identificá-lo como “Alguém”.

A grande maioria das entrevistas foi individual. Contudo, as realizadas na comunidade Nova Esperança foram coleti-vas, bem como a realizada com Letícia Barbosa e Eduardo Ma-galhães, comunidade Santa Rosa, e com os irmãos Clemente Flores e Manoel Bento Flores, da comunidade Sorocaima I. Nesse último caso, vale destacar que há uma entrevista solo de Manoel Bento Flores.

Muitas perguntas eram elaboradas no ato da entrevista. Ao lê-las depois de transcritas, constatei problemas de con-cordância, falta de clareza. Muitas questões foram deixadas como foram elaboradas, apesar de se apresentarem meio truncadas. Isso ocorreu porque, se num primeiro momento as entrevistas eram bem formais, com o seu desenvolver, depois de meia hora, por exemplo, tanto entrevistador quan-to entrevistado ficavam mais descontraídos. Houve casos também em que não houve essa interação. Isso é percebido claramente em algumas narrativas aqui presentes.

Transcrição

Um dos trabalhos mais árduos de um projeto como esse é a transcrição das narrativas. Tal processo consiste em ouvir o áudio e transcrever as falas, passando-as para a linguagem escrita. Muitas vezes, um minuto de áudio levava mais de meia hora para ser transcrito. Um dos principais problemas enfrentados é que vários entrevistados já eram idosos ou tinham o português como segunda língua. No primeiro caso, a dicção já estava prejudicada pela idade; noutro, as palavras em português não eram pronunciadas como geralmente somos acostumados a ouvir. As transcrições foram realiza-das quase na totalidade por alunos de Iniciação Científica envolvidos com o projeto.

Além disso, por as entrevistas serem realizadas nas co-munidades, as interferências foram várias: animais, pássaros,

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carros, motosserras, pessoas que chegavam e interrompiam as entrevistas. Aliados aos aspectos do parágrafo anterior, o grau de dificuldade na transcrição se amplia.

Conferência de Fidelidade

Nessa parte do trabalho, todo material foi ouvido no-vamente e a transcrição foi conferida, para ver se ela havia sido feita de forma exata ou se possuía problemas, como inexatidão. Caso fosse encontrado algum problema, a trans-crição era refeita.

Copidesque

Nesse momento, a narrativa já escrita foi adequada a uma linguagem mais próxima possível da linguagem formal da língua portuguesa. As dúvidas maiores surgiram nesse momento: até que ponto seria possível mexer na narrativa sem desfigurar as características próprias de cada entrevis-tado? Os passos seguintes buscam esclarecer melhor o que foi realizado.

Primeiramente, o texto foi adequado quanto à escrita padrão na grande maioria das vezes. Tal aspecto implica em fazer concordância nominal e verbal, quando não há, por exemplo: “as banana” para “as bananas”; “nós vai” para “nós vamos”. Ainda adequou-se a escrita de algumas pala-vras, como “misgalha” para “migalha”. Contudo a palavra “caboco” e suas variações foram mantidas. Vale observar, por exemplo, que o uso da palavra “caboco (a)” foi domi-nante, não aparecendo nenhuma vez a palavra “caboclo”. Se não bastasse isso, o significado dessa palavra é distinto do dicionarizado, por exemplo, no Aurélio. Entre os infor-mantes, “caboco” é na quase totalidade das vezes o próprio indígena, diz também de quem vive nas comunidades.5

Foram retiradas muitas repetições, como “de, de” para “de”, contudo nem todas foram retiradas, pois algumas repetições eram enfáticas e traduziam parte do estilo do entrevistado.

Para alguém da Letras, consciente das teorias linguísticas

5 Apesar de um uso cor-rente da palavra “caboco” para se referir a indígenas: entre brancos e indígenas; entre indígenas e indíge-nas, índios mais informa-dos têm marcado posição em não usá-la, exigindo que sejam chamados de índios, reafirmando sua indianidade em oposição à origem e significado tra-dicional da palavra “ca-boclo”

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modernas, como coordenador deste projeto, custou-me mui-to essas adequações, sabendo da importância de valorizar a diversidade linguística brasileira. Contudo, com as adequa-ções, buscou-se que os entrevistados não sofressem em suas comunidades preconceito linguístico, já que todo material voltou para as comunidades de origem. Essa preocupação justifica-se pois, querendo ou não, ao ler essas narrativas, o leitor está diante da escrita. Ainda, a maioria dos entrevista-dos são semianalfabetos, já sofrendo em demasiado pressão social. Assim, buscou-se não expô-los a mais uma situação de pressão social.

Contudo, na tentativa de preservar alguns aspectos da oralidade e o estilo dos entrevistados, algumas atitudes foram tomadas por mim, enquanto responsável direto por todo copidesque:

1) O verbo “estar”, conjugado na terceira pessoa do singular, foi adotado como “tá” no lugar de “está”, assim como “tava” no lugar de “estava”. Ao ouvir as narrativas, constatei que todos informantes usavam o verbo nesta forma reduzida. Inclusive eu, a princípio numa situação linguística privilegiada, também o usava assim. Quando eu adequava o verbo para “está”, a narrativa soava artificial. Em alguns casos, também, optei em deixar a forma “tão” no lugar de “estão e, mais raramente, “tô” no lugar de “estou”.

2) A preposição “para” foi adotada como “pra”, nada mais distante da oralidade brasileira desses informan-tes do que um “para”. Muitos deles usavam inclusive uma forma mais reduzida: “pa”, que foi adequada para “pra”.

3) Ainda, quando a preposição “pra” estava diante de um artigo, foi aceita a contração, como presente na orali-dade: pra + a = pra (ex.: para a gente = pra gente); pra + o = pro (ex.: para o homem = pro homem). O mesmo foi feito com o plural: pra + as = pras e pra + os = pros. Observem que, se não houvesse a contração, em “pra a gente”, por exemplo, para “pra gente”, haveria um

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distanciamento grande da oralidade.

4) A colocação pronominal foi deixada praticamente em todos os casos como no original: “me fala” e não “fala-me”, por exemplo. Em alguns casos, também foi incluído o pronome ou mesmo retirado.

5) A pontuação buscou seguir aspectos sintáticos, a partir da ideia geradora da frase. Essa foi uma das grandes dificuldades deste trabalho pois, ao transcrever, não se ouve a pontuação, diferentemente da palavra. Ela é colocada a partir da sintaxe frasal, seguindo os concei-tos de ordem direta da língua portuguesa, inversões, deslocamentos sintáticos, ao mesmo tempo em que se busca preservar a ideia geradora da frase.

6) Ainda foi preservado aquilo que, para alguns, seria arcaísmo. Por exemplo, a palavra “entonces”, já pra-ticamente em desuso, vive na boca de vários falantes de Roraima. Não se sabe ao certo se pela presença da fronteira ou pela própria história da Língua Portugue-sa, que registra essa palavra como pertencente a ela.

7) Outro aspecto que foi preservado é uso da segunda pessoa do singular com o verbo na terceira do singu-lar. Frases como “se tu andou no lavrado, tu deve ter visto.” Foram mantidas. Caso fosse adequada ficaria assim: “se tu andaste no lavrado, tu deves ter visto.” Essa mudança seria, no mínimo, uma agressão às ca-racterísticas da oralidade desses falantes bem como da quase totalidade dos brasileiros, que descartaram essa conjugação de suas falas.

8) A palavra mais complicada de se trabalhar foi o nosso tão conhecido “né”. O que fazer com ele? Simplesmen-te retirá-lo, como sugere muitos manuais? Voltá-lo para sua forma desenvolvida: “não é?” Outra questão: ele sempre é seguido de uma interrogação? Essas dúvidas permearam todo o trabalho de copidesque. Muitos “nes” foram retirados, principalmente quando eram excessivos e estavam no meio do período, sem uma função clara. Também muitos foram preservados,

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principalmente quando o entrevistado testava o canal de interlocução com o entrevistador. Nesses casos, foi colocado o sinal de interrogação. Noutros momentos, foi deixado sem sinal de interrogação, quando o en-trevistado o utilizava como uma característica de sua fala. Vale ressaltar que o “né” não esteve presente somente na fala dos entrevistados, mas também na fala do entrevistador.

9) Muitas falas do entrevistador foram retiradas para dar sequência à fala do entrevistado. Isso ocorreu quando o entrevistado testava o canal com um “né?”, por exemplo, e o entrevistador respondia “sei” ou “aham”. Essas confirmações foram retiradas bem como algumas falas que excediam ao papel de en-trevistador e eram mais comentários pessoais sobre aspectos cotidianos.

10) Optou-se em escrever a palavra “viche”, com “ch”, pois não foi encontrado registro em dicionários de sua escrita.

11) Em frases como “nós fundamos ela.”, em que “ela” ocupa a função de objeto, em nenhum momento foi feita a adequação para “nós a fundamos”, como propõem gramáticas e manuais de língua portuguesa. Tal opção buscou preservar o aspecto da oralidade do informante, tendo em vista que, em nenhuma en-trevista, apareceram estruturas como sugeridas pela gramática normativa ou manuais, em relação a esse uso pronominal.

12) Também foram conservados alguns usos não diciona-rizados, como “rancar”, para “arrancar”.

13) As falas entre aspas não sofreram todas as alterações acima, principalmente quando elas indicavam falas de animais, de matutos, de personagens da cosmovisão indígenas. Nessas falas é possível perceber a escrita mais próxima da fala dos indígenas.

Ainda, os cantos e pajelanças, quando em língua nativa, foram trazidos no original. Depois de transcritos, foi efetu-ada uma tradução literal desses textos. Em geral, o próprio

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25Projeto: Panton pia’

Projeto: Panton pia’

Entrevistados: Clemente Flores (CF) e Manoel Flores (MF)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Assistente de entrevista: Lucimar Sales

Local: Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 1/10/2008

Transcritora: Ana Maria Alves de Souza

Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 2’16’’36’’’

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25Projeto: Panton pia’

A entrevista começa num tom descontraído, pois havia sido feita a entrevista

do irmão de Clemente Flores, Manoel Flores. Seu Manoel falava que o filho do

Clemente era bom desenhista e havia desenhado a história de Macunaima. A partir

desse ponto, a entrevista começa com a narrativa a respeito de Macunaima.

1 Nesse caso, optou-se em não passar o verbo para a segunda pessoa do plural, tendo em vista ser uma variante praticamente em desuso na língua portugue-sa do Brasil.

2 Clemente Flores faz uma digressão, pra falar do pai.

3 Todas as transcrições do taurepang e suas traduções para o português foram realizadas por Zacarias Fer-nando de Souza Loiola, da comunidade Bananal.

CF: Porque eu, a história de Macunaima foi assim. Ele foi uma pessoa, assim como nós. Então, o filho maior sai menos do que o menor; o menor sai mais valente do que o maior. Toda vez que nós temos filhos, o menor sai mais forte do que... mais valente do que o irmão maior. Assim era então. [...] Porque a história de Macunaima é muito comprida, é muito longa. Vamos passar uma semana gravando, tem que trazer mais gravador desse [risos].

DF: Ih! Esse bichinho aí é misterioso [falando do gravador digital], ele só não tem tamanho. Esse aqui [Manoel Flores] falou hoje duas horas e pouco, e ele nem “tchum.” O grava-dorzinho continuou funcionando...

CF: Não gastou nem meia...

DF: Nem meia!

CF: Metade, né? Sim senhor. A história de Macunaima que eu estou sabendo... (porque também meu pai... agora meu pai poderia estar presente aqui conosco, mas ele tá velhinho, não pode conversar, ele nem ouve. Quando tu tá1 falando tem que repetir seis, sete vezes pra poder ele enten-der. Agora eu estou seguindo atrás dele, mas alguma coisa estou escutando. A voz de vocês que vocês estão falando comigo, eu tô escutando).2 A história de Macunaima, meu companheiro, a história de Macunaima é muito triste. Ele tinha dois filhinhos: um se chamava Macunaima e o outro menor se chamava Xicö.3 Esse foi mais valente do que Ma-cunaima. Ele inventava, ele pensava muito. Ele tinha como aqui diz... aspiração; ele tinha aspiração profunda, mais do que irmão dele. Um dia o pai do Macunaima disse pro filho, pra mulher dele, mas veja bem, tá o inimigo aí no meio, não

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4 “Destar” de “deixa es-tar”.

somente Macunaima. Aí disse: “Meu filho, mulher, eu vou na frente.”, como nosso costume também. Nosso costume [é] sair de madrugada, matar jacu, matar qualquer pássaro que a gente vê. Aí disse: “Olha, bicho tem caminho por aí, caminho que vai por aqui assim, tem pena de pássaro. Esse aí é o caminho. Agora se vão cair num caminho...” Você sabe que tem caminho que tem encruzilhada, né? Encruzilhada pra cá e outra pra cá [aponta com as mãos pros lados]. No meio do caminho é pena de pássaro. Agora no caminho, na saída do caminho do inimigo é cabelo de catitu. O senhor conhece catitu?

DF: Conheço.

CF: Aquela caça, porco do mato, esse aí no meio do ca-minho. “Agora pena de pássaro é meu caminho, pode [ir] indo por aí que eu vou na frente.” Saiu de madrugada, como três horas da madrugada que o homem sai. Os dois filhos com a mãe ficaram lá, dentro da casa. Tá!, amanheceram. Mais ou menos cinco, seis, sete, aí comeram, “Agora, um-bora meu filho, papai já tá longe. Pode ser que papai matou algum pássaro pra nós comermos. Vamos lá!” Destar4 que o inimigo tava escutando o que o pai falava pros filhos, logo quando ouviu a conversa e voltou, logo o homem passou já. Ajuntou esse cabelo de porco, ajuntou pena de pássaro, trocou pra cá. Pena de pássaro no caminho dele, cabelo de porco no caminho do homem. Aí se enredaram os meninos. Tá ouvindo bem, né? Então, saíram: “Umbora.” O senhor sabe zarabatana?

DF: Sei.

CF: Flechar pássaro. Zarabatana. Na minha língua se chama curá.

DF: Curá.

CF: Então, eles foram. Machado na mão, ele e ele, os dois, a mãe atrás, “Nós vamos na frente flechando os pássaros.” Aí foram embora. Chegaram na encruzilhada: “Cadê o caminho do papai que o papai informou que era de pena de pássaro?” Olharam, tava no caminho do inimigo, pena de pássaro.

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5 Nesses pontos, há contí-nua mudança de entonação de voz, dependendo do tipo de personagem.

O narrador usa de forma irregular em português as terminações de gênero. Sua língua primeira é o taurepang.

Coitados! Olharam, “Isso daqui é cabelo de porco, não! não! não é nosso caminho não! Umbora por aqui!” Aí pegaram o caminho do inimigo. Andaram um bom pedaço. No caminho, no lavrado, têm muitas qualidades de pássaros, que ninguém pode chamar qual é o nome do pássaro. Aí estavam querendo flechar ele pra comer, porque nós, nós gostamos de comer pássaro pequeno, flechado com a zarabatana. Eu gostava. Agora não, agora eu estou comendo peixe, agora peixe que vem no gelo, qualificado, mal, comida mal. Aí foram embora, e a mãe na frente. Quando logo na frente chegou na casa de um cidadão lá, era dona Sapa, é Sapo5: “Que foi? Que foi se-nhora? Pra onde a senhora vai?” “Não, eu tô indo pra cá, atrás do meu marido que saiu.” “Ah não! Por onde ele saiu?” “Ele saiu lá pelo pena de pássaro.” “Não, esse aí é meu caminho.” Maldito Sapo! Mentiu! O marido tava caçando que era onça, inimigo do pai do Macunaima. A onça tava caçando no mato. Aí ficou lá, ficaram lá. De repente, este pássaro que estavam perseguindo pra flechar avisou, ele canta. ([pergunta pro en-trevistador] Você não viu? Se tu andou no lavrado, tu deve ter visto). Pássaro que avoa longe e abre a asa, ele canta. E logo quando sobe de novo ele abre asa, ele canta de novo. Bonito o passarinho! Aí esse pássaro conta história que aconteceu com a mãe dele, a mãe desse Macunaima. Aí disse: [cantan-do] “Meu filho, mãe de vocês tá envenenada...” Cantou. “Tu viu? Tá cantando! Vamos espantar de novo!” Aí foram lá. Quando abre o bico: [cantando] “Meu filho, mãe de vocês foi envenenada...” “Que foi?” “Mamãe foi envenenada! Umbora lá!” Aí subiram, deixaram este passarinho, deixaram o pobre do passarinho. Logo que chegaram, não tinha ninguém, só a mulher, mulher Sapo. Aí quando olhou: “Coitado, meu filho, pra onde vocês vão?” “Nós tamo procurando mamãe, não passou por aqui não?” “Não, não passou não...” Mas esse esperto, Xicö, tava olhando, assim no geral, ele olhou pra mãe dele, tava guardada no jamaxim lá pendurado. Aí deixaram o machado pra cá, e o outro pra cá [faz movimentos pros lados], zarabatana, cada um deixou suas coisas. Aí ficaram tristes, sabe que a morte da mãe, do pai é triste, dá tristeza! Aí eles diziam: “Agora, o que nós vamos fazer? O que é que nós vamos fazer?” “Não sei...” Aí menor, mais esperto, disse:

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6 No original ele usa a va-riante “cruda”.

“Eu vou entrar no ventre da mãe, eu vou entrar no ventre da mamãe agora!” “Será?” “Sim, umbora entrar!” Deixaram o machado, deixaram tudo que carregavam. Aí se tornaram, se converteram [em] besouro. Entraram no ventre da mãe, ficaram lá dentro. Cinco horas da tarde chega o inimigo, a onça, não tinha achado nada, [de] caça. Disse: “Mamãe”, não, mãe não, é o esposa, “Mulher, o que é que tu achou?” “Não achei nada não!” O que é que a velha vai achar? “Aqui ninguém achou nada.” Quando olhou assim viu essa mulher lá dentro do jamaxim. Aí puxou e derrubou no chão. Tirou bucho. Aí começaram a cozinhar, coitado. Aí acharam dois ovos dentro, tiraram eles, tinha se convertido assim como ovo, mas era duro. Aí disse: “Achei comida pra mim agora.” Quando colocou na boca não podia mastigar, tava duro. Borracha nunca se mastiga, né? Assim que tinha convertido ele, aí procurou comer, não podia: “Vamos deixar então.” Aí querendo cozinhar, não podia cozinhar porque este ovo, tu sabe que quando o fogo arde, a água ferve, mas estes, estes bichinhos, Macunaima tava lá dentro d’água, a dona tava querendo cozinhar, mas não ferveu. O bichinho cantou pedindo ajuda pra esfriar essa água, pra não ferver. Isso era pedindo mar, mar nunca se seca. Esta história é muito impres-sionante, meu irmão! Sabe por quê? Porque também isso aí presta pra curar a gente também, é o remédio, é a oração dos indígenas. Aí dizendo: “Não tá cozinhando não. Vamos deixar num...”, aí colocaram na cesta. O senhor conhece essa cesta, né? Cesta de colocar água, qualquer coisa. Aí colocaram lá. Aí comeram lá na casa da mãe deles, passaram lá. Aí tava lá dentro da cesta o que conseguia; o que a onça conseguia, colocavam lá na cesta; eles comiam de lá mesmo da cesta. Colocavam banana, comia. Qualquer coisa que essa dona colocava na cesta não aparecia. Aí ficaram pensando: “Por que é que desaparece as coisas que eu coloco aqui? Minha [pecinha] eu coloco aí; o banana eu coloco aí; o batata assada eu coloco aí. Não aparece por quê?” Aí a velha falou assim. Enquanto este marido dela tá pro mato, porque a onça nunca para de caçar, né! Todo dia tá caçando. O que é que ele vai fazer? Ele não vai brocar roça. E tá sempre só dentro da casa procurando pra comer coisa crua.6 Aí ela falou: “Olha, meu

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filho, será que vocês tão comendo o que eu tô colocando aqui? Se convertam de novo pra, pra vocês me ajudarem a derrubar roça pra mim, pra mim plantar banana, pra mim plantar batata.” Falou tudo, e eles escutando dentro dessa cesta aí [aponta com dedo]. Um dia apareceram, se tornaram homem de novo. “Olha vovó, eu quero que vocês nos leve pra roça...” “Eu não vou andando não, de jeito nenhum!” Aí ela pegou, ela colocou na cesta, levou pra roça. Aí ela levou dentro do mato. O que é que eles fazem? Pega o terçado, “Tchan!” “Tchan!” “Tchan!” “Tchan!”, dez hectares de terra, só até meio-dia. De meio-dia pra tarde, tudo terminado. Eles tinham machado. Quando chegavam: “Quem foi que derru-bou roça lá no caminho?” “Não sei não, fui eu mesma que fez”, dizia a dona. “Tá bom, tá bom, tá bom, tem problema não!” Passou uma, duas semanas, três semanas. Chega a hora de queimar, tocar fogo. Aí convidaram essa dona. Aí vai começar a vingar. Os Macunaima já vão, já vão começar a vingar a morte da mãe. “Vovó, você nos leva de novo pra roça pra nós tocar fogo?” “Nós vamos conseguir um pedaço de pau aceso [...], pra tu acender fogo no meio?” “Tá bom!” Coitado do Sapo que não sabia. Aí pegaram um pedaço de fogo. Aí mandaram ela tocar fogo lá no meio: “Vamos tocar assim na beira!” Aí ela ficou lá no meio. Os Macunaima rodea-ram de fogo. Ela (sopra), não acende. Quando o pau de lenha tá meio cru assim não, não, não acende, não pega fogo não! Agora quando ele tá bem seco, qualquer coisa ele acende. Aí quando ela olhou, quando viu, tudo tava infestado de fuma-ça. Quando ela levantou a vista não tinha mais o Sapo pra ela. Aí amaldiçoou, esse Sapo amaldiçoou esses rapazes: “Vocês não vão ficar dentro d’água. Vocês não vão ficar na barriga de jacaré não. Vocês não vão ficar na barriga de sucuriju. Não vão ficar em nenhum lugar, em nenhum desses animais, vocês não vão ficar. Vocês vão morrer!” Mas essa dona Sapa nomeou barranco, nomeou barranco. Ainda mais tem aquele (não sei como se chama a seiva, a seiva aqui na Venezuela, porque eu falo mais espanhol do que português, porque já

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7 Pedra, da família Calcedô-nias, principalmente em sua variação vermelha, muito comum na região da Gran Sabana na Venezuela, aos redores do Monte Roraima. Inclusive há uma cachoeira com esse nome na região, muito visitada por turistas, Cachoeira de Jaspe.

aprendi falar espanhol, né!?) E da seiva que ele (chamamos, aquele mato, aquele que solta algodão, samaúma, sim.) Não chamou também não. Duas coisas que ela não chama. Agora que ela chamasse: “Vocês não vão ficar debaixo de samaú-ma? Vocês não vão ficar nem embaixo do barranco, já tinha morrido.” Mas não chamou samaúma no barranco. O que é que eles fazem? Se esconderam lá debaixo do barranco, samaúma tava lá em cima. Aí quando olhou, chegou fogo, aí pluft! Explodiu. Logo quando ela explodiu, dessa Sapa queimando apareceu esse Jaspe.7 (Você conhece ele, né? Assim Jaspe). Aí sapa queimada. Assim essa daí é a história que Macunaima tá começando a fazer. Quando ela explodiu virou pedra, esse Jaspe. Aqui no Mapauri, na Venezuela, tem muito lugar. Tu já andou por aí?

DF: Não, mas eu já conheço, já vi a pedra...

CF: Tu viu encarnada assim? Aí foram embora. Vingaram a morte da mãe e foram embora. Pegaram o machado e foram embora. Cinco horas da tarde chega o inimigo, Onça, marido da finada Sapa. “Cadê? Cadê? Cadê?” Aí, tu sabe que onça sente o rastro da gente. Aí seguiram o rastro dele. Destar que eles estavam lá brincando. Quando ele vinha negaceando assim [balança o corpo, como um felino], aí eles sentiram, aí eles viraram, falando pra cá e vai pra lá e sentiram de novo virando pra cá. Tu sabe o que é pulga Xicö, Xicö? Nós cha-mamos Xicö, pulga. Daqui “tchan” ele pula pra lá, pula pra cá, assim ele fazia [balança as mão em sinal de movimento]. Esse irmão dele menor era mais valente e ágil. O que é que ele fazia? Xicö faz um buraquinho. Coloca uma vara bem apontadinha, tava pulando por cima. Aí agora, quando ele chegou lá perto dele, disse: “Agora peguei vocês!” “Não, vamo umbora brincar com nós?” “Então umbora!” Então, escuta bem porque ele vai vingar agora, vão vingar a morte da mãe ainda. Aí porque comeram, comeram então. Tem que vingar, aí : “Vamo brincar aqui com nós?” “Como?” Também Onça é besta, né! “Como?” “Vamo pular assim, como nós tava pulando!” Tava bem apontado, bem amoladinho e apontado. Aí mandaram pular ele. Aí “Tchan!”, empurraram, “Tchan!”, ficou enfiada a Onça. Até aí acaba a história da Onça que já

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vingaram. Aí continuaram viajando. Aí apareceu Cutia, acom-panhando, acompanhante deles. Apareceu Cutia, quando se completa três: Macunaima, Xicö, Cutia. Viajaram dentro da mata, viajaram, viajaram, viajaram. Chegaram numa casa, numa casa velha, uma mulher lá, porque [eles] não tinham fogo, não tinham fósforo, não tinha nada. A mulher fazendo beiju com o fogo embaixo do forno. “O que é que nós vamos construir agora? O que é que nós vamos fazer?” Eles pega-vam peixe, comiam cru, [assado] no sol, seco, eles comiam sem fogo. O que é que eles têm? “Eu vou pegar fogo. Tu fica aqui.” Irmão maior que tá cuidando do irmão dele, porque ele parece que tava um pouco assim, ele tava muito atrevido com irmão dele. Aí irmão dele foi, aí se converteu [em] grilo. Tu sabe aquele bichinho, grilo?

DF: Conheço.

CF: Sim. Se converteu. Aí essa mulher que tava fazendo beiju, ele mordeu na coxa dela. Aí a mulher olhou, era grilo. Pegou porque ele faz um talinho de fogo aceso. Colocou na bunda dele e saiu. Levou fogo. Aí o outro lá esperando, pre-parado. Aí acenderam fogo, continuaram viajando. Chegaram na beira do rio, tava o Senhor Garça pescando. Coitado, tava pescando. Como ele pegava peixe? Não pegava peixe, não! só de noite assim. (Não sei como eles pegavam também? Isso aí não tá bem esclarecido também, porque o que eu estou contando é o que eles me falaram, me contaram. Não sei como eles pegavam peixe e comiam cru.) Agora, depois que pegaram esse fogo não deixaram apagar. Aí chegaram lá. Senhor Garça tá pescando, pegando aimara, aimara, trai-rão. Nós chamamos aimara, na minha língua, aimara, trairão grande. Aí foram lá. “Agora vamos.” Aí ela torou o anzol dele pra não pescar. O irmão dele maior: “Vou tirar. Espera aqui!” “Cuidado!” Quando ele saiu, foi lá. Garça jogando “Tan!”, ele pegou, tirou, quando ele bateu no pescoço, disseram: “Ei companheiro, me dê esse peixe, rapaz!, pra mim!” “Que peixe? Eu peguei um bocado!” “Então me dá!” Ele deu um pequeno assim, “Não, não, quero esse aqui mais maior.” Ele colocou no ombro e foi embora. “Quase me mata, rapaz bateu aqui no meu pescoço.” “Olha aí, eu sabia, eu vou tirar

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8 Fruta parecida com toma-te, comestível, um pé com espinho. Praticamente não existe mais na região, ne-nhum informante soube o nome em português.

o anzol dele.” Caiu dentro d’água. O que é que ele faz? Se mexeu no anzol do Senhor Garça, enrolou no toco de pau lá dentro d’água. Aí tocou assim como se fosse peixe no anzol. “Pan”, torou o anzol dele. Agora sim, nós temos anzol. Aí continuaram viajando, viajando por aí dentro do mato. Não era no campo, não. Era dentro do mato. Aí acabou rancho, não tinha mais rancho, não tinha rio, não tinha nada onde pegar peixe. O senhor Cutia, o que é que ele faz? Tu sabe que cutia anda por aí na roça, [pra] conseguir batata, conseguir jerimum, conseguir melancia. Ele consegue, né. Então, esse aí, esse aí era o pensamento do Cutia. Quando chegaram no meio da mata, não tinha nada pra comer. “Vamo passar mais dois, três ou quatro dia, vamo passar aqui pra vê se nós conseguimo alimentação.” Aí Cutia, o que é que ele faz? Ele andava por aqui, andava por aqui [aponta com as mãos pros lados], até que chegou nessa fruta. (Ai, ai, ai, essa fru-ta não sei como nome dessa fruta pupu,8 tem aquela fruta redondinha...)

DF: Qual é o tamanho?

F: Deste tamanho. Tamanho de manga.

MF: Aquela amarela igual à banana madura

CF: Sim, amarela...

MF: Amarela.

CF: Mas ela é...

MF: Redonda!

CF: Redonda.

ALGUÉM: Uma vez eu vi enlatado, né... docinho.

PL: É marmelo!

CF: Pode ser marmelo mesmo. O pé dele cresce, desde pequenininho vai carregando...

ALGUÉM: É uma fruta bem amarela.

CF: Sim, nós chamamos, na minha língua se chama pupu.

ALGUÉM: Pupu.

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CF: Pupu na minha língua, taurepang. Aí ele achou essa fruta. Ele comeu e não trouxe nada. “Shiiiiiiii”, o ar saiu. O Cutia comeu. Também parece que tava com muito sono. Ele tava dormindo. Aí abriram boca, tiraram carocinho dessa pupu que eu estou falando. Tiraram, provaram. “Ai coisa doce! Vamos descobrir ele!” Mas também era gente, era mal, era ruim esse Xicö, que é mais ruim. Mais esperto, mais inteligente ainda. Aí disse, o Macunaima disse pro irmão dele: “Vamos descobrir devagar.” O que é que eles fazem? Apareceu aquele Quatipuru. Tu conhece aquele quatipuru? Aquele que sobe ligeiro no pau?

DF: Ah! O quati?

CF: Quati, quatipuru, pequenininho assim...

DF: An...sei.

CF: Entrou no meio, aí entrou no meio.

DF: Já são quatro.

CF: Já são quatro, já. Aí disse “Olha, tu vai seguir esse Cutia até ele chegar no pé de pupu. Aí ele voltou. Aí: “Amanhã tu vai descobrir.” Aí esse Quati foi mais por cima da vara, do galho. Lá em cima tem outro galho [vai apontando com o dedo, como se ali estivessem os galhos]. Ele foi, Cutia que-rendo olhar, não tinha ninguém. Chegou até no pé de pupu. Quando chegou, era pupu no chão, todo maduro. Pegou, apanhou lá e voltou. O quati foi e voltou. Chegou lá, “Achei, eu vi onde tá.” “Amanhã vamos derrubar.” “Olha aí, tão querendo estragar, tão querendo estragar.” Aí a história de Xicö, mais valente do que o irmão dele. Aí voltou e “Ai, não tô conseguindo nada aqui.” Trouxe outra fruta que não era de comer muito, né. Aí “Não, tu achou pupu, né?” “Não, olha aqui, cê trouxe, olha aqui. Sim achei, umbora amanhã, umbo-ra comer.” Aí convidaram. Aí convidaram, se mudaram de um acampamento pra outro, lá no pé de pupu. Chegaram lá. Tava no chão, tudo maduro, em vez de comer, em vez de encher barriga, esse Xicö disse: “Eu vou derrubar!” “Não senhor, tu vai estragar essa fruta.” Era longe a história, né! História que nós estamos falando. Aí ele disse: “Não, eu quero comer

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lá de cima.” “Não irmão, deixa, não derruba, se não tu vai estragar fruta. Quem é que vai colher tudo?” “Não, nós vamo comer só um, depois nós guarda.” Rapaz, ele pegou macha-do e “pan”, derrubou! Estragou tudo. Agora passaram um monte de dias comendo. E foi, quando passaram os tempos. Passaram dois, três semanas. Aí acaba, apodrece também. Aí começaram a viajar de novo. Andaram, andaram, comendo fruto que não é bom. Aí chegaram num lugar, “Vamos passar dois dias aqui pra ver se nós conseguimos comida enquanto Cutia acha outra.” Já tão sabendo que ele consegue. Aí pa-raram dois dias lá. Cutia vai pra lá, vem pra cá. Achou pé de banana. (Rapaz, falando nisso lá no pé do Monte Roraima, já ouvi dizer que tem a terra boa, fecunda, ela dá banana assim [sinal de tamanho grande com as mãos], estavam me falando. E pé de ubim que por aqui, nessa mata, é assim [faz gesto de tamanho pequeno]. Lá não, lá é assim [de tamanho maior]. Lá no pé do Monte Roraima, segundo me falaram.) Tão vindo de lá pra cá, saindo de Monte Roraima, eles tão saindo. Aí Cutia, porque já tava acostumado a conseguir. Um dia, achou essa fruta de banana, pé de banana, e comendo não trouxe nada...

DF: De novo...

CF: De novo, porque ele tá sabendo que outro compa-nheiro é muito valente pra derribar. Em vez de comer o que tá no chão, ele fez foi derrubar o pé dele. “Agora eu não vou contá pra ninguém mais não. Chegou”, “Olha aqui, umbora comer.” AÍ trouxe fruta que não era boa. Aí [sopro de peido]. “Ah! De novo, ele tá peidando banana...” “Será que ele achou pé de... Será que ele achou banana? O que é que ele comeu? Abre a boca dele!” Era migalha, resto de banana.” É banana! Amanhã que eu vou descobrir”, o Quati falou. “Tá bom!” Aí sim, tava já sabendo que ele é muito esperto também, o akuri, nós chamamos akuri, a cutia.

DF: A cutia.

CF: Akuri. Na minha língua eu falo akuri. Ele tá sabendo que eu estou falando do animalzinho. Ele foi atrás. Chegou no pé de banana, lá por cima. E Cutia, coitado, querendo olhar,

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9 Há certa incoerência no uso do feminino ou plural, entre “esse Cutia” e “essa Cutia”. Como não foi pos-sível rever o informante, pois ele faleceu, optamos em deixar como está, já que Cutia, nesse caso, é uma personificação mitológica.

nada, não via nada. Chegou lá e ajuntou a fruta que não era bom de comer e apanhou, apanhou. “Ah, não tem nada não, rapaz, pra comer! Umbora comer essa fruta, fruta que não é bom pra comer.” “Olha, tu achou banana, né?” “Não.” “Sim, tu achou! Descobriu.” “Não, não achei não.” “Olha, ele trou-xe...” “Sim, eu sei. Amanhã nós vamo comer lá.” Aí foram. Aí foram embora. Chegaram lá no pé de banana. Banana naja, baié, banana comprida. De tudo pé de banana. Tudo, tudo, tudo, tudo, de tudo. As bananas que existem aqui no mundo agora foram espalhadas a partir daquele momento. Chegaram lá, banana no chão, tudo apodrecendo, caindo, madurinha. “Umbora comer!” Aí olhou, Xicö tava olhando por cima: “Lá tem, de novo, amadurecendo. Vou derrubar.” “Não senhor!” “Sim, vou derribar!” Aí começaram. Pegou o machado. “Pan.” Rapaz, esse menino foi muito ruim. Em vez de embaixo, estando lá embaixo, ele derriba. Aí o que é que ele faz? Aí tava derrubando já. Nesse momento, Cutia, coitado do Cutia, era assim, pode ser que ele tinha couro branco ou couro preto, assim, uma coisa assim, do Cutia, né! Então, cada vez que dormiam por aí, nas matas, tiravam mel, nós chamamo wuan.

DF: Wuan.

CF: Mel. Wuan é nome da gente também. Juan é João. Mas na minha língua é wuan, não é Juan. Sim wuan. É abelha.

MF: Mel de abelha.

CF: Mel de abelha. Aí, ele amontoava cera, cera de mel. Como essa9 Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos que apareceram com essa cera viva que ele ajuntou da abelha. Fechou, amontoou lenha, amontoou banana que tava recém--caída, verde, tudo amontoou dentro do oco de pau. E ficou lá, enterrado. Ele se preparou, esse Cutia se preparou. Os outros Macunaima, Xicö não, não se prepararam não, não se preveniram. O que é que eles fazem? Aí começou cair pé de banana. Tu sabe que tem muitas árvores, também grande igual a ele. Engatou. O cipó aguentou na ponta. Aí obrigam coitado do Quati: “Vai torar aquele cipó, senão não cai.” Ele,

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tu sabe que ele roi também ligeiro.

D F: Ele é um roedor.

CF: “Tchan.” Torou. Caiu. Saiu muita água do pé de bana-na. Tu sabe que banana tem muita água. Sim. Aí tinha muita água. Tinha dois pés de palmeiras, um de najá, um de... Deixa me lembrar: outra palmeira, tem de várias qualidades de palmeiras. Aquele tal de pé de bacaba, mas não é bacaba desse o’ nörö alhö ytesek mörö ko ke? Anek, mayi.[Como é o nome dessa palmeira? É aquele?] Patauá, pé de patauá, tinha pé de patauá e pé de inajá bem perto assim como tá aqui [aponta com o dedo pra um lado], e outro também aí [aponta com dedo pro outro lado]! Pé de najá, pé de patauá. O que é que Macunaima faz? Vão subir lá. Volta a subir no pé de najá. Ficaram lá. Encheu d’água. Cutia lá dentro d’água. Tudo tampado nesse buraco. Ficou lá. Passa ano, passa mês. Essa fruta que tava junto com ela lá desses Macunaima e Xicö tava ainda verde, né! Passaram meses. Aí ficou de vez. Estavam comendo dessa fruta. Patauá e inajá. “Irmão!”, tava escuro. Escureceu. Não sei porque escureceu. (Esse também não tem como entender, detalhadamente não posso dizer, porque não sei por que tava escuro assim). Ficaram lá, tem-po. Aí já tava madurando. “Irmão, joga da tua fruta pra mim provar.” Xicö fazia o quê? Xicö era ruim, eu não estou dizendo que ele era ruim. Aí pegava a fruta e descascava, passa no bicho dele [pênis] e “tchan.” pra ele: “Tá gostoooso?” “Tá bom, tá gostoso.” E ele achando graça do irmão dele mas não descobriu o que ele tinha feito pro irmão dele. Não descobriu o que é que tava fazendo pro irmão provar essa fruta. É por isso que a partir desse momento essa fruta é assim, liguenta, não é solta assim como bacaba, ela é liguenta assim, cheiro de graxa, cheio de graxa assim. Aí, tempo depois, secou. Aí provaram como este caroço que estavam comendo, “tibum.” lá em baixo. “Já tá ficando irmão, umbora descer.” Depois, parece de 150 dias, secou. Aí desceram. A Cutia abriu esse oco de pau que tava dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira [passa a mão nas nádegas] ficou encarnadinha por fumaça, por causa da fumaça. Essa é a história de Macunaima. Essa é que é a história de Macunaima. Cutia não era assim não. Era

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10 Referência ao motivo pelo qual a cutia (mamífero da família Dasyproctidae, com sete especies no Brasil) pas-sou a ter listras nas costas.

11 Árvore mítica, da qual, com sua queda, teriam-se originado o Monte Rorai-ma, bem como os principais rios da região.

12 O filho de Clemente Flores tornou-se artista plástico indígena reconhecido em Roraima, seu nome é Mário Flores.

13 Hoje um dos principais sítios arqueológicos de Roraima, principalmente iconográfico, localizado na Terra Indígena São Marcos.

branco... parece que era ou preto, não sei. Agora, quando... com essa fumaça, ficou tudo amarelinho assim.10

DF: Fumaçado...

CF: Fumaçado, amarelo a partir daquele momento. Aí foram embora. Chegaram. Este toco aparece aqui no Monte Roraima, até agora aparece. Nós chamamos, na nossa lín-gua, wadakapiapö, wadakapiapö [...]. Esse pé de banana se chamava wadaka.11 Tu sabe que é enorme, é grande esse pé de banana que chamavam wadaka, piapö é toco. Aqui, por aí, ficou essa história porque pra lá, mais pra trás, não estou sabendo, não sei como continuar. Depois passaram por aqui, por outras coisas por aqui; vieram por aqui, chegaram aqui, por aqui. Olha aqui, aqui tem a história também, continuando por aqui na beira da Pedra Pintada, aqui no Parimé, na beira do Parimé, tem uma pedra. Ele escreveu. Isso aí tudo escrito com meu filho, tudo desenhado.12 Ele não tá vindo lá não. Ele foi passar a noite aqui, lá caçando pra ver se ele vai voltar amanhã. É por isso, é por isso que a lenda disse que pra cá caiu mais fecundo o galho de banana, pra cá mais fecunda. É por isso que aqui dá banana, dá de tudo, porque caiu pra cá, porque o galho que é mais fecundo caiu pra esse lado do Brasil. Aí chegou na Pedra Pintada,13 chegou lá e pintou. Tá ali a letra do Macunaima. Até eu mesmo vou lá e estou olhando lá. Assim foi essa história de Macunaima, porque já estou me esquecendo porque não estou; eu não estou repetindo pra você, estudando na Bíblia, então vai acabando.

DF: Eu sei, se não repetir vai ficando pra trás

CF: É... Agora, a escrita, o desenho tá tudo completo, o que não me lembrava bem, tá tudo escrito no...

DF: No desenho.

CF: No desenho, sim senhor. Essa foi a história de Macu-naima. Essa foi a história de Macunaima. Ainda mais que... Não, essa aí é outra história... Assim foi seu, como é o nome do senhor? Que me...

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14 Observe que “ninguém.” funciona como negativa. Quando tenho que ade-quar, sou obrigado a co-locar um “não”, pois não basta colocar um “nós”, não é isso que está na es-trutura da linguagem do informante. Opto em deixar no original, pra conservar a beleza do estilo do seu Clemente Flores.

DF: Devair.

CF: Devair...

DF: Mas é Antônio também. O senhor não tava errado naquela hora não, porque é Devair Antônio, entendeu?

CF: Hum...

DF: Eu sou Devair Antônio.

CF: Hum... Devair Antônio.

DF: Não tava errado não, é Devair Antônio.

CF: Hum... Assim foi essa história, meu irmão, porque eu gosto de falar assim, mas tu sabe que ninguém sabemos14 falar bem o português, porque somos indígenas taurepang.

DF: Claro que sabe falar! Eu entendi tudo, como é que não sabe!...

CF: Eh...

MF: Agora a história de Macunaima...

DF: Algumas coisas eu já tinha ouvido. Eu fui, eu estive na Venezuela há uns três meses. Aí eu tava lendo a história. Tem até uma revista lá que se chama Kuawä. O nome da revista conta um pouco da história da árvore da vida. O quê?

MF: Do Makunaimö.

DF: Eh, também...

CF: Sim, porque os brancos chamam assim: Macunaima. Mas na nossa língua indígena, própria, disse Makunaimö.

DF: Makunaimö.

CF: Assim que nós falamos.

DF: Makunaimö.

CF: porque ninguém... Makunaimö... Agora o branco diz: Macunaima. Agora inventaram um Macunaíma. Não é Macunaíma. É Makunaimö.

DF: É porque Macunaíma é o título de um livro.

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CF: Isso aí, puseram pra ser o título do livro, mas podia ser assim. Mas agora o nome próprio é Makunaimö.

DF: Ele fez de propósito. A pessoa que escreveu esse livro foi em 1927. Não do século agora, mas faz noventa anos já. Foi Mário de Andrade, ele já sabia essa história.

CF: Agora, outra coisa que eu estou... que tem outro tipo de historiadores, ele conta diferente. Aí tu vai falar com ele, tu vai anunciar, tu vai perguntar dele, ele vai contar em outra forma. Assim, porque a história que sai mais correto é dos taurepang. Agora, arecuna errou, arecuna errou, porque eu vi na escritura de... não sei de quem foi... quem foi que escre-veu? Foi Parimé, Parimé Brasil, que ele deu um livrinho pro meu filho, mas não fala correto como você, ele fala errado.

DF: Eu sei, entendo... Deixa eu anotar aqui. O nome com-pleto do senhor é...

CF: Clemente Flores.

DF: Clemente Flores. Seu Clemente, o senhor sabe a idade do senhor?

CF: Sessen... agora assim idade, por cálculo, eu estou com sessenta e oito. Porque naquela época, também, meu pai, coitado, não sabia dizer que hora, em que mês, em que ano, em que dia...

DF: Eu sei, eu entendo.

CF: É por isso que quando o filho do índio tá assim [faz sinal com a mão, em relação ao tamanho], tá como dois anos, não, dois anos não, até ano pode ser. Eu tinha sete anos, me colocaram pouco... Sim, calculando assim, agora eu estou com sessenta e oito anos.

DF: Ah! Entendi.

CF: Sessenta e oito... Naquela época ninguém sabia, nin-guém se dava conta, se, por exemplo, tu, se alguém vier me perguntar: “Que dia nasceu teu filho?” “Meu senhor, a lua tava bem por aí quando nasceu meu filho.”

DF: Ah é!

CF: Mas qual era, qual era a lua? Janeiro? Fevereiro? Ou

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Março? Abril? Ou Dezembro?

DF: Eu sei, porque são doze por ano.

CF: É isso aí. Assim foi naquela época, meu pai não sabia. Depois de velho, depois de me gerar, meu pai aprendeu a ler, depois de velho, assim como idade dele. Depois de velho ele aprendeu...

DF: O senhor é casado?

CF: Eu sou casado.

DF: Casado. Quantos filhos?

CF: Tenho sete filhos.

DF: Ah! Sete filhos.

CF: Tenho sete. Quatro homens e três mulheres.

DF: Bem dividido, né?

CF: Hum? Agora, os netos, tenho vinte e seis netos; do Florentino, do Pedro, do Glorentina, da Fidelina, e hum... Mário, Aurimelia, vinte e seis netos. Netos e netas.

DF: Uma dúvida só: vocês têm um nome em taurepang e outro em português? Ou é só em português?

CF: Não. Em português, porque é verdade, porque na-quela época os nomes...

MF: Taurepang é a nossa linguagem mesmo.

DF: Eu sei. Mas o nome, por exemplo...

CF: O nome não. Nome escrito foi [dado] pelos brancos. Agora naquela época que ninguém sabia o número e nin-guém sabia as letras. Então, esse aqui eu posso decidir, meu filho, digo, eu diria pra ele wakarampö, esse nome, wakaram-pö, wakarampö é aquele furacão também. Ninguém sabia as letras assim como ABC, por isso que eu poderia chamar ele, eu chamo ele pra batismo dele Kaikarua, Wey Kurata [Sol], eu poderia falar assim, só pra dizer o nome. Agora nome, agora que nós estamos recebendo só em português...

DF: Ah sim.

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15 Quando me encontrei com o filho de Clemente Flores, Mário Flores, e per-guntei sobre a morte de seu pai, me disse que ela teria sido ocasionada por Canaimé.

CF: Sim senhor. Assim, que indígena, ninguém temos nome...

DF: Eh, não colocam nome indígena não.

CF: Não, não. É por isso, sempre, muita das vezes eu penso que o “seu Clemente”, meu apelido podia ser tau-repang, Clemente Taurepang, mas não é taurepang, Usted es taurepang. Assim como nós poderíamos ter esse nome, mas chegou apelido, Flores, Flores. Aí tão querendo cortar Flores do Manoel.

DF: E ninguém sabe de onde veio Flores...

CF: É isso aí.

MF: Até eu não sei, eu mesmo não sei de onde vem...

DF: Só tem a curiosidade?

MF: Eh.

DF: E o senhor tem mais alguma história assim? Porque tem o Macunaima, tem o...

CF: Tem! Agora...

DF: Makunaimö.

CF: Makunaimö é minha língua.

MF: É Makunaimö.

DF: Makunaimö. Falei certo ou não?

MF: Na nossa língua é Makunaimö. [...]

MF: Agora Macunaima...

CF: Isso aí já, isso aí na língua dos brancos.

MF: Makunaimö.

DF: Ah, sim, [...] sobre o Canaimé, qual é a visão do se-nhor?

CF: Ah! Canaimé ainda existe, Canaimé.15

DF: Ainda existe?

CF: Ainda existe esse rapaz, tão perseguindo nossa vida,

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rapaz. Canaimé é aquele que, na linguagem, em português se chama bandido.

DF: Bandido.

CF: Malandro, é ladrão. Isso aí se chama Canaimé. Isso aí, na linguagem, estamos falando na linguagem de português. Agora na minha língua [é] Kanaimö.

DF: Kanaimö.

CF: Agora outros dizem Canaima. Na Venezuela dizem Canaima. Brasil diz: Canaimé. Agora na minha língua Kanaimö.

DF: Kanaimö. [...]

CF: Isso.

MF: Têm pessoas que aprendem assim, tem gente que não sabe. Então, pergunta de alguém aí.

CF: Como chama... Canaimé, e macuxi chama diferente, já muda cada um.

DF: Cada etnia tem a sua variação.

LS: Variação linguística, né?

DF: Justamente.

MF: Agora, o senhor tá conversando com os próprios taurepang.

DF: Estou vendo.

MF: Não é macuxi...

DF: Eu sei disso. É porque hoje muita gente chama...

LS: Legítimo, né?

MF: Muita das vezes eles, têm cobrado a gente, quando a gente chega em Boa Vista, eles ficam olhando pra gente. Aí “Vocês são brasileiros?” “Por quê?” “Porque são diferen-tes.” Quando a gente vai pra Venezuela: “Vocês não são venezuelanos?” “Por quê?” “Ah! Vocês são diferente.” Então, ninguém é brasileiro. Daqui do centro, ninguém mora lá no centro, em Bolívar, a gente mora aqui na fronteira. Então, eles consideram a gente como peruano.

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DF: Quem considera? Você fala os...

MF: Eh... Aqui, o pessoal de Boa Vista. Eles dizem assim: “Vocês são peruano?” “Não, somos indígena.” “Mas mo-ram aonde?” “Na fronteira.” “Ah! Tá certo, tem razão!” É assim...

DF: Interessante isso.

MF: Quando a minha irmã foi pra Bolívar, levou filho dela que entrou no fogo, se queimou, então mandamos pra Bolí-var. Quando ela chegou no hospital, a doutora, eles ficaram admirados. Disseram assim: “Você é filho do venezuelano, a sua mãe é brasileira.” Se ela dissesse assim: “Eh, minha mãe é indígena brasileira, meu pai venezuelano.” Olha aí. Descobriram lá em Bolívar, hospital de Bolívar. Então, eles consideram a gente como peruano. Não é brasileiro, não é venezuelano.

DF: O que é difícil, né? Também, né, porque...

MF: A gente anda, na verdade, a gente tem costume [de] usar camisa, é cinturão, calçado. Uma vez nós chegamos lá na Assembleia Legislativa, três irmãos. A gente tava andando ali, aí veio uma mulher dizer assim: “Vocês são da onde?” “Somo daqui, de Pacaraima.” Aí voltamos perguntar: “Por quê?” “Não, porque eu nunca vi índio andar. Eu conheço yanomami, eu conheço juapiri, eu conheço maiongong, tão diferentes. Agora eu estou aqui olhando vocês, vocês não são indígena?” “Nós somos, sim.” É assim, eles estranham muito com a aparência... eu acho que são... não sei... eu acho que eles veem a gente como Kanaimö [risos]

DF: Eh, e isso é complicado, porque já morar na fronteira é complicado. É brasileiro, é venezuelano, né?

CF: Sim, porque estamos na fronteira, então pra morar na fronteira tem que ter dois idiomas. Quem chega na Venezue-la: “Oh cuñal, como tá tu?” Tu chega lá na Venezuela “¿Tu eres índio? ¿Tu te parece colombiano?]” Tu parece colombiano. “Yo no soy colombiano, pues colombiano es malandro.”

DF: Mas eu quero dizer o seguinte, em relação à identi-

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16Muito forte na comunida-de a relação entre saber a língua materna indígena e ser índio.

dade, que acaba que você vai ter que falar assim: “Não, eu sou indígena”, mas é um indígena que é brasileiro também, mas que também, vocês também tem uma origem muito próxima da Venezuela, porque, inclusive, a família veio de lá, não é? O patriarca veio de lá, não foi isso? E vocês vieram com 15 anos ou mais velho um pouquinho, não foi?

MF: Com doze anos, isso.

DF: Com doze então. Isso tudo na cabeça da pessoa tem que... Bom, pelo menos eu penso assim, eu não sei, né?

MF: Eh, então, eu tenho um parente lá no Amajari. Ele é até um professor, é taurepang, mas ele não é falante,16 ele estuda lá também no Insikiran.

DF: No Insikiran.

Alguém: Ele falou que ele representa taurepang, mas o problema é que não é falante... mas ele representa os tau-repangues lá dentro.

DF: Entendi.

MF: Então, acontece. Tem uns que são taurepang, da etnia taurepang, só que já perderam a...

DF: A fluência, não é? A fluência na língua. E a língua aca-ba sendo uma resistência. Uma resistência da comunidade. Uma identidade da comunidade. Vocês se tornaram muito mais fortes quanto à identidade, “Nós somos taurepang. Nós temos a língua taurepang. Meus filhos sabem taurepang.” Isso é muito importante. Eu acho que essa é uma questão da identidade. Mas é, seu Clemente, alguma história assim que o senhor saiba, de alguma parte da história do povo do senhor?

LS: Do Canaimé...

DF: Eh, do Kanaimö. E outras coisas. É pra gente registrar mesmo. [...]

CF: Meu irmão, agora nossa história que nós temos, como fundamos esse Sorocaima I. Eu estou falando a história, não é do passado, não é do Macunaima, [que] não é verídica. Porque eu, quando nasci aqui, passei a doença, epidemia que

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17 Pouco tempo da morte de Clemente, seu pai, o patriarca da comunidade, também faleceu.

chama, morreu muita gente aqui. Nosso costume é assim, costume indígena dos taurepang: se passa uma doença por esse lado, então desse lado não passa. Então, meu pai me levou fugindo pra Venezuela, por isso foi que aprendi falar mais espanhol do que português. Agora, eu estou apren-dendo falar português, depois de velho, assim como meu pai aprendeu a ler depois de velho. É por isso. Isto aqui foi fundado em 1915; 1915, sim senhor. 1915, segundo como vos falo, porque meu pai que pode explicar tudo, mas ele tá sur-do, não ouve, não fala, não tem a vontade de falar, porque tá todo cansado, desmaiado, tá velhinho.17 Ele parece, ser capaz de ter noventa, cento e dez anos, já tá velhinho, meu pai.

DF: Cento e dez?

CF: Cento e dez. Pode ser que ele tenha cento e dez ano, porque tá muito velho demais. Tá cambaleando...

DF: Eu vi ele forte esses dias ali, comendo, sentado, to-mando uma Coca-Cola. Ele gosta, não é?

CF: Sim. Agora. [risos]

LS: Comendo pimenta com a colher, ele pegava com a co-lher de comida, botava na boca. Aí pegava outra de pimenta e botava em seguida.

DF: É assim mesmo? Eu tava vendo ele comer faz poucos dias.

CF: Parece que pimenta é remédio pra ele, porque, se eu como assim tanto pimenta, não fico alegre não, fico triste. Se não tem pimenta, fico triste. Mas não é tanto também, só pra condimentar comida, é bom assim, agora se tu coloca demais, aí...

DF: Perde o gosto.

CF: Faz mal pra tu. Esta história foi, esta região de Soro-caima I tava cheio de gente, mas quando passou essa doença muita gente morreu. Hoje três, quatro pessoas pegavam febre, amanhã estavam na tumba.

DF: Isso foi quando mais ou menos?

CF: Isso foi antes de 1915. [...] Então, meu pai me levou

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fugindo pra Venezuela, né? Me criei lá. Aí nós tornamos a vir pra cá, aí isso aqui ficou tudo abandonado. Morreu muita gente, e os outros foram embora, fugiram pra outro país, pra Venezuela, outros pra Guiana. Eu tenho família na Guiana por-que, como se diz, jamais saí pra lá. Aí vim com treze anos pra cá, ajudar meu pai. Isso aqui [aponta pro irmão mais novo] tava pequenininho ainda. Estavam com sete ano, outro oito, outro dez [faz referência a outros irmãos]. Eu vim aqui, nós fizemos roça aqui.. aí aqui não havia nem estrada. Aqui era caça: paca, veado, catitu, porco do mato, onça, jacu, nambu, mutum. Aqui a gente vivia tranquilo. A gente vivia tranquilo. A gente fazia plantações de macaxeira. Conhece macaxeira?

DF: Conheço.

CF: As nossas mulheres faziam beiju. Ninguém conhecia muita farinha, ninguém conhecia, senão beiju. Na Venezuela chama casabe.

DF: Eu sei. Eu conheço.

CF: Aí foi que nós pensamos. Depois que eles se fizeram homem, aí começaram a fazer roça. É por isso que eu já aprendi mais espanhol do que português.

DF: Ah, entendi.

CF: Agora já estou querendo esquecer do castelhano, porque já estou no Brasil falando.

DF: Eu também estudei um pouco de castelhano [...], na escola.

CF: Ah! Tem escola também que ensina espanhol, né?

DF: Tem. Tem espanhol, inglês, tem de tudo, né, tem até se você quiser aprender grego você aprende. Italiano, francês.

CF: É por isso que nós estamos por aqui. Agora já esta-mos quase civilizados, mas não tenho carro, por isso que eu ainda estou do mesmo jeito que tava. Agora, quando eu andava assim no volante, eu era branco mesmo. Agora não, eu estou andando a pé mesmo, chinelazinha no pé, eu vou

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18 Nesse momento, seu Clemente havia dito “meu camisa”, tal difiuldade em língua portuguesa é comum em falantes que não tem o português como primeira língua. Esse tipo de flutua-ção ocorreu várias vezes em falantes em que a a primeira língua era indígena.

19 Conselho Indigenista de Roraima.

20 Referência ao chama-do Linhão de Guri, cabos elétricos que cortam toda reserva São Marcos, le-vando energia elétrica da Venezuela para o Brasil.

21 Nesse ponto, ele pergunta em taurepang qual o valor da multa ao irmão Manoel Flores.

pegar minha18 camisa, eu vou pescar. Eu pego meu timbó, vou botar timbó no rio pra pegar peixe. Tudo isso aí acontece. Gente vivia feliz, meu irmão, a gente vivia feliz. Depois que passou estrada por aqui, sem dar nenhum tostão pra nós. Sem dar nenhum centavo pra nós, eles passaram por aqui ganhando dinheiro. Olha aqui, gente que passou por aqui. CIR, organização CIR19 roubou muito dinheiro. O pagamento desse negócio que fizeram.20 Parece que cento e poucos mil reais que eles tiraram. Era pra cá, parece que vinte e cinco mil reais, pra cá, pra comunidade né, esse dinheiro. Vinte e cinco pra cá, vinte e cinco pra ali, vinte e cinco assim. Só eles do CIR comeram tudo. Agora outra lei que aparece pra nós, é muito preocupante, sim senhor, embora que o policiamento, entra vereador, entra governador, estou passando esta história que tá acontecendo aqui entre nós. Chega Meio Ambiente: se eu vou derribar uma roça, uma rocinha por aqui, tu tem que pagar trezentos; se der uma linha, duas linhas, tem que pagar quinhentos reais. Pra quê? Se eu estou derribando na minha área?. Se eu vou botar timbó no igarapé, tu vai preso, e por que pela estrada vem maldade? Esse aí que me preocupa. Às vezes, a gente fica triste, às vezes a gente chora, meu irmão, isso aí que nós estamos sentindo. O nosso pessoal, tuxaua Geraldo, só que segundo tuxaua. Daqui da comunidade, tudo taurepang. Nosso irmão, caçula do nosso pai, Astromarino, ele é tuxaua. Uma vez nós derribamos duzentos metros quadrados, ele derribou trezentos metros quadrados, ele derribou duzentos metros quadrados. Outro derribou du-zentos metros quadrados. No tempo da queima avoa tudo essa montanha, porque, quando tá seco, ninguém vai apagar. Quem vai apagar fogo dele? Ai, ai,ai. Aí veio helicóptero, veio filmando: “Derrotaram as matas.” “Vamos cobrar eles.” Aí chegou cobrando. Veio cobrar nove mil setecentos e cinquen-ta.21 Primeira cobrança. Passou. Ainda mais fizeram. Cajado de dezesseis mil e não sei quanto. 2ª cobrança. 3ª chegou quase vinte e cinco mil reais. Da onde o índio vai tirar dinheiro? Tu não pode derribar muita mata, porque vai estragar madeira. Madeira não estraga, não. Quando a gente vai derribar roça, nós estamos plantando macaxeira, maniva de fazer farinha.

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22 O filho de Clemente se identifica também como Mário Taurepang, além de encontrar referências a Mário Flores e Mário Flores Taurepang na Internet.

Essa madeira que caiu no chão, estamos aproveitando pra torrar farinha. Não estraga, não. Não estraga! Nós estamos aproveitando. Gente não trabalha com máquina, senão com a mão, manual. Então, nós temos que trazer lenha pra poder torrar farinha. Essa madeira não estraga, não. Nós aproveita-mos. Até agora, essa época que nós estamos falando com o senhor, nós sempre perseguido, sem motivo algum. Ele não matou. Ele também não matou, mas sem motivo tão perse-guindo. É por isso aí, da minha parte, eu estou pensando de me mudar pra Venezuela, porque estão me perseguindo, assim como vento me levou fugindo da doença, eu tenho que fugir pra Venezuela.

DF: Procurar o que é melhor, né?

CF: Sim, senhor. Abandonar Sorocaima. Ele [o indígena] vai pra onde quiser. Se ele quer ir pra cá, ele vai pra cá. Isso aqui fica abandonado. A polícia chegou aqui; bateu, bateram em muita gente aqui, nove persona. De mal! Até agora esse meu filho que [eu] tava falando, desenhador,22 foi batido, muito [de] mais, e tá sentindo a dor onde bateram nele. E por que é que vem maldade pela estrada? É por isso que nós não queríamos, nós não queríamos estrada, mas vieram pela porta da gente.

DF: Bem no meio, né?

CF: Sim senhor...

DF: Bem no meio da comunidade. É mais, é o que eles chamavam de progresso, não é?

CF: Hum... Progresso é só pra eles. Progresso pra eles. Sim senhor, meu amigo, assim que a história ficou por aí... Estamos falando outra coisa que, que nós fizemos...

DF: Não, mas isso também é importante, né. Inclusive essas perguntas todas a gente fez pro Manoel. Mas é, tá tudo dentro, né. É claro, como ele falou assim: “Não, o senhor pode deixar que o meu irmão vai contar as histórias lá do...”

MF: Macunaima.

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23 Vale ressaltar a maestria do senhor Clemente Flores como contador de história. Ele faz modulações na voz de acordo com as perso-nagens, com o que elas di-zem. Há nítida diferença de quando ele fala de aspectos da vida cotidiana da comu-nidade para quando ele está narrando uma história mítica de seu povo.

CF: Contar Canaimé também.

DF: É porque a gente tá preocupado com as duas ques-tões: de registrar tanto essa indignação da comunidade em relação a muita coisa, mas também registrar a questão das histórias da comunidade. Essas histórias igual do Makunaimö e outras que tenham. Assim, as duas coisas. Se o senhor souber de uma outra história que o senhor queira contar.

CF: Meu querido, a história que eu posso dizer, não pa-rece, não é muito importante, mas eu vou contar só uma, curtinha.

DF: Mas é que não importa, não precisa ser grande, pode ser pequenininha, só que o senhor lembre, pra gente registrar.

CF: Esse que tava falando, timbó. O senhor conhece timbó? Que mergulha dentro d’água pra poder matar peixe.

DF: Eu nunca vi fazendo. Nossa, eu estou muito curioso, me falaram já que é uma planta que você amarra...

CF: Sim.

DF: Machuca.

CF: Sim.

DF: E joga na água.

CF: Sim, é um cipó, ele é um cipó, mas amarga somente pra pegar os peixes.

DF: E joga lá. E eles ficam bobeados, não é? Eu já sei da história, só não sei como fazer.

CF: Esse daí, tu sabe como sair? Tu sabe como sair assim, de raiz, timbó. Meu pai contando essa história, que teve um rapaz, uma criancinha de mais ou menos três anos mais ou menos. Ele era chorão, chorava demais, chorava. “Te cala, meu filho [imita som de choro]. Te cala, meu filho!”18 Até de noite ele chorava. Aí mãe dele, o que é que ela faz? Aí ela saiu com esse filhinho chorão: “Não quero filho chorão, não! Ah, raposa, leva esse menino pra ti!” Aí deixou lá fora. Fechou a porta, ficou a criança chorando. Destar que a raposa tava

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andando, dona Raposa. Aí “Umbora, meu filho.” Pegou essa criança e levou. Aí ficou de noite, “Destar, será que ele dormiu? Quando voltaram, não tava mais não. Raposa já tinha carregado. Isso aí é princípio de produzir essa raiz que eu tô falando.”

DF: Mas como, que eu não entendi?

CF: Ele disse assim, porque menino era chorão.

DF: Isso eu entendo.

CF: Sim, menino chorão. Então, a mãe dele, a mãe dele jogou lá fora pedindo que raposa levasse...

DF: Raposa levou.

CF: Sim, raposa. Destar, que tu sabe que raposa de noite anda ao redor da casa, né? Andando pra pegar galinha. Então, em vez de galinha, pegou a criança e levou embora.

DF: E aí...

CF: E passa, e passa, e passa tempo.

DF: Ah sim!

CF: E passa, e passa, e passa tempo. Aí ele ficou já homem. Aí dava aquele ananás igual como, como abacaxi. Ananás é silvestre, né?

DF: Eu vi um dia lá no Tepequém.

CF: Aí ela dava porque se acostumou como o Raposo, dona Raposo. Aí um dia ela disse, mais ou menos essa hora. Eu, na minha opinião, eu calculo assim, essa hora, ela foi no pé do coisa, no ananás: “Fica aqui, meu filho, eu vou apanhar ananás pra ti.” Destar que ela deixou ele no caminho da Anta também. Também deixou no caminho da Anta. Coitada da Raposa. Esta história não é verdade, mas eu fico sentido. Coi-tada da Raposa, que [a dona Anta] tomou o filho da Raposa. Essa Anta, dona Anta, tomou, roubou o filho da dona Raposa. Ela não tava sabendo, coitada, tava procurando ananás por aí. Aí, “Meu filho?”, não respondeu. Passou: “Umbora co-migo, meu filho?” E Anta é grande, né. Colocou no pescoço,

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levou. Já tava também um homenzinho. Aí chegou lá: “Cadê meu filho?” Não, não achou. Maldita. Aí viu rastro de Anta, de dona Anta. “Maldita Anta! Por que tu levou meu filho? Você vai me pagar...” Ela amaldiçoou, Anta não tava nem escutando que [a dona Raposa] tava falando. Aí Anta, essa senhorita, né, pode ser, eu calculo assim, na minha opinião era senhorita. Não era anta velha, não. Aí chegou. Passaram meses, passaram meses, passou ano. O que é que ela faz? “Tu vai ser meu marido.”, a Anta [disse pro menino]: “Tu vai ser meu marido.” Será? Se acostumou com ela. Ele [o rapaz] ficou todo cheio de carrapato. Tu sabe que anta tem muito carrapato, né? Ele ficou cheio de carrapato. Se acostumou com ela também como se acostumou com dona Raposa. Aí, aí um dia tava trepando, né, com Anta. Ela ficou grávida desse rapaz. Já tava homem, aí: “Eu tô grávida, tô grávida. Não vai contar pra ninguém que nós tamo aqui, nós tamo no capoeiro do teu pai.” Esse que soltaram pra Raposa levar. Estavam próximos da casa do pai dele. “Nós estamo no capoeiro do teu pai. Nós vamo comer banana que tá por aí caído. Nós vamo ficar aqui. Se tu quiser sair, saudar teu pai ou falar com teu pai, a casa de teu pai tá por aí assim, mas não vai falar de mim, não, viu?” Aí ele foi. “Ai, meu filho.” “Papai vocês me puxaram da caixa, mas foi com amor que eu vim aqui falar com vocês.” “Ah, tá bom! Não se preocupe não.” Aí deram caxiri, caxiri também, né. Nós chamamos caxiri, caxiri bebida.

DF: Eu conheço.

CF: É bom, rapaz, essa bebida! Eh, caxiri é bom! Feita de macaxeira com açúcar, quando tá bem assim azedinha. Isso aí reanima sangue da gente. Fica forte. Mas não embriagar, né, mas não embriagar. Aí ele ficou bebo assim, aí: “[papai], eu já moro com uma Anta, aí, essa minha mulher aí. Essa que é minha mulher agora, tenho um filho com ela. Anta [está] aí nesse capoeiro.” Porque ela proibiu ele de falar dela, mas esse rapaz também foi mal assim, mas tava bêbado. “Umbora matar, umbora matar pra nós comer!” Aí esse rapaz disse: “Olha, não vão matar na barriga. Matem na cabeça, senão vão matar meu filho.” Aí foram lá. Levaram cachorro: “Au,

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au, au” [imita som de latido]. Jogaram dentro d’água, aí mataram. Aí quando tiraram, saiu uma criança, o filho desse rapaz chorão. Quando foram lavar dentro d’água, aí foi que começou a morrer peixe. Esse aí foi que, por aí que aconte-ceu assunto de timbó. Quando foram lavar dentro d’água porque tava sujo. Recém-nascido é sujo, né, cheio de sangue. Lavaram dentro d’água. Morreu muito peixe. Não pegavam peixe. Aí ficou grandezinho de sete, oito anos. Tinha um poço fundo. Aí “Meu filho, vamo lá pescar!” Aí chamavam ele de Timbó. “Umbora lá, meu filho Timbó, umbora.” Mergulhou. Esse peixe que tava falando, aimara, trairão, poço fundo. Ali tinha bicho também. Aí mandaram ele mergulhar por ali assim, pra matar aimara. Aí quando não morriam, estavam saindo por aqui, não podiam pegar. Mandou mergulhar mais pra dentro, pai dele mandou mergulhar. “Tam!”, bi-cho ferrou ele. Ele morreu. Ele morreu. Quando vieram pra ajudar ele, pra ajudar esse menino morto: vieram passarão, japó, ariramba, muitos, todo tipo de passarozinho. Aquele mergulhão, pato, toda qualidade de pássaro chamaram pra ajudar ele, pra tirar ele, pra matar esse bicho que ferrou ele. Todo mundo lutou, não puderam tirar. Tava no fundo. Agora aquele mergulhão, tem dois tipo de mergulhão, tu sabe né? Aquele de bico muito apontado e outro, aquele mergulhão de bico curto, igual pato, mas não é pato, não, mergulhão mesmo. Na minha língua se chama kuiawi, kuiawi, kuiawi.

DF: Mergulhão.

CF: Esse mergulhão que é mais valente do que o outro. Outro se chama pereikö.

DF: Pereikö? [...]

CF: O que é que tem pra perguntar aí, alguma coisa?

DF: Tem pergunta. Mas a história tava tão boa...

CF: Não, porque timbó não foi produzido da terra assim como a gente planta. Foi uma pessoa, nasceu sendo timbó, ele morreu sendo timbó.

DF: O senhor já ouviu falar no fura olho, já? Aquele ins-trumento.

CF: Não senhor.

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DF: Não ouviu não. É que vi lá no museu. E a minha dúvida é: pra que é que eles usavam aquilo, né? Tem duas pontas assim, que dizem que era usado pra furar o olho da pessoa.

CF: Hum, não senhor.

DF: É assim: tem a ponta bem como esse negócio assim, e aí fincava assim [em forma de garfo]. É que tem um cabo todo enfeitado. Aí dizem que isso aqui...

MF: Pra furar os olhos.

DF: Pra castigar pessoas ruins.

CF: Ah, não senhor, não conheço.

DF: Maldoso esse negócio, né! Deixa eu ver aqui. Então, vamos pra outra parte da entrevista, pode ser? Vocês per-ceberam alguma parte de preconceito, por exemplo, vocês percebem isso em relação ao indígena?

MF: Não. A gente tava relatando aquilo, sobre o Órgão Federal que levou os indígenas, como, assim, é uma dema-gogia, né. Apresentaram e depois não fizeram. Então, isso aconteceu, né. Mas nesse ponto...

DF: E quero fazer uma pergunta pros dois, que é o se-guinte: por exemplo, a Constituição mesmo ela vê o indígena como alguém que vive no Brasil e pode viver em outro local, não é. Mas o indivíduo, ele tem os direitos da pessoa, o direito do senhor. Inclusive os Direitos Humanos falam que o direito do indivíduo, eles são inalienáveis, ninguém pode mexer com isso, até certo ponto.

MF: É verdade.

DF: Então, assim, talvez minha pergunta seja um pouco difícil, essa palavra indivíduo eu não sei se é possível respon-der, porque é uma coisa muito da nossa cultura. Então, mas se vocês não quiserem também não tem problema. Mas o que vocês entendem sobre a questão do indivíduo, de ser humano, de ser gente. E o que é que vocês entendem por isso? Se pudesse falar alguma coisa a respeito.

MF: Eh, sobre a Constituição, essa lei que foi, que levan-

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24 Destaque do copidesque.

taram lá em oitenta e oito, isso tá punindo as comunida-des, porque vem a Constituição, art. 231 e 232, ampara os indígenas, libera os indígenas pra que os indígenas vivam tranquilos, nas suas terras, fazendo aquilo que eles preten-dem fazer. Ao mesmo tempo, a própria Constituição proíbe que o morador, o índio, não faça aquilo. Então, isso é um preconceito. Coloca e tira. Então, o índio fica assim perdido nesse ponto. Sempre eu estou lendo essa Constituição, a lei ampara mais a floresta do que ser humano.24 Começa do artigo, tem artigo que vai longe. Art. 231e 232, só vai até metade, a lei pra amparar floresta vai mais longe.

DF: Mas o senhor não acha, por exemplo, desculpe o corte, mas é pra complementar, que talvez a Constituição esteja vendo o índio como se fosse um pé de árvore?

MF: Eh.

DF: Eh, por isso que eu estou perguntando sobre indiví-duo. O indígena, o senhor e eu não temos diferenças como indivíduos?!

MF: Não!

DF: Nós não somos pé de árvore.

MF: Ninguém é pé de árvore.

DF: É por isso que eu estou falando pro senhor, quando perguntei sobre indivíduo é justamente por isso, entendeu.

MF: É por isso... Então, a lei não respeita, nem respeita e também não respeita. Um grande desrespeito. [...] Isso, é isso que preocupa. É por isso que naquela hora eu tava ex-plicando pro senhor: tem liderança que não entende a lei do país. É por isso que vem representante do Órgão Federal, da Funai, aplicando essa lei, derrubando direito do ser humano. A gente fica perdido. Se tivesse alguém pra esclarecer, eu acredito que todas as lideranças tinham como se defender.

DF: Então, é justamente isso. Aquela que o indígena não tem terra, tem terra e não tem terra.

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MF: Tem terra e não tem terra.

DF: Não é isso?

MF: Eh.

DF: Né. É como se, eu estou pensando essas coisas agora, como se o indígena, ele fizesse parte da natureza, como todo mundo, mas como se fosse uma árvore, como alguém que não pudesse interferir diretamente, pensar e agir sobre ela com consciência.

MF: Eh. Eu tava conversando com alguém sobre a destrui-ção do meio ambiente, sobre desrespeito das comunidades indígenas, porque, assim como nós estamos falando, cha-maram os indígenas preservadores da floresta, ao mesmo tempo eles chamam os indígenas destruidores da floresta. Pra onde que nós vamos caminhar. Pra esquerda ou pra direita. E depois eles dizem que os indígenas, eles matam algum animal só pra se alimentar, depois eles dizem que os indígenas matam além de usar e deixam estragar. Então, com isso, com essa mentalidade que vem da parte dos brancos, da Constituição, os indígenas ficaram cercados por todo lado. Ficaram ilhados, não sabendo pra onde vão andar, nem pra direita e nem pra esquerda.

DF: É por isso que eu te perguntei sobre...

MF: Então, essa lei tá pressionando a gente. Tiraram di-reito nosso, ninguém tem mais direito. O que é que eu posso fazer? Eles não tratam. Não olham o indígena como gente.

DF: A palavra talvez seja indivíduo, com direitos e deveres, obrigações, como qualquer outro.

MF: Como qualquer outro. Aqui fizemos uma reunião no ano retrasado. Então, representante do órgão federal, a Funai, ele falou pra nós, ele falou assim: “O índio, ele quer ter seu carro, não pode.” Ele falou assim. Por que é que ele não pode ter carro? O índio ele pode comprar bicicleta; pri-meiro ele tem que comprar bicicleta. Aí vai pedalar, vai andar por aí durante um ano, três anos, quatro anos, depois de cinco anos, dez anos ele pode comprar um carro. Se o índio

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25 Pai de Clemente e Manoel Flores.

comprar de um dia pro outro, então capaz de vir a punição indígena, porque [há] desconfiança, “Quem sabe tão plan-tando maconha, quem sabe tão contrabandeando algo que, que é contra lei.” Então, deixa o índio andando de bicicleta.

DF: Mesmo se ele tiver condições de comprar?

MF: Diz a Funai.

DF: Mas tá amparado em quê?

MF: Em que sentido é?

DF: Amparado em que Legislação? Se você tem as condi-ções financeiras, você compra.

MF: Tá proibido.

CF: Outra coisa, nesse meio, porque os brancos eles têm paciência...

DF: Não, mas é quando o senhor tiver, e assim a gente vai voltar aqui, se tiver alguma coisa, o senhor pode falar...

MF: Ah! Tá bom. Então, ano que vem, mês de março, a gente vai botar timbó aqui no rio Sorocaima. Aí convidar o senhor, pro senhor pegar peixe...

DF: Mas eu vou vir pra pescar com vocês. Não, pode dei-xar, eu acho que por hoje, tá bom, né, seu Clemente? E eu...

CF: Não, depois eu vou pensar quando...

DF: Justamente.

MF: Mário Roberto Flores25 levou a gente pra lá, pro Maurak, comunidade indígena Maurak. Quando eu tava com doze anos, ele trouxe pra nós. É no ano sessenta e sete, no final de sessenta e seis pra setenta, chegamos aqui. Abri uma clareira pra gente trabalhar. Veio eu, Manoel Bento Flores e Lídia, a minha irmã. E minha irmã, a minha irmã mais velha, Hilária, e o marido dela. Quatro pessoas pisaram aqui, já pra morar. Foi no mês de setembro de sessenta e sete. Aí viemos pra morar mesmo. Depois de passar um tempo na Venezuela, com doze anos, eu vim aqui. Aí, daí mesmo a gente começou abrir uma roça, botar roça, plantar mandioca, quando não

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tinha ninguém aqui no Sorocaima. Só tinha nosso parente indígena, aqui. Ele morava bem aqui na margem do rio Soro-caima, por nome Otávio, ele morava lá. Só era ele. Aqui era mata geral. Então, nós passamos a morar aqui. Desde aquele tempo, desde de sessenta e sete nós estamos morando aqui.

DF: E aí não mudaram mais?

MF: Não. É, em noventa e quatro, no ano [de] noventa e quatro, meu pai Mário Roberto Flores, e uns três pais de família foram morar lá pro Amajari, aonde nasceu, lá no meio dos parentes, no Amajari. Mas como, como de costume teve confusão, eh, sovinaram mata, sovinaram caça, sovinaram a pescaria, tudo. Então, criaram um tumulto. Esse pessoal veio de outra comunidade: “Nós somos daqui.”, mas ele sabia. Mário Roberto flores é descendente de lá, ele tem família, sobrinhos, netos e netas, só que não quiseram aceitar ele. Depois de cinco anos, ele foi daqui, em noventa e quatro. Foi ele, finada minha mãe, o outro pai de família, mais outros, uns cinco pais de família foram pra lá. Só passaram cinco anos. Aí o pessoal, moradores botaram eles pra correr. Aí eu sei que voltaram pra cá. Hoje, a gente vive aqui. Não assim muito bem, mas a gente tá vivendo né, levando a vida. E lá nós perdemos o nosso parente. Não sei o que é que aconteceu. Ninguém sabe, nem diz de que é que ele morreu, emagre-ceu. Era um homem gordo, se tornou dessa grossura assim, emagreceu, emagreceu, que ele morreu seco. E a mulher dele também morreu. Vieram de lá, já pegaram doença e vieram morrer aqui. Eles foram enterrados aqui. Não deu pra gente, não deu pra eles morar. Papai foi pra lá, Mário Roberto foi pra lá, mas eu fiquei, ficou outro também. Uns cinco pais de família foram pra lá, mas não deu certo. Aí voltaram. Tinha igreja, construímos, ajudamos [a] construir igreja Adventista, mas com esse problema todo aí, tivemos que abandonar. Aí voltaram pra cá. Hoje nós estamos aqui.

DF: Eu lembrei de uma coisa. O senhor já concluiu ou não?

MF: Não, a gente, eu estou, eu estou só recapitulando o que nós estamos vivendo aqui no Sorocaima. Assim a história de Sorocaima. Da Venezuela viemos uns sete filhos, oito,

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26 Projeto de construção de casas populares do Gover-no de Roraima.

nove, dez, onze, doze pessoas vieram do Maurak, da comu-nidade do Maurak. Hoje já têm mais de cento e cinquenta pessoas. Vieram doze pessoas, já tem cento e sessenta e quatro pessoas. Temos a igreja, temos agente de saúde, temos motorista, temos um mecânico (não entende bem, mas dá pra resolver os problemas). Então, acredito que nós estamos quase completos: tem agente de saúde, tem pastor, tem mecânico, tem motorista. Então, só esse grupo tá com-pleto. Mas pra nós, pra mim, como pros demais, tá faltando uma coisa: construção de uma escola pra que as crianças aprendam mais, pegar a Constituição Brasileira e pra eles, mais tarde, pra eles saber se defender, porque assim como nós estamos falando: a lei tá pressionando a gente. Ninguém foi atrás da lei, mas a lei tá passando até as comunidades.

DF: Vocês não conseguem viver sem ela também, porque o indígena tá subordinado a ela.

MF: Sim. Tem a lei que ajuda, tem a lei que protege, tem a lei que ampara, mas tem a lei que oprime, oprime. Então, nós estamos vivendo assim. Ninguém deve pro governo, ninguém deve pra ninguém. Ninguém deve pra prefeitura, ninguém deve pra ninguém, ninguém, ninguém. Nós estamos vivendo por nossa conta. As casas Bem Morar26, o prefeito tentou construir, mas o próprio Órgão Federal saiu contra esse Bem Morar. Ele veio fazer reunião aqui por causa des-se Bem Morar. Aí ele fala assim: “tuxaua, é vocês que tão pedindo casa ou eles tão obrigando vocês?” Aí respondi pra ele: “Olha, doutor, essa casa popular, essa casa aqui foi pe-dido das comunidades, fizemos documento, passamos pro prefeito e agora prefeito já tá fazendo as casas populares pra comunidade. Aí ele diz assim: “não é, não é bem assim, tuxaua, não é bem assim, não, não pode. Isso tira vocês do índio pro branco. Isso daqui é usado, isso daqui foi feito pro branco, não é pro índio. O índio, ele tem costume de morar debaixo de uma palha, de um barraquinho de palha, é muito bonito. Mas assim, isso daqui é dos brancos.”

DF: Por que o senhor não perguntou pra ele assim: “É, mas o homem veio da pedra, da caverna, não sei o quê. O

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28 Telha de amianto, que foi comprovada causar danos à saúde. Tem o uso proibido ultimamente.

27 Aliança de Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima, criada na região de Pacaraima, já que muitos indígenas não se sentiam representados por associa-ções como CIR.

senhor tá morando em uma caverna até hoje? Aí veio de carro, chegou aqui bonitinho pra conversar conosco, não é?”

MF: Aí eu disse pra ele, ele falou: “Olha, se fosse por mim...” ele falou assim, falou bonito, “Eu não vou embargar, mas quem embarga é o Ministério Público. Eu passo o rela-tório dizendo que a prefeitura tá obrigando a comunidade de Sorocaima I pra aceitar casa, eu passo. Então, não é eu, é Ministério Público.” Aí nós falamos pra ele: “Olha, não é Ministério Público, você vai querer embargar”, eu falei pra ele: “É você, porque Ministério Público não vem atrás da casa Bem Morar, quem vem atrás da casa Bem Morar é você, o senhor tá falando.” Aí outro representante, o presidente da ALIDCIR27 que eu tava mostrando o...

DF: Eu sei...

MF: Ele era presidente. Ele veio na hora da reunião. Aí começaram a conversar, nós conversamos. Ele disse assim: “Oh meu chefe, com todo respeito, o senhor tá falando que o índio, ele não pode morar numa casa de telha... por quê?” Aí ele respondeu assim: “Não, essa telha produz muita doença.” Ele diz assim, “Ela produz muita doença com a quentura, a telha,28 ela cai o pó aí ataca os indígenas...” E o presidente da Associação Anísio Pedrosa Lima respondeu assim: “meu chefe, com todo respeito lhe pergunto, eu fui lá pra maloca dos índios Yanomami, lá não tem casa popular, lá não tem nada. Já andei por lá, conversei com eles, mas, assim, se [o problema] é casa popular, eles estão morrendo de doença, por quê? Ferida, a doença. Aí ele respondeu assim: “Não, não me preocupo com isso.”, ele falou isso: “Não, não me preocupo. A vida dos indígenas sempre foi assim. Então, não cabe a mim, não cabe à Funai. Eles brigam, eles se matam, pegam ferida, pegam doença, morrem. A Funai encontrou eles por aí, se eles morrer. Hoje é o jeito, é o jeito dos indí-genas. Se afinal eles viviam assim, morrendo e a Funai vai se esforçar pra querer ajudar? Não. A Funai tá aí somente pra olhar se os garimpeiros vão chegar lá e matar eles, aí assim. Mas, esse negócio de doença, ah, isso aí a Funai não se pre-ocupa com isso, não se preocupa com isso.” O senhor viu,

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29 Não é permitido aos in-dígenas comercializar, por exemplo, cascalho extraído das terras demarcadas.

coisa boa que é o Órgão Federal, que tá passando isso pra gente. O presidente da associação conversando com ele, ele respondeu dessa palavra, quando terminei de falar com o presidente, olhou pra mim assim: “Tuxaua, o senhor vai permitir eu passar pro Ministério Público pra parar essa casa ou não?” Aí a comunidade gritou: “Não! Ministério Público não tem nada a ver com isso. A casa é das comunidades.” Aí outro respondeu: “Se o senhor persegue os índios, nós vamos lhe processar!” “Não rapaz! Negócio de processo deixa pra lá. Eu tô perguntando, apenas perguntando.” “Tá bom, tá bom, deixa que o prefeito faça a casa pra vocês.” A Funai se afastou. Então, assim a gente tava, eu fiz uma pergunta. Como é, verdade os índios daqui, os índios tendo estatuto dos índios [lá] diz: a lei ampara se o índio precisar de se integrar na comunhão nacional é, não é proibido. A lei ampara, mas [pra] Funai é proibido. Isso ele falou pra nós, sempre falo com eles. Essa pressão é grande, essa pressão é grande. É bom, eu quero complementar a minha palavra dizendo assim: então, é bom que o senhor traga professor pra dar um curso sobre direitos e obrigações. Os índios, as lideranças não sabem o direito deles, até direito deles não sabem. Ele tem direito, mas ele não sabe. Se tem lei pra dar direito a eles, ele vai pra cadeia, ele apanha, tendo direito deles, tendo razão. [...] Então, essa pressão é grande pra cima da gente. Tudo isso eu esclareci pro senhor, que pren-deram a nossa caçamba29 que nós íamos levando, leva, isso, isso, isso tudo. Então, é melhor nós chegarmos mais perto, pra ver de perto, também pra ver a lei, pra que alerte as lideranças indígenas como eles podem buscar a sua defesa. Senão vão cortar nossos braços, mais tarde vão tirar nossa língua. Pronto. Aí não fala mais. Ninguém fala mais. Então, a minha preocupação é essa. Grande preocupação. Eletronorte usou nossa área, eu não vejo resultado até agora, agora nós vamos sair pra avaliar linha de transmissão, Linha de Guri. O que é que ele tá trazendo pra comunidade? Que tipo de benefício tá trazendo pra [a] área São Marcos? Nós vamos avaliar nesse ano ou em janeiro. É bom que vocês estejam presentes pra ouvir o que é que Eletronorte vai dizer, porque

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as comunidades dali não são afetadas por esse Linhão de Guri, eu e ele, os demais que estamos aqui não receberam nenhum centavo. Problema é grave. Então, a minha palavra são essas, como fundamos Sorocaima, como andamos pra lá. Agora tem outras histórias, quando o senhor voltar, vamos falar sobre a igreja. Meu pai, ele é de cem anos, de cento e cinco anos, ele foi um grande pregador aqui na área. Desde 1958 ele trabalhou muito. Se o senhor se interessar, gravar, a gente vai falar, né, na próxima. Ele andou muito, andou por aqui. Antigamente a gente chamava Puxa-faca porque eles brigavam muito, puxar faca. Andou no Caraparu, andou aqui no Contão, lá pro Amajari. Em 1958 ele foi pra lá, cons-truiu a igreja. Depois veio aqui a Igreja Assembleia de Deus, fecharam a porta da igreja Adventista. Escreveram na porta da Igreja Adventista: essa é a Igreja Assembleia de Deus. Por último, veio a Igreja Católica, tirou a placa da Igreja Assem-bleia de Deus, passou pra Igreja Católica. Tudo isso meu pai Mário Roberto Flores enfrentou. Então, na próxima, quando tiver oportunidade o senhor vem aqui com a gente, estamos aqui de braços abertos pra gente discutir.Tá certo. Tem outro problema que nós discutimos com o pessoal da FUNASA, eles disseram assim, porque aqui a gente não recebe vacina. Aí olharam pra mim assim: “Mas tu, tuxaua, porque tu não aceita vacina?” Aí eu entrei assim: “Olha rapaz, vocês bran-cos, vocês usam muita vacina, aí o filho de vocês fica cego, aí vacina esculhamba o sangue, sangue é puro. Toma vacina, sobe pra cabeça o sangue, aí é por isso que o filho de vocês com idade de dois anos usa óculos. Vê o nosso filho, ninguém usa óculos. A gente usa óculos quando completa cinquenta anos pra cima. Agora, filho de vocês não, o meninozinho de oito anos com óculos na cara, dez anos, vinte anos. Então, é por isso, a gente pesquisou, então ninguém aceita vacina.”

DF: Me diga uma coisa, inclusive a pergunta tá ali, mas eu não fiz ainda. O senhor comente isso. Eu tava vendo uma entrevista nesses dias, até fiquei meio chocado. [...] os rapazes estavam narrando a história do eclipse. Quando a lua encontra com o sol, né, aí é como se a comunidade inteira ficasse suja, como se a comunidade inteira ficasse

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menstruada. Aí a comunidade inteira tem que passar pelo processo de purificação. Eles tomam inclusive uma bebida, uma espécie de sopa, um caldo quente. A pessoa toma, ela é tóxica, e na hora que ele toma joga tudo pra fora pra limpar. Ele toma e vomita na mesma hora pra poder fazer a limpeza do corpo [...].Tem todo um ritual, quando vai virar rapaz. O que é que acontece? As comunidades tinham isso, né, eles pegam os rapazes. Eles pegam um instrumento feito com dente da piranha, aí ele vem no corpo dele assim [sinal de ficar raspando]...

MF: Aí fica raspando, né.

DF: Raspa o corpo todo, aí vem depois com uma água ou com uma... não é nem sal, é um cipó que vai ajudar no processo e passa no corpo do menino todinho, e é uma for-ma deles virarem homem. E assim tem pra menina também. Por exemplo, hoje tem isso aqui? Teve algum dia? Não existe mais? Já existiu esse tipo de iniciação?

CF: Isso aí, isso aí é verdade. Isso que tu tá perguntan-do, isso aí é verdade. Na época passada, os antepassados faziam isso. Sabe pra quê? Pra se curar, pra ser caçador, pra ser pescador. Eles tomavam água misturada com puçanga que chamam vocês puçanga, mas nós chamamos, na minha língua, muran.

DF: Muran.

CF: Muran. Eles colocavam e tem muran oloroso que nem canela. O senhor conhece canela?

DF: Claro, conheço.

CF: O senhor conhece canela. Eles colocam pra ser ca-çador de veado, pra ser caçador de mutum, nambu, jacu, veado campeiro, veado capoeiro. Ele mistura nessa água, então rapaz novo tomava até encher barriga.

DF: É isso, é isso mesmo.

CF: É verdade, é pra limpar a sujeira que tem aqui na barriga da gente, no estômago da gente. Aí vomitava, pedia pra ser caçador de veado, pra ser caçador de anta, pra ser

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30 Mais uma vez, optou-se em não mudar este tipo de expressão: “ninguém somos”.

caçador de mutum, pra ser... Eles falam com essa puçanga que eles colocavam dentro d’água pra tomar, pra purificar a barriga, eles falavam. Duas, três vezes, ou seja, quando a lua tá bem por aqui assim [aponta pro céu], eles curavam, né. Esse que eu estou entendendo o que tu queria saber. É isso aí. Pra esse, pra purificação do estômago, pra ser caçador.

DF: Forte, resistente, não é?

CF: Sim senhor. Aí, daqui até quando a lua ficar bem por aqui assim, aí pra... Se for de manhã também. Se for de manhã também, porque já tava lá no ralo, que nós chamamos, na minha língua chamo sumari, feito de madeira, com a ponti-nha, [com] ralo, que chama.

DF: Madeira com?

CF: Madeira com um pedaço de ferro com assim, pra ralar mandioca. Isso aí. Eles fazem pequeno e fazem gran-de, eles fazem mais grande assim. Então, ralavam, jogavam dentro d’água, bebiam pra purificar, pra ser, como assim disse, caçador. Se tu vai pro mato, em seguida tu consegue caça. Se tu não faz assim, se tu não purifica barriga com essa puçanga, não consegue nenhum, nenhuma caça. Estando com essa [peste(?)] tu não consegue porque não tá curado. Outra coisa, esse dente de piranha não é. Pra nós indígena, ele tem filho novo, desde pequeno assim, aí tira pedaço de gilete tiam, tiam, tiam [imita som de corte]. Aí coloca, ele vai passar esse muran pra ser caçador de peixe, pra ser pescador.

LS: Ainda faz isso?

CF: Ainda não. Não! Agora não existe mais não. Assim como nós estamos falando, assim porque nós estamos falan-do a palavra de Deus. Nós estamos colocando a palavra de Deus no meio, porque a palavra de Deus é certa. A palavra de Deus diz: “Não raspe! Não cortem vossa carne!”, porque é proibido derramar sangue. Porque Jesus derramou muito sangue e não podemos imitar, porque ninguém somos30 Jesus, nós somos humanos. Ah sim, sim senhor, agora outra coisa: se tu quer ser avistador de coisa longe, tu tem que colocar pimenta na vista. E tem outra coisa, tem puçanga

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que chama, não sei como nome dessa puçanga, nós cha-mamos paricö, nós chamamos, é um raizinho, ele é ardoso como pimenta.

MF: Queima muito.

CF: Então, tu rala nesse ralo, pega o sucuzinho, coloca nos olhos, coloca nos olhos. Aí quando tu vai sair pra caçar no campo, vê de longe, lá vai veado. Tu tá olhando porque tua vista tá bem limpa com essa puçanga. Assim usavam nossos pais. Agora se tu tá doente, com dor de cabeça, tem que tirar folha de tiririca, aquele que corta tem folha aqui, é tiririca. Tu sabe o que é tiririca?

DF: Tiririca?

CF: Sim, tem olho dele assim, duro afiada, amoladinha, amarra três folhas duras, que acaba de sair assim.

DF: Aquele meio mais duro.

CF: Sim, como se diz, é... olho dele que sai, primeiro olho dele que sai. Então, amarra três assim, são pequenininhos, né, são pequenos, são vários tipos de tiririca.

DF: Eu sei, tem as pequenininhas...

CF: Sim, então amarra com a... Se tu tá com dor de cabeça, então o velho abençoa essa tiririca amarrado pra ser curado dessa dor que tu tá sentindo na cabeça. Então, coloca no nariz “tcham”, aí sai muito sangue “tcham”, aí tu derrama esse sangue. Então, pimenta também abençoada, ele coloca no nariz, tu não aguenta não, aí amanhã tu não sente a dor. Sabe por quê? Porque muito sangue na cabeça. Esse aí que tá dando dor na tua cabeça. Isso é remédio. Não é remédio pra ser caçador não, esse é remédio pra dor de cabeça.

DF: Pra dor de cabeça.

CF: Sim senhor. Outra coisa que tu tá perguntando, isso nós vamos repetir outro. Essa água misturada com puçanga, ou seja, com a folha cozida, isso aí pra dor de barriga, não é pra ser caçador não. Isso aí pra cura, isso aí pra cura. Tá sentindo dor às vezes e tá evacuando [a] cada momento. Então, pra evitar essa, tu tem que tomar água até encher

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32 Optou-se em deixar essa concordância para observar como a língua portuguesa se distingue da língua deles. Esses entrevistados, no ge-ral, tiveram como primeira língua o taurepang, depois é que vieram o português e o espanhol. Eles falam, pelo menos, essas três línguas.

31 Maurak localiza-se na Venezuela, região do Par-que Canaima. Interessante observar como se configura a territorialidade nessa região entre os indígenas.

barriga, sem querer tu tem que tomar pra ser remédio. Aí tu vai vomitar, jogar toda essa sujeira que tá na tua barriga, aí tá, não sente mais dor, não solta muito vento, isso aí, esse remédio. Pimenta colocado no nariz depois de derramar, tirar sangue, isso aí remédio. Agora puçanga, muran e orocan, isso é remédio pra ser curado, pra ser caçador. Sim senhor, assim é. Agora não existe mais. Não é preciso cortar.

DF: Os meninos então não tem essa iniciação?

CF: Não. Agora não, agora não, agora acabou.

MF: Antes da gente vir daqui do Maurak,31 meu pai falou pra mim assim: “Meu filho”, o mais velho, talvez irmão, o avô dele falou pra ele: “Olha, não usa muran pra ser caçador, não usa, mas usa água.”, ele falou pra ele, pro meu pai, aí chamou nós: “Olha, meu filho, vocês têm que se curar, não vão usar essa puçanga. O meu tio falou pra mim falar pra vocês, pra vocês não ver essa puçanga, mas vamos conseguir outro meio aí pra você se curar, pra vocês ser caçador, pra quando você casar a mulher de você não passar fome, vocês não se curaram, vocês não têm dinheiro, então pega flecha, assim, pega arma, vão pra mata pegar uma caça, é assim.” Ele dizia assim: “Vocês vão na beira do igarapé, vê aquela, aquela moita, né, quando enchente, no tempo da enchente não pega aqueles galhos muito balseiro, né, folha.”

CF: Folha pequeno, comprido, grosso, grosso.32

MF: “Aí encosta na beira do igarapé.” Aí papai, ele falou pro papai, papai passou pra gente: “Olha, meu filho, vão curar. Cinco horas da manhã vocês têm que pegar copo, vocês têm que ir pro igarapé, tomar água, aonde tem aque-le galho, um monte de galho, é considerado como caça, aí tem veado, aí tem catitu, aí tem todo bicho, todo pássaro. Bebe água até vomitar. Encheu a barriga, tem que vomitar em cima dessa folha, durante noventa dias, sessenta dias. Depois disso vocês vão sair, matar veado.” Aí eu, meu irmão que mora ali naquela casa, aí decidimos: “Rapaz, umbora fazer?” Éramos curumim, né, “Umbora fazer!” Nós fomos na beira do igarapé. Aí tomamos água. Rapaz, pra tomar água de manhã cedo: “Quem que vai tomar?” [risos] Nós fizemos

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33 A palavra é panema: im-prestável, sem sorte na caça e na pesca.

isso só uma semana, aí eu não aguentei. Depois de vomitar...

CF: A garganta da gente fica toda irritada.

MF: É, meter banho cedo lá, é água fria, aí tá gelada mesmo pra pessoa banhar, hunn! Aí aguentamos. Foi só uma semana. Aí paramos. E depois eu conversei com outro velho, não da igreja, aí ele falou pra mim: “Olha, rapaz, aqui tem puçanga.” Ele me amostrou: “Pra quê?” “Pra veado mateiro, veado campeiro.” “Como é que a gente faz?” “A gente bota no olho da gente, passa num ralinho, aí passa no olho, só um mês.” “E bom pra ser caçador?” “Eh, eu já experimentei, olha, aqui tem couro de veado, tem chifre de veado campeiro. Eu mato bem aqui mesmo.” “Rapaz, o senhor não tá inventan-do não?” Aí eu disse: “Eu vou experimentar.” Eu fui mais esperto, né. Aí eu fui usar esse remédio. Só que queima os olhos da gente igual pimenta, só por uns cinco minutos, aí fica ardendo. Usei durante sessenta dias, contados, sessenta dias. Doutor, parece mentira, tu não sente mais o sono, tu fica assim, animado, querendo caçar, tu fica, tu fica esperto mesmo. Eu pegava espingarda, eu saía pra experimentar. “Rapaz, agora eu vou experimentar.” Eu saía, encontrava caça. Isso existiu, mas parei, tava bom pra conseguir alguma coisa, pra quem tem família. Quem não usa esse muran, ele não consegue não. Ele não consegue. Já morei aqui com um velho, como é que chama um homem que não caça, que não consegue nada? É como é que chama? É...33

LS: Azarado.

MF: Eh. Mas, doutor, eu andei, já pesquei aqui nesse igarapé. Ele passou, ele passou dois anos, dois anos aqui no Sorocaima, quando tinha muita caça. Ele passou, ele morou aqui dois anos ou três anos. Ele tinha espingarda. Sabe que nunca atirou com essa espingarda. Quando ele vai pra pescaria, fui eu com ele, esta hora fomos pescar lá pra baixo. Rapaz, aí eu vi o velho que não tem sorte. A gente tava pescando, ele tava pescando aqui, eu tava pescando assim. Aí nós jogando anzol seis horas, quando tinha peixe aqui no Sorocaima: traira, aracu. Aí estavam beliscando aí.

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“Rapaz, não pegou.” Aí eu fui pegando. Peguei um, dois, três, eu peguei até sete. O senhor sabe quanto ele pegou? Só pegou cinco caranguejos.

DF: Caranguejo, é!

MF: Então, tem isso. Puçanga que o Clemente tá falando é muran. É usado pra caça. Quando eu tava usando, eu matava dois, três. Última, última caça que eu matei, só cutia eu matei duas, aí parei. Então, tem pra beber água e vomitar sobre a folha pra fazer a tradição.

DF: Tornar o menino forte, não é isso? Resistente.

MF: Pimenta pro menino se tornar resistente. Eh pi-menta.

DF: E pra menina não tem alguma coisa?

MF: Também, se for preciso tem que usar pra menina, porque tem menina indígena que não levanta. A mãe chama: “Umbora, minha filha, vamos trabalhar! Vamos espremer mato! Vamo...?” “Ah, deixa eu dormir.” Aí uma menina dessa precisa de pimenta nos olhos dela, aí fica esperta.

DF: Também,né... [risos]. Vou contar essa pra minha filha.

CF: Senhor, ainda existe, ainda existe, mas ninguém estamos usando.

MF: Ninguém usa mais.

CF: Sim, ainda existe.

DF: Claro que existe.

CF: Essa cura pras meninas que o senhor tá perguntando, eu estou entendendo que queria saber, né, porque as meni-nas, naquela época, faziam caxiri, faziam pajuaru. O senhor sabe o que é pajuaru?

DF: Sei não.

CF: Pajuaru feito de beiju. Doce, sem açúcar. As mulheres faziam beiju assim fresca. Molha, mas tem que saber embru-lhar nas folhas de banana, que mais forte que tem é najá.

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Najá, aquela redondinha.

DF: Banana, amarela?

CF: Não, não é isso aí não.

MF: Pajuaru não se vende assim.

CF: Um beiju grande assim, eles molham dentro d’água. Eles colocam no jamaxim. Então, corta uma folha de banana dessa najá, que eu estou te dizendo, que é mais forte. Essa banana najá é doce, doce demais. Tem que ser outra folha e coloca onde tu fizeste beiju com fogo embaixo de forno, tu tira forno e tu sabe que a terra tá quente de fogo, de brasa. Então, a mulher limpa e coloca essa folha, e coloca esse beiju molhado e coloca o condimento, é... folha de, folha de maniva, bem em pó, triturada, bem em pó. E depois um pouco de milho bem moído, também: tcham, tcham, tcham; depois um pouquinho de goma bem em pó, também: Tcham, tcham, tcham; e coloca folha em cima sem açúcar. Embrulhou e fechou e pisei com qualquer pedaço de pau aí. Passa um ou quatro dias se for feito bem feito. Quando abre tá tudo floreado. Aí prova, gosto igual como a gente come goiaba-da, assim como a gente come... Aí quando coloca no balde, balde de, como chama na Venezuela, camaça, balde de fruta da [terra(?)]. A gente coloca, joga água, depois de dois dias uma bebida saudosa, rapaz! Pra isso, se tua filha não sabe fazer caxiri doce, tem remédio pra isso. Tem puçanguinha que as velhas colocam no beiço da mulher, aqui embaixo do beiço, “Tcham.” “Tcham.” “Tcham.” [corta] com gilete assim. E queima essa puçanga bem queimadinho em pó preta. Elas colocam assim, fica tudo pregado assim, enterrado no [sulco], aonde gilete cortou. Naquela época, faziam caxiri mastigado na boca. Tu pode tomar?

DF: Se eu posso?

CF: Sim, mastigado na boca?

DF: Depende, tomo.

CF: Sim porque, ninguém tem que ter mal gosto de...

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34 A partir desse ponto tem início uma entrevista ex-clusiva com Manoel Flores.

DF: É claro.

CF: Então, pra isso que as antigas velhas curavam suas filhas assim, cortavam aqui assim: “Tcham.” “Tcham.”

DF: Os lábios embaixo né.

CF: Embaixo. Aí coloca esse pó, é puçanga. Aí quando ela vai mastigar, pra misturar caxiri que tá fervendo. Ela coloca, mistura e coloca no balde. Amanhã de manhã cedo doce sem açúcar. Isso aí é outro remédio, companheiro.

DF: Eh... Que beleza!

MF: Pajuaru é bebida mais venenosa. Se ela tiver meio azeda, se tu botar bem por aqui, tomar um, aí tu não conse-gue sair por causa de maniva.

CF: Sim porque é forte, muito forte. Igual cachaça.

MF: Igual cachaça. O senhor não consegue tomar. Agora caxiri não. Caxiri enche a barriga, aí tu vai andando. Mas pajuaru, tomou numa vasilhazinha, tomando duas vasilhas desse, rapaz tu fica...

CF: Tombando. Sim muitas coisas, assim vem na memória, muitos pensamentos. Então, quando tu voltar de novo, por aqui, a gente conversa mais. Traga dólares pra nos alegrar...

DF: Ih, tá falando com a pessoa errada.

CF: Traga dólar pra nós conversar mais...[risos]

MF: Primeiro eu assisti a chegada da Funai aqui na área, eu assisti a chegada da Funai. Tinha a sede deles em Manaus, mas aqui na área, no Estado de Roraima, nunca tinha. Mas quando, assim, não é ofendendo vocês, mas o branco tava querendo massacrar a gente. A gente passou pra polícia territorial, naquela época, ligou pra Manaus, ele sabia onde sede da Funai, aí vieram aqui. Primeira pessoa que recebeu a presença da Funai fui eu. Em 70... 74, é, 74... 77, é, 77. Então, eu vi gravador, é, rádio mesmo, aí botava quando a pessoa tá falando. 34

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Entrevistado: Manoel Bento Flores (MF)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)

Local: Comunidade Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 1/10/2008

Transcritora: Ana Maria Alves de Souza

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira, Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 2’11’’49’’’

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[...]

DF: Então, vamos lá. A gente queria primeiro, seu Manoel, que o senhor falasse o nome e a idade do senhor. A etnia eu já sei, que é taurepang, não?

MF: Taurepang.

DF: Qual o nome do senhor, então?

MF: Meu nome é Manoel Bento Flores. Nasci em 1955. Agora, até agora eu tenho 53 anos.

DF: 53. Aqui na comunidade o senhor tem alguma função específica? Porque as comunidades possuem alguma função, por exemplo, o primeiro tuxaua, segundo tuxaua. O senhor tem alguma função específica?

MF: Sim, eu sou representante da comunidade. Até o presente momento, eu sou o representante. Na declaração, aí constam umas dezessete comunidades. Até dezembro sou representante. Depois vão me dar baixa. Outro vai assumir, então é assim.

DF: O senhor é o representante das dezessete?

MF: Eh.

DF: Ah! Sim.

MF: Não. De outros aldeamentos indígenas.

DF: Uma coisa que eu achei muito interessante aqui na comunidade do senhor é a questão que vocês têm um po-sicionamento em relação à escola muito pessoal, não tem?

MF: Tem.

DF: Que vem do patriarca. O senhor poderia falar um pouquinho como é que se dá o ensino aqui, como é que a mãe ensina, se é a mãe quem ensina pros filhos ou é o pai? E qual o motivo do patriarca não permitir a escola? Espero que a gente não veja isso como algo negativo. É pra eu en-tender um pouquinho. É uma coisa que eu fiquei muito feliz. Quando eu chego aqui e observo que, aonde eu chego, é claro que pode ter um lado negativo, mas onde chego, vocês conversam na língua de vocês, preservando. Não é toda co-

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munidade por aqui que conseguiu preservar isso. Eu cheguei em vários locais, então isso aí também é algo positivo, não tem só negativo...

MF: Isso é longo assunto sobre a nossa convivência aqui na área. Eh, eu queria esclarecer assim, não sei como, se o nosso patriarca Mário Roberto Flores, criou aquela, aquela, uma ideia deu na cabeça dele, né? O pensamento vem da cabeça. Então, ele teve uma ideia de proibir os filhos se integrarem na sociedade branca. Ele falou assim: “Meu filhos, vocês têm que viver assim do jeito que nós estamos morando, de agricultura. Se um dia vocês vão chegar a ser pai, vocês vão ter filho, então vocês têm que passar isso pra filho de vocês, eles têm que trabalhar na agricultura.” Então, ele falava assim, “Deixa que os brancos vivam assim como eles estão, mas nós temos que manter a nossa cultura até o fim da nossa vida. Enquanto eu estou vivo, jamais eu vou abrir a mão pra construir uma escola.” Essa ordem que ele deixava pra nós, um conselho. Eu, o filho do patriarca Mário Roberto Flores, meu nome Manoel Bento Flores, então eu fui mais atentado, eu falava pra meu pai: “Papai, por que assim? Seu pensamento tá muito errado. Nós vamos viver até dez anos, quinze anos pra lá, vai chegar a sociedade branca, então não tem como, não vai ter como a gente se entender com ele, e nós falamos taurepang e eles falam português. E aí como é que vai ficar?” Aí ele falava pra mim assim: “Meu filho, eu sei falar um pouco de português, então eu mesmo, eu vou levar alguns produtos, eu mesmo compro, eu mesmo trago pra cá. Agora vão trabalhando. Não pensa em estudar.” Então, com essa proposta, os filhos mais velhos tomaram essa ideia do pai. Então, eles, meus irmãos não aceitam a escola. Então, a família que vocês estão vendo aqui, as crianças não sabem falar português, ficam surdo ou mudo quando a senhora fala: “Eu quero tomar água.” Então, algumas meninas ficam perdidas, ficam pegando aquilo que a senhora não tá pe-dindo, água, mas é assim. Assim nós estamos vivendo aqui. Mas meu pensamento é diferente. A proposta do patriarca Mário Roberto Flores é essa, não se integrar com a sociedade branca. Então, pra gente estudar foi difícil, foi muito difícil, pra mim foi difícil, porque ele comprou o livro como esse,

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ele me deu: “Meu filho, estuda.” Agora quem é que vai ensi-nar? Eu andava com o livro na mão só pra dizer que eu tava estudando, em casa mesmo. Mas eu me interessei muito pra saber o que o mundo oferece, o que o mundo traz, então eu me interessei muito. Eu andava com livro e lápis, e depois, eu estou esclarecendo isso, o que é que aconteceu comigo. Isso aconteceu comigo. Eu perguntava de alguém, porque meu pai ele era missionário, ele pregava a palavra de Deus, não parava em casa. Parava assim, mas por um pouco de tempo. Ia pra aldeamento indígena, chegava, passava dois, três meses e depois saía. A profissão dele foi essa. Então, eu sinto isso, que nós crescemos assim. Eu pegava o livro, olhava: “Agora quem é que vai me ensinar?” O irmão mais velho saiu pra outra vila longe, o irmão mais velho; e outro filho não sabia ler; outro filho não sabia ler; outra irmã, que é a nossa irmã, não sabia ler; outra irmã não sabia ler: “Agora quem é que vai ensinar?” Mas eu acho que com a ajuda de Deus eu consegui descobrir o que tava escrito. Isso caiu na minha cabeça, eu fui começar a ler. Aí eu perguntava dele, do meu pai: “Papai é assim?” “É assim.” Mas ele não ensina-va. Só mostrava: “Isso aqui fala.” Então, pra não chegar ler assim, a escrever um pouco, assinar o nome foi muito difícil, é difícil, é difícil!

DF: Vocês tiveram que aprender sozinhos...

MF: Sozinhos. Eu aprendi sozinho, porque eu passei por aí. Aprendi sozinho. E depois meu irmão mais velho entrou na escola. lá ele aprendeu um pouquinho. Quando ele tá começando a aprender, o professor também se afastou. Aí pronto. Aí nós ficamos. Aí então, até agora ninguém sabe se comunicar com o doutor, com os homens da lei, ninguém tem como a gente se comunicar.

DF: Comunicar comunica, o problema é que tem dificul-dade em ter acesso...

MF: Eh. Se torna problemático pra nós. Agora, pra ou-tro aldeamento, é mais fácil, porque tem professor, tem professora.

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DF: E eles mesmos conseguem se defender...

MF: É, eles sabem. Mas nós aqui, nós estamos dentro do aprisco, ninguém pode nem abrir a mão. Então, a gente anda, a gente se arrasta pra alcançar a estudar, e ler, e escrever, porque hoje a gente vê a lei do país chegando até as comuni-dades. A lei do país chega na comunidade através do IBAMA, através da Funai que representa as comunidades indígenas. A lei do país chega através da Polícia Federal, a lei do país vem através da Polícia Militar, todas as autoridades. Eles trazem a lei que ninguém conhece. Então, pra gente responder se torna difícil. É por isso que me interesso muito a estudar. Por isso. Se nós vivemos assim que nem nós vivemos aqui, sem estrada, sem transporte, sem avião, assim fora da sociedade branca, tudo bem, pra mim não me interessa estudar. Eu mato caça, eu pesco, eu estou comendo, lavrando a terra, trabalhando, mas assim como nós estamos aqui, no meio de uma tempestade: prende indígena, intima indígena, prende o índio pra ali. Então, a gente se encontra muito pobre. Temos nosso Deus, o poderoso, o senhor sabe muito bem. Temos Deus, um vivo, que nunca dormita, mas o próprio Deus entrega alguém pra ajudar os filhos dEle. Aí pra nós se tornou muito difícil.

DF: Imagino. A primeira língua que a comunidade aprende é o taurepang, né?

MF: Eh.

DF: A primeira língua. A língua materna é o taurepang.

MF: Língua materna ninguém aprendeu. Nós nascemos...

DF: Sei.

MF: Primeira língua.

DF: Eh.

MF: A linguagem materna é essa, taurepang.

DF: Então, o português já é a segunda língua.

MF: Segunda língua. Pra nós é língua estranha, idioma estranho.

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DF: E é estrangeiro mesmo, é isso mesmo a palavra. Es-tranha quer dizer um pouco isso.

MF: Então, a nossa convivência é assim. Mas através da igreja ainda nós estamos estudando, nós estamos estudan-do, porque eu comparo assim, se eu compro um violão ou um instrumento, sanfona, tem que ter a pessoa pra ensinar. Sem professor ninguém toca igual os que estão cantando lá, tocando, então tem que ter a pessoa pra ensinar.

DF: Vocês falam em taurepang. E vocês escrevem em taurepang?

MF: Muito pouco.

DF: Muito pouco.

MF: Muito pouco. Então, a nossa convivência é assim.

DF: Então, as pessoas aprendem no dia a dia.

MF: Eh. Dia a dia.

DF: E o senhor é agricultor ainda?

MF: Até o presente momento a gente mexe com agri-cultura.

[...]

DF: Bem, o nome do seu pai o senhor já disse. E da sua mãe?

MF: Mário Roberto Flores. Não sei quem foi que deu esse nome FLORES. Mas quem sabe os antepassados deram esse nome pra ele, né? Nome da minha mãe é Paula, Paula Bento.

DF: Ela era taurepang também?

MF: Não. Ela é da tribo macuxi.

DF: Ah! Ela é macuxi.

MF: Passamos a morar aqui em Venezuela há uns 15 anos. Minha mãe, com 15 anos, nunca aprendeu a falar taurepang, nenhuma palavra. Macuxi é macuxi mesmo. Falava, porque pra lá, Venezuela, só fala mais taurepang, aí ela respondia em macuxi, aí os taurepangues não entendiam. Então, eu

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sou filho do taurepang e a mãe macuxi.

LS: Mas ela conseguia entender o que os taurepangues falavam?

MF: Ela entendia um pouco. Foi difícil, mas no decorrer do tempo ela começou a chegar a descobrir o que é que eles estavam querendo, aí ela foi entendendo. E ela entendia, só que não respondia. Respondia macuxi.

DF: A religião do senhor é qual? O senhor falou que é Adventista.

MF: Eu sou da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Meu pai quando ele veio, ele era da Igreja Católica, mas depois ele reconheceu que isso tava muito errado, não tava conforme tá escrito na Bíblia. Os missionários pregavam diferente. Então, ele tinha que abandonar a Igreja Católica e passar pra Igreja Adventista.

DF: E o senhor tem mais alguma informação de quando a Igreja Adventista veio pra cá? Ou mesmo assim, quando o seu pai se tornou católico, ou sempre foi...

MF: Meu pai, ele recebeu a Igreja Adventista, religião Adventista, com idade de dez anos, dez anos. Depois de dez anos, quando eles estavam... Sempre eles faziam o culto no dia de sábado. Tinha um americano ensinando eles; ameri-cano que veio dos Estados Unidos, veio até aqui, quando eles moravam, eram pequenos, aí veio um americano, casal de americano. Aí tiveram a primeira religião que meu pai recebeu, a religião Adventista. E foi passando uns tempos. E depois a Igreja Católica soube que a religião tava penetrando no meio dos indígenas, aí a Igreja Católica de Caracas ou de Colombia, ou lá mesmo dos Estados Unidos, vieram, man-daram prender o pastor americano, mandaram prender. A prima minha que mora em Santa Elena, tem histórico muito bom de quando a Igreja Católica se prontificou pra prender o pastor americano da Igreja Adventista. Ela fez tudo, mas ela ficou de passar pra mim, que eu preciso, como assim que vocês estão procurando, e eu também procuro como nasceu a Igreja Adventista.

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DF: É claro, porque é história, não é?

MF: É história. Mas um dia eu vou procurar. Foi assim, meu pai recebeu a religião Adventista, com dois anos ou cinco anos veio a Igreja Católica. Então, procuraram um meio de prender, procuraram um meio de expulsar. Eles mesmos falavam, dizendo que a Igreja Adventista não era verdade, era inventado, agora onde eles estão trabalhando a Igreja Católica é a mais verdadeira. Com isso formaram um grupo grande, mandaram prender o pastor americano e expulsaram. Aí a Igreja Católica tomou conta daquele grupo que tava reunido.

DF: Tá certo. O senhor é casado?

MF: Eu sou casado.

DF: Tem filhos?

MF: Tenho oito filhos. Mas um já morreu. Só restou sete.

[...]

DF: Tem uma pergunta que eu gosto de fazer, porque isso diz um pouco das pessoas. Qual a coisa mais triste que o senhor já passou na vida do senhor e qual a mais feliz? Eu sempre faço essa pergunta, porque faz a gente pensar um pouquinho sobre o passado e também as coisas boas e ruins.

MF: Eh. Doutor, a minha vida, a minha vida até agora foi triste, pra mim foi uma tristeza. Hoje a gente tá vendo que, com esse movimento, com essa chegada da sociedade bran-ca, pra mim se tornou mais, pra mim se tornou uma alegria, porque nesse ponto: uma vez um cunhado meu, por nome de Laurindo (ele mora bem aqui), ele se adoeceu quando não tinha estrada, não tinha nada, se adoeceu aqui quando a gente tava morando aqui. Como é que nós vamos fazer pra levar pra Boa Vista pra ele se tratar? Nós tínhamos que tirar, desatar rede, amarrar na vara, botar ele na rede. No inverno nadamos esse rio Sorocaima, num atoleiro, fomos levando no meio da chuva até na Boca da Mata, porque pra levar um daqui do Sorocaima até a Boca da Mata é quilômetro. A nossa vida foi assim, não tinha doutor, não tinha nada, nada.

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E outro, naquele tempo a tecnologia não tinha chegado até aqui, o próprio líder de lá, da Boca da Mata, fez um recado, né, que falavam: “Passa recado!” Botaram num papel e eu levei esse papelzinho da Boca da Mata, quando tinha muita onça por aqui nessa Serra; eu e o Marinho que tá aí, que atendeu vocês. Só nós dois subimos aqui, não tinha ninguém, ninguém, ninguém. Só os macacos, os guaribas, onça, cobra. Saímos da Boca da Mata, dormimos aqui, levando o papel pra solicitar o avião de Boa Vista pra vir pegar o paciente. Olha, coisa difícil, pra mim é. Subimos estas horas e chegamos lá em Pacaraima. Não é Pacaraima, naquele tempo era Divisor.

DF: Na divisa.

MF: A divisa. Chegamos lá na casa do seu Antônio Barrei-ro, era comerciante. Antônio Barreiro, era recém-chegado lá. Outro comerciante que já morreu. Assisti a morte dele, primeiro comerciante que morou. Chegamos lá, deixamos o recado, o papel. Na mesma hora nós voltamos, viemos dormir aqui, eu e o Marinho. No outro dia saímos pra Boca da Mata, e o paciente gemendo lá. Tinham os pajés aonde nós usamos muito, mas aqui nessa região não tinha pajé. Só tinha pajé na comunidade Ireu, lá pra beira do rio Ireu. Então, se tornou difícil. No terceiro dia, avião desceu, pegou paciente e levou pra Boa Vista. Passou um mês se tratando. Isso foi em 60 e... 68, por aí, 67 ou 68. Segunda vez, o líder daí da Boca da Mata, pai do tuxaua Hilário, que morava aí na Boca da Mata, se adoeceu, e nesse tempo mesmo não tinha estrada, não tinha nada. O que é que o pessoal faz? Pegaram dez pessoas (até o irmão Paulo que vocês conversaram com ele), ele também foi uma das pessoas que botou paciente aqui no ombro, da Boca da Mata. Saíram pro Entroncamento, entrada do Surumu, no sol quente. Ali foi um sofrimento muito grande. Então, pra mim, estou feliz porque tem hospital ali no BV-8; tem hospital geral em Boa Vista; tem estrada; tem ambulância. Nós estamos sofrendo sim, mas diminuiu mais. Então, pra mim, eu feliz. Bem, pra mim é assim uma alegria, sofrimento já acabou. Até pra comprar algumas coisas, a gente fazia farinha; torrava farinha aqui; a gente levava assim uns dez quilos; eu levava uns dez quilos; outro levava vinte quilos, pra

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35 A cidade de Pacaraima é conhecida também por BV-8, pois ali se localiza o marco divisório BV-8, da divisa Brasil-Vezenuela.

comprar fósforo, açúcar, alguma coisa aqui, lá aonde eu, falei no Antônio Barreiro, comércio. A gente aí; e por esta hora a gente tava de volta, com um pouquinho de rancho. Hoje não, os compradores, peixeiros estão chegando até na porta pra comprar banana, pra comprar farinha, trazem carne. Então, pra nós se tornou mais fácil, pra mim é uma alegria. Agora, é nesse meio, ao mesmo tempo eu sinto um misto de tristeza, porque a lei pressiona a gente e não tem como a gente se defender, a gente se defender. Então, é assim; é assim. A nossa convivência foi assim. [...] Quando, mais uma vez, quando logo a estrada passou aqui, não era asfalto, só piçarra, meu pai se adoeceu. Não tinha ambulância no BV-8;35 não tinha hospital; hospital tinha em Boa Vista. Tinha os mo-radores aqui, logo quando a estrada, o batalhão veio abrindo a estrada. Eles mesmos afirmam que trabalhavam na estrada e tiravam um lote aqui, outro aqui. Então eles tinham alguns carros. Então, apareceu um homem por nome de Siguinês. Ele tinha o jipe. Não era pra levar paciente; era pra carregar milho, pra carregar macaxeira. Mas nesse ponto, como a gente tava aperreado, procuramos o Siguinês. Ele disse: “O que é que tá acontecendo?” “Não, o meu pai tá doente.” “Tá ruim?” “Tá!” Então, ele disse: “Diz pra ele se preparar, que eu vou levar no meu jipe, aí ele não vai morrer.” Então, veio, levamos ele até na beira da estrada, botou o paciente no jipe e levou pra Boa Vista. Então, ele foi. Como o meu pai tava gemendo de dor, de tanta dor, ele acelerava o jipe pra chegar ou pra morrer. Então, aconteceu isso com a gente. Mas ele chegou no Coronel Mota. Os médicos trabalharam; trataram bem; melhorou: Mário Roberto Flores tá aqui. Se não fosse isso, ele já tinha morrido. Com tudo isso, como eu estou explicando pro senhor, me preocupa muito essas coisas. Por quê? Eu me pergunto por quê? Hoje a gente vê a família falando a sua linguagem taurepang, alguns estão caminhando, estão se arrastando pra chegar, aprender a linguagem português.

DF: Mas como eu falei pro senhor, eu não vejo de tudo ruim. Eu acho que tem um lado que é muito bom, que é isso

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que eu falo pro senhor, que a gente chega aqui e vocês estão se comunicando na língua tradicional que é a de vocês. Esse é o lado bom. Vocês preservam isso tudo, mas ao mesmo tempo não têm como ter acesso ao que tá acontecendo ali, e de repente não saber uma outra língua fica muito mais difícil.

MF: Fica mais difícil.

DF: Então, tem um lado bom e um lado que muitas vezes atrapalha.

MF: Eu tenho pensado, eu tenho pensado assim: “Eu quero estudar”, eu mesmo pensando, eu quero estudar pra mim falar bem português, pra mim defender o meu povo e também não esquecendo da nossa linguagem taurepang. Eu tenho que falar bem o português com os brasileiros, com o português, e falar em taurepang bem, igual, e falar em caste-lhano. Por que é que eu penso isso, doutor? Eu sou da igreja Adventista. Eu tenho que pregar em português. Quando eu for pra Venezuela, eu tenho que pregar castelhano, espanhol. A minha preocupação é essa. Quando eu estou pregando aqui, eu tenho que pregar em taurepang. Quando chegar um visitante assim como o senhor tá aqui, quando eu estou pregando em taurepang o senhor não entende. Então, tem que passar, traduzir em português.

DF: E sem contar que não existe a Bíblia em taurepang, existe?

MF: Não, não.

DF: Não tem.

MF: Não tem. Só macuxi. É só macuxi. Então, essa pro-posta que tenho, o motivo é esse: eu tenho que falar em taurepang; eu tenho que falar o espanhol; eu tenho que falar em português, porque estamos sendo visitados por diversas etnias, então eu tenho que estudar. Não sei se a minha idade permite, eu tenho 53 anos, se eu entrar na escola não sei se eu chego lá. Até quando for com 65 anos quero pregar em português, em castelhano, porque a ordem do Mestre,

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criador do céu e da Terra é evangelizar todo mundo. Então, meu coração pede muito, eu tenho que estudar.

DF: O senhor nasceu onde, aqui mesmo ou na Venezuela?

MF: Eu nasci em Maurak, em Venezuela. Mãe brasileira. Pai meio venezuelano-taurepang. Eu nasci em Venezuela. Com doze anos me trouxeram pra cá. Com doze anos.

DF: Uma informação: o pai e a mãe do seu pai, eles eram taurepangues?

MF: Não.

DF: Não.

MF: Não, deixa eu ver. Eu acho... O pai da minha mãe era macuxi, agora do meu pai é taurepang.

[...]

DF: O senhor sabe a história da fundação da comunidade?

MF: História do?

DF: De como foi fundada a comunidade. Por exemplo, era o pai do seu pai que tinha comunidade no começo, ou depois ele fundou, o senhor sabe?

MF: Bom, a gente sabe. Quando não tinha fronteira, os indígenas viviam assim: pra eles não existia fronteira. Até eu cheguei a ver, aqui não tinha nada, era deserto. Depois que passaram aqui a Venezuela, o Brasil, apareceu esse limite. Então, nessa época eles andavam pro Brasil, aqui é Brasil, né?; voltavam pra Venezuela. Começaram a morar por aqui. Diz meu pai que morou lá no Amajari, a família dele é de lá. Veio daqui, o senhor sabe né, e eu também fiquei preocupado assim, querendo saber por que é que os indígenas foram pro Brasil, por que é que os brasileiros foram pra Venezuela. Mas a gente sabe muito bem que isso é normal: americano casa com a brasileira, brasileiro vai pra um... não tem fronteira.

DF: A fronteira é algo criado pela gente. É claro, a fronteira do Brasil nem sempre existiu. Ela foi conquistada e muitas vezes com gente morrendo pra ter ela [...].

MF: Aí o casamento acompanha. Então, foi assim: mora-vam aqui. Isso foi depois que receberam a Igreja Adventista

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aqui; foi expulso. O pastor deles foi expulso; o pessoal de lá pra cá se espalhou; outros foram morar pra cá, lá pro Amajari. De lá pra cá eles vieram, passaram a morar aqui no Ireu, na beira do rio Ireu. Vieram, pararam aqui na Santa Rosa, só os taurepangues. Aí vieram aqui, tem até pé de buriti bem aqui aonde eles moravam. Até o Bananal, quando nós chegamos aqui, em 77, daqui do Maurak, existia Bananal. É deles, eles moravam aqui com meu pai. Ele era mais novo, de 18 ou 20 anos. Como não tinha esse movimento, a venda de mercado-ria, não tinha nada, nada, não sei como eles viviam naquela época, eu não sei dizer. Aí foram, moraram aqui uns 10 anos. Subiram pra cá, moraram aí uns 5 anos no pé daquela serra. Foram subindo, tem um campinho bem aqui em cima dessa serrota, moraram lá. Aí foram passando pra Venezuela. Aí foram morando, depois novamente voltaram. Assim eles viviam aqui. Até que casou com a minha mãe, aí começou a juntar família; se agrupar; controlar.

DF: E ele sempre foi o líder?

MF: Eh. Sempre foi o líder.

DF: Eu tenho outra dúvida, não é nem uma dúvida, é uma curiosidade que não sei nem se é verdade. Me falaram que a palavra “tuxaua” é uma palavra nova, não é?

MF: Eh. Era cacique, né?

DF: Eu não sei se era cacique.

MF: É... É tuxaua mesmo.

DF: A comunidade de vocês sempre chamou tuxaua ou não?

MF: Eh, tuxaua.

DF: Sempre chamou tuxaua.

MF: Sempre tuxaua. É o líder de uma comunidade.

DF: E o pai do senhor sempre foi o líder.

MF: Foi. Sempre foi. Desde a igreja, o pessoal reconheceu a proposta dele, opinião. Eu acho que ele tinha boa opinião, né, boa proposta, então ele foi escolhido pra liderar. De lá

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36 Palavra espanhola, para planta.

37 Espécie de sopa, em ge-ral temperada com muita pimenta, podendo ser feita com caça ou peixe. A base da comida indígena tradi-cional é a damorida com beiju seco.

pra cá ele vem como líder, passou a liderar a família. Então, ele foi morar pra lá. Agora depois de andar, depois de receber a Igreja Adventista, moraram assim, circulando: ia pra cá e voltava, é assim.

DF: É. Porque às vezes tá num local, né, aí a caça diminui...

MF: Diminui. É assim.

DF: Isso aí é comum mesmo. E em relação à alimentação, como era e como é hoje? O senhor acha que mudou muito? Qual o seu ponto de vista em relação a isso?

MF: Doutor, o nosso alimento é, até no ano 2000, 90, a gente manteve o nosso alimento normal. A gente saía pra caçar dois dias daqui, ou antes a gente caçava bem aqui perto. Aqui atrás da serra a gente conseguia algo pra comer. As caças foram se afastando, e a nossa comida, damorida (o senhor já viu falar, damorida? Já comeram damorida?)...

DF: Já comi.

MF: O nosso alimento é esse, até 90, eu entendo assim, até 90. Alimento puro. As mulheres, elas conhecem uma mata36 que tem aqui na roça nova. Tem a mata que a gente usa pra comer, tipo repolho. Tira folha, bota pra cozinhar, escalda, depois prepara. Quando tiver um peixe ou carne de veado assado, bota nesse, mistura com essa folha e a nossa comida...

DF: Era basicamente essa.

MF: Eh.

DF: E é engraçado. Eu achava que a damorida37 só era com peixe. E aí me explicaram que não, com a caça que tiver.

MF: Eh. Damorida é alimento normal da comida dos índios.

ALGUÉM: Carne de veado, de paca, vai tudo.

DF: Vai tudo. Até pássaro. Eu já comi com peixe, eu gostei muito. Só que a que eu comi não tava tão forte. Que eu sei que depende das comunidades, que eles colocam...

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38 Era comum, durante a entrevista, chegar outros indígenas. Alguns faziam comentários.

39 Palavra pra frango, muito utilizada na fronteira com a Venezuela entre brasileiros.

ALGUÉM: Cada aldeia tem seu modo de...

DF: E aí eles colocam mais ou menos [pimenta].

ALGUÉM: Tem uns que colocam pimenta e aí elas se tor-nam muito quentes. Agora a gente aqui come um pouco de pimenta, não, lá aquelas coisas, muito fortes.38

MF: Então, a nossa comida é essa, damorida. Até no ano 90 a gente comia. Agora, doutor, mudou muito; pra cá mu-dou muito. Ninguém come mais a caça. O pessoal só compra carne de gado aí no BV-8, todo dia. E galeto!39 Ninguém sabia o que é galeto, agora os índios daqui já sabem o que é galeto.

DF: Tem caça ainda?

MF: Aqui mesmo, não. Mas indo um dia e meio, tem muita caça. Também a gente mata caça escolhida. Ninguém come porco, ninguém come tatu, ninguém come anta, ninguém come nada. A gente mata veado mateiro, campeiro, mutum, jacu, nambu, só. Então, se o senhor entrar aqui nessa mata, você vê um bando de queixada. Ninguém mexe com eles.

DF: Ah! Queixada vocês não consomem?

MF: Não. Porque a lei de Deus não permite.

DF: Mas e hoje, vocês estão comendo de tudo? A comida praticamente do mercado?

MF: Do mercado se tornou mais pra... a daqui da cidade. Antigamente não, só damorida mesmo. Agora chegou, todo dia o peixe lá de fora, não sei da onde, de Manaus. Chega aqui peixe que foi morto há uns dez dias, vinte dias.

DF: [risos] Isso é complicado.

MF: É complicado. Então, nós estamos levando assim um pouco daqui da comunidade mesmo e um pouco que vem da cidade.

DF: Ah! Entendi. Mas também agora a coisa é mais difícil, como o senhor mesmo falou, tem um certo conforto hoje, com a comunidade mudando menos hoje em dia. Antiga-mente andava mais, ia pra ali, ia pra lá. Como hoje ela muda

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40 Organização dos Profes-sores Indígenas de Roraima.

menos, não tem pesca; aí fica mais difícil, não?

MF: Fica mais difícil.

DF: Andar um dia, dois dias pra encontrar uma caça.

MF: Agora mesmo a gente tá planejando de sair uns dois dias daqui, pra 25 de dezembro, pra que os caçadores che-guem com a caça, pra comemorar dia 25. É assim.

DF: Assim, a gente sabe que o senhor tem a religião agora, mas quanto aos rituais antigos vocês ainda fazem ou não?

MF: Não. Isso não existe.

DF: Não existe mais.

MF: Não. Só igreja mesmo. Eu tenho 53 anos. Ainda eu não vi o que os nossos pais faziam. O meu pai nunca pensou em fazer isso. Então, eu não sei como era. Até agora eu não conheço aquele que chamam, falam de parixara, tukui, mari--mari, aquela dança e outra cultura indígena, isso não existe.

DF: Ah! Entendi.

MF: Eh, aqui mesmo não.

DF: Na comunidade do senhor não.

MF: Eu não sei na Boca da Mata ou na Santa Rosa, nessas outras comunidades. Mas aqui mesmo não. O que os jovens estão praticando só o futebol, o jogo, gostaram né? Então, se dedicaram pra isso. Mas a cultura indígena mesmo não existe.

DF: Conhece porque já ouviu falar. E o senhor pertence a alguma representação indígena?

MF: Como?

DF: O senhor falou que o senhor representa todas as comunidades. A gente sabe que aqui no alto, estando aqui em cima têm várias... ALIDICIR, a OPIRR,40 têm várias repre-sentações. O senhor pertence a alguma?

MF: Eu sou da ALIDICIR, do Nivaldo. Eu era, eu sou fun-dador da ALIDICIR. Nivaldo assumiu agora, dia 12 de março, como presidente.

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[...]

MF: Então, antes de, eu acho que antes de ele chegar pra cá pra morar nessa região, a gente fundou essa aliança. Eu tenho carteira aqui. Eu era vice-presidente, trabalhei 5 anos. Fundamos em 98. O próprio presidente pediu pra eu me afastar: “Você é vice-presidente, tu se afasta, porque eu vou chamar outro.” Aí colocou outro. Aí eu me afastei. Mas eu pertenço, até agora, se Deus permitir, a gente dá continuidade.

DF: E como o senhor vê o índio hoje? [...]

MF: O índio, aqui no estado de Roraima, eu vejo assim, eu não quero ofender as etnias ou a aldeia, mas o nível dos índios tá subindo pouco a pouco, muito devagar. Tá devagar a situação dos indígenas aqui no estado de Roraima! Eu vejo assim. A educação tá aí pra educar, mas eu não vejo advoga-do índio, eu quero ver advogado indígena, ao menos dez...

DF: Pra poder representar.

MF: Pra representar, pra defender o seu povo. Eu não vejo nenhum vereador índio. Eu não vejo nem três indígenas prefeito. Eu não vejo nenhum deputado indígena. Eu acho que é falta de interesse, porque os alunos que estudam não querem, não querem, eu acho que não querem subir. Quando termina o estudo dele, recebe o seu certificado, vai pra sala de aula. Pronto. Esquece do seu povo, só tá mexendo com os alunos. Eu vejo isso. Os indígenas estão estudando sim, mas eu vejo que é muito pouco, subiu pouco, muito pouco. Agora, se tivesse três indígenas na prefeitura como prefeito, se tivesse ao menos dois ou três deputados estaduais indí-genas, um deputado federal em Brasília, aí combinava do deputado federal pra estadual, do estadual pra prefeitura. Mas até agora ninguém vê isso. Então, os indígenas não querem, não querem aproveitar seus estudos. Estudaram, aí estão encostados. Eu estive conversando com um rapaz que trabalhou, serviu à pátria, né, ele disse: “Viche! Rapaz, eu não quero!” Ele diz assim: “Eu não quero ser funcionário.” Aí eu disse pra ele: “Por quê?” “Porque, pra gente ser funcionário

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41 Referência ao taurepang e Tenente Sebastião Paulino que lutou na Segunda Guer-ra Mundial.

do governo, a gente fica preso igual pássaro. Quando a gente prende um pássaro, a gente não coloca na gaiola? A gente fica assim preso; todo dia tu tem que ir naquele gabinete ou no escritório. Então, eu não quero, eu não quero não. Eu fui soldado, aprendi muito negócio de armamento, eu já aprendi. Mas pra ser funcionário público, não!”

DF: E os taurepangues têm até um..., é um coronel ou não?

MF: É o general.

DF: É um tenente, não?

MF: Eh. Tenente. Como é o nome dele? Até esqueço.

DF: Me esqueci também. Eu tenho até um recorte de jornal, Tenente...41

MF: Então, eu estive conversando com o soldado da aero-náutica, é um índio. Até quiseram levar ele pra Belém, pra ele se formar lá, aprender mexer com avião, pra carregar os indí-genas, mas que: “Rapaz, se eu for pra lá, quem sabe eu vou morrer lá. Minha mãe, meu pai...” Pronto. Ele ficou aí. Nem foi. Então, os indígenas, nesse ponto, eles estão perdendo, perdendo oportunidade. Só tem muito, se o senhor quiser falar com os professores, reúne os professores, dá muito professor. Agora, falar em deputado indígena, nenhum. Falar em prefeito indígena, nem cinco.

DF: Essa administração mais direta que é necessária.

MF: Eu acho que os indígenas se interessam só pra ser professor, professora. Doutor, também eu não vejo o índio. Eu não sei, quem sabe mais pra lá pra baixo, mas aqui no estado de Roraima, eu vejo só professor e professora. Nesse ponto os indígenas ainda estão nessa jornada de professores. Ele vai pra escola, estuda e pronto: lá mesmo ele fica. Ele fez segundo grau, já tá começando a lecionar.

DF: Tá certo. E a relação do índio com a terra? O senhor acha que mudou muito ou não mudou? A gente vive hoje uma questão de conflito. Não é nem discussão, agora é conflito mesmo.

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MF: Questão da terra tá trazendo problema sério. Eh, doutor, isso é principal, questão da terra. Eu moro aqui na terra demarcada, área São Marcos, aqui área São Marcos, aqui não é Raposa Serra do Sol. Eu, eu era segundo tuxaua na época. Quem era primeiro tuxaua, Messias, que mora ali naquela casa, eu era segundo dele. A gente acompanhou a reunião das lideranças da área São Marcos, a gente acompa-nhou. Não tem um prédio no São Marcos lá em baixo, na beira do Rio Uraricuera, lá perto de Boa Vista? A gente ia pra lá. 6 em 6 meses, as lideranças daqui da área São Marcos faziam assembleia, faziam uma reunião. Eu ia pra lá. Isso não produ-ziu, não teve o fruto, não teve resultado dessa reunião. Uma vez o chefe de posto que trabalhava lá no São Marcos, ele perguntou, já no encerramento, ele perguntou dos tuxauas, ele disse: “Tuxaua, eu vou fazer uma pergunta pra você”, ele tem acompanhado muita reunião, ele perguntou assim: “O que é que vocês estão fazendo aqui? Essa reunião é pra quê? Qual é a proposta de vocês?” Aí tuxaua geral respon-deu assim: “Chefe, essa reunião é nosso encontro, 6 em 6 meses ou ano em ano, a gente faz essa assembleia só pra gente discutir sobre nosso problema, porque no ano passado aquela comunidade tinha dez cabeças de rês, outro tinha quinze, outro tinha vinte... Então, pra saber a gente fazia uma reunião. No ano passado ou no ano retrasado ele tinha dez, quem sabe esse ano ele já tem quarenta. Então, pra avaliar.” Aí o chefe do posto respondeu assim: “Não, isso não é bom. Porque vocês são pai de família, os filhos de vocês estão lá passando fome. É bom vocês pararem. Vamos trabalhar.” Aí ele voltava a responder assim: “Eh, nós podemos trabalhar sim. Mas como é que nós vamos trabalhar? Como é que nós vamos criar? Tem fazendeiro ao nosso lado, tem pra cá, tem pra ali, então não tem como a gente trabalhar.” Então, chefe de posto respondeu assim: “Eu estou aqui pra ajudar vocês. Se vocês fizerem, elaborar um documento pra presidente da Funai pedindo projeto de gado, algum projeto, eu estou aqui pra assinar. Mas encontro de vocês não vale a pena, porque vocês vêm de longe, do Contão, Santa Rosa, e o filho de vocês...” Então, é nesse ponto que as lideranças indígenas

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42 José Porfírio Carvalho, consultor indigenista da Eletronorte. Nem sempre foi possível indicar as refe-rências nominais. Quando possível, serão trazidas.

perderam a questão nessa assembleia. E depois foi falado sobre a linha de transmissão: Eletronorte e o presidente do Brasil, presidente da Venezuela já fizeram negociação. Então, ouvindo esse acordo dos dois presidentes, as lideranças se reuniram novamente: “O que é que nós vamos fazer?” Então, até que as lideranças não quiseram aceitar a Eletronorte usar a terra deles; consideravam a terra indígena não era demarcada; demarcado, mas fazendeiro permanecia aí. Até eu tava participando da reclamação dos tuxauas: “Por que é que o presidente da Funai não se manifesta pra indenizar os fazendeiros?” Presidente da Funai, ou Funai, administrador de Boa Vista nunca conseguiu recurso pra indenizar ao menos um fazendeiro, nenhum. Nunca. Depois quando se falou so-bre essa linha de transmissão, aí os tuxauas se reuniram. Eles tiveram uma ideia: “Agora se a Eletronorte já fez negociação, os presidentes já fizeram negociação, então vamos entrar de acordo. Se a Eletronorte usar a nossa área de Pacaraima até o Rio Parimé, aonde pertence aos índios, nós vamos querer indenização.” Até que chegaram um consenso de negociar, e disseram pra Eletronorte: “Vamos negociar!” Aí o presidente da Eletronorte ficou olhando assim pra ele. Não falaram não, porque eles tinham muito dinheiro, né? Tinha o representante, vocês devem conhecer aquele, o Zé Carva-lho,42 Carvalho, consultor indígena. Carvalho, um homem de idade. Ele disse assim: “Doutor Carvalho, acho que ninguém vai permitir a linha de transmissão cortar nossa área, porque já nós estamos tentando expulsar os fazendeiros daqui da nossa área, receber os brancos novamente, pra completar, Não!” Aí a Eletronorte respondeu: “Olha, então a gente vai arrodear por aqui pela outra comunidade, por onde limite da área indígena. Nós vamos cortar por aí.” Aí: “Tá. Então, nossa área vai ficar. Aí vai ter paz, não queremos.” E depois o consultor, o Carvalho diz: “Olha, se vocês, se vocês acei-tarem, a indenização da terra de vocês vai ser cinco milhões de reais ou quatro milhões, conforme a gente vai bater aqui e pra ver o valor. Se vocês usarem esses recursos pra indeni-zar fazendeiros, se vocês entenderem melhor assim, vocês têm que aceitar. O dinheiro dá pra pagar esses cento e dois

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fazendeiros que estão aqui. Aí com isso vocês vão indenizar. Se entrar quatro milhões, cinco milhões dá pra indenizar.” Aí pensaram: “Rapaz, será que isso daí vai dar certo?” “Vai.” Aí ele trouxe o DVD pra mostrar: “Isso aí não vai prejudicar. Os índios do Pará também, eles aceitaram pra fazer hidrelétrica. Os índios estão vivendo bem. Isso aí não é prejudicial.” Então, esse consultor amostrava como funciona, porque os índios daqui de Roraima, daqui dessa fronteira, não conhecem o que é a torre, a linha de transmissão. Ninguém conhecia. Aí chegaram numa conclusão que aceitaram: “Tá. Então, deixa que a Eletronorte trabalhe. Agora nós queremos receber.” Os indígenas, meus parentes ficaram tudo animado, sem saber o que ia de acontecer. Sem saber, só falaram sobre indenização; sobre retirada dos brancos; sem saber o que tinha na Constituição brasileira. Os tuxauas não sabem, até eu não sei. Por isso que eu tava falando pro senhor que nós temos que estudar, o índio tem que estudar. Sem saber o que há de acontecer, vamos tirar os fazendeiros; vamos tirar tudo. Aí eles ficaram olhando pra eles: “Tá bom, então o trabalho que vai ser realizado, essa área, vai parar, vamos cortar por aqui.” “Tudo bem!” Entraram em negociação. Os índios macuxis tinham maioria, maioria dos macuxis. De taurepang só tinha daqui do Sorocaima I, aonde eu estou, aonde nós estamos. De taurepang tinha do Bananal; de taurepang só tava Hilário, da Boca da Mata. Só nós três, três comunidades. Então, as lideranças não souberam cobrar; as lideranças não souberam dar a quantia de dinheiro: cinco mil, dez mil. Disseram assim: “Então, se Eletronorte usar essa área, a área indígena, nós queremos todos, com esse dinheiro nós queremos tirar todos os fazendeiros”, falaram assim (eu tenho um livro que passaram pra gente). Tudo bem. Aí o consultor indigenista falou assim: “Tá, então vamos conversar com os fazendeiros. Área de vocês, ela vai, área de vocês, ela vai chegar a oito milhões de reais. O valor da área de vocês vai dar sete, oito milhões de reais.” “Agora vamos ver.” Então, ficou aí. Parou aí. Aí fizeram a lista dos fazendeiros que estão morando aqui. Não atingiu cinco milhões de reais, só deu dois mil e quinhentos. Aí ficou. Ele disse assim, o Carvalho falou assim: “Se os fazendeiros, se

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o preço dos fazendeiros for cinco milhões, dez milhões, não vamos gastar. Se o preço dos fazendeiros for dois milhões e meio, também vai ficar por aí.” Amarraram assim. Aí os índios perderam. Não deram o preço fixo.

DF: Ah! Entendi. O preço foi de acordo com...

MF: Eh. Ficou no ar. Então, eu tentei falar como líder de uma comunidade, mas as lideranças macuxis eram maioria: “Não. Vamos fazer assim.” Aí eu ficava só observando. Foi assim negociação com a Eletronorte pra tirar os fazendeiros. Foi assim. Não deram preço fixo. O Carvalho falou: “Se o preço dos fazendeiros tiver passando de dez milhões a Eletro-norte vai gastar. Se os fazendeiros, o preço dos fazendeiros for até dois milhões, três milhões, também, vai ficar por aí, o que é que vocês estão pedindo. Vocês não estão pedindo pra tirar os fazendeiros?” “Nós estamos pedindo.” “Então vamos em frente.” Então, eu acho que deu até três milhões e meio. Não tinha preço fixo...

DF: O nome é Linhão de Guri, não?

MF: Linhão de Guri.

MF: Então, aconteceu isso. Então, os indígenas pensaram, estavam pensando que essa área ia ser entregue pra eles. Até eu tava no meio. Pra mim ia ser, pra mim essa terra do Manoel Bento Flores. Não. Depois mais tarde, o próprio consultor indigenista, o Carvalho, falou assim: “Agora os índios vão trabalhar. Agora os índios vão produzir. Eles eram massacrados pelos fazendeiros. Agora os índios vão criar gado. Agora os índios vão brocar roça, derribar. Agora eu quero ver os índios trabalhar.” Foi feito. Ele mesmo falava. E depois ele mesmo disse pra mim, pra meu pai, ele disse assim: “Vocês estão pensando que vocês estão na terra de vocês?”

DF: Eh. Legislação não é assim. Eu conheço.

MF: Aí teve mudança. “Essa terra é da União, não é de vocês.” Aí veio outra história.

ALGUÉM: Se fosse aquele cacique Juruna que tinha tudo gravado...

MF: Sim! Doutor, se eu tivesse gravador, a gente tinha

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43 Referência ao fato de os indígenas possuírem usu-fruto da terra, e por isso restrições no seu uso.

44 O coordenador regional da Funai à época em Roraima, Gonçalo Teixeira.

brigado com Carvalho. Mas ninguém tinha, quem tinha era só ele. Aí teve grande confusão. Disseram no início que a terra é dos índios e depois quando os fazendeiros saíram da área São Marcos vieram dizer que a terra é da União.43

DF: Eu conheço a legislação.

MF: Aí tiraram o poder das mãos dos índios. O índio não tem poder pra administrar essa área. Quem administra é órgão federal.

DF: E pago praticamente, de alguma forma, com a nego-ciação feita pelos próprios índios.

MF: Então, doutor, então eu tava dizendo pro senhor que a gente tem que estudar, porque não é só essa, vai ter outro problema. Então, pra isso a gente tem que se preparar. Ago-ra, se a gente ficar assim, assim como patriarca quer: “Não, deixa, vamos ficar...” Não. Isso daí não existe. Recentemente a gente conversou com Gonçalo, 44 administrador da Funai. Ele passou pra nós, tá tendo outra negociação, de Caracas pra Argentina, gasoduto. O mesmo trabalho que a Eletronorte fez, outra firma também vai fazer, por baixo da torre, vai pra Argentina; vai cortar terra indígena; vai cortar terra dos fazendeiros; vai cortar o Estado de Roraima; vai entrar pra Manaus; aí vai embora. Gasoduto vem da Venezuela, porque Venezuela tem muito gás.

DF: Lá tem demais.

MF: Então, tá tendo este estudo, então pra isso as lideran-ças indígenas. Porque no meu tempo, quando fizeram essa negociação, os índios perderam muito, perderam, porque só pensaram em tirar os fazendeiros e não olharam a quantia de dinheiro. Então, o próprio consultor indigenista, o Carvalho, disse: “Eu não sei, se os fazendeiros pedirem dez milhões, Eletronorte vai indenizar. Se os fazendeiros pedirem quatro milhões, também vai ficar aí. Pronto. Em segundo lugar dizem que terra é da União, a Funai não pode dar título definitivo pro índio, porque não é deles. E aí, companheiro? Eu não es-tou satisfeito com isso não. É por isso que tem que examinar a Lei, embora que eu não vou resolver, mas a gente tem que

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combater a mentira do Governo Federal.

DF: E isso é complicado, porque tá previsto na Constitui-ção. Modificar a Constituição é possível, mas é difícil.

MF: É difícil. [risos] Doutor, e as lideranças indígenas nunca pegaram na Constituição brasileira. Ninguém! É por isso, sem saber. “Nós queremos tirar os fazendeiros, tudo.” Tiraram, e depois vem ordem pra ninguém mexer com a pedra; pra ninguém mexer a areia; pra ninguém mexer com isso: terra da União. Não pertence aos índios.

DF: Não pode comercializar.

MF: Eh, não pode.

DF: Vamos ver se o senhor tem uma memória boa. E como é que era feita a construção das casas na comunidade?

MF: Construção da...

DF: Ela é feita pelo próprio. Antigamente era uma coisa mais comunitária, não era isso?

MF: Eh.

DF: Continua sendo assim? Como é que é?

MF: Entre as comunidades?

DF: Não, por exemplo, tem que construir uma casa ali pra alguém que tá precisando ou alguma coisa assim, ou um rapaz que tá casando novo...

MF: Eh.

DF: Ele mesmo que é responsável? A comunidade se une? Como é que era antigamente, o senhor lembra? Se hoje mudou...

MF: Não. Nessa parte não mudou nada. Continua no mesmo. A nossa tradição nessa parte continua.

DF: E como era?

MF: Quem tem que fazer, o rapaz quando completa sua idade de 18 anos, 20 anos, ele já vai começar a fazer a casinha pra ele, ele mesmo.

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DF: Ah! Ele mesmo.

MF: Eh. Ele mesmo faz. É assim.

DF: Aí quando casar...

MF: Quando casar já tem barraquinho, pra levar a mulher pra debaixo do barraquinho. É essa.

DF: O casamento é dentro da tradição evangélica?

MF: Eh. Conforme a lei de Deus, tá escrito na Bíblia, tudo. Então, por aí nós estamos levando. Quando o rapaz vai casar, tem que apresentar na igreja. Só.

DF: O senhor tem informação de como era antes ou não?

MF: Não.

DF: Tá certo. E os animais domésticos que tem hoje são os mesmos?

MF: Os mesmos.

DF: Tem uma outra parte agora que é a parte da história, tá mais ligada à parte de... uns falam que é mito, mas por exemplo, tem outras comunidades que aceitam isso como história da comunidade. Por exemplo, existem essas histórias do Canaimé aqui?

MF: Ah! História de Canaimé? [risos]

DF: Isso. Não tem, tem, já teve? O senhor conhece essa história?

MF: Doutor, Canaimé, eu acho que existe em todos os países. Em Boa Vista tem muito Canaimé; no Bananal tem muito Canaimé; em todo canto tem Canaimé. Canaimé que a gente fala, a pessoa que mata outro. Na linguagem dos brancos é bandido. É Canaimé. Os índios, os taurepangues chamam esses bandidos de Canaimé. O bandido, ele não vai, quando o senhor vai com a sua carteira, ele toma e pega faca; esfaqueia e deixa morto aí? O Canaimé, ele faz a mesma coisa, um pouco diferente. O Canaimé mata por matar, não é por causa dos cem reais, não por causa dos quinhentos reais, não. Mata por matar.

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DF: Sem motivo.

MF: Sem motivo. Quando as crianças estão banhando nos igarapés, ele se esconde no mato e fica aí. Quando a criança se separa dos outros assim, pega pela perna, arrasta no igarapé e enforca. Aí deixa aí ou quebra tudo. A criança torna a andar. Passa um dia, sente a dor, com dois dias morre. Canaimé que nós chamamos tem, até agora existe, existe. Eu nunca vi Canaimé, mas eu sei da história, porque recentemente mataram um bem aqui.

DF: Foi?

MF: Foi. Eu acho que o senhor indo lá, eles devem contar, porque aconteceu agora no ano passado, em 2007, foi mês de agosto, mês de março, por aí, do ano passado. Mataram um, e foi Canaimé.

DF: E foi aonde?

MF: Aqui no, já ouviu falar no San Inácio?

DF: San Inácio?

MF: Sim, aqui em Venezuela?

DF: Não.

MF: Maupari, uma comunidade, Maupari. Lá que mata-ram.

DF: Eles mataram um Canaimé?

MF: Mataram um Canaimé. Tava matando parente. O Canaimé tava matando parente. Aí companheiro do parente veio, encontrou agarrado com ele e meteu a faca na barriga do Canaimé.

DF: O Canaimé a princípio é uma pessoa também ou é um...

MF: É uma pessoa: como o senhor; como ele; como eu. Esse Canaimé que mataram, eu já vi ele no Maurak, estudan-te, é formado, é sabido. Eu acho que ele era um professor, mas ele se tornou — quem sabe ele usou o remédio que eles

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têm — então se tornou Canaimé.

DF: Remédio?

MF: Eh. Alguma planta que eles têm.

DF: Ah! Sim.

MF: Eu já andei pra cá, pra Guiana em 88, 80 e... 90 e... andei por aí em 96, aí andei pra lá na Guiana, fui visitar os parentes. Quando nós chegamos lá, fomos tirar lenha. Tinha um barracão como esse daqui, mas era aberto. Aí nós está-vamos pendurando a rede, aí chegou cidadão de lá: “Vocês vão dormir aqui?” “É, nós vamos dormir aqui.” “Não, porque é proibido vocês dormirem aqui na casa aberta. Vocês não podem não.” Aí eu disse: “Por quê?” “Não rapaz, aqui tem muito Canaimé. Se vocês forem dormir aqui fora, vão matar vocês, porque vocês são recém-chegados e, se o Canaimé matar vocês, aí acabou, vocês estão mortos. Vão pra ali.” Era uma casa como essa daqui, bem fechada: “Aí não dá pro Canaimé entrar.” Então, lá existe, eu vi. É feio.

DF: É!

MF: É feio.

DF: E ele se veste assim normal ou...?

MF: Ele usa é, ele se disfarça como tamanduá, como onça. Então, ele dá um susto na pessoa e aí pega.

LS: Então, qualquer pessoa pode ver o Canaimé?

MF: Eh. Canaimé existe, Canaimé. Eles usam uma planta deles mesmo, deles, então eles praticam muito esse Canai-mé. [...]

DF: É como se de alguma forma eles fossem até possuí-dos, alguma coisa assim. Porque eu vi a história. Eu conheci há pouco tempo e fiquei muito curioso.

MF: Sobre a história de Canaimé?

DF: Eh.

MF: Existe, existe.

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45 Referência a um local na Venezuela, que localiza-se no km 88, sentido Santa Ele-na de Uairén Puerto Ordaz.

DF: Eu dei um curso no INSIKIRAN, e a menina tava fa-lando pra mim, contando, me explicando. Eu fiquei muito curioso. Porque é algo estranho, não é?

MF: É estranho, estranho.

DF: Que age meio involuntário, assim, sem um motivo aparente, do jeito que ela me contou, e que os indígenas respeitam muito, tem um respeito. Não sei se é um respeito, é quase um medo mesmo, pelo que ela falava.

MF: Eh. Canaimé existe. Eu fui pro km 8845 agora no ano passado, no dia 7 de setembro, quando o Exército tava des-filando. Eu passei pra lá, lá eu vi muita coisa, história desse Canaimé. É muito perigoso. Ele mata. Até eles amostravam um Canaimé: um gordo, um homem forte. Isso daqui, aque-le aí, você não pode nem zombar dele assim: “Não mata ninguém!” Pode se aprontar que ele te mata. Acostumado matar. Só que eles não matam: “Matou? Não, fulano matou.” Quando ele toma uma cervejinha: “Ah! Eu matei.” Pronto.

DF: Ah! Ela me contou também que era engraçado pra descobrir se a pessoa foi atacada ou não, porque pode atacar e não matar, não é isso? E a pessoa passa uma semana; fica triste; fica não sei o quê; fica amuada. Como é que faz pra saber se a pessoa foi ou não atacada pelo Canaimé? Porque às vezes ele nem sabe se foi atacado. Não é isso?

MF: Eh. A pessoa não conta não. Não conta.

DF: Ela não consegue contar, não é?

MF: Não consegue contar.

ALGUÉM: Aí, na última hora eles contam.

MF: Dizem os mais velhos, (como é que chama?), negócio de pilão, é mão de pilão, que soca assim: “tá, tá, tá, tá.” Aí lava, dá um pouco de água pra ele, aí passa a contar.

DF: Ah! Sim. Pega a água do pilão.

MF: O meu tio, irmão do meu pai ali, morreu de Canaimé.

DF: Sim?

MF: Eh. Morreu. Sempre eles falavam dos Canaimés. Os

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outros falam: “Não, fulano, ele viu Canaimé...” Aí ele andava só, aí ele ficava dizendo: “Rapaz, o pessoal tá mentindo, porque eu nunca vi Canaimé. Eu sou velho, eu ando muito, eu ando sozinho.” Até ele puxava faca, pedaço de faca assim: “Se Canaimé se aproximar eu corto ele.” Mas chegou o dia, tinha um barracão velho assim abandonado, na hora da chuva (andavam em grupo, né, seis pessoas), nessa hora, no campo mesmo, nessa hora choveu. Aí em vez de ele acompanhar o grupo, não, ele saiu com medo da chuva. Correu. Aí ele se escondeu num barracão velho, num goiabal fechado assim. Ali tinha os Canaimés. Na hora que ele entrou no barracão, pegaram ele aqui. Pronto, não sentiu mais. Aí ele, depois que passou a chuva, ele veio embora; veio conversando; conversando. Com dois dias ele se adoeceu, se adoeceu. Aí levaram ele pra [Ciudad] Bolívar, e ele morreu lá. Antes dele sair, ele contou. O irmão dele, o meu pai, perguntou: “O que é que o senhor viu? O que é que aconteceu, o senhor não viu o Canaimé?” “Não, na hora que eu ia entrando naquela casa velha abandonada, eu vi os pombos voar muito, e não senti mais.” Aí pronto. Morreu de Canaimé.

DF: A palavra Canaimé, ela é taurepang, não é?

MF: Eh. É taurepang. Não é Canaimé.

DF: É como que pronuncia?

MF: Na nossa linguagem, Kanaimö.

DF: Kanaimö?

MF: Kanaimö. Canaimé já passa pra português.

DF: Ah! Sim.

MF: Assim como Sorocaima não é Sorocaima. Na nossa linguagem, [se] fala Saracanhã.

DF: Saracanhã. [...]

DF: E tem um significado Canaimé, assim a palavra mes-mo, não né?

MF: Não.

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DF: Significa isso tudo.

MF: Kanaimö é perseguidor mesmo.

DF: Significa isso tudo.

MF: Kanaimö é o bicho.

DF: E Saracanhã, falei certo?

MF: Não. Saracanhã.

DF: Saracanhã.

ALGUÉM: Saracanhã tem outro significado.

DF: Pode falar ou não?

MF: É...

DF: Se não puder não tem problema.

MF: Nós podemos falar sim. Nós estamos aqui pra...

DF: Significa o quê?

MF: Significa assim, vou explicar bem pro senhor.[...]

MF: Saracanhã antigamente é conhecido lugar, esse lugar é doentio. Não sei se o motivo da água, eu não sei. Então, Saracanhã já pra pegar esse nome, o pessoal chegava aqui nesse lugar de outra comunidade, assim, do Contão, de outra comunidade; e chegavam; e chegavam; então entravam aqui já pra descobrir isso. Entravam aqui, como a gente coloca, a pessoa chegava “sarac”, aí ficava, e não voltava mais. Só estavam engolindo: “sarac, sarac.” Chegava outra pessoa de outra comunidade: “sarac”, morria, aqui morria. Não voltava mais. Então, só tava recebendo. Então, na nossa linguagem, colocar dentro é “sarac.” Quando tiver outra pessoa, “sarac”, morria aqui. Depois de dois anos, três anos, chegava outra pessoa, “sarac”, morria. Então, pegou esse nome Saracanhã.

DF: Ah! Entendi. Mas então, “sarac.” é chegar, né?

MF: Colocar.

DF: Colocar. E “canhá”?

MF: Já estão colocando “sarac.” Saracanhã.

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ALGUÉM: Saracaimã: “colocar assim.”

DF: “Colocar sim.”

ALGUÉM: Colocar: “sarac”; “caima”: assim.

DF: “Colocar assim”, “Colocar desse modo.” Caimã.

MF: Saracaimã. Então, tem esse nome Saracanhã. Quando alguém vem pra cá pra esse lugar ele diz: “Saracainatak tö soro [vou para o Sorocaima]” “Aonde?” Vem pra cá.

DF: Ah! Legal.

MF: A história é essa.

DF: História bonita.

MF: Assim como história do Macunaima, né? Na nossa linguagem o nome não é “Macunaima”, é “Makunaimö”, na nossa linguagem é um pouco diferente. Makunaimö. Agora pegou esse nome “Macunaima”, aí ficaram.

DF: Vai adaptando. Já que o senhor falou de Macunaima ou Makunaimö, Makunaimö... é um pouco nasalizado, então pode aproveitar e falar um pouco sobre o Macunaima. O que o senhor sabe?

MF: Macunaima, história do Makunaimö eu não sei. Quem sabe é segundo tuxaua. Ele pode ter gravado alguma história do Makunaimö, é com ele.

DF: Ah! Sim.

ALGUÉM: Eu sou mais novo, eu não sei.

MF: Se o senhor estiver amanhã, se a gente estiver aqui conversando eu posso, porque tuxaua pediu pra mim convi-dar o mais velho, o Clemente. Agora não dá pra vocês gravar, porque ele fala tão rápido, igual rádio novo.

DF: Mas, gravado não sai daqui. [...]

ALGUÉM: Me tire um dúvida, eu estive recentemente na comunidade Caracau, região da Raposa Serra do Sol...

MF: Aonde?

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ALGUÉM: Caracau, comunidade do Surumu. Uma profes-sora da Universidade Estadual tava organizando um passeio com os estudantes da Universidade lá no Surumu. Quando a gente chegou nessa comunidade pra visitar os locais de difícil acesso, onde era realmente a cachoeira, o mais antigo da comunidade falou o seguinte, que quando nós chegásse-mos, nós nos reuníssemos, pra quando chegar no lugar ter um certo cuidado, tipo: admirar uma serra, admirar alguma pedra, admirar alguma coisa lá, poderia a gente voltar no outro dia, no outro dia amanhecer doente. Pra evitar isso, teríamos que passar pimenta na palma da mão e no solado dos pés. Essa tradição vocês seguem aqui também? E por que é que a pimenta é tão importante nessa hora? Você poderia dizer pra mim?

MF: Pimenta é usado pra remédio, até pra colocar nos olhos da gente quando a pessoa tá com preguiça, não quer ir pra roça, aí o velho mais idoso vem e faz oração dele, aí bota nos olhos, aí ele se alerta. É assim. Pimenta é usado pra isso. Então, quando a pessoa passa pimenta aqui nos pés, nos ombros, é pra matar força dos bichos que estão aqui e pros indígenas existe alguns bichos aqui na serra, só nessa Serra. Então, pra isso tem que passar pimenta, é, aquele urucum. Eu vim com meu tio daqui do Maurak, eu era mais novo, ele vinha pra cá visitar a nossa comunidade aqui. Vinha ele, a es-posa e os filhos; aí ele conhecia esse lugar como Saracanhatá, que recebe a pessoa e morre, então ficaram com medo. Aí, antes da gente sair eles prepararam urucum numa vasilha menor do que isso aqui, aí prepararam. Já pra gente entrar nessa mata, aí a mulher dele chamou os filhos de doze anos, de dez anos, de oito anos, aí pintou eles todinhos por aqui, aqui no braço...

DF: Pintou o rosto...

MF: Eh. Aí entraram tudo pintado pra cá, pra não pegar doença, pro bicho não enxergar. É assim.

ALGUÉM: Lá pro lado do São Marcos fizeram a mesma pergunta. E um senhor falou o seguinte, que uma vez ele amanheceu com preguiça, muita preguiça. O pai queria que

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ele fosse trabalhar na roça, ajudar os outros. Tava com muita preguiça, sentindo dor no corpo todinho. Aí ele disse: “Ah! Tu tá sentindo dor no corpo, então vamos ali.” Aí levou ele na beira do rio, chegou lá tirou um cipó e começou a bater no corpo dele, em tudo que era parte onde tinha dor, chicoteou ele de tudo que é parte, depois pegou a pimenta, amassou na mão e botou no corpo. No outro dia ele tava com vontade e coragem de trabalhar.

DF: [riso] Aí não tem reclamação, tem?

MF: Antigamente eles faziam isso mesmo, eles faziam.

DF: Isso é a tradição.

MF: Pimenta e tudo isso é tradição. Mas como saímos pra religião, isso parou, parou mesmo. Aqui, a criança não conhece essa cura que os antigos faziam.

DF: É por isso que às vezes é importante a gente ter um registro disso. Não é nem pra mudar a cabeça das pessoas, é porque isso pertence à história da comunidade de algu-ma forma. Talvez hoje as pessoas não saibam mais, talvez amanhã não, mas daqui há uns cem anos as pessoas podem simplesmente ouvir: “Ah! Era assim! Olha como é que era diferente!...” E conhecer. Se a gente não conhece, a gente nem pode gostar direito. A gente tem que respeitar. A gente só consegue respeitar e gostar daquilo que a gente conhece.

MF: Na verdade tá tendo mudança. Voltando pra educa-ção, tá tendo mudança. Aqui a gente comia tudo junto. De manhã, lá pras 7 horas, o homem que mora nessa casa, mora pra ali, dá um grito: “Umbora titio, sobrinho, umbora comer damorida!” Aí ele vem com a damorida dele, bota a damorida; daquela casa vem, bota damorida: a família se ajunta. É meia hora, uma hora pra comer damorida contando história: quem vai sair pro trabalho; quem vai sair caçar; é assim. Hoje, como eu tava passando pro senhor que os indígenas não chegaram a nível pra trabalhar em prol da população indígena, mas nessa parte eles estão se desligando da tradição. Cada qual come na sua casa. Esse rapaz que mora naquela casa, comida

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que ele consegue é pra ele. O que mora aqui também prepara sua comida, ele come. Estão aprendendo, aprenderam mais o que é dos brancos, né?

DF: Nós somos assim.

MF: Eh. A casa bem juntinho, mas não chama outro. A comida que ele tem é pra aquela casa. Também ele não conhece outro, conhecendo ele não diz, porque eu já passei por aí em Boa Vista: “O senhor conhece o fulano?” “Não.” [...] Nem dá bom dia, passa assim perto, mas não fala. En-tão, nessa parte os índios já estão participando. O que ele comprou, o que ele gastou é pra ele, deixa o vizinho passar fome. Antigamente, quando a gente começou a morar, não era assim. Antigamente a gente chamava, agora não. Agora é na base do dinheiro. Aí outra pessoa diz: “Não, rapaz, às vezes eu falo pra minha esposa ‘vamos convidar o parente ...’ .” “Não, tem pouca comida, não vai dar. Também nós gastamos dinheiro...” É assim. É nessa parte a gente entra nessa divisão.

DF: Que é já a cultura do outro.

MF: Eh. A cultura dos brancos.

DF: Eh. Nós somos assim. A não ser em ocasião de festa, que a gente se reúne...

MF: Eh. No dia da festa é aberto pra todo mundo, pode vir preto, amarelo, é tudo, mas assim no meio da semana é difícil.

DF: Não, praticamente não existe.

[...]

MF: Doutor, eu queria terminar o assunto da área de-marcada, a terra da União, porque sem saber os tuxauas brigaram. Agora estavam querendo solicitar o título definitivo da Funai, aí ele disse: “Não. Título definitivo pro índio não se dá. Por quê?”, ele falou pra nós, “Por quê? Vou já explicar: se o índio receber o título definitivo, ele vai se tornar o dono daquela área.” Ele falava, eu sempre converso com ele: “Ele vai se tornar o dono daquela área, ele vai querer negociar com os brancos. O dinheiro daquela área vai servir muito pra

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ele. Como? Pra ele comprar o carro, ele vai andar de carro; ele vai sair da sua cultura, da sua tradição; ele vai acompa-nhar os branco, andar de carro. Então, deixa os índios sem título de terra.”

DF: E aí vai passando de um pra outro, mas...

MF: ... só que acontece, não sei se acontece pra lá pro Pará, Maranhão, não sei, mas aqui na fronteira acontece isso. Meu pai, ele procurou dar o nome da fazenda: é Fazenda Flores. Aqui é só família Flores, então, aí ele passou: “Eu que-ria que o senhor fizesse uma placa: Fazenda Flores, porque somos família Flores e nós queremos a placa.” Aí chefe de posto disse: “Não. Não pode ser assim. Esse daqui não é de vocês, é da União. Vocês não podem ser o dono.” E no ano retrasado — eu acho que aconteceu isso em 2003 — uma vez o nosso carro que foi doado pelo governo, uma Toyota Bandeirante, atropelou um carro venezuelano lá dentro, lá em Venezuela. Aí o dono do carro passa pro advogado, advogado chama o carro: “Não, deixa o carro brasileiro aqui. Nós vamos entregar o carro só quando ele pagar meu carro.” Pronto. O nosso carro foi preso, o carro do governo. Aí nós ficamos aqui aperreados; nós tirávamos dez cachos de banana; outros davam um saco de farinha, ali apuramos pra pagar advogado pra ele liberar o carro. Não deu pra cobrir aquela dívida. Aí o que é que nós pensamos? Nós temos a fazenda indenizada, Fazenda Asa Branca, que foi indenizada pela Eletronorte juntamente com a Funai e as lideranças. Tá dentro do cercado, dentro do cercado, lá tem pedra, pedra bruta mesmo. Aí tinha um homem comprando aí dez carradas de pedra, já que a comunidade não tinha. Tinha, mas não deu pra cobrir aquele tanto de dinheiro. Então, estudamos: “Agora vamos pegar pedra, oito carradas, até aonde der.” Aí consultamos uma caçamba, levamos, ajuntamos um mon-te de pedra, aí levamos. Eles estavam olhando pra gente. Aí levamos mais carradas. Aí alguém correu lá: “Rapaz, a comunidade Sorocaima I tá vendendo pedra.” Eu fui com o Nelson da Funai, aquele moreno, ele tava aí no Programa São Marcos. Aí quando a gente vinha subindo com a carrada de

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pedra, aí pegaram carro; vieram atrás da gente. Aí cercaram a caçamba; aí desceram lá: “Pra, pra, pra. Vamos parar!” Aí nós descemos: “O que foi?” “Caçamba tá presa!” “Por quê?” “Porque vocês estão vendendo pedra.” Aí tentamos esclarecer: “Não, negativo! Não pode.” “Caçamba tá presa e a pedra tá presa. Vamos levar pra Polícia Federal.” Aí o ca-çambeiro disse: “Não. A pedra tá presa, tá certo, mas minha caçamba não vou liberar não.” Aí encostou caçamba velha, aí derramou. Ele também se esquentou, né, o caçambeiro. Tá lá o monte de pedra. Aí teve essa confusão. Quando a gente fala de terra, agora depois de acontecer, depois que aconteceu, que eu quero dizer, depois que aconteceu, voltei a reconhecer que não foi entregue à comunidade indígena. [...] Então, aconteceu isso. Estão lá as pedras, estão lá. Aí eles dizem assim: “Se vocês levarem de novo, vou mandar prender vocês. Vou mandar prender vocês porque isso daí não pode, não pode não.” A dívida ficou: “Como é que eu vou pagar minha dívida? Advogado tá esperando dinheiro e nosso carro tá preso.” “Não, vende a farinha!” “Nós já vendemos farinha.” “Tem banana.” “Vendemos banana. Mas é pouca. É muito dinheiro pra advogado, advogado come dinheiro.” “Não, vão dar o jeito de vocês aí.” Aí pronto. Voltaram. Só vieram prender a caçamba. Então, os índios voltaram a ser escravos do órgão federal novamente. Eu entendo assim. Porque não dá título definitivo, não dá...

DF: E na hora de usar é limitado.

MF: Eh. Então, eu comparo assim, se a gente recebeu o carro da agência, enquanto ele não passar o documento do carro, é da agência. Não é minha. Ele toma o carro na hora que ele quiser, porque documento não tá no meu nome, não tá na minha mão. Então, o Governo Federal tá levando os indígenas dessa maneira. Aqui tá acontecendo isso.

DF: Entendo.

MF: Olha aqui, com esse segundo tuxaua, botamos roça comunitária, vinte e sete linhas pra comunidade daqui do Sorocaima I, em 2003, no ano de 2003. Plantamos roça. Vin-te e sete linhas, derribamos tudo. No dia 22 de março tocamos

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fogo. Queimou. A gente vive é disso; a gente criou nossos filhos assim. Aí Brigada, equipe de Brigada estavam andando, teve essa queimada, mas pra ninguém perder a roça, nós queimamos. Quando o fogo tava se apagando, umas quatro horas da tarde, lá vem helicóptero do IBAMA, passando por cima. Quando deu cinco e meia chegaram aqui. “Tuxaua, essa roça que tá queimando lá?” “É roça da comunidade.” “Tá bom.” Veja, pra você ter uma ideia, IBAMA chegou fa-lando bonito pro tuxaua. Ele falou assim: “Essa roça, o que é que vai ser plantado aí?” “Vai ser plantado mandioca, café, muda de laranja; se tiver a gente planta, né?” “Não, nós es-tamos chegando aqui...”, ele trouxe na sua companhia, trouxe o tuxaua, capitão da Brigada, tiveram aqui. “Tá, então vamos fazer. Vamos registrar a roça de vocês.” “Tá bom.” “O que é que o senhor vai querer? Muda de laranja ou de cupuaçu...?” “Não, é bom laranja porque lá é terra fria.” “Tá bom.” IBAMA recebeu dinheiro, Funai recebeu dinheiro, Governo recebeu dinheiro. “Agora vamos investir nas comu-nidades.” Até tuxaua, que é capitão da Brigada não sabia o que é que IBAMA tava fazendo conosco. “É tuxaua, agora vocês vão ser beneficiados.” Ele fez documento. Eu assinei. “Tá bom. Agora o senhor leva pra chefe de posto aí na Boca da Mata, mas não vai demorar não. Pode levar.” Aí eu peguei, com cinco dias eu levei pro chefe de posto. Aí apresentei pra ele: “Quem foi que deu esse papel?” “Foi IBAMA.” “Tuxaua, como é que ele falou?” “Ele falou assim ‘Tem muda de laran-ja, tem muda de cupuaçu, tem de graviola. Vocês vão plantar mandioca, então tem que separar uma área pra plantar, porque IBAMA recebeu, Funai recebeu dinheiro. Agora vocês vão ser beneficiados’ essa palavra que ele passou pra mim.” Aí ele foi abrindo, foi lendo: “Tuxaua, você já ouviu falar na multa?” “Não.” “Isso daqui chama-se multa. Te multaram em 9.750,00. Isso chama-se multa, te multaram. Multaram a comunidade. Agora tu leva pro advogado Wagner, aquele velhinho da Funai. Tu leva, mas tu leva amanhã.” Eu levei pra lá. Advogado recebeu assim: “E pra que é que multaram os índios, rapaz? Vocês botaram roça na área dos fazendeiros?” “Não. Na comunidade.” “E por que é que multaram vocês,

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46 Juiz federal polêmico quando atuou em Roraima.

rapaz? Esse bando de malandros! Eu vou lá!” Advogado saiu. Mas era mentira. Advogado, outro mentiroso. Essa multa subiu pra 16.228,00. Todo tempo eu ia pra advocacia: “Olha, o que é que tá acontecendo aí?” “Não, não se preocupe não. Não se preocupe. Eu sou advogado da Funai, eu vou matar essa cobra!” Aí ele diz assim pra mim: “Tuxaua, você já matou cobra? Alguma vez você já matou cobra?” “Já.” “Pois é. Quando a gente mata cobra na cabeça, o rabo fica batendo aqui, então o teu processo, a tua multa já tá morrendo, já tá batendo no rabo.” Mas advogado mentiu demais. Intimação: pra Boa Vista. Intimação: pra Boa Vista. Intimação: pra Boa Vista. “Rapaz, será que a Funai tá resolvendo esse proble-ma?” Eu fui, aí o Martins, que foi administrador da Funai, ele era administrador da Funai na época: “Doutor Martins, o que é que tá acontecendo, rapaz? Eu estou recebendo intima-ção.” “Não, isso aí tá acabando.” Foi passando. 2003. 2007 chegou três carros da Polícia Federal aqui pra mim pagar essa dívida, se não toma freezer, geladeira, motor de luz, se tives-se carro, moto, é pra levar. Vieram uma polícia federal, três oficiais da justiça, três policiais militares. Arrodearam minha casa. Aí oficial da justiça entrou, ele disse: “Eu estou cum-prindo papel de oficial. O que é que o senhor tem aqui na sua casa? O Hélder Girão Barreto46 assinou pro senhor pagar.” “Eu não tenho nada, eu não tenho!” “Mas tá assinado e o senhor tem que pagar.” “Tá bom. Se ele me levar pra cadeia, eu vou lá, eu vou lá pra cadeia. Agora, Hélder Girão Barreto tem que sustentar meus filhos, minha família.” Aí ficou por ali. Não viu nada. Aí ele disse: “Tuxaua, quando Hélder Girão Barreto mandar te chamar, aí tu vai lá conversar com ele.” Aí eles foram embora. Depois de gastar muito dinheiro: pra ir, vinte reais; do ponto tem que gastar dez reais no táxi; pra merendar, dez reais; pra vir de lá, vinte reais. Gastei muito por causa da roça. Olha, área demarcada deu confusão. En-trega terra pro índio; manda prender o índio; manda proces-sar o índio, estando na sua terra. Hoje tá mais complicado. Os indígenas daqui, a fiscalização, sem ter curso, assim, de pegarem o carro: “Vamos fiscalizar!” Então, isso não pode

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acontecer. Se eles continuarem com isso, eu vou passar no Ministério Público, porque pra punir os índios sem motivo nenhum, isso daí não existe. [...] Sem motivo. Tá assim. Então, a terra demarcada, depois de fazer tudo, voltei a reconhecer. Porque na época eu era segundo tuxaua; depois o cargo de tuxaua passou pra mim e eu passei 8 anos; como vice-presi-dente passei 5 anos; como suplente de vereador já estou terminando o mandato agora, só suplente, mas suplente não ganha nada né, só quando vereador mandar. É assim. Apren-di muito. 15 anos, 16 anos liderando a igreja, cento e quaren-ta pessoas pra administrar é difícil, é complicado. Então, aprendi muito. Programa São Marcos mandou me prender, porque Programa São Marcos recebe um milhão e duzentos por ano: cento e vinte, cento e trinta mil por mês. Nunca trouxeram o projeto, mas mandaram prender a comunidade do Sorocaima I. Disseram na reunião, único que participou com eles disse: “Olha, Programa São Marcos agora vai te prender.” “É, deixa eles prender, nunca trouxeram dinheiro pra mim, recebe tanto dinheiro e não passa pra comunidade, não fala de projeto nenhum.” Me levaram preso, passei oito dias na cadeia. É assim. A terra indígena não é terra indígena,

muitos se enganam. “É terra indígena.” Eu digo: “Coitado!”,

pessoal que mora na área indígena Raposa Serra do Sol

querem terras pra eles. A lei não é assim. É da União. Querem

expulsar todo mundo. Não, isso é engano. Quem sabe a lei...

[...] Se alguém, Supremo Tribunal Federal, me chamar pra

mim declarar ou denunciar, eu estou aqui pronto pra con-

versar com qualquer autoridade. Porque a gente assistiu

início da briga que tá acontecendo, aonde tuxaua Marinho

tava relatando. No final de 74, 76 pra 77 começou esse con-

flito. No meu tempo acompanhei esse início da briga, início

do conflito. Fui eu; foi Laurindo; foi Astromarino; outro tu-

xaua; meu pai; fomos lá. Tava o padre Lúcio; tava padre

Sérgio; tava padre Vicente; tava padre Jorge (o índio padre

Jorge!), eram uns cinco padres. Naquele tempo reuniram,

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conseguiram reunir 60 lideranças, com os acompanhantes

deram duzentas pessoas. Naquela época, no final de 76 pra

77, se eu não me engano, dia 5 de janeiro, nós tivemos lá. Aí

começaram onde tuxaua Marinho tava esclarecendo, disse-

ram pros tuxauas, começaram assim, eu vi a abertura: “Bem,

senhores tuxauas, como é que vocês estão vivendo com os

brancos?”, abriram assim: “Como é que vocês estão vivendo

com os brancos?” Aí os tuxauas nunca praticaram; nunca

estudaram sobre isso; eles estavam vivendo bem com os

fazendeiros. Eu não sei. Mas disseram assim: “O que é que

os brancos estão dando pra vocês?” Aí alguém levantou

assim: “Não, nós estamos vivendo bem com os fazendeiros.”

“Bem como?” “Não, quando a gente precisa de alguma

coisa: sal, açúcar, alguma coisa, a gente trabalha com o fa-

zendeiro um mês. A gente recebe; a gente pede pra ele

trazer da cidade; ele traz e entrega pra gente.” “Quando

vocês querem comer carne, como é que vocês fazem?” “A

gente trabalha um mês com os fazendeiros, eles pagam com

uma rês.” Aí o padre disse: “Não, isso não é bom. Isso não é

bom. Os fazendeiros estão morando na área de vocês, então

eles têm que dar pelo menos cinco cabeças de rês pra tuxaua,

pra ele comer, pra sustentar a família dele. Se eles não fazem isso, nós vamos já tirar.” Os padres falaram. Início do confli-to foi assim. Assisti. “Então vocês têm que matar gado dos fazendeiros. Vocês tem que matar, estão na terra de vocês. Aonde tiver chiqueiro dos bezerros dos fazendeiros, toca fogo. Queima. Expulsa os fazendeiros. Se não, pega alicate, vai cortar o cercado dos brancos, se cortar não tem proble-ma. Nós estamos aqui pra dar apoio pra vocês.” Assim que começou a briga. [...]

DF: Me fala uma coisa: como é que é feita a troca dos tuxauas na comunidade? Tem período, é marcado por ano, como é?

MF: Conforme o trabalho do tuxaua. Se o tuxaua tá tra-balhando bem, ele pode trabalhar 5 anos, 8 anos, 10 anos,

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15 anos.

DF: Ah! Sim. Não tem período marcado?

MF: Não. Não.

DF: Mas na hora que ele começar a não fazer as coisas do jeito que a comunidade quer, se a comunidade quiser a comunidade se reúne...

MF: Eh, meu pai era tuxaua. Passou vinte e dois anos como tuxaua. Ele tem a declaração dele que a Funai deu pra ele, a declaração. Aí ele foi tuxaua vinte e dois anos. E ele passou cargo pro filho, Messias, que mora naquela casa, passou cargo pra ele. Aí o Messias, com a declaração mesmo, com o nome mesmo, ele passou dois anos. Só dois anos. Eu era vice dele. Aí ele fez de coisa errada, de errado, perante a comunidade, a comunidade se reuniu: “Rapaz, vamos tirar o tuxaua e colocar o Manoel. É que o Messias não cumpriu com ordem da comunidade, não cumpriu com o dever de tuxaua.” Aí tiraram. Ele não quis entregar o cargo: “Não, papai me chamou pra mim assumir, agora eu estou aqui. Acho que não vou entregar não.” Meu pai mesmo levantou: “Meu filho, o que tu fez perante a comunidade, a comunidade não vai aguentar não. Melhor você se afastar mesmo.” Aí pronto. Aí eles me colocaram como tuxaua. Aí eu trabalhei; completei como [segundo] tuxaua 2 anos, como primeiro tuxaua 8 anos. Completei 10 anos. Até dez pessoas levantaram assim: “Por que é que o senhor vai entregar o cargo? Qual é o problema? O senhor não tá gostando de trabalhar ou o senhor tá cansado?” “Não. Eu vou entregar, porque quem sabe tem outra pessoa que quer aprender, quer conhecer, quer conversar, quer aconselhar; então eu vou dar a vaga pra outro.” Depois de 10 anos. Assim mesmo quando eu fui líder de igreja: quando eu completei 10 anos como líder de uma igreja, aí a igreja se reuniu: “É bom a gente tirar o Manoel porque tem isso, tem isso...” Aí a maioria disse: “Não, se tiver motivo, a gente tira, mas não tendo motivo, tirar pra quê? Qual é o motivo?” Assim eu passei 16 anos. Assim mesmo eu entrei na liderança, eu converso com as

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47 Candidato a vereador do município de Pacaraima, RR.

comunidades. Como líder nós não podemos usar a palavra ofensiva, destrutiva, crítica. Tem que respeitar pai de família. Como a gente cuida da nossa família, a casa de outra pessoa tem que ter cuidado, né? Então, eu levei assim. Aí me lancei na candidatura.47 Na primeira eu tive quinze votos. O pessoal não reconheceu a minha pessoa. Depois, na segunda, eu tirei oitenta e três votos. Faltou só quinze votos pra eu ser eleito. Assim a gente levou, então, a troca de tuxaua é conforme o trabalho do tuxaua. Ele tá trabalhando bem, então deixa que trabalhe. Se ele tá fazendo errado, então tem que tirar, colocar outra pessoa.

DF: Ah! Entendi. O senhor não quer se candidatar agora?

MF: Não. Eu ia me candidatar, mas eu procurei alguém pra procurar partido, mas foi em cima da hora. Não deu.

DF: Tá certo. O senhor gosta um pouco da política, não?

MF: Isso aí como eu falei, eu tenho que participar, por-que o meu problema é assim — o meu pensamento né? O município de Pacaraima tá na Terra Indígena, tá na Terra Indígena. Tá aí, todo mundo tá vendo, a terra é demarcada pros indígenas. Mas, nós mesmos defendemos pra não sair, porque tem colégio; tem hospital; tem a segurança. Então, a gente assegura. Ao mesmo tempo, a gente pensa de ser algum representante lá na câmara, na prefeitura. Eu penso assim, muitos estão falando agora, né, falando do prefeito Paulo César: “veio de longe, de outro estado, ele não pode ser prefeito.” Na verdade ele veio de longe administrar os filhos daqui, porque os filhos daqui não se interessam. Então, o pessoal de Boa Vista vem, eles se candidatam, eles não conhecem a realidade, eles não conhecem o sofrimen-to das comunidades, eles querem assumir só pra ganhar o dinheiro, e as comunidades deixam no sofrimento. Então, meu pensamento, eu conheço sofrimento da comunidade do Guariba, do Bananal, de todas as comunidades. Então, tenho que me lançar candidato pra gente conversar com o Governador pra conseguir transporte, pra conseguir isso; [pra] não deixar o pessoal vir de longe administrar os que nasceram, os que estão crescendo aqui, o que é que eles estão fazendo? Então, a gente tem que questionar sobre

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isso pra ter um administrador.

DF: Entendi.

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Entrevistado: Armando Magalhães

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Assistene de Entrevista: Lucimar Sales

Local: Comunidade Nova Morada, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 2/10/2008

Transcritora: Michele Rubinstein

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 1’34’’16’’’

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DF: Primeiro, seu Armando, eu queria que o senhor falasse o nome do senhor completo.

AM: Eh, eu sou o tuxaua da comunidade da Nova Mora-da, na qual meu nome é Armando Magalhães, filho de José Magalhães e Cacilda da Silva, que é minha mãe. Eu morei na comunidade do Taxi. É uma comunidade antiga, aí na qual hoje eu estou aqui, na região do São Marcos, no alto São Marcos, perto da cidade. Eu estou com oito anos aqui na cidade; quer dizer, já estou com dois anos que já formamos essa comunidade nova e aí eu estou muito alegre, porque a gente tá aí. É uma área produtiva, é uma área que não tem assim, vamos dizer assim: “Ah não, estamos passando fome ou estamos passando necessidade, há falta de alimento.” Não. Graças a Deus hoje nós estamos com o pé no chão, trabalhando sempre. Aí o que que eu sempre tenho dito assim: “Nós estamos dentro de uma riqueza: madeira; nós temos tudo aqui.” Com a terra na mão com certeza ninguém nunca vai passar necessidade, né? Com o professor aí, sei que estamos falando pro senhor, porque essa comunidade é nova. Aí temos plantado, mais ou menos, quase quatrocentos pés de cupuaçu; mais ou menos duzentos e sessenta pés de banana, porque isso aí é o início dum começo[...], de qualquer implantação de uma comunidade que tá se plantando, que tá se formando. Daí pra frente com certeza nós vamos ter muito mais fartura, que aí temos madeira. Têm várias coisas que nós estamos plantando pra nós ter um dia, ver nossos filhos de barriguinha cheia. Tem que às vezes a doença pega a crian-ça, que às vezes tá com uma fome, passando necessidade e isso ninguém quer. Eu, como tuxaua, eu não permito essas coisas assim. Nem também falamos da Funai agora. Funai é uma pessoa, é um órgão que podia estar ajudando cada um de nós pra nós termos mais fortalecimento, mas na qual ninguém tá tendo. Aí quando eles... tem Funai, agora não, que a Funai já tá liberando um pouco, dizendo assim: “Olha, tuxaua, é só a Funai que interdita a convivência, o trabalho de vocês, mas agora tá liberado, vocês podem fazer o que vocês quiserem de bem pra comunidade de vocês, podem usufruir do que tem aí na terra, vamos crescer e quem sabe

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eu posso trazer algum projeto, um tratorzinho pra vocês trabalharem, ampliar mais os trabalhos de vocês.” Isso aí é o que a Funai sempre tem dado esse alerta. Aí com isso, nós estamos muito alegres com isso, porque eles estão abrindo nossas portas, assim.

DF: Ajudando...

AM: Eh, ajudando com a palestra. Aí essa palestra o cara não tem que jogar no mato, tem é que crescer com esse sonho, pra um dia, esse sonho também ser vitorioso. Será mais, mais ampliado com as coisas que a gente tá pensando.

DF: O senhor tem quantos anos?

AM: Tenho 56, vou fazer no dia 13 de janeiro.

DF: 13 de janeiro.

AM: 56 anos, vou fazer, vou fazer.

DF: Qual a etnia do senhor?

AM: É macuxi.[...]

DF: Tá certo. O senhor é tuxaua. E aqui na ALIDICIR, o senhor tá exercendo qual função agora?

AM: Na ALIDICIR, na qual essa ALIDCIR é nossa. É nos-sa casa; é a casa dos tuxauas; a casa do povo que somos associados à ALIDICIR. Somos vinte e três comunidades que são associadas aqui à ALIDICIR, na qual os tuxauas são responsáveis por essa casa, na qual hoje nós estamos aqui. Nós colocamos um presidente pra nos segurar, pra levar nossa história em frente; pedir alguns projetos; levar alguns documentos de projeto pra, pro presidente da República ou pra algumas pessoas que trabalham por nós também. Então, nós temos nosso presidente aqui da Associação. Somos vinte e três pessoas que estamos aqui; tuxauas que são líderes aqui dessa associação e na qual somos muitos. Só os tuxauas mesmo que são aliados aqui à ALIDICIR. É nossa casa, casa de todos.

DF: Tá certo. O senhor chegou a estudar?

AM: Professor, só estudei segunda série. Aí só fiz terminar

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só a segunda série. Eu não sei ler bem, mas aqui, acolá eu gaguejo, mas não sei ler bem não. Mas a gente desenreda alguma coisinha.

DF: Isso não é importante, é só mesmo pra gente saber. Não tem importância nenhuma. E o senhor chegou a apren-der o macuxi?

AM: Com certeza. [...]

DF: Na comunidade vocês falam em macuxi?

AM: Falamos.

DF: Têm outras pessoas também?

AM: Falamos. Nós falamos macuxi.

DF: Ah, que bom. A primeira língua do senhor foi a macuxi?

AM: Foi.

DF: Ou foi a língua portuguesa?

AM: Não senhor. Foi macuxi. Primeiro a gente falava macuxi.

DF: O senhor escreve macuxi ou só fala em macuxi?

AM: Nós só falamos macuxi. Nós tínhamos professor, quer dizer, nosso tuxaua antigo, o seu Terêncio da Silva, ele foi um professor e até hoje tá sendo professor de língua macuxi. Ele mora lá no Ubaru, numa comunidadezinha que foi fundada também por nós e aí tá lá, na qual ele é o pro-fessor, até hoje. Não sei se ele já saiu do cargo dele, mas ele tá sendo professor de macuxi, da tradição. Então, isso aí eu nunca esqueci professor, da minha tradição. [...]

DF: Como o senhor falou, o senhor é agricultor ainda, não?

AM: Sou agricultor.[...]

DF: Me diga uma coisa, hoje vocês produzem o que na comunidade?

AM: Lá nos produzimos. No momento, tem plantado: tem banana, macaxeira, mandioca braba, taioba. [...] É assim [faz gesto com as mão de muita quantidade] de fruta: temos

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cupuaçu; temos caju; temos manga; tem açaí; tem até buriti-zeiros plantados. Então, quer dizer que... acerola, acerolinha, maracujá daqueles grandões, de quilo. Aqueles maracujás de quilo, nós temos também lá dentro. Então, professor, nós temos vários tipos de plantações que nós estamos plantando aí nessa comunidade. É só o senhor vendo de perto que aí o senhor vai acreditar o que nós estamos falando, né?

DF: O senhor já falou o nome dos seus pais. Eles eram macuxis?

AM: Todos dois eram macuxis.[...]

DF: Eles são vivos?

AM: Já morreram. Já passaram dessa vida pra outra. Na qual um morreu aqui e outro morreu lá na maloca Cumanã.[...]

DF: Cumanã fica onde?

AM: Fica aqui nessa direção da comunidade do seu Terên-cio, primeiro tuxaua nosso, que nós tivemos nessa região.

DF: E a religião, vocês têm alguma religião hoje?

AM: Bom, a nossa religião é católica. [...] É católica sim senhor. É católica a nossa religião.

DF: O senhor é casado?

AM: Sou casado, sim senhor; casado em civil; casado em padre também.

DF: Sei. E a etnia da sua esposa?

AM: É macuxi também. [...]

DF: E os curumins são quantos?

AM: Nós somos seis crianças né, meus filhos.[...] Eram mais de seis, mas morreram três crianças. Eh, morreu um, dia desses, com vinte e três anos, que era da escola Casimiro, da professora Fátima, né?

DF: Sim.

AM: Era aluno dela, mas morreu dia desses. Tá com um

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ano e pouco, faleceu o bichinho. Então, aí, nós estamos por aqui, professor.

DF: Eu sei.

AM: Eh, com certeza nós procuramos mais a melhoria. Como o senhor tá levando essa nossa história, isso vai ficar arquivado pra sempre, com certeza.

DF: E vai voltar pro senhor.

AM: E vai voltar pra gente, pode colocar num vídeo, num cedezinho. Nós temos televisão, nós podemos assistir o que eu estou falando. Aí meus filhos vão assistir que nós estamos, a história nossa, né? Então, isso daí vai ser divulgado, com certeza, pra muitos tempos; assim como a história do senhor como professor; a história do senhor não tá só aqui; isso tá na televisão, tá na internet; tá em todo canto a história do senhor. Então, essa história ela nunca vai morrer. Morre o senhor, ficam seus filhos, ficam os netos, fica a sua família, né?

DF: Justamente.

AM: Então, essa história, quando se passa pra televisão ela vai pra muitos tempos. Isso aqui que é história, né? O senhor não vê a história do governador Ottomar? [...] Hoje, como o cabra ia dizendo, nós não estamos querendo mais viver como a gente era. Hoje nós estamos querendo viver também direito, como os brancos têm. Nós queremos ter a televisão, nós queremos ter um carro na nossa porta, nós queremos ter uma comida de qualidade. Então, pra isso quem é que vai trazer? Quem vai trazer essa comida de qualidade são os pais, são os tuxauas que têm que incentivar: “Vamos trabalhar pessoal, pra gente ter, pra ninguém mais passar fome.” Chega de a gente estar sendo humilhado pelas autori-dades como órgãos, Funai, né? Vamos parar com isso. Vamos botar o pé na parede pra eles aprender também a respeitar nossas leis; que uma autoridade dentro da comunidade, um tuxaua, ele é chefe sim, é da comunidade. Então, ele tem que passar por aí; tem que aprender a respeitar, porque ninguém quer mais viver como a gente tava vivendo. De jeito nenhum professor.[...]

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48 Paulo César Quartieiro foi prefeito da cidade de Paca-raima, além de fazendeiro produzindo arroz na região da Raposa Serra do Sol, de onde foi desintrusido. É o principal defensor das fa-zendas em terras indígenas em Roraima.

DF: Agora vou fazer uma pergunta pessoal. Qual a coisa mais triste que o senhor passou na vida e qual a mais feliz?

AM: A mais triste que eu já passei na minha vida é assim, sabe: viver sem ter oportunidade de a gente usar o que nós temos, principalmente. Porque, às vezes, quando a gente tá começando usar, quando a gente tá começando a melhorar, vêm as pessoas por trás impedir que ninguém faça isso. Isso é uma vida triste. É uma vida que ninguém pode nem fazer, vamos dizer, quando a gente tá começando a melhorar; quando uma comunidade tá levantando a cabeça; tá tendo uma visão melhor; tendo um passe melhor; aí lá vem o IBA-MA, lá vem a Funai, vai vir outras pessoas. Então, quer dizer que como é que, é uma vida triste, é uma vida triste sim. A gente vê que é uma vida triste. Porque é uma vida que nós temos direito. Ainda eles dizem que nós temos direito, mas esse direito eles não respeitam. Nós respeitamos, mas eles não respeitam, porque esse direito não tá dizendo usar as madeiras, ouro, diamante, terras, areia, pedras: “É de vocês tuxauas.” Ainda a Funai tem coragem de dizer isso. Aí, na hora que a gente tá usando, que a gente tá usando pro bem da comunidade, aí já vem o IBAMA atrás: “Não, o senhor não pode tirar essa areia, porque é proibido tirar.” Mas que coisa! Então, é uma vida triste que a gente vê. É uma vida triste que ninguém pode ampliar nada, ninguém pode ter nada nas nossas casas. Vamos viver sempre de migalha, sempre sofrendo, a barriguinha dos nossos filhos roncando, né? E dá doenças, com fome. É triste, é uma vida triste. Eu acho, pra mim, uma coisa muito triste essa vida assim. Agora uma coisa que todo mundo (como se diz?), se a nossa lei amparasse, nosso direito é trabalhar. Nós temos, nós vamos ter, com certeza, nosso alimento com sobra; nós vamos ter esse tal de autossustentação que nunca existiu. Essa região daí do CIR sempre fala em autossustentação, mas nunca conseguiram ter. Agora eu vou dizer bem aqui assim, quem tem autossustentação é o Paulo César Quartieiro.48 Ele tem. O senhor sabe por quê? Ele tem pra comer, tem pra vender quase pro Brasil inteiro. Tem pra vender. Então, ele tá usando autossustentação. Ele tem pra comer e tem pra distribuir pra

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qualquer país do mundo, ele tem. Porque ele tá produzindo. Tem arroz aí bastante. É todo dia caminhão tá dissolvendo arroz aí, tá disparando arroz. Então, a gente vê que essa au-tossustentação (que sempre eles vêm trazendo de Brasília, lá dos órgãos lá de fora, que acontece pela região da Serra, da Raposa Serra do Sol, aí pro Jaci, esse pessoal que mora aí dentro) eles sempre falaram nas reuniões: “Olha, tuxaua, vocês têm que ter autossustentação, porque senão nós vamos morrer de fome.”, mas nunca apareciam eles como chefe. O que que eles fazem né? Vão pro exterior, eles só trazem dinheiro pra eles, pra eles. E toda vez que eles viajam trocam de mulher. Trocam por uma loura mais bonita e tal, com um carrão importado, carrão de cento e sessenta mil, são aqueles carros com cabina dupla. Só andam trocando de veículo. E os outros, e os outros coitados, dizem assim: “Você não pode nem trabalhar com branco, cuidado, não vamos trabalhar com branco.” A roupa dos pobres, tudo rasgado meu Deus! Mas que coisa, o cara com relojão, com uma mulher bonita na frente e com um carrão do lado, com uma casa melhor e quer que a gente vá viver nessas condições. Não têm condições pra nós.

DF: Entendo.

AM: Não tem condições. A gente sofre muito, porque o nosso chefe come dinheiro sozinho e não dá um real pra ninguém, como nós estamos vendo. Nós estamos vendo isso. Então, quer dizer que agora a gente não pode ficar mais assim.

DF: Eu sei. E qual a coisa mais feliz que aconteceu com o senhor que o senhor lembra?

AM: Bom...

DF: Quer dizer alguma, que sempre a gente tem.

AM: Sempre a gente tem. Quer dizer, feliz como eu acabei de dizer, professor, é quando a gente tá de bucho cheio, nós temos a vida feliz. Quando se tá com fome, rapaz, fica agoniado, fica triste: “Rapaz, como é que é?” Não sei; o cara fica quase doido, né? Mas, se tá de barriga cheia, as crianças

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estão alegres, a esposa tá satisfeita. A gente como esposo tá satisfeito, vê toda família com o buchinho cheio, que coisa, né! É uma coisa boa, quer dizer que é uma vida de alegria, que eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra um lugar com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo das coisas. Mas, quando tá com fome, coitado, só anda enrolado. Só anda enrolado, porque não tem jeito de ter alegria. Ele fica triste cada vez mais: “Puxa vida onde que... será que alguém vai me dar alguma coisa pra comer hoje? Puxa vida, colega, eu estou sem dinheiro!” Mas é ruim, já passei nessa. Quando a gente tá sem dinheiro, rapaz, já tenho me virado aqui na cidade um pouquinho. Ainda bem que eu tenho uns créditos por aí nos comércios: “Me dá, patrão, eu estou devendo, mas eu quero mais aí, rapaz, fim do mês eu lhe pago.” “Nada, pode pegar aí, não se preocupe não, pega aí.” Compro alguma coisa, pego como eu falei. Então, naquele dia nós estamos alegres, com barriguinha cheia...

DF: Tá certo.

AM: Pra que mais que isso? Com saúde, né?, saúde é me-lhor alegria das pessoas. Com fome a gente não tem alegria.

DF: E o senhor nasceu onde?

AM: Nasci na maloca do Taxi. Lá pra dentro.[...] Fica na Ra-posa Serra do Sol.[...] Sim senhor. Foi lá que a gente nasceu.

DF: O senhor poderia falar um pouquinho da comunidade onde o senhor nasceu? Depois o senhor pode falar daquela que o senhor viveu e aquela que o senhor tá agora. Se o se-nhor puder falar como era lá onde o senhor nasceu, alguma lembrança de lá.

AM: Bom, era assim. Antigamente a gente morava na maloca do Taxi. A gente lembra do primeiro tuxaua, seu Luís. Chamavam, chamavam não sei se era o apelido dele, não sei se era apelido dele que a gente era criança, quando começou a entender. Aí chamavam Luís Cabeçudo, chamavam pra ele, um tuxaua antigo, dessa comunidade Taxi. Aí depois entrou seu Joaquim Máfora, o tuxaua daqui que morreu tempo desse também. Morreu com mais de vinte anos de

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49 Apesar de não adequada à concordância formal, optou--se em preservar a ideia e o estilo do entrevistado.

tuxaua, vinte e cinco anos, parece, de tuxaua. Foi um tuxaua que durou mais tempo, com liderança, na maloca do Taxi, na qual depois de lá ele fundou essa maloca Cumaná aqui pra nós, que era pra gente estar subindo junto com ele. Nunca, ninguém nunca deixamos ele.49 Que era um tuxaua bom, que gritava todo dia de madrugada pro povo. Então, todo mundo já sabia, quando ele gritava, era algum serviço que a gente ia fazer, era algum recado que ele ia comentar pra comunidade e assim por diante. Então, nós moramos lá e depois nós partimos já pra essa comunidade que hoje tá ainda sendo fundada por esse tuxaua Joaquim, o Cumaná. Depois do Cumaná, nós passamos mais ou menos oito anos mais ou menos. Eh, mais ou menos isso, oito anos. Aí depois nós deslocamos de lá, formamos outra comunidade, na qual nós tínhamos a nossa comunidade. Nesse tempo eu já comecei a trabalhar como segundo tuxaua. Então, nela morava o meu compadre Garnete, que hoje, hoje ele tá por aqui também, junto com a gente. Nunca deixou a gente, sempre teve um parceiro bom. Ele morava sozinho aí, encostamos lá com ele, formamos essa comunidade. Aí o Ubaru, uma comunidade nova também, já tá com quantos dias, mas já tá com um pouco de dias que já tá fundada essa comunidade. E de lá nós, minha filha terminou a 5ª série dela, nessa comunidade do Ubaru. Aí ela procurou que a gente viesse pra cá, pra cidade, na qual já tava fundada essa ALIDICIR. Já tava com mais ou menos seis meses que ela já tava, que essa associação já tava funcionando. Não tinha caseiro, né? Eu digo: “Não, já que minha filha tá procurando de ir pra cidade terminar o estudo dela, o segundo grau dela, nós vamos encostar pra ALIDICIR.” Aí me deixaram aqui como caseiro. Me apoiaram. Fiquei aqui um ano e três meses aqui como caseiro, aí na qual eu invadi esse terreninho aí. Não sabia de quem era. Isso foi uma confusão grande. Mas aí falando que nós temos direito também. Aí nós ficamos aí, na qual tem uns terreninhos aí. Aí, depois foi indo, foi indo, foi. Comecei a trabalhar como empregado na prefeitura; comecei a trabalhar, tempo do Hipérion.50 Passei dois anos como funcionário; passei um ano como monitor de ônibus e passei mais um ano traba-

50 Primeiro prefeito da cida-de de Pacaraima, Hipérion de Oliveira Silva.

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lhando fora assim na, como empregado aí da prefeitura. Depois entrou esse outro, seu Chico Roberto, fiquei como funcionário. Depois já entrou outro, na qual seu Paulo tava na administração, passei pra ele de novo. E aí como te disse, de noite não tem nada a ver. De noite você faz seus bicos por aí, né? É um bico que a gente pode dizer. É um bico que a gente faz. Mas, mas estamos lá dentro, a gente como representante. A gente lutou e aí fomos na Funai pra ver se nós tínhamos, ele queria um documento, com o papel de tuxaua. Foi difícil, eles não queriam dar, a Funai não queria dar: “Não, é porque a gente tá dando muito esse papel pro pessoal, pros tuxauas.” Às vezes tem tuxaua que só diz que é tuxaua, mas não tem documento. “Então precisa delega-do!” Na qual eu tirei, ele assinou e hoje eu estou, eu tenho meus documentos de tuxaua. Meu segundo tuxaua também tem o documentozinho de tuxaua também, como segundo.Então, aí professor, nós estamos aí nessa comunidade. Nós fundamos ela, aí registramos como Nova Morada.

DF: Quando ela foi fundada?

AM: Foi fundada já faz o quê? Dois anos.

DF: Dois anos.

AM: Eh, dois anos tem que tá fundada essa comunidade. Então, aí professor, tudo é novo, tudo é novo. Tudo, as plan-tas, tá novo. Nada é antigo, mas tá crescendo, tá crescendo. Daqui mais três anos cupuaçu com certeza vai chegar fruta, né? Cupuaçu é três anos. É um projeto de três anos, né? Agora macaxeira, banana, cana, essas outras frutas que a gente vê que ela é de ano, isso aí com um ano já tem fruta. [...]

DF: E como o senhor escolheu o lugar? O senhor escolheu ou já tinha assim?

AM: Não senhor, nós pesquisamos duas semanas. Foi uma pesquisa de duas semanas com meu genro; andamos por lá. Primeiro dia, não achamos; segundo dia; terceiro dia; aí nós paramos. Deixamos dois dias. Quando foi sábado, fomos de novo, não conseguimos. Aí deixamos pra segunda-feira, na outra semana. Quando foi na terça-feira, nós conseguimos

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encontrar esse igarapezinho por causa da cachoeira. Nós paramos em cima de um [...], aí escutamos aquela zoada de água caindo: “Rapaz, aqui tem uma água boa.” Era mês de março, verão. Aí fomos pra lá devagarzinho, fomos fazendo uma picadinha. Chegamos lá, disse: “Ah tio, é aqui.” Eu digo: “Rapaz, é aqui mesmo. Ninguém vai escolher não, nós vamos empurrar à força.” Tinha uma área, mais ou menos uma linha e meia, aí nós brocamos. Deixa pra nós virmos no outro dia. Vamos sair. Já era quatro horas da tarde. Aí de quatro horas nós tiramos aqui pra cidade, pra casa. Viemos pra cá, aí nós chegamos por aqui, aí falei pra mulher: “Olha, mulher, nós encontramos já um lugar bom pra gente morar. É ali e é ali mesmo.” “Ah, tá, tá bom. Eu vou com vocês.” “Tá bom, se quiser ir, vamos.” Aí fomos lá e abrimos já uma estradinha, aí conseguimos abrir essa clareira lá dentro e encontrei um rapaz que tinha uma motosserrazinha por aí. Aí digo assim: “Rapaz, me dê uma mãozinha pra ir mais rápido porque tá chegando o inverno.” Isso foi no mês de março. Aí passou só uns quinze dias, o mato secando, arrochei! Não queimou quase nada não, só fez só brocar. Aí foi verão e começamos a plantar né? Então, tá aí, professor, minha história é essa. Eu acho que já disse o que pude dizer, né? Então, a história é isso daí que nós fundamos essa comunidade, é nova. É bonita. Ver o lugarzinho lá é bonito, não é acidentado, não tem aquela buraqueira, dá pra fazer umas vicinalzinhas até lá dentro, tranquilo. Dá pra gente trabalhar um bocado de tempo lá dentro.

DF: O senhor pra ir pra lá e voltar, o senhor vai como?

AM: Volto de pés professor.

DF: Dá o que?

AM: Dá uma hora e vinte. É pertinho.

DF: Então, deve ser uns cinco quilômetros.

AM: É mais ou menos isso, cinco ou seis quilômetros, mais ou menos. Eu calculei seis quilômetros.

DF: Como que era a alimentação antiga e como que é

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agora, a parte da comida de vocês?

AM: Bom, a nossa, lá na minha comunidade, nós fazemos damorida. A gente coloca um peixe, coloca uma pimentinha dentro. A minha esposa é muito fabricadora de fazer a cer-vejinha, que é o caxiri, né? Ela faz o caxiri cozido. Ela coa. Aí depois no outro dia a gente tá tomando, tá doce que é uma maravilha. Aí você toma, enche a barriga. E ela tá por ali plantando uma coisa, eu estou do outro lado coivarando. Aí todas crianças que vão lá em casa, eles estão lá alegres tomando caxirizinho, vão lá molhar o beijuzinho, comem. Eles são acostumados. Aí quando a gente vem pra cidade já muda. Aí nós compramos verdura pra temperar um peixe, pra temperar um galeto, uma carne. A gente vai lá na rua, compra, porque os dois lados são bons, nada não é ruim pra nós. Porque na comunidade é damorida, e aqui na cidade a gente já é, comida já é diferente. A gente pode até comprar uma marmitex pras crianças comerem e eles acham bom. Quer dizer que eles não estranham...

DF: A alimentação.

AM: A alimentação. Eles acham bons os dois lados. Tan-to como o deles como o da cidade. Da cidade já muda por causa do tempero. Lá dentro o tempero é a pimenta, mas só que eles não comem assim a pimenta bem não. Aí tem o pimentão que eles colocam dentro da pimenta, dentro da panelinha deles. Aí corta uma carnezinha dentro, aquilo tipo uma pimenta. Eles acham bom, mas só que pimentão não arde. Molha o pirãozinho e tal, aí vai lá no bujão de caxiri, mistura com açúcar. E a banana tá pendurada; eles vão lá, descascam e comem a hora que eles querem. Suou, já vão pro igarapé. Bem estão aí gritando: “Ei, ei, ei.” [risos] A avó deles: “Cuidado, cuidado, cuidado com a água!” Que lá eu acho que sucuriju não tem, cobra. E lá eles estão vendo tudinho. É praia, né? É um lugar de pé [...]. Então, estão lá olhando tudinho. Se tiver algum bicho, já gritam logo. Aí eles estão lá, graças a Deus!, nunca adoeceu ninguém. Dessa forma que a gente tá debatendo, né?

DF: Que bom.

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AM: É um lugar muito bom. Frio. Essa hora tá gelado. Já o indígena, eles são acostumados. Como não tem coberta, professor, eles acendem fogo. Quando é de madrugada estão lá se esquentando lá. O fogo aqui aceso, e eles estão lá no calor do fogo, né? Tá lá o frio, tá fazendo frio, mas eles são acostumados. Quando vem pra cá, pro interior, pra ci-dade, eles têm a camazinha deles, que a cama [...] esquenta, embaixo não é como uma rede, que esfria quando o vento bate. Aí a casa com sofá já não tem como entrar a frieza por baixo. Já lá na rede, corre lá pra beira do fogo. Aí acende o fogo e eles estão lá se esquentando. Aí, daqui um pouco eles vão, esquentam a coberta e vão pra rede, se embrulham. Amanhece dormindo. Então, isso é, é o costume. É o costume da tradição indígena. Isso aí nunca eles vão esquecer. Isso aí já é história deles, é das crianças. Nós como tuxauas, nós apoiamos muito esse lado. Nunca ninguém vai esquecer. Isso aí é, nós vamos preservar até onde Deus permitir que a gente viva assim, né? Aí os senhores têm a parte do senhor como, como professores, não vão fazer isso. Quando vocês forem dormir lá dentro, vocês vão estranhar, porque as crianças estão tudo na beira do fogo. “Oh meu Deus! Isso vai...” “Vai, vai pegar...”, como é que chama? “Uma doença.”

DF: Uma friagem.

AM: Pegar uma quentura com frio. Dá uma doença aí que pode matar. Mas são acostumados já àquilo. [...]

DF: E os indígenas antigos, eles tinham muitos rituais. É claro, a Igreja Católica tem o ritual dela...

AM: Isso.

DF: Esses rituais ainda existem na comunidade do senhor ou não existem mais? O senhor preserva? [...]

AM: Eu pelo menos como mais idoso, que a gente sempre canta um parixarazinho. Às vezes, quando eu quero cantar, minhas crianças zombam de mim: “Ah, vovô tá cantando sem ninguém nem saber o que é isso!” “Ah, meus filhos, isso aqui é de vocês mesmo.”

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DF: Justamente.

AM: Isso aqui veio do meu pai, veio dos meus avôs. Eles deixaram pra nós hoje. Nós temos esse, esse, esse cântico de parixara, de (como se diz?), de tempo de Natal, tem o areruia, tem o parixara. E também nós preservamos muitas orações que hoje também fazem parte da saúde, das crianças que estão com diarreia ou que estão assustados, a gente vai. A gente, como mais velho, a gente reza em cima duma criança e aí fica bom, né? Então, essa preservação professor, a gente tem sempre em dia, em forma mesmo assim de, de estar com ela, né?, E que mais?

DF: Em relação a esses rituais mesmo, essas coisas da tradição mais antiga.

AM: Isso.

DF: Se um dia o senhor quiser que a gente vá lá pra ver o senhor cantar é só falar que a gente vai.

AM: Tá bom. Pode ir lá que a gente vai imitar por lá.

DF: Isso.

AM: E que mais em outros tempos?

DF: Se o senhor lembrar, depois o senhor pode falar alguma coisa. Outra coisa: como o senhor vê o índio hoje?

AM: Professor, falar a verdade é preciso. Hoje o índio, só o nome dele que é índio. Mas ele tá ficando sabido hoje. Ah, já tem índio já na faculdade também, [...] estudando. Estu-dando aí, já tá estudando Turismo; já tá estudando, é uma vida melhor. Não é como estamos dizendo, já tem gente na faculdade aqui, aqui mesmo na [...] Então, hoje, eu acho que... é como dissemos assim, a tradição, nunca ninguém vai deixar. Mas hoje também o povo indígena, eles estão desenvolvendo muito na tecnologia da civilização. Nós já temos um filho que é, acabou de dizer, já temos professora já, da universidade, da UERR, desse pessoal aí, já ensinando os brancos já, né?Que coisa bonita né? É uma coisa bonita a gente preservar isso. Mas o dia que ela for lá dentro, ela como diretora, ela vai lá

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na comunidade, ela vai comer damorida. Com certeza. Ela vai lá comer damorida, tomar o caxiri, o aluá de milho. Ela nunca vai deixar. Então, hoje o povo já tá com a visão mais longe. Já estão pensando de viver bem. Hoje eles não querem mais viver como os antepassados passaram. Querem viver numa sociedade melhor. Bem estar, como acabamos de dizer. Tá chegando muita coisa, professor. Então, quer dizer que ela fortalece muito. Hoje nós estamos conversando, os senhores que são educadores de todo movimento, mas aí a gente tá conversando hoje, isso aí nunca vai se acabar. Isso aqui vai continuar mais pra frente, continuar. Com o pouco, a comunidade vai, vai olhando que nós temos direito de viver assim também. Nós temos direito de viver. Acabou. Ninguém quer mais viver sofrendo. Ninguém quer mais viver sofren-do. Queremos hoje ter uma estrada na nossa casa. Hoje nós queremos ter uma ambulância, uma saúde de qualidade na nossa comunidade. Que lá, quem mora distante, é preciso ter uma saúde de qualidade, que a saúde, a doença, ela não espera que dia vai pegar a gente, mas tendo uma pessoa que já é formado, que já é técnico de laboratório, de alguma coisa, eles têm, vão levar uma história boa pra comunidade. [...] Aí pega, olha, hoje a coisa tá tão mudada que as crianças hoje não estão estudando a história dos pais delas não, de jeito nenhum. Sabe o que elas estão estudando? Estão dizendo assim, professores, estão dizendo: “Olha, quem foi que descobriu o Brasil?” Aí a criança... [risos] Já estão lá em cima procurando um meio de fortalecer mais. Aí diz assim: “Quem foi que descobriu o Brasil?” A professora dizendo pra nós, na escola aqui. Já estudei também um pouquinho aí; nessa escola daí, na escolinha. A Professora vira dizendo: “Quem foi que descobriu o Brasil, seu Armando, o senhor sabe?” Eu digo: “Professora, eu acho que isso aí nunca foi descoberto não, de jeito nenhum. Pedro Álvares Cabral, que chegou, ele não descobriu, professora, ele invadiu, já tinha morador. Já tinha o povo nativo dessa terra. Quando ele chegou, estão dizendo que ele descobriu. Como que ele descobriu? Não descobriu. Morava indígena lá dentro. Já moravam os indí-genas lá dentro. Agora, podia na história dizer assim: ‘Pedro

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Álvares Cabral invadiu o Brasil!’, aí eu acredito, professora, porque ele invadiu mesmo. Já existia índio dentro.”

DF: E ela falava o quê?

AM: Já existiam moradores. Aí ela dizia: “É verdade seu Armando. O senhor tá certo. É verdade.” [risos] Mas, esta-mos dizendo, nós, no livro, professores, estamos já contando a história que foi ele quem descobriu. Na verdade nem é. Na verdade já moravam moradores, não é? Ela sorriu com isso, a professora.

DF: Sei. E nesse mesmo caminho, como é que o senhor vê a questão indígena hoje? Essa luta toda?

AM: Bom, a luta nossa, como liderança, é de, é de en-contrar uma solução de viver melhor; viver melhor; todo mundo ter o seu direito. Assim como branco tem, nós temos também direito de viver como a gente pensa. Aí, como é que se diz, a gente pensa nesse lado do direito. Às vezes, muitas vezes, nossas autoridades não estão dando direito pras pessoas. Eles estão querendo nos oprimir; viver; que a gente viva assim na escravidão. Hoje ninguém quer mais viver assim não. Eu não quero mais viver. A Funai primeiramente tá um pouquinho acordando, porque nós estamos dando em cima deles: “Não queremos que seja assim, delegado. Não queremos. E outra, que o senhor diz que é nosso assessor, mas é nosso assessor de jeito nenhum. Quem é assessor do senhor somos nós tuxauas, nós pagamos mensalidade pro senhor. O senhor pega o nome de todas as crianças da nossa comunidade. Pra onde que o senhor leva? O senhor leva só em Brasília? Não. O senhor daqui engaveta e leva lá pro ex-terior, lá pra Roma, lá não sei pra onde, pra outro canto. Aí, com isso, o senhor arrecada dinheiro.” “Eu quero três bilhões ou seis bilhões ou dez bilhões de reais ou de dólares.” Aquilo vem pra nós, quer dizer: “Isso aqui é pra ajudar comunidade pobre, vocês sabem, nós vamos levar.” Por isso ele diz a nossa história. “Mas, na verdade, nunca chegou nenhum real pra comunidade, nenhum real, delegado. Então, quer dizer que o senhor mente muito. O senhor mente muito esse lado. Não pode ser assim não. O senhor tem que aprender.

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Quando o senhor vai outra vez levar nossa história pra outros cantos e trazer dinheiro, contribui pra nós, dá ao menos cem mil reais; não pode, ao menos cinquenta mil ou vinte mil reais. Tudo serve pra comunidade!” Aí nós dissemos: “Não, agora o delegado tá preservando a comunidade. Ele foi pro exterior; trouxe dinheiro; agora ele tá contribuindo. Agora mesmo dizendo essa história bonita pro senhor: “O senhor como delegado não, o senhor pega, todo dia tá trocando de carro, carro dos melhores carros né, e nós ficamos na pior.” Dizendo: “Não pode tuxaua derrubar madeira.” Que isso? Nós vamos acabar com isso, vamos acabar com isso sincera-mente, nós estamos enjoados. “Vai chegar o dia delegado, de nós eliminar vocês. Acabar com isso. Lá dentro ninguém vai mais aceitar vocês lá dentro, de jeito nenhum. Se aceitar vai pro cacete lá dentro, vai pra borduna, não tem jeito né?” Aí como é que a gente vai aceitar as pessoas que só vem nos enganando. Só levando nossa história e não trazendo nada pra ninguém. Não traz projeto, não planta projeto. E aí coitados, a gente de machado, terçado, nós estamos cansa-dos de cortar. Hoje nós queremos uma motosserra pra tirar madeira bem na linha. Bater a linha, tirar umas madeiras fazer suas casas bem arrumadas. É isso que nós estamos queren-do. “Acabou, a gente tá cortando de machado, o braço da gente tá cansado delegado. Mostra um projeto pra nós, pra nós ficarmos animados com o senhor. Que o senhor não é nosso patrão de jeito nenhum. Patrão somos nós, tuxauas e lá dentro quem manda é a comunidade, é o tuxaua. Não é o senhor que vai mandar lá dentro, botar opiniões lá dentro. Opinião tem que sair de dentro da nossa comunidade pro senhor. Se no caso, se o senhor aceitar, tudo bem, senão fica lá dentro mesmo. Opinião fica com as lideranças lá dentro. É isso nosso objetivo.” Nossa história é essa. É a melhor coisa.

DF: E o Governo Federal?

AM: Governo Federal, ele tá aí né? Ele diz que apoia um lado, apoia um lado, apoia outro lado. Mas na verdade nós temos que saber onde que nós estamos mesmo. Porque senão nunca, ninguém vai conseguir nosso objetivo, de às vezes até de viver bem. O Governo Federal, ele tá abrindo

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51 Secretário Estadual da Secretaria do Índio de Ro-raima, Adriano Nascimento, à época.

uns projetos, tá abrindo as portas pra uns projetos, pras comunidades, pra associação. Às vezes, muita das vezes, nosso presidente, nós mesmos lideranças, muita das vezes não tá se manifestando a procurar. Aí onde caem os outros mais espertos, pegam o projeto. Aqui na associação era pra vir nove mil reais. E as outras comunidades comeram. E aí nós temos outros projetos, de um caminhão e uma toyo-ta cabina dupla pra vir pra cá, pra associação e até agora nunca ninguém conseguiu. Mas já fomos lá, formamos sete tuxauas e fomos lá na secretaria lá do índio, procurar do seu Adriano.51 Ele disse, se negou pra nós: “Eh, rapaz, cê sabe que Uiramutã mora muito distante de vocês, precisa ter um caminhão e tal.” Então, quer dizer que o negócio tá por aí. “Olha, administrador, seu Adriano, nós vamos procurar esse negócio. Esse negócio tá é com papo furado. O senhor vai aprender é cuidar das coisas, senão nós vamos colocar é outro administrador, porque assim não vai correr nada em frente. O senhor só comendo nosso dinheiro, comendo nosso dinheiro. Nós temos a sede lá em cima, podendo comunicar pra gente vir resolver esse problema, aí o senhor nunca fez isso. A gente vem dia quinze, depois da eleição a gente vem aqui. A gente vem de dez tuxauas, vem aqui nessa mesa. Nós vamos bater na sua porta. O senhor vai ficar muito chateado com a gente, mas nós vamos procurar os nossos direitos.” Aí ele disse: “Eh, tuxauas, tá bom. Depois daí pra lá a gente vai ajeitar, porque parece que foi alugado por dois meses o caminhão.” Quer dizer que ele já disse, já ia dizendo de novo, voltando a palavra dizendo que o caminhão. “Eu acho que tá por aí.” É caminhão dele, tá por aí. Tá chegando. Então, tudo isso a gente tá vendo professor, a gente tá citando essa história, porque é preciso a gente conversar mesmo, né?

DF: Tá certo. Agora me diga uma coisa: hoje, que animais têm hoje na comunidade, porque os indígenas sempre gosta-ram de ter animal ao redor deles, né? Hoje como é que tá lá?

AM: Como assim, professor?

DF: Eu falo: cria galinha, cria...

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AM: Ah sim, tá certo. Vamos criar, professor, com certeza. Isso aí ninguém vai deixar de ter uma criaçãozinha. Na verda-de, o que estamos falando é de melhoria. A melhoria não é só pra gente ficar dentro de um lugar, às vezes ter bastante sítio e não ter criação ao lado. Hoje estamos pensando de ter criação de galinha; estamos pensando de ter um viveiro de peixe, porque eu vou ficar velho, não vou poder pegar meu canicinho pra pescar lá no Parimé. Então, lá no Uraricoera, é longe. Pode jacaré-açu vai lá, pegar uma pessoa né? [...] Então, estando lá pertinho, uma lagoazinha, próximo, aí já posso ir lá. De manhãzinha, já estou com um peixinho; as crianças estão fritando. Quanto mais próximo, é melhor. Aí a gente se sente que tá seguro, porque ninguém pode facilitar hoje, nós estamos pensando de ir viver numa, de melhor, de melhor vida. Então, a gente tem que procurar criando, crian-do galinha. Criando, já os outros criam confusão. Ninguém quer confusão.

DF: Justamente.

AM: Estamos querendo criar criatório de peixe, de gali-nha, de alguma coisa. [...]

DF: Agora vamos mudar um pouco. O senhor já falou da comunidade...

AM: Sim.

DF: Em relação à história do povo, por exemplo, as histó-rias, os mitos, a tradição. Por exemplo, a história do timbó, o senhor sabe?

AM: Bom, a história do timbó, eu sei; nós somos vetera-nos nisso, na qual nós morávamos no Cumaná, no Ubaru, aí porque é uma história assim: você pega duas, três raizinhas de timbó, aí tem o igarapezinho, corrente. Aí você vai lá, olha um bocado de piabinha, aqueles peixinhos ali por dentro. Duas raízes de timbó, você bate elas bem batido e solta elas. Aquela golda dela desce. Na hora que bate nos bichinhos, já vão ficando doidos, vão subindo e vão morrendo. Aí vai, vai, ela vai descendo. Aonde ela vai tendo aquela fortidão do timbó, ela vai matando: tam, tam, tam, tam, tam, tam. Mata

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até cem metros, duzentos metros, ela vai descendo, né? Aí chegou naquele limite, você já pegou, às vezes, um saco, dois sacos de peixinho. Às vezes nem é isso também que já escasseia com o timbó, que ela mata tudo. Desde filhozinho assim que tá enterrado por ali na lama, aquele bichinho, passa lá por dentro os bichinhos cheiram e já vão subindo, subindo. Então, essa história do timbó, ela mata rápido. Mata rápido. E joga num igarapé rico aí, que tenha peixe, meu Deus, isso aí vai peixe pra todo lado, pulando aí. Surubim, pirarara, tudo que vai batendo e vai subindo. São dois.

DF: O senhor pode contar a história de como surgiu o timbó?

AM: A história do timbó.

DF: Como ela surgiu?

AM: Eu não sei, rapaz, como que ela surgiu. Mas diz que foi duma pessoa, uma pessoa, que é a história dela. Diz que a história do timbó ela veio de uma pessoa que tinha, ela tava tão suja, aí a mãe dele não acreditava nele. “Vou já banhar meu filho!” Aí ela pegou, era a história, é a história. É uma história, é uma lenda.

DF: É assim mesmo que a gente quer ouvir.

AM: Aí quando ele, ela lavou o nenenzinho assim na água, aí peixe começou a boiar, sabe, a pular só com o cheiro do menino. Aí, “Óxente, que diacho é isso?” Aí foi piando e os peixes foram morrendo. Lá pra baixo foi enfraquecendo, porque o sujo da criança, que ele tava sujozinho, foi enfraque-cendo, a água foi tomando de conta, né? Aí ampliou, cresceu grande. Aí os peixes ficaram vivos pelo meio, circulando. Essa é a história do timbó. Tem timbó que até, é que ela é como uma pessoa que foi lenda mesmo, mas que tá sendo verdade porque se você tá nesse timbó, se você verteu água dentro dela, aí ela zanga. Zanga, pode estar branco, branco de timbó, mas não morre mais nada. Ela zanga, porque ela não gosta de estar vendo esse negócio assim.

DF: Quem?

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52 Terêncio Luiz Silva foi en-trevistado na segunda fase do Projeto Panton pia’. Suas narrativas sairão no terceiro volume, além de um volume especial com 79 cantos, a ser lançado pelo Museu do Índio do RJ, cantados por ele e sua esposa Zenita Lima.

AM: Fazer xixi dentro da água assim, depois que você bate ela, que vai descendo, na hora que o xixi desce, acabou.

DF: Ah, Eh? [risos]

AM: Já zangou. Isso já é história, é uma pessoa esse timbó. Aí na hora que bate eu digo: “Não rapaz, então tu não quer comer peixe?” Aí ela esfria timbó tudinho. Pode estar branco que seja, não morre mais não. Acaba.

DF: Entendi.

AM: Ficam por dentro assim. Vão saindo da água, limpan-do, varando por baixo.

LS: Aí não morre mais.

AM: Aí não morre mais. Zanga, ela zanga. Por isso, quando vão essas pessoas bater timbó, eles não levam criança assim, como essa daí assim [aponta pra uma criança pequena]. Só vão os velhos, que já sabem. “Cuidado! Vocês vão bater timbó, cuidado pro timbó não zangar. Não vão fumar, nem fazer nada assim. Nós não vamos mostrar cobra, caranguejo, assim, com os dedos. Deixa ele assim, vai ficar só olhando.” Só vão os velhos que vão bater timbó. Essa história do tim-bó. Criança assim não tem esse negócio não. Pega aí, corta o negócio assim com faca, aí o bichinho zanga, ele zanga, pronto, aí não dá mais, não tem, não vai mais comer o peixe. Aí pronto. Esfria, não morre nada não. Morre alguns que beberam logo na hora.

DF: E, por exemplo, do Macunaima, sabe alguma coisa? O que o povo do senhor já contou? Já ouviu contar?

AM: Bom, sobre Macunaima, eu não tenho muito bem a história, mas o senhor vai encontrar a história dele é na comunidade do Ubaru, lá com o seu Terêncio.52 Eu acho que o seu Terêncio tem a estoriazinha dele, do Macunaima.

DF: O seu Terêncio?

AM: O seu Terêncio Luíz. Ele tem essa história do Macu-naima. Ele vai contar essa história, que ele tem essa história porque eu nunca escutei, quer dizer, já escutei assim, mas

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não tenho lembrança. Mas seu Terêncio tem essa lembrança de Macunaima.

DF: Como se fala Macunaima em macuxi?

AM: Makunaimî. […]

DF: Me fale, então, do Canaimé. [...]

AM: Kanaimî, ele diz que é um índio que sai daí de dentro das matas, dos lugares, fora, só pra fazer o mal das pessoas. Eles não pegam assim pessoas novas, só pegam gente velha, idosos que... Aqui na cidade, têm duas histórias que o Canai-mé é aquele que mata o índio. Já o Canaimé da cidade é o bandido. Agride, caceta peão. “Não, o cara morreu. Bandido que matou!” Pessoas drogadas que andam por aí, doido. Vê a gente, bota na gente, caceta, mata e deixa por aí na rua né? Esse é o Canaimé do branco; é o bandido. Já do índio é o Canaimé que fica por aí escondido, aí, por aí; olhando aquelas velhinhas por ali trabalhando; aí vai com jeito pra agarrar ela e aí machuca ela. Machuca pelo coração, pela barriga, pula em cima, mata. Faz o que ele quiser. Aí lá que a velhinha, coitada, já não aguenta mais nem levar a mandioca, já vai dando febre. Quando chega lá, a bichinha morre. Aí quando vão ver, tem até vara enfiada aqui na tripa da pobrezinha, folha, esses negócios. Tudo eles maltratam a gente. Inclusive a história desse finado meu filho que morreu, esse que morreu aqui, desse alunozinho, de vinte e três anos. Ele, foi o Canaimé que matou. Lá na minha comunidade, pegaram ele lá. Dizem, ele viu que era um homem barbado (isso quando tava bem, né?): “Pai, um homem barbado me segurou, aí tampou minha boca.” Aí vinha uns colegas dele e: “Ei, ei.” Gritando pra ele, ele tava com boca tampada. Aí o cara se afastou, ele tava pra se engasgar. E ele tinha forçazinha no braço, tinha vinte e dois anos ele. Teve força lá, aí escapuliu e gritou: “Ei!” Quan-do os caras chegaram lá, dizem que ele já tinha se escondido no mato. Aí, daí pra cá, ele já adoeceu, adoeceu, adoeceu; febre, febre, febre: “O que é isso, meu filho?” Compramos medicamento. O professor, não, o diretor, não, o coisa da saúde, agente da saúde tratou dele. Melhorou, né? Com isso, nós viemos pra cá. Aqui ele disse que tinha, já tinha visto ele

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mesmo aqui. Ele veio aqui e: “Ah, tu tá aqui, né? Nós vamos te matar.” Quando ele ficava aí com as crianças meio-dia, aí ele ficava aí, e diz que esse homem veio. Esse mesmo, barbudo, veio aí. “Ah, tu tá aqui, né? Mas tu não vai escapar não, cara. Tu não vai escapar não...” “Ei, pô, eu vou dizer pro papai o que tu disse.” Ele contou, mas, eu andei atrás desse cara um bocado de dias por aqui, doido pra conversar. Eu digo: “Vou pegar esse cara hoje.” Mas nunca encontrei com ele. Quando encontrava era correndo. Ia embora pra Boa Vista. Aí eu andei muito tempo caçando ele. Mas isso é história do Canaimé, né? Matou pessoas, enforcou, bagunçou, matou. Então, é a história...

DF: E ele faz isso por nada?

AM: Por nada. Por inveja, às vezes. Que às vezes você é trabalhador; às vezes você é tuxaua bom, acolhedor. Aí ele vai e: “Não, esse tuxaua aqui nós vamos matar logo ele, pra ele não levar segredo muito pra frente. Esse daqui já dá pra eliminar ele.” Então, vai, às vezes tá por aí, às vezes forma um grupo de cinco peões, Canaimé deles. Aí chega lá, ataca a gente sem a gente ver, derruba, mata, ou então machuca o cara lá, só chega gritando na casa. Nem doutor dá jeito, porque já tá todo arrebentado. Colocam vara no bumbum da pessoa, lá pra dentro tudo. Cortam a língua, tudo bagunçado. É assim a história do Canaimé.

DF: O senhor já ouviu falar como a pessoa faz pra virar um Canaimé? Por que ela vira?

AM: Não, professor, é o seguinte: esse Canaimé é uma qualquer pessoa que vem de fora, lá de outros cantos. Aí, eles ficam com inveja. Às vezes, outra pessoa manda: “Rapaz, tu garante matar?” “Garanto!” “Então vai lá, faz o Canaimé pro cara lá.” Ele vai, ele corta uns couros de mambira, de taman-duá, se tiver; fura um buraco, faz aquela máscara, ele faz a máscara pra poder ver e a pessoa se assustar. Eles colocam aquelas vestes, aquelas roupas de tamanduá. Tira o couro e se veste, e o cara vê aquele negócio feio, viche Maria, já cai desmaiado. É onde eles pegam e matam a pessoa. É qualquer pessoa que venha de fora. Parentes mesmo, parentes que

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moram assim distante, eles fazem isso com povos indígenas. Qualquer um né? Então, isso aí que é chamado Canaimé. É o Canaimé do índio. E do branco é bandido.

DF: Bandido.

AM: Eh.

DF: O senhor sabe de alguma outra história parecida com essa, da comunidade, que o senhor ouviu alguma vez alguém contando? O senhor sabe de alguma?

AM: Professor, sei não, professor.

DF: Sabe não?

AM: Sei não. Se eu sei, mas tem que lembrar.

DF: Aquela história da mulher que foi pega pelo macaco. Já ouviu falar ou não?

AM: Não, senhor.

DF: Não?

AM: Não, senhor.

DF: Que ela morou com o macaco, não?

AM: A história que eu sei é de um homem, justamente esse Canaimé. Ele tinha matado uma pessoa, aí ele dormiu numa maloca longe, em cima da serra. Aí, em cima, anda-va uns caçadores, caçadores de veado. “Bora caçar por aí? Bora pegar...” Aí, pegaram suas flechas por aí. Aí lá de baixo encontraram o cara dormindo lá, assim escornado, só soninho. A noite toda tinha andado por aí, nas comuni-dades matando gente. Aí tava dormindo lá, pelado ainda. Aí o cara diz: “Rapaz, o que nós vamos fazer? Nós vamos amarrar o grão do cara aí com a corda. Aí tiraram a corda, o arco novo, aquela corda que é de, de curauara, aquela que é dura que só. Amarraram o coisa do cara lá pra trás. Ele tava com a perna encolhida, bem encolhidinha e amarraram aqui no mocotó dele. Bacana. Deram um nó, acocharam ele devagar aí amarraram aqui no mocotó dele. Aí “Agora nós vamos correr, nós vamos gritando.” Aí lá vem: “Ia! Ia! Ia!” gritando, aquele pessoal, né? E aí o cara acordou assim, que

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ele foi correr assim...

DF: Que espichou a perna.[risos]

AM: Que ele foi espichar a perna assim, ah, o bicho en-dureceu. Aí quando endureceu, aí os cabras já vinham perto. Gritou, aí deu soco mesmo nas pernas! Curauara é corda grossa. E se escapou. Sacou e saiu gritando, correndo aí: “Pega, pega o cara.” Inda pega. Entrou no igapó aí e sumiu, sangueira atrás. Se capou o homem, com curauara amarrada, com a perna assim encolhida, que esticou, sacou tudo. [...] Como que diz assim: “Pode ficar o coisa lá, mas eu corro.” [risos]. Isso é história do homem, do Canaimé que encontra-ram. Isso é história não, isso é verdade que aconteceu. Meu pai e esses nossos tios antigos, eles contam essa história. “É verdade meu filho, isso aí não é mentira não.” Isso é verdade. Tá como lenda, uma historinha. Pois é, professor.

DF: Quando morre alguém na comunidade é igual a anti-gamente ou é como o branco? Como se faz?

AM: Bom, quando a gente, quando morre na comunida-de, a gente fica de luto mais ou menos um ano, pra poder esquecer da pessoa. A gente fica, a família fica sempre, entra na casa, sente falta. Olha pra um canto aí vê, não vê ninguém. Então, aquela (como diz?), aquela tristeza pra sair da comunidade ou da família, o que seja, custa a sair. Assim mesmo (como se diz?) é uma comunidade. A tristeza de uma comunidade, ela custa a sair. Passa um ano, dois anos, pra esquecer.

DF: É enterrado na cidade mesmo ou não?

AM: Não senhor. Nós pedimos pra enterrar na nossa comunidade. Porque lá dentro, todo mundo tá vendo: a população, as crianças, a família. Pra ver pela última vez, o cara abre o caixão, vê, quando vem de Boa Vista. Aí vê, choram muito. Aí depois eles vão ver mais outra vez, aí faz oração: pedir a Deus que leve o corpo dessa pessoa. É, então é assim, professor, a história da tristeza quando morre uma pessoa da comunidade.

DF: E a parte da educação da comunidade? [...] Tem que ir

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53 Fátima Gouveia, profes-sora do ex-território, muito respeitada na cidade de Pacaraima.

pra cidade, tem educação lá na comunidade? Como é que é?

AM: Eh, na minha, ela tá recém, ela ainda não tem escolas. Não tem escola não, não foram preparadas ainda. Eu estive conversando antes de ontem com a professora Fátima.53 Eu falei pra ela que queria fazer uma escola ali perto: “Não, tuxaua, pode fazer. Faz que nós vamos mandar professor pra lá. Pode fazer. Faz um posto de saúde que fica perto, pra não estar correndo.” Fica perto. Tem o telefonezinho, de lá liga pro hospital, mas de qualquer forma fica longe. Tem que ter uma casa de saúde e uma escolinha perto, que essas crianças quando vão começando a fazer a 5ª série ou qualquer grau maior, nós já temos as nossas casas ali, que é pra acomodar eles. Daí eles vão pra escola, daí eles vem pra cá, dorme aí. Nós estamos na mata com outras crianças menores que estão crescendo. [...]

DF: Hoje, qual é a principal dificuldade encontrada pela comunidade?

AM: A principal, como é que se diz?

DF: Dificuldade. A coisa mais difícil.

AM: Bom, a dificuldade que nós estamos tendo é porque ninguém tem uma estradinha lá dentro. Só umas vicinais, mas uma estrada no momento não, é no trilho. Essa é a nossa dificuldade, mas de resto não tem dificuldade nenhuma. Só a estrada mesmo que nós estamos precisando e nós vamos trabalhar com isso.

DF: E o senhor percebe algum tipo de preconceito em relação aos indígenas ou não? Já tá tudo igual ou as pessoas ainda têm algum tipo de receio?

AM: Bom, os preconceitos que a gente vê, que hoje tá na, estamos quase, quase não, estamos iguais. O povo brasileiro, ele não, acho que nós como indígenas eu não, não estou sentindo que nós estamos tendo preconceito ainda nesse momento. Até porque nós estamos, quer dizer, nós usamos só uma parte de brasilidade. Todos nós somos brasileiros, não tem preconceito de, vamos dizer assim, de (de como se diz?

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[...]), de dizer que o senhor não tem direito, né? Vamos dizer assim. Todos nós temos direito. Assim como o senhor tem direito, o indígena também tem sua parte de direito também. Só, vamos dizer assim, nós usamos a igualdade igual. Cada um de nós, indígenas, temos direito como os outros têm também, o próprio branco. Preconceito não tem assim de dizer que a gente é...

DF: Diferente.

AM: Diferente. Desclassificar ninguém: “Ah, porque fu-lano é preto, fulano é branco.” Não. Preconceito então, pra mim, eu acho dentro de mim que somos, todo mundo somos iguais. [...] O que pode existir, porque um pensa dum jeito, como o branco, e nós também pensamos diferente deles também. Mas quase o mesmo caminho que o outro vem pen-sando, a gente vem pensando junto, porque até, porque nós estamos tendo, e vendo, nós estamos dentro da sociedade, civilização. Hoje não tem mais quase índio que anda naqueles tempos como andava tempos passados. Hoje nós estamos cada vez mais se desenvolvendo, vendo a parceria dos outros brancos. E pra mim, ninguém tem preconceito de...

DF: Outra coisa, como é que o senhor vê a questão: se, por um lado, o índio é dono da terra; por outro ele não é. Porque a terra pertence, na realidade, à União.

AM: À União.

DF: O índio só é um beneficiário.

AM: Sim.

DF: Como é que o senhor vê isso, esse negócio de, de repente a gente luta por uma coisa, pra estar na terra, mas ao mesmo tempo você não pode usufruir a terra direito, porque ela é da União?

AM: Isso.

DF: Como é que o senhor vê essa questão?

AM: Bom, essa questão a gente tá vendo, que... Eu estive conversando, eu lancei uma pergunta pro delegado da Polícia

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Federal, eu disse assim: “Delegado, o senhor, uma pergunta pro senhor, que dizem que a terra é da União. Mas essa União é do povo brasileiro ou do povo estrangeiro? Porque, do que eu estou entendendo um pouquinho que tá dizendo, a terra é da União. Então, a terra é do povo brasileiro. É isso delegado?” Eu falei pra ele. “É rapaz, é da União, de todos, né?”, e não quis me explicar direito, mas disse que a terra é da União. Tornei perguntar dele de novo o que era União, que ninguém tava sabendo o que é essa União. A União que nós sabemos dentro da comunidade é que estamos unidos, todo mundo trabalhando de união, só em um objetivo só. É o que eu entendo de união. Aí ele diz União é, não sei como, não sei nem como dizer, professor, pro senhor que até agora eu estou confuso.

DF: Não tá entendendo né?

AM: Não estou entendendo que é essa União. Eu acho que...

DF: União é do governo, é do Brasil?

AM: Do Brasil sim, do Governo Federal.

DF: Eh, mas é assim, uma terra que pertence a todos os brasileiros.

AM: Todos brasileiros. Tá certo. Eh.

DF: A palavra significa isso, entendeu?

AM: Tá certo. Agora eu entendi como é que é.

DF: Não pertence só ao Devair, pertence a todos.

AM: Todo mundo, né?

DF: Isso. E é gerenciado pelo governo. É o governo que gerencia. Como se fosse um parque, né?

AM: Isso.

DF: O que é muito complicado pro indígena.

AM: Não, pra mim, quer dizer, não é complicado. Isso que eles estão fazendo, não acho que é complicado, porque tem que ser assim, né? A gente tem que trabalhar conforme

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eles estão pensando.

DF: A legislação.

AM: A legislação. Aí pra mim não acho que é difícil. Quanto mais a gente tem uns assessores que administram. Agora, o que eu posso dizer, professor, é que ninguém pode dar essa nossa terra de mão beijada pro povo de fora, de jeito nenhum. [...] Aí que nós temos que botar o pé na parede. Qual essa União que eles estão pensando? Qual essa União? Será que é só pro povo estrangeiro, pros americanos né? Ameri-canos estão aí ao nosso lado. Eles estão nos ameaçando. Eles estão aí de prontidão mesmo só pra acabar o Brasil, mas a gente tá vendo que, eu não acredito que no meio de tanto povo, autoridades, a gente vai dar uma coisa de mão beijada pra esse povo. Aí fica ruim. Aí, quer dizer que não existem autoridades então, dentro do Brasil. Se onde existir autorida-de, cadê que a Venezuela tá aceitando essas propostas desse povo de fora? Não estão. Aí é venezuelano, só eles mesmos ali dentro. Tá aí presidente Hugo Chaves, que ele é historiador, disse. A gente vê comentário dele na rádio, em todo canto a gente vê a história dele. Ali quem manda é venezuelano, o povo venezuelano ali. Então, quer dizer que assim podia ser também o nosso Brasil, mas aí a gente vê que, dentro do nosso Brasil, tem muitas pessoas da ONG que moram por aí. Os padres que trazem suas notícias más pra comunidade. A gente vê que a gente tá aceitando ainda, né, estamos acei-tando as propostas deles, eu não sei. O Brasil também tem condições de se manter sem depender de outros países. [...] Eh, só com o trabalho do Brasil. A riqueza tem muito. Tem muita madeira, tem muita mineração que tá parada dentro das áreas. Então, aí o Brasil também tem como se mexer. Ele próprio não precisa estar precisando do povo de fora não, de jeito nenhum. A gente vê esses lados, professor?

DF: E quando eles defendem essa questão da terra, ge-ralmente eles fazem o seguinte, porque o indígena não tem um local fixo...

AM: Eh, exatamente.

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DF: Ele pode estar no Brasil hoje, amanhã ele pode esco-lher ir pra Venezuela, né?

AM: Ham ham.

DF: Ele não tem uma nacionalidade muito fixa nesse sen-tido. Como é que o senhor vê isso? O senhor se considera um brasileiro mesmo ou o senhor se considera um indígena (porque indígena não é brasileiro, porque ele pode estar lá)? O senhor já ouviu sobre isso, não ouviu?

AM: Já, sim senhor. Já ouvi falar isso.

DF: E o que o senhor pensa a respeito disso?

AM: Bom, a respeito disso a gente, quer dizer, não são todos que têm esses pensamentos de dizer: “Não, eu vou...” É como se diz assim, não tem aquele (como é que se diz?) Doutor sem fronteira. Não tem um médico sem fronteira que diz né, que hoje ele tá aqui na guerra do Brasil, amanhã ele tá na guerra da Venezuela, da Guiana. É (como é que chama?), sei que é um médico sem fronteira, parece que diz que ele não tem fronteira.

LS: Da Cruz Vermelha.[...]

AM: Isso. Ele não tem lugar certo. Tá por aqui, tá ali, tá em todo canto, né? Então, eu acho que deve ser assim também. O índio, ele não tem lugar certo, porque, às vezes, quando ele tá com uma moradia, às vezes, há vinte anos, há trinta anos, ele sente que ele tá, às vezes, só. Falta uma estrada, falta um negócio assim e ele vai procurar uma melhoria onde tem mais acesso de alguma coisa. Principalmente de saúde, acesso de estrada pra escoar alguma produçãozinha dele, que hoje estamos pensando em agricultura, de viver melhor. Então, essa melhoria sai que o povo tá se espalhando, procurando uma melhoria melhor aí pra cidade. Pertinho da cidade, na qual a gente tá por aqui também. E aqui a gente tem de fazer o máximo possível de a gente estar numa melhoria melhor.

DF: Entendi.

AM: Sim senhor. É assim a situação.

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DF: Só mais uma questão: vocês continuam caçando e pescando normal?

AM: Eh, essa é nossa tradição. Tradição de caçar, pescar. Isso aí nunca ninguém deixa também, porque isso aí onde a gente vai procurar um mantimento; caçar um jabutizinho por aí, a gente consegue, traz pra casa. Pega um peixe, pega um catituzinho, uma anta, um veado, um negócio assim e a gente vai, mas eu, eu penso assim: já eu quero estar vendo, como diz, uma, a natureza mais próxima. Parece que quando eu era mais novo, eu não pensava assim não. Eu já matei muita caça. Mas agora já estou pensando de preservar. Olhar e di-zer assim, que eu quero ver algum bicho mais perto. Porque com a continuação, eu tenho dito pro meu genro lá dentro: “Olha, essa área aqui de preservação de mata, ninguém vai tirar uma madeira aqui dentro.” Sabe por quê? A gente vai ficando velho, a gente vai precisar de tirar madeira aqui, tem que viajar um quilômetro, dois quilômetros. Então, pra isso nós temos madeira bem perto da casa e é bom pra gente fazer isso. Que aí: os outros dizem assim: “Não, índio não sabe preservar. Índio vai derrubar”, mas a gente também sabe, como estamos dizendo, não são todos que têm essa ideia. Tem outros também, tem ideia boa. Eu não penso isso de acabar a minha natureza que eu tenho dentro, minha preservação ali dentro, que eu quero ver um tucano, macaco pulando pra cima, pra baixo, ali onde nós estamos. Aí eu vou até fazer esses dias uma varrida, um barracozinho de palhinha mesmo, aí colocar uns pés de banana, um jirau assim, meio, mais ou menos uns cinquenta metros assim, ao redor, que é pra eu colocar mais tarde um pesquisador ou turista. “Vai lá olhar!” Eles se sentam naquele barraco, ele vai lá ver passarinho comendo, aqueles pássaros que ele nunca viu. Aí já viu, ele vai e acha bonito ali dentro. Eu quero fazer assim, tipo assim um centro assim de pesquisa, de criação de pássaro. Assim, pra ficar assim.

DF: Que eles venham...

AM: E é bonito.

DF: Claro que é bonito.

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AM: É bonito, todo mundo elogia, ver a natureza tudo próximo da gente. Às vezes tem gente que desmata. Às vezes queima. Faz aquele... os bichinhos vão se acabando. É como próprio a gente mesmo. A gente vai se acabando, nossos avôs vão morrendo, às vezes por causa de não ter um acesso de estrada; não ter um hospital; não ter uma saúde melhor. Vão acabando nossos velhinhos. Então, mesmo assim é a natureza, a criação de pássaro, de outros bichos. A gente quer ver um pássaro bem assim perto, sem ter que andar longe, às vezes nem longe ninguém vai ter mais, que eles vão pegando doença e vão morrendo. E vai acabando a natureza. Então, a preservação nunca ninguém vai conseguir ter ela perto, porque nós mesmos vamos acabando. Então, eu acho que dentro de mim, eu tenho ainda esse sonho de preservar ainda uma área, que é pra mim ver os pássaros perto. É tão bonito ver um sabiá, um achizinho, um pássa-ro cantar perto. As curiquinhas, comendo por cima né? É bonito isso. Isso aí, a gente tem esse sonho de preservar também. Aí a gente tá conversando com nossa, com nosso povo, com dois homens que estão aí, meus genros, então estamos conversando com eles: “Cuidado pra não ofender o bichinho, ele sofre, adoece. Os bichinhos morrem, assim como a gente também.” Eles querem ter vida. Querem ter mais um tempo de vida, porque quem tira a vida é só Deus mesmo, de cada um bichinho. Às vezes nós mesmos acaba-mos com a natureza, com os bichinhos da mata. E lá perto da nossa mata ainda tem muito pássaro assim perto. A gente vê aqueles iapuruzinho cantando, aqueles pássaros tudo próximo. Aí, até meus netos ficam brincando: “Ah! macaco, vem comer banana!” mostra a banana assim pra ele, mas ele não desce, é bicho selvagem, é brabo, ele não vem aqui. Agora, se fosse no mato, ele descia, pegava a banana da mão e levava. Mas são brabos. Mas eles passam bem assim, a gente tá vendo eles passando assim, malinando. Eles gostam de brincadeira também, o macaco, mas só que o bichinho é brabo. Eles não são acostumados. Então, é isso professor. A gente tem ainda esse sonho de preservação ainda dentro da nossa comunidade.

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DF: Quando o senhor vai caçar, em algumas comunidades eles pintam o rosto pra se proteger. Tem alguma coisa assim?

AM: Não, senhor.

DF: Tem não.

AM: Isso aí acho que não. Eu pelo menos já cacei muito, mas nunca pintei rosto não. Mas já usei a, o remédio que é pra atrair eles, o remédio pra atrair.

DF: Tem remédio pra atrair?

AM: Tem sim senhor. Tem remédio pra atrair catitu; tem remédio pra atrair o pássaro, o jacu. Esse remédio ele vem bem assim perto de você, ele chega pulando parece que é o remédio que atrai ele, né?

DF: Ah, entendi.

AM: Eh, você tem que matar ele, atirar nele sem errar. Se errou, se ela foi embora, nunca mais se vê. Na hora que você chama ele, em vez de vir ele faz é voar muito longe. Some, desaparece. É um tipo de um remédio que a gente usa pra, chama-se puçanga.

DF: Ah, puçanga!

AM: Eh, puçanga de passarinho, da anta, da cutia, do ve-ado; é puçanga da paca, do catitu, do nambu, do jacu. Tudo eles têm puçanga.

DF: O senhor faz isso até hoje?

AM: Eh, não, nós temos só assim uma. Não sei se o senhor conhece aquela mangarataiazinha que arde. O senhor já viu aquela ervazinha que passa assim?

DF: Acho que não.

AM: Nós temos aí no quintal. Sempre a gente anda por aí. A gente coloca nos olhos pra ninguém ficar cego. Ela limpa algumas coisas que têm na vista da gente, só que dói. A gente coloca na vista. É bom pra gripe também, pra manter no nariz assim, ela tira um pouco da, do micróbio do nariz que dá na gripe, que fica. Então, aí tem esse remédio, a medicina, que

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a gente usa pra visão, pros olhos. Já era pra eu estar cego, a idade que a gente já tá, 56 anos que a gente vai fazer dia 13 de janeiro. Mas até agora eu não senti aquela escuridão, ainda não chegou na minha vista ainda. [...] É porque a gente usa, né, de vez em quando tá usando esse remédio, a medicina. Vem gente de longe comprar medicina aí, desse de jogar no olho. Já veio gente da Venezuela atrás e já vendi um pouco pra eles. “Rapaz, isso aqui é bom! Se você não usar vai ficar cego ligeiro.”

LS: Mas arde?

AM: Arde sim senhora. Ela arde.

LS: Igual à pimenta?

AM: Igual pimenta, mas é mais ou menos...

LS: É menos que pimenta?

AM: É mais do que pimenta, mas ela queima assim na hora. Depois ela vai esfriando. Aí você abre os olhos, chega, você vê aquela clareira assim na vista da gente. Parece que o que cerca é algum remelinho que fica aqui na (como é que é?), eu chamo de remela que fica aqui na vista e ela fica em-baraçando. A gente vê muita coisa na frente né? Mas depois que coloca dentro, ela afasta tudinho pro lado. Aí você tira com paninho e pronto, já sai curado. Fazer que nem o outro, já sai vendo coisa boa!

DF: Em algumas comunidades, ainda eles fazem iniciação dos meninos e das meninas. Por exemplo, quando tá virando rapazinho, tem uns que pegam o dente da piranha e unham o corpo todo. Aí passa depois um negócio pra ele ir ficando forte e se tornar rapaz assim.

AM: Bom professor, esse lado aí eu nunca usei e também nunca vi isso assim na vida.

DF: Nunca viu.

AM: Mas tem um medicamento que é de tradição mesmo, pra gente ficar corredor, ligeiro, forçudo ou esperto no tra-balho. É um remédio quase como esse. É um remediozinho que a gente passa na perna, corta com alguma giletezinha, e

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passa na perna, e o cara não fica preguiçoso. Ele não senta. Se senta, daqui a pouco ele levanta, vai puxar por ali, vai tomar um banho; senta de novo, daqui um tempo ele vai pra ali. Fica tipo uma cutia, uma cutiazinha, ela não come comida certa. Pá, pá, pá, mexe aqui, ela pula pra um canto. [...]. Por isso, professor, esses velhos mais, mais antigos, eles têm esses medicamentos na perna, você vê que ele não para. Só para quando morre. Só quando morre, aí pronto, aí parou, parou mesmo. Aí eu conheço uma, a mãe do seu Terêncio, é uma velhinha, ela usava isso daí. Ela fica, você tá parado e ela fica pisando tam, tam, tam. Doido pra você andar um pouco que é pra poder acompanhar. Fica ali pisando. Tam, tam, tam, tam, tam. Aí, eu malino dela: “Tia, a senhora não vai parar não?” [risos] Fica ali pisando, machucando. Então, esse pessoal dos antigos, eles usavam muito isso, porque quem usa isso aí é esperto. Tá ali lavando prato, tá por ali lavando panela e se for homem tá por ali quebrando uma lenha. Pula ali vai tomar um banho; vai capinar uma coisa; vai plantar uma coisa; plantar banana. Fica ali, puxa, não tem nada. Pega o caniço e vai pra longe, longe, pescaria é longe, mas vai lá. Com uma hora, meia hora ele tá de volta de novo.Tam, tam, tam. “Compadre, faz um negócio aí!” É assim, só se for pra dormir. Às vezes nem pra dormir não dorme. Aí ele pensa assim: “Vou dar uma pescada de noite!” Aí ele pega a lanterna e vai por aí. Chega lá pela madrugada e é assim. É um medicamento que ele faz, é a pessoa caminhar mesmo: andar, andar, andar e não para não. Rapaz, não pode não. Ele fica, o cara fica esperto.

DF: Entendi.

AM: Fazer que nem a história da cutia. O cara caçando diz que viu a cutia roendo uma fruta, um carocinho não sei de quê lá. Longe, diz que ele escutava fazendo tchiii, fazendo aquela zoada. “Que diacho é isso?” e foi chegando perto. Destar que a cutia comia aquele carocinho duro que esquentava o dente. Aí bem logo assim do lado tinha uma pocinha d’água na laje. Aí encostava a cara e enfiava o rostinho dela dentro d’água e o dente esfriava, tchiiii. Que esquentava, era isso

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aí que chiava, e o caçador: “Ih, rapaz, era o dente do bicho que esquentava.” [risos] Ele comia, comia, comia; chegava a estalar mesmo. Quando esquentava, ele tacava a cabeça dentro d’água e subia aquele vapor. Quando coloca o ferro quente assim dentro d’água.

DF: Sei.

AM: Assim mesmo que era cutia. Ele diz: “Rapaz, era cutia.” Aí era assim, a zoada do caçador. [risos]

DF: Essas histórias de cutia, de coisa assim que a gente queria ouvir. Se o senhor tivesse alguma.[...] E do macaco, não tem nenhuma não?

AM: Do Macaco, Macaco ele fez um, encontrou. A Onça era doida pra comer o Macaco, até que encontrou o Macaco lá de jeito. Aí disse: “Ah, compadre, hoje eu lhe como.” Aí o Macaco: “Não compadre. Não me faça isso não. Não me come não!” “Não, hoje eu lhe como.” “Por que compadre?” “Não, porque eu estou com fome e vou lhe comer.” “Ah, não compadre. Hoje vai ter um temporal tão grande e só tem esse pau aqui, compadre, e eu tô cortando um cipó aqui pra mim me amarrar, porque esse pau aqui vai ficar e vai aguentar todo peso do vento.” “Ah não compadre. Tu tem que me amarrar, porque, senão, tu já sabe se amarrar e eu não sei.” “Então tá bom, tu me ajuda a cortar cipó.” Aí o cabra subiu em cima; arrebentava cipó; cortava com o dente; jogou pra baixo e amarrou ele desde o pé. Aí o Macaco: “Fica em pé, compadre, com os braços pra cima.” Aí o cara no pau assim e amarrou no meio até chegar nas mãos aqui. Deixe estar que ficou em pé, aprumadinho. Aí ele disse: “Ah compadre, tu sabe o que que é?” A Onça: “Não compadre.” “Eu vou cortar uma vara e vou te dar uma pisa agora.” [risos] Se mexer, ele não podia se mexer, em pé, todo amarrado: “Mas, compadre, não faça isso!” “Pois é, vai apanhar compadre. Tu tá doido pra me comer, agora vou te dar uma pisa.” Aí cortou uma vara e empurrou o sarrafo na onça: pei, pei, pei. Cansado, largou ele, deixou ele amarrado, aí os outros passaram lá: “Que que é, compadre?” “Rapaz, o danado do

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Macaco passou por aqui e disse que vinha um temporal.” “É nada, ele queria é te surrar mesmo!” “Mas um dia eu como ele, eu como ele.” [risos] Tá lá tomando conta de um igarapezinho, de um olho d’água, só tinha aquela água. Aí, o que que o macaco pensou: “Rapaz, sabe de uma coisa: eu vou me melar, na coisa, (como é que é?) na abelha, no mel de abelha bem meladinho!” Aí se melou; rebolou por cima do mel e pelos braços, pelas pernas. Aí chegou naquelas folhas secas; começou a se enrolar: tá, tá, tá, tá! por aqui [passa a mão pelo corpo]; tipo, só folha mesmo o bicho. Aí Onça tá lá tomando conta da água: “Quem é?” Aí já vinha: “É fulano de tal.” “Bebe água; toma banho e vai embora.” “Quem é?” “É fulano!” Ele só lá espiando, compadre Macaco vem beber água. Aí lá vem aquele senhor lá todo cheio de folha, que era ele né: Tá, tá, tá, tá! “E aí, compadre!” “Oh, quem é você?” “Compadre, Folharal.” “Bebe água compadre, Folharal, toma um banho.” Aí [risos], era só o que ele queria. Bebeu água à vontade mesmo. Aí tomou um banho. Aqui tem umas árvores tudo pertinho. Tomou um banho. Aí ele nem olhou pra ele, dizendo que ele era Folharal. Tomou banho; as folhas ficaram tudo em cima d’água; aí se enxugou um pouquinho. Ele tava de costas quando ele olhou: “É o compadre Macaco!” “Sou eu mesmo compadre, já bebi água e tchau!” E aí, oh! “Esse compadre de todo jeito me engana, né?” [risos] Essa é a história dele, do compadre Macaco.

DF: Tem alguma história que o seu pai contava pro se-nhor, dessas assim? Sua mãe? Tem mais alguma que o senhor lembra?

AM: É não, é a história do, mas essa aí é real. A Capivara, ele tinha um caçador. Sempre nas reuniões, têm os anima-dores da reunião, que é pra acordar as pessoas que estão dormindo. “Tuxaua, quem vai ser os animadores da reunião?” Eu digo: “Vai ser um desses quatro, vão ser animadores.” “Tá bom!” Aí um senhor disse: “Olha, eu vou, eu vou contar só uma historinha, isso é real. O meu avô, o meu sogro. An-tigamente tinha muita piranha nessa região daí do Surumu, no Igarapé do Pacu. Aí, bom, aqui tinha muita piranha, aí o que que ele fez: ia atravessando com a água na barriga do

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cavalo por aqui né, e o cavalo se agoniou, atravessando o igarapé: pou, pou, pou, pou. Destar que eram as piranhas que estavam se pendurando aqui no bucho do cavalo.” O bucho do cavalo, o couro dele é duro né? Aí, quando saía sangue é que a piranha encostava mesmo. Aí, de repente brecou o cavalo com a espora. O cavalo saiu fora e aí foram caindo as piranhas atrás: pou, pou, pou, pou.” Ele já tinha dado o fora. Aí ele olhou as piranhas tudo descendo da barriga do cavalo. Aí correu pra lá e matou umas seis piranhas. Isso não é mentira meu filho. Eu estou aqui de vivo. Isso é o velhinho já contando. “Eu estou aqui. Isso não é mentira que o meu genro tá contando pra vocês sorrir não. Isso aqui é verdade. Tinha muita piranha, meu filho. Olha, isso aqui aconteceu mesmo. Tá aqui. Eu tô de história, né? Eu matei seis piranhas que tavam mordendo o bucho do meu cavalo, caíram do bucho do meu cavalo.” Que tava agarrado aqui, no bucho do cavalo. Essa é a história aí, mas é, é porque esses velhos eles têm muita história

DF: Justamente. Por isso que eu estou falando.

AM: Eu vou só aqui encerrar um pouquinho com a his-tória dum, dum tuxaua lá do Perdiz, não, ali da maloca do Limão. Ele foi, nesse tempo, a denúncia, que os indígenas denunciavam dos brancos, era lá no São Marcos. Lá pra baixo. Eles saíam do Contão e iam lá pro São Marcos. Aí ele foi, arrumou o anzolzinho dele pra ir pescar por aí, mas ele esqueceu; deixou em cima da mesa. Aí foi embora. Quando chegou no meio da viagem, meio-dia de viagem, ele chegou na beira duma lagoa. Lá tinha é, é, tinha uma (como é?), tinha um tucunaré chocando. É assim, peixe chocando. Aí quando o cara chegou lá, o cavalo vai com uma sede, encostou a boca pra beber água e tava bebendo. E o cavalo ele tem, ele corta o capim com o dente e a vaca com a língua. Vai cortando, que a língua dela é a foice. Vai puxando com a boca. Aí ele ficou olhando aí, o cavalo tem aquela coisa em cima dele amolado, e o tucunaré não tem dente: é só aquela serrinha também, beirando, amolada. Aí quando o cavalo foi beber água, tucunaré chocando, pam, pegou aqui no beiço do cavalo, que jogou lá no seco o tucunaré, vapu!, longe. Aí

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pulou do cavalo, aí correu e matou. Aí o cavalo tornou a bai-xar a cabeça. Que eram dois, quando tá chocando são dois. Tucunarezinho chocando. Aí tucunaré tá agarrando, o bicho jogou de novo lá do outro lado. “Oh, que bênção de Deus, é muito bom acontecer isso.” Aí foi procurar os ovos dele e não achou. “Olha aí como Deus é tão bom comigo.” Ele quebrou uns garranchos de pau, assou e tal. Isso aí ficou como uma história real mesmo, que aconteceu. Que ele conta, né? O velhinho já morreu, mas os sobrinhos, os tios desse rapaz que contam a história. Eles contam lá no Limão, na maloca do Limão. Isso é real, aconteceu mesmo, a história do tucunaré.

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Entrevistado: Valdélio Perez Ribeiro (VR)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Assistente de Entrevista: Lucimar Sales

Local: Comunidade Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 8/10/2008

Transcritora: Keyty Almeida de Oliveira

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti.

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 56’’06’’’

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DF: Qual é o nome do senhor?

VR: Valdélio Perez Ribeiro.

DF: Qual a idade?

VR: 32 anos.

DF: A etnia do senhor é qual?

VR: Macuxi.

DF: O senhor tem uma função definida na comunidade, o senhor é tuxaua?

DF: Tuxaua da comunidade de Santa Rosa.

DF: O senhor tem mais alguma função? Essa já é muita, não?

VR: Eh, por enquanto eu sou só de uma Associação [...]

DF: O senhor chegou a estudar?

VR: Eu passei vários tempos parado. Quando concluí a quarta série, passei quase quinze anos parado.

DF: O senhor estudou na comunidade mesmo, tinha escola lá?

VR: Tem. Aí então, por falta de professor, não conclui o terceiro ano. Ainda estou com três matérias de dívida pra concluir[...]

DF: A primeira língua que o senhor aprendeu foi o macuxi ou a língua portuguesa?

VR: Eh, apesar de que meus pais, eles não são falantes.

DF: Não são falantes nativos não.

VR: Então, eu nasci só com o português.

DF: O senhor sabe macuxi?

VR: Algumas coisas que eu sei falar. Não entendo, mas falo algumas coisas, sim.

DF: Tá certo. Agora eu vou fazer algumas perguntas em re-lação ao senhor mesmo. Por exemplo: O senhor é agricultor, trabalha com agricultura ou não trabalha, na comunidade?

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54 Associacao Dos Povos In-digenas da Terra de São Mar-cos. Sua sede é o Malocão Macunaimî, localizado na BR-174, sentido Pacaraima.

VR: Eh, a gente, as comunidades indígenas trabalham mais com a agricultura, todas as comunidades indígenas. Então, lá pra nós, apesar de que a gente é de comunidade pequena, mas só que hoje estamos com um projeto de pecuária. Então, a gente não tem muito se envolvido com a agricultura, mas tem a agricultura familiar, de cada um, de cada casa, de cada família. Então, a gente também tá tocando um projetinho bem pequeno que é da parte da associação APITSM.49 Que nós conseguimos pela APITSM, fazer um projetinho de agricultura lá, então, cinco hectares pra gente estar iniciando um projeto de agricultura, né? E quem sabe daqui, a gente já tá dando continuidade ao projeto.

DF: Sim. Então, a base hoje lá é a pecuária?

VR: É a pecuária. E também a agricultura...

DF: Mas é mais de família, não?

VR: Isso!

DF: Individual, não é?

VR: Individual.

VR: O forte mesmo é a pecuária. [...]

DF: Qual o nome dos pais do senhor?

VR: É Liberalino e Neuza.

DF: Os dois eram macuxis?

VR: Os dois são macuxis. Só que não são falantes.

DF: Eu estou perguntando isso porque têm muitos que o pai é macuxi, outros é taurepang, pra saber mais ou menos.

VR: Eh.

DF: Hoje na comunidade tem alguma religião predomi-nante?

VR: É a católica. E têm alguns que são evangélicos tam-bém, da parte, eu não sei a religião, é Batista; Batista mais ou menos, Batista missionário, mas são poucas pessoas, quatro pessoas mais ou menos?

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DF: Mas a maioria, então, é católica?

VR: É católica.

DF: O senhor também é católico?

VR: Também.

DF: O senhor é casado?

VR: Não, sou junto, não sou casado no papel. [...]

DF: Casado. Inclusive essa é uma questão interessante: esses conflitos que os indígenas vivem: ao mesmo tempo em que têm as comunidades que têm suas regras antigas, por exemplo, antigamente ninguém casava no papel, não é?

VR: Não.

DF: O casamento é um ritual dentro da comunidade, mas hoje em dia tem que ter esse ritual e ainda tem que ter o outro.

VR: Pois é. Isso aí que muitas pessoas perguntam, assim: “Mas você é casado?”; “Não. Eu sou não sei o quê, junto não sei o quê...”; essa coisa que também tá entrando nas comunidades indígenas, que tem que ter o casamento no papel, não é?

DF: Isso já tá forte, também?

VR: Já. Não lá dentro, mas assim, eu acho que pelos pro-fessores que têm assim, por exemplo: é que ele é funcionário, o marido não é ou a mulher é, eles querem casar pra garantir o sustento de seus filhos, é mais ou menos assim.

DF: E o que o senhor pensa a respeito dessa questão, assim, dessa legislação dos não índios que acaba entrando tão forte na comunidade? Você acha que o índio tem que se-guir essa lei, não tem, o que é que o senhor pensa a respeito disso? Ou o senhor nunca pensou a respeito? [...]

VR: Pois é, eu acho que hoje a gente tá num país demo-crático, um país hoje que vive o capitalismo realmente, já é um país capitalista. Então, hoje a gente não tem pra onde fugir, não é? A gente tem mais que abraçar essa causa, mas

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respeitando, tanto faz, a parte do não índio e respeitando a nossa parte, dos nossos rituais, nossas histórias, todas essas coisas assim.

DF: A tradição...

VR: A tradição. Mais ou menos assim, né? Mas eu acho que a nossa parte, vamos dizer assim, dos brancos se envolver dentro da comunidade, acho que hoje todo mundo precisa disso. Por exemplo, hoje ninguém pode viver só naquilo. Mas só que, hoje, o país hoje é um país globalizado, onde os alunos precisam estudar, se formar, ser médico, pra voltar pras comunidades, ser advogado pra ajudar as comunidades. Essas coisas assim. Então, pra isso, como é que pode dizer, es-sas coisas dos brancos, acho que tem tudo a ver com a gente, hoje em dia. Por exemplo [apontando pra um computador], um computador desse aqui, então, a gente tem que estar por dentro das coisas, tem que estar acessando a internet pra ver como é que tá o país lá fora, aqui dentro mesmo.

DF: Não tem como fugir.

VR: Não tem como fugir, tem que estar nisso, tem que aproveitar disso, se aprofundar, dizer assim, né?

DF: A sua esposa também é macuxi ou não?

VR: Macuxi mesmo.

DF: Quantos filhos o senhor tem?

VR: Três.

DF: E qual foi a coisa mais triste que o senhor viu até hoje e qual a mais feliz?

VR: Mais triste: durante agora esses tempos, foi a perda de uma aluna da comunidade. Ela se suicidou, ninguém sabe por quê? E ela, assim, é parenta nossa, então é uma coisa triste, né?

DF: Não se consegue explicar direito.

VR: Ninguém sabe por quê, então, ninguém sabe. Nin-guém sabe por que ela se matou, então...

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55 Theodor Koch-Grünberg, etnólogo alemão, visitou Roraima entre 1911-13, fi-cando também na região do Surumu.

DF: Ela não disse nada a ninguém? Não deixou uma carta?

VR: Deixou uma carta pra mãe dela, dizendo que se a mãe dela não chegasse aquele dia, ela ia se, ela ia, como é que pode dizer, assim, se arrepender, né? Se a mãe dela não chegasse aquele dia, ela ia se arrepender. Então, foi, meteu a corda no pescoço e pulou da casa. Se suicidou e morreu. [...] Pois é, e o próprio irmão dela que morava junto com ela, chegou na casa de noite, porque ela dormia assim no sofá e numa rede. Aí ele chegou na rede dele e dormiu a noite todinha, pensando que a irmã tava bem. A irmã dele tava lá no quarto pendurada, ele não via ela mexer, só quando ela dormia. Aí, de manhã, ele foi ver ela no sofá, ela não tava. Aí entrou no quarto e ela tava pendurada desde as oito da noite.

DF: Aí é triste mesmo.

VR: Eh.

DF: E feliz?

VR: Eh, feliz, hoje, porque tenho uma família, têm meus pais que moram perto da gente. Acho que a maior felicidade é ter a família unida. Acho que é uma das felicidades [...] e saúde principalmente.

DF: O senhor nasceu onde, aqui no Alto mesmo?

VR: Aqui no Alto mesmo. No Alto São Marcos.

DF: Certo. E agora vou fazer algumas perguntas mais sobre a comunidade. Qual a história da fundação da comu-nidade, o senhor sabe?

VR: Eh, como eu tava contando naquela hora, dentro da comunidade hoje, são as histórias que a gente já sabe, que a comunidade veio desse processo de 1900 pra cá, foi um livro que, que o meu professor também lá da comunidade tem achado por internet e achou, foi de um alemão, parece, Koch-Grünberg. 55

DF: Ah, sei.

VR: Não sei se você já teve acesso a esse livro…

DF: Eu já vi um vídeo dele.

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VR: É, né? Já ouvi falar que na Serra do Mel, você sabe onde é no Surumu ali.

DF: Sim.

VR: Lá é uma comunidade muito grande, aí tivemos que passar, que eles passam não sei quantos dias de festa na comunidade, aí dizia que chegava gente e alugava, por exemplo, lá, o Mairari, que é hoje a Serra do Mairari, que é uma comunidade, que chamam de Mairari. Então, vinha também do Amajari e a gente falava também do Orocaima, que é Santa Rosa hoje, porque na verdade o nome de lá é Orocaima.

DF: Orocaima?

VR: Orocaima. Então, ele falava assim, que chegava muita gente, como é que se fala? Oracaima. Então, por isso que talvez seja Sorocaima, né?

DF: Sei.

VR: Até porque era escrito, em quê? Em espanhol. [...] Eh, então foi, então, esse é o processo que vem vindo, a gente diz que, segundo as histórias, lá era uma comunidade muito grande mesmo, a gente sabe onde tem um, várias é… assim, onde já morou gente, a gente sabe. Tem aquelas, como nós indígenas sempre [usávamos], hoje quase ninguém usa mais aquelas pedrinhas de botar as panelas assim. A gente encon-tra por aí, monte de pedra, panela, panela velha, assim, então é sinal que ali foi um território indígena desde antigamente.

DF: Sim.

VR: Então, de lá pra cá diz que o pessoal, morava muita gente lá mesmo, e segundo o pessoal me conta que eu sou o, vamos dizer assim, descendente dessa família de lá, ainda. Porque diz que o primeiro tuxaua, quando o antigo meu avó, que hoje tá vivo, ele tá bem velhinho hoje, não dá nem mais pra conversar com ele, porque tá assim bem velhinho mes-mo. E fé em Deus, que o homem que morava com ele, um tal de João Sales. Então, esse João Sales era pai do Lobato, esse Lobato foi um tuxaua também, esse João Sales foi o

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56 A entrevista foi realizada na sede da Universidade Estadual de Roraima, em Pacaraima.

primeiro tuxaua, depois esse Lobato, que era o filho dele. E, segundo o pessoal, esse Lobato, que é o avó do meu pai, assim, é assim que conheço a história. Então, de lá pra cá, a comunidade, ela tem se chocado muito atrás desse tipo de doença, morreu muito, era catapora, sarampo, essas coisas assim que, essas coisas que, segundo o pessoal, que são os brancos que trazem, não é? [...]

DF: E quando eles vieram, as pessoas que tinham aqui não tinham resistência.

VR: Então, essa doença chegou e pegou e foi extermi-nando um bocado, então o pessoal que não morreu, saiu, foram-se embora. [...] Pois é, então, de lá pra cá, diz que o pessoal foi-se embora, né? Aí passaram uns tempos fora da comunidade lá do Orocaima. E nisso chegou o pessoal bran-co, os maranhenses, o pessoal daí de fora. Então, chegaram lá, passaram um bocado de tempo por lá, tal. Aí esse, esse velhinho que eu disse pro senhor, que tá pra Boa Vista, esse velhinho que foi tuxaua vinte anos? Então, ele chegou lá e viu, viu que os brancos estavam tomando conta mesmo da comunidade. Então, ele chegou lá e conversou com eles e tal, aí, que não podia ficar só os brancos e tal. Aí sei que empossaram ele como tuxaua de lá. Não tinha ninguém na época, não tinha mais tuxaua lá, já tinha morrido o Lobato, tinha morrido o João Sales, já tinha morrido já. Empossaram ele como tuxaua lá, então, de lá pra cá os brancos foram-se embora, casaram, acho que cansaram de ficar por lá também e foram-se embora. Então, de lá começou de novo a comuni-dade, daí ele brigou muito pelas fazendas hoje, pelas, vamos dizer assim, é por causa dos invasores lá, dos fazendeiros. É porque lá na comunidade (daqui a pouquinho eu vou mostrar pro senhor qual era nossa área de comunidade),56 porque a comunidade era só naquele campo ali mesmo, ninguém entrava no mato porque era do branco.

DF: Entendi.

VR: E quem entrasse naquela mata ali, a gente era ame-açado de morte pelos brancos. Sim, ele falava [que] era dele, então a gente não tinha toda essa liberdade pra estar

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caçando e pescando não. Então, ele teve essa briga com ele e foi muito perseguido lá, foi esse processo todo. E conse-guiu também a demarcação junto com o pessoal daqui da reserva São Marcos, hoje. Então, ele lutou também. E tem que conseguiu também um projeto de gado que hoje nós temos lá também. Então, ele passou, segundo assim, passou vinte anos, quem sabe foi até mais, ninguém sabe, né, porque muitos deles eram analfabetos, não sabiam nem contar. Aí ele calculou que eram vinte anos, assim.

DF: Tá certo, o meio de transporte ali é aquele que a gente viu mesmo?

VR: Eh.

DF: Quando precisa vem de bicicleta.

VR: Eh, vem de bicicleta, uns dois tratorzinhos lá, cavalo, é assim mesmo.

DF: Sei, e é bem longe, dá quinze quilômetros quase, não é?

VR: Dezoito!

DF: Dezoito quilômetros da comunidade até lá na estrada. Bem, o senhor acabou de falar, mas eu esqueci: qual foi o primeiro líder tuxaua?

VR: Foi o João Sales. [...] Então, segundo o meu avô, que era Sari, o nome dele macuxi.

DF: Sari.

VR: Então. Aí como os brancos estavam por lá, botaram o nome dele de João Sales.

DF: E por que o nome de Santa Rosa, o senhor sabe?

VR: Santa Rosa é porque o seguinte, então, é como era Orocaima, a comunidade. Aí, segundo, chegou um padre por lá, um padre não sei se era italiano, parece que foi o padre Zé Maria, não lembro muito assim. Ele chegou com um tuxaua Vitalino de lá e disse: “Tuxaua, vamos tratar aqui o nome da comunidade, esse nome é muito feio.” Aí botou outro nome:

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“Vamos botar aqui o nome de Santa Rosa de Lima, em ho-menagem a uma santa aí.” “Tá bom, então vamos colocar!” Aí trocaram de Orocaima pra Santa Rosa, né?

DF: E a comunidade nunca quis mudar de volta não?

VR: Até agora não, mas os antigos ainda chamam de Oro-caima. O meu avô não chama de Santa Rosa, só de Orocaima.

DF: Então, até hoje Santa Rosa é também conhecida como Orocaima pelos antigos?

VR: Isso. Também, também.

DF: Entendi.

VR: Então, aquela serra que vocês viram lá, é o nome de Orocaima.

DF: Que significa o quê, o senhor sabe?

VR: Eh, segundo o que o pessoal também fala, que diz que é porque o Orocaima é que dá origem assim aos papagaios, que o nome do papagaio, em macuxi, é woro’ke.

DF: Woro’ke?

VR: Então, e as festas, não sei se era um lugar, se era a casa de papagaio, se era comida de papagaio, era assim uma mata onde os papagaios gostavam de ficar o dia todo. Era mais ou menos assim, então.[...]

DF: A alimentação da comunidade mudou muito, você lembra como era antigamente, você acha que tá a mesma coisa?

VR: Eh, na parte da carne sempre mudou, não é? Depois que a gente tem, tá criando os nossos animais como gado, porco, galinha, essas coisas assim, não sei no passado, que eu não me lembro, mas acho que mudou, com certeza. Eh, porque segundo as histórias dos antigos, dos mais velhos, uma parte da alimentação da carne era só através da caça mesmo, ali era uma região que tinha um monte de jabuti também. Segundo o pessoal, tinha tanto jabuti que eles faziam parede de casa só de casco de jabuti, só.

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DF: Tem história assim?

VR: Tem essa história lá.

DF: Mas não acharam mais os cascos?

VR: Não, não, porque ali o povo chega, né, queima tudo. Então, os peixes, também, ali é uma região muito de pei-xe, porque o rio era muito longe, chamava os fazendeiros mesmo, tinha um igarapezinho. Só o peixe mais as caças de antigamente. Hoje ainda tem, graças a Deus, preservou hoje e ainda tem muitas caças. E tem também a damorida, que hoje quase que não é consumida hoje, muito, lá.

DF: Não é muito mais, não?

VR: Mas os Pajuarus, de vez em quando o pessoal faz, mas não é assim diretamente como o pessoal fazia.

DF: Pajuaru é o quê?

VR: Feito de mandioca, de beiju. [...]

DF: E aí, hoje a base da alimentação é mais a do gado mesmo, não?

VR: Eh. Leite.

DF: E em relação aos rituais antigos, vocês preservam alguma coisa?

VR: Hoje a gente tá botando pra ver se a gente reforça, como se pode dizer…

DF: Retoma.

VR: Eh, retoma. Que, pelo menos, a língua, hoje, a gente tem um professor que tá dentro da escola ensinando as criancinhas pra ver se dá uma continuidade a isso, mas só que é meio difícil. A pessoa quando nasce falando uma coisa, pra aprender outra coisa só se tiver interesse mesmo. Mas é muito difícil na parte do ritual, assim, como as danças, hoje a gente sempre vem praticando.

DF: Sim, estão retomando.

VR: Isso, isso. [...] Mas só que, pra escrever, eles escre-vem, os alunos. Escrevem. Se colocar um texto pra eles, eles

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sabem fazer, agora, pra falar que é o negócio! Pode ver que aqui no Sorocaima I, hoje...

DF: Sei.

VR: Segundo o pessoal comenta, os alunos só vão pra escola depois de sete anos, só depois que já sabem falar o idioma deles.

DF: Ali nem escola tem. Ele não deixou colocar escola até hoje, o patriarca.

VR: Pois é, então, é a escola do Sorocaima I. Então, só vão pra escola depois de sete anos, quando já sabem falar o...

DF: Taurepang.

VR: O taurepang deles lá. Então, é interessante, né?[...]

DF: Eles falam taurepang mesmo. Me diga uma coisa, como é que o senhor vê hoje a questão do indígena, o senhor como tuxaua?

VR: A questão, mas como assim?

DF: Do índio hoje, por exemplo, a relação dele com o não índio, como é que o senhor vê isso aí?

VR: É como eu disse, eu não vou repetir mais, mas hoje a sociedade indígena, apesar de que não são bem, vamos dizer assim, são considerados quase como mentores, como gente. Mas hoje, o índio, ele é como qualquer um ser humano, né? Hoje o pensamento de nós indígenas é estar ocupando os espaços também, onde hoje os não índios estão ocupando hoje, né, pode ser no município, na parte de vereador, na parte de prefeito, nas escolas já estão com certeza, se não falha a memória, mas acho que são quase mil professores indígenas, hoje.

DF: Sim, na parte do Insikiran, não é isso?

VR: Não, nas comunidades indígenas mesmo.

DF: Ah, nas comunidades.

VR: Isso. Na parte do Insikiran, parece que são seiscentos,

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parece que é mais ou menos assim. [...] Pois é, então é isso, que eu vejo assim, que a parte de nós indígenas hoje tem que avançar, acho que a palavra hoje é avançar.

DF: Sim, o senhor falou uma coisa que é interessante: os indígenas pensam que o branco pensa que o índio não era…

VR: Não, escuta aqui, não todos os não índios. Imagina assim, que hoje os brancos, o indígena não é considerado quase como gente hoje, que o índio, por exemplo, pra eles, assim, é uma coisa quase descartável, um animal, vamos dizer assim, mas, na realidade o indígena hoje é um ser humano igual a qualquer um hoje.

DF: Sei.

VR: Pensa, tem inteligência como qualquer um, né?

DF: É por isso que eu tava falando daquela questão do direito e dever.

VR: Pois, é.

DF: Eu acho importante ter essa consciência do, até que ponto é, isso é uma coisa que eu acho muito estranha. Na hora em que você nasce índio, você nasce índio, mas também nasce brasileiro.

VR: Pois, é.

DF: Não é isso? Mas na hora de seguir a legislação parece que é uma legislação própria só pro índio e a outra legislação não serve. Vocês tem direito à terra, não tem? Tem. Mas a terra não é de vocês, é da União. Isso cria uma confusão danada, não cria não?

VR: Cria sim.[...] Igual quando eu tava participando de um concurso lá no Sebrae, aí a professora colocava o seguinte: “Não, porque vocês não são mais indígenas, porque vocês já usam relógio, não sei o quê mais...” Aí eu perguntei pra ela: “Professora, a gente não é mais indígena porque a gente já tá na cidade com todas essas coisas. E se a senhora nascesse aqui na cidade e passasse dez anos lá na aldeia, a senhora ia ser maranhense ou ia ser indígena?” “Não, eu

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sou maranhense!” Então, do mesmo jeito somos nós, né? Nós nascemos e temos sangue de indígena então em canto nenhum a gente vai dizer que nós não somos indígenas, né? A nossa cor, o nosso jeito. [...] Então, têm pessoas que falam as coisas assim sem perceber…

DF: É, sem perceber mesmo. Por isso que eu estou falan-do, isso causa uma certa confusão, né? E da mesma forma que causa confusão nas pessoas que não são indígenas, porque, por exemplo, eu ouço vários casos na cidade de gente que nega parentesco com indígena. Há até um motorista da UERR, só depois de muito tempo que ele foi falar pra mim que a mãe dele era indígena, que era macuxi, que ela nasceu aqui perto da Raposa. Mas ele não fala, ele não fala que ele é indígena. Ele não aceita isso muito bem, então se ele não aceita é porque tem preconceito por trás, tem pressão social.

VR: É igual a parte dos políticos, né? Os políticos quan-do chegam na época de campanha eles falam assim, eles querem ganhar os votos dos parentes, dos indígenas, aí chegam com aquelas conversinhas: “Não rapaz, acho que você é meu parente, minha mãe é não sei o quê, minha avó é indígena, minha mãe foi pegada a laço não sei aonde.” É os brancos querendo ser índio e os índios querendo ser branco, agora. [...]

DF: Justamente. E nesse sentido, você já passou algum preconceito por ser indígena? Por exemplo, a gente sabe que tem gente que tem, como você falou no começo, que acha que índio não é gente, que acha que tem gente que ainda pensa assim, não tem?

VR: Eh.

DF: Como você falou antes, você já passou assim por alguma situação antes, que você não gostou, de constran-gimento, de...

VR: É assim, a gente sempre sofre isso, né? Porque a questão da terra hoje, da terra que a gente tem hoje, que é extensa, a gente sabe que é extensa, mas nós temos muitos

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índios dentro dessa terra. Por quê? Então, muita das vezes, os não índios, hoje, os políticos, e outras pessoas, que dizem assim: “Pra que o índio tem tanta terra se não tem condições de produzir?” Então, dali a gente já sabe que tá de preconcei-to com a gente, dizendo que a gente não tem condição, por exemplo, de compartilhar com o estado, com o município. Então, daí, já começa o preconceito: eles pensam que a gente não tem condições de competir com eles também. [...]

DF: E como é a distribuição das casas na comunidade, assim, por exemplo, lá tem a terra, não?

VR: Isso.

DF: A pessoa chega, ela vai lá, constrói a casa onde ela quer, ela tem que ter o consenso da comunidade, como é que funciona?

VR: Eh, a parte que eu acho que é em todas as comuni-dades indígenas, pelo menos nas comunidades pequenas, elas são boas assim, né, principalmente lá na nossa. Ele vai construir, ele quer, por exemplo, só não vai construir no ter-reno do camarada, né, mas sendo afastado ele vai construir, porque tem que criar, né?

DF: Então, tem uma divisão?

VR: Tem uma divisão. Cada pai de família tem sua casa.

DF: Sim. E uma divisão na terra também?

VR: Isso não, só na casa mesmo.

DF: Só na casa?

VR: Só na casa. Ali, da casa tem o cercado dele ali. Aquele cercado é o terreno dele, mas então outro vizinho do lado, querendo, pode fazer também. Então, não vai dizer que, por exemplo, se tiver minha casa bem aqui, assim, em um extenso terreno aqui, eu vou dominar. Não tem isso, não.

DF: Não tem. É da comunidade, não?

VR: É da comunidade.

DF: Então, qualquer modificação que tem que haver ali é a comunidade que tem que decidir?

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VR: Isso.

DF: Entendi. Então, em relação àquelas histórias antigas, o senhor ouviu contar muito, não ouviu? Por exemplo, a história de Macunaima, todo mundo fala né, mas o senhor ouviu, sabe essa história, sabe contar?

VR: Não, não. Essa história de Macunaima eu não sei, eu não sei muitas coisas, não.

DF: Sei.

VR: Também, eu não vou dizer que eu sei, né?

DF: Mas na comunidade tem algumas pessoas que sabem?

VR: Ah, eu acho que com certeza tem, porque quem podia contar a história de Macunaima era meu avô. Só que aí não vai dizer, porque ele tá bem velhinho e se a gente for conversar com ele não vai, e é bom ouvir, mas só que ele tá, ele não tá raciocinando direito mais não. [...]

DF: Mas se algum dia ele quiser falar, o senhor pode, inclusive, ir junto, ficar fazendo as perguntas, pra registrar mesmo. [...]

DF: E a história do timbó, vocês ainda fazem pesca com o timbó?

VR: Não, não.

DF: Não fazem?

VR: Sempre o pessoal fazia lá uma pesca com o timbó, mas só que era um timbó bem fraquinho mesmo, porque quem utiliza o timbó é o pessoal aqui da Boca da Mata mesmo, mas lá mesmo, não.

DF: Nunca ouviu falar a história dele, não?

VR: Não, não.[...]

DF: Sim. E essa questão do fogo-fátuo, já ouviu?

VR: Eu já ouvi falar em fogo-fátuo, mas da história eu nunca ouvi, não.

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DF: Não sabe.

VR: Não, não.

DF: E do Canaimé?

VR: Iche. Tem vários casos do Canaimé, aí.

DF: O que o senhor sabe dele, o que entende, o que pensa a respeito?

VR: Não, segundo o que o pessoal comenta, que o Ca-naimé é a pessoa assim, que faz mal às outras pessoas, é só pra fazer o mal mesmo, né? Caso de inveja, essas coisas, assim. Então, vai fazer o mal à pessoa. Graças a Deus que quase não tem muito isso, tem assim, se o Canaimé assoviou, assoviou por lá, mas se diz que não é o Canaimé, mas diz que é assim: o Canaimé é uma pessoa normal, só que tem um, ele usa um não sei, um tipo de não sei de quê lá, uma matéria que ele usa, que os parentes dizem que é uma puçanga que ele tem. Então, por exemplo, porque é, vamos dizer assim, existe essa puçanga pra várias coisas, pra caça, pra pesca, pra todas coisas, né? E pra matar gente também serve, então é isso que acontece com ele, ele usa essas batatas, não sei se é batata o que ele usa lá, sei que é uma puçanga que ele usa pra fazer mal aos outros. E eu ouvi dizer que, acho que na Boca da Mata, um velhinho que mora na Boca da Mata, não sei se é vivo ainda, ele morava não sei onde, acho que no Arai. Aí, lá os parentes deram uma batata pra ele, uma batata de matar veado, né, diz que aí ele páá, rapaz, vou matar um veado hoje, ele passou não sei se foi a mão, na perna dele, e foi caçar. Aí diz que a mulher dele tava na roça e passou a batata e esqueceu de tudo. Daí a um pedaço, chegou lá na roça com a mulher dele e tava matando a mulher dele, aí a mulher dele gritando: “Não, não faz não, não faz não.” Não tava conhecendo ela, né? “Não faz, não faz, não faz.” Não sei o quê, e ele querendo matar ela. Até que ele correu. Aí quando ele chegou de tarde lá, a mulher dele perguntou: “Rapaz, tu queria me matar lá na roça?” “Eu? Eu não, rapaz, eu fui caçar!” “Não, foi tu mesmo que queria, tava me en-gasgando lá.” “Não, eu não fui pra lá não, eu fui caçar.” Aí,

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segundo, é um tipo de material que eles usam pra acontecer isso aí, esse negócio do Canaimé, aí.

DF: Sim. E houve casos na comunidade, lá em Santa Rosa?

VR: Rapaz, teve um caso, eu não sei se foi disso mesmo, porque segundo o Canaimé, eles, o Canaimé, o camarada diz que não fala, que dá febre, dá diarreia, várias outras coisas, e que morre rápido. E aconteceu um caso quase idêntico a esse aí. É de um velhinho que tinha lá. Então, ele foi tirar um, ele gostava de trançar peneira, né? Aí, foi tirar as varinhas pra fazer as peneiras dele. Quando ele voltou, foi com febre, quando foi de noite ele morreu.

DF: Aí, nesse caso, falaram que poderia ter sido o Canai-mé?

VR: Assim, é mais ou menos assim, né. Não sei se foi mesmo, porque foi uma morte rápida, né?

DF: Sabe da história da mulher que foi pega pelo macaco, já ouviu falar?

VR: Não, não.

DF: Não? Que ela morou com ele?

VR: Não.

DF: Tá certo, essa é uma história que a gente ouviu tam-bém.

VR: Eu sei uma história da Guariba.

DF: Guariba?

VR: É quase idêntico a essa daí.

DF: Como é?

VR: Diz que é um, é uma mulher que, a mulher era casada com um, que era casada com um homem, não, a mulher que era casada com o Guariba. Aí não sei se era o, era o macaco, parece, não, era outro camarada, então esse camarada era doido pra roubar a mulher do Guariba. Aí diz que “Vamos fazer, então...” Aí, diz que eles foram pra casa do Guariba lá, aí lá faltou água pra coar o caxiri lá, aí o Guariba mandou a

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mulher dele buscar água no igarapé. Aí diz que o cara foi por lá, pegou a mulher do Guariba e levou. Aí o Guariba ficou lá esperando, esperou, esperou. Aí começou a gritar: “Mulher, mulher, mulhéééérrr...” O senhor já ouviu o Guariba gritar?

DF: Sim.

VR: Não grita assim?

DF: É parecido com isso.

VR: Roubaram a mulher dele, ele foi e gritou com a mulher dele: “mulher, mulher, mulhééérrr”!

DF: É daí que vem a história. Tem mais alguma que o senhor lembra?

VR: Rapaz, no momento assim, a gente não dá pra se lembrar muito essas histórias não. Quem sabe eu lembro amanhã. Tem a do Canaimé. E só como eu disse, ele tá uns tempos que a situação dele hoje tá.

DF: Sei. E a educação na comunidade, como é que é feita hoje? A escola, a educação?

VR: É, hoje a gente vem enfrentando um problema na educação. Vários anos aí, já, né? Desde a fundação dela, a gente vem, não da fundação, mas depois que a gente pas-sou pra, que a gente começou a construir o ensino médio, de 5ª a 8ª, a gente sentiu muitas dificuldades. Em questão de professor, aí tem a questão da parte da estrutura física, essas coisas assim. Então, é muito difícil.

DF: E qual é a principal dificuldade da comunidade hoje, é a educação mesmo ou não?

VR: É a educação, saúde.

DF: A saúde também?

VR: Eh, a saúde também tá bem precária, hoje.

DF: O que mais incomoda na saúde?

VR: É o que hoje as outras comunidades sofrem. Várias, um pouquinho de doença, né, mas dá pra resolver, mas é medicamento pra garantir a saúde do pessoal aí, que não

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tem em grande quantidade hoje. [...] E médico também, que não oferecem também. [...]

DF: A comunidade recebe algum benefício do governo, alguma coisa? O senhor, a comunidade?

VR: Não, não.

DF: Porque, às vezes têm, não?

VR: Huhum.

DF: Não recebe não né?

VR: Não.

DF: Ela se autossustenta mesmo?

VR: Isso, isso.

DF: E o que o senhor pensa sobre isso, sobre essa ajuda do governo ao indígena, como benefícios e essas coisas. Qual a sua opinião?

VR: Como assim? Diretamente?

DF: É assim, como os benefícios, inclusive o governo aju-da muitas vezes até, o não índio recebe muitos benefícios às vezes do governo, né? Ajuda financeira mesmo, quando sabe que tá com dificuldades...

VR: Huhum. É, hoje a gente não recebe, né, mas, é assim...

DF: O Bolsa Família, o Bolsa, essas coisas todas.

VR: É, tem esses programas também, mas são poucas pessoas que recebem hoje, esse benefício dessas famílias aí, acho que são contados, são bem umas quatro, parece, e tem também o do outro, o Vale Alimentação, são bem uns três que recebem. [...]

DF: Sei. E como o senhor vê a presença da religião dentro da comunidade?

VR: Religião? Da católica ou da...

DF: Não, a religião, pode ser católica ou outra, como o senhor vê essa presença? O senhor concorda totalmente ou

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não concorda? O senhor vive ela, e qual o seu pensamento a respeito disso?

VR: Eh, a gente sabe também essa história da religião, hoje, da religião católica que foi uma das coisas que contri-buiu também, hoje, pro desaparecimento da língua. Então, mas hoje a gente sabe também e ninguém vai dizer assim que a religião católica, ela é uma das melhores, nem também a… qualquer outras religiões, mas hoje a gente tá, a gente é da religião católica e a gente não é só dizer que é católico e sair e falar o nome de Deus hoje. Então, o importante hoje é crer em Deus e saber que ele é vivo hoje, então isso que é importante pra nós. Pode ser qualquer uma religião hoje, mas o importante é que tá pregando a verdade, né?

DF: Sim. O senhor ouviu o seu avô falar alguma vez, alguém falar, como era antigamente antes da presença da religião?

VR: Deixa eu ver aqui...

DF: Ouviu eles falarem alguma vez?

VR: Rapaz, deixa eu ver aqui. Não, não me lembro, eu não sei nem se fazia esse tipo de oração também. Que muitas ve-zes esse pessoal de antigamente, eles tinham outros deuses, vamos dizer assim, né? Era um pajé. Por exemplo, o pajé que era o forte da comunidade, era o, bem dizer, que dominava mesmo o povo ali, que era o chefão mesmo ali. Então, isso aí que antigamente, acho que existia isso. De lá pra cá que começou a entrar essa religião católica, como já disse, que como entrou na comunidade lá, que trocaram até o nome da comunidade. Então, uma coisa os padres que entraram e que foram também exterminando, essas coisas que já tinham contribuído com isso também pra acabar com isso. Se, por exemplo, ninguém tivesse entrado lá, até hoje era registrado como Orocaima o nome da comunidade.

DF: Sei. Assim mesmo aconteceu com aquele cara antigo, né?

VR: Isso, o nome dele né?

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DF: É, também dos outros deuses...

VR: Isso.

DF: Dos rituais, né?

VR: Isso, isso mesmo.

DF: Têm a presença do pajé ainda hoje na comunidade ou não?

VR: Tem não. Existiu, tá com uns quinze anos, ou vinte anos, que acho que já morreu.

DF: [...] Têm uma preocupação na comunidade hoje do repasse das tradições, de contar as histórias do povo, estão tentando recuperar isso?

VR: Pois é.

DF: A comunidade pode achar também que isso não é importante. É um direito da comunidade, não?

VR: Eh. Não, hoje a gente tá tentando fazer um projetinho lá pra gente e ver se a gente consegue revitalizar isso, essas coisas também assim, até de, até mesmo de começar a es-crever. Até mesmo o professor, ele, ele também foi formado agora no Insikiran, também. Não sei se você conhece ele, é o professor Francisco. [...]

DF: Acho que não.

VR: Não, né? Então, ele fez o trabalho dele, porque todo o aluno hoje lá tem que mostrar um trabalho pra ele, mais ou menos assim né, quando termina, no final, né?

DF: É o trabalho de conclusão.

VR: Isso, isso. Então, o projeto dele era contar a história da comunidade Santa Rosa ali. Contar a história. E criou várias histórias ali, desde o início, que eu contei também aqui. Eu mais ele, a gente começou a conversar e ele descobriu que tinha assim esse guia dessa história da comunidade. Mas, hoje é interessante essa história mesmo da comunidade, a gente começar a escrever pra registrar.

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DF: E construir, e de repente organizar melhor pra que os alunos tenham consciência disso.

VR: Então.

DF: Que às vezes ela só existe, mas tá na cabeça de um, na cabeça de outro e de outro, mas nunca tem uma ideia geral de como ela é. Assim, aceita normal ou não aceita quando índio quer casar com não índio essas coisas, tem alguma restrição, não têm? Ou não acontece isso?

VR: Não, não, hoje acho que tá, isso é normal já. [...] Isso, isso, qualquer branco pode casar com a índia, mas só que pra morar tem essas coisinhas, né, dentro da comunidade hoje, porque a gente já passou por várias experiências de lá, de índio morar em comunidade e muitas vezes não dá certo. Então, a gente quase que já não aceita tanto os índios morando lá dentro da comunidade.

DF: Os não índios, né?

VR: Os não índios. Então, tem que saber, de repente, quem é ele? Como é o passado dele? Porque, muitas vezes, a gente tá trazendo uma coisa, é uma cobra pra estar co-mendo a gente, né?

DF: É verdade.

VR: Então, a gente não quer mais isso pra gente. Então, a gente tem que conversar com ele bastante pra ver como é que fica, mas na verdade hoje o branco, a índia que quiser casar com os outros parceiros tá sendo normal, já.

DF: E por exemplo, em algumas comunidades antigas, os meninos, pra se tornarem rapazes, tem algum ritual, alguma coisa pra eles virarem rapazes. E também as moças. Isso existe na comunidade, não existe?

VR: Existe não.

DF: Eu vejo uns especiais que eles pegam um dente de piranha, aí colocam numa madeira e vem, pra eles ficarem fortes. Então, eles vêm e arranham o corpo todinho e passam um negócio pra arder, os rapazinhos. Essas coisas assim não existem?

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VR: Não existe mais não. [...]

DF: E pra caçar, pra ser bom caçador, por exemplo, passa alguma coisa ou não tem isso também?

VR: Tem também, não. [...]

DF: Que era muito comum, né?

VR: Eh, lá na comunidade, não existe mais isso, não. Quem sabe no passado existisse, quem sabe, mas hoje os caras não querem mais nem caçar lá.

DF: Só caçam quando tem algumas festas, algumas coisas assim, aí caçam?

VR: O pessoal caça, assim, quase diretamente, mas só que é individual. Quando vai caçar não é aquele grupo, porque antigamente era assim. A festa de Natal que era mais, vamos dizer assim, festejada, né? Então, o pessoal se juntava, e ía caçar, os homens. As mulheres ficavam fazendo pajuaru. Aí, tal dia diz que eles iam chegar, aí, diz que saía pra caçar, dava uma semana, duas semanas, aí as mulheres ficavam esperando, fazendo o caxiri e ficavam ali esperando. Quan-do dava fé, tocava o fogo em cima da serra lá, aí diz que já sabiam que eles já vinham já. Aí elas saíam com seus baldes com caxiri pra encontrar eles lá. Levavam caxiri pra encontrar eles no meio da viagem. Davam o caxiri pros homens e elas pegavam as carnes, as mulheres, e vinham embora, mas não sei se acontecia isso aqui na comunidade. Isso é uma história que eu já sei.

DF: É que não acontece mais...

VR: Isso. Obrigado

DF: Obrigado.

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Entrevistados: Letícia Barbosa (LB) e Eduardo Alexandre Magalhães (EM)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF) e Lucimar Sales

Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)

Local: Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 10/10/2008

Transcritora: Michele Rubinstein

Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti e Huarley Mateus

Duração: 3’11’’54’’’’

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DF: Primeiro, qual é o nome da senhora?

LB: Letícia.

DF: Letícia de quê? Só Letícia?

LB: Letícia Barbosa.

DF: É, e do senhor?

EM: Eduardo Alexandre Magalhães.

DF: Qual é a idade da senhora?

LB: Setenta e três anos.

DF: Eita! E tá forte assim. E o senhor?

EM: Sessenta e oito, vou fazer agora dia treze de outubro.

DF: Ham ham.Vocês dois são da mesma etnia? Os dois são macuxis?

LB: Somos.

EM: Somos. [...]

EM: Ela é macuxi, só. Eu sou macuxi porque eu sou daqui de Roraima. Diz que quem é de Roraima é macuxi, mas eu acho que macuxi mesmo é aquele que fala a língua. Como eu não falo, mas eu entendo um pouquinho, aí.

DF: Então, eu vou fazer assim, eu faço pra ela depois eu faço pro senhor. O nome do pai da senhora e da mãe da senhora?

LB: Cristão Barbosa.

DF: Cristão Barbosa, e da mãe da senhora?

LB: Vitorina dos Santos

DF: Eles eram macuxis os dois?

LB: Todos dois eram macuxis.

DF: Eh, e o senhor?

EM: Meu pai é Camilo Magalhães.

DF: Camilo Magalhães. E a mãe?

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EM: Rosa Alexandre, macuxi também.

DF: [...] Quando vocês nasceram, vocês falavam, os pais [...] falavam ainda macuxi?

LB: Falavam. No meu tempo todo mundo falava macuxi. Ninguém falava português, só macuxi.

DF: A primeira língua da senhora foi macuxi ou foi por-tuguês?

LB: Macuxi. Eu vim aprender a falar português, a língua dos brancos, como falam, quando eu tinha assim, eu tinha uns 10 anos. Eu não sabia falar português. Eu não entendia. Algumas coisas, naquelas velhinhas que falavam, pra mim elas conversavam bem, mas não era não. Depois que eu entendi, eu aprendi, que fui relembrar o que que elas diziam, falavam errado. É. Aprendi falar português com dez anos. Eu falava macuxi, com onze anos pra frente que eu aprendi.

DF: E o senhor foi a mesma coisa. Falavam [macuxi] ou falavam português?

EM: É a mamãe, ela falava, que aí ela é que falava macuxi com ela, mas só que a mamãe não falava com nós.

DF: Ah, entendi.

EM: Por isso que a gente não aprendeu, né? E papai tam-bém não falava, por isso que a gente não aprendeu. Eu vim, eu vim aprender algumas coisas quando ela [dona Letícia] já conheceu a mamãe. Porque ela se dava muito com minha mamãe, a gente é, por isso que eu não aprendi. Mas eu gosto, eu adoro macuxi.

DF: Mas o senhor entende alguma coisa, né?

EM: Bem pouquinho.

DF: Tá certo. Vocês são casados há quanto tempo?

LB: Nós, bem de, cinquenta e, cinquenta e oito, nós convivemos juntos.[...] Nós não somos casados, somos companheiros.[...]

LS: A senhora escreve e lê em macuxi ou a senhora só fala?

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LB: Eu, algumas coisas escrevo em português, eu falo macuxi. A senhora pode escrever macuxi, eu leio e não sei escrever macuxi.

EM: Ela, ela lê o macuxi, mas ela não escreve, ela tá di-zendo assim.

LB: Eu acho que porque nunca... É. Eu leio mas não posso mais escrever devido a vista. [...] Eu canto parixara, eu canto hino da igreja em macuxi.

DF: Qual é a religião de vocês?

LB: Católica.[...]

DF: [...] A senhora sempre foi católica ou modificou? Que hoje tem, nas comunidades, têm várias religiões, né?

LB: Tem. Pra mim não modificou não. Eu sou católica desde quando eu fui batizada. Meus pais me ensinaram a ir à igreja e, até hoje, eu nunca deixei de ir à igreja. Eu adoro.[...] E é assim. Agora, do tempo, nessa geração de hoje, entra professor, macuxi mas não aprende. Ensina parixara, mas não aprende; ensina canto da igreja, não aprende. Eu não sei por quê. Eu me alembro que quando chegou, chegaram os brancos, como nós falamos, indígena só fala branco né, dizia assim: “Comadre, não vai mais ensinar seu filho e sua filha a falar macuxi, que isso é feio.”

DF: Eles falavam isso.

LB: Falavam. Falavam mesmo. E eu me alembro de duas mulheres que chegavam e diziam pra minha mãe: “Não ensina macuxi, que macuxi é feio.” Só que minha mãe não sabia nem falar bem o português, aí começaram adonde largar o seu idioma. Os brancos foram chegando, a gente foi se entrosando com os brancos, ensinando. Foi tempo que chegou o ensino, que é a escola. Aí as crianças começaram a ir pra escola, aí pronto, só foi assim. Começaram a pedir as filhas pra ler, meninas de onze anos, doze anos. “Comadre, deixa eu levar seu, sua filha. Eu vou fazer ela ficar bonita lá em Boa Vista.” Levava. Quando as meninas vinham de lá, vinham com o cabelinho toda enrolado...[ risos] Já, já virou

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branco, né? Porque não muda, só fizeram modificar o cabe-linho em algum bonito de Boa Vista. Tudo isso acontecia na, na geração que se vinha chegando, na minha geração. Eu nunca esqueci que idioma eu falo.

DF: E o que a senhora pensa dessa influência toda?

LB: Eu?

DF: Eh.

LB: Eu penso que eu nunca hei de largar o idioma. Quem chega assim, como o senhor chegou, pedindo a história dos antigos, eu conto a história quando eu sei. Algumas histórias eu passo pras pessoas que me procuram pra contar história

DF: [...]Vocês sempre moraram aqui, não? Vocês estavam falando que moravam primeiro lá na Curicaca, né?

LB: Olha. Eu fui nascido lá na maloca do Barro. De lá eu...

LS: É Surumu, né?

LB: Isso. Vila Surumu. Surumu foi o branco que chamou.[...] Mas pra nós é maloca do Barro. Maloca do Marári cha-mam de, é, Marári já é o branco que chama Marári, pra nós, na nossa língua é Máirari. [...] Marári, o que quer dizer, é Serra do Lagarto. Máirari, agora o branco chegou e chamou Marári. [...] Aí de lá, foi tempo em que a gente nos juntou, nós fomos conviver juntos. Nós viemos pra Curicaca. Em sessenta, nós chegamos aí. Passamos um bocado de anos aí, quando no dia que meu padrasto, pai da Acevilda, a gente morou. Aí de lá pra cá a gente veio morar pra cá, tempo em que meu afilhado, meu sobrinho Valci, era tuxaua. Eu criava minha filha, a mãe foi embora pra Boa Vista, aquelas coisas que tem na vida das pessoas, né? Aí não tinha, meu marido disse: “Vamos vender tudo que temos e vamos pra Boa Vis-ta.” “Vamos sentar e vamos conversar. Eu não vou pra Boa Vista. Que que a gente vai fazer em Boa Vista sem ter nada? Tem criança pra estudar. Como é que nós vamos manter essas criança?”[...] Se fosse só nós dois, a gente dormia em qualquer canto, mas nós temos nossas crianças. Então, va-mos embora pra Santa Rosa. E viemos pra cá. Passamos um

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59 As variantes “caboco”, “caboca”, “cabocos”, “ca-bocas” foram preservadas. Nas entrevistas, em nenhum momento, apareceu a estru-tura com “cl”.

ano ali no centro. De lá que nós fizemos esse barraquinho aqui, ele fez. Estamos aqui. Mas que daqui não sei. [risos].Daqui é aqui mesmo.

DF: Mais aqui é lindo, né? [...]

LB: Aí minhas filhas saíram pra estudar, ver se conseguem, conseguem emprego que até hoje nunca conseguiram. O senhor sabe como é situação de pessoas que não têm con-dições, né?

DF: Eu sei. É muito difícil.

LB: É muito difícil. Aí tá, vai embora uma; vem outra. Essa daqui tá comendo, porque preciso mesmo pra fazer as coisas pra mim. Ela que faz meu alimento, tudo. Apenas estamos passando. Estudaram aqui, daqui foram pra Pacaraima. Nós estamos aqui; nós somos dois velhinhos, que somos mora-dores daqui. Faz mais de dez anos que nós estamos aqui.

DF: E a influência assim do, a influência do branco, como é que a senhora vê?

LB: Bom, a gente tem entrosamento com os brancos, tanto faz com parente ou com os brancos. Como o senhor chegou, eu acho que, eu não sei, eu acho que o senhor in-centiva a nós a receber aqui, como o senhor, a senhora. A gente, a gente se dá bem com as pessoas que chegam, com os brancos. Tem branco que chega com a gente, a gente recebe, se tem alguma coisa a gente oferece. Se a gente não tem, nessas coisas de dizer do branco, né?

DF: Eu sei.

LB: Agora, tem branco que não gosta de índio, mas eu tenho visto muitos brancos que não gostam de índio, índio, índia. Tem aquele sobrosso de não falar com a gente; tem sobrosso de beber a água, a comida da gente, a água da gente: “Esses caboco59 são imundo.” É isso, existe isso.

DF: A senhora já passou algum tipo de preconceito?

LB: Já, já, sim senhor.

DF: O senhor também ou não?

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EM: Também.

DF: Tem que se identificar não, eu sou índio. Já passaram, já? A senhora lembra?

LB: Me lembro. Eh, então, é o que nós estamos falando. Índia, tu é índia.

EM: Posso falar.

DF: Pode.

LS: Claro.

EM: É. Não me lembro bem o ano que, que passou né. Tinha um fazendeiro ali, que morava ali na beira da estrada. Lá chama-se Diamante Verde. Ele não deixava nós caçar.

LB: É o Bantim

EM: O Bantim... Bantim. É, ele sovinava assim os pes-queiros. Dizia que caboco não era pra pescar na área dele, e discutia com, com o pessoal, com umas pessoas daqui. É por isso que ela tá dizendo que não são todos os brancos que, que se dão com os índios. Porque tem branco que maltrata o índio mesmo. Eh. Aqui tinha um branco, ele morreu, o Santos Figueira. Santos Figueira era muito perverso com o índio. Os índios e todos aqueles que trabalhavam com ele botavam no cavalo, se caísse, o que ele fazia, ele metia-lhe a peia. Maltratava muito o índio. É por isso que ela tá dizendo, que nós já passamos coisas difíceis com o branco.

DF: Eh. E como o senhor vê, por exemplo, o índio: [...] o senhor se sente, por exemplo, brasileiro, indígena, como que o senhor se sente assim?

EM: Eh, eu me sinto assim, que é, a gente é índio né, a gente não pode também chegar muito pro lado do branco, né, porque ele não vai receber nós. Branco assim como eles né? Eles ficam sempre tirando quase a gente fora, não é? É isso que a gente sente.

DF: Eu penso assim às vezes né, porque o indígena ele, hoje em dia, ele não vive isolado do mundo. Ele sabe de tudo que acontece lá fora, tem contato, pega aqui e vai ali em

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Pacaraima, tem contato, liga o rádio ali, sabe de tudo que tá acontecendo, né?

LB: Sabe.

EM: Sabe. Mas isso aí já faz poucos tempos que a gente vem entendendo o que o senhor tá dizendo. Tem o rádio, a televisão, muitas coisas a gente já vai, mas de primeiro tinha gente aí, índio que não sabia.

DF: Mas eu quero chegar assim. Hoje tá assim não tá?

EM: Tá.

DF: Mas ao mesmo tempo o indígena ele tem a custódia da União, não é isso? Do governo.

LB: Tem.

EM: Tem.

DF: E o governo, às vezes, pensa que o indígena tá isolado do mundo, que não sabe de nada, que tem nada, que não tem o direito dele, que ele pode fazer as coisas que ele quer na terra que é dele.

LB: Isso.

DF: A gente fica assim a terra é dele ou é da União?

LB: Da União

EM: Da União

DF: Né? Então, como vocês percebem essa complicação, ou vocês acham que é normal isso?

LB: Olha, a gente pensa assim: como é da União, a gente sabe assim, pelos brancos, entendido pelos brancos. A gente que, às vezes, procura saber como é, como não é. É como o senhor tá dizendo, hoje a gente tem entrosamento com os brancos. Fulana como é isso assim, a nossa vida, essa terra é nossa? Como é? Ou não? Bom, a terra é da União. A terra vocês não pagam direito. A terra vocês, como é que diz, protege, vocês são dono da terra até quando a gente qui-ser. A gente mora o tempo que a gente quiser, até quando a gente se apagar. É isso que a gente entende. Mas a gente

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tá sabendo que essa terra não é mesmo da gente.

DF: Porque é complicado, não é?

LB: É.

DF: Porque historicamente a terra sempre foi do indígena não é isso?

LB: É. Mas que é da União, a gente mora o tempo que a gente tem que morar. O tempo que quiser. E aí a gente, a gente vive assim né. Nós temos nossa roça, nós temos nosso plantio aqui.

DF: Vocês plantam o quê?

LB: Olha aí: limão, coco, abacate, mangueira.

DF: Vocês ainda fazem a farinha aí, que eu vi ali.

LB: A gente faz.

DF: Planta...

EM: A mandioca, a maniva,[...], banana.[...].

DF: E outra coisa assim, mudando um pouquinho, aquelas histórias mais mitológicas, assim, a senhora sabe de alguma? O que vocês sabem sobre o Canaimé, por exemplo?

LB: O Canaimé, o Canaimé é parente da gente mesmo. Que existe há muitos anos, tá o Canaimé. Quando eu era criança, ouvia falar no Canaimé. Branco chama Canaimé, índio chama Kanaimî.

DF: Kanaimî.

LB: Kanaimî. Aí na Boca da Mata moravam os antigos. E tinha o parente que comprava, trazia o ralo pra trocar. Lá no Barro eu me lembro; trazia o ralo pra trocar com o que, com rede de fio de algodão; trazia o ralo pra trocar com chumbo, espoleta é... como é, Eduardo?

EM: Pólvora.

LB: Porva... pólvora sei lá. Aí o homem levava, marre-teiro levava, era chamado marreteiro. Levava pra lá, vinha pra cá. Aí tem aquela, aquela coisa, ter inveja dos outro. O

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Canaimé traz isso aí. O Canaimé, rapaz, já traz o mal da in-veja. Aí começou perseguir os outros. Mataram o homem, aí começou, surgiu o Canaimé na Boca da Mata. De lá eles desciam. Tuxauas eram perseguidos por Canaimé, porque eles eram chefes do povo. Aí eles procuravam matar tuxaua, que tuxaua...; matavam assim; matavam qualquer um. Era assim, por exemplo, por aqui falam Santa Rosa é lugar bom, é lugar bonito. O pessoal lá sabe tratar a gente, já tem, vai lá na outra comunidade, que ele já sabe né. Aí eu já fico com aquele, aquela inveja. Eu vou lá perseguir aquela pessoa. Aí eu vou lá, viro Canaimé: boto couro de onça; boto couro de tamanduá; boto máscara pra ninguém me conhecer. Aí eu vou fazer medo, seu Eduardo que tá lá na roça trabalhando sozinho eu dou um grito: Eei! Ei! Ei! Ei! Aí ele toma aquele susto e ele vem, faz sinal pra ele, aí ele vai embora onde tá o Canaimé. Eles usam puçanga pra gente não contar o que eles fizeram com a gente.

DF: O que é puçanga?

LB: Eu não sei o modo não. Puçanga eu não sei nem explicar. [Risos]

EM: Eu acho que é assim alguma.

LB: Alguma... um tajá que eles usam, né.

EM: Um tajá.

LB: Que eles têm, eles usam tajá.

EM: Eu não sei não. Eu ouvi dizer uma coisa, pra mim é assim como esse pessoal que usa hoje droga. Sei lá, nunca nem vi, nem conheço droga. Tem gente que toma droga, fuma não sei o que, pra ir matar os outros. Eu acho que é assim o Canaimé, não sei não.

DF: E eles fazem o que com as pessoas, o Canaimé?

LB: Matava.

EM: Bate.

LB: Bate.

EM: Acocha a garganta e faz a pessoa passar mal, enforca.

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Aí a pessoa adoece e morre. Fica todo batido por dentro. Aí a história do Canaimé. “Ah, Canaimé matou fulano!” É assim, né. Eles pegam dois, três.

DF: E como é que sabe que a pessoa foi atingida, porque quando a pessoa é atacada pelo Canaimé, eles não, eles não falam, me falaram, não é? Assim, ele não fala?

LB: Ele não fala.

EM: Ele não conta.

LB: Justamente. O tajá que eles usam pra pessoa não contar. Passa na boca pra pessoa não contar. Agora quando ele chega, por exemplo, quando ele chega, ele chega hoje meio-dia. Ele tá triste, tá com febre, dor de cabeça. Passa a noite toda com febre. Aí a pessoa desconfia. Sabe que foi o Canaimé que agarrou ele. “O Canaimé te agarrou?” “Não.” Lava o pilão, lava o pilão; tira água do pilão; côa; dá pra pes-soa beber. Diz que descobre, aí ele conta tudinho.

DF: Aí ele conta...?

LB: Conta. Se ele viu gente, agarraram ele lá, bateram nele. Aí é donde se tiver batido, ele morre mesmo. Morre, não tem jeito não. É assim.

DF: Teve caso aqui na comunidade, já?

LB: Já. Eu me alembro, o irmão desse que o senhor gra-vou lá, adoeceu. Ele não ouvia, ele era surdo. Ele trançou a peneirinha, foi tirando os cabinhos, uns pauzinhos que ficam tecendo na peneira, que ele foi sozinho não escutava. Eu digo que foi Canaimé, porque ele... Olha fulano tá passando mal. Seu Leopoldo tá passando mal. Aí nos fomo lá, lá na casa do, da sobrinha dele. Chegamos lá, (se dava muito com a gente), aí ele, quando ele viu o Eduardo, ele falou bem baixinho: “Eduardo.” “Quatro pessoas.”

EM: Ele já tava passando mal, já.

LB: Ele já não tava mais falando. Ele apontou, apontou os dedos: “Eduardo.” Quer dizer, foi Canaimé que matou o pobre. Ele morreu, aí trouxemos ele pra cá, pro posto. Avião

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veio pegar ele. Só foi morrer em Boa Vista.

DF: Não teve jeito.

LB: Não teve jeito não. Se é assim, não tem jeito não.

DF: [...] História mesmo de bicho, que os antigos conta-vam, a senhora lembra de alguma?

LB: Lembro.

DF: É isso que a gente, que é coisa que a senhora gostaria que ficasse assim guardado pra sempre. História de bicho mesmo, de Macunaima se a senhora souber se a senhora quiser falar ou de qualquer coisa assim de um animal, que os antigos contavam.

LB: Antigos contavam, os antigos contavam a história de, bom Canaimé já passou, né?

DF: Já. Já passou Canaimé.

LB: Já passou Canaimé. Agora tem a história do que chamam Curupira.

DF: Do Curupira é?

LB: Eh. Ele assobia na serra, na mata. Ele tem os cachor-rinhos dele. O Curupira tem cachorro. Né, Eduardo?

EM: Hum hum.

LB: Ele assobia, cachorrinho corre do lado, corre em qualquer caça ele na mata. Ele chama, mas nós nunca vimos.

DF: Nunca viram?

LB: Não.

DF: Ouviu falar de como que ele era?

LB: Ele era modo uma pessoa, mas não sei como é que ele é, né. Antigamente, a gente não podia andar perto daquela serra. O senhor viu aquela serra lá?

DF: Eu vi.

LB: Não tem aquela pedrona assim...

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DF: Redonda?

EM: Eh, aquela redonda.

LB: É redonda. Ali, não podia passar, que meu pai que contava né, que conta, que não podia passar uma menina menstruada, não podia passar uma pessoa de luto que encan-tava antigamente. Tinha que benzer urucum..., que a gente bota na comida..., que nós chamamos de chipî.

DF: Chipî.

LB: Chipî, o velho benzia, passava por aqui no rosto todo, nos pés, pra poder passar lá. Isso quando tava de luto e quan-do a menina ou a mulher tá menstruada. Se não fizer isso...

DF: Acontecia o quê?

LB: Passa lá e o bicho ficava assobiando lá de cima: Fiu, fiuuuu. Mas diz que é bem longe assim e aí a pessoa não podia olhar pra lá. Se olha pra lá, já adoecia. [...] Com a con-tinuação, como os brancos começaram a entrar em tudo, aí o bicho, eu acho que se afugenta também. [...]Eh. Aí passa é, é lugar de história.

DF: E do timbó, a senhora sabe a história?

LB: A do timbó é, timbó tem um pé dele bem grande, cor-ta, pra matar o peixe. Antigamente só matavam peixe assim, com timbó, aqueles pedaços assim. Bater, bater dentro da água e... Como é que podavam, assim né, aquela golda de timbó. Os peixes morriam tudo, assim que viviam os índios.

DF: A senhora nunca ouviu falar da história de como nasceu o Timbó não?

LB: Não senhor, não sei não. Eu acho que o timbó veio da mata, não é, Eduardo?

EM: Tem duas qualidades de timbó, tem timbó que cipó, cipó mesmo, mas só que ele é muito forte. Quando tá batendo ele, faz aquela roxidão. Aí pega, aquilo tudo batido, faz aqueles feixinhos e leva pra água. Também se tiver mulher gestante não pode ir no meio do pessoal que vai botar o timbó.

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DF: Ah, é?

LB: E a pessoa de luto também.

EM: Pessoa de luto também. O senhor sabe que os peixes desaparecem?

DF: Ah, é?

EM: Desaparece. Na... na... na... na... como é que chama quando os peixe estão subindo? Como é? Piracema, piracema ? [...] Se na piracema a gente vai pegar peixe, se tiver alguma, ou algum homem mesmo que a mulher estiver buchuda, desaparece. [Risos]. O senhor acredita nisso? É verdade isso. Se estiver uma pessoa de luto, a gente vai espanta caça na mata, veado. Esses veados capoeira, porque são duas, três veados. Como é? São três qualidades: tem veado capoeira; o campeiro; e tem o veadinho da mata, pequeno assim. Aí a gente vai, distância assim, aquele veado vem, o capoeira, eu não sei que mistério ele tem, mas ele adivinha. Eu acho que ele adivinha. Se ele chegar onde tá aquele senhor que tem a mulher dele que tá buchuda, ele volta em cima da hora. [Risos] Volta mesmo. Eh, história do pessoal, aqui do caçador.

DF: E pra ser bom caçador tem que fazer o quê?

EM: Pra caçador, a pessoa tem que... esse meu sogro que ela tá falando que é o padrasto dela, quando a gente sai pra pescaria e pra caçar, não têm aqueles lacraião grande, chama lacraião não sei como é que chama, é escorpião, né?

LB: Escorpião.

EM: Isso.Tinha que ferrar. Pegar ele assim, e tinha que ferrar o braço do pessoal que ia sair pra caçada. Caçar, eles vão caçar. Matar veado e mata mesmo. Tudo eles faziam os antigos. Hoje não fazem mais não. Se a gente levar uma ferrada de uma lacraia hoje, vai morrer. [Risos] Então, isso a gente já fez também. Corta o braço. Aí tem uma, tem uma, tem uma...

DF: Cortar com o quê?

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EM: Com uma garrafinha, um vidrinho pequeno, gilete. Eles fazem uma misturada com a massa. Não sei que massa é. Põe assim, aí passa no braço do pessoal que vão pra caçada. Tudo isso existia. Hoje, como a gente tá falando, já tá mais... o pessoal não tá mais ligando. Tá ligando mais é pra televisão mesmo, jornal. Ninguém quer mais saber de flechar, fazer... De primeiro, curumim desse tamanho vai querer saber de ficar fazendo flecha pra, fazendo caniço pra ir pescar... Hoje é difícil, é difícil fazer isso.

DF: Já nem faz mais, né?

EM: Nem faz mais.

DF: [...] E pimenta? Vocês usavam pra quê? Passavam no corpo, no olho, alguma coisa assim pra alguma coisa?

EM: A pimenta, quando colocava a pimenta no olho, é pra bicho não olhar a gente.

DF: Ah, pro bicho não olhar.

EM: É, né?

LB: É.

EM: É ela vai contar, porque ela sabe mais do que eu. [Risos]

DF: Então, vai lá.

LB: Bom, da pimenta, por exemplo, a gente vai pra mata, né. “Bora pra mata, lá pra roça, lá no Orocaima. Umbora. Já comeram pimenta? Já. Coloca, come damorida, bem ardosa.” Depois passa um pouquinho de pimenta no olho que pro bicho não vê a gente, não pegar a sombra da gente ou não pegar no rastro da gente. A gente vai embora não acontece nada.

DF: Ah é?

LB: A história dos índios, né? Aí a gente não acontece nada, tu vai na roça trabalha. Quando é hora de almoço, a gente não pode passar a hora de comer que tem bicho que dá, oferece comida pra gente, adoece, dá dor de cabeça, são aquelas coisas. Já hoje, como seu Eduardo tava falando, que

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não, ninguém faz mais isso. Acabou.

DF: E se a pessoa fosse preguiçosa?

LB: A pessoa fosse...

DF: Não quisesse fazer. Tinha que fazer o que com essa pessoa?

LB: A pessoa fosse pregui... É o menino ou a menina, tem que botar pimenta.

DF: Botar aonde? [Risos em geral]

EM: Pode dizer.

LB: Eu posso dizer?

EM: Pode.

LB: Mistura, rala a pimenta. Tem pimenta canaimé própria pra isso. Mistura com um pouquinho de massa, aquela pimen-ta fica bem vermelhinha. “Curumim, você tá com preguiça, passa pra cá! Abre a bunda aí e mete a pimenta.” Curumim vai pra dentro d’água.

EM: Fica esperto e começa a correr.

LB: Fica esperto. Num instante procura água. Sai pulando. Pois é. [Risos] Tanto faz, um menino como uma menina. É era assim.

DF: Que acontecia. Hoje em dia não faz mais, né?

EM: Não faz não.

LB: Não faz não.

DF: É claro que a pessoa depois de uma dessa nunca mais ia ter preguiça. [Risos]

LB: Pois é. É assim, né.

DF: Na outra comunidade eles contaram que eles passa-vam no olho, quando a pessoa tá com preguiça.

LB: Eh. Do tempo que eu conheci foi assim. Botavam pi-menta braba.[...] Tira a calça aí e abra a bundona aí e passa pimenta. Queima toda. [Risos]

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EM: Também serve pra outra coisa né. Quando a pessoa tá passando mal, o curumim. Aí a mãe via, assim como o médico, o médico não examina a gente? Eu digo porque em Manaus o médico me examinou. Ele viu o meu corpo todo. Então, a gente fazia o mesmo. Cuidava do filhinho né. Então, o bicho tá comendo a criança pela bunda. Faz aquela massinha, e era isso que os índios faziam.[...]

DF: Eu sei. A de Macunaima, a senhora sabe a história?

LB: Macunaima?

DF: Eh.

LB: Olha eu não sei bem de Macunaima não. Mas só ouvi a história de Macunaima. Macunaima, meu pai fala que Ma-cunaima, chama-se Macui. Uma hora ele fala que Macunaima que chama aquele tiquiri que anda nas paredes.

DF: Ah é?

LB: Eh. Tu sabe qual é o Macunaima, seu Eduardo?

EM: Não.

DF: História do Xikî, também não?

LB: Não. Mas tem gente que sabe.

DF: Mas não tem problema isso.

LB: Tem gente que sabe. Já ouvi contar, mas não aprendi.

DF: E alguma história de bicho, por exemplo, a senhora sabe assim de bicho que vira gente ou de bicho que fala, já ouviu alguma história antiga?

LB: Sei não.[...]

DF: Da mulher que casou com o guariba? Nunca ouviu?

LB: Não, mas eu sei do relâmpago.

DF: Do relâmpago é? Como é que é?

LB: O relâmpago tinha uma filha muito bonita. É uma história que eu sei.

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DF: Ah é? Então, é história assim que a gente quer ouvir mesmo.

LB: Eh, do relâmpago. Por exemplo, seu Eduardo tem uma filha bonita que ele é brabo né, ele é brabo. Faz de conta que ele é o relâmpago, ele tem uma filha bonita. Chega, chega outro animal. Ela era filha do relâmpago. Aí chega o Macaco: “Fulana você quer casar com ele? Quer casar comigo?” “Não sei. Você aguenta o desaforo do meu pai?” “Eu aguento.” “Então a gente casa.” Aí ele ficava junto daquela menina. Lá vinha o Trovão. Quando troveja assim.

DF: Eu sei.

LB: Peeei, pei... Que pega o relâmpago. Lá vem meu pai, ela dizia. “Isso não é nada não.” Quando ele chegava assim no terreiro que dava aqueles tiros, trovoada doida, o Macaco por aqui. [Risos] Vem embora. Aí, chegou a Onça. “Menina quer casar comigo?” “Caso sim, você aguenta o desaforo do meu pai?” “Aguento.” “Ele é brabo, né, também eu sou braba.” Aí lá vem o Trovão, dando, ia dando aqueles tiros. Aí quando chegava pertinho a Onça ia embora. Aí chega o quê? Poraquê. “Quer casar comigo, menina?” “Não sei. Caso. Você aguenta o desaforo do meu pai? Meu pai é brabo.” Aí ele disse assim: “É nada. Teu pai não é brabo não.” Aí diz que lá vem o Trovão: Peeei, peei... Dando tiro. Aí, ela diz: “Lá vem meu pai, lá vem meu pai. Chegou bem perto aí o, como é que chama ele agora?”

EM: Poraquê.

LB: Poraquê levantou e se agarrou com o pai dela. Se agarrou com o Trovão, botou o Trovão no chão, porque ele dá choque. Aí o Poraquê ganhou a filha do Trovão.

DF: Foi é? [Risos]

LB: Eh, assim é a história.[...]

DF: É o peixe elétrico, né?

LB: Ele que casou com a filha do Trovão. É a história.

DF: O que significa Orocaima, a senhora sabe?

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LB: Orocaima é donde existe muito papagaio.[...]

DF: O nome aqui...

LB: É Orocaima.

DF: É Orocaima, né? Depois que passou a ser Santa Rosa, não é isso?

EM: Depois.[...]

DF: Aqui então tem história que era muita, que tinha muito papagaio aqui?

LB: Tinha. [...]

DF: Ah é? A senhora lembra quando ainda tinha a presença do pajé na comunidade?

LB: Lembro.

DF: E como é que era?

LB: O pajé ele era o médico, pajé era médico dos antigos. É, aquela conversa que a gente puxou de Canaimé. A pessoa que adoecia. Às vezes criança se assustava, passando mal ali. Vai chamar o pajé lá da Curicaca ou da Santa Rosa. Aí o pajé vinha, batia folha, cantava. Tem Maruwai que traz a sombra da gente. Não sei se vocês, os senhores conhecem.

DF: Não, o que que é?

LB: Maruwai é...

EM: É uma resina de pau.

LB: É uma resina que ele é bem cheiroso.

EM: Bem cheirosinho. Pode fumar.

LB: Pra defumar as crianças. Às vezes derrete aqueles pinguinhos dentro d’água pra criança beber.

DF: E faz o quê? Faz...

LB: Faz trazer a saúde das crianças. Essa é do pajé, né? Tem a cantiga do pajé, do Maruwai.

DF: Como que é, a senhora sabe?

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61 Dona Letícia não repetiu a música, mas aparentemente a completou

60 Todas as transcrições e traduções em macuxi fo-ram realizadas por Rivelino Pereira de Souza.

LB: Eh, sei. Espera aí que eu vou contar. O pajé ele bate folha, bate folha, bate folha. Ele fica cantando, a gente fica acompanhando, que aí ele vai: “Criança tá assustado, vam’bora buscar o espírito dessa criança ou daquela mulher ou daquele senhor.” Aí começa a cantar.

Amîrî wîtî tane, amîrî wîtî tane, ashikî manonAyete’ tá’ ashikî manon Manon yawon pa wamî pia ashikî manon. 60

Suwooo! Suwooo!

[Enquanto você vai, enquanto você vai, venha filhaNa sua rede, venha filhaFilha, venha no meio de sua gente, filha]

LB: A gente chama o espírito. Vem cá; vem com teu pes-soal, com teus irmãos; vem comer sua comida junto com a sua família. É assim que a gente cantava, né. Hoje já não existe mais.

DF: É tão bonita a música, não é?

EM: É bonita sim. É bonita e triste [Risos]

LS: É bonita.

DF: Mas é. É bonita e triste. E essa quer dizer o quê?

EM: Ela tá chamando...

LB: Tá chamando o espírito daquela pessoa.

DF: Traduz pra gente. Traduz tenta cantar em português agora. A senhora sabe?

LB:Yekaton anepî tane Maruwa, Maruwa manon yekaton ene’kîMaruwa, Maruwa, Maruwa wîkîrî wîtî manon yekaton ene’kîMaruwa, Maruwa, suwooo! Suwooo! Asîkî Manon.61

LB: Maruwai, traz o espírito dessa criança. Ou da pessoa que tá doente né?

EM: Vem com a tua mãezinha.

LB: Vem com a tua mãezinha enquanto nós estamos

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chamando. Maruwai tá chamando teu espírito. Vem pra sua rede, vem comer com sua família deixa a comida dos bichos pra lá. Aí quando é noutro dia, a criança amanhece...

EM: Melhorzinha.

LB: Melhor.

LS: Elas que curavam... [...] Era assim mesmo que faziam, elas assim.

EM: Canta de novo pra eles ouvi mais uma vez.

DF: Isso. [Risos] [repete a canção anterior]

EM: É assim como ela tá chamando assim: “Oh, vem cá, vem comer com nós, deixa a comida dos bichos.”

DF: E outra? A senhora sabe mais alguma assim dessa, do pajé,[...] alguma coisa mais? Algum canto mais?

LB: Eh, já esqueci, me esqueci.

DF: Esqueceu é?

LB: Esqueci.[...] Eh, eu me esqueci muita coisa que...

EM: É como a gente tá dizendo. A gente já tá usando coisa dos brancos.

LB: Já estou esquecendo até parixara que a dona Fátima diz que admirava em Boa Vista.

LS: Antigamente era o pajé que era o médico. Hoje, quan-do as pessoas adoecem aqui...

DF: Antigamente era o pajé e hoje?

LB: Era o pajé.

DF: E hoje?

LB: Conheci Luís, pajé lá do banco. Pajé Geraldo Barbosa que é meu tio e mataram ele em Boa Vista, envenenado. Ali era pajé!

EM: Ele era pajé. Médico mesmo.

LB: É quase. Tem pajé quase médico. Ele era um dos que existia ali, lá no São Jorge.

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DF: Qual era o nome dele?

LB: Geraldo Barbosa.

DF: Ele morreu como?

LB: Ele morreu assim olha, ele curava muita gente. Tinha um branco, por nome Djalma, Djalma não sei de que lá, ele morava no Surumu. Ele tinha ferida na perna. “Será que esse pajé sabe mesmo?” “Geraldo vem ver aqui o que que ele tem na perna.” Ele foi lá. “Ah seu Djalma, tá com pereba na perna assim.” “Tu, tu reza pra mim?” “Rezo.” Ele rezou nas feridas do seu Djalma. “Será que esse pajé, é verdade que ele conhece mesmo? Esse pajé tá é mentindo. Peraí.” “Seu Djalma, o senhor não vai comer galinha, não come ovos, não come porco, carne de porco. Daqui uns dias mais, mais tardar um mês, o senhor vai ficar sem comer dessas coisas. Não come carne de gado, essas coisas, peixe, que porco faz mal.” Geraldo foi embora pra casa dele dia. Passam uns dias... aí vinha ele. “Eu quero ver se Geraldo adivinha mesmo.” E ele comeu carne de porco, comeu galinha ele. A ferida tornou a espocar de novo. Mandou chamar finado Geraldo aí ele: “Seu Djalma, o senhor comeu porco, seu Djalma.” “Eu não comi.” “O senhor comeu.” Aí eles começaram a teimar. E ele tinha comido mesmo. Aí é donde ele acreditou. O branco, né? Acreditou nele. Foi assim. Pra ele morrer, ele morreu em Boa Vista, foi em cinquenta, cinquenta e seis. [...] Em cinquenta e seis ele morreu. Então, ele tinha um conhecido, que tinha uma comadre por nome Andrelina. O marido dela morreu e ela se juntou com, com homem novo. Ele bebia muito, e ela também bebia. Briga de casal né?[...] Ele vai coloca veneno no, na bebida, na bebida. Ele sabia que ela gostava de beber. Era pra matar ela. Aí o pajé chegou, [mas não adivinhou]. Ele gostava muito de beber também, ele bebia muito. “Geraldo tu não quer tomar café ou quer tomar café, café branco?” “Eu aceito café branco.” Ela foi, ela deu um trago pra ele, demorou o homem caiu. Quando ele sentiu, ele disse: “Olha comadre, você me matou.” Quando ele tragou a cachaça, ele disse: “A comadre me matou.” Aí ele morreu né, morreu

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envenenado.[...]

DF: E qual é a história do parixara?

LB: A história do parixara, parixara já é dança. [...] A dança, dança antiga. Tem tucui, tem areruia, tem parixara. Dança parixara. São danças.

DF: Mas vocês dançam quando? Dançavam. Hoje em dia dançam mais...

LB: Dançavam, né. Dançavam em tempo de Natal, dan-çavam mais no tempo de Natal. Por exemplo, aqui é uma comunidade indígena. Hoje não tá mais acontecendo como o seu Eduardo fala, não tá mais acontecendo, por exemplo, vai ter festejo de Natal lá na Curicaca. Aí o tuxaua de lá manda convite pra cá, aí todo mundo se prepara pra ir pra festa. Vai o senhor; vai ele; vai ela; mas tudo é homem, cinco, seis homens. Lá estão seis homens preparados pra chegar, pra chegada do, do como é que chama?

EM: Receber o pessoal de outra comunidade, né.

LB: Eh.

DF: Os visitantes.

EM: Isso.

LB: Tem um nome pra eles, como guerreiro tem [um nome], esqueci o nome. Aí vão pra lá. Chega lá tem tabatinga. Eles começam a se pintar de tabatinga, né? Barro branco. Se pinta. Aí corre. Lá vem o pessoal. E as mulheres ficam aqui preparadas. Não deixa o homem entrar, se entrar pra dentro de casa, se o homem entra e escapulir da mão de outro homem, ele vai lá dentro beber caxiri lá dentro. Pra não deixar ele entrar lá dentro, aí lá vem o homem, aí lá vem, pega o homem, pega homem. Como é que chama quase como queda de corpo. Como é que chama, eu já esqueci o nome. Aí deita aqui no ombro do outro, aí o outro agarra. Aí o outro agarra, e o que tá esperando tem que agarrar o que vem chegando; aí suspende; aí pronto. Mas tem vez que quando escapole daqui, ele procura entrar dentro de casa. Aí para todo mundo, aí já vem o pessoal, já vem cantando de

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lá o parixara. Aí as pessoas levam pra ir encontrar os outros, com cuia de caxiri, beiju; e andam cantando também. Aí se encontram, entram dentro de casa e fazem a roda e vão dançar parixara.

DF: E como que é a música do parixara?

LB: Parixara? Parixara tem, é cantado né.

DF: E como é que é? A senhora poderia cantar pra gente?

LB: Canto. [...] Vou cantar assim né, meu pai me ensinou assim. Eu aprendi a cantar há pouco tempo e eu me esqueci que o vovô me ensinou. Eu cantava, que eu aprendi, que eu fui ensaiar os meninos em Boa Vista e cantava.

Shosi tá î’ku pîu ya tane (bis)Arerui ya, ikukî u’pasî arerui ya i’kukî upa’sîShosi tá î’ku pîu ya tane (bis)Arerui ya, ikukî piipi arerui ya i’kukî piipi

[Enquanto eu canto na igreja, (bis)Aleluia, cante minha irmã, Aleluia.[Enquanto eu canto na igreja, (bis)Aleluia, cante meu irmão, Aleluia.]

LB: É assim[...]

DF: Aí fica cantando e dançando?

LB: É todo mundo fica dançando pra lá e pra cá.

LS: Já tem outra. Tem outra música?

LB: Tem.

LS: A senhora lembrou agora?

LB: Estou lembrando devagar.

DF: É. A gente não tem pressa não.

LB: Shiso, Shiso ya purîu ya sîrîrî pe penane (3 vezes)Shiso, Shiso morî antî kî sîrîrî pe penaneShiso, Shiso u’pî katî kî sîrîrî pe penane (bis)Oi, oi, oi…(Tawon senî’ kraiwa, eserenka’to)

[Cristo, Cristo eu te lebarei hoje e amanhã (3 vezes)Cristo, Cristo me abençoe hoje e amanhã

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62 Essa frase não pertence à música e foi dita em tom de ironia com o entrevistador.

Cristo, Cristo me ajude hoje e amanhã. (bis)Oi, oi, oi...

(É assim que eu canto, branco)62]

[Risos]

DF: E quer dizer o quê? Eu não sei macuxi.

EM: Não.

LB: “Você é branco. É assim que eu canto pros brancos.”

DF: Como?

LB: “É assim que eu canto, branco.” Eu estou dizendo pros senhores.

EM: Ela tá dizendo pro senhor.

DF: Eh. Tá vendo? Se eu não perguntasse? [Risos]

LB: Pois é.

EM: E aquela do vovô? Eu acho bonita.

LB: Eu esqueci homem. Eu estou esquecendo.

EM: Eu acho bonita aquela música dele.

LB: Tem outra aí.

Iwareka piipî uri tumai (bis)Arau’tá piipî urî usan purari,Iwareka piipî usan purariIwareka piipî urî tumai (bis)

[O couro do macaco é minha damorida (bis)O couro do guariba é o meu tamborO couro do macaco é o meu tamborO couro do macaco é minha damorida (bis)]

[...]

EM: Explica pra ele o que quer dizer.

DF: Que quer dizer?

LB: É, é...

LS: Em português.

LB: Em português: “Macaco é comida dele. Tá cantando

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que “Macaco é comida dele. Como é? “Couro de macaco é tamborzinho que o índio faz.” né? “Couro de macaco é meu tambor.” Já “Couro de macaco é minha damorida”, que diz.

DF: Ham ham.

Música.

LB: Iwareka piipî uri tumai, Iwareka piipî uri tumai é da-morida. Usan purari é tambor. Uri tumai é damorida. “Coro de guariba é meu tambor”, né? “Coro de guariba é minha damorida.” São só essas duas palavra, são quatro aliás, né.

[...]

LB: A música do vovô eu esqueci mesmo.

EM: É. Ela canta a música do vovô e agora no momento ela não lembra.

LB: Num lembro. Agora eu lembrei que canta muito em, em Natal né? É... Natal chama-se krishi moshi.

Krishi moshi pokon inîpî man (bis) Are, are, ru ya; are, are, rui ya (bis)

[Os que são de Natal estão chegando (bis)Ale, aleluia; ale, aleluia (bis)]

LB: É assim que é o canto.

DF: Ham ham.

LB: De Natal.

DF: Areruya é Aleluia, né?

LB: Areruya é Aleluia né.

DF: É Aleluia né? Não, tá certo assim. É a nossa aleluia, não é? E fala de que essa música?

LB: Fala de Natal. Krishi moshi é Natal. [...] Areruya é aleluia, é da música

LS: E aqui na comunidade ainda faz muito isso no Natal, pelo menos assim uma vez ao ano?

LB: Porque não fazem mais. Aquilo que eu tava contando

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agora, a gente tempo do tuxaua Valci, que fez esses ensaios de parixara. Aí foi tempo que eu perdi a vista, né? Que eu não posso mais dançar mesmo. Já estou toda aleijada, sei lá. Bom, aí de hoje por diante eu não vou mais ensaiar. Quem dirige parixara agora é professor Ário. Ele que tá ensaiando, não sei se ele ensaia. Quem deve saber é o tuxaua, quem manda aí é o tuxaua, né? [Risos]

LB: É, é o nosso capitão daqui. Ele deve falar alguma coisa sobre parixara aí pra comunidade. Mas foi bonito o tempo em que eu trabalhei. Eu tenho foto aí. Quando eu... tenho foto do Neudo Campos, quando ele era governador. Foi do tempo do Neudo. A gente trabalhou...

DF: E a senhora lembra mais alguma música? Qualquer uma que a senhora lembra relacionada a alguma história? Por exemplo, o caxiri. Tem um história pro caxiri ou não tem? Uma história assim de como ele surgiu?

LB: Caxiri é, ele é feito assim da mandioca. Caxiri, a gente arranca; pega; tira a goma; deixa pra espremer no outro dia. Aí no outro dia, espreme, faz o beiju. Tem o tempero do caxiri. Moi aquela folhinha de maniva, moi bem moidinho. Mistura com a massa; torra bem a massa pra misturar o pó da maniva. Aí, pega a folha de bananeira; coloca no chão assim; bota carvão ou a cinza quente por de baixo. Aí abre a folha em cima. Pega o tempero, aí bota por cima da folha. Molha o beiju, bem molhadinho, aí vai colocando, vai conversando.

DF: Conversando o quê?

LB: Conversando com beiju, com o caxiri. “Amadurece bem. Se você não amadurecer eu vou te jogar pra cachorro comer, pra galinha comer. Você não vai se zangar. Olha o pessoal vem aí pra tomar caxiri, pra chegar em casa: Oh, caxiri gostoso.” [Risos] É, a gente conversa assim. Eram os antigos que conversavam. Aí coloca de novo o pó, vai colocando. Cada camada, vai colocando o pó. Aí terminou, tem que colocar folha de novo de maniva em cima, que é pra abafar. Passa o quê? Deita hoje; passa amanhã; depois de amanhã

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que vai levantar. Enquanto o caxiri não levantar, não tirar do chão assim, quer dizer, das folhas, aí aquela pessoa que deitou o caxiri não pode tomar banho.

DF: Ah é?

LB: Eh. Tem que passar um dia. Hoje deitou pajuaru, o nome é pajuaru, né...do caxiri. Não pode mais tomar banho, passa o dia e a manhã sem tomar banho. No dia que tira o pajuaru, aí que vai tomar banho. É a história do caxiri.

DF: E se a mulher fazer o caxiri e não dá certo assim? Tem alguma, alguma coisa que faz pra ela começar a acertar?

LB: Tem, porque se não tiver bem assado o beiju, não amadurece, fica azedo.

DF: É porque assim, contou uma senhora lá que, por exemplo, a mulher pega uma [navalha]; a senhora mais velha pega a mulher, corta aqui [parte interna dos lábios] assim nela, passa alguma coisa, aí depois que fizer essa...

LB: Não, corta aqui.

DF: É aí.

LB: Eh.

DF: É isso que eu quero saber.

LB: Eh, antigamente cortavam o braço assim, a mãozinha, botava aquele sangue. Aí passava mel de abelha, pro caxiri amadurecer bem madurinho. Às vezes, uma pimenta bem leve com o mel. Pra quando deitar caxiri, caxiri amadurece.

DF: Então, é isso que fazia?

LB: É, isso que fazia. Aí depois que deitar o pajuaru, tem algodão pra fiar, tem aquela coisa, né? Porque quando o caxiri amadurece, cria aqueles pêlos brancos. Quando esta bem madurinho, ele cria aqueles pêlos bem branquinhos, algodão assim. Pode contar que o caxiri tá maduro. Bem docinho. Parece assim que a gente colocou açúcar. É só isso a história do pajuaru.

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DF: E a, os meninos, vamos ouvir do senhor. Por exemplo, na época do senhor ou a senhora mesmo, quando o menino tava começando a virar rapaz, tinha algum ritual ou alguma coisa que faziam?

EM: Dos meninos?

DF: Eh.

LS: Pra ele ficar guerreiro, corajoso.

DF: Tinha algum ritual, alguma coisa que faziam com os meninos, que os antigos faziam ou não?

LB: Fazia.

EM: Fazia sim.

DF: Vocês lembram? A senhora lembra?

EM: Eu não lembro quase não, mas existia isso.

DF: Um ritual?

EM: Eh.

DF: Depois daquilo, era quase como que ele fosse aceito na comunidade como homem, como guerreiro, não é isso?

EM: É.

DF: A senhora lembra o que faziam com eles, alguma coisa?

LB: Bom, o rapaz, quando ele tá ficando rapaz, os velhos curavam, com a pimenta, cortavam tudo, botavam pra caçar. “Eu vou botar seu Eduardo pra ir pescar.” Primeira vez que ele vai pescar, né. Já fizeram trabalho com ele.

DF: E como que era o trabalho?

LB: Pimenta ou tajá, tem o tajá que eles fazem. Lava o braço, ferra com a lacraia, como ele tava falando. Tanto fazia mulher como homem também fazia, dava uma ferradinha de lacraia. Às vezes ferrava com aquele tucandeiro que cha-mam. Já hoje não existe, existia muito. Aí vai o rapaz. Vai seu Eduardo, vai, vai caçar, leva a espingarda, leva seu caniço e vai pescar. Aí ele vai pescar, ou traz veado ou peixe mesmo,

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ele chega com a caça dele. Ele não vai ter direito de comer a caça que ele matou.

DF: Não?

LB: Não. Senão ele fica panema. Não mata mais caça.

DF: O que é panema?

LB: Panema é, como é que, não mata mais. Nem peixe se ele pegar ele não come.

DF: A primeira vez.

LB: A primeira vez. Se ele pegar não tem o direito de comer a caça dele. Assim, assim mesmo menina. Menina, quando ela se forma primeira vez, ela não tem direito assim de conversar com rapaz; não olha pra gente; tem que armar rede dela bem alto, que pra quando chegar homem ou rapaz não ver. É proibido ela olhar pras pessoas. Aí ela, por exem-plo, ela menstruou hoje: “Ela tá menstruada.” “Então você vai ser guardada.” Aí guarda. Isso era antigamente.

DF: Guardava como?

LB: Guardada é deixar lá dentro pra ninguém mexer com ela, não conversar com ela. Arma redinha dela, bota bem em cima, dessa altura assim, ela fica deitada.

DF: Quanto tempo a pessoa ficava?

LB: Uns três dias, quando ela termina menstruação. Passa três dias, aí o avô ou pai trança olho de buriti assim pra ela sentar em cima. Quando é de madrugada, cinco horas, ela já tá melhor, né, senta ela naquele trançado, como um tapete. Ela senta ali, ela vai fiar algodão, aí ela, já é cinco e meia, ela trança de novo olho de buriti bem comprido. “Embora, você vai tomar banho agora.” Chega lá na beira do rio, ela vai levar três tacadas de olho de buriti.

DF: Olho de buriti é o que? É uma...

LB: É trança.

EM: Cipó.

LB: Como é, modo dum cipó. Palha de buriti, eu chamo

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de olho.[...] Trança, aí o pai dá três tacadas na menina, aí ela cai na água, toma banho e vai embora pra casa. Aí quando ela vai ralar mandioca, é benzido, o pai benze pra poder ralar mandioca. Aí manda ela cantar.

DF: Cantar o quê?

LB: Cantar, quando ela vai cantar, ralar a mandioca ela tem que cantar.

DF: A senhora não lembra a música não?

EM: A música da mandioca, ela sabe.

LB: Sei, sei.

DF: Então, é isso, a senhora poderia cantar pra gente?

LB: Canto sim. Aí ela vai ralar a mandioca. Aí a mandioca tá benzida. Não acontece não. Se a gente pegar trabalho assim, às vezes: “Ai, meu braço tá doendo!” “Ai aqui tá me doendo!” “Minha mão tá doendo!” Pra não acontecer isso, tem oração pra isso, que benze. Aí ela vai. Taí a mandioca. Tá benzido vai ralar essa mandioca. Tá bom. Aí ela pega ralo e vai ralar. Ela começa a cantar assim.

Ariike’ kai’ma sane (bis)A’piya uyawi’shi rumpa’ pîAriike’ kai’ma sane (bis)A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pîMîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî

[Pensando que eu era trabalhadora (bis)Teu irmão me namorouPensando que eu era trabalhadora (bis)Teu irmão me namorou.]

LB: Ela começa, ralando mandioca, né [faz um som, imi-tando o ralar mandioca]. Aí ela continua.

Ariike’ kai’ma sane (bis)A’piya uyawi’shi rumpa’ pîAriike’ kai’ma sane (bis)A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pîMîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî

DF: E quer dizer o quê?

LB: Meu primo pensa que eu sou, eu sou esperta, sou

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trabalhadeira. Ele tá se namorando de mim.

DF: Ah é?[Risos].[...] Viu que história bonita, né.[...]

LB: Pois é assim.

EM: Pois é doutor, é assim que..., mas que nós já pegamos já quase...

LB: Já quase no final.

EM: No final dos velhotes, mas a gente viu ainda. Enten-deu mais ou menos como é que a gente ia pra pescaria e chegava. Ainda alcancei andando com meu sogro. A gente ia, a gente saia pra pescaria, a mulherada fazia, ficava fazendo pajuaru. Quando a gente vinha chegando com o jamaxim de peixe, as mulheres iam encontrar a gente no caminho. De lá, quando, onde a gente parava, elas entregavam caxiri pra gente. Aqueles baldes de caxiri. A gente ia beber, aí elas tomando de conta do peixe. Aí elas já iam comer ou o que elas quisessem. A gente só ia só beber mesmo.

DF: Só fazer farra?

EM: Fazer farra, farrear. É assim que a gente, eu gostava muito e gosto ainda de pescar. Eu gosto de peixe, da pescaria. Não aguento mais andar. É muito longe.

DF: E rio aqui é longe?

EM: É longe, é longe pra andar.

DF: Lembra de alguma, mais alguma história especial dessa aí? A da maniva a senhora já falou [...] Tem mais alguma coisa que a senhora lembre? De alguma, alguma comida, por exemplo, do que a senhora fez é o beiju né? [...]

LS: E peixe? Tem, às vezes, tem peixe que tem história, né?

LB: Não sei de peixe também não.

DF: Assombração ou alguma coisa assim?

EM: A história do peixe, dizem que o, a pessoa né, a me-nina ela duvidou muito, então o surubim, o surubim dizem que é a batata da perna da menina.

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DF: Mas por quê?

EM: Porque o surubim ele é igualzinho à perna duma pessoa. Ele é barrigudo e pra cá é fino. Aí eu não sei como é que... ela é comprida. Eu não sei, sabe. Aí já ouvi falar que é uma história do peixe que virou...

DF: Que veio da batata da coxa da menina.

EM: Da menina.

DF: Porque ela duvidava, eh?

EM: Duvidava. Realmente o surubim parece mesmo perna de gente, o surubim [Risos]

DF: Tá certo. E como que a senhora se sente hoje, por exemplo, dessas coisas que a senhora contou, praticamente não faz mais nada?

LB: Não.

DF: Como é que a senhora se sente assim com...

LB: Eu me sinto assim é... Às vezes eu me alembro, né, eu canto, aí eu não canto mais. Eu me sinto assim um pouco triste, por não poder mais fazer nada, né. Me lembro meus trabalhos tudo parado.

DF: Que trabalho?

LB: Eu, eu fazia pote.

DF: Ah pote!

LB: Panela de barro. Tudo foi. Acabou.

DF: A senhora nunca mais...

LB: Tá vendo aquele potezinho do lado de cá? Isso aí é minha obra.

DF: Ah, lindo ele. A senhora não faz mais então os potes, né?

LB: Não. Não faço, porque meu marido não quer mais que eu trabalhe assim, por causa das mãos, que eu estou cheia de reumatismo. Aí ele me ajudava, tirava barro né, batia barro

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aí pra mim. Teve o começo de trabalho dos alunos aqui. Foi bonito, mas acabou em nada.[...]

DF: Então, qual outro trabalho que a senhora fazia?

LB: Trabalho, fazia trabalho de branco. Eu costurava muito.

DF: Costurava muito. Gostava de costurar?

LB: Gostava de costurar. Eu fui até instrutora daqui, das mulheres daqui. Cada qual ganhou seu diploma de costureira, [...] mas não continuaram, acabou em nada. [...] Isso aí foi tempo da Sueli, dona primeira dama, do Neudo Campos. A gente trabalhou. Aí acabou. Aí passamos pra artesanato de barro. Acabou também.

DF: Acabou também?

LB: Acabou.

DF: O artesanato a senhora fazia desde antigamente, desde sempre?

LB: Desde quando a minha avó me ensinou. Eu não fazia bem feitinho como ela, mas fazia.

DF: Qual o nome dessa avó da senhora?

LB: Cecília, lá do Barro.[...] Já morreu tudo. É, minha mãe...

DF: Quais histórias ela contava pra senhora?

LB: Ela contava história pra mim que, quando ela ia mor-rer, ia deixar essa lembrança pra mim.

DF: Que é o quê?

LB: Que é panela de barro, [...] trabalho né, de barro.[...] Ia morrer e ia deixar pra mim. É assim. Trabalhar de roça, ela era uma mulher, mas trabalhava muito. “Quando vocês se criarem, vocês casam com homem trabalhador pra vocês não sofrerem, aprender a fazer farinha, aprender a fazer beiju, aprender a fazer o caxiri.” Tudo isso ela ensinava, dizia pra gente. Agora, quando ela ficou velha mesmo, que começou a chegar branco, ela dizia: “Olha”, uma coisa assim até hoje, isso aí eu me lembro bem. Uma coisa assim, parece que man-

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daram uma carta pra ela, eu não sei, ela dizia: “Olha vocês vão ficar nesse mundo...” “Vocês vão ficar, aqui nessa terra, vocês vão sofrer. Vocês vão brigar com branco, branco vai surrar vocês, branco vai tomar terra de vocês.” Tudo isso ela dizia. Dizia, parece assim uma coisa que ela recebia assim uma mensagem.

DF: Ham ham. Ela falava sempre isso.

LB: Ela falava, minha avó. “Vocês vão sofrer. Eu não vou mais ver não, mas vocês vão ver o sofrimento que vocês vão passar, uma crise que vocês vão passar que os branco...”, desculpa eu falar isso que as brancas tão aqui que são vocês. Mas não são todos os brancos que... a gente tá sabendo que não são todos os brancos que têm raiva da gente.

EM: É verdade.

LB: A gente também gosta dos brancos, mas nem todo branco gosta da gente. “Vocês vão sofrer nas mãos de branco.”, ela dizia isso. “Vai vim branco, vai vim soldado, vai vim delegado.” Quando ela morreu, já tinha delegado aí no Barro. Ela dizia isso. “Vocês vão embora daqui e vão deixar a terra de vocês pros branco.” Dito e feito. Tão brigando aí por causa do Barro, que não é lugar de índio. Tudo isso acontece.[...] Ainda estou existindo pra contar história que a minha avó dizia.

DF: Então. É justamente isso que a gente quer ouvir, pra gente registrar isso. Pensar o que sua avó falava, como que ela pensava, como que ela via as coisas.

LB: “Rezam. Vão pra igreja, satanás não perseguir vocês.”

DF: Ela falava isso?

LB: Ela falava: “Makui ya aye’tá namai, makui mîkîrî.” Demônio que tá andando atrás de vocês.

DF: Ham ham.

LB: “Makui” é demônio, o diabo que ela chama? “Rezam. Vão pra igreja.”

LS: Na língua macuxi?

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LB: Na língua macuxi, “makui” é demônio.

LS: Ela também era católica?

LB: Era, demais. [...]

LB: Pra mim dá saudade do meu povo que foi embora.

DF: Claro que dá.

LB: Estou por aqui não sei nem como Deus me deu essa sorte de ainda contar essa história pra vocês.

DF: Qual foi a coisa mais feliz que a senhora viu até hoje?[...]

LB: Bom a coisa que mais...

DF: Que a senhora lembra como uma coisa boa, que acon-tece com a gente? Tem alguma coisa que a senhora lembra?

LB: Eu. Coisa boa que, que, que aconteceu, que, que do passado que eu vivia com meus pais, minha avó. Quando a gente saía pra pescaria, como ele conta, né, que levava caxiri.

DF: Como que era essa pescaria?

LB: Pescaria assim é, quando nós éramos meninos... “Va-mos de canoa, os caçador vão por aqui, os pescador pegavam peixe.” A gente chegava numa paragem, com a minha mãe, com a minha avó, fazia aquele jirau assim pra panhar peixe. Fazia moquém de capivara, de veado, de peixe.

DF: Moqueava como?

LB: Moqueava assim, assar peixe na brasa. [...] É, com a quentura da brasa assim, assava o peixe pra comer. Quando a gente ia embora, botava dentro do jamaxim. Conhece?

DF: Não.

LB: Jamaxim?

DF: O que é o jamaxim?

LB: Jamaxim já é que branco chama. A gente chamava de panacu.

LS: É o quê? É uma cestinha?

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LB: É.

LB: Meus jamaxim estão todos jogados por aí. É uma trança de arumã. Faz assim...

DF: Ah, eu sei. Que joga nas costas?

LB: Isso.

DF: Ah, eu sei o que é.

LB: Botava ali e a gente ia embora. Pras suas casas, cada qual. Não tinha, como o Eduardo tava contando, não tinha branco pra proibir a pesca dos índios, era liberto. Tinha muita caça, pato, capivara, jacaré tudo enrolava. Como é aquele passarinhozinho?

DF: É mutum?

LB: Mutum. Mas a gente era mais feliz antigamente, tudo tá acabado, né. Eu me sinto assim triste por não ter parceiro pra conversar comigo, pra contar história.

DF: Pra juntar assim o grupo, né?

LB: Pra juntar o grupo.

DF: Eu tava lendo esses dias uma coisa bem bonita. Aí tava lá dizendo assim que se a gente não contar, não ficar contando as histórias um pro outro, elas morrem.

LB: Esqueci de dar o meu nome indígena...

DF: Ah, como é o nome da senhora indígena?

LB: Tî wa’.

DF: Significa o quê?

LB: Trempi.

DF: Trempi é o quê?

LB: Trempi é três...é coisa assim de fazer fogo.

LS: É fogo no chão, é uma trempi.

LB: É três pedra. Uma aqui, outra aqui.

DF: Ah, sei o quê que é. [...] Tem nome indígena também

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ou não?

EM: Tenho não senhor.

LB: Que é fogão dos antigos, né. Aí a gente coloca o fogo e faz damorida, faz essas coisas.[...]

LS: Assim, na época da avó da senhora, quando ela fazia, dizia essas coisas que vocês iam sofrer de branco, que vocês iam ser surrados, que iam brigar pela terra, já existia a pre-sença da igreja lá na comunidade?

LB: Já.

LS: Já existia padre já?

LB: Já, já existia. O meu pai conta que, que ele, primeiro

padre que andou por aqui, padre alemão, ele fala assim nome

dele é Dom Preau, né Eduardo?

EM: É.

LB: Dom Preau. Isso aí eu não alcancei. Quando me en-

tendi, conheci padre Dom Alcino.[...] Isso. Padre Dom Alcino.

Foi ele que me batizou também. Aí de lá pra cá que começou

a mudar. Tempo dos índios já conheceu os brancos. Mas ele

falava macuxi.[...]

DF: A senhora lembra como era, se tinha algum culto

antes da religião? Que ele já chegou depois não foi? A reli-

gião católica nem sempre existiu aqui? Ela veio junto com os

brancos, não foi?

LB: Eu acho que sim.

DF: Então, ela veio junto.

LB: Porque quando eu me entendi já existia católico, né?

DF: Então.

LB: Aí, o que existia antes, eu não sei.

DF: Nunca ouviu contar de como que era, nada?

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LB: Não, não. Agora, faziam culto em macuxi.

DF: Em macuxi.

LB: Mas aí, quando me entendi rezavam em macuxi.

LS: Mas já as orações do... que os brancos passavam?

LB: Já dos brancos. Traduzido pra, traduzido em macuxi.

Antes mesmo, quando meus avôs, nunca me contaram.[...]

DF: [...] Vamos lá. Essa é a canção que a senhora falou

que era do seu avô?

LB:

Akan nîkî tami paran inîpî man, kra shosiAkan nîkî tami paran inîpî man, kra shosikra sho, kra sho, kra shosi, kra shosi

[tá vindo água do mar que não é boatá vindo doença aí, cristo cristo meu cristo cristo meu]

DF: E o que que significa?

LB: Akan nîkî tami paran inîpî man. “Olha gente vem doença. Vem doença aí”. kra shosi, que diz. Akan nîkî tami é olha vem doença. É isso aí que ele canta kra shosi / kra sho, kra sho, kra shosi, kra shosi.

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Projeto: Panton pia’

Entrevistado: Lucinézio Peres Ribeiro

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)

Local: Comunidade Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 10/10/2008

Transcritora: Keyty Almeida de Oliveira

Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 32’’33’’’

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225Projeto: Panton pia’

DF: Qual é o nome do senhor?

LR: Lucinézio Peres Ribeiro.

DF: Lucinézio Peres Ribeiro. Você é irmão do tuxaua? Qual é a sua idade?

LR: 40.

DF: Você nasceu aqui em Santa Rosa mesmo ou não?

LR: Não, eu não. Eu nasci lá no lugar que o papai morava, que era atrás desta serra aqui, por nome Iguapirá.

DF: Iguapirá.

LR: Iguapirá, um igarapé que passa lá e tinha uma casa lá, uma roça. A gente nasceu lá e a gente veio pra cá nascido já. E eu não estou lembrado de com quantos anos eu vim pra cá, mas acabei de me criar aqui. Até hoje eu moro e trabalho aqui.

DF: De lá pra cá, você veio e ficou esse tempo todo?

LR: Eh, a gente ficou aqui. Até hoje a gente mora aqui.

DF: A sua primeira língua foi português ou foi macuxi?

LR: É o português, porque a gente hoje, hoje a criança daqui, do futuro, tudo vai nascendo, vai tudo nascendo com a língua portuguesa, porque você sabe, é como a Sebastiana falou? A gente, a mãe e o pai, eles ensinaram desde criança, e os filhos já nascem sabendo a palavra com a língua que estão falando atualmente.

DF: E você é casado?

LR: Sou casado.

DF: Tem filhos?

LR: Tenho, tenho 08 filhos.

DF: E a sua esposa é macuxi também?

LR: É macuxi.

DF: Vocês têm, assim, esse incentivo pra que eles apren-dam a língua macuxi ou só é o português?

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LR: Assim, a gente já, hoje os meninos aqui na escola, os professores vêm batalhando com eles, com as crianças, pra ver se conseguem aprender, mas, pelo que eu vejo, não estão conseguindo, não.

DF: Não estão conseguindo?

LR: Até porque, eu mesmo estudei, depois que a gente estudou língua macuxi com os professores que vieram de fora. Aí a gente, eu pelo menos não consegui assim falar, al-gumas coisas é que a gente entende. E assim é como estão as crianças hoje aqui na escola, tem professor de língua materna que estão dando aula direto pra eles, semanalmente, mas a gente não vê assim, até porque, assim, o pai não fala com o filho e isso é a dificuldade. Até o próprio professor que dá a aula, o filho dele não fala, aí é diferente do que a gente vê ali na comunidade do Sorocaima I, Bananal. Ali é pai falando com os próprios filhos dentro de casa mesmo. Aí, se fosse assim também, com certeza tinha alguém. Eu não vejo aqui uma criança que vem falar com o pai, o pai falar com seu filho direito. Às vezes fala assim, na brincadeira, mas diretamente. Se falasse diretamente, com certeza ia aprender mais. Hoje não, só fala português direto, aí a criança se dedica mais ao português.

DF: Você estudou na sua comunidade mesmo ou não estudou?

LR: Eu estudei aqui mesmo. Eu parei, eu estudei até a 4°série, aí a gente não saiu pra estudar fora, porque todos meus irmãos, que hoje estão trabalhando, eles foram estu-dar fora. Aí eu fiquei aqui até que passaram 14 anos ou foi mais, parece, sem estudar. Aí a gente voltou, porque veio o EJA pra cá. Aí a gente voltou a estudar, a gente fazia a 5ª a 8ª, aí a gente tá no 1°ano hoje, até terminar o 3°ano. Estou batalhando pra terminar.

DF: E você sabe um pouquinho da história da comunidade: como ela surgiu, quando ela surgiu?

LR: Eh, essa história, é porque, eu não estou bem lem-brado no momento, mas a gente já fez uma pesquisa disso

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daí com os próprios idosos daqui mesmo. Aqui o próprio tio Eduardo [aqui presente], seu Vitalino, o vovô que tá lá em Pacaraima hoje com 90 e poucos anos. Então, foi, e nós temos isso escrito. Só que eu não estou lembrado aqui no mo-mento a data certa, mas a gente fez um levantamento. Aqui mesmo na escola tem isso aí, essa história da criação dessa comunidade. É assim o que eu estou lembrado no momento, porque a busca que a gente fez, e que estou lembrado no momento, é que já existia antes, morava um pessoal aqui, e eram poucas pessoas que moravam aqui. Então, com um certo tempo, aqui chamava, o nome daqui era Orocaima, e aí certo tempo vieram os religiosos, os padres, e aí já foram mudando, já mudaram esse nome de Santa Rosa. E mudaram de Orocaima pra Santa Rosa. Então, de lá pra cá foi assim, essa evolução. Aí foi chegando mais gente aqui, só que eu não tenho a data assim, no momento, mas a gente tem isso aí escrito cada um que a gente pegou dos idosos, dos mais velhos, assim, do jeito que vocês estão fazendo aqui, nas suas buscas, consultando, um e outro, a gente montou um livro, esse livro que a gente tem escrito na escola.

DF: Ah, na escola?

LR: Tem na escola. Aí o diretor Francisco, ele tem esse livro escrito, ele levou e a gente fez, trabalhou esse projeto, tipo assim, projeto. A gente fez um levantamento, aí levou pra Boa Vista pra encadernar. Aí a gente tem esse livro na escola, só que eu não estou lembrado no momento.

DF: E as histórias dos antepassados: sabe, ouviu falar, dos antigos?

LR: As histórias, têm várias, muitas histórias, histórias de animais, das terras, assim, conforme você tava perguntando pra Sebastiana, do Macunaima, assim. Depois que a gente começou a estudar, a gente viajou lá, pra ali, pro Perdiz, pra Pedra Pintada. Aí a gente foi, a gente já tinha ouvido falar nessas histórias, aí lá a gente foi, aprofundando mais, como se diz, foi pesquisando mais como foi a história de Macunai-ma, que passou por certos lugares. Lá no Perdiz, eles contam a história de Macunaima; lá na Pedra Pintada, têm outras

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histórias, que passaram muito tempo lá. O vovô, o vovô conta uma história assim, ele fala assim pra gente: “Você fala tanto em Macunaima, Macunaima é um diabo!”, fala assim o vovô. Mas ele sabe da história todinha de Macunaima, o vovô. A gente fala que Macunaima é um, é um homem que andou em certos lugares, aí, então é assim, pelo vovô, ele fala a história dele mesmo, como ele sabe. Não é como a gente sabe, como já botaram em livro, um livro que tem as histórias do Macunaima é diferente, mas a do vovô mesmo, se você chegar a conversar com ele, procurar essa história de Macunaima. [...] E ele, ele é de 1912, ele sabe muitas, muitas histórias boas pra se contar.

DF: [...] E dessas histórias, qual você sabe e que você acha boa?

LR: Essas histórias, assim, que a gente acha boa, a gente acha todas. Só que, pra se contar correto como foi, eu não sei bem ela não. Mas é bom que a gente colha essas histórias, como hoje elas já estão até num livro, né? As crianças, que nem, nunca nem, só ouviram falar assim, os meninos daqui conhecem Macunaima como ali, só o Centro Macunaima, o Malocão [risos]. Falar de Macunaima, eles pensam logo no Centro Macunaima, mas só que eles não sabem da realidade que foi o Macunaima. A criança de hoje, daqui pra frente não vai saber o que é o Macumaima, mas no passado eles têm uma história escrita profunda mesmo do Macunaima.

DF: E o que falta pra eles saberem?

LR: Falta pra eles voltarem a conhecer mesmo é a busca dessa história e andar com eles em certos lugares como eu falei: lá na Pedra Pintada, em certos lugares assim, nas terras onde morou o Macunaima, passou deixando algumas trilhas, com aqueles desenhos nas pedras. E dizem que foi o Macu-naima que passou as mãos lá, deixou desenhado, dizendo o vovô que aquilo ali era Macunaima, o tempo que passou lá. Só o vovô pode contar essa história bem aí.

DF: Eh, eu queria conhecer esse vovô.

LR: [risos] Eh, o vovô sabe, quando a gente tá visitando

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ele, a gente tem que andar vivo. O vovô, só que é assim, o vovô não tá mais, assim, como há dois anos atrás quando a gente começou com o trabalho desses estudos, ele não tá mais assim dessa forma. Ele esteve um tempo desse, ele teve doente, então ele teve uma decadência muito grande, até de memória mesmo. Ele tá...

DF: E como você vê a questão indígena hoje, você já pensou sobre isso ou não?

LR: No sentido indígena?

DF: Eh, você hoje, você é um indígena, o que você gostaria de falar a respeito...

LR: Como eu me sinto indígena?

DF: Eh, por exemplo, eu sou descendente de italianos. Meus avôs vieram pro Brasil numa época lá. Mas ninguém fica falando: “Você é italiano, você é brasileiro, não sei o quê.” Eu sei que eu sou brasileiro e pronto. Mas o indígena, hoje, ele tá no Brasil, tava antes, ele é indígena, tem uma lei pra ele, a legislação específica indígena; mas ao mesmo tempo ele é brasileiro, não é?

LR: Eh.

DF: Isso não dá certo nó na cabeça ou não dá, é normal?

LR: Eu acho que o indígena, hoje, tem um privilégio de ser dado ao indígena liberdade no seu próprio território, não é? Assim, porque ele, o índio, ele não tem fronteira, então é uma liberdade que hoje ele tem na, assim, de o indígena ele ter essa liberdade de usufruir do que existe na sua terra e andar no seu território pra onde você quiser, né? Eu moro aqui, aqui é a área São Marcos. Eu, como indígena, posso sair daqui e morar lá, lá na Serra do Sol. Eu posso ir lá pra Raposa Serra do Sol, é um privilégio que o indígena tem. Aí como hoje o branco, ele mora lá, vamos dizer assim, vamos falar do brasileiro, o brasileiro, hoje, pra ir morar lá no outro país tem que ter [autorização]. Lá tá saindo no jornal que estão botando [pra fora] um monte de estrangeiro. Não tem essa lei que impede o indígena?

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DF: Isso com todo mundo?

LR: Como assim?

DF: Por exemplo, você pode isso só no Brasil ou você poderia fazer isso na Venezuela?

LR: Não, eu acho que só no seu território, no Brasil, né? Porque com certeza que [...] é assim, o indígena no Brasil, é como eu estou falando, eu acho que ele é livre pra morar, en-tendeu? Mas até assim, pra ir pra outro país. Ele vai depender da própria língua dele, se ele fala bem a língua espanhola ou a língua lá dos taurepangues. Os taurepangues aqui do Soro-caima, do Bananal, eles trafegam direto pra lá. Então, é uma das liberdades de hoje. O indígena, ele tem muito hoje dessa liberdade que ele tem, dentro da área demarcada, não é?

DF: Entendi. E a religião, você tem uma religião?

LR: A gente é..., a religião só é uma, o Cristianismo é mundial. Mas só que dentro da religião já surgiram várias outras. E que hoje faz parte da Igreja Católica. Então, essa religião é também um dos problemas que acontece dentro dos indígenas hoje, a questão de separação. Vocês que já andaram muito, já perceberam isso? Assim, onde tem uma religião, duas, três religiões na comunidade a comunidade cresce e se divide.

DF: Entendi.

LR: Por que assim, a Igreja Católica hoje, fazer que nem o outro, como a gente diz, é o que mais peca, né? Com exce-ção de religião, Igreja Católica ou evangélica, assim, porque o católico, ele faz tudo: bebe, fuma, dança, esse negócio todo, né? Aí outros que são da Igreja Batista, aí não traba-lham dia de sábado, só trabalham de domingo pra frente, às vezes. Tem umas que impedem até de usar roupas, unha pintada, esse negócio todo. Então, a religião hoje, ela vem desculpando até a convivência dos próprios indígenas nas comunidades. Vem fazendo com que a comunidade até se divida, uma parte do bem outra da parte do mal [risos].

DF: Entendi o que você quis dizer. Outra coisa: você pas-

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sou por alguma iniciação indígena, assim, quando você virou rapaz, ou não existia isso mais?

LR: Como assim?

DF: Por exemplo, a questão da puçanga. Você é novo, 40 anos, mas na sua época ainda teve isso pra você poder caçar, pra poder...

LR: Não, não, eu nunca passei por isso não, mas já ouvi falar muitas histórias.

DF: O que você ouviu falar?

LR: Assim, pra um cara ser caçador tinha que fazer, fazer assim como o próprio vovô mesmo, assim, os idosos, pra ser caçador, largar de ser preguiçoso tem que passar, tomar um banho de pimenta, passar pimenta nos olhos, metia pimenta na bunda [risos], é assim que os idosos falam.

DF: Já conheço essas histórias, já ouvi falar...

LR: Essa aí é mais ou menos o que eu ouvi falar da questão de puçanga. Agora, já ouvir falar de ter planta aqui, que é usada. Um dia desses, nós távamos falando de um camarada aí, que o pai dele usava puçanga pra atrair mutum, pra atrair traíra, pra atrair não sei o que mais, uns peixes assim. Um dia desses a gente tava conversando assim, um cara lá que tinha em frente de casa, né, aí a gente disse que ia contar umas his-tórias do pai dele também, o [...], que é professor de macuxi. Ele sabe das histórias que o pai dele usava e, assim, nunca, nunca passou por mim. O papai falava pra gente fazer isso. Acho que nem ele, o papai, nunca usou porque ele se criou assim até com os fazendeiros, o papai se criou assim com os fazendeiros. Depois que se juntou com a mamãe, passou uns tempos, é que ele veio pra trabalhar na comunidade. Eu acho que na época do vovô, com certeza, era dessa forma, aí tem a história dele. Tio Eduardo morou muito tempo com o vovô, ele sabe dessas histórias que o vovô passou que aí já é de curar, colocar pimentas nos olhos.

DF: Você mora aqui na comunidade? Qual é a maior difi-culdade que você tem aqui hoje?

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LR: A maior dificuldade, dificuldade, que a gente vê aqui na comunidade é uma desunião, assim, não a desunião, de pessoas que vivem intrigadas com as outras. É, assim, uma desunião que a comunidade não consegue mais trabalhar em conjunto, sabe? E a gente, de uns tempos pra cá. Desde a época do papai, quando ele trabalhava, ele era mais novo, ele trabalhava de roça comunitária, mas desde lá já vinha acontecendo isso. Porque ele me falou, assim, quando come-çamos tinha uma grande quantidade de gente trabalhando na comunidade, aí, com o final do trabalho ficava bem pou-quinho. Assim, porque o pessoal via que tava trabalhando e não tava tendo lucro do trabalho. Eu me lembro de uma roça que eles botaram faz muito tempo,(eu não trabalho direto na roça), botaram uma roça muito grande lá pra dentro, muita gente botou, uma roçona. Aí derrubaram, da coivara pra trás começou a dar pra trás. Então, é uma desunião de trabalho, e não conseguem fazer um trabalho direto do começo com a quantidade de pessoas pra terminar com a mesma quantidade. Aí as pessoas vão desistindo, tem outra coisa pra atrapalhar e vão desistindo. Então, é uma desunião de trabalho na comunidade. Aí a comunidade vai, vai, vai, vai enfraquecendo, assim. Até o próprio tuxaua mesmo conver-sa com a comunidade, assim, porque tem o tuxaua, tem o segundo tuxaua e tem o capataz. O capataz ele sabe que é pra puxar o coelhinho aqui na comunidade. Até o próprio capataz não puxa o coelhinho, assim, é uma dificuldade por-que o capataz, hoje em dia ele estuda. O capataz era o meu irmão, aí a gente tinha um projeto, digamos que eu vou falar do ano passado. A gente trabalhou num projeto aqui que a gente entrava da lavoura de mandioca que tava plantada. Então, assim, eram envolvidas três comunidades e nem as próprias três comunidades não se envolviam no trabalho. E vinham dois, vinham três, vinham três, mas quem acabou se matando foi a própria comunidade. O meu irmão, que é o vaqueiro hoje que trabalha ali, é que era o capataz, se matou trabalhando. Aí o pessoal já achava que ele tava ficando era doido. O pessoal ficava olhando pra ele trabalhar e...

DF: Não ia junto...

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LR: ...não ia junto. Aí mudou de capataz e agora esse capataz não tá mostrando trabalho. Então, é assim, uma difi-culdade de união dentro do próprio serviço da comunidade. Não é desunião assim de briga, não, é de trabalho.

DF: De conseguir fazer as coisas junto,

LR: De conseguir fazer as coisas junto. E a gente esteve fazendo a farinha depois desse projeto, a mandioca já tá tudo no jeito de fazer farinha e a gente conseguiu trabalhar na farinhada; e juntou, parece que eram umas cinco ou seis famílias, aí trabalhou. Aí os outros não estavam, era assim, pra comunidade toda em união fazer um farinhada só e trabalhar do começo ao fim, mas só que não aconteceu, foi uma parte que fez, uma parte de dentro e uma parte de fora. Então, assim, não tem essa união dentro da comunidade, então, é uma dificuldade que a comunidade passa

DF: E uma coisa boa daqui da Santa Rosa que você gosta muito. Uma felicidade...

LR: Uma felicidade? Rapaz, felicidade aqui, a felicidade hoje aqui é a comunidade, hoje tem em mãos, [...] no caso, se não fosse, não fosse assim essa semente que os idosos, os velhinhos deixaram pra gente. No caso o Vitalino, que vocês já passaram lá com ele; o vovô; o meu pai; aqui o Eduardo; foram eles que adquiriram pra comunidade a felicidade da comunidade, que tem essa semente em mãos, hoje. Que é uma semente de pecuária que a comunidade tem hoje em mãos. Se não fosse essa semente que os idosos deixaram pra gente, então a comunidade com certeza tava lá em baixo. E tava passando mais dificuldade ainda, então a felicidade da comunidade hoje é esse projeto que os idosos deixaram pra gente, ter plantado, ter semeado e colhido. Já a comunidade hoje tá só usufruindo. Então, isso daqui pra frente é só tocar o barco pra frente. É uma coisa que os idosos deixaram pra gente, pros mais novos, né? Só administrar, porque eu vejo que a felicidade da comunidade é isso, que tem um projeto bom de memória.

DF: O que você pensa da entrada da tecnologia, da infor-

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mação na comunidade? Se é importante, não é, como é que você pensa isso?

LR: A tecnologia hoje é boa demais, no caso, vou já tocar no assunto, do projeto, que a comunidade tem em mãos, assim da tecnologia. O meu irmão Valcir, que foi o primeiro tuxaua de três anos atrás, hoje ele trabalha num projeto, ele é o, como é, o listador do depósito da região. Então, hoje ele tá querendo, acima da tecnologia, ele quer trazer o benefício pra comunidade, assim, ele quer trazer semente de rebanho de fora pra usufruir dentro da comunidade, no caso, como é que se chama, a inseminação. Então, é uma das tecnologias que vão trazer daqui a alguns tempos, ele vai trazer pra dentro da nossa comunidade, então a tecnologia é boa hoje pra todo mundo, não é?

DF: O que é que você pensa sobre a vinda de computador pras crianças, esse negócio todo?

LR: Ah, sim, então, acima desse computador é o que a gente vê hoje é que a tecnologia ela vai derrubar um pouco, assim, um pouco da tradição indígena. Aqui na comunidade, uns tempos atrás os alunos faziam dançar muito a parixara, de vez em quando apresentavam fora, hoje não, hoje já pa-raram de dançar parixara. A tradição já tá ficando pra trás, estão esquecendo. Então, já assim da tecnologia, os alunos vão começar a fazer curso agora, a gente vai fazer curso de informática. Antão vão com certeza abrir outras ideias, vão ter outras ideias na frente e vão esquecer da tradição indígena, hoje.

DF: Mas pode-se fazer alguma coisa, não pode?

LR: Pode sim, mas tem que ter uma pessoa daqui, de dentro de casa. Se não tiver uma pessoa de dentro de casa pra vir puxando isso aí ela vai esquecer, né? Assim, a tecno-logia hoje é boa pra todo mundo, porque a gente vai, como eu estou falando, vai abrir a mente, vai abrir a memória, vai abrir benefício pra cima do estudo. Daqui pra frente, prin-cipalmente o computador, aí você vai, o aluno vai estudar, daqui um tempo ele vai arrumar um emprego em cima disso

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aí, pra se beneficiar. Então, acima disso, eu acho que a cultura vai sendo esquecida.

DF: A cultura local...

LR: ...local. Se não tiver uma pessoa, assim, que persista pra estar puxando essas informações, ela vai ser esquecida [...]. Uma pessoa empenhada, mas só que de um tempo pra cá ele tem esquecido um pouco porque tem muito trabalho, é reunião pra um lado é reunião pro outro. A vovó era a única pessoa que puxava esse trabalho, mas ela já tá idosa, tá bem velhinha, não aguenta mais estar ensinando os alunos. Então, eles vão partir pra informática, hoje. Dia 27 vai começar o curso, então as crianças, os alunos vão entrar na nova era, né, pra comunidade. Então, mas é bom pra cultura indígena hoje,

DF: Mas é bom arrumar um jeito de ter as duas coisas...

LR: Manter os dois, né, porque uma evolui direto, né, e a outra não. Uma se mantém. Se não tiver aquela pessoa pra estar mantendo aquela tradição, ela vai sumir e a tecnologia, ela vai todo dia, ela vai evoluindo, né? É assim que eu vejo essa questão da tecnologia pra hoje. É bom pra todo mundo, porque o Brasil hoje, o Brasil não, o mundo, né, todo dia muda a tecnologia e tem gente que diz que quem não acompanha a tecnologia é cego e tem que estar sempre informado.

DF:[...] você tem uma opinião formada sobre a questão Raposa, hoje? O que você acha disso, o que você pensa? Consegue entender o que tá acontecendo direito?

LR: Assim, da Raposa Serra do Sol?

DF: Eh, em relação a ela.

LR: O que eu vejo assim, tem os direitos de como eu tava falando, um direito de todos, de cada um brigar pelo que pre-cisa, de adquirir essa conquista. Com certeza eles vão fazer com que elas sejam ocupadas de forma como devem ser, né?

DF: O senhor tá falando dos indígenas...

LR: Dos indígenas. Através dos não índios, assim, porque antigamente, eles, brancos, falavam que eles iam em paz

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com os brancos, com os índios, mas isso é menos verdade, porque hoje tem indígena que tem prova disso, né, como o próprio papai mesmo trabalhou, não sei quantos anos com os brancos e nunca deram um couro pra ele morrer em cima. Então, hoje não, alguém já abriu a visão do indígena, e isso não é correto, estamos sendo escravizados, estão usando a força dos índios pra crescer, não é?

DF: Outro dia saiu uma entrevista no jornal, assim, por escrito - Você conhece aquele tenente que lotou na II Guerra Mundial, aquele taurepang, o tenente Paulino? Ele tava meio indignado e falou o seguinte[...] “Por que que os índios po-dem chegar em Boa Vista e entrar no meio de todo mundo e por que, de repente, os brancos não podem nem, às vezes, visitar uma comunidade?” Ele colocou isso lá. O que você pensa a respeito disso?

LR: Assim, porque, eu penso que é dessa forma, é até difícil de responder assim, porque o índio, ele anda no meio de todo mundo lá porque certamente a gente não conhece muito como andar, ainda mais se tiver mais ameaçado que tudo aí. E o branco não, quando ele chega lá, ele vai lá pro meio do indígena, o pessoal já fica de antena ligada: “Quem é essa pessoa diferente aqui no meio dos índios? Ele tá caçando alguma coisa.” Quando ele tá lá é porque tá querendo outra coisa, tá interessado em alguma coisa.

DF: É porque a gente não pode chegar na comunidade e entrar dentro dela, não é?

LR: Eh.

DF: Quer dizer, a gente não pode, mas o índio pode entrar em qualquer local. E era ele mesmo, que é indígena, perguntando isso, ele não reponde também não, ele só faz a pergunta.

LR: Eh, um pouco difícil pra responder, mas o que eu penso mais ou menos é isso.

DF: Então, tá certo.

LR: É imaginação, mas a pergunta é difícil mesmo.

DF: É difícil, não é?

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LR: Isso. Hoje nem todos os indígenas estão entrando em certos lugares, porque tem muita gente com raiva do indígena por causa da Raposa, não é? Às vezes, ele não é nem da Raposa, mas quando se vê um índio já pensam que é da Raposa, porque hoje em dia só falam na Raposa, só falam em Raposa. Às vezes o cara não é nem de lá.

DF: Hoje em dia parece que só existe Raposa.

LR: É mesmo, todo indígena é da Raposa, hoje.

DF: Então, tá certo. Obrigado.

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239Projeto: Panton pia’

Projeto: Panton pia’

Entrevistada: Sebastiana Peres dos Santos (SP)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)

Local: Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 11/10/2008

Transcritora: Ana Maria Alves de Souza

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti

Duração: 23’’10’’’

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DF: Qual é seu nome?

SP: Meu nome é Sebastiana Peres dos Santos.

DF: Tem quantos anos, Sebastiana?

SP: 44.

DF: Você é de qual etnia?

SP: Macuxi.

DF: A primeira língua que você falou era o quê? Era o macuxi ou foi a língua portuguesa?

SP: Eu sou macuxi, mas não sei falar, só sei mal é portu-guês mesmo.

DF: Qual o nome do seu pai?

SP: Meu pai já é falecido, o nome dele era Moisés dos Santos.

DF: E de sua mãe?

SP: Julieta Soares.

DF: Os dois eram macuxi também?

SP: Não, meu pai era wapixana e minha mãe macuxi.

DF: Você nasceu aqui em Santa Rosa mesmo ou...

SP: Não, eu morava na Santa Inês, mas Santa Inês é região do Amajari.[...]

DF: Você veio pra cá faz muito tempo?

SP: De lá pra cá eu estou com 21... 21 anos aqui.

DF: Aqui?

SP: Sim.

DF: Certo. Você é casada?

SP: Eu tive marido 17 anos, e estou separada há 8 anos.

DF: Ah... Tem filhos?

SP: Tenho. Eu tive sete filhos, perdi dois, agora estou com 5.

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DF: Tá com 5 filhos. Uma coisa que você já falou, que é a parte da língua, você não aprendeu. Os seus pais falavam?

SP: Meu pai falava e minha mãe fala também.

DF: Ela fala ainda?

SP: Fala.

DF: Ela fala macuxi, porque ele é que era wapixana...

SP: Eh, ele era wapixana. Minha mãe é macuxi.

DF: Como você vê essa relação com a língua, hoje? O fato de você ser macuxi e de repente não saber a língua, isso atrapalha, ajuda?

SP: Não, assim, se eu soubesse falar a língua macuxi, pra mim seria um prazer, porque minha mãe nunca me ensinou, desde quando... porque eu tenho assim pra mim que a pessoa aprende a falar quando tá crescendo, aprende a falar, né. Já vai falando até quando, depois de velho... Assim, que eu já vim estudar foi aqui, e não consegui mais. Não consegui mais falar.

DF: Fluentemente.

SP: Isso.

DF: Você só entende algumas palavras?

SP: Algumas coisas ainda, mas não são todas não.

DF: Aquela questão das histórias da comunidade, os mitos... a gente fala mito, mas pra muitas comunidades é a própria história, não é?

SP: É.

DF: E a sua mãe falava pra você, não falava essas histó-rias, assim, de Macunaima... nem sei se nessa comunidade tinha isso.

SP: Não.

DF: Essas narrativas, assim.

SP: É que ela falava, assim demais, de lá da Santa Inês, onde eu morava.

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DF: Ahã. E o que ela falava, você lembra?

SP: Lembro. Ela falava assim, que de primeiro, aqui, não tinha muitas doenças como estão tendo agora, e a gente não tinha (eles lá, né, que eu ainda não tinha nascido), não tinha hospital, quando a pessoa adoecia era o pajé que tratava. As pessoas procuravam mais o rezador, porque o Pajé é um, e o rezador é outro e principalmente sobre os dentes também, porque as pessoas não usavam esse creme dental de hoje e tratavam os dentes com pimenta malagueta.

DF: Com a pimenta!?

SP: Sim. E carvão. E fazia aquelas goldas de mirixi pra passar nos dentes.

DF: Golda de mirixi, o que é?

SP: Assim, tirar a entrecasca de mirixi e fazer aquela água, coava e fazia.

DF: E, por exemplo, a gente vai a muitas comunidades, até mesmo pra conhecer, e tem muitas histórias de animais, de bichos que falam.Chegaram a contar essas histórias pra você ou não?

SP: Eh, chegava sim.

DF: Você lembra de alguma?

SP: Eu me lembro duma história que ela contava pra mim.

DF: Qual?

SP: Ela contava que isso é... hoje eu conheço esse rapaz, só que ele ... lá minha mãe falava que no tempo duma festa tinha um monte de raposa, e essa raposa se transformou em uma pessoa e carregou um menino. A mãe dele tava dançando, com o pai, assim, aí quando foram procurar o menino na rede ele não tava. Aí fez dois dias, juntaram todo mundo e foram procurar. Ele tava numa loca. E ele tava só carrapicho, mas hoje eu conheço ele, esse menino, ele já é velho, mas conheço ele.

DF: Então, a história é verdadeira mesmo?

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SP: É verdadeira mesmo. Eh, eu conheço esse menino. Raposa, foi a raposa que carregou ele, ele tava numa loca. É, hoje eu conheço esse rapaz. Já tá é homem. Ele só tava carrapicho, ele tava assim numa loca.

DF: Ahã. E, por exemplo, se ouve muito falar em história daqui de cima: da mulher que se casou com Guariba. Já chegou a ouvir?

SP: Não.

DF: Histórias desse tipo você não...

SP: Não.

DF: Você acha importante o resgate dessas histórias? O que você pensa a respeito disso?

SP: Eu acho, assim, importante, porque aqui, depois que eu passei pelo Santa Rosa, cheguei, nós procuramos, assim, eu ajudei também a pesquisar esse pessoal mais velho que nós tivemos uma história... pra gente levar pra um estudo, porque eu estudava de primeiro, agora não estudo. Aí eu achei muita coisa interessante. Interessante, porque hoje a gente faz a festa até na [palavra incompreensível]. De primeiro não, era batendo lata, era no fogo, era essa de Natal que passava, era muito importante. Eu acho demais, e hoje é completamente diferente, e principalmente sobre as doenças. Eu trabalho 11 anos na área da saúde. Eu viajo muito pra fazer a remoção, fazer pra lá, porque, de primeiro, quando essas histórias que eu leio assim, que eu dou conta, de primeiro não tinha. E mesmo ficou bom, agora você tem transporte, porque, de primeiro, eles levavam a pessoa na rede pro hospital, porque só tinha hospital no Surumu. A gente levava na rede, ia de carro de boi.

DF: E demorava, levava um tempo.

SP: Demorava mais. Hoje não, assim, já que chegou mais doença, só que ficou melhor por causa dos transportes, porque já tem o avião, tem o carro. Embaixo tem uma pista bem ali assim, mas só quando... assim, graças a Deus que não tem essa doença muito...

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DF: Muito grave.

SP: Grave. Só uma vez que foi uma pessoa que faleceu, porque... sempre eu tava subindo, então é assim mesmo, a gente leva pra Pacaraima.

DF: Me diz uma coisa: você é da área da saúde. Já ouviu falar em Canaimé, não ouviu?

SP: Que?

DF: Canaimé?

SP: Já.

DF: O que você sabe sobre isso? O que você pensa?

SP: Eu acho que Canaimé, sempre eu falo... Canaimé, pra mim, é uma pessoa que ele se pinta de tinta do mato e se cobre com couro de alguma coisa. Porque a gente me fala assim, que o Canaimé, ele é um parente indígena, que ele faz, ele tem a puçanga dele, que faz pra gente não ver ele. É mesmo que em Boa Vista. Em Boa Vista são os malandros, que os brancos chamam. Aqui já é o Canaimé.

DF: Tá certo. Você já atendeu algum caso aqui? Por que dizem que ele faz mal às pessoas sem as pessoas merece-rem, não é?

SP: Eh. Não, eu já vi lá na Santa Inês onde eu morava. Tinha um senhor, ele foi daqui. Tinham feito um serviço, tinha caxiri (você sabe o que é caxiri, de mandioca?)...

DF: Sei.

SP: Estiveram, aí ele foi pra lá, aí toda hora ele saía, toda hora ele saía, toda hora ele saía, e a gente tentando acompanhar e ele não deixava ninguém acompanhar ele. Aí quando foi no outro dia, ele já amanheceu já doente. Ele já tava com folha dentro dele, pelo ânus dele, por aqui assim. Ele morreu no outro dia, ele tava só fazendo, evacuando só sangue, aí ele faleceu. Ele chegou e aí o pajé bateu folha e disse que foi o Canaimé que tinha malinado dele. Eu vi, aí eu vi mesmo, que depois que ele faleceu, aí eu fui lá na cova. Mas eu era ainda cunhantã?

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DF: Cunhantã? [risos]

SP: Ainda era.

DF: Outra coisa: tem uma pergunta que eu faço, que eu mesmo não tenho resposta pra ela, eu tenho mais é dúvida. Por exemplo: como você se sente? Você é de origem indíge-na. Ao mesmo tempo você é brasileira, não é?

SP: É.

DF: Ao mesmo tempo tem uma legislação que diz que os indígenas são donos das terras deles. Não é ser dono, é que a terra é da União. Mas ao mesmo tempo essas terras sempre foram dos indígenas. Eles podem interferir nas terras só até certo ponto, não é? Eles não podem chegar e querer arrancar pedra, levar pedra, porque tem que ter autorização. Como você vê isso tudo?

SP: Eu fico assim, é como eu entendi, eu vejo que as terras são dos indígenas, mas pra mim não era proibido tirar nada. Assim, se fosse eu, a poderosa, eu deixava tirar, porque todo mundo precisa. É assim.

DF: E como você se vê como indígena e brasileira? Você passa por preconceito, não passa, já passou alguma vez?

SP: Demais, preconceito como indígena já passei demais. Assim, têm os outros que têm preconceito com o índio, as-sim, como eu indígena já passei...

DF: Que tipo de preconceito?

SP: Não, assim, porque quando eu viajo, sempre eles fa-lam, assim... que eu não sou caboca, né, que eu sou indígena. Eles falavam que tinham preconceito com caboco, porque caboco sovinava terra, não sei o que, não sei o que... aí eu no carro senti que eles estavam com preconceito comigo. Tinha vez que eu não respondia, porque ia muita gente e... Aí eu não respondia... Quer dizer, que eu não era caboca, aí eles diziam pra mim: “A senhora é índia!” “Índia? Você não é índia, porque índia não tem o cabelo enrolado... você é caboca!” Eu disse que não, que eu não era caboca, que eu era índia, índia. Ele disse que não, porque índia não andava

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de roupa, andava nua, não tinha brinco, não tinha nada. Eu disse que não, que eu uso tudo isso na minha roupa, mas o meu sangue é de índio.

DF: E o que é ser índio?

SP: Ser índio pra mim é índia macuxi, como eu sou, mas só que hoje eu não ando mais nua, né, porque eu já sou índia aculturada, mas eu sou índia... eu me orgulho, a minha mãe é índia macuxi, meu pai é wapixana. [...]

DF: E histórias sobre lendas, de Macunaima, só ouviu contar, não ouviu? Ou só conhece por outros?

SP: Não, só ouvi mesmo contar histórias de Macunaima...

DF: Na sua época, já passou por alguma iniciação? Por exemplo: os meninos, em algumas comunidades, quando eles vão se tornando rapazes, eles fazem cortes nos braços pra...

SP: Não, não, passei não...

DF: Isso já tinha acabado.

SP: Já, já tinha acabado, mas só que existia sim.

DF: A sua mãe contava alguma coisa que acontecia?

SP: Contava.

DF: Você lembra?

SP: Ela falava que quando a pessoa ficava... ela tinha a menstruação pela primeira vez, ela se pintava toda e ficava no quarto até quando ela ficava boa. Ficava lá.

DF: E depois?

SP: E depois saía. A primeira vez que ela ficava menstru-ada era assim.

DF: Mas isso, praticamente não existe mais, não é?

SP: Não existe mais não.

DF: Mais alguma coisa, Sebastiana?...

SP: Porque hoje eu tenho minha sobrinha que... eu tenho

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uma filha que já tem um filho, essa que mora comigo, aí eu vejo minha sobrinha todo mês assim, só verificando, eu não sei quando elas estão menstruadas, assim, elas se escon-dem, sei lá, todo tempo. Porque de primeiro não era assim não, porque a minha mãe fala assim, quando eu fiquei pela primeira vez menstruada, ela não deixava eu comer nada doce não, e nem assim, por exemplo, fritura. Ela mandava matar o veado e mandava o meu pai... eu não comia, assim, o churrasco, assim porque eu ia, ficava panema, o homem e a espingarda, era assim, não comia. Mas ainda cheguei nisso assim...

DF: Não comer?

SP: Não, meus pais não deixavam eu comer, assim, quan-do eu tava menstruada, comer o churrasco que mandavam pra nós.

DF: Eh, eu já ouvi contando que é muito forte essa relação com a menstruação.

SP: Não podia andar de cavalo, nem tomar banho no rio.

DF: E por quê? Falaram por quê?

SP: Do cavalo?

DF: É.

SP: Do cavalo, porque o cavalo morria.

DF: O cavalo morria?

SP: Eh, ficava magro, aí morria.

DF: É como se a mulher contaminasse as coisas...

SP: Isso. Era assim. E a mulher, não sei agora, a mulher quando tava grávida também não ia lá onde os bichos co-miam. Quando matavam uma coisa, se a mulher grávida fosse lá, ele não via mais [risos] eu não sei nem se isso é verdade, mas não deixavam, não.

DF: Só mais uma coisa. E sobre a puçanga?

SP: Ah! puçanga pra poder...

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DF: Isso!

SP: Nunca passaram em mim não, mas eu já ouvi falar que tem muita puçanga pra pessoa ser... ser caçador.

DF: E o que é puçanga? O que significa a palavra puçanga?

SP: Puçanga é assim uma plantinha, uma planta. Aí faziam chá de umas plantas, mas tem a planta pra caçador, pra ter até mulher. Tinha um até que me falou que o pai dele fez assim puçanga, né, pois até tucandeira ferrar ele debaixo da língua pra ele ser bom de mulher...

DF: Pra quê?

SP: [risos] Ser assim, bom de mulher?

DF: [risos] Ah, bom de mulher! E qual é essa puçanga?

SP: … é tucandeira, tucandeira, ferra debaixo da língua.

DF: O que é tucandeira?

SP: É uma formiga.

DF: Ah...

SP: Mas dói...

DF: Debaixo da língua?

SP: Debaixo da língua, dizem que pra ficar bom de mu-lher [risos]. Mas agora eu não sei qual é, [se dirigindo a uma pessoa ao lado]: Ele deve saber qual é, mas tem dois tipos. Será que é igual? Sei que tem gente que faz garrafada pra gripe, não sei o que... pega, cozinha, faz aquele mel. Puçan-ga é plantada, é nome de uma planta, não, estou falando que tem tantas plantas, mas tem uma puçanga pra aquilo. Como assim? Eu quero uma puçanga pra ser bom de homem: tem. Pra eu ser bom de caça: tem também. Pra eu ser bom de pesca, assim, tudo tem... puçanga, mas só que tem um nome. Não faz a puçanga, assim, de rapazes. De primeiro, eles cortavam [aponta pros braços], aí faziam a puçanga pra eles terem força, assim quando for brigar, pra ser...

DF: …ser guerreiro.

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SP: Eh.

DF: E você tem alguma opinião formada sobre essa ques-tão da Raposa? O que você pensa a respeito disso?

SP: Não, não...

DF: É tão complicado que a gente não sabe o que é certo ou o que é errado, né?

SP: Tem tanta coisa de errada...

DF: Eh, não sabe não. Você tem religião?

SP: Tenho. É católica, católica.

DF: Desde sempre?

SP: Desde sempre. Mas chega um monte de gente pra mim, pra eu ser evangélica, né? Mas até agora eu não quis trocar não, eu sou católica mesmo. Eu sou meio macuxi e wapixana... já sou macuxana!

DF: acuxana!?

LS: Mas você escolhe se quer ser macuxana, macuxi, ou não? Como é isso?

SP: Não, pra mim é porque o meu pai e minha mãe, é tipo...

DF: É por isso que ela falou macuxana.

LS: Que é uma mistura.

DF: É [risos].

SP: Porque é meu pai e minha mãe... aí eu não posso ficar só de um lado.

DF: Justamente.

SP: Fico dos dois.

DF: Então, tá certo, é mais ou menos isso mesmo. Tem alguma outra história que você queira contar?

SP: Não. Não tem, não.

DF: Qual é a coisa mais triste que já aconteceu na sua vida?

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SP: Ah! Coisa mais triste tem demais, acho que sou a pessoa mais sofrida do mundo, eu.

DF: Então, conta o que foi mais triste?

SP: Eu perdi dois filhos meus e meu outro, três anos se-guidos. O primeiro foi um filho meu que eu perdi de 20 anos, mataram ele, né? Aí o segundo, a minha casa queimou com tudo e eu fiquei só com a roupa do meu corpo mesmo, né? Eu não sabia nem como assim, quando meu filho morreu, não, porque ficou tudo na minha casa, eu tinha como... mas quando a minha casa queimou eu não tinha nem como recomeçar. Era minha casa lá! Aí quando queimou, queimou mesmo tudo, não sabia nem como começar minha vida de novo. Eu não sabia mais, assim, deu vontade de desistir...

DF: Mas, pelo visto a senhora tá aqui hoje e bem forte, não é?

SP: Iche, demais.

DF: E qual foi a coisa mais feliz?

SP: A coisa mais feliz foi que eu ainda estou aqui depois de todas as coisas que eu passei. Muita gente me chamava, conversando demais pra eu largar tudo pra lá e me conformar com meu filho que tava aqui e com o pessoal da comunidade com quem eu trabalho. E eu acho que eu estou mais feliz, porque eles gostam muito de mim, do meu trabalho. Acho que eu nunca, eu penso que nunca fiz mal pra ninguém. Feliz de estar com minha mãe, conhecer minha mãe, né? Apesar de ter perdido minha casa consegui tudo que eu tinha perdido. E hoje já estou na minha casa.

DF: Guerreira!

SP: Guerreira.

DF: Puçanga que fizeram pra você foi boa. Então, tá certo. Eu queria agradecer, obrigado.

SP: De nada, qualquer coisa...

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253Projeto: Panton pia’

Projeto: Panton pia’

Entrevistado: José Vitor da Silva (JV)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Local: Comunidade Guariba, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 20/03/2009

Transcritora: Ana Maria Alves de Souza

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 1’13’’16’’’

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255Projeto: Panton pia’

DF: Qual o nome completo do senhor?

JV: Meu nome é José da Silva.

DF: Ah! José da Silva.

JV: Eh, José Vítor da Silva.

DF: Ah, José Vítor, só que conhecem o senhor por seu Vitor. Bem, e qual a idade do senhor?

JV: Eu tenho 60 anos.

DF: Qual a etnia?

JV: Eu sou de 1940, 48.

DF: O senhor é macuxi?

JV: Eu sou macuxi.

DF: Tá certo. A primeira língua que o senhor aprendeu foi o português ou foi o...?

JV: Não, a primeira língua, quando eu nasci, quando eu aprendi a falar, foi o macuxi mesmo. O português eu aprendi a falar depois de sete anos, eu aprendi a falar. Foi, branco me levou da casa do meu pai. Eu tava com sete anos, aí aonde foi que eu aprendi a falar português, só que nunca estudei.

DF: Ah! Sim. O senhor nunca foi à escola?

JV: Nunca fui. Naquele tempo não existia escola. Escola teve quando eu tava com, parece, eu tava com 14 anos, quando chegou o primeiro colégio, chegou no Maturuca, o primeiro colégio chegou.

DF: E o senhor nasceu em qual comunidade?

JV: Eu nasci na comunidade da Pedra Branca, lá na fron-teira da Guiana com o Brasil, ali pra serra.

DF: O senhor falou que foi viver com os brancos com 7 anos?

JV: 7 anos.

DF: Como foi essa história?

JV: Não, ele me levou pra criar com ele lá, pra trabalhar,

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256 Projeto: Panton pia’

trabalho de garimpo. Aí esse que acabou de me criar ele trabalhava muito de roça, roça de plantio de arroz, milho, ma-caxeira, aí trabalhava de horta, a gente criava porco, criava galinha, criava tudo nesse tempo. Então, onde eu trabalhei, começamos a trabalhar. Ele dizia assim: “Olha, meu filho, eu vou te ensinar a trabalhar, porque um dia você vai ficar homem, vai ficar homem porque você vai formar família.” Daqui pra lá você já tem, você já sabe trabalhar, você já sabe se virar pra si mesmo. Eu não vou lhe ensinar a roubar e nem mentir, eu vou te ensinar a trabalhar. E também eu não vou te botar no colégio porque não tem colégio. Se tivesse colégio eu te botava pra estudar também, aí daqui já saía formado.” E como não existia colégio, então eu passei, eu fiquei desde sete anos até arrumar mulher, essa mulher velha aí. Essa é a primeira mulher que eu arranjei, arrumei mulher com 16 anos, essa mulher aí.

DF: Aí estão juntos até hoje?

JV: Até hoje vivo com ela. O pessoal gostou muito, que eu morei também no Surumu. Quando eu casei com ela que vim de lá, ela morava lá no Surumu. Tem muito conhe-cido dela que quando eu fiz 40 anos de casado, aí fizemos aniversário do casamento, aí os conhecidos dela foram. “Ah! José, esse é a primeira mulher que você arranjou?” “É a primeira mulher.” “Vocês nunca se largaram?” “Não.” “Nunca procurou?” “Nunca procurei não.” “Rapaz, que bom rapaz, é bonita essa história. Mas nem ela também... vocês não brigam não?” “Não. A gente briga assim...” “Mas você nunca bateu nela?” “Não. De jeito nenhum. Pra que bater em mulher, mulher também é gente.” Eu não maltrato ela não. E até hoje nós estamos aí. Então, quando me casei, casei em 66, me ajuntei com ela, foi em 66, aí até hoje nós estamos aí. Eu casei no padre, foi no dia 7 de... não, no dia 4 de fevereiro de 1967, casei no padre com ela. Nunca casei no civil, mas casei no padre. Até hoje nós vivemos. Produzimos doze filhos, mas morreram oito, aí nós só temos quatro, um menino e três mulheres.

DF: Um menino e três mulheres.

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257Projeto: Panton pia’

JV: Eh. Morreram oito.

DF: Mas quando era novinho ainda?

JV: .Eh. Quando nascia, morria; quando nascia, morria. Com dois dias, três dias morria um pra ser criado. Até que esses aí se seguraram, estão aí comigo, estão tudo aí comigo. Até hoje nós estamos aí vivendo junto com ela.

DF: Qual o nome do pai e da mãe do senhor?

JV: O nome da minha mãe, finado meu pai, o nome dele era Noberto, Noberto Souza Silva. Minha mãe, Maria Martina da Silva. A minha mãe ainda é viva, o meu pai morreu em 2004, meu pai morreu.

DF: Tá certo. E qual a religião do senhor?

JV: Minha religião é católica.

DF: O senhor é católico.

JV: Eh,.católico. Eu nasci, como diz a história, eu nasci no católico e vou morrer no católico mesmo. Eu não troco de religião. Porque muitos dizem que só é um Deus, então ninguém pode ficar trocando de religião.

DF: Sei. E qual a coisa mais feliz que o senhor viu até hoje?

JV: A coisa mais feliz que eu vi até agora na minha vida, a gente vive assim no meio dos outros, vive em paz, com tan-ta amizade, considera os outros como amigo, como irmão, como irmã. A gente chega em qualquer casa, a gente tá tudo em paz, junto, né?...

DF: Bem recebido...

JV: Bem recebido. Eu gosto de todos os companheiros.Como eu tinha falado muito pros brancos, às vezes em casa chega branco, chega preto, chega índio, chega tudo. Aí eu converso, aí conto uma história, “Olha, antigamente...”; aí o pessoal: “Conta a história assim, do que aconteceu anos atrás...”, conto tudo. Aí, mas uns dizem que eu estou falando besteira, mas eu conto tudo. Aí minha mulher fica piscando pra um assim: “Não, por que tu conversa muito assim?” “Não, porque eu tô contando história...” Eu não estou esculham-

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63 Aponta para a mata ao seu redor.

bando ninguém, aí eu conto, aí vou embora. Conversar, eu gosto de conversar muito. Se eu pudesse conversar uma noite todinha eu conversava. Aí eu fico assim mentindo, né?

DF: [Risos] E o senhor sabe a história da fundação da comunidade?

JV: Quando eu cheguei aqui em 67, já tava fundado já, aí.

DF: Já tinha.

JV: Já tinha. Eu cheguei aqui foi em 67. 68 eu cheguei aqui.

DF: Então, o senhor já morou em vários lugares?

JV: Eu morava aí no Surumu. Passei, passei 30 anos. Já estou com 12 anos aqui, mais de 12 anos. Eu passei aqui, professor, quando eu cheguei nessa região do lavrado aí. Quando acabei de casar, eu fui pra Venezuela, em 67. Passei 9 meses por Santa Elena. Aí, tempo que mataram um [dia-manteiro] no garimpo, lá pro Paú, estavam retirando todos os brasileiros pra fora, pra cá. Aí eu vim junto. Nós viemos duzentos garimpeiros da Venezuela, nós viemos por aqui. O varadeiro era bem por aqui assim.63 Aqui era mata virgem, não tinha nem sinal de gente morando aqui não.

DF: O senhor trabalhava no garimpo?

JV: Trabalhava no garimpo, eu me criei no garimpo. Como eu estou dizendo, eu me criei no garimpo. Tava no garimpo, pra lá, quando fomos expulsos. Nós varamos aqui, de pés, aqui, andando na pernada, que era caminho de boi, por aqui assim, ele varava por aí. Faz tempo, não era BV-8, era Divisor.

DF: Divisor?

JV: Eh, Divisor o nome do lugar. Morava o Alcides Lima, aí.

DF: Garimpa até hoje?

JV: Não. Até hoje garimpo fechou tudo. Não pode mais nem pensar em garimpo mais não.

DF: Dizem que quem garimpou não consegue parar de garimpar...

JV: Não consegue parar não. Só que eu parei, eu parei. Por esse tempo nos povoaram aqui. Nesse tempo o transporte

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do Surumu lá era a FAB. Não existia nem carona porque não existia nem carro.

DF: Qual era o transporte?

JV: Avião, aqueles aviões da FAB.

DF: Ah! Da FAB, Força Aérea Brasileira.

JV: Eh. Força Aérea Brasileira. Daqui pegava gente, todo tempo pousava aqui. Aí nós fomos pra pegar, os outros [ga-rimpeiros] que iam pra Boa Vista, foram pra pegar avião. Aí, daí, fui embora pra casa, fiquei não, morava já aí.

DF: Chegou a garimpar no Tepequém?

JV: Não, nunca cheguei a conhecer não, até hoje não che-guei a conhecer. Mas no Maú eu trabalhei muito. Eu peguei muito dinheiro e não tenho nada na vida até hoje. Eu digo, todo mundo sabe já que eu peguei muito dinheiro. Eu era, sempre sabia o que era dinheiro; assim, mesmo os meus pais de criação, que eram diamantários, roubaram muito dinheiro, não davam nem metade do dinheiro, compravam as fazendas, tudo. Aí eles também morreram sem nada também, acabaram tudo. Aí, até hoje arranjei mulher e estou com ela aí. É minha vaca que eu comprei com o dinheiro de diamante né? [risos]

DF: E as histórias dos antigos, o senhor tem alguma his-tória pra contar?

JV: Histórias antigas?

DF: Eh.

JV: Só dança da história deles, que dançam, né? Anti-gamente o finado vovô e vovó faziam muito festejo. Hoje, parentes estão, diz que estão por aí fazendo briga por essa Serra do Sol, que já estão fazendo aleluia. Isso aí não era dança de guerra não, isso era dança de festa deles. Faziam festa por tempos, não o modo de briga não, não era de guerra. Era festejo deles no tempo que faziam festejo de Natal, assim como hoje. Assim como existe hoje, tem festejo de março, tem carnaval, tem dia das mães, tem a fogueira,

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tem São Pedro, tem Santo Antônio. Naquele tempo eles faziam ao mesmo tempo, e eles tinham um mês de festa. Aí convidava o chefe deles, assim: “Rapaz, tal lugar nós vamos fazer festejo grande, vamos convidar tantas comunidades...” Naquele tempo não se falava comunidade também. “Então faz o pajuaru, faz o pajuaru aí”; aí tinha pajuaru, tinha tari-paiuá, bebida deles, ficava forte. Aí marcavam um, aí faziam um bilhetinho deles, fazia um cordão assim de olho do buriti; aí dava nó; aí dizia. “Começa hoje”, começa isso aqui tal dia, aí tudo avisava até domingo, até chegar aquele dia do pra-zo marcado deles né, naquele dia que vão lá pra festa, né? “Aqui, tal dia nós vamos chegar”, aí chegava naquele dia. Aí começavam beber, aí começavam dançar já a tal de aleluia, tinha tal de tukui, tinha tal de parixara, esses músicos deles que eles dançavam.

DF: E o senhor sabe alguma música daquelas ainda?

JV: Não.

DF: O senhor lembra?

JV: Não, eu não estou dizendo que eu nunca aprendi! Aí eles dançavam, festejavam a noite toda, faziam roupa de olho de buriti, assim. Aqui estavam fazendo, fabricando aqui pra apresentação. Não sei se eles ainda têm por aí. Faziam chapéu de olho de buriti. Aí eles dançavam, pintavam com uma pitada de jenipapo, ficava roxo, pintavam por aqui, tudo pintado. Aí o que é que eles faziam? Aí tinha umas carreiras pra peitar nos outros também. Nesse meio do festejo deles, eles faziam pra peitar nos outros.

DF: Como era?

JV: Ficava só de calção, tiravam a camisa. Aí se pintavam, aí ficavam assim, umas dez aqui na chegada, as pessoas vinham correndo de longe, lá da Boca da Mata, vinham correndo pra peitar no outro. Aí outro ficava esperando lá, ficava já pronto. Rapaz, eles não vêm brincando não, vêm pra peitar com força. Aí chegava de lá, aí tava assim espe-rando, quando pensar que não: “Tá!” Aí se ele fosse forte, se segurava. Pegava ele, não sei como eles faziam força. Aí

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tinha força, quem tinha força não suspendia não, aí precisava vir mais cinco ou seis pra poder suspender só um, porque ele tinha força. Eles lutavam, arrastavam um por aqui assim na cintura dele, arrastando ele aí porque ele fazia força. Sei que eles lutavam muito, até suspender ele. Aí quando suspendiam ele, pronto, acabou. Aí vinha outro de novo.

DF: E isso era pra chegar na festa?

JV: Era pra chegar na festa. Aí, até que tá bom. Aí dança-vam a noite toda, cantando aleluia, cantando tucui, aleluia, tudo. Agora tinha uma ordem: “Olha, pra vocês quando conhecer menina, não é pra mexer com menina não, se for pego com a menina pode fazer casamento dele, logo.” Aí se for pego com a menina, já saíam casados de lá.

DF: [risos] Ah é!

JV: Eh. De primeiro, eu digo assim, antigamente até eu conheci, naquele tempo a mulher não usava calcinha né, calcinha dela só roupa mesmo. Como foi que a velha disse: “Rapaz, tu não tem vergonha de dizer não?” O peixe era criado sem loca. Mas, então naquele tempo não usava, só chegou agora, poucos tempos apareceram essas calcinhas. Naquele tempo não existia cueca também. Existia só cal-ção. Primeira cueca do homem era o calção, primeira cueca quando chegava, quando eu conheci no garimpo, mas era só depois, já apareceram essas cuecas, calcinha pra mulher, quando apareceu. Agora hoje, criança nasceu, com meia hora já tem uma calcinha nela, né?

DF: [risos]

JV: E quando tá com dez anos, já tá tarada, já tá ficando buchuda, isso que tá acontecendo hoje. Tudo eu digo assim, né, que tá acontecendo isso. Pois é, antigamente eles dan-çavam assim. Aí passavam dois, três dias ficavam bêbados, e ninguém não abusava, eles não brigavam não. Aí ia acabar a festa, ia embora. Aí outro tempo, já outra comunidade ia fazer outra festa, já a tal de parixara, né? Agora, o negócio de aleluia era pra ser visto no Natal, dia 24, 25, eles dançavam muito esses daí também, eles dançavam muito.

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DF: Sim.

JV: E acabou. Hoje acabou.

DF: E, por exemplo, história de macaco, de alguma coisa, o senhor sabe?

JV: Não... História de macaco, tem muita história de macaco, né...

DF: Assim, alguma lenda. O senhor sabe alguma, já ouviu falar?

JV: Tem. Nunca ouvi falar dessa de macaco. Tem essas de macaco, muito, mas eu não sei contar bem não. Tem a do jabuti também, né...

DF: Então!

JV: Tem o Jabuti, diz que enganava onça, né?

DF: Como?

JV: Só tinha um bebedor. Aí história começa com a do macaco. Só tinha um bebedor. Aí, jabuti tava lá, destar que tinha uma onça no bebedor. Demorou, Jabuti não aguen-tou mais de sede, né, aí apareceu lá. Aí a Onça velha “tan”, pegou. Aí: “Ah! compadre Onça, o que tem de comida pra gente comer, tô com uma fome” “Ah! Compadre, não vai me comer não, rapaz. Não vai me comer, não.” “Tô com fome. Tava só esperando boia pra chegar aqui pra mim pegar; tu apareceu, vou te comer agora.” Aí tinha um pé de buriti, assim: “Então pra mim não escutar teu dente dentro do meu casco, quebrando, tu me leva lá no pé de buriti, aí me quebra todo e tu me come; aí não escuto zoada do teu dente valente.” Aí, Onça velha foi lá no buriti, aí “pá”, escapuliu, não quebrou não, aí mergulhou dentro d’água. Aí onça tava lá esperando jabuti boiar, Jabuti nunca boiou, foi pra outro canto. Lá aparece o Macaco de novo com sede, aí pega o Macaco de novo. Aí Jabuti fala: “Olha, compadre Macaco, tem uma Onça aí que tá só esperando pra comer a gente. Eu enganei ela dizendo que ia quebrar casco no pé de buriti, mas não quebrou não. Eu caí e mergulhei, aí eu vim boiar

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aqui.” “Eu vou enganar ela lá.” Aí ele foi. Aí tava bebendo água, aí pegou ele: “Ah! Macaco, eu vou te comer. Jabuti me enganou, agora eu vou te comer.” “Não rapaz, como é que tu vai fazer? Me pega pelo rabo assim, me roda assim e me joga lá, pra mim bater no pau, pra não escutar teu dente na minha cabeça.” “Tá bom.” Aí ele pegou assim, jogou no pau, pegou no pau lá dentro. Aí Macaco foi embora. Só tinha um bebedor. “Agora, dois me enganaram. Agora, como que eu vou beber água agora?” Aí ele entrou, achou um abelheiro, né, se melou de mel todinho, se melou lá. “Eu vou beber água agora.” Aí se melou de mel, chegou lá se encheu de folha, o Macaco. Ele já tinha ido duas vezes. Aí chegou lá. “Ah! Compadre Folharal, agora eu vou te comer. Macaco me enganou, eu vou te comer.” E o [Macaco Folharal falou]: “Eu não sou Macaco não. Aqui não tem nada pra tu comer não, eu sou magro.” “Não, eu te como assim mesmo, eu tô com fome.” Aí pegou de novo. “Agora eu vou fazer assim o mesmo que tu fez com o Macaco. Tu me leva...” Lá ele joga de novo; escapuliu e foi embora. Lá, ele correu atrás dele lá, aí entrou no buraco do tatu assim. Entrou no chão. Aí tá lá, no buraco, pelejando pra tirar. Peleja pra tirar e nada. Aí chamou urubu: “Ei compadre Urubu, tu fica aqui vigiando esse buraco aqui que o Macaco Folharal tá aí dentro; que eu vou buscar ferramentas pra mim cavar.” “Tá bom, então pode ir.” Aí foi embora atrás de coisas dele pra cavar. Aí ele chegou, não, aí ele apareceu, aí Urubu tava lá. Aí o Macaco: “E aí compadre Urubu, o que é que tu tá fazendo aí?” “Rapaz, eu tô vigiando aqui que o compadre Onça deu ordem aqui, ele foi buscar as coisas dele pra tirar o Folharal que tá aí dentro.” “Sou eu que estou aqui rapaz.” “É tu é?” “É, mas tu arregala bem os teus olhos assim, porque se tu não arregalar bem teu olho, assim, eu vou sair e tu não vai nem me ver. Tu arregala teus olhos bem assim e fica bem perto do buraco com os olhos arregalados, aí tu vai me enxergar quando eu sair.” Aí ele pegou um pouco de barro lá, aí quando ele arregalou os olhos dele, aí “tá”, ele jogou areia nos olhos dele, barro nos olhos dele. Aí ele saiu e foi embora. Olha aí a história do compadre Folharal. Aí a Onça chegou: “Cadê, ele tá aí.” “Rapaz, ele tá

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64 Anaipê é conhecido em geral por Aninkê.

aí.” Aí cavou o buraco, o lugar mais limpo. Folharal já tinha ido embora. Mas era mesmo ele, o Macaco, só que ele se melou com o mel, né, aí se enrolou na folha e ficou cheio de folha. Acabou já a história do Macaco. Uma história que eu estou concluindo até hoje...

DF: [risos] Dá saudade?

JV: [risos] Matando a saudade. Pois é, professor, é assim a história...

DF: E história do Macunaima, o que é que o senhor sabe a respeito, que o senhor ouviu contar?

JV: A história do Macunaima com aquele irmão dele. O irmão dele era o Anaipê,64 do Macunaima, do Insikiran,né? Do Insikiran, eles andavam muito por aí. Aí irmão dele, esse Anaipê era danado, era danado, ele andava em todo coisa que não prestava, né? Aí o irmão desse, o Insikiran dizia pra ele: “Meu irmão, deixa de estar fazendo danação rapaz, tu morre!” “É nada. Não vai acontecer nada comigo, não. Eu sei o que eu tô fazendo.” Aí acharam um buraco onde morava um camaleão muito grande. Aí: “Eu vou cavar esse camaleão, mano, pra mim, pra nós comer, pra...” “Não rapaz, deixa ele, ele é brabo...” “Não, eu vou cavar ele!” Aí foi cavar ele. Aí lá esse camaleão comeu ele, engoliu ele. Agora o que esse Insikiran faz? “Agora comeu meu irmão, eu fiquei sozi-nho.” Aí cava o buraco, até que achou camaleão lá dentro, camaleão grande que tinha engolido o irmão dele. Aí lá ele matou o camaleão, partiu o camaleão, e o irmão dele tava lá dentro inteiro, tinha engolido inteiro, já tava morto já, né? Lá ele trabalhou, rezou, aí lá levanta de novo esse irmão dele: “Rapaz, mas tu é muito teimoso. Eu não disse que ia te engolir. Você é muito teimoso...” “Não, eu só queria malinar de ti fazendo isso.” “Mas não faça mais uma coisa dessa não, meu irmão, porque tu só fica me dando trabalho.” Lá foram de novo. Aí tinha esse tal de Mapinguari, aí tava lá. “Mano, umbora empurrar uma pedra.” “Rapaz, deixa aí, o Sol vai escurecer, vai escurecer aqui pra nós.” “Não, eu vou arrumar uma pedra.” Aí tinha uma pedra em falso assim em cima dele, aí empurrou a pedra. Quando ele se espantou, a

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pedra veio “pá”, aí matou o Curupira. Lá escureceu, aí eles estavam no escuro. “Rapaz, você é muito danado.” Aí lá fez trabalho de novo pra clarear. “Mas, você é danado!” Então, assim a história desse Macunaima né, que eles chamavam Insikiran e o irmão dele era Anaipê né, história deles. E fize-ram tanto aquelas serras, serra do... Aquelas pedras por aí que tem, aquelas pedras de carapanã foi eles que fizeram; aí aonde mexe com essas pedras, aí dá carapanã. Aí tem pedra de pium, aonde fizeram, pedra de pium mesmo, fica ali, aí quando mexe com ele, com pedra de pium, aí dá muito pium. Foi eles que fizeram isso. Esse era armação do irmão dele, desse Anaipê que fez.

DF: Eram três?

JV: Eram três. Era Macunaima, Insikiran e Anaipê, né? Eram três. Até hoje essa história do Macunaima com o Anaipê, com o Insikiran serviu pra oração pra tratar gente doente, que os parentes índios rezam, desde esse tempo né? Tudo coisa que irmão dele ia fazendo, tudo ia levantando irmão dele. Às vezes o irmão dele morria, engolia, matava, todo tempo, os bichos engoliam ele. Aí irmão dele pegava ele, tirava de dentro, aí fazia ele ficar vivo, fazia ele ficar vivo. Até hoje serve de oração. Quando a gente tá fazendo oração tem que chamar o nome dele: do Insikiran, Macunaima...

DF: O senhor conhece alguma oração?

JV: Eu sei oração.

DF: E pode falar ou não?

JV: Eu posso falar, mas o senhor não vai entender né? (risos) Não tem problema não?

DF: Tem não.

JV: Então, assim que eles se chamam. Então, hoje é meu filho, assim, meu filho adoece, de susto, qualquer coisa, meu filho, criança, né? Aí tá doente, aí papai vai dizer: “Meu filho tá doente, o que ele tem?” Aí vão olhar, aí tá bom, aí eu rezo assim:

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Urî sane tî, urî sane tî Insikiran piaSene moi’ e’tarîmo’tî pî wai tî piri’ya enato’peÎ’ pî iteparan era’tisa, o’ma ya ira’tisa, paran ya yapî’saYannanî pî pî wai tî urî tî Insikiran pia tîInsikiran pia ya imasa’kapî mantî, Anike pia ya i’masa’ka pî mantîMakunaimî pia ke imasa’ka pî wai tî, tumasi yenî pan nî pî’ wai tî,Kumi ya wanî tî ke, yennî pan nî pî’pi wai tî, i’masa’kapî wai tîInîrî piri ya para wanî ton pe para, i’masa’kapî wai tî, Urî tî Insikiran pia, Anike pia se tî, Makunaimî pia ke i’misa’kapî wai tîInîrî piri ya para enato’ pe para i’masa’kapî wai tî urî sane tîInsikiran pia se tî.

[Eu sou eu, eu sou eu filho do Insikiran.Estou rezando este menino pra ele ficar bom,Porque a doença virou nele, bicho virou ele, doença pegou.Fiz ele melhorar. Sim, sou filho do Insikiran.O filho do Insikiran fez ele levantar, filho de Anikê fez ele levantar.Com filho de Makunaima fiz ele levantar, fiz ele comer.Com puçanga fiz ele ficar esperto, com Makunaima, com puçanga,Com minha comida, com minha peneira.Com meu mel fiz ele ficar bom.Fiz ele levantar pra ele nunca mais ficar doente,fiz ele levantar.Sou eu filho de Insikiran, filho de Anikê, filho de Makunaima.Fiz ele levantar, para nunca mais ele ficar doente.Fiz ele levantar, sim, sou eu filho do Insikiran.]

Quando homem diz que é pia, né? Quando é mulher, menina, diz Insikiran pasi. Assim, oração dele. Então, desde quando ele levantou esse irmão dele doente, foi engolido pelo bicho, tudo ele ia levantando. Até hoje serve de oração.

DF: E a tradução é mais ou menos como?

JV: Uhn?

DF: A tradução pro português.

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JV: É porque diz assim: “Eu estou levantando esse nene-zinho que tá doente, [como é o nome?] com esse Insikiran, Macunaima, e com ele mesmo que estou fazendo saúde dele, chamando meu nome, chamando o nome do meu irmão, nome do outro irmão mais velho, que é o Macunaima [que o senhor falou]. Daí são os três que estou chamando que daí foram trazendo, e já devolvendo e já tirando a doença dele tudo, voltando pra eles melhorarem a situação dele, como ele tá”, que ele tá dizendo assim, né? É assim que até hoje serve pra oração, esse Macunaima, todo mundo sabe essa oração.

DF: Ah é?

JV: Eh, tudo, não é só eu não. Eu aprendi com eles, com os antigos, eu não disse que eu não aprendo muito, mas eu aprendo oração.

DF: Sim.

JV: Aprendi essa oração pra doente, pra curar doente.

DF: Tem mais alguma história que os antigos contavam, que o senhor já ouviu e que possa contar pra gente?

JV: O finado vovô contava história... Como eu tava dizen-do, esses portugueses que carregaram os índios daqui de Roraima, eu não sei dizer que ano, que tava dizendo agora. Esses portugueses vieram, eu não sei de que ano, mas vie-ram muitos brancos, eles vieram de navio. Saía, não sei se o senhor conhece lá no Normandia, tem a que se chama Casa Branca, aí que era ponto do navio, quando chegavam os por-tugueses. Aí começaram carregar criança de 10 anos, de casal, todas malocas pegaram, aí levaram pra Manaus, [Portugal], carregando lá pra ilha da Baixa da Amazônia que ficaram por aí. Até hoje existe ainda. Aí levaram, aí já foram carregando, aqueles que levaram primeiro estudaram, botaram pra es-tudar pra lá; aí serviram o quartel, tudo serviram pra lá. Aí já no final, com os tempos, aí já começaram a carregar de 20, já de anos, aí já começaram a carregar já os outros que ficaram. Já pro final, eles estavam começando já carregar o papai já, o velho. Os restos dos filhos dele que foram primeiro, que já eram soldados, aí falavam pra ele: “Olha, quando...” Aí,

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naquele tempo os antigos eram ligeiros, eles não tinham medo não, eles quando pra flechar um, eles se armavam ligeiro, eram treinados. Hoje não tem mais, hoje tem gente civilizada, ficaram medrosos. Todo mundo tá vendo que eles ficaram todos medrosos. Aí não sabe nem mais lidar com esses problemas que estão tendo hoje, mas antigamente não. Aí, tinham uns soldados assim, esses aí tudo têm medo, se flechar um deles, eles não vão pegar a arma deles não: “Quem flecha ele? Mas não vão me flechar não!”, que era parente dele, né? Aí o primeiro que flecharam era ele, aí de repente acabavam com ele. Finado vovô mostrou lá pra cá do Normandia, tem uma tal de fazenda, fazenda Baiano, cá pra Serra, perto do Normandia, aí começaram a matar ele. Aí tinha outro boqueirão que chamava [...], pra pegar, chegar aqui no rumo do morro; também mataram muito pra aí. Eu vi lá os ossos dele. Mais pra cá da serra do Caranguejo mataram outro, também. Aí ontem mataram um aqui na subida da serra da Pedra Branca. Aquela serra faz assim que tem uma subida, tem uma maloca que ela tá cheio de osso de branco lá, último que mataram. Eh, por que é que eles mataram? Por causa do pai deles, [como é], filho deles que foram pra lá e que levaram, que já estudaram e serviram, aí já trouxe-ram eles pra já pegarem o resto deles; mas foi o contrário, disseram que ele tinha medo do pessoal deles que estavam pegando, ele tinha medo. Aí agorinha acabaram essas histó-ria do branco. Aí isso, minha cunhada que era amazonense, que estudou nesses colégios que o senhor trabalha, aí eu falei pra ela: “Não, existiu isso mesmo!”, que tem livro deles dos alunos, tem história deles. Existiu, e ela fala.

DF: Que vieram pegar as pessoas aqui?

JV: Eh, que tem história de verdade, que aconteceu isso daí.

HM: Seu José, o senhor falou sobre o Mapinguari. O se-nhor poderia contar um pouco sobre ele pra gente?

JV: Esse Mapinguari se chama Taitei. Ele mora na mata, pai da mata né, daí ele chama Taitei. Pode ver que tudo que

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é fumaça que tem por aí na mata, tudo é ele que faz na mata. Esse Taitei é um bicho assim cabeludo, que nem arma ou de tiro, assim, não mata ele não. É tudo cabeludo uma vez que eu mostrei ele bem por aqui que nem bicho, careca pelado assim, assim um bicho que faz, gritando por aí. Ele grita na mata quando ele tá sozinho por aí. Só na mata, ele grita. Um bicho que ele é muito difícil a gente ver, mas quando ele ataca, ele aparece e grita “huuuuuuuu!”, ele grita. Agora só que já tá tudo desmatado, tá muito longe por dentro dessas matas. Tem uma moradia dele por aí, o Mapinguari; os macuxis chamam pra ele Taitei.

DF: Taitei.

JV: Pois então.

DF: E ele faz o quê?

JV: Ele mesmo, ele uma pessoa, mas só que ele é um bicho encantado.

DF: É um bicho encantado.

JV: Bicho encantado que vive na mata também.

HM: O senhor pode descrever ele pra gente, como é que ele é?

JV: Não, ele é gente mesmo, ele é gente, completamente gente, mas só que ele cabeludo.

DF: Ele faz maldade, alguma coisa?

JV: Ele não faz não, ele não faz maldade não. Ele mora mesmo por aí, pra espantar os outros, por aí.

DF: E sobre o Canaimé, o que é que o senhor sabe?

JV: Canaimé, é gente mesmo, rabudo, né? É como tem bandido na cidade, então esses daí são Canaimé, chama Kanaimî.

DF: Kanaimî?

JV: Kanaimî, que nós chamamos Kanaimî, em macuxi. Kanaimî anda de muito, não andam de pouco não, anda de

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quarenta, anda de trinta, anda até menina, mulher deles, anda com eles pra pegar homem, assim. A gente, eu estou trabalhando ali, aí eles estão aqui, aí estamos trabalhando, fazendo a roça. Aí o que é que ele faz? “Aí tu se apresenta lá pra ele.” [Diz] pra menina né: “Enquanto tu se apresenta pra ele lá, aí tu convida ele pra fazer relação contigo. Aí então tu faz, tu segura ele com força que nós vamos pegar ele lá!” Aí apresenta menina lá. Ele anda com menina. Aí enquanto a gente fala pra ele lá, aí ela encontra o homem, que homem [não tá] cismado, aí pega ele, se ela agarrar aí já vem e encosta, o rabudo velho. Aí pegam ele, aí quebra ele todinho. Eles tiram bumbum da gente enfiando a faca, eles tiram bumbum, assim. Aí costuram lá dentro aquela tripa da gente, lá o resto do bumbum, fica a costura. Aí eles cortam a piroca da gente, corta, corta língua. Às vezes eles furam, pinicam todinha a língua, todinha com espinho. Aí passam cuspe na boca da gente assim, aí a gente olha, vai bonzinho daqui, não vai sentindo nada, quando chega na tua casa, aí já vai logo, dá febre em você lá na casa.

DF: Dizem que a pessoa não lembra.

JV: Não lembra não. Aí chegando você não diz nada, você sabe, lembra, mas só que não conta pra sua família. Lá doente, morre.

DF: Pra poder contar tem que fazer o quê?

JV: Tem que lavar água de pilão.

DF: Ouvi falar.

JV: Eh, água de pilão, lava água de pilão. Bota água, lava pilão, aí dá pra pessoa. “Ah! Mas se tiver vivo, conta”, mas tem gente que morre na hora, mas sempre conta também. Assim, tem é muito desse que vem da Guiana.

DF: Vem da Guiana?

JV: Vem da Guiana.

DF: Já me falaram isso também.

JV: Vem da Guiana, vem daquelas serras, pro lado do Bonfim. Ali só tem parente rabudo pra lá. Aqui nessa faixa

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da Venezuela tem; pra Guiana tem; tudo vem de lá.

DF: E eles fazem por fazer, não tem motivo nenhum.

JV: Sem motivo nenhum. Às vezes é assim, eles trazem trança de peneira, jamaxim, abano, essas coisas assim, al-gumas coisas que eles trazem, panela, lá vindo da Guiana, eles trazem. Aí eles vêm vender a troco de uma rês. Vamos dizer: eles tem uma rede, e querem uma rês, aí: “Ah! não, tal dia nós vamos pegar, a gente deixa tudo fiado. Tá bom nós vamos voltar.” E com poucos dias eles já vêm fazer isso já, aí não tá nem esperando, tá devendo, quebram dois, três por aí, aí vem embora, aí eles viram lobisomem (nós chamamos oilubut, que vira bicho, aí vira tamanduá, se transforma em tamanduá; transforma até na galinha, no cachorro; até em mambira, tatu, tudo ele se transforma, tudo bicho. Aí fica gritando assim, como imitando grito de macaco, imitando pássaro, imita assim quando tá virando lobisomem, nós chamamos assim no macuxi oilubut, que é lobisomem no macuxi, oilubut.

DF: E iniciação de menino ou menina, como é que era antigamente? Menina quando tá na puberdade, virando mocinha, o que é que fazia antigamente?

JV: Antigamente, quando a menina se formava, era mui-to difícil andar como hoje, não tem mais a lei, né? Hoje já a menina se forma, como tava dizendo agora, a menina hoje nasceu, com meia hora tá de calcinha, mas naquele tempo a mãe da menina, e os curumim mesmo, não usavam roupa primeiro, não usavam roupa não. A mulher nascia, até mu-lher mesmo, até quando arranjava marido, e naquele tempo [quando ia] arranjar marido, ela era moça, não era como hoje que menina de dez anos não é mais nada. Antigamente tinha, existia menina moça, porque... não usava calcinha, mas tinha respeito, tinha lei pra não coisar isso. Naquele tempo, era muito cuidado que eles tinham quando a menina se formava. Aí diziam assim: “Mamãe, já sangrei agora...” Aí cortavam o cabelo bem curtinho assim, cortezinho assim, aí escondiam lá dentro, aí só saía de lá depois de um mês. Aí guardado lá, pendurado lá em cima, lá que a mãe dava [tudo]. Só tirava escondido ela pra fazer xixi, levavam ela bem escondido dos

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65 Essas foram ditas e acom-panhadas por uma gesti-culação indicando onde eram passadas a pimenta, o urucum..

outros pra ela fazer cocô. Pra ela urinar era bem escondido, ninguém não via não. Quando depois de um mês, quando ti-ravam de lá, que faziam... Aí tem esse urucum né, chama hoje de urucum que faz de coisa, colorau, esse daí. Apanhavam um bocado aí, misturavam, fazia e dava pro velho rezar, pra poder levantar da rede, levantar pra poder olhar os outros, pra poder andar com os outros. E o velho rezava, aí tirava da rede, aí fazia, fazia um cinturão de miolo de buriti, tinha mais isso ainda! Ele botava, tirava esse daí, trançava um cordão assim: “Agora cunhantã vai sair hoje.” E lavava ela por aqui tudo, nas pernas dela, por aqui tudo. Aí tinha mais outro ainda, molho de pimenta que passava por aqui pelos pés dela, por aqui pelos olhos, tudo.65 Aí depois que passava esse urucum, pintava ela tudo bem vermelho por aqui na cabeça dela, por aqui no pé, tudo, pelos tudo pintado, pra poder sair, né? [...] Hoje ninguém não faz mais: a menina se formou, aí fica por aí mesmo, não tem mais respeito. Aí, até antigamente... Por isso não adoeciam primeiro, não adoe-ciam não, todo pessoal era sadio. Hoje a menina de 10, 12, tá adoecendo, tá desmaiando, porque não aguardou a lei que o vovô, antigamente, eles guardavam, não existe mais hoje, tá na civilização, não deixa né? Aí não tem como.

DF: Sim.

JV: Né?

DF: E os meninos, tinha alguma coisa?

JV: Os meninos... Os meninos ficam rapazes, mas era assim mesmo. Antigamente, os velhos criavam filho assim: eles usavam muito, tal de puçanga. Usavam puçanga de veado; usavam puçanga de jabuti; usavam puçanga de capoeiro; usavam oração de tatu; de paca. Tudo tinha uma parte, uma plantazinha como diz daí, eles usavam. O que é que eles faziam? Os velhos, que eram pais deles, tratavam as crianças, esses meninos, pra ser caçador, pra ser pescador. Aí tem aquele, nesse mato por aí tem um [jericazinho], ele corta que só. Aí tem aquele tal de, como que chama?, um mato que tem por aí, aí corta tudo, mistura com pimenta. Aí mandava pela venta, aí já pegava tudo assim, essas pimentas,

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tudo eles passavam. Aí metia assim corda pela venta, aí tirava, cortava tudo, tá tratando. Aí passava um mês, aí levavam ele pra caçar, pra pescar, aí tá pegando peixe. Pegando peixe aí. Por quê? Porque foi tratado, aqueles que não eram tratados não pegavam nada.

DF: Pegavam não?

JV: Não pegavam, não. Aquele que não era tratado não caçava, não enxergava veado, porque botava [pimenta], planta nos olhos. Aí quando vai andando, tá olhando veado: “Tem um veado ali.” “Mata!” Também eles não comiam aquela caça que ele matou.

DF: A primeira.

JV: A primeira. Só comia já a terceira caça que ele matava, que ele já podia comer; mas a segunda, primeira e segunda ele não comia.

DF: O senhor sabe por quê? Tem alguma explicação?

JV: É porque, se ele comesse logo caça dele, que ele matou, ele não matava mais, não matava mais, não acertava mais tiro na caça. É por isso que era assim. Então, esses meni-nos também, também tinham tratamento também, pra fazer caxiri. Por que é que hoje caxiri não é mais gostoso? Hoje se chama caxiri, chibé. Antigamente, quando as mocinhas iam fi-cando grande, a mãe delas, avó pegava aquele mel de abelha, aí queimava bosta de cachorro, secava bosta de cachorro por aí, aí misturava, aí pegava folhinha, corta né, aquelas folhas amoladas, aí cortava a língua delas assim, mandava botar a língua pra fora, aí cortava, tudo cortava, botava sangue pra fora, aí deixava o sangue sair. Aí quando o sangue saía, parava, aí mandava lavar com água, aí já queimava com esses negócios. Já tinha pimenta malagueta por cima, aí queimava tudo. Aí quando fazia caxiri, aí fazia um caxiri!: “Agora mas-tiga beiju!” Então, é assim a história do parente. Aí molhava um bocado daquele beiju assim, aí molhava de molho, botava de molho assim, mastiga aquilo tudinho. Aí como tinha o do finado velho Cícero que morreu, o gaúcho, caxiri de boca, aí mastigava caxiri, aí botava na vasilha. Aí, massa tá cozinhan-

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67 Imita som do processo ralar mandioca.

66 Esses sons finais são ono-matopeias do barulho oriun-do do ato de ralar mandioca.

do lá na panela, né?, tá no fogo lá a massa que faz caxiri. Aí pegava essa outra coisa mastigada e misturava lá todinha. Aí quando cozinhava tudo, tirava, peneirava. Quando dava três horas, o caxiri tava bom de beber, já tava azedo já. Era assim que se tratavam. É o trabalho de mulher fazer caxiri ficar forte, azedo. Ficar apurando assim, tipo como estar fermentando, né? Fermentando, é.

DF: Me contaram que é assim mesmo.

JV: Pois é assim mesmo. Hoje não usa mais, não tem mais, não tem mais não.

DF: Hoje é diferente?

JV: É diferente, muito diferente. Antigamente tinha uma cantiga da mulher, que o finado vovô cantava. Nesse tempo não tinha motor, era ralo. Estão ralando mandioca aqui no ralo, mandioca, aí estão ralando, e tinha a cantiga.

DF: E como é que era?

JV: Era assim, finado vovô cantava assim, diz assim:

Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakîWirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisiSau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisiSau, sau, sau, só.

[Acorda ralo, acorda ralo, acorda ralo. Acorda.Acorda menina, acorda menina , irmãPara o ralo dizer sau, sau, menina.Sau, sau, sau, só] 66

É mulher que trabalha com mandioca. “Mari.” é ralo, tá mandando o ralo acordar pra fazer “sosó.” e pra ralar, pra fazer ralo, aí diz assim:

Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakîWirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisiSau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisiSau, sau, sau, só.

Aí elas vão fazendo chiiiiii67, mulher tocando e chiiii, chiiii, fica cantando, mulher cantando.

DF: Ela sai cantando e sai ralando.

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JV: É... Sai ralando. Só o que eu aprendi nunca esqueci até hoje, e essa eu aprendi desde faz tempo, nunca que esqueci dessa música.

DF: Dessa música.

JV: Dessa música, até hoje eu canto. Aí às vezes, aí eu canto de manhã, quando um fala: “Esse velho já amanhe-ceu doido de novo!” É que eu lembro né, aí os outros ficam malinando aí...

DF: Sabe alguma outra música?

JV: Não, não sei não.

DF: Essa aí o senhor guardou, né?

JV: Só essa que eu guardei. Não sei por que não saiu da minha cabeça. Eu escutei faz tempo quando eu era criança, quando vovô cantava assim pelas festas. Pois é, só sei que são assim minhas histórias.

DF: E o senhor já passou alguma vez por algum tipo de preconceito, alguma coisa, por ser indígena? Como é que o senhor vê os índios hoje, essas questões todas?

JV: Professor eu, quando me entendi nesse... Até 1970, a gente vinha vivendo assim tudo em paz com os brancos, nunca via briga lá atrás. Dizem hoje, dizem: “Ah! Por que bran-co mata?” Como que eu estou dizendo que os portugueses vieram pegar lá o pessoal lá, vieram pegar o pessoal daqui né, há tempos atrás. Aí, mas de lá pra cá, nós víamos aqui muito fazendeiro. Agora, fazendeiro batia na gente por quê? Porque pegavam uma rês dele, sem pedir dele. Até hoje ninguém não gosta né, pegar o que é da gente, ninguém não gosta não. Então, branco criador, quando índio pegava um boi dele, aí às vezes foi descoberto, aí ia pegar e dava uma surra e botava pra trabalhar de graça. Por quê? Pra pagar o que ele fez, não era assim à toa. Então, nós vivemos até, quando eu trabalhei com esse branco, eu trabalhei com esse meu pai que me criava, ele era riograndense, do Rio Grande do Sul. A mulher dele também era do Rio Grande do Sul, era Maria Viei... Mariano Vieira. Aí no [município de] Normandia tem

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ainda família dele, esse Chico Vieira, o único irmão dele que tem lá. Aquele pai do “Pipoquinha,”68 esse Mariano Vieira.

DF: Ah! Sim.

JV: É pai dele. Ele é meu irmão de criação, esse “Pipo-quinha”, que eles dizem que é tocador, cantor, esse daí é meu irmão de criação, ele. Eu fui criado com pai dele. Então, naquele tempo, não existia encrenca com branco. Meu pai trabalhou muito na serraria com os brancos fazendeiros, trabalhava na serraria fazendo cercado, fazendo curral. Meu pai nunca apanhou não, nunca sofreu não, ninguém nunca sofreu. Então, quando fui trabalhar com os brancos, fui traba-lhar com aquele Mariano Vieira que falei agora, me criou com 7 anos [até 16 anos]. Corria com mulher do poder dele né? Aí o que hoje eu vejo. Então, de lá pra cá, nós, a gente vê muito tudo festejo de Natal e aonde nós festejamos lá no - não sei se o senhor já foi lá no Maturuca? Ali era ponto de gente. Antigamente, os tuxauas eram respeitados, não tem tanto tuxaua miúdo como tem hoje. Cada comunidade tinha, tem tuxaua hoje, novo, curumim; antigamente era tuxaua velho, tuxaua era respeitado, tinha umas espadas, até hoje não sei cadê essas espadas deles. Umas espadas, eu vi lá na Serra do Sol, lá na comunidade Serra do Sol de Roraima tem uma espada. Uma mulher mostrou lá pro exército, essas espadas, tempo de general Rondon. Deixou essa espada pro finado pai dela. Quando estrangeiro chegar aqui em Roraima, aqui no Brasil é pra mostrar essa espada pra esse estrangeiro, que essa é a defesa do Brasil, que general Rondon deixou pra ela. Aí no Maturuca a gente também tem. Até eu procurei, por esses dias, essa espada, porque ainda tá lá. Então, quando tuxaua lá era Melquior, perguntava, convidava toda região, olha, Pedra Branca, Uiramutã, Socó, Lilás, Morro, tal de Ma-cedônia, Maracanã, Santa Maria, por aí, nessas malocas tudo, pra tudo ir. Tinha uns fazendeiros, aí falavam com o patrão lá, com o dono da fazenda, diziam: “Olha, nós queremos umas quatro rês pra festejar.” Eles davam, eles davam as reses, eles não vendiam não, eles davam. Aí eles cozinha-vam, tratavam tudo, também caçavam, também pegavam

68 Aqui refere-se ao líder da Pipoquinha de Normandia, banda de forró originária deste município.

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veado, peixe, jabuti, tatu, fazia logo. Todo mundo comia, né? Aí nunca acontecia de maltratar com nós. Por que é que tá acontecendo hoje? Padre Jorge chegou aqui em 1970, 69...

DF: Quem?

JV: Padre Jorge. Padre Jorge, que chegou aqui pra fazer essa guerra aqui. Foi padre Jorge que trouxe essa guerra. Antigamente os padres pegavam tudo. O padre chegava na comunidade fazia batismo, fazia casamento, era um padre mesmo que fazia casamento, não tinha guerra não. Agora, em 69 o padre chega aqui em Roraima, aí ele trouxe guerra. Foi o primeiro guerreiro, foi esse padre Jorge, que chegou aqui em Roraima. Não tem outro padre que trouxe guerra, não, foi padre Jorge que trouxe essa guerra aqui em Roraima.

DF: Isso foi na década de 70.

JV: Foi na década de 69 que ele chegou aqui. Aí o que é que ele fez? Esse padre Jorge andava nas fazendas dos fa-zendeiros. Andava, passava semana na fazenda e tratavam ele muito bem, porque ele era padre. Destar que ele tava prestando atenção como ele vivia. Aí passava semana nas co-munidades vendo a situação também dos parentes também. Aí quando foi na de 70, 71, ele disse assim, ele falou, eu sei bem lembrando dessa história do padre Jorge. Ele fazia reu-nião nas comunidades, ele fazia assim: “Olha, vocês botam os brancos pra fora, esses brancos não são daqui não, esses brancos vem aqui, tá na custa de vocês aqui, usando terra de vocês, criando gado pra eles com vocês passando fome aqui”. Ele dizia né, padre Jorge: “Quando vocês acabarem de matar gado dele aí, aí vocês não vão precisar não, porque é de vocês, o gado é de vocês.” Aí o pessoal tinha medo de matar gado. O finado velho Jair tinha muito desse aí, eram quarenta e cinco mil reses, era o maior fazendeiro que tinha em Roraima, que tinha placa nº 01, maior fazendeiro aqui em Roraima. Aí acabaram com medo. Começaram a come-çar. Aí tem aquele motorista da FUNASA, meu primo Lauro, foi criado com Jair, e ele apanhava muito quando ele era curumim. Aí então ele serviu o quartel, aí deu baixa e ficou,

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voltou pra lá; foi ele que começou a matar gado. Aí chegava gado assim no terreiro, muito boi, vaca gorda, boi gordo, aí falava pro irmão dele, pro Pereira que mora lá: “Mano, me dá uma espingarda que tem um veado bem ali assim.” “Tu não tá mentindo não, Lauro?” “Não, não estou mentido que eu vou lá matar ele.” “Já foi embora.” “Não, não foi não!” Aí pegou espingarda dele, aí foi lá [...] pertinho assim, boi tava comendo no terreiro. Aí “pow”, matou né. “Mas rapaz, tu matou!” “Não, rapaz, tá com medo é? Umbora comer gado. Eu já apanhei tanto, por que é que vou apanhar? Não vou apanhar mais não.” Aí, por aí começou. Filho do velho Jair Alves tinha quarenta e cinco mil reses, eles comeram dez mil reses do Jair. Aí Jair: “Já que não estão nem mais tratando carne certo, estavam só tirando carne numa boa e deixando o resto, aí quase todo mundo entrou!”, ordem do padre Jorge. Aí, finado velho Jair trazendo polícia, levando polícia, levando exército, fazendo medo. Aí: “tá bom de vocês começarem fazer o retiro ali, o gado vem pra vocês.” Aí quebraram forças dos fazendeiros, aí já coligaram com Funai também. Aí Funai já foi botando Polícia Federal em cima, aí retiraram fazendeiro tudo. Até hoje estão tirando. Estão tirando até hoje. Quem fez isso foi padre Jorge; mas antigamente ninguém não vivia assim não. Porque quando fazendeiro tinha um serviço, convidava: “Compadre, tem um serviço pra fazer, um cercado, limpar terreiro...”. Eles não levavam de graça, eles pagavam. Aí eles [os índios] falavam: “O senhor me vende uma rês?” “Vendo, tanto. Então, tu faz esse trabalho.” Aí vendia uma rês, aí pra trocar com sal, pra trocar com roupa, tudo ele fazia. Naquele tempo era difícil, não tinha roda de carro, hoje tem muita roda de carro e estão querendo acabar? Então, era difícil. Nós enchemos tanto de vasilha olha, o telefone bem aí, qualquer coisa a gente corre aí. Aí não existia isso, chave na porta, mas naquele tempo... Então, tudo existiu isso, não maltratavam não, mas hoje eles dizem: “Não, porque fazendeiro maltratava, batia muito nos índios.” Índio nunca foi maltratado não, nunca foram mal-tratados não, contrário, os brancos que ajudavam a gente. Agora, hoje é que nós vamos sofrer. Tem um senhor ali em

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casa, lá do Mutum. Por que tá saindo do Mutum? Porque lá tá no sofrimento. Tiraram a vila lá do Mutum, não tem mais branco, só tem dois lá, vão tirar energia de lá. Vão tirar telefone de lá. Eles estão vindo pra cá, eles vêm falar com o pessoal pra vir aqui na maloca, pra arranjar transporte pra buscar, pra fazer mudança dele pra cá. Tem muito deles que estão por aqui na beira da estrada aqui, que estão morando. Tudo vem da região da serra, aí pro lavrado, pra serra do Pium tem muito parente, estão fugindo tudo pra cá. Por que é que estão fugindo? Por que é que não ficam pra lá? Agora que eles vão sofrer. Lá tem muita gente aposentada. Aqueles que não são aposentados não têm sabão, não têm sal, não têm roupa. Não tem mais branco! Estão pra retirar todo mundo daqui. Pra onde nós vamos agora? Nós já esta-mos acostumados, comunidade que hoje tá na civilização, nós comemos sal, nós comemos tudo que o branco usa, que nós não temos a fábrica de nada. Nós sabemos fábrica de farinha, de beiju, pajuaru, e de rede de fio, mas de roupa, ainda não tem fábrica de fazer roupa não, nem sal, não tem fábrica aqui, não tem. Aqui andaram os técnicos de [...], pro pessoal fazer, plantar cana, fazer açúcar, aquele pessoal que fez curso aí pra fazer açúcar, fazer rapadura, tudo, mas não estão fazendo, ninguém não tá plantando não. Por que ninguém não planta, né? É que aqui não vem pra gente como vem professor pra ensinar no colégio. Também a gente pre-cisa pra ensinar a gente também, mas ninguém não faz, por quê? Aí, da outra vez que nós fizemos, nós trouxemos ele pra fazer, pra ensinar a fazer tudo isso. Então, é assim que a gente vivia primeiro. Não tinha maldade do branco não, a gente vivia tudo junto. Eu participei da assembleia lá em Boa Vista, essa da ALIDCIR, essa que o pessoal de Brasília veio. Uma mulher e três homens, uma pequena gente aqui de Roraima, vieram ver a situação desse pessoal que é a favor do branco, a SODIUR. Aí falaram muito, aí você vê o documento que nós falamos, esse documento aqui então, leva esse documento aqui de volta. Agora, tudo nós temos documento, porque disseram, Funai chegou aqui dizendo

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que nós somos os primeiros índios brasileiros daqui da terra. Agora, por que é que nós não somos agora? “Terra não é de vocês não, porque vocês são ocupantes de terra. Índio não é dono de terra, ele é ocupante. Essa terra é de União, não é de vocês não!”

DF: O que é que o senhor pensa a respeito disso?

JV: Eu penso que ninguém não tem direito mesmo. A força tá aí, estão chegando, tá faltando respeito, ninguém não pode fazer nada. Aqui nós discutimos com a Funai, ali também no BV-8, sobre isso também. A Funai não dá nada, não dá colégio, não tem saúde, não dá nada, só tá ganhando dinheiro nas custas da gente, em nome do índio. Não tem nada na vida do índio aqui.

DF: E o que o senhor pensa nessa questão da terra ser da União e o índio só...

JV: Só pra ocupar a terra.

DF: Por exemplo, o senhor não pode fazer algumas coisas, né?

JV: Não pode. Como que não podemos fazer?

DF: Bom, a lei não é assim que funciona? O senhor não pode tirar terra daqui, pedra, pode?

JV: Pode não.

DF: Então, é essas coisas...

JV: Olha, aqui, aqueles parentes bem aqui no malocão, ali embaixo...

DF: Sim.

JV: Aqueles são fiscais, é da Eletronorte, da associação São Marcos. Ninguém não pode vender pedra, ninguém não pode vender barro, ninguém pode vender areia, nem palha, não pode vender nada. Eles estão aí. Se a gente tá venden-do madeira, aí eles estão aí perto. Tomaram. Tem até um senhor ali no Igarumã, com um filho aleijado, tava com oito metros de tábua pra vender, pra comprar alimento pro filho.

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Aí o parente, o próprio parente mesmo fiscal foi lá e disse: “Você tá vendendo aqui?” “Não tô vendendo.” Aí tomaram o trabalho dele. “Não, mas eu sou índio!” “Não, você não pode vender nada não.” Tomaram madeira dele pra lá. Aqui, o próprio parente tá contra a gente. Ele tá ganhando dinheiro e nós não ganhamos nada. Agora, isso que eu penso: como é que nós poderemos viver agora, do garimpo? Quando me entendi no garimpo, como eu disse pro senhor, todos nós tínhamos dinheiro, mulher tinha dinheiro, curumim desse ta-manho tinha, porque vivia no garimpo. Aí nesse tempo desse padre Jorge fechou esses garimpos tudo, tudo ele acabou, tudo padre Jorge acabou, tudo. [Depois veio] esse Jaci, esse pessoal tudo aprendiz de Jaci. Aqueles chefes deles aí só vêm pegar o dinheiro em nome de comunidade. Ninguém nunca vê ele, só vive trocando de carro, todo ano tá trocando carro. Nós não temos dinheiro, esse dinheiro vem com todo mundo. A linha da Eletronorte passou aqui e deram não sei quantos mil pra dar de seguro pras comunidades. Só uma pessoa usou esse dinheiro, e hoje tá sumido. Hoje o pessoal tá cobrando esse dinheiro, mas eles dizem que já pagaram. [Parece que é assim mesmo], Jaci tá pegando dinheiro, lá pelos Estados Unidos, por aí, com o nome de comunidade, só tá só pra ele. Porque tá sofrendo por aí, tá sofrendo por aí? Outro dia, ano passado, teve um irmão meu baleado com uns tiros assim, na lavoura do Paulo César, mas que ele veio procurar. Ele foi mexer com a área do homem! Então, isso não tá de acordo, não.

DF: Sei.

JV: Garimpo fechou, apareceu tanto pilantra na cidade, apareceu tanto ladrão. Por quê? Não tem mais aonde tra-balhar. Na fazenda não tem mais fazendeiro pra trabalhar, não tem mais garimpo. Como é que nós vamos viver? Só tem dinheiro pro funcionário, né, que estudou, que terminou estudo, pro governador, pra Funai. Pra esses ladrões aí tem, pros padres tem dinheiro. Tem um senhor aí que me con-tou, quando o primeiro dinheiro saiu aqui em Roraima, pela Diocese, né, os padres lá, esse padre Jorge tava lá na terra,

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lá com o Papa, onde mora pra lá. Tem tantos mil milhões, oferta dinheiro pra ajudar essa Diocese de Roraima. Davam de cinquenta, cem mil reais de dinheiro aí por cada oferta pra vir pra cá pra Roraima. Então, chegou muito dinheiro, mas só que não deram gado pra todo mundo, gado ficou todo pra lá. Pra lá eles têm muito gado. Parente fala que tem muito gado. Aí ficamos sofrendo assim sem nada, hoje tá na briga já, já demarcaram a área tudo. E aonde é que nós vamos ficar agora? Aonde que nós vamos comprar nossas coisas? É muito sofrimento, fica difícil. Aí passou um militar aí, um senhor gaúcho falou: “Olha, agora vai ficar ruim pra nós todos, não é só pra vocês não, pra nós todos vai ficar difícil.”

DF: Nem pra um nem pra outro, né? Vou repetir uma pergunta que já fiz e o senhor não falou: o senhor já passou por alguma forma de preconceito por ser índio?

JV: Não.

DF: Nunca?

JV: Não, nunca.

PV: Sempre normal.

JV: Eh, sempre normal.

DF: Tá certo. Acho que tá bom, senhor Vitor.

JV: Eh, acho que é só isso mesmo que eu sei...

DF: Alguma coisa que o senhor lembrou?

HM: O senhor não falou sobre um momento feliz da sua vida.

JV: Como?

HM: Um momento feliz na sua vida?

JV: Não, eu até agora eu vivo feliz na minha vida, porque eu vejo assim sem perturbação de ninguém, que eu vivo feliz, trabalhando.

DF: E um momento triste, uma coisa que marcou o senhor muito, que o senhor viu acontecer e que nunca esqueceu,

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no garimpo?

JV: Eh, no garimpo eu vi. Eu fiquei muito triste, porque eu vi duas mortes de faca no garimpo, quando trabalhava no garimpo. Os parentes mesmo se esfaquearam, que eu vi, foi muito triste. Eu vi o pessoal morto na beira do rio assim, esfaqueado, foi muito triste. Conhecido, era meu amigo que morreu. Eu fiquei muito triste no garimpo. Agora, depois nunca mais, depois teve muita alegria no garimpo porque pegava muito dinheiro, mas hoje não tem nada. Como eu disse né, não tem nada.

DF: Entendo.

JV: Peguei muito dinheiro.

DF: Muito diamante?

JV: Muito diamante, naquela época era diamante, não era ouro não.

DF: Sei.

JV: Peguei muito dinheiro. Se eu tivesse aproveitado bem esse dinheiro eu seria milionário até hoje.

DF: Qual foi o maior diamante que o senhor pegou até hoje?

JV: Sim eu peguei muito dinheiro, muito diamante.

DF: Mas o senhor pegou algum grande?

JV: Não, nunca peguei não, só mesmo os medianos, de 180, 170 pontos, 80 pontos, assim.

DF: Sim.

JV: De quilate.

DF: O senhor tinha muito parente no garimpo?

JV: Era mais indígena que trabalhava, era mais indígena. Depois chegou muito pessoal de fora.

DF: Que veio de fora?

JV: Assim, cearense, maranhense. Mas o que mais tem

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é cearense, né?

DF: Sei.

JV: Amazonense é muito difícil no garimpo. Chegou mais cearense, paulista também.

DF: E me diga uma coisa, o senhor sabe alguma história do timbó, a história dele?

JV: Timbó?

DF: Eh, timbó, pescar né?

JV: É, tem timbó aí.

DF: Mas o senhor sabe alguma história, algum mito atrás dele, narrativa, alguma coisa?

JV: Esse timbó, são três qualidades de timbó: tem timbó “folha”, tem folha que é uma, uma folhinha mesmo assim, uma folhinha redonda. Esse daí mata peixe também, mas ele é zangado. Ele tem que pegar dois sacos daquele, aí ma-chuca ele todinho, calado, né? Tem um pocinho assim cheio de peixe, aí machuca ele todinho, aí ele, porque tem gente como o senhor ali. Aí ele manda: “Vocês calem a boca aí, va-mos botar calado, sem gritar, sem bater água.” Aí machuca todinho, aí bota, aí vai botando no saco aquela golda dele todo, aí quando os peixes estiverem boiando já começando a virar, deixa eles morrerem né, não deixa ninguém pegar não, deixa ele morrer primeiro. Quando estiver tudo ruim, morrendo mesmo, aí eles começam a pegar. Quando gór-dio, que eles começam a pegar, aí pega todinho. Mas antes, quando ninguém obedecia ao chefe que tá mandando não mexer, se mexer, os peixes ficavam todinhos, aí esse timbó, essa folha, elas ficavam, a água ficava roxa todinha.

DF: Roxa?

JV: Ficava roxa tudo, porque zangou já, já zangou. Todo ele é zangão. Essa raiz também chamam de timbó também. Ele zanga também. Aí essa raiz, eles arrancam muito essa folha, muito assim, trinta, quarenta sacos pra botar no rio, no rio assim. Quando o rio é seco, aí bate tudinho, aí mesma

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coisa. Aí: “Bota aí todo mundo por igual. Deixa os peixes morrendo aí, quando tiver aí, não vão flechar ele agora não, fica com flecha, né.” Aí deixava morrendo, revirando tudo, aí dizia: “Pode começar a ajuntar peixe.” Aí vamos embora matando peixe aí, morrendo tudo, aí se mexer também ele se zanga. Aí peixe fica bom todinho, não morre não, não morre não. Tem outra que é chamada “casca”, também tem casca que é igual sangue. Esse é zangão também, tem que botar com muito cuidado. Aí morre peixe, deixa morrer. Agora, quando peixe estiver começando a morrer também, se mexer com ele também ele fica bom todinho, ele zanga também.

DF: Entendo.

JV: É assim o timbó.

DF: Tem que seguir o que o chefe tá falando, né?

JV: Tem que obedecer ao que o chefe tá falando, se não obedecer ele se zanga pra lá, aí a gente passa fome.

DF: Sei.

JV: Eh.

DF: Então, tá certo senhor Vitor.

JV: Ouvir dizer professor, que esse timbó tá servindo pra diabetes?

DF: Eh? Não estou sabendo, não.

JV: Estão dizendo por aí que não é pra dizer pra ninguém, mas estão dizendo aí pra Venezuela. Diz que pra Venezuela...

DF: Estão usando.

JV: Já usaram esse timbó, essa raiz que tem na mata. Aí lá condenaram ele de doente de AIDS, de diabetes. Então, porque lá eles não tratam, quem tá condenado vai embora, quem tá condenado morre pra lá. Aí, lá vai, aí pega cipó que é esse timbó.

DF: Entendi.

JV: Aí arrancaram: “Vamos logo tomar esse timbó que

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nós morremos aqui mesmo, nós já estamos sofrendo por aqui.” Aí pisaram, aí tiraram aquela golda do timbó, tudo. Aí tiraram um pouquinho assim, aí manda pro peito; aí des-maiaram. Quando foi umas dez horas aí acordaram, tudinho acordou, com fome [risos], com fome acordaram, aí levaram pra comer tudo. Quem tava com AIDS também provocou. Aí ficou tudo bom. Aí passou um dia, voltaram, tudo bom. Aí foram pro médico, aí foram fazer exame, não tinha mais nada. Aí perguntou: “O que é que vocês beberam? Com o que é que se trataram?” “Nós nos tratamos, nós tomamos golda de timbó.” Aí ficam provando. Aí estão estudando pra fazer remédio pro diabético, pra AIDS.

DF: Se for bom, que beleza, não?

JV: É porque esse aí a gente bota num igarapé desse, mata piaba. Às vezes não mata tudo. Aí água fica limpa, limpa, limpa; depois que a gente coisa né, limpa a água bem limpa, o igarapé fica tudo limpo. Aí deve ser bom pra remédio, aí eles devem estar provando esse.

DF: Tá certo. Se o senhor tiver uma história depois que quiser contar pra gente, a gente volta.

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Entrevistado: Aprígio Ramos (AR)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Local: Comunidade Guariba, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Assistente de Entrevista: Huarley Mateus do Vale Monteiro

Data da Entrevista: 21/03/2009

Transcritora: Ana Maria Alves de Souza

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 28’’35’’’

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DF: Qual o nome do senhor?

AR: Aprígio, Aprígio Ramos.

DF: Aprígio Ramos. Qual a idade do senhor?

AR: É sessenta, sessenta e oito, sessenta e nove.

DF: Sessenta e nove?

AR: É.

DF: O senhor nasceu quando?

AR: Em 1930, 39, por aí assim. Tá na minha identidade, por aí assim.

DF: A etnia do senhor é a macuxi?

AR: É macuxi.

DF: Hoje na comunidade o senhor tem alguma função? De tuxaua ou secretário, alguma coisa?

AR: Tem. Tem esse aí que passou, o tuxaua, né? Tem outro irmão dele, o Alfredo, é segundo dele. Agora secretário não tem não. Tem não.

DF: Mas o senhor tem alguma função hoje?

AR: [risos] Não entendo muito bem.

DF: A pergunta?

AR: Sim, português.

DF: Ah! Entendi agora.

AR: A função, função...

DF: O senhor representa alguma coisa na comunidade hoje?

AR: Não. Apenas que sou membro.

DF: E o senhor chegou a estudar?

AR: Eu sei ler um pouquinho e escrever. Eu estudei, eu estudei em 1940, em 49. No tempo da escola que começou, na Escola Beteu no bairro Surumu. Estudei só um ano só. Só aprendi a escrever meu nome e eu sei as letras. Eu entendo

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as letras tudo, mas eu não sei. Eu tava com doze anos, quan-do comecei a estudar, tava com doze anos, e eu não sabia falar português, eu entendia só gíria,69 gíria, esse macuxi, né, eu falava só isso aí. Que meu pai, minha mãe não sabiam falar nada; meu pai só falava gíria, então me ensinaram a falar gíria. Aí quando eu entrei na escola, eu não entendia português não; aí quando eu aprendi, recebi o livro desse abecedário, aí eu aprendi. Eu aprendi ler antes de aprender falar português. Eu aprendi ler livro; eu aprendi mais ligeiro as letras. Depois foi aprendendo português, pouco; entendia mais um pouquinho português. Aí fui assim. Aí entendo mais português, pouco.

DF: Como é que era a escola naquela época? Qual foi a dificuldade que o senhor teve?

AR: Porque acabou a escola. Parou. O missionário foi embora, americano, na época, quando abriu a Escola Beteu. Aí acabou, foram embora, voltaram os missionários, foram embora pra terra deles. Aí ficaram as professoras, eram bra-sileiras, de Boa Vista. Dona Levina, dona Edite Barros, que era professora maranhense. Aí voltaram pra terra deles, aí acabou, parou a escola.

DF: Parou a escola, né?

AR: Eh. Acabou. Quantos anos, não sei quantos anos passou, aí ficou missionário Aroldo aí no Beteu. Sempre ele caminhava pro Contão. Eu sou morador lá do Contão.

DF: Ah! O senhor é do Contão?

AR: Eh. Fui criado aí. Até quando nós tornamos a aceitar os crentes, ser crentes. Era tudo bagunçado lá no Contão, eh, tudo: vivia só na bebedeira, pajuaru, cachaça. Cachaça morava assim perto, o comércio dos brancos aí, tinha outro lá embaixo. Quando tomava pajuaru e acabava pajuaru iam atrás da cachaça, traziam dois, três, garrafas e bebiam; tudo na briga um com os outros, né? Vivia assim. Até quando nós tornamos a aceitar a palavra de Deus, assim, os crentes, essa Igreja Batista Regular, aí parou, parou muito no Contão. Os velhos que entenderam a falar assim gíria, a pregação do

69 Dentre os indígenas en-trevistados, “gíria” refere--se à língua nativa.

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Evangelho, aí ficaram; tornaram mais ser crentes; entende-ram mais; aí pararam com bebida; pararam mais com bebida. Aí foi até quando eu vim morar pra cá, já tava parada já a be-bida. Muitos não queriam parar, mas foi deixando, deixando, deixando, e hoje parou, como até hoje tá parado a bebida. Mas têm alguns que estão bebendo mais, tem muitos que estão bebendo lá.

DF: Bebem ainda, né?

AR: Eh. Estão se matando, furando outro de faca, essas coisas que tem acontecido lá. Até hoje existe ainda briga lá. Mas pra aqui eu vim sozinho, eu saí de lá, eu vim pra cá. Até ia com seu Macário e entrei pro Bananal. Cheguei lá no Bananal com finado velho Bento, que era um velho daí também, que era morador. Os filhos dele estão aí, que já morreu. Ele tinha esposa dele, morreu também. Eu tava aqui quando morre-ram. O velho Macário tava com esposa, morreu a esposa, hoje tá sozinho sofrendo aí, tá velho já.

DF: Eu o vi.

AR: É esse aí. Eles são os moradores daí.

DF: O senhor chegou aqui quando?

AR: Eu cheguei aqui não sei que ano não, não sei que ano não. O professor sabe, esse professor sabe. Esse tuxaua que passou pelo senhor, ele sabe de que ano chegamos aqui. Eu não sei que ano que eu cheguei aqui não. Aí foi indo assim. Aí formamos comunidade. Precisei da escola. Aí esse meu genro, professor João (a casa dele é ali), ele era professor, veio de lá do Contão, aí casou com minha filha. Aí caminhava daqui lá na entrada; tinha escola lá na entrada, nessa BR, sei lá. Aí vivia assim, vivia encrencando lá, o pessoal de lá ficava encrencando com ele. Aí procuramos levantar uma escola aqui. Quando eu fui procurar, nós fomos procurar, preci-sava tuxaua, aqui não existia ainda tuxaua não. Só era um pouquinho, só um pouquinho, só nós mesmos: uns quatro ou cinco, tinha uns dez alunos ainda. Aí nós fomos procurar na Funai, aí disseram que só com o tuxaua. Atrás de tuxaua, levantava a escola. Aí fomos procurar de novo, procurar de

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novo, foi indo assim. Aí tinha doze alunos quando levantamos escola, bem ali assim onde tão estudando; aí era, não era essa aí não, era outra casa. Aí começou aí, nós começamos aí, começou, professor começou, foi trabalhando aí, até que melhorou. Essa escola aí foi do tempo do governador Neudo Campos, onde saiu no tempo dele. Assim foi senhor, começando assim.

DF: Qual o nome dos pais do senhor?

AR: Meus pais?

DF: Eh.

AR: Era, meu pai é Afonso, Afonso; minha mãe Carolina; meu avô é Moisés; minha avó era Alda.

DF: E todos eram macuxi?

AR: Tudo macuxi. Misturou com Monaicó; misturou com eliang, porque meu avô é eliang, do pai do meu pai né, eliang. Agora minha mãe é monaicó, pai dela, mãe dela, é tudo mo-naicó. Aí misturou com eliang com monaicó. É assim.

DF: A sua esposa, ela é macuxi também?

AR: Minha esposa é macuxi.

DF: Quantos filhos o senhor tem?

AR: Tem, tem onze. Era doze, morreu um, uma filha, aqui mesmo. Era quinze, morreram três, quatro. Aí ficou esses filhos aí. Essa é só minha família daqui, não tem outra não. É só mesmo esses. Agora aqueles ali são outros, lá da Pedra Branca, esse acolá, aonde o senhor chegou lá na casa deles, são da Pedra Branca. Chegaram por aí...

DF: Qual foi a coisa mais triste que o senhor viu nesse tempo todo que o senhor viveu? Tem alguma coisa triste que o senhor queira contar pra gente, que tenha vivido ou visto?

AR: Não senhor, tem não. Parece que não tem não.

DF: E alegre?

AR: É sempre alegre, somos crentes, evangélicos. Toda

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semana a gente entra aqui na igreja; faz a pregação. Tem nosso pastor, lá adiante, lá do fim das casas. Esse pastor é parente mesmo meu, parente dos índios. Ele estudou pra ser pastor, aí faz trazer a palavra de Deus pra gente. Explicar, ensinar, ensinar as crianças andar, viver, assim na paz.

DF: Foi o senhor que fundou a comunidade?

AR: Foi. Fui eu que fundei. Os primeiros que chegamos aqui era eu e ele, esse tuxaua, esse tuxaua mais velho, mais velho da turma é esse aí.

DF: Ele é filho do senhor?

AR: Eh. Meu filho. Só nós dois que fundamos aqui.

DF: Que veio lá do Contão não é isso?

AR: Eh, do Contão.

DF: Como é que era a alimentação quando o senhor morava lá no Contão, quando o senhor era menino? E hoje, mudou alguma coisa?

AR: Era um pouco melhor né? Lá, lá tem muita gente que diz que lá no mesmo lugar lá no Contão, lá no lavrado, dá, plantando, trabalhando. Eles dizem né, tem muita gente que diz isso aí. Aí quando eu vim pra cá, eu achei melhor do que lá, porque lá dá no inverno, que planta mandioca, planta tudo, o que planta lá só dá no inverno, mas quando chega o verão brabo mata tudo, morre, seca, na beira do rio ali, igapó, seca, seco, seco, seco mesmo ali.

DF: Aí não produz mais nada?

AR: Não, não nasce mais nada. No verão não, com dois, três meses de verão, não nasce mais nada. Quente. Muito seco. Aqui não, todo tempo, porque aqui é cabeceira do rio, dos igarapés. Aí todo tempo é úmida a terra: aí não morre não; não morre plantação; não morre não. Dá abacaxi, dá o que a gente plantar, cana, não morre não. No tempo da banana, banana comprida. Lá não existe, no Contão não existe, não dá lá, terra não dá. Dá e, quando chega verão, cai, desce antes de dar frutos. Aqui não, todo tempo dá banana,

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dessas bananas dá miúdo ali, de prata, banana prata, todo tempo dá. Aí eu achei melhor aqui.

DF: Eh. Se se produz o ano inteiro é muito melhor, não?

AR: Eh.

DF: Vocês fazem algum ritual antigo ainda, alguma coisa da época dos pais do senhor, o senhor lembra?

AR: Como?

DF: Por exemplo, os rituais antigos, fazem ou não ainda na comunidade? Vocês dançam ainda o parixara ou não? Acabou tudo...

AR: Não senhor. Dançava lá no Contão, eu cheguei ver dançar quando tinha doze anos, antes de ir pra escola. Depois mesmo da escola, tá com quinze anos, existia esse parixara, existia. Meu pai dançava o negócio de aleluia, chamam outro tipo de cântico que eles chamam sem ser parixara, né? Nunca vi papai dançar parixara, mas tem outro tipo de dança dele e que dançava assim rodeando; assim, rodeando, tomando pajuaru, bebo, só tinha essa aí. Aí quando acabou esse aí, parou tudo, quando nós aceitamos religião, crente né, aí acabou tudo, parou tudo. Aí ninguém, não existe mais essas coisas aqui no nosso meio não.

DF: Tem algum canto naquela época que o senhor lembra?

AR: Cântico?

DF: Eh. Quando o senhor era criança o seu pai cantava, falava alguma história...

AR: [Risos] Não senhor.

DF: Nada?

AR: Não. Tem muita coisa que ele aprendeu. Ele cantava, dançava e assim, mas eu nunca consegui aprender não.

DF: E alguma história o senhor sabe? Seu pai contava alguma história de bicho...

AR: Contava história do macaco, do... eu já esqueci tam-

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bém, né? [risos].

DF: O senhor não sabe nenhuma não?

AR: Não, senhor. Eu nunca aprendi também história, des-sas histórias. Eh, estudando na Bíblia, na Escritura, aí esquece tudo. Estuda mais na Escritura, na Bíblia. História, onde foi que os antigos andaram? Andaram em Israel, Jesus cristo nasceu no meio do Israel, Israel rejeitaram, essas história assim que a gente estuda que tá no...

DF: Na escritura.

AR: Eh.

DF: Mas a história do macaco o senhor não lembra?

AR: Não. Do macaco tem muitos que sabem, tem gente que sabe contar história, agora eu não sei não.

DF: E a história, por exemplo, do Macunaima?

AR: Também Macunaima tem muita história dele. Dizem que Macunaima ele nasceu não sei aonde, aí foi andando pra lá... O senhor já viu Pedra Pintada? Pois esse aí diz que é escola dele. Aí diz que a Pedra Pintada foi a escola dele. Aí foi, lecionou não sei quantos alunos lá, daí foi embora. E tem outra pedra lá na beira do rio, dele também, esse mesmo como aí na Pedra Pintada, na beira do rio assim. O senhor já não andou por aí não.

DF: Nessa outra não. Só na Pedra Pintada.

AR: Pedra do Rio assim, tem três assim. Ninguém vai lá não. Tem uma janela desenhada assim. Hoje em dia a gente olha muito pra ele e só aparece uma visão lá. E disseram que não olha muito tempo não, pode olhar assim, desenhado assim, numa janela assim. Aí ninguém vai lá não, lá na beira do rio assim, feio lá, aí a laje é grande, fica aqui, aí ela fica separada assim. Era casa dele também, do Macunaima. Daí ele foi embora, foi embora, lá pra Santa Maria, lá tem pedra também lá. Lá diz que ele, ele também tem um inimigo dele e queria matar ele; entrou na terra, foi embora e saiu lá, lá no Santa Maria. Lá tem uma pedra alta também, ele ficou aí,

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por aí. A gente conta assim, história de Macunaima. Agora não sei de onde ele.

DF: Ele fazia o quê?

AR: Ele diz que andava, andava mesmo, abria escola né, aí foi embora pra aí. Aí quando na beira do rio não fez nada não, só tinha, só tinha casa dele; e, do outro lado do rio, é, casa do Raposa, esse cachorro dele, Raposa, e [olhar] dele né, assim, Raposa. Aí agourava ele, cavava toda noite lá, aí que é onde inimigo perseguiu ele. Ele entrou na terra e saiu lá no Santa Maria, Raposa que agourava ele, cachorro dele. Tem duas pedras lá, laje grande, é dele. E assim acabou pra lá, a história do Macunaima.

DF: E a história do Canaimé, o senhor sabe pra contar pra gente?

AR: Canaimé?

DF: Eh.

AR: Não senhor. Canaimé existe até o dia de hoje, Canai-mé, rabudo, né, que chama.

DF: Rabudo.

AR: Eles matam parente, perseguem parente, mata, que-bra. Aí fica lobisomem e vira lobisomem, depois eles tornam de novo homem. São assim, rabudos.

DF: Por que ele faz isso?

AR: Desde o princípio né, que persegue gente, mata gente, mata outro. Esse chamado bandido. Hoje muito na cidade, existe bandido, mesmo rabudo.

DF: Mesmo rabudo [risos].

AR: Canaimé é bandido, ele.

DF: O senhor já ouviu falar da história da mulher que foi pega pelo macaco ou não?

AR: Não senhor.

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DF: Não?

AR: Não.

DF: Tem alguma história que o senhor queira contar pra gente? Que o senhor sabe, que o seu pai falava, alguma narrativa...

AR: Não senhor, nunca, nunca aprendi história não.

DF: A comunidade tem pajé ainda?

AR: Pajé?

DF: Eh.

AR: Não senhor.

DF: Tem não, né?

AR: Não. Ninguém consente mais pajé aqui, nem reza. Nós quando ficamos doentes, contamos só com hospital, remédio, mas pajé, reza já não existe mais.

DF: Qual a principal dificuldade que tem aqui na comuni-dade que o senhor vê?

AR: Dificuldade?

DF: É.

AR: Nada não.

DF: Nada?

AR: Nada.

DF: Vocês pescam ainda com timbó ou não?

AR: Às vezes. Quando eu cheguei aqui, o pessoal pescava, o pessoal daí desse Bananal só usava esse aí, o timbó. Esses igarapés que estavam lá em cima, vem matando o que tiver dentro. Vai embora pra baixo, só ajuntando, mas também esse igarapé fica sem nada, nada, nada...

DF: Mata tudo.

AR: Mata tudo. Até as piabinhas, miudinhas que estão os filhotezinhos vão acabando tudo. Aí quando nós chegamos aqui não existia piaba quase não. Agora quando nós chega-

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mos daqui, aqui tá cheio de piaba, sarapó, cará, traíra, tem muitozinho aqui, criaram mais, estão criando ainda, porque ninguém não tá botando mais. Nós usamos, eu uso mais esse aí...

DF: Ah! Tarrafa.

AR: Esse aí. Esse aí não mata tudo não, mas pega os mais graúdos. Aí de vez em quando nós estamos pescando pra fora com tarrafa, nós estamos usando malhador, pra peixe grande, aí pro Paricarana, Parimé, esses lagos pra lá. Isso aí. Agora isso aí ninguém usa não. Algumas vezes a gente já usou, mas não é toda vez não.

DF: Então, tá certo. A entrevista é só isso mesmo.

AR: Ahã.

DF: Obrigado.

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Entrevistada: Áurea da Silva Galvão (AG) e seu Genário (SG)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Local: Comunidade Samã, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 24/3/2009

Transcritora: Keyty Almeida Oliveira

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 15’’22’’’

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DF: Qual é o nome da senhora?

AG: Áurea da Silva Galvão.[...]

DF: Quantos anos a senhora tem?

AG: Cinquenta.

DF: [...] Qual a etnia da senhora?

AG: Macuxi.

DF: A senhora é macuxi. Na comunidade, a senhora tem alguma função específica ou não?

AG: Tem não.

DF: A senhora pertence a alguma associação?

AG: Não.

DF: A senhora chegou a estudar?

AG: Até a segunda série. [...]

DF: Qual foi a primeira língua que a senhora aprendeu? Foi o português ou o macuxi?

AG: Português. Esse que nós estamos falando.

DF: Português. A senhora sabe macuxi?

AG: Não senhor.

DF: A mãe da senhora não ensinou pra senhora?

AG: Eu escutava ela falar com o meu pai, mas nunca passaram pra gente.

DF: A senhora trabalha em quê? Na agricultura mesmo?

AG: Eh, na agricultura.

DF: Na agricultura. O que vocês estão produzindo de bom aqui agora?

AG: Mandioca, macaxeira, banana. [...] Batata, abacaxi.

DF: E qual o nome do pai da senhora?

AG: Paulo.

DF: Seu Paulo. E a sua mãe?

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AG: Martina.

DF: De quê? A senhora lembra?

AG: Do papai era Ferreira.

DF: Os dois eram macuxis?

AG: Ele era taurepang e a mamãe era macuxi.

DF: Ah! Ele era taurepang...

AG: Eh. Martina da Silva.

DF: Sim. A senhora tem alguma religião?

AG: Eh, eu tenho.

DF: Qual é?

AG: Assembleia.

DF: A senhora é da Assembleia. A senhora é evangélica.

AG: Ahã.

DF: A senhora é casada há quanto tempo?

AG: Desde 95. Ah, 96, 96 mesmo.

DF: O senhor também é macuxi?

SG: Sou.

DF: Qual é o nome do senhor?

SG: Genário.

DF: Seu Genário? E quantos filhos a senhora tem?

AG: Eu tenho nove.

DF: Nove filhos. Agora uma coisa bem pessoal: qual foi a coisa mais triste que a senhora já viu na vida? O que a senhora menos gostou, ficou mais chateada?

AG: Como assim?

DF: A coisa mais triste, que a senhora nunca esqueceu. Só teve coisa boa?! Olha que beleza!

AG: Pra mim não tem tristeza, pra mim.

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DF: Não tem tristeza não? E felicidade, qual foi a melhor?

AG: Não tem melhor também, pra mim.

DF: Não tem, não?

AG: Eu tenho pra mim, melhor.

DF: E qual foi a melhor coisa que aconteceu?

AG: A melhor coisa é que eu estou vivendo, a saúde. [...]

DF: A senhora nasceu onde? Nasceu por aqui mesmo?

AG: Nasci por aqui mesmo.

DF: Foi aqui em Pacaraima mesmo? Essa região aqui?

AG: Pertence à Pacaraima.

DF: Em qual local?

AG: Serra do Rato. [...] [risos] Na realidade é no Arai que eu nasci.[...]

DF: Na comunidade do Arai. A senhora sabe a história da fundação da comunidade? Quando foi fundada?

AG: Nunca lembrei. Nunca botei na minha cabeça assim.

DF: A senhora sempre morou aqui mesmo?

AG: Moro. Teve uma vez que eu passei dois anos fora daqui.

DF: A senhora já morou em outro local também? Outra cidade?

AG: Boa Vista.

DF: A senhora já morou lá?

AG: Cheguei agora, esses tempos, dezembro vai fazer um ano que eu cheguei. Passei um ano e seis meses lá.

DF: Sei. Em relação à comunidade, a senhora sabe quem foi o primeiro líder? O primeiro tuxaua?

AG: Era Feliciano. Se eu não me engano, era Feliciano.

DF: E a alimentação, a senhora acha que mudou muito,

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é a mesma coisa?

AG: Mesma coisa.

DF: De quando a senhora era novinha mudou muito? A mesma coisa?

AG: A mesma coisa. Continua a mesma coisa.

DF: Antigamente as pessoas tinham uma espécie de ini-ciação, por exemplo, os meninos, quando estavam virando rapazes, raspavam o braço deles assim, pra sair sangue, pra ficar um guerreiro forte, coisas assim. A senhora chegou a ver alguma coisa?

AG: Não, nunca.

DF: Nunca, né?

AG: Foi como é, assim, normal.

DF: Quando tava virando moça também...

AG: Também não.

DF: Também não, né? Normal como é hoje mesmo, né?

AG: Nunca aconteceu isso de arranhar o braço? [risos]

DF: E nem usar pimenta pra ficar esperta?

AG: Não, disso aí também não tenho lembrança, não.

DF: E como a senhora vê o indígena hoje? A senhora é mulher, é indígena e como é que a senhora vê hoje? [...] A senhora passa por algum preconceito? Não passa? A senhora tem...

AG: Tem não, não tenho não.

DF: Tem não?!

AG: Normal.

DF: A senhora vive normal, tudo tranquilo. Nunca acon-teceu nada triste?

AG: Pra mim, não.

DF: E as coisas que saíram por aí falando, da discussão dos indígenas...

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AG: Também não! Eu não saio daqui.

DF: Não sai não.

AG: Não saio por aí pra, eu não tenho como...

DF: Sei. Outra coisa, as histórias antigas, a senhora lembra alguma? História de Macunaima, do Canaimé, do timbó...

AG: Do timbó eu me lembro bem que a minha mãe con-tava, mas eu não sei bem.

DF: O que ela contava? Vai deixar morrer? Se a senhora não lembrar ninguém vai saber.

AG: É.

DF: O que ela contava?

AG: Do timbó não sei, já esqueci.

DF: Não lembra do menino que foi levado pela dona Raposa?

AG: Ahã.

DF: É essa a história?

AG: Acho que é, não lembro. Não tem uma história do passarinho que fica arrastando o couro da sucuriju, sempre ele passa por aqui... [risos]

DF: Como é que é? Essa eu não conheço não, pode me contar? Como é essa história? Gostaria de saber!

AG: Ele me contava que o passarinho tava (como é que era o nome dele mesmo?), tal de Carapanã. E ficava passando por cima. Daí diz que é couro da sucuriju que ele vai levando. Aí esse menino, o Timbó, que estão falando, sei muito pouco, não gravei muito não...

DF: E levava esse couro pra quê?

AG: Nem sei. Foram arrastando, que tiraram esse couro da sucuriju, saíram levando...[...] Se a minha mãe estivesse aqui, mas ela tá lá no Surumu.

DF: Sua mãe tá no Surumu?

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AG: Tá. Martina da Silva, da maloca do Barro. [...]

DF: E ela sabe essas histórias todas?

DF: E a senhora não lembra da história então?

AG: Não tenho história não.

DF: Tem não?! Nenhuma? Da anta, da raposa?

AG: Da anta só indo no rio pra eu contar, mas não lembro não... [...]

SG: Não, da Mariazinha, é de um menino que se perdeu, que a mãe tinha uns filhos, uns quatro filhos pequenos, mas que esse tinha uma base de uns seis anos, mais ou menos. Aí ela foi e saiu pra roça com ele (isso foi na Guiana, o cara me contando). Aí foi, não têm esses araçás, tipo uma goiaba?

DF: Sim, conheço.

SG: Tem muito na beira do rio. Nesse Amajari é só o que tem. Aí diz que esse menino foi buscar uns araçás pra comer, aí sei que a mãe seguiu na frente (lá tem muita serra, né?); e aí quando o menino entrou lá pro meio das serras, sei lá pra onde, sei que não acertou mais o caminho de volta. Aí pronto, entraram na serra atrás dele, aí pronto. Cada vez que ele andava, ele entrava mais pra serra. Aí andaram atrás dele, nunca acharam ele. Sei que passou um ano aí mais ou menos perdido, aí: “Ah, esse aí morreu, um bicho comeu, com certeza, qualquer coisa parecida!” Aí um pescador vinha pescando de lá pra cá, e tinha um poço d’água no verão né? Tinha um poço d’água lá que nunca secava. Aí esse menino já tava virando bicho mesmo, já morava dentro da serra, dentro das pedras, sei lá onde que ele morava. Aí o pescador foi lá e viu ele lá, só que aí: “será que era o menino?” Era o local dele brincar sozinho lá naquela praia lá. Ele tava sozi-nho, daí já brincava sozinho. Aí ele corria pela aquela areia lá: pulava, banhava, deitava na areia, pulava, tava que nem bicho mesmo, em um ano. Daí eu sei que ele foi lá na casa do pai dele. Falou. Sei que reuniram um bocado de pessoas e foram lá buscar esse menino. Aí pareceu que ela já tava tipo bicho mesmo, porque o bicho selvagem ele sente qualquer

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pessoa, ele sente, e ele já tava desse jeito. Sentiu os caras; sei que correu pra trás e não pegaram não. Aí foram de novo, foram. Toda tarde ele banhava nesse igarapezinho: banhava, pulava, brincava, aí tava se divertindo ali naquela praiazinha. Aí sei que ficaram longe, escondidos, aí ficou muita gente já. Aí eles viram na hora que ele chegou lá na areia; bebeu água; começou a pular; rolava na areia; brincava; pulava. E já vai cinco horas da tarde, que era pra ele ir já pra casa dele, que ele morava na serra, numa pedra lá. Rapaz, que esses caras partiram nesse menino pra pegar. Pensou que não, já estavam fechando ele, e ele mordeu um bocado, soltava. Ele levantava e gritava bravo mesmo. Um ano já que ele tava, ele tava com seis anos. Já tava com sete anos, mais ou menos, e não tinha morrido não. Eu sei que pegaram ele, levaram pra casa, mas ele não se acostumava mais não. Se soltasse ele, ele corria: não conhecia mais mãe, não conhecia mais pai. Aí levaram ele pra casa. Aí ele não acostumou; aí não comia nada; só queria correr pro mato. Aí sei que passou uma se-mana sem comer. Não comia mais comida assim, só queria comer fruta. Sei lá o que comia na mata. Aí sei que ele passou mais de um mês, levaram ele pra outro lugar. Um mês que ele tava, que ele foi começar voltando pro normal. Parece que o nome dele, parece que era Raimundinho, uma coisa assim. Ele era guianense, ele. Aí sei que levaram ele aí pra cidade, pra estudar, parece. Aí ele também já, aí ele amansou, também mais de anos e anos ali, estudando. Aí não sei mais que fim levou esse Raimundinho. Só sei que ele mora pra lá...

DF: Mora na cidade?

SG: Mora na cidade. Parece que até doutor é.

DF: Tá certo. Na comunidade tem algum ritual antigo? Parixara? A senhora dançou parixara já?

AG: Dancei.

DF: Sabe algum pra cantar pra gente?

AG: Sei não. Só sei quando eu escuto por aí.

DF: Não lembra. Tem uns bonitos, não?[...]

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AG: Aqui ninguém faz, nunca, nunca vi assim.

DF: Não lembra nenhum que a senhora queira cantar pra gente?

AG: Não lembro não, aí eles cantam só no macuxi, né, aí não tem como...

DF: Então, tá certo, dona Áurea. Obrigado.

AG: De nada.

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309Projeto: Panton pia’

Projeto: Panton pia’

Entrevistado: Seu Oliveira (SO)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Local: Comunidade Samã, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 25/3/2009

Transcritora: Keyty Almeida Oliveira

Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 19’’25’’’

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DF: Qual é o nome do senhor?

SO: Oliveira. [...]

DF: Quantos anos o senhor tem?

SO: Eu tenho 51.

DF: De qual etnia o senhor é?

SO: Sou wapixana misturado com macuxi.

DF: O senhor tem alguma função específica na comuni-dade?

SO: Rapaz, a minha função é essa aqui.

DF: O senhor tece.[...]

SO: Que encomenda né, aí eu faço aí...

DF: O senhor faz por encomenda?

SO: Eh.

DF: Esse é um tipo de tecelagem, não é?

SO: Eh, isso que eu faço aí, eu faço assim quando as pes-soas encomendam, aí eu faço [...]

DF: Ah sim, só quando faz a encomenda. E o senhor aprendeu com quem?

SO: Eu aprendi por conta própria mesmo.

DF: Conta própria.

SO: Eh.

DF: O senhor viu as pessoas fazendo...

SO: Fazendo... aí botei na cabeça de fazer também, aí fui fazendo.

DF: Sim, e o senhor chegou a estudar? Foi pra escola?

SO: Não, nunca fui.

DF: Nunca foi.

SO: A região onde eu fui criado não tinha escola. A escola era muito longe. Nesse tempo não existia todos esses colé-

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gios, ainda não. A pessoa que corria atrás do colégio. Hoje não, o colégio que corre atrás da pessoa e as pessoas não querem estudar.

DF: O colégio é dentro da comunidade.

SO: E as pessoas não querem estudar. Eu não tive essa oportunidade.[...] Fui criado nas fazendas depois do Maú, fui criado por essas bandas do Maú, pelos lados da Guiana.

DF: O senhor quando aprendeu a língua, aprendeu qual língua primeiro?

SO: Quando meu pai foi falecido, eu fui, a minha mãe me deu pra outras pessoas me criar. Eu fui criado com meu padrinho, mora em Boa Vista, mas já morreu também. Fui criado com ele. Passei uns tempos com ele, ele foi me buscar. E de lá, tinha meu padrasto, mas só que ele bebia muito e me maltratava muito, aí eu fui embora; vim embora.

DF: Entendo.

SO: [...] Mas tudo que eu aprendi foi bom.

DF: Mas a língua que o senhor aprendeu primeiro foi o português?

SO: Foi o português mesmo.

DF: O senhor sabe wapixana e macuxi?

SO: Não, sei não. Não sei falar não.

DF: Sei. E o senhor trabalha na agricultura?

SO: Eh, na agricultura.

DF: Sempre trabalhou na agricultura?

SO: Na agricultura.

DF: E o que tá produzindo hoje em dia?

SO: Hoje em dia não estou produzindo muito porque eu não... Faz quatro anos que eu separei da família, eu fiquei sem fazer nada [...], mas é assim, sai pra trabalhar pelo garimpo, depois a gente volta.

DF: Ah! o senhor é garimpeiro também?

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SO: Sou, também garimpo. [...]

DF: Sei. O senhor lembra o nome dos seus pais?

SO: O meu pai era Marino. A minha mãe é Regina, ainda é viva, mora em Boa Vista.

DF: Ah! ela é viva e mora em Boa Vista. E o seu pai era de qual etnia?

SO: Wapixana.

DF: Sua mãe?

SO: Macuxi.

DF: O senhor tem religião hoje?

SO: Rapaz, a religião que eu frequentei mais foi a Assem-bleia de Deus.

DF: E o senhor é casado?

SO: Sou. Fui casado.

DF: O senhor era casado com alguém da etnia macuxi?

SO: Eh, macuxi.

DF: Qual a coisa mais triste que o senhor viu até hoje? Que o senhor tem recordação?

SO: A coisa mais triste que acho que [...] comunidades, porque a gente não [...].

DF: E a coisa mais alegre, o senhor lembra?

SO: A coisa mais alegre que eu lembro é trabalhar junto com meus colegas de trabalho.

DF: O senhor nasceu onde? Aqui mesmo?

SO: Nasci no Surumu. [...]

DF: E o senhor sabe a história da fundação da comunida-de? Como é que ela foi fundada?

SO: Isso aqui foi em 87, eu cheguei aqui. Ela foi fundada já no final de 87. Os fundadores dessa comunidade foram: com-padre Feliciano, Mozarildo, Manoel, Áureo, Lourenço (não sei

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mais?), finado Cristiano. Foram os fundadores daqui dessa comunidade, Samã II, que tem ali embaixo, né? Isso aqui era colônia, era colônia. Foi indenizado, aí nós passamos pra cá.

DF: Quem foi o primeiro tuxaua, o senhor lembra?

SO: O primeiro tuxaua foi o Feliciano. Segundo tuxaua foi o Mozarildo.

DF: E agora é o seu Lorenço?

SO: Agora é o Lourenço.

DF: [...] O senhor morou na cidade?

SO: Não, eu não morei muito na cidade não. Eu não gosto da cidade não, prefiro assim, no interior. Nunca gostei de cidade. Minha mãe mora lá. Tenho até que ir lá uma hora. [...]

DF: E a alimentação, como era antigamente? E agora, o senhor acha que mudou muito?

SO: Não, mudou nada não. [...] Dentro da mata aqui não tem coisa ruim não. Todo tempo eu gostei de morar aqui dentro da mata. Eu morava numa comunidade ali no Arai, eu botei a roça lá dentro da mata[...]. Passei uns dois anos morando em Pacaraima. [...]Tava indo bem, depois deu contrário.

DF: O senhor pertence a alguma representação indígena?

SO: Agora, por enquanto não. [...] O Mozarildo é o se-gundo tuxaua dele[...].

DF: E como o senhor vê o índio hoje? O senhor acha que mudou muito, não mudou? Qual é a sua opinião a respeito?

SO: A minha opinião dos índios, por uma parte ficou bom, né, por outra parte ficou pior, porque depois que indeni-zaram, que saíram essas indenizações, o próprio parente mesmo ficou pior do que os civilizados.

DF: Por quê?

SO: Porque por uma parte, o cara não pode caçar lá pras áreas dele. Pra ir caçar e pescar, tem que passar lá. Então, não

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melhorou nada, eu sei que eu acho que não melhorou não.

DF: E qual é a parte boa que o senhor tava falando?

SO: A parte boa é que a gente acha aqui dentro, porque assim, morar aqui dentro nós temos liberdade pra sair pra qualquer canto dentro da nossa área, né? Não tem quem empate a gente. [...]

DF: E as festas hoje na comunidade, como é que são? Antigamente era melhor? Pior? É diferente? O senhor lembra?

SO: As festas da comunidade [...], dessa que tá acon-tecendo, essa comemoração do dia que a comunidade foi fundada, sempre foram boas, né?

DF: Sim.

SO: Tem dificuldade não.

DF: E as danças antigas têm ainda?

SO: Ah, não tem não, isso aí não tem não. Pra cá não existe mais não. Existe é pra essas outras comunidades por aí. [...] Os mais antigos que tinham aqui, que cantavam na língua deles, não tem mais, acabou tudo. Mas tem um sobrinho deles que aprendeu um pouquinho e quando tem festa ele canta... uns parixarazinhos...

DF: E o senhor não sabe nenhum?

SO: Não, sei não. [...]

DF: E tem história antiga de seu povo, por exemplo, do Canaimé. O que o senhor sabe a respeito do Canaimé?

SO: [risos] Rapaz, do Canaimé eu não sei não.

DF: Nunca ouviu falar nada?

SO: Sei do Canaimé, não.

DF: Nunca ouviu falar nada?

SO: Vi falar dele: Canaimé faz aquilo, Canaimé faz isso, eu não sei [...]

DF: E histórias, o senhor conhece alguma história de anta, de raposa, alguma coisa de Macunaima?

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SO: Sei não, de Macunaima também não sei não.

DF: E a história do surgimento do timbó, ouviu falar ou não?

SO: Do surgimento do timbó também não. Que eu morei em aldeia, não. Morei mais assim nas fazendas.

DF: Em fazenda, né? Então, o senhor não ouviu um contar pro outro?

SO: Nunca ouvi não.

DF: Existe na comunidade alguma tentativa de resgatar um pouco essas histórias?

SO: Não, não sei não.

DF: A língua eu acho que tem, porque eu passei ali e eles estão ensinando macuxi.

SO: Eh, deve ter né?

DF: E a caça hoje continua do mesmo jeito ou...

SO: Continua, não acaba não.

DF: De vez em quando o senhor caça?

SO: De vez em quando vai, dá uma caçada...

DF: E existe algum tipo de iniciação pros meninos? Por exemplo, quando tá virando rapaz tem comunidades que eles pegam, cortam, passam pimenta...

SO: Ah não, aqui pra cá ninguém usa isso não.

DF: Mas na época do senhor não usava, quando era criança?

SO: Não, eu não fui criado com isso não. Já fui pra mão do meu padrinho[...]. e de lá eu saí pra trabalhar desde pe-quenininho, que eu vivo assim trabalhando. Pequeno não, desde de novo, que eu ainda sou pequenininho [risos]. Desde novo, trabalhando pra me sustentar. [...]

SO: Quem foi criado no interior sabe o que é bom e o que é ruim. A pessoa que nasce na cidade não sabe de nada, só coisa fácil. Filhinho de papai e mamãe[...]

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DF: Qualquer coisa é difícil. [...]

SO: Era o sistema dos antigos, qualquer coisa era pimenta. Quando não era pimenta, era ferrada de tucandeira. Como uma mulher tava falando aí, a senhora dali. O tratamento de primeiro era de tucandeira, enfiava um bocado de tucan-deira na flecha e tacava no espinhaço do cara, pra não doer o espinhaço.

DF: O que é tucandeira?

SO: São umas formigonas que tem no mato. Formigão. Dói mais que [a correia]. Aí não pode mais maltratar as crian-ças por causa disso.

DF: E pra caçar, pra pescar, pra ser bom caçador, tem uns rituais, não tem?

SO: Eu acho que tem, né? Eu nunca vivenciei não.

DF: Tem um que bota pimenta no olho do cidadão, tabaco, pra enxergar longe. [...]

SO: Na nossa tradição aqui, não é das pessoas ficar usando mais essas coisas, né?

DF: Então, tá certo, seu Oliveira. Obrigado.

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Projeto: Panton pia’

Entrevistados: Domício Pereira da Silva (DP) e Regina Santos (RS)

Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)

Local: Sol Nascente, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR

Data da Entrevista: 30/3/2009

Transcritora: Ana Maria Alves de Souza

Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti

Copidesque: Devair Antônio Fiorotti

Duração: 55’’22’’’

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DF: Qual o nome do senhor?

DP: Domício.

DF: Domício de quê?

DP: Domício Pereira da Silva.

DF: Qual a idade do senhor?

DP: Sessenta e dois.

RS: Três.

DP: Sessenta e dois.

DF: Qual a etnia?

DP: Macuxi.

DF: O senhor tem alguma função específica na comuni-dade?

DP: Tenho.

DF: Qual é?

DP: Eu sou tuxaua da comunidade. [...]

DF: Qual é o nome da comunidade agora ou se ela já teve outro nome?

DP: Não. Só teve só um nome, que é Sol Nascente. Quan-do nós formamos, nós já colocamos esse nome, Sol Nascente.

DF: O senhor chegou a estudar, seu Domício?

DP: Não, nunca cheguei a estudar.

DF: Qual a primeira língua que o senhor aprendeu? Foi o português ou foi o macuxi? Foi o macuxi que o senhor falou [primeiro]?

DP: Foi. Bom, a primeira língua que eu aprendi foi o português, porque no tempo da minha mãe, ela achava que ninguém mais podia aprender a nossa própria língua que era o macuxi. Ela falava, aí não sei quem deu a ideia que nós não podia mais falar. Ela não ensinou mais nada da nossa língua pra gente.

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DF: Ah! Falaram pra ela que não podia...

DP: Falavam pra ela que não podia ensinar nós, que não era língua. Aí ela não falava mais pra nós o macuxi. Ela tentou ensinar nós desde criança já no português.

DF: Aqui na comunidade o senhor é o quê? O senhor é agricultor, mexe na agricultura ou não? Ou já mexeu?

DP: Aqui na comunidade nós estamos mexendo com agricultura, nós também mexemos com a pecuária. Tudo isso é o que nós temos aqui na comunidade.

DF: O que é que tá produzindo mais hoje?

DP: Hoje nós temos aqui, a gente planta mandioca, feijão. Tudo o que você plantar dá. Cana...

DF: O senhor lembra os nomes dos pais do senhor?

DP: Lembro. O do meu pai é Sisinato Pereira da Silva, e da minha mãe Sivilda Lauriano de Lima.

DF: Qual a etnia deles? Eles eram o quê?

DP: A minha mãe era macuxi. Agora o meu pai tem outra etnia. Foi quando vieram de Manaus. Ele era amazonense, aí ficaram aqui em Roraima, se encontraram, aí que construiram a família.

DF: Mas ele era indígena ou não?

DP: Não. Ele era assim preto, como diz, moreno, porque sempre teve aquela, as indígenas sempre casavam com... Hoje ainda acontece.

DF: Claro. É normal.

DP: É normal. Não era de agora não. Aí diziam que era de agora, mas não era não, já vem desde de faz tempo, bastava um casal querer...

DF: Aqui na comunidade hoje tem alguma regra, alguma coisa que fala “Olha, tem que casar só com indígena... Tem que casar é aberto.” Como é que é?

DP: Sempre eu aconselho é que case com indígena, que

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tem mais o costume de viver na comunidade, que branco às vezes nunca acostuma, reclama assim, com a norma da comunidade. Agora, indígena não, ele já nasceu, ele conhe-ce, acostuma mais fácil. Sempre acontece quando bota pra estudar, que até termina, estuda até a quarta série na comunidade. Então, sai. Aí quando sai assim: “Mãe eu vou fazer faculdade”, em Pacaraima ou em Boa Vista. Nesse intermediário de escola, já começa a namorar um branco, uma hora já tá junto.

DF: E aqui na comunidade o senhor tem alguma religião?

DP: Tem. Nossa religião até agora é católica, ainda. [...] Todos nós.

DF: O senhor é casado?

DP: Sou.

DF: Qual a etnia da sua esposa?

DP: É macuxi.

DF: Quantos filhos o senhor tem?

DP: Nós temos nove. [...]

DF: Ah! Que beleza. [...] Qual é a coisa mais triste que o senhor viu? Depois eu vou perguntar qual é a mais feliz, até hoje.

DP: Como assim?

DF: A sua vida inteira, uma coisa triste que o senhor viu, que o senhor nunca esqueceu, que marcou.

DP: Uma história triste.

DF: O senhor já viveu bastante. Já deve ter visto um monte de coisa.

DP: Eh, a coisa mais triste que a gente vê assim é quando tá doente. Doente é a coisa mais triste que tem na vida da gente. Isso que eu vejo assim.

DF: E feliz? Coisa boa.

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DP: Eh, coisa boa é você estar com saúde, ter disposição pra trabalhar. Então, a gente tá feliz. Como têm muitos que dizem assim: “Não, que, pra gente ficar feliz é dinheiro.” Não é dinheiro não, é saúde da gente. Você estando com saúde, você pode adquirir dinheiro. Primeiramente é a saúde. Então, que Deus ajudando a gente, dando saúde da gente, né. Estou com toda essa idade, sessenta e quatro anos, até hoje, graças a Deus, não estou doente, assim dizer que vivi doente, ainda vivo trabalhando, tenho vontade de trabalhar, arrumando as coisas. Lá em casa é tudo arrumadinho. Então, sempre gosto de participar da reunião, que tem a nossa reunião, eu sempre gosto de estar no meio, porque a gente busca travar conhecimento de trabalho hoje.

DF: Tem algum fato marcante que o senhor queira contar?

DP: Como assim?

DF: Alguma coisa que aconteceu que o senhor achou que foi importante pro senhor, uma coisa marcante que aconteceu. A gente tem na vida da gente algumas coisas que acontecem...

DP: A coisa mais triste que há de marcante foi quando a gente coisou que a gente tava com toda essa... Pacaraima é uma, tá dentro de uma área indígena. Quando a gente ques-tionava pelos direitos da gente, muito pessoal de Pacaraima criticava e marcava a gente. “Ah! Porque vocês fazem...?” “Não. Porque nós estamos procurando nossos direito.” Pacaraima tá numa terra indígena. E o que eu tenho que dizer que nós temos que ver a situação de Pacaraima, sentar pra conversar. Então, é uma crítica que eles fazem, é muita crítica em cima da gente. “Não é assim. Não, eu sei que não pode. Não, é eu que tô fazendo.” E tem autoridade dizendo que foi demarcado, homologado como área indígena. Agora, nós vamos ver como resolver o problema de Pacaraima. Aí sempre o pessoal ficava assim, marcando a gente, falavam. Pelos meus direitos eu posso falar em qualquer canto, não vou esconder se eu tenho meus direitos todo tempo, que tava errado.

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DF: E aí aconteceu alguma coisa?

DP: Não, não. Não aconteceu assim porque a gente evi-tava. Quando tava no conflito, a gente saía dessa parada pra não ter aquele confronto. A gente sempre se retirava pra não acontecer esse caso, agressão, sempre saía.

DF: O senhor fala alguma língua indígena?

DP: Não. Não falo não. Eu entendo um pouco, porque minha mãe nunca deixou a gente assim. Ela falava, a gente entendia algumas coisas que ela falava, mas ensinar mesmo assim falar, eu não sei não.

DF: Não. E o senhor nasceu onde?

DP: Eu nasci aqui mesmo na área de São Marcos. Nasci na... Ela disse que eu nasci na Formosa, era um sítio. Ela morava por lá, eu nasci lá, ali perto do Perdido.

DF: Perto do Perdido?

DP: Eh. Era um retiro lá. Ela disse: “Tu nasceu na Formo-sa.” Aqui na área do São Marcos, mesmo. Eu nasci aqui no São Marcos.

DF: E qual a história da fundação da comunidade, dessa comunidade aqui?

DP: A nossa? Nós morávamos ali no Curicaca, primeiro. Aí nós, como teve aqui a retirada dessas pessoas dessas fa-zendas, aí nós ficávamos pensando: “Como é que nós vamos ocupar?” Foi o que falavam pra mim. “Porque eu sou índio, vocês vêm ocupar, vão tomar de conta?” “Vamos. Nós vamos tomar de conta.” “E não vão abandonar?” Eles disseram: “Não.” Então, a gente morava lá e saiu. Nós tiramos o gado primeiro de lá. Nós tínhamos gado lá dentro, aí a pessoa sempre trabalhava de roça, o gado ficava na roça. “Não nós vamos tirar porque aqui gado tá invadindo e tal.” “Nós vamos deixar aí tu tirar o gado.” Aí desocuparam aqui a fazenda, aí nós tiramos o gado de lá. Aí nessa saída do gado, aí nós ficamos pensando, aí nós e mais seis pais de família: “Como é que nós vamos sair daqui e cuidar lá no Curicaca? Acho que é melhor nós ficarmos morando logo aqui, cuidar desse lugar

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que vão deixar, nosso gado já tá aqui, e se quiserem ocupar alguém de lá e quiserem tirar a gente, a gente sai daqui, senão nós vamos ficar.” Aí foi uma decisão junta. Aí um dia o meu irmão me chamou: “Olha, umbora logo arrumar um lugar aqui pra gente morar, porque senão ninguém cuida de lá e nem daqui.” Então, aí nós nos reunimos, nós juntos nos reunimos, a família toda, os seis pais: “Nós vamos formar uma comunidade.” Aí convidamos, os outros ficaram lá. “Nós vamos fazer uma comunidade lá embaixo, senão ninguém cuida nem daqui e nem de lá. Tem que trabalhar.” Aí eu disse: “Ninguém vai pra lá. Lá ficam só quatro pais de família, ficou lá dentro.” Aí com a fazenda nossa, pra cá com os três, aí veio mais gente, aí com pouco nós távamos com nove pais de família. Aqui nós temos o igarapé mais perto pra gente pescar, tomar banho. Aí nós nos reunimos, aí tivemos uma reunião. A gente escreveu a ata de fundação, nós temos ela guardada, ela todinha. Aí que nós ficamos aqui morando, formamos aqui. Então, hoje nós temos nove pais de família que trabalham aqui. Então, aqui é assim, porque sempre ele ficou daquele lado ali do igarapé Paricarana, então aqui, tu vai ficar morando aqui, cada qual, mas nós vamos fazer nosso centro mesmo lá do outro lado. Lá tem posto de saúde, já lá. Aí tem outro retiro lá da comunidade. E aí a gente vai fazer tudo pra lá, lá que tem mais casas do morador.

DF: Ah! O caminho é por aqui, é?

DP: O caminho, estrada de carro vai por ali. Agora o ca-minho de pé vai por todo o canto. [Risos] Agora de carro vai por ali assim. Então, aqui eu fiquei. O tanto que eu fique aqui, porque aqui nós tínhamos que zelar, custou muito dinheiro, né, que foi quase que mil reais nossa casa. Aí quando entre-garam pra nós quiseram tomar de conta. Nós investimos nosso dinheiro dessa energia de Guri, que era pra nós ter usado pra comprar alguma coisa, comprar um carro, comprar alguma coisa pra nós. O que é que nós achamos? Achamos melhor usar nosso dinheiro pra pagar os fazendeiros, pra nós podermos ficar, porque se não a Funai não tinha recurso na época pra pagar, pra indenizar. Aí nós conversamos com a Eletronorte aqui, pra dar a nossa parte. Aí nós ficamos

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assim: “Pai, vamos gastar nosso dinheiro então pra tirar os fazendeiros? Porque não vai adiantar nós com esse dinheiro e comprar gado, depois nós vamos botar esse gado onde?” Nós não temos terra, colocar lá no Curicaca vai ficar imprensado. Aí nós convidamos os tuxauas, resolvemos tirar, contanto que a Funai repusesse nosso dinheiro de volta. A obrigação da Funai era pagar, indenizar. Então, nós vamos usar nosso dinheiro e a Funai reporá esse dinheiro de volta pra nós. Isso foi a negociação que nós fizemos.

DF: E a Funai repôs esse dinheiro?

DP: Até agora não. [Risos]

DF: Ah! Então, os fazendeiros até hoje não receberam...

DP: Esses que moravam aqui ameaçavam muito os pa-rentes. Nós, quando nós íamos pescar, que o pesqueiro era aqui no igarapé, aí ele ameaçava que ninguém ia pescar, que isso aqui era dele, que tava pagando, que nós fôssemos pra ali. [Ameaçou quase ninguém]. Aqui de primeiro não ia porque o Curicaca era por ali, aí ele fechou todinho, aí tinha que passar por aqui. Aí quem fosse viajando tinha que passar bem aqui, senão ele não autorizava passar por lá, tinha que ser por aqui. Então, o cara ameaçava muito aqui, então por isso nós tivemos que gastar nosso dinheiro pra desocupar, pra ficar livre. Hoje não, agora você é livre, você chega em todo canto, o pessoal vão. Então, foi uma dificuldade grande que a gente teve na época, mas a gente conseguiu. Nós com todo recurso nosso, porque senão até hoje nós távamos lá no Santa Rosa. Que ali era Curicaca, Santa Rosa só naquele...

DF: É, eu conheço. E as famílias vão crescendo.

DP: É. Então, graças a Deus ficou mais livre pra gente trabalhar.

DF: E o senhor morou em quais locais até hoje?

DP: Bom, eu morei em três locais. Quando nós nascemos, quando nós viemos, o senhor sabe onde é o Cem hoje?

DF: Sei.

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DP: Ali perto do Cem era chamado de Liberdade, nós mo-ramos lá quinze anos, na casa da comunidade. Ali nas comu-nidades Três Corações que chama, ali era, não sabiam quem morava, morava numa casa e outro morava ali. Chamava lá Liberdade ou Santa Lúcia, depois mudou pra Três Corações. Nós moramos lá, eram duas famílias, nós morávamos com o pai, nós moramos lá quinze anos. Aí de lá quando nós saímos, quando construí família aí eu vim pra cá, pro Perdido. Que ela era daqui do Perdido, morava aqui no Perdido. Aí morei mais ou menos três anos no Perdido. Então, aí é quatro, porque quando eu vim de lá do Perdido nós fomos pro Curicaca. Vi-vemos parece que dezoito anos no Curicaca. Foi do Curicaca que nós já viemos pra cá.

DF: E como funciona, por exemplo, o senhor não perten-cia a Curicaca?

DP: Não.

DF: E aí de repente o senhor vai pra lá. Como funciona? O senhor conversa com o tuxaua e pergunta “A gente pode ficar aqui?”

DP: Sim.

DF: Como é que funciona esse trâmite?

DP: A gente chega lá, vai lá com ele, com o tuxaua, aí o tuxaua faz a reunião com a comunidade. Aí a gente vai participar, dizer que a gente tá querendo morar, que ali já não deu pra nós ficar, aí tudo bem, se a comunidade decidir: “Não porque nós somos parente, vocês não são de outra família, vocês podem vir morar aqui com a gente.” É assim que é conversado. Mas às vezes se a comunidade não aceita, o tuxaua diz: “Não, não dá certo. Ele tem alguma que vem de lá, já fez sujeira pra lá e vem pra cá...” Aí a comunidade não aceita também. Mas quando você é uma pessoa limpa em todo canto, aonde você chegar pode morar tudo, mas não conhece. Quando nós fomos pra lá que falamos: “Não vocês podem vir, que é uma família nossa.” Inclusive essa dona Letícia é, a Regina é sobrinha dela.

DF: Ah é!

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DP: É. São família. Por isso quando nós chegamos lá, era tudo família, aí nós ficamos. Aí depois que já viemos pra cá.

DF: E outra coisa: o senhor pertence a alguma represen-tação indígena?

DP: Sim. Nós temos, nós fazemos parte da APIR, Asso-ciação [dos Povos] Indígenas de Roraima, que é a APIR. E tem essa que a gente criou logo depois que a, primeiro tinha uma que era um programa na região do Truaru, que era um programa da energia de Guri, e depois mudaram o nome pra APTISM, porque achavam que o programa não era certo, não falava indígena, aí isso aí se precisa colocar outro nome. Então, ela mudou desse nome que antes era um programa de quando eles começaram, e quando já veio lá o programa da Eletronorte pra fazer esse convênio, era um programa. Aí quando nós achamos: “Não, ninguém quer programa não.” “Quem quer programa?” “Não, que programa já é coisa as-sim passado, vamos mudar o nome que tem que pegar com a terra indígena São Marcos.” Aí botaram APTISM. Botaram outro nome, aí mudou.

DF: Associação dos Povos das Terras Indígenas do São Marcos.

DP: Porque não quiseram mais programa... Mas até hoje tem gente que chama programa, nunca esqueceu. “É o Programa São Marcos.” É que eles se acostumaram e muita gente ainda fala esse nome.

DF: O senhor foi o primeiro tuxaua da comunidade ou não? Ou teve outro?

RS: Mas daqui ou não?

DP: Daqui eu fui o primeiro.

DF: Então, quantos anos têm a comunidade, mais ou menos?

DP: Vixi! A gente esquece.

DF: Não precisa ser exato. Uns quatro anos ou cinco.

DP: É mais ou menos isso, quatro anos.

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DF: E outra coisa: os rituais antigos, é feito algum na comunidade ainda?

DP: Como ritual?

DF: Um ritual assim é... as danças, tudo. Existe alguma coisa ainda, ou não?

DP: Existe. Nós temos aqui o nosso próprio, nós temos um grupo, que faz a dança parixara, que faz assim uma representação, que os pessoal às vezes pede: “Será que vocês podiam fazer uma representação assim de dança?” Nós temos o nosso grupo que tá preparado, as crianças, os rapazes, os trajes pra sair, aí assim que a gente sai com grupo pra fazer representação. É de dança parixara, tucui. Essas coisas de tradição que a gente tem.

DF: Como é que o senhor vê o indígena hoje? Assim na relação dele com o branco?

DP: Assim, a gente vê, assim, que os indígenas com os brancos, o que nós queremos é respeito. Cada um se respei-tando, com certeza, não tem problema. Que nós vamos dizer se o branco não respeita indígena também começa a haver conflito, basta cada um se respeitando. Porque se você tá lá na sua casa e eu estou na minha, no dia que o senhor quiser vir na minha casa não tem problema nenhum. Nós não temos inimizade, não tem problema. Agora se você é uma pessoa que fica nos ameaçando, fica difícil pra gente se encontrar aqui, porque ninguém gostaria de você. Mas você é branco, e se você quiser vir num fim de semana aqui com a gente não tem problema nenhum, que não tem aquele conflito com a Funai. Então, é cada um com seus direitos. Nós respeitamos, porque amizade, como eu disse, amizade é uma coisa, agora direito é outra coisa. É isso que nós temos. Não tem nada que, se quiser vir aqui, a gente recebe. Então, tem que ter respeito com a gente.

DF: O senhor já passou por algum tipo de preconceito? Alguma coisa?

DP: Não.

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DF: Nem por ser índio? “Não, é coisa de índio”, alguma coisa assim nunca não?

DP: Não.

RS: Eles falam que ele não era índio, que era branco. Que mãe dele é macuxi. E tem esse preconceito com ele, os parentes mesmos, né, com ele: “Não, ele não é índio não, é branco.”

DF: O senhor já passou por isso, então?

DP: Já.

DF: Mas a identidade, como o senhor vê isso então? A identidade é aquela que o senhor assume, não é?

DP: O que eu sempre dizia pra eles: “Não, isso é por causa da minha mãe. Que minha mãe é indígena, não tem nada a ver com meu pai que não é daqui. Eu sou indígena por causa da minha mãe.” Aí quando eu conversava com os próprios parentes: “Minha mãe era indígena, quem mais sofreu comi-go foi minha mãe, meu pai não, só minha mãe. Minha mãe teve eu na barriga nove meses, e quando eu nasci quem me cuidou foi ela. Eu sou indígena por causa da minha mãe.” Aí eles ficavam assim: “Ah! Tá certo.”

DF: Como é que era a alimentação antigamente?

DP: Dos indígenas?

DF: Eh. Você acha que mudou muito ou não mudou?

DP: Mudou algumas coisas. A alimentação ela continua do mesmo jeito. Porque hoje já tá mais aquela facilidade. De primeiro não, a alimentação do indígena era farinha mes-mo, com beiju, damorida, caça, não tinha negócio de carne mesmo, era mais caça, peixe, veado, ia caçar, pra caçar era mais assim. Plantava também muita batata, que o indígena usou muita batata. Pra fazer a bebida dele, o caxiri, usavam macaxeira. Hoje mudou um pouquinho porque antes não tinha arroz, não tinha macarrão, não tinha esse negócio de macarrão, apareceu já depois. Nós comíamos mesmo era farinha e beiju. Agora teve a mudança que hoje já tem várias

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coisas que o índio tá comprando. Aí índio já quer comer to-mate, já quer comer batatinha, já quer comer cebola. Antes não tinha isso, era mais a caça, que mais usava era assado, não tinha coisa salgada. Era mais assado no fogo mesmo. Era pouca coisa que salgava, nunca usavam muito caça assim no sal. Hoje mata uma caça já quer salgar, não quer mais fazer coisa pra assar como era. Então, mudou. Só essa mudança que teve um pouquinho dos indígenas. Foi isso.

DF: E em relação a essas novas coisas que vêm de fora pra comunidade, o que o senhor pensa a respeito disso?

DP: Muitas coisas que vieram como o açúcar, bombom, chiclete, água gelada, que também ninguém tinha, eles fa-zem muito mal pro dente da criança. Muito açúcar e chupar bombom tem criança com quatro anos que já tá com o dente tudo estragado. Tudo estragado. E sempre mamãe dizia assim que água gelada estraga o dente da gente, porque quando você bebe água ele dói. Quem não é acostumado dói no dente. Tem gente que não aguenta, então, aquilo estraga o dente. Então, teve até, quando começaram a dar pasta de dente, ela dizia pra nós que não era bom, porque queimava. Então, o que serve pra de manhã: mandava mornar água pra lavar os dentes, porque mata os bichos. Então, eles usavam isso aí. Eu acho que era verdade, porque os dentes dos velhos não tinha pasta e eram bonitos. Tinha os dentes bonitos de primeiro. Não era, como é que escapavam os dentes, né? Das mulheres e dos homens como é que escapavam? Ficaram assim. Eles não usavam pasta. De manhã, tem o carvão do fogão. Eles pegavam o carvão e passavam no dente. lava-vam com esse carvão pra ficar brilhando. Era o que dava o brilho. Então, quando saiu a pasta ela não gostava, porque estragava o nosso dente. “Não...” “Não dona, isso aqui vai ser bom pros meninos escovar...” Isso foi assim.

DF: Tá certo. E a história do povo, aquelas coisas assim, Macunaima, alguma coisa assim, o senhor já ouviu falar ou não ouviu, como é que é?

DP: Eh, falava muito do Macunaima. Ele era... Hoje nin-guém vê mais, mas antigamente ele caminhava, ele andava,

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ele era uma pessoa. Só que ele tinha poder, ele era poderoso também, ele dizia uma coisa. Primeiro era Deus e logo depois era ele. Por onde ele andava, você não podia tá criticando Deus. Se criticasse, ele fazia alguma coisa do senhor. Por exemplo, ele vinha lá, você vai levando, ela tava contando essa história, que ele vinha aí, sempre o pessoal saía pra caçar no Natal, pra chegar pra fazer a festa de Natal. Ele sempre viajava. Aí teve encontro, mandaram sete mulheres pra levar caxiri pro encontro dos maridos que vinham da caçaria. Aí pararam num ponto que esperaram em cima de uma laje. Aí nessa hora o Macunaima vinha de lá pra cá, aí sempre quan-do eles encontravam com ele, eles davam caxiri pra ele, né. Aí disseram: “Ah! Lá vem o vovô velho ali. Mas hoje a gente não vai dar caxiri pra ele não”, eles falaram: “Ninguém vai dar caxiri pra ele não.” Ele escutou, ele ouvia, era poderoso, aí tá bom. Aí juntaram os baldes, os sete baldes assim. Aí falou com ele, deu bom dia, tomaram bênção, falaram que não iam dar caxiri: “Ah! Eu já vou.” “Tá bom.” Aí ele disse: “Os sete baldes vão virar pedra.” Pronto. Na hora que ele saiu, que deu as costas, quando foram olhar, os sete baldes viraram pedra, tava tudo encarreradinho. Aí ele não bebeu e o marido também não bebeu. Transformou os baldes em pedra, tudo em pedra. Essa era a história que ela contava, do Macunaima que ele era viajante. Ele, não sei como é que ele era, não sei se Macunaima era pesado, se ele chegasse numa pedra assim. Se ele passasse a mão, do jeito que ele passava, ele desenhava, não sabia como fazia isso. Pois se ele chegasse aqui: “Senhor, eu vou deixar a marca do meu pé em cima dessa pedra”, ele pisava e ficava a marca do pé dele.

DF: Eu já ouvi também.

DP: Tudo ele fazia. Não sei como é que ele fazia isso. A pedra ficava mole... Essa é a história dele, ele era muito poderoso.

DF: E do Canaimé?

DP: Do Canaimé é só pra fazer mal aos outros.

DF: Ah é!

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DP: É. Canaimé é igual a uma coisa... O Canaimé é igual como são esses bandidos hoje. Aí às vezes ele chega com aquela inveja do senhor, aquela inveja, aí ele vai lhe perse-guir. Ou às vezes um parente, isso é como uma coisa... ele é revoltado. Vamos dizer, tem um que mata algum parente dele, pra lá, então ele vem lhe perseguir até lhe matar, ou a tua família. Ele tem que fazer alguma coisa com a sua família, se ele não pode lhe pegar então vai pegar um da sua família, ou seu filho ou seu irmão, ele tem que descontar aquilo que ele quiser. O Canaimé é assim, ele vira de todo jeito assim. Aí quando ele pega pessoa diz que ele usa, tira dente de cobra cascavel. Ele usa vários tipos pra lhe maltratar, que o dente de cascavel, ele tem veneno. Aí quando ele pega, enforca, aí cheira pra fazer mal, pra morrer mesmo, pra matar. Aí você volta e já chega em casa com febre. Aí se não tiver nenhum pajé perto pra ver, aí você vai morrer. Às vezes tem pajé perto, né, chama, diz o que aconteceu: “Canaimé bateu fulano... Vai correr atrás de pajé.” Pajé vem, vai bater folha: “Não, foi Canaimé. E tem remédio. Vão fazer remédio.” Às vezes escapa. Mas quando não tem pajé perto...

DF: É complicado.

DP: É complicado. Morre mesmo.

DF: O senhor conheceu algum caso?

DP: Conheci vários casos que tinham acontecido isso.

DF: E o que é que o senhor pensa a respeito?

DP: Do Canaimé?

DF: Eh.

DP: Eu não sei nem o que a gente pode fazer dele.

DF: Não sabe, não é! Agora, tão falando que eles tão descendo por causa das questões indígenas [da Raposa].

DP: Esses que mataram agora ali no Surumu, no Banco, ele veio de lá, tal de Roberto, conheceram numa serra aí, era Canaimé mesmo, de lá. Aí ele veio porque eles estavam perdendo questão lá da Raposa Serra do Sol. Aí eles vieram

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pra brigar com o pessoal. Mas só que quando chegaram aí, viram ele, e aí já conheciam ele: “Esse daí era Canaimé lá da Serra.” Aí já pegaram, mataram ele mesmo.

DF: É, me falaram. E tem algum objeto que a sua mãe tinha como sagrado, alguma coisa? Alguma coisa que a sua mãe tinha, algum objeto que ela gostava muito? Dos antigos...

DP: Eu não me lembro não. [...]

DF: O senhor conhece o fura-olho?

DP: Fura-olho.

DF: Já viu?

DP: Não, nunca.

DF: Nunca? É um pau em forma de garfo que eles fazem assim, e dizem que era usado antigamente, pra furar os dois olhos. Nunca viu?

DP: Fura-olho não. Só taquara.

DF: Taquara?

DP: Taquara era usado por Canaimé, que os parentes iam pra roça e levavam a flecha, que é arma deles. Aí tá capinan-do, mas ele tá prestando atenção, porque senão Canaimé atacava eles. Aí ele flechava mesmo o Canaimé. Ele fazia aquela flecha de maçaranduba. Ele fazia também taquara, de ferro. Aí quando Canaimé vinha, tava capinando, prestando atenção, ele nunca ficava entretido não.

DF: Ficava como?

DP: Ficava olhando. Aí ele tava capinando aqui, aí ele viu quando a pessoa abaixou. Aí ele já veio logo: “É bem Canaimé que tá querendo me atacar aqui.” Aí o Canaimé baixou lá e ele pegou a flecha dele, aí foi pra lá. Ele calculou, ele tinha baixado: “Eu vou flechar ele agora.” Aí ele foi pra lá. Aí ficou aqui. Quando Canaimé levantou pra olhar, aí ele deu no meio da testa dele. Assim que ele fazia, os parentes, eles flechavam mesmo.

DF: E sabe da história da mulher que foi pega pelo maca-co? O senhor já ouviu uma vez?

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DP: Não.

DF: Quando um indígena nasce ou morre tem algum ritual, alguma coisa? Quando nasce, por exemplo, a família continua normal, acontece alguma coisa, tem o período de resguardo pro homem também. Como é que é?

DP: Sim. Aí vai por etnia, o macuxi tem a coisa diferente. Se morrer, eles fazem só enterrar e guardar uns dias, não é como os outros. Cada etnia tem costume diferente. São diferentes. Que Yanomami há uma diferença, eles fazem diferente. E já aqui não, macuxi morreu, aí faz enterro, aí vai guardar uns dias, aí pronto.

DF: E quando o senhor tá de luto, pode fazer tudo normal, não pode fazer, como é que é?

DP: Aí não. Aí quando tá de luto tem várias coisas que não podem fazer. Vai guardar, né, a morte do pai, da mãe. Por exemplo, se tem festa você não pode participar dentro de festa, porque você tá de luto. Até um mês ou dois meses, depende do que você querer. Você não pode estar naquela folia não, porque durante um mês você tá resguardando a morte do seu pai, da sua mãe ou de qualquer família. Então, assim é que eles falavam de primeiro.

DF: E quando nasce tem alguma coisa?

DP: Quando nasce é só alegria, quando vai nascer um filho. Antigamente eles faziam caxiri, caxiri forte, aí deixava guardado. Aí quando nasciam os índios já sabiam, os outros estão só guardando ali. “Ah! Nasceu o filho do fulano. Vamos pra lá tomar o mijo!”, que é o caxiri, caxiri forte, aí era o mijo, na época que eles faziam. Eu conheci bem, lembro quando a mamãe ia ganhar nenê, mandava fazer caxiri, pra tomar o mijo. Aí eles guardavam, tiravam aquele caxiri que tinha o mijo, é álcool puro que ele tá se formando, isso daí que eles chamavam de mijo. “Onde vocês moram? Vamos lá tomar o mijo.” “Nasceu fulano de tal.” Aí a alegria dele era ir pra lá tomar o mijo.

RS: O mijo, mas era de caxiri.

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DP: Não vai dizer que era mijo da criança.

DF: E Puçanga, o senhor conhece alguma? Já viu alguma?

DP: Eu já ouvi contar história. Tem gente que fazia, né. Que puçanga, que diz que a cobra mais traidora é a jiboia. Aí tinha homem que usava puçanga pra mulher pra ver a cabeça da jiboia e o rabo, aí diz que guarda. Aí quando chegava assim, que gostava de uma menina, não sei como é que ele fazia ali, então essa cabeça de jiboia fazia essa menina gostar dele.

DF: [Risos]

DP: Isso aí que chamavam puçanga. “Ah! Fulano parece que fez puçanga.” “Por quê?” “Ah! Porque aquela menina, tanta mulher que gosta dele. Acho que era puçanga que ele tinha.”, que era que ele fazia com a cabeça de jiboia, né. “Olha, ele tem cabeça de jiboia.” Aí começavam. Aí sempre acontecia isso, tinha isso pra fazer. Não sei se é verdade, mas eu sei que tinha.

DF: O senhor conhece alguma história assim de macaco, de onça, que o senhor já ouviu falar? Que onça fez aquilo, que macaco fez aquilo, que jabuti era onça... O senhor co-nhece alguma?

DP: Tem uma história aí do macaco, com o veado e onça.

DF: Aí como é que é?

DP: É que um Veado tinha um gado. Aí quando foi um dia a Onça foi lá e levou um boi pra ele: “Veado, toma conta do meu boi?” “Tá bom. Pode deixar aí com meu gado.” Aí ficou tomando conta. Aí quando foi com cinco anos, aí a Onça decidiu ir lá, disse que gado dele tinha aumentado, aí queria metade do gado do Veado. Aí diz que o Veado tava triste lá, aí o Macaco vinha. O Macaco chega: “O que foi, camarada? Tá triste?” “A Onça deixou um boi aqui, tá com cinco anos, e agora diz que já produziu e quer levar metade do meu gado.” “Rapaz, deixa de ser besta! Tu diz pra ela me esperar amanhã até nove horas, que eu venho aqui advogar teu caso.” O ma-caco falava que ele tava andando. “Mas tu vem?” “Eu venho. Não pode dividir gado enquanto eu não chegar.” “Então tá

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bom.” Aí já ficou mais animado, que o Macaco ia advogar o caso. Quando foi oito horas, Onça chegou. “Ah! camarada Onça, Macaco disse pra tu esperar ele.” “Que hora que ele vai chegar?” “Nove horas ele ficou de chegar.” “Então tá bom. Eu vou esperar.” Deu nove horas, nada. Nove e meia, nada. Dez horas lá vem ele: “Lá vem ele.” Mas já vinha com coisa na cabeça pra ganhar gado do Veado. Aí ele disse: “Agora, camarada Macaco.” “Agora, rapaz. Agora que eu venho chegando. Eu ia saindo lá de casa, tava aqui na metade da viagem, mandaram me chamar, mandaram me chamar que o meu pai tava sentindo dor pra ganhar nenê.” “Mas, camarada Macaco, onde é que tu já viu homem ganhar nenê?” “Pois é, e como é que tu quer que teu boi produza?” Aí ele advogou causa, ganhou só uma questão.

DF: Ah! Entendi.

DP: Então, acabou-se, queria ganhar gado... Então, foi ad-vogado o Macaco, por isso que hoje ele é sabido da história. Ele é muito inteligente, até hoje ele tá aí, mas ele é inteligente pra mandar. A história dele, ele já foi advogado já.

DF: Entendi. O senhor conhece alguma outra história?

DP: Bom o que eu sei tem do timbó também.

DF: Sabe do timbó?

DP: Eh. Do timbó era conhecido também pelo menino. Que ele saía pra caçar, aí uma Anta, ela viveu com esse me-nino. Não sei como é que se criavam na mata, né. Aí ela ficou grávida desse homem. Aí os caçadores entraram na mata pra caçar. Aí os cachorros deram logo com ela, com a Anta que tava buchuda, já tava pra parir já. Aí os cachorros correndo atrás, aí ele correu pra fora. Ele era homem, perfeito, aí os caçadores estavam na mira certa. Aí ele foi e disse pra eles: “Olha, vocês não vão atirar no bucho da Anta não, vocês atiram na cabeça dela, que ela tá buchuda”, disse pra eles. Aí por que esse homem sabia assim. Aí cachorro vinha com ela correndo. Aí quando ela caiu n’água eles atiraram mesmo na cabeça, aí mataram. Aí ele logo se apresentou, aí quando atiraram, ele chegou. Aí quando mataram ele disse: “Vocês

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têm faca?” “Tem.” Aí cortaram ela e ele tirou. Era um me-nino. Gerou numa Anta. A Anta gerou gente. Aí tiraram, ele tava pra nascer, aí tiraram ele. Ele tomou mais cuidado que era filho dele, tirou, deu banho ali. Aí quando ele deu banho no poço, aí as piabas começaram a virar. Aí ele disse: “Não, esse daqui vai ser nome dele Timbó.” Quando deu pra matar peixe, porque timbó que mata. Então, essa que é a história dele aí. Ele cuidava muito do menino dele. Aí todo mundo quando queria pescar assim no poço, aí convidavam ele. Se ele mergulhasse no poço, aí os peixes já iam morrendo. Aí lá convidavam, toda pescaria assim, chamavam ele, aí ele ia. Aí chega lá, manda ele mergulhar, aí ele saía, aí os peixes já vinham com ele, já iam jantar peixe. Aí ficaram com inveja dele: “Nós vamo matar esse menino.” Aí quando foi um dia diz que levaram pra um lago, onde tinha uma cobra que botou quebrante pra ele morrer. Aí chegaram, já tava tudo preparado pra acabar com ele, pra matar ele. Ficaram com inveja. Convidaram ele. Ele foi. Aí ele mandou: “Mergulha direto bem aqui assim!” Ele mergulhou e foi sair lá com essa cobra. Aí a cobra flechou ele. Aí ele saiu d’água, os peixes não morreram mais, aí ele saiu triste. Aí o pai dele ficou preocupado: “Agora sim. Botaram quebrante no meu filho e o meu filho não tem nenhum pajé por aqui, meu filho vai morrer.” Ficou com ele. Aí como eles iam pra matar ele, se arrumaram e foram embora. Deixaram só ele lá. Aí ele ficou lá e morreu o filho dele. Ele ficou lá com ele: “Agora sim, o que é que eu faço.” Aí ficou lá sozinho, aí já tava apodrecendo. Aí: “Eu vou levar meu filho”, mas era garotinho mesmo. Aí essa história que conta, tem aquele timbó que tem aquelas frutinhas. Essa o senhor ainda não viu não, né?

DF: Já sei que tem um timbó que faz da raiz.

DP: Então, daquelas frutinhas é ovo dele, quando caiu. Então, esse timbó que dá aquelas frutas. Aí timbó de raiz é da coxa...

DF: Da coxa dele.

DP: Da perna dele. Aí é o timbó de raiz. Então, esse daí

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foi desse menino que criou timbó. Porque tem o que dá de frutinha e tem o de raiz que dá no chão, do chão que caiu da perna dele. Esse ovo dele que caiu é o que dá de rama, aí dá aquelas frutinhas, o timbó também. Daí a história dele. Contavam um monte. Mamãe que contava essa história.

DF: É, eu já ouvi ela, mas ela assim, é diferente em algumas coisas. [...] E dentro da comunidade, o senhor conhece uma outra história assim, que o senhor tenha ouvido?

DP: Pela comunidade...

DF: Eh. Pode ser a que o senhor tenha ouvido contar. Outra história que a sua mãe contava... Qualquer uma.

DP: Até agora não. Não sei se Regina vai lembrar de alguma que ela sabe da comunidade.

DF: Tá certo. E como que segue a educação na comuni-dade hoje?

DP: É a educação é assim muitas coisas.70 E muitas tam-bém os indígenas aprenderam assim coisas que, nós dizemos, pela educação. Primeiro os indígenas não saíam pra estudar. Elas cresciam e os homens também na comunidade. Crescia, se casava, se formava ali trabalhando. Aí a gente vê, de uns tempos pra cá, que a educação, ela fazia muito o nosso pessoal da comunidade. Se quiser, um jovem, um homem ir estudar ele vai estudar. Às vezes vai pra cidade e não quer mais voltar. A mulher, a gente coloca também: “Não, eu quero fazer faculdade, vou pra Boa Vista”, aí não volta pra essa comunidade. Então, as comunidades foram acabando com os indígenas. De primeiro não, elas se casavam com vinte anos, vinte cinco e ficavam na comunidade, morando, se casavam aqui mesmo, é por isso que aumentavam muito. Então, tem muitas comunidades hoje que elas estão muito vazias por causa da educação. Que vai estudar pra outro colégio fora da comunidade, termina não voltando mais. E muitas. Na Curicaca conheci, elas foram tirar: “Não, eu vou estudar em Boa Vista.” Aí elas foram acabando. Por uma parte, eles aprenderam alguma coisa, por outra parte eles fracassaram as comunidades, que saíram muito e não tão

70 Há nesse ponto um peque-no trecho incompreensível.

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voltando mais.

DF: Por isso que é bom fazer a escola na própria comuni-dade. E dificuldade hoje, quais as principais dificuldades das comunidades hoje?

DP: Como assim dificuldade?

DF: O que mais atrapalha a comunidade a crescer, o desenvolvimento da comunidade, o que é que é difícil hoje?

DP: O que atrapalha muito assim na comunidade é a bebida alcoólica. Bebida alcoólica atrapalha a vida da co-munidade, que às vezes você tá bem, trabalhando, e aí de repente toma, aí começa, atrapalha a comunidade. Hoje a gente vê através da bebida. Até o caxiri forte, ele também atrapalha. E quando é só caxiri que você faz, levanta ele hoje pra tomar amanhã, todos ele toma, é criança, todos tomam, porque é um caxiri doce, né, ele não prejudica nada. Mas se você deixar ele fermentar, ele vai prejudicar, porque um bebe mais, aí vai ficar bêbado, vai discutir com outro, aí começa a atrapalhar a vida da comunidade.

DF: O alcoolismo.

DP: O alcoolismo.

DF: O senhor conhece a história de algum, alguma coisa assim relacionada a algum animal? Alguma história falando de peixe, de alguma coisa ou não?

DP: De peixe...

DF: É. Alguma coisa assim de algum animal, alguma his-tória aí. Conhece alguma?

DP: Não.

DF: Não, né. Tem algum amuleto, alguma coisa pra trazer sorte assim ou não? Que o senhor já ouviu falar alguma vez.

DP: Não.

DF: Amuleto, alguma pedra, alguma coisa que possa ter.

DP: Não. Tem não.

DF: E os meninos assim, por exemplo, tem algum tipo de

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iniciação pros meninos e pras meninas? Quando elas estão virando moças, fazem alguma coisa ou não fazem mais? Ou nunca fizeram?

DP: Não. Isso aí só com a mulher que pode contar alguma coisa.

DF: E pros meninos então, pros rapazes? É porque tinha uma cultura que cortava assim...

DP: É. Mas hoje não faz mais isso.

DF: Não faz não.

DP: Não. Já esquecemos muita coisa disso aí que o se-nhor falou.

DF: E o senhor lembra mais de alguma coisa?

DP: Não.

DF: Então, tá certo seu Domício. [...]Tem alguma história que o senhor queira contar, alguma coisa? Qualquer coisa que o senhor lembre que o senhor queira falar.

DP: Por enquanto não.

DF: Não. Então, manda um recado pra alguém que vai ver essa fita do senhor daqui a duzentos anos. [Risos] Manda um recado. Pense que daqui a duzentos anos um neto, um bisneto, um tataraneto do senhor vai pegar esse material todo e vai ler o recado que o senhor deixou pra ele. O que é que o senhor falaria pra ele?

DP: Só deixar um recado de lembrança pros netos, pros filhos, é o recado que eu deixo pra eles.

DF: Que manda lembrança pra eles. Tá certo. Obrigado.

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