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  • Cordia verbenacea

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    11. Plantas medicinais no Brasil contemporneo:da botica da natureza sade em frascosRenata Palandri Sigolo

    A historiografia brasileira1 indica que, at o sculo XIX, Portugal no se preocupou de maneira efetiva em fornecer assistncia sade da populao residente no Brasil. A vinda da Corte Portuguesa, em 1808, causou profundas mudanas no pas, como a organizao do ensino mdico em torno das Escolas Cirrgicas criadas no Rio de Janeiro e na Bahia que, em 1832, se transformaram em Faculdades de Medicina.2Mesmo que seu funcionamento tenha sido precrio em seus primeiros anos, ambas as instituies representaram no s a possibilidade de formao mas tambm de fiscalizao e monoplio da prtica mdica.

    O controle sobre as atividades de cura foi exercido, entre 1808 e 1828, pela Fisicatura. Nela, o Fsico e o Cirurgio Mor eram responsveis em expedir licenas e cartas obrigatrias para diferentes agentes do universo da cura. Vrios ofcios eram regulamentados pelo orgo de fiscalizao: mdicos, cirurgies, boticrios, curandeiros, parteiras, sangradores, cirurgies que queriam receitar medicamentos, dentistas e aqueles que curavam doenas especficas como embriaguez e morfia.3

    Estas atividades obedeciam uma hierarquia, mas qualquer pessoa poderia solicitar uma licena provisria ou carta, bastando apresentar atestado ou declarao fornecidos por seu mestre ou pela comunidade junto a qual exercia suas atividades.O uso de plantas medicinais no estava restrito a um ofcio de curar especfico, mas uma das atividades mencionadas no sculo XIX nos chama a ateno: a de curandeiro, que correspondia pessoa que cuidava das doenas mais comuns com o uso de plantas medicinais nativas.4

    Em 1828, so extintos os cargos de Fsico e Cirurgio Mor do Imprio e somente em 1830, aparece um pedido para que facultativos, sangradores, parteiras e boticrios registrassem suas cartas na Cmara, que era auxiliada

    1. RIBEIRO, Mrcia Moiss. A cincia dos trpicos. A arte mdica no Brasil do sculo XVIII. So Paulo: Hucitec, 1997. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas - cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Cia das Letras,1993.2. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit.p.194.3. PIMENTA Tnia Salgado. Terapeutas populares e instituies mdicas na primeira metade do sculo XIX. In: CHALHOUB, Sidney et alli (org.). Artes e ofcios de curar no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2003.p.308.4. Ibidem. p.309.

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    pela Sociedade de Medicina. No so mencionados os curandeiros mas, aparentemente, a falta de uma carta ou licena no os impedia de exercer sua funo,pois estes profissionais eram o recurso maior dos pobres e doentes que a medicina no conseguia curar.

    No perodo de existncia da Fisicatura, o maior motivo para a concesso de cartas aos curandeiros era a falta de pessoas mais habilitadas para exercer a cura. Uma vez estabelecidas as Faculdades de Medicina e a Sociedade Brasileira de Medicina, o monoplio mdico forou estes profissionais a uma maior marginalizao, no os reconhecendo mais como agentes de cura.5 Curandeiro tournou-se, ento, sinnimo de charlato ou impostor.

    Vrias foram as crticas tecidas nos jornais brasileiros e revistas mdicas do sculo XIX aos agentes de cura que antes eram praticamente o nico recurso para os males que afligiam a populao. O Archivo Mdico Brasileiro, em 1848, apontava a ao destes agentes para a cura da embriaguez:

    A velha do Castelo administrava certa mistura de mijo de gato e de assafetida. Outro, que morava na Prainha, mandava beber infuso de fedorenta aos negros dados ao vcio da aguardente, e purgava- os depois violentamente com aloes (itlico do original). Havia ainda um negro de Angola que podia ser encontrado na rua dos Ciganos, bem no corao da capital do Imprio, e que havia trazido uma raiz de Minas Gerais, com a qual curava os pretos da embriaguez (AMB, abril de 1848).6

    Alm dos agentes j citados, dentro do universo de cura formal tambm as boticas eram veculos de propagao do conhecimento em plantas medicinais. Eram espaos que forneciam medicamentos compostos no s por plantas, tambm dispensando os conselhos para sua utilizao. No sculo XVIII, as multas para os profissionais que conservassem ingredientes estragados originrios da prpria colnia era muito maior do que aquelas atribuidas aos ingredientes importados j corrompidos7. Este fato nos leva a pensar que a matria-prima para a elaborao de medicamentos se estragava com frequencia na viagem transatlntica e que os boticrios precisavam recorrer e conhecer cada vez mais a flora medicinal local. Por outro lado, a frequente descrio do estado lastimvel das boticas e de seus preos exorbitantes leva a crer que inmeras pessoas faziam do quintal sua farmcia,

    5. Ibidem, p.322.6. PIMENTA, Tnia Salgado. Transformaes no exerccio das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos. Histria, Cincias, Sade. Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 11 (suplemento 1). p.79., 2004.7. RIBEIRO, Mrcia Moiss. Op.Cit.,p.25-26.

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    recorrendo ao conhecimento popular transmitido atravs das geraes.8

    Vrios mdicos, botnicos e farmacuticos pesquisaram sobre as plantas medicinais brasileiras no final do sculo XIX e incio do XX, publicando diferentes compndios e formulrios. O Formulrio e guia mdico, conhecido pelo nome de seu autor Chernoviz - era um dos mais utilizados. Influenciado pelo Iluminismo, Chernoviz via a medicina cientifica superior ao conhecimento popular: em sua outra obra, o Dicionrio de medicina popular e cincias acessrias , o mdico deixou clara sua misso de impedir o pblico leitor de ser alvo de charlatanismo e erros populares.9

    Podemos observar esta cruzada, levada a cabo por alguns profissionais de sade em busca de esclarecer o pblico, presente em outro personagem, o mdico francs Sigaud. Jos Xavier Sigaud, como ficou conhecido no Brasil, chegou ao Rio de Janeiro em 1825 com o objetivo de clinicar e explorar o interior do pas como naturalista. Sua imigrao foi forada pelo antibonapartismo reinante em seu pas natal e foi facilitada pelas boas relaes mantidas entre Brasil e Frana.10

    Sigaud formou-se em medicina na Universidade de Strasburg em 1818 e iniciou sua carreira como cirurgio interno do Hospital Geral de Caridade de Lyon. Aps, mudou-se para Marseille onde se tornou membro da Sociedade Real de Medicina daquela cidade e fundou o peridico mdico Asclepade, em 1825. Uma vez no Brasil, devido a sua experincia, foi chamado para participar da criao da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829.11

    A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro que se tornaria, posteriormente, Academia Imperial de Medicina, dedicava-se traduo dos principais tericos da higiene oitocentista. Naquele perodo, a higiene tentava explicar a relao possivelmente existente entre as particularidades do ambiente e da sociedade brasileiras com seu nvel de salubridade ou insalubridade. Sigaud se insere neste quadro de pensamento, pois defendia que a investigao das relaes entre clima e doena poderiam explicar as endemias, epidemias e demais doenas existentes no territrio brasileiro.128. Ibidem,p.32-33.9. EDLER, Flavio Coelho. Boticas & Pharmacias. Uma histria ilustrada da farmcia no Brasil.Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. p.7610. FERREIRA, Luiz Otavio. Introduo: Jos Francisco Xavier Sigaud e a traduo local do higie-nismo. In: SIGAUD, Jos Francisco Xavier. Do clima e das doenas do Brasil ou estatstica mdica deste Imprio. Rio de Janeiro: Fiocruz,2009. p.18-19.11. Idem.12. Ibidem, p. 17-21.

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    Enquanto representante da cincia mdica, cujos mecanismos de controle vinham se consolidando no Brasil em especial aps a criao da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, Sigaud no poderia se furtar crtica a outros agentes de cura que no fossem legtimos:

    A classe dos curandeiros se divide em duas ordens distintas, os curandeiros indgenas e os curandeiros exticos; esta classificao abrange todos os gneros, espcies e variedades desta milcia guerreira contra a pobre humanidade. ordem dos curandeiros indgenas pertencem todos aqueles que, conhecendo bem ou mal as plantas da regio, empregam o regime e alguns vegetais para curar mordidas, feridas e outras enfermidades. Na segunda ordem, esto os amadores ou especuladores da patologia humana, verdadeiros empresrios das doenas, que exploram os casos graves com lucro, tiram grandes contribuies da credulidade e se servem para tratar ou curar os doentes de frmulas secretas e de mtodos truncados pela ignorncia, ou ento de certas aplicaesousadas diante das quais a prudncia da gente da arte recua de pavor.13

    A desvalorizao do saber e atuao dos agentes populares de cura cresceu medida em que ocorreu o aumento de profissionais habilitados pela academia ou controlados pelas autoridades mdicas em sua atuao. A obra de Sigaud, publicada em 1844, apresenta vrias plantas medicinais utilizadas em terras brasileiras e, ao mesmo tempo, critica a ao de curandeiros indgenas, africanos e mesmo europeus que dela se utilizavam, porm fora dos critrios racionais da cincia mdica de sua poca.

    Entre os sculos XIX e XX, muitos outros pesquisadores voltaram sua ateno pesquisa de plantas medicinais, dentro do esprito investigativo que vai marcar o olhar do ser humano sobre a natureza caracterstico do pensamento europeu no perodo. Dentre eles, Theodore Peckolt (1822-1912), liderou o Laboratrio Qumico do Museu Nacional na dcada de 1870 e realizou o maior nmero de anlises qumicas da flora medicinal brasileira. Ele descreveu o princpio ativo da Ficus dolaria (gameleira), a doliarina, usada como vermfugo, purgativo, depurativo e anti-sifiltico. A planta j era de uso pelos curandeiros contra opilao ou acilostomose. Peckolt estudou outros princpios ativos de plantas indgenas como a agoniadina, a anchietina, andirina, angelina e carobina.14

    O isolamento de princpios ativos das plantas medicinais, nativas ou

    13. SIGAUD, Jos Francisco Xavier. Do clima e das doenas do Brasil ou estatstica mdica deste Imprio. Rio de Janeiro: Fiocruz,2009. p.131.14. Ibidem,p.77

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    no, foi importante na fabricao de medicamentos pela nascente indstria farmacutica brasileira, representada por laboratrios e boticas. O Laboratrio da Flora Brasileira, por exemplo, produzia o vinho ferruginoso quinado de anans e as plulas depurativas de velamina 15. Muitos produtos da farmcia nacional eram anunciados nas pginas dos jornais e em almanaques e vrios deles eram base de plantas medicinais.Porm, o acesso aos produtos farmacuticos era restrito s camadas mais ricas da sociedade brasileira. Os mais pobres contavam com remdios caseiros ou recomendados por curandeiros ou barbeiros sangradores. interessante notar que esta medicina popular base para a pesquisa cientifica sobre a ao das plantas nos quadros de adoecimento- nunca despareceu.

    A convivncia entre medicina popular e cientfica pode ser fartamente observada em momentos de epidemia. A Gripe Espanhola, que grassou mundialmente em 1918, um exemplo. A epidemia, at fins de novembro daquele ano, havia atingido vrias partes do globo de forma extremamente virulenta e letal.16Os primeiros brasileiros infectados pela doena foram os componentes da misso mdico-militar enviada Europa por ocasio da Grande Guerra. Quando atracaram em Dacar, na frica, tiveram contato com a Gripe, que dizimou cerca de cem tripulantes, pressionando o rpido retorno dos sobreviventes ao Brasil.17

    No final de setembro de 1918, a Gripe Espanhola atingiu quatro portos brasileiros e difcil saber o nmero exato de mortos: estatisticamente, chegou-se ao nmero de 35.240 falecidos, mas estima-se que esta cifra seja bem maior.18 O que se sabe, certamente, que a epidemia modificou o cotidiano dos brasileiros: diante da possibilidade de contgio, era necessrio se resguardar da circulao em certos espaos e do exerccio de atividades do dia-a-dia que pudessem ser suscetveis ao adoecimento. Alm do mais, o medo da doena fez com que a populao recorresse s farmcias e aos agentes de cura disponveis para tentar evitar o mal19.

    Diferentes mtodos de cura eram oferecidos na ocasio, que variavam desde a medicina acadmica at a homeopatia, curas espritas e medicina popular. Muitas recorriam ao uso de plantas medicinais: a quina (Cinchona

    15. Ibidem, p. 78.16. BERTOLLI FILHO, Claudio. A Gripe Espanhola em So Paulo, 1918. Epidemia e Sociedade.So Paulo: Paz e Terra, 2003. p.71.17. Ibidem, p. 73.18. Ibidem, p.74.19. Ibidem, p. 212.

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    L.), por exemplo, fazia parte do rol de plantas mais buscadas, desde os tempos coloniais. A planta era usada na Europa desde o sculo XVII para combater a malria e se tornou medicamento primordial durante a entrada do povoamento no interior do Brasil, uma vez que os desbravadores sofriam de variadas febres. Por esta ao antifebrfuga, os preparados base de quina foram muito oferecidos e procurados durante a Gripe Espanhola, provocando o encarecimento do produto nas farmcias20.

    Outras substncias dentre elas ervas medicinais ou produtos delas extrados - foram vendidas pelo Servio Sanitrio em So Paulo, por ocasio do aparecimento dos primeiros casos de Gripe Espanhola: mentol, tintura de iodo, cnfora, essncia de canela, vaselina mentolada, sulfato de sdio e de magnsia, bem como sal de quinino.21 Os ervanrios da cidade de So Paulo indicavam, como preventivo e curativo da influenza, o ch da casca de marapuama (Acanthes virilis); alm desta outra planta, o melo-de-so-caetano (Momordica charantia) tambm foi utilizado na ocasio, em forma de banhos e infuses.22

    Por outro lado, a populao tambm se valia de medicamentos corriqueiros como canela, limo, alho, cebola, sal e pimenta. Uma depoente, entrevistada por Eclsia Bosi no livro Memria e Sociedade e citada por Claudio Bertolli Filho, revela: Diziam que quem comesse um dente de alho misturado na comida se salvava; comamos todo o almoo um dente de alho. Mame usava um patu de alho na mo para cheirar. Uma senhora substituiu o colar de prolas por um colar de alho.23 O uso de plantas por parte da medicina popular era guiado por concepes de sade, doena e cura que necessariamente no eram aprovadas ou partilhadas pela medicina acadmica.

    Os primeiros laboratrios brasileiros foram originados das boticas e, por sua vez, foram o embrio da indstria farmacutica. Em um primeiro momento, que abarca o final do sculo XIX e os trinta primeiros anos do sculo XX, os estabelecimentos utilizavam extratos vegetais e produtos de origem mineral como matria prima para a produo de medicamentos. Os produtos vendidos nas farmcias vinham da manipulao de receitas realizada pelo

    20. BERTUCCI, Liane Maria. Remdios, charlatanices...e curandeirices. Prticas de cura no perodo da Gripe Espanhola em So Paulo. In: CHALHOUB, Sidney et alli (org.). Artes e ofcios de curar no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2003.p.199-200.21. Ibidem, p. 201.22. BERTOLLI FILHO, Claudio. Op. Cit. p.130.23. Ibidem, p.127.

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    prprio estabelecimento, preparados originados dos laboratrios brasileiros, que formavam a nascente indstria farmacutica brasileira ou da importao de medicamentos.24

    A partir da dcada de 1920, a indstria farmacutica brasileira entrou em franco crescimento, e, embora fosse menor do que a estadunidense, naquele momento detinha o mesmo nvel tecnolgico que esta.25A diferenciao maior existente neste perodo se refere s estratgias de comercializao dos medicamentos. Outro fator que promoveu a asceno da indstria estadunidense e europia, a partir da dcada de 1930, foram os investimentos maiores em pesquisa, contrariamente ao que ocorreu no Brasil.

    O desenvolvimento da indstria farmacutica provocou vrias transformaes no ato teraputico, mais precisamente na forma de acesso e nas caractersticas dos remdios utilizados para sanar doenas e males. Se, em dcadas anteriores, o medicamento era feito pelo boticrio em seu laboratrio, aps anos 1930, principalmente, esta realidade vai ceder crescente produo da indstria farmacutica nacional e internacional. Isto provocou uma profunda crise na profisso farmacutica: os farmacuticos passam, de elaboradores e manipuladores de substncias que se transformariam em medicamentos, a meros vendedores de mercadorias.26

    Esta modificao no papel do farmacutico foi acompanhada pela tranformao do saber mdico: cada vez menos receitas apresentavam a frmula a ser aviada pelo farmacutico, uma vez que o ensino mdico vai abandonando as cadeiras que habilitavam o profissional para esta funo. A indstria farmacutica passa a informar o mdico sobre seu produto, utilizando, entre outros elementos, seus representantes distribuidores de amostras grtis e as propagandas farmacuticas destinadas a este pblico. Vale pena lembrar que esta indstria foi igualmente responsvel por garantir, financeiramente, a circulao de vrias revistas mdicas27.

    O estudo sobre a propaganda farmacutica, especialmente aquela destinada ao pblico leigo, revelador sobre o processo de asceno dos medicamentos industrializados sobre os caseiros e aqueles manipulados pelos antigos boticrios. A propaganda de medicamentos no Brasil vai

    24. TEMPORO, Jos Gomes. A propaganda farmacutica e o mito da sade. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 26.25. Ibidem,p.2826. SIGOLO, Renata Palandri. A sade em frascos. Concepes de sade, doena e cura; Curitiba, 1930-1945. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.27. Idem.

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    tomando formas mais sofisticadas e, se compararmos o final do sculo XIX e o sculo XX em especial aps sua terceira dcada, podemos perceber a crescente importncia deste produto no cotidiano da sociedade. A propaganda sinaliza como o medicamento se transformou cada vez mais em um bem de consumo que pode ser obtido com certa autonomia em relao ao mdico e at mesmo ao farmacutico28: atravs da divulgao nas pginas de peridicos e do conhecimento popular- h o estmulo a seu consumo de forma direta, atravs da automedicao.

    Alm da propaganda farmacutica, as farmcias se transformam em locais onde outros tipos de produto poderiam ser comercializados, ressaltando o papel do farmacutico como vendedor de um bem de consumo. Este bem, por sua vez era produto da tecnologia e , enquanto bem simblico, representava a segurana e eficcia da cincia, em contraposio aos medicamentos preparados artesanalmente.29 interessante notar como a familiaridade com medicamentos industrializados fez com que algumas plantas medicinais fossem renomeadas a partir dos produtos farmacuticos destinados a sanar os mesmos males, como o caso da novalgina (Achillea millefolium) e do doril (Alternanthera brasiliana).30

    Na dcada de 1940, com as dificuldades decorrentes da Segunda Guerra Mundial, os laboratrios nacionais passaram a entrar em crise e a serem incorporados por multinacionais em um processo que culminou com a instalao de vrias empresas farmacuticas no final do sculo XX.31 Tambm os medicamentos sofreram, no mesmo perodo, uma sensvel modificao em sua composio: passaram a ser cada vez mais produzidos a partir de substncias sintetizadas em laboratrio. Se observarmos as propagandas farmacuticas voltadas ao pblico leigo, enquanto no final do sculo XIX e incio do XX temos a apresentao de substncias vegetais na composio do medicamento, que facilitariam seu reconhecimento pelo pblico, aps as dcadas de 1920 e 1930 estes ingredientes passam a ser cada vez menos mencionados. Mesmo tendo em sua composio plantas medicinais ou seus princpios sintetizados- isto praticamente no colocado em valor pela propaganda.

    28. LEFVRE, Fernando. O medicamento como mercadoria simblica. So Paulo: Cortez, 1991. p. 82.29. SIGOLO, Renata Palandri. Op. Cit. p. 79.30. LORENZI, Harri; MATOS, F.J. Abreu. Plantas Medicinais no Brasil. Nativas e exticas. Nova Odessa: Plantarum, 2008. 109 e 46.31. EDLER, Flavio Coelho. Op. Cit.,p.108

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    O crescimento da indstria farmacutica inibiu o uso de plantas medicinais como recurso teraputico. Tambm o mdico e o farmacutico passaram a conhecer cada vez menos suas caractersticas e seu uso32 em tratamentos, como foi afirmado anteriormente, sendo que vrios elementos contribuiram para esta perda de saberes. No final dos anos de 1920 e 1930, houve a melhoria nas tcnicas de produo sinttica das subtncias usadas no fbrico de medicamentos, geradas atravs da reproduo de substncias naturais ou a partir de pesquisas qumicas.33Este processo provocou, nas dcadas de 1930 e 1940, a reviso da Farmacopeia Brasileira, que perdeu grande parte de seu contedo referente aos produtos utilizados na farmcia tradicional e provenientes da flora medicinal brasileira34.

    Nas dcadas de 1950 e 1960, com a criao da CAPES e do CNPq, polticas mais recentes foram incorporadas sob orientao destas agncias de fomento pesquisa, como a sada de pesquisadores para a formao no exterior. Desta forma, foi possvel introduzir no Brasil novas tcnicas e equipamentos desenvolvidos em outros pases com maior desenvolvimento tecnolgico. Porm, isto no alterou o ensino de graduao e os currculos universitrios na rea da sade continuaram se distanciando do ensino em plantas medicinais. O incentivo pesquisa em plantas medicinais no se traduziu em uma poltica governamental estratgica para a rea, permanecendo um setor de pesquisas de segunda linha em comparao investigao de substncias sintticas.35

    Em 1967, ocorreu o primeiro Simpsio de Plantas Medicinais do Brasil, resultante do movimento de pesquisadores na rea. Uma das crticas feitas pelos apoiadores do evento era o paradoxo entre a incipiente pesquisa na rea, quando contrastada com o fato de que 80 % dos produtos usados na teraputica provinham ou eram sintetizados a partir de fonte natural36. O Simpsio foi organizado na Santa Casa de Misericrdia e proporcionou a integrao entre as reas de farmacologia, botnica e qumica. No mesmo perodo, outro movimento de cunho internacional se construa com a valorizao, da OMS, do uso de saberes tradicionais em sade, como ser abordado no texto complementar a seguir.

    32. FERNANDES, Tania Maria. Plantas Medicinais: memria da cincia no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p.3933. Ibidem, p. 33.34. Ibidem, p. 34.35. Ibidem,p. 44-45.36. Ibidem, p. 59.

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    Em 1971, foi criada a CEME, Central de Medicamentos a fim de organizar a produo e distribuio de medicamentos no Brasil.37Este rgo acabou sendo um dos principais financiadores da pesquisa da flora medicinal. Apesar de ter desenvolvido testes de comprovao farmacolgica em plantas medicinais,no foi capaz de produzir medicamentos a partir deles, mesmo sendo este um de seus objetivos.38Porm, Marcos Queiroz aponta que a CEME, desde 1983, promove um programa de levantamento de plantas medicinais brasileiras que visa estudar as espcies mais utilizadas pela populao, com o objetivo de desenvolver medicamentos de baixo custo. Cinco plantas foram apontadas como potencialmente viveis para produo industrial: guaco (Mikania glomerata), quebra-pedra (Phyllantus niruri), espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) e embaba (Cecropia glazioui).39

    necessrio ressaltar que a difuso do uso de medicamentos industrializados foi um dos fatores estimulantes da crescente medicalizao da sociedade. Por medicalizao podemos entender o processo por meio do qual problemas encontrados na vida cotidiana so reinterpretados como problemas mdicos40, que resultante, entre outros fatores, das presses econmicas da indstria da sade em busca de lucro e da ideia, veiculada pela medicina, de bem estar total. Segundo esta noo, ningum totalmente so e sim, potencialmente doente: o foco a doena e no o ser humano em sua integralidade.

    No processo de medicalizao da sociedade, o medicamento adquire o papel protagonista de plula mgica que promete resolver, de forma quase que instantnea, a todos os problemas de sade, muitos deles decorrentes das prprias caractersticas econmicas da sociedade em que vivemos. Traos psicolgicos como timidez, ansiedade, agitao recebem ateno farmacologica, muitas vezes de forma superficial, com o objetivo de devolver ao indivduo uma vida ativa , para que ele possa servir de forma produtiva a sociedade. Excesso de peso, disfunes sexuais, envelhecimento entre outras doenas tem promessa de cura imediata, promovendo grande crescimento do setor farmacutico41.

    37. CORDEIRO, Hesio de Albuquerque. Estado e indstria farmacutica:as estratgias da medi-calizao. In: _____. GUIMARES, Reinaldo. Sade e medicina no Brasil: contribuio para um debate. Rio de janeiro: Graal, 1984. p. 259-293.38. FERNANDES, Tnia Maria. Op. Cit. p. 96.39. QUEIROZ, Marcos S. Sade e doena: um enfoque antropolgico. Bauru: EDUSC, 2003. p.143-144.40. FUREDI, Frank. Apud: DUPAS, Gilberto. O mito do progresso. So Paulo: UNESP, 2006. p. 173.41. Ibidem, p. 144-145.

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    Obviamente, o quadro de medicalizao da sociedade no pode ser revertido apenas atravs do uso de plantas medicinais. No a forma teraputica em si que pode provocar a reflexo dos indivduos sobre seu comportamento, atitudes e decises em relao sade e doena. Neste sentido, a revalorizao do uso de plantas medicinais, como a contida na Poltica de Prticas Integrativas e Complementares, por si s no promove esta reflexo, uma vez que possvel utilizar a flora medicinal com a mesma lgica de quem usa um medicamento industrializado. Para tanto, o uso de plantas medicinais no pode estar atrelado lgica mercadolgica nem pode se limitar ao saber cientfico como imposio de verdade.

    O conhecimento em plantas medicinais capaz de proporcionar a reflexo sobre os processos de produo e de conhecimento sobre a sade, a doena e o corpo, possibilitando aliar o indivduo prpria ideia de sade ambiental. Ao cultivar o conhecimento sobre a flora medicinal, possvel pensar e questionar sua produo, seu uso, a partilha cooperativa e gratuita de seu conhecimento, a compreenso e ateno com seu prprio corpo e daqueles entes prximos, os cuidados e a integrao com o meio ambiente onde vivemos.

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    BIBLIOGRAFIA BERTOLLI FILHO, Claudio. A Gripe Espanhola em So Paulo, 1918.

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