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1 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46 Coronavírus: uma represália de Gaia, da Mãe Terra? Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS Ano XVII – Nº 46 – Janeiro/Abril 2020 Feira de Santana-BA – ISSN 2179-1139 Hoje é um dado da consciência coletiva dos que cultivam uma ecologia integral, como tantos cientistas como Brian Swimme e o Papa Francisco em sua encíclica Sobre o cuidado da Casa Comumque tudo está relacionado com tudo. Todos os seres do universo e da Ter- ra, também nós, seres humanos, so- mos envolvidos por redes intrincadas de relações em todas as direções de sorte que nada existe fora da relação. Esta é também a tese básica da física quântica de Werner Heisenberg e de Niels Bohr. Isso o sabiam os povos originá- rios como vem expresso nas palavras sábias do cacique Seattle de 1856: “De uma coisa sabemos: a Terra não pertence ao homem. É o homem que pertence à Terra. Todas as coisas estão interliga- das como o sangue que une uma família; tudo está relacionado entre si. O que fere a Terra fere também os filhos e filhas da Terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida: ele é me- ramente um fio da mesma. Tudo o que fizer à trama, a si mesmo fará”. Vale dizer, há uma íntima conexão entre a Terra e ser hu- mano. Se agredimos a Terra, nos agredimos também a nós mes- mos e vice-versa. A mesma percepção tiveram os astronautas de suas naves espaciais e da Lua: Terra e hu- manidade constituem uma mes- ma e única entidade. Bem o testemu- nhou Isaac Asimov em 1982, a pedido do New York Times, fazendo um ba- lanço dos 25 anos da era espacial: O legado é a percepção de que, na pers- pectiva das naves espaciais, a Terra e a Humanidade formam uma única entidade (New York Times, 9 de outu- bro de 1982). Nós somos Ter- ra. Homem vem de húmus, terra fér- til, ou o Adam bíblico significa o filho e a filha da Terra fecunda. Depois desta constatação, nunca mais sairá de nossa consciência de que o destino da Terra e da humanidade é indissoci- avelmente comum. Infelizmente ocorre aquilo que o Papa em sua encíclica ecológi- ca lamenta: nunca maltratamos e ferimos nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos(n.53). A voracidade do modo de acumulação de riqueza é tão devastadora que inauguramos, dizem alguns cientis- tas, uma nova era geológica: a do antropoceno. Quer dizer, quem ameaça a vida e acelera a sexta ex- tinção em massa, dentro da qual já estamos, é o próprio ser humano. A agressão é tão violenta que por ano mais de mil espécies de seres vivos desaparecem, inaugurando algo pior que o antropoceno, o necroceno: a era da produção em massa da mor- te. Como Terra e Humanidade estão interligadas, a produção de morte em massa se produz não só na natu- reza mas no interior da própria hu- manidade. Milhões morrem de fome, de sede, vítimas da violência bélica ou social em todas as partes do mundo. E insensíveis, nada fazemos. Não sem razão James Lovelock, o formulador da teoria da Terra como um superorganismo vivo que se au- torregula, Gaia, escreveu o livro A vingança de Gaia(Intrínseca 2006). Estimo que as atuais doenças como a dengue, a chikungunya, a zika ví- rus, sars, ebola, sarampo, o atu- al coronavírus e a generalizada de- gradação nas relações humanas, marcadas pela profunda desi- gualdade/injustiça social e pela falta de solidariedade mínima sejam uma represália de Gaia pelas ofensas que ininterruptamente lhe infligimos. Não diria como J. Lovelock ser a vingança de Gaia”, pois ela, como Grande Mãe não se vinga, mas nos dá seve- ros sinais de que está doente (tufões, derretimento das calotas polares, se- cas e inundações etc) e, no limite, pelo fato de não aprendermos a lição, nos faz uma represália como as doen- ças referidas. Evoco o livro-testamento de Thé- odore Monod, talvez o único grande naturalista contemporâneo, já faleci- do, em seu livro E se aventura hu- mana vier a falhar(Paris, Grasset 2000): ”Somos capazes de uma con- duta insensata e demente; pode- se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniqui- lação da raça humana; seria o justo preço de nossas loucuras e de nossas crueldades(p. 246). Isso não significa que os gover- nos do mundo inteiro, resigna- dos, deixem de combater o co- ronavírus, proteger as popula- ções e buscar urgentemente uma vacina para enfrentá-lo, não obstante suas constantes muta- ções. Além de um desastre eco- nômico-financeiro pode significar uma tragédia humana, com um incalculável número de vítimas. Mas a Terra não se contentará com estes pequenos presentes. Ela suplica uma atitude diferente face a ela: de respeito a seus ritmos e limites, de cuidado por sua sustentabilidade e de sentir- mo-nos mais que filhos e filhas da Mãe Terra, mas a pró- pria Terra que sente, pensa, ama, venera e cuida. Assim como nos cui- damos, devemos cuidar dela. Ela não precisa de nós. Nós precisamos dela. Ela pode não nos querer mais sobre sua face. E continuará a girar pelo espaço sideral mas sem nós, porque fomos ecocidas e genocidas. Como somos seres de inteligência e amantes da vida, podemos mudar o rumo de nosso destino. Que o Espírito Criador nos fortaleça nesse propósito. Leonardo Boff Extraído do site www.ihu.unisinos.br Graziela Andrade

Coronavírus: uma represália de Gaia, da Mãe Terra?proex.uefs.br/arquivos/File/JORNALFUXICO46.pdf- O tradutor - Rodrigo Barriuso, Sebastián Barriuso -- Timbuktu - Abderrahmane Sissako

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1 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Coronavírus: uma represália de Gaia, da Mãe Terra?

Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS

Ano XVII – Nº 46 – Janeiro/Abril 2020 – Feira de Santana-BA – ISSN 2179-1139

Hoje é um dado da consciência coletiva dos que cultivam uma ecologia integral, como tantos cientistas como Brian Swimme e o Papa Francisco em sua encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum” que tudo está relacionado com tudo. Todos os seres do universo e da Ter-ra, também nós, seres humanos, so-mos envolvidos por redes intrincadas de relações em todas as direções de sorte que nada existe fora da relação. Esta é também a tese básica da física quântica de Werner Heisenberg e de Niels Bohr.

Isso o sabiam os povos originá-rios como vem expresso nas palavras sábias do cacique Seattle de 1856: “De uma coisa sabemos: a Terra não pertence ao homem. É o homem que pertence à Terra. Todas as coisas estão interliga-das como o sangue que une uma família; tudo está relacionado entre si. O que fere a Terra fere também os filhos e filhas da Terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida: ele é me-ramente um fio da mesma. Tudo o que fizer à trama, a si mesmo fará”. Vale dizer, há uma íntima conexão entre a Terra e ser hu-mano. Se agredimos a Terra, nos agredimos também a nós mes-mos e vice-versa.

A mesma percepção tiveram os astronautas de suas naves espaciais e da Lua: Terra e hu-manidade constituem uma mes-ma e única entidade. Bem o testemu-nhou Isaac Asimov em 1982, a pedido do New York Times, fazendo um ba-lanço dos 25 anos da era espacial: “O legado é a percepção de que, na pers-pectiva das naves espaciais, a Terra e a Humanidade formam uma única entidade (New York Times, 9 de outu-bro de 1982). Nós somos Ter-ra. Homem vem de húmus, terra fér-til, ou o Adam bíblico significa o filho e a filha da Terra fecunda. Depois desta constatação, nunca mais sairá de nossa consciência de que o destino da Terra e da humanidade é indissoci-avelmente comum.

Infelizmente ocorre aquilo que o Papa em sua encíclica ecológi-ca lamenta: “nunca maltratamos e

ferimos nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos” (n.53). A voracidade do modo de acumulação de riqueza é tão devastadora que inauguramos, dizem alguns cientis-tas, uma nova era geológica: a do antropoceno. Quer dizer, quem ameaça a vida e acelera a sexta ex-tinção em massa, dentro da qual já estamos, é o próprio ser humano. A agressão é tão violenta que por ano mais de mil espécies de seres vivos desaparecem, inaugurando algo pior que o antropoceno, o necroceno: a era da produção em massa da mor-te. Como Terra e Humanidade estão interligadas, a produção de morte

em massa se produz não só na natu-reza mas no interior da própria hu-manidade. Milhões morrem de fome, de sede, vítimas da violência bélica ou social em todas as partes do mundo. E insensíveis, nada fazemos.

Não sem razão James Lovelock, o formulador da teoria da Terra como um superorganismo vivo que se au-torregula, Gaia, escreveu o livro “A vingança de Gaia” (Intrínseca 2006). Estimo que as atuais doenças como a dengue, a chikungunya, a zika ví-rus, sars, ebola, sarampo, o atu-al coronavírus e a generalizada de-gradação nas relações humanas, marcadas pela profunda desi-gualdade/injustiça social e pela falta de solidariedade mínima sejam uma

represália de Gaia pelas ofensas que ininterruptamente lhe infligimos. Não diria como J. Lovelock ser “a vingança de Gaia”, pois ela, como Grande Mãe não se vinga, mas nos dá seve-ros sinais de que está doente (tufões, derretimento das calotas polares, se-cas e inundações etc) e, no limite, pelo fato de não aprendermos a lição, nos faz uma represália como as doen-ças referidas.

Evoco o livro-testamento de Thé-odore Monod, talvez o único grande naturalista contemporâneo, já faleci-do, em seu livro “E se aventura hu-mana vier a falhar” (Paris, Grasset 2000): ”Somos capazes de uma con-

duta insensata e demente; pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniqui-lação da raça humana; seria o justo preço de nossas loucuras e de nossas crueldades” (p. 246). Isso não significa que os gover-nos do mundo inteiro, resigna-dos, deixem de combater o co-ronavírus, proteger as popula-ções e buscar urgentemente uma vacina para enfrentá-lo, não obstante suas constantes muta-ções. Além de um desastre eco-nômico-financeiro pode significar uma tragédia humana, com um incalculável número de vítimas. Mas a Terra não se contentará com estes pequenos presentes. Ela suplica uma atitude diferente face a ela: de respeito a seus ritmos e limites, de cuidado

por sua sustentabilidade e de sentir-mo-nos mais que filhos e filhas da Mãe Terra, mas a pró-pria Terra que sente, pensa, ama, venera e cuida. Assim como nos cui-damos, devemos cuidar dela. Ela não precisa de nós. Nós precisamos dela. Ela pode não nos querer mais sobre sua face. E continuará a girar pelo espaço sideral mas sem nós, porque fomos ecocidas e genocidas.

Como somos seres de inteligência e amantes da vida, podemos mudar o rumo de nosso destino. Que o Espírito Criador nos fortaleça nesse propósito.

Leonardo Boff

Extraído do site www.ihu.unisinos.br

Graziela Andrade

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2 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Comissão Editorial Miguel Almir (Coord.)

Rayssa Aragão Romildo Carneiro Alves

Roquenei F. Lima (Cid Fiuza)

Colaboradores Alice do Carmo Souza (UEFS) Ana Gabriela Araujo (UEFS) André Nunes (Queimadas)

Andrea N. M. Silva (UNEB) Andressa S. da Cruz (Simões Filho)

Bruno Freitas (UEFS) Carlos Alberto Lopes (Paulo Afonso)

Carlos Silva (Mutuípe) Cremilson Alves Silva (UEFS)

Cristiano Silva (Sapeaçu) Cristóvão S. Rodrigues (Jeremoabo)

Danilo Cerqueira (FSA) Davi S. Silva (Riachão do Jacuípe) Edite Maria da S. de Faria (UNEB)

Edivania S. de Carvalho (SSA) Fabrício de Souza (SSA)

Humberto Miranda (UNICAMP) Ivanildo Cajazeira (SSA)

Jamerson V. de Lima (UEFS) João José de S. Borges (UNEB)

João Irineu (UEPB) João Paulino (UFR)

Jobson Souza Cunha (Santaluz) Lívia de O. Ferreira (UEFS)

Luciano Ferreira (C. de Maria) Luiz Brandão (Ipirá)

Maria José Firmino (Tucano) Mynuska de Lima (Camaçari)

Pedro Henrique M. de Jesus (UEFS) Pedro Juarez (Araci)

Renailda F. Cazumbá (UEFS) Renato Tavares Santana (UESB)

Weslley M. Almeida - Revisor (FSA)

Conselho Editorial Dr. Eduardo Oliveira (UFBA)

Dr. Miguel Almir L. de Araújo(UEFS) Dr. João José de S. Borges (UNEB) Dr. João F. R. de Morais (UNICAMP)

Drª. Mirela Figueredo Santos (UEFS) Drª. Sandra S. Morais Pacheco (UNEB) Dr. Roberval Alves Pereira (UEFS) Dr. João Irineu de F. Neto (UEPB) Drª Andrea do N. M. Silva (UNEB)

Editoração Eletrônica

e Web designer Roquenei F. Lima (Cid Fiuza)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE

FEIRA DE SANTANA - UEFS

Reitor Evandro do Nascimento Silva

Diretor do Departamento de

Educação Ivan Faria

Coordenador do NIT

Miguel Almir L. de Araújo

Editorial

Informes

A pandemia do COVID-19 - p. 3

Artigos

Querida Amazônia... Intuições do Sínodo da Amazônia, 2019 – Jorge Luiz Nery de Santana – p. 4

O meu tio da Bahia – Yves São Paulo – p. 5 As insurgências da classe trabalhadora

diante da crise estrutural – Diego Pessoa Irineu de França – p. 6

Meditações sociológicas em um tempo agonizante – João José de Santana Borges – p. 8

Ou assumimos nossa coexistência ou sumimos – Miguel Almir – p. 10

Poemas

A paisagem do mundo - É preciso reinventar os homens –

Po.e.sia – E – Camélia – p. 11 O palhaço em cada ser –

O valor de um (a) educador (a) – Lugar de fala p. 12

(Rasgos da pandemia) A colonialidade do poder nos usos

e abusos da cloroquina – p. 13 Os heróis da medicina – Do deserto –

Eu não consigo respirar – Tenho um Miguel em casa p. 14 Relógio atrasado – Descoberta – Arquitetura das sombras –

Revolução – Reclusão – Amanhã quero ver p. 15 Coronavírus: para evitar – Pela janela –

No rol da dicotomia p. 16

Acesso Senti-dos do Amor

Fuxico Virtual www.uefs.br

(publicações...)

uma vez que, a meu ver, sumário

O homem se sentará à mesa editorial

Sois todos muito sábios, expediente

O Fuxico nº 46 apresenta, inici-almente, o informe sobre a Pande-mia do COVID-19, contendo infor-mações e dados recentes que per-mitem uma visão geral do quadro atual.

Em seguida, no artigo “Querida Amazônia... Intuições do Sínodo da Amazônia, 2019” são apresentadas questões ecossistêmicas não só por um olhar biológico, mas também social e cultural. São discussões fomentadas pelo Sínodo da Amazô-nia, convocado pelo Papa Francisco em 2017, o qual resultou em um documento final voltado para a co-existência saudável.

“O meu tio da Bahia” narra a história de Olney São Paulo, um contador de histórias baiano que ao chegar em Feira de Santana se apaixonou pelas artes tornando-se cineasta. O texto descreve o cami-nho e as dificuldades de um jovem amador que se aventura na produ-ção de um longa-metragem.

No texto “As insurgências da classe trabalhadora diante da crise estrutural” o autor faz críticas ao

sistema econômico vigente abor-dando pontos que ilustram a situa-ção geral da economia atual enfati-zando as lutas atuais da classe tra-balhadora.

Em “Meditações sociológicas em um tempo agonizante” o autor tece ponderações intensivas acerca das agonias que afetam a humanidade nesses tempos de pandemia real-çando os abusos e descasos com o ecossistema apontando para o cui-dado com a inteireza de nosso ser.

O texto “Ou assumimos nossa coexistência ou sumimos” traz questões como a predominância da lógica da competição e do individu-alismo em detrimento das posturas de solidariedade e de cuidado com o ecossistema realçando nossa condição de seres interdependen-tes.

As imagens e os poemas apre-

sentados no jornal ilustram o mo-

mento atual em seus diversos as-

pectos trançando poeticamente

nossos gritos e inquietudes de-

maismente humanos.

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3 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

informes

sugestão de filmes

- A peste de Camus - Luis Puenzo - O carteiro das montanhas - Jianqi Huo - O poço - Galder Gaztelu - Urrutia - Dois papas - Fernando Meireles - Me chame pelo seu nome - Luca Guadagnino - O tradutor - Rodrigo Barriuso, Sebastián Barriuso - Timbuktu - Abderrahmane Sissako

- A sabedoria do guerreiro pacífico - Dan Millman - Fragosas brenhas de Mataréu - Ricardo Azevedo - O livro das ignorãças - Manoel de Barros - Ideias para adiar o fim do mundo - Ailton Krenak - O cérebro relativístico - Miguel Nicolelis e R. Cicurel - Contágio - Steven Soderbergh - Assim falou Zaratustra - Friedrich Nietzsche

–Recebemos artigos, poemas, crônicas, contos e imagens com temáticas diversas que sejam relevantes para o _cuidado com a dignidade e com a boniteza humanas.

–Textos de artigos devem ter até três páginas; espaço simples; fonte Times New Roman 12; parágrafo com _recuo; colocar dados do autor após o título.

–Enviar o material para: [email protected]

Orientações para envio de textos etc.

A pandemia do COVID-19

A pandemia que parou o mundo em 2020 é causada pelo vírus SARS-CoV-2, da família do corona-vírus, que origina a doença COVID 19, e apresenta sintomas que vão desde infecções assintomáticas até quadros respiratórios graves. Trata-se de um vírus completamente novo para a ciência, mas os estu-dos desenvolvidos até então já apontam que a transmissão ocorre pelo contato com fluidos corporais e superfícies contaminadas. Em busca de explicações para o surgi-mento do novo vírus, cientistas es-tudam a possibilidade de que um animal seja a provável fonte de transmissão.

As zoonoses (doenças infeccio-sas transmitidas entre animais e seres humanos) são cada vez mais comuns e pioram na medida em que a atividade humana invade e deteriora os habitats selvagens. O surgimento da pandemia provoca reflexões e sugere mudanças não só na forma dos seres humanos se relacionarem entre si, mas também na sua relação com o meio ambien-te. Diversas pesquisas científicas apontam que a causa principal do surgimento dessa e de outras pan-demias similares é a interferência predatória dos seres humanos no ecossistema. Essas pesquisas acen-tuam também que, se não houver mudança nessas posturas destruti-vas, outros vírus até piores podem estar sendo disseminados provo-cando pandemias ainda mais letais. Na proporção em que as florestas

Esse quadro mundial exige das pessoas uma nova forma de convi-vência, na qual é necessário man-ter o distanciamento entre as pes-soas. Por mais difícil que seja, no momento, isso se faz extrema-mente necessário para que haja um futuro de reencontros mais

próximos e saudáveis. Não se trata de uma espera pela volta da nor-malidade anterior. Essa já passou. É uma questão de reaprender a coexistir em outra normalidade. Cuidemo-nos!

são dizimadas, muitos vírus que nestas existem naturalmente, passam a se propagar nas popu-lações humanas causando impac-tos devastadores.

Em janeiro de 2020 a Organi-zação Mundial de Saúde (OMS) declarou emergência de saúde pública de importância internacio-nal devido ao surto da doença. Foram confirmados em nível glo-bal 6.799.713 casos e 397.388 mortes até então (início de ju-nho). No Brasil já chega a 694.116 casos confirmados e 36.602 óbitos e os números não param de crescer. Em Feira de Santana, por exemplo, os últimos testes apontaram um aumento de contaminação de 180% só entre jovens de 20 até 29 anos, pro-vando que pessoas que não estão em grupos de riscos também pre-cisam obedecer às recomenda-ções médicas.

Por isso, a indicação da Orga-nização Mundial de Saúde (OMS) é o isolamento social para conter a proliferação do vírus, já que ainda não existe vacina ou medi-camento antiviral específico para prevenir ou tratar a COVID-19. Além disso, a higienização fre-quente das mãos e o cuidado pa-ra não tocar olhos, nariz e boca sem limpá-las antes é essencial. No caso de haver suspeita de contaminação é ainda mais im-portante manter-se isolado e ir a hospitais apenas se for necessá-rio. Se houver a necessidade de sair é recomendado o uso de máscaras e álcool em gel 70%.

Getty Images/BBC

sugestão de livros

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4 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

No livro Sobre o poder pessoal, Carl artigos

...irmão sol e irmã lua, irmã água e mãe terra...

Cântico das Criaturas,

São Francisco de Assis O Sínodo da Amazônia, convocado

em 2017, pelo Papa Francisco, teve no mês de outubro de 2019 sua As-sembleia e construção de um Docu-mento Final, no Vaticano. Tratou de temas da Igreja Católica Romana e de questões sociais e ambientais dos nove países que têm territórios na Amazônia: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Guiana, Guiana Fran-cesa, Venezuela e Suriname. Partici-param bispos, padres e freiras dessa região, leigos, e representantes dos povos indígenas e comunidades tradi-cionais e povos das florestas, além de estudiosos, pessoas ligadas à Organi-zação das Nações Unidas (ONU) e membros dos escritórios do Vaticano (a Cúria Romana). Foi registrada a participação ativa de mais de 87.000 pessoas, nos dois anos de preparação, e 250 pessoas na As-sembleia Sinodal, de diferentes cidades e culturas, assim como de numerosos grupos de outros seto-res eclesiais e as contribuições acadêmicas e organizações da so-ciedade civil nos temas centrais específicos.

Na sua Exortação Apostólica pós-sínodo, o Papa Francisco inicia com a saudação Querida Amazô-nia... expressando uma relação de afeto, cuidado e ecoamorosidade. Na esteira do Canto das criaturas de São Francisco de Assis, Queri-da, irmã... e segue, anotando qua-tro sonhos: Social, Cultural, Ecoló-gico e Eclesial, reafirmando o ges-to poético e profético, no entendi-mento da Encíclica Laudato si (2014), onde tudo está ligado a tudo, ou como diria Leonardo Boff, “(...) tudo que existe coexiste. Tu-do que coexiste preexiste. E tudo que coexiste e preexiste subsiste através de uma teia infinita de re-lações omnicompreensivas. Nada existe fora da relação. Tudo se re-laciona com tudo em todos os pon-tos”. Um contínuo in fieri, de que se revestem os entes ambientais, em sua renovada equilibração eco-lógica, em seu interrelacional de sobrevivência e interconvivialida-de. O Bioma amazônico, se consti-

tui de sua biodiversidade e as di-ferentes populações humanas com suas relações lá construídas e conectadas com as diversas di-

nâmicas, estruturas sociopolíticas e culturais, modos de existir e coexistir e formas de viver e con-viver.

É nessa perspectiva que emer-ge o Documento Final do Sínodo da Amazônia, que busca o rosto do outro, na sua alteridade e dife-rença, na sua particularidade e universalidade, no exercício de uma interculturalidade crítica e criativa, de acolhimento e fecun-do diálogo e corresponsabilidade frente aos desafios em que urgem respostas contundentes e asserti-vas. Uma escuta sensível dos di-versos atores e agentes que com-põem a paisagem amazônica. O lúcido discernimento dos proble-mas e ameaças que circundam e esgarçam o tecido ecossistêmico dessa região, coração vital do planeta. Existem os que defen-dem o absoluto afastamento de qualquer interferência na região e os que reduzem a Amazônia às lógicas da ganância do neoextra-tivismo para abastecer a sede dos mercados internacionais. Um ou-tro caminho alternativo tenta dia-logar com a sabedoria das popu-lações amazônicas e seu ethos do bem viver com os usos dos co-nhecimentos científicos e tecnoló-gicos a serviço de um projeto

Sarah Pequeno

ecosustentável, uma ecologia inte-gral, que respeite a vida em sua diversidade, integridade e protago-nismo.

No Documento Final, encontra-mos a escuta sensível, o desejo, o esforço e convite da Igreja Católica Romana, para que experimente-mos uma conversão integral, que nos envolva inteiramente e inten-samente no cuidado da casa co-mum. O documento apresenta Pri-meiro, uma Conversão Pastoral, que trata do reconhecimento das populações que compõem a região amazônica, sua situação, seus so-frimentos e injustiças, bem como a compaixão e solidariedade com os diferentes rostos, suas lutas por respeito, dignidade e bem viver. Urge aprendermos com essas po-pulações e seus modos de ser e existir, fortalecendo os laços co-munitários e irmanarmo-nos na preservação da vida e da convivia-lidade com justiça, paz e fraterni-dade. Uma igreja samaritana e em diálogo ecumênico e inter-religioso, com o rosto indígena, camponês, afrodescendente, mi-grante, com o protagonismo juve-nil e das mulheres.

Em seguida, o documento apre-senta o capítulo Segundo, uma Conversão cultural, abordando a dimensão inculturada da fé, o ros-to índio da teologia, espiritualidade e liturgia, seguido do esforço e da defesa de uma interculturalidade crítica, o respeito da profundidade das culturas e a horizontalidade do diálogo não-colonizador e nem im-perialista, valorizando as expres-sões e sabedoria das diversas cul-turas , suas mediações não assi-métricas com outros repertórios simbólicos e cosmovivências. No momento seguinte, Terceiro, uma Conversão ecológica, o texto fala de uma Ecologia Integral que bus-que novas formas de desenvolvi-mento justo, solidário e sustentá-vel. O cuidado e zelo pela “casa comum”, pela biodiversidade, pe-las populações humanas, especial-mente aquelas em situação de vul-nerabilidade e vítimas da ganân-cia, da violência e das desigualda-des - a dimensão socioambiental. E, por fim o Quarto, uma conver-são sinodal/eclesial que convida a igreja a repensar seu modo de ser

Querida Amazônia...

Intuições do Sínodo da Amazônia, 2019

Jorge Luiz Nery de Santana Professor da UEFS

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5 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

O meu tio da Bahia

Yves São Paulo Doutorando em Filosofia na UFBA

e se organizar nessa regionalidade, bem como as peculiaridades das dinâmicas das populações locais, que exigem novos protagonismos e formas de exercer os carismas e ministérios dentro da eclesialida-de: o presbitério, o diaconato, a vida religiosa consagrada, a pre-sença e vez da mulher, os itinerá-rios de formação inculturada e li-turgia.

A aprovação desse documento teve apoio de ampla maioria, mais de dois terços da assembleia sino-dal, no Vaticano. Setores ultracon-servadores reagiram ao documen-to como uma ameaça aos pilares da fé da igreja. Em resposta o ma-gistério da Igreja lembra que o Do-cumento é fruto de uma ampla es-cuta e coordenação da igreja. Es-ses Sínodos, como Documentos anteriores dessa natureza, dialo-gam com a situação e busca, nes-sas contingências, uma resposta em profundo diálogo com a tradi-ção da Igreja e os saberes e faze-res do mundo contemporâneo.

Os desdobramentos desse docu-mento seguem como desafio aos católicos e as populações locais, as

forças mobilizadoras da igreja e suas organizações em parceria com outros organismos e institui-ções que fomentem e apoiem a luta por novos modelos de desen-volvimento, sustentável, justo e solidário. Existem as peculiarida-des próprias da eclesialidade e fé católica e os limites, contradições e ambiguidades que marcam a presença nos modos de pensar e agir da igreja no mundo. No en-tanto, espera-se que esses estí-mulos e orientações animem as recepções, os diálogos e as medi-ações de lutas na região, de for-ma crítica, criativa e cuidante. E se estendam para todo o mundo, como sinal de boa nova que nos faça perceber parte da mãe-terra, por que dela viemos e nela vive-mos e compartilhamos a vida.

A sensibilidade poética e profé-tica do Papa Francisco é uma voz singular, dentro e fora da igreja, na denúncia de um mundo com sua racionalidade instrumental, movido pela ganância e pela ir-responsabilidade com a casa co-mum, com os diversos biomas e populações, e o anúncio de uma

urgente conversão e mobilização ecoamorosa, para utilizar uma ex-pressão cara ao Prof. Miguel Almir, na urgente construção de novas relações, intersubjetividades e cui-dado. Uma razão cordial, sensível, compassiva e amante da vida e sua complexa teia. Penso que as heranças ancestrais das popula-ções tradicionais traz muito encan-tamento para fazermos nossa eco-recriação.

Referências ARAUJO, Miguel Almir Lima de. Dos sentidos do amor. Salvador – BA: EDUFBA, 2016. BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Ja-neiro: Sextante, 2004. SILVA, Olmiro Ferreira da. Direito ambiental e ecologia: Aspectos fi-losóficos contemporâneos. Barueri, SP: Manole, 2003. Documento Final do Sínodo da Amazônia – Link <http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-final-do-sinodo-para-a-amazonia.html> acesso em 10 de março de 2020.

cinema é arte, e portanto tem a ver com paixão. Ignora-se as ad-versidades, e entrega-se às agru-ras de fazer um filme.

Junto a outros curiosos, con-seguindo o suporte de algumas instituições locais, mas principal-mente partindo de seus próprios esforços individuais, Olney São

Paulo consegue desenvolver seu projeto seguinte em cinema, a fil-magem e lançamento de Grito da terra.

Projeto ambicioso para um jo-vem que nunca tinha filmado nada profissionalmente, e de repente se lança a uma produção de longa-metragem, adaptada do livro de Ciro de Carvalho Leite, que atua como um dos produtores da pelí-cula. Conta com elenco de atrizes já conhecidas do cinema brasileiro. Lucy Carvalho havia participado de Os cafajestes, de Ruy Guerra, fa-moso pela primeira cena de nu frontal do cinema brasileiro. Hele-na Ignez crescia durante o período para se tornar uma das figuras mais conhecidas do cinema nacio-nal. Junto a elas, Lídio Silva, o be-ato de Deus e o diabo na terra do sol, lançado em comunhão com Grito da terra. Na equipe, música de Remo Usai, que viria a compor trilha para mais de 80 filmes, can-ções de Fernando Lona, com letras de Orlando Senna (outro cineasta em formação).

O lançamento de Grito da Terra é evento ímpar na história de Feira de Santana, mas pouco faz para alavancar a carreira cinematográfi-ca de Olney. O cineasta compreen-de que deverá deixar o interior

Sarah Pequeno

Olney São Paulo nasceu em Ria-chão do Jacuípe, Bahia, mas ainda criança se mudou para Feira de Santana. Nesta cidade, descobriu o cinema e se apaixonou. Difícil sa-ber se sua paixão foi apenas pelo cinema ou pelas artes em geral, convergindo na sétima arte, a aglutinadora de todas as artes, co-mo já dizia desde a década de 1910 o crítico italiano Ricciotto Ca-nudo. Era um contador de histó-rias, e as contou pelo teatro, pela literatura, mas sobretudo pelo ci-nema.

Nos anos 1950, uma equipe de cinema veio até a região de Feira de Santana. Produção liderada pe-lo cineasta e crítico de cinema Alex Viany, contou com os olhos aten-tos de um jovem jacuipense/feirense a observar o passo a pas-so da filmagem. Da curiosidade frente à novidade, nasceu um ci-neasta. Junto a outros amigos cu-riosos, fez o amador curta-metragem policial, Um crime na rua, em meados dos anos 1955.

Cinema é indústria, e portanto requer uma equipe de produção, consequentemente muito dinheiro de investimento. Tudo isso parecia impossibilitar a criação cinemato-gráfica no interior da Bahia nos anos 1960. Antes de ser indústria,

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6 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

As insurgências da classe trabalhadora

diante da crise estrutural

Diego Pessoa Irineu de França

Prof. de Geografia - Sec. de Educação de João Pessoa - Pb

O processo de aprofundamento da crise estrutural do capital traz à tona na contemporaneidade um conjunto de movimentos objetivos e subjetivos, envolvendo a diversi-dade da classe trabalhadora, que merecem ser compreendidos críti-ca e simultaneamente no seu de-senrolar.

O esforço coletivo em compre-ender o presente histórico decorre da simples razão de que é nele que podemos agir, e sob os escombros do legado histórico, projetar outras formas de socialização para além dos imperativos capitalistas.

Torna-se lícito falar em termos

de crise estrutural devido ao ca-ráter universal e longevo assumi-do pela crise que, especialmente após os anos 1970, não polpa ne-nhum recanto do planeta de seus efeitos destrutivos. Tais conse-quências referem-se à precariza-ção das relações de trabalho e a destruição ambiental.

É de conhecimento geral que a partir deste período, definido por muitos autores como toyotismo ou regime flexível, o capitalismo deu uma guinada à financeiriza-ção, tendendo ao desmonte de qualquer forma de seguridade social concebida no amálgama

dos anos dourados do capital, para usar uma expressão de Hobs-bawm. O fato de a fórmula de im-plementação ser concebida por go-vernos eleitos democraticamente como Reagan, nos EUA, e Marga-reth Thatcher, na Inglaterra, bem como por regimes ditatoriais como o regime de Pinochet, não exime o caráter autoritário de tal projeto neoliberal, cujas consequências são sentidas desigualmente até hoje por toda classe trabalhadora mundial. Esse processo, longe de significar uma retirada estatal da economia, demarca sua exponen-ciação no cuidado com as finanças

a esperança de mudanças quando se atravessa tempos sombrios.

Filme maldito, contrabandeado em sua ilegalidade para fora do país, onde foi apresentado em

mostras e festivais ao redor do mundo – do Chile à Alemanha. Foi um dos primeiros representantes brasileiros a ser apresentado na Quinzena dos Realizadores do Fes-tival de Cannes. Enquanto no ex-terior o filme lograva algum reco-nhecimento, em terras nacionais era perseguido – daí a alcunha mais comum de ser encontrada vinculada a ele, de filme maldito.

Todas suas cópias foram toma-das pelo governo ditatorial instau-rado em 1964, e destruídas para nunca ver a luz do projetor. Por sorte, um lance de esperteza: a troca de películas de suas latas, levou os militares a levarem consi-go outro filme quando de sua bati-da na cinemateca do Museu de Ar-te Moderna do Rio de Janeiro, fa-zendo resistir uma cópia de Manhã cinzenta em solo nacional. Foi esta

baiano para conseguir produzir seus filmes com maior facilidade. Assim, se muda com a família para o Rio de Janeiro, ficando mais pró-ximo dos outros baianos cineastas, e da Embrafilme, a empresa brasileira de filmes da época.

Logo nesse primeiro mo-mento, em meio aos estron-dos de um golpe de estado assolando o país, Olney lança aquele que é seu filme mais conhecido e lembrado ao ter seu nome mencionado em voz alta ou baixa: Manhã cin-zenta. Baseado em conto de sua autoria publicado na co-letânea A antevéspera e o canto do sol, trata-se de uma história de ficção-científica acompanhando um grupo de estudantes tentando fazer resistência ao estado autori-tário que se tornou seu país. Os estudantes são presos e submetidos à tortura, julgados por um cérebro eletrônico suscetível aos preconceitos do conservadoris-mo autocrático.

É um filme curto, conta com menos de 23 minutos, nem por isso deixa de ser bombástico. Glauber Rocha, em Revolução ci-nema novo, descreve o filme como caleidoscópico. A ordem tradicional de narração de uma história não é obedecida. O filme mistura ima-gens de passeatas e movimenta-ções reais, com imagens de notici-ários, com suas imagens ficcionais. É um rompimento com o realismo encontrado anteriormente em Gri-to da terra. Lá há uma história com princípio, meio e fim, aqui há o rompimento de todas as expec-tativas; porque, mesmo que as personagens sejam golpeadas e atiradas ao chão, é preciso manter

a cópia que Olney persistiu exi-bindo ao longo de sua curta vida, clandestinamente.

Filme caçado e destruído por ser uma defesa do amor em tem-

pos de terror. Não somente o filme foi perseguido, tam-bém seu cineasta. Os mili-tares no poder levaram Ol-ney à prisão, torturaram-no, fazendo-o pagar pelo crime de ter ousado fazer um filme como aquele. Subversivo. Os males da tortura, Ol-ney carregou pelo resto da vida. Não abalou sua paixão pelo cinema. Faleceu em 1978, aos 41 anos, deixan-do uma filmografia de 14 obras. Não abalou também sua paixão pelo seu filme maldito, como já colocado, que ele carregava para ci-ma e para baixo dentro do

banco de sua kombi, exibindo em sessões fechadas, para alguns privilegiados de sua confiança.

A paixão de Olney São Paulo resistiu às intempéries da histó-ria. Escrevo este breve relato de apresentação de meu tio em 2020, mesmo sem nunca tê-lo conhecido pessoalmente. Sua ci-nefilia atravessou o tempo e se instalou em mim, nascido 14 anos depois de seu desaparecimento.

Com este texto, apresento uma série de artigos de minha autoria sobre o tio Olney, seus filmes, sua vida, que serão publi-cados nos próximos números des-ta publicação. Um lembrete que ele mesmo fazia em seu filme maldito: frente ao terror, impor-tante apontar, eles me encontra-rão de pé.

Olney São Paulo está de pé.

Pedro Enir

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e na repressão aos trabalhadore(a)s (Hirsch, 2010; Mészáros, 2015).

Esse contexto significou, dupla-mente: uma redefinição territorial e uma reconfiguração das relações de trabalho, com o advento da em-presa automatizada e descentrali-zada, que devido aos meios técni-co-científicos poderia aglutinar ma-térias-primas e produtos de diver-sas partes do globo - incluída aqui a superexploração de mão de obra precária. Para a racionalidade he-gemônica das empresas, a irracio-nalidade destruidora das legisla-ções protetivas ao trabalho, aos mais pobres e à natureza torna-se condição sine qua non.

Com efeito, a flexibilização pro-dutiva transfigurou as relações de trabalho em algo demasiadamente instável, de modo que os postos de emprego típicos de uma era fordista tenderam a dar lugar a formas de arregimentação efême-ras. Impulsionou, desse modo, a ampliação de um exér-cito indus-trial de reserva (em termos marxi-anos), isto é, massas de trabalho descartáveis, supérfluos e infor-mais que passariam a compor o contingente da precarização atual.

Ao contrário de outros tempos, em que o processo narrado atingia apenas as frações das classes tra-balhadoras mais vulneráveis e/ou menos escolarizadas, bem como deste ser uma exclusividade do mundo periférico (América Latina, África e Ásia), observamos um ca-ráter universal ao atingir os países do capitalismo central e os esca-lões "mais instruídos" dos empre-gados.

Como são típicas do desenvolvi-mento desigual e combinado da acumulação, as formas de precari-zação "fast", cujos exemplos mais gritantes e esdrúxulos são a ube-rização dos transportes e da comi-da, invadem os grandes centros e estabelecem uma generalização do consenso da "desresponsabiliza-ção" com o trabalho. Isso significa que, na era do "salve-se quem pu-der" do empreendedorismo, nem as empresas nem tampouco o Es-tado desejam se comprometer com o mínimo das condições de traba-lho que poderiam resultar em al-guma seguridade.

Após pouco mais de dois anos da reforma trabalhista de Temer, as promessas de "modernização" para geração de empregos dão lu-gar ao grotesco aprofundamento do pauperismo, desemprego, infor-malidade e da desigualdade. Con-forme os dados do IBGE referen-dados por Andréia Galvão e Ricar-do Antunes, o desemprego atingiu 12,5 milhões de pessoas, no ano de 2019. Cerca de 28 milhões es-tavam subutilizados, sendo 41%

na informalidade, atingindo, so-bretudo mulheres, pretos e par-dos.

No capitalismo contemporâ-neo, conforme lembra Milton San-tos (2019) a produção exponenci-al e deliberada da pobreza torna-se parte constituinte de sua dinâ-mica. Longe de se tratar de algo residual, a pobreza, a desigualda-de e a precarização assumem um caráter universal e estrutural, cu-ja rapidez de proliferação não responde às medidas paliativas, à "geração do amanhã", que bus-cam atenuar as disparidades pro-duzidas pela irracionalidade finan-ceira. O fato de outros autores como David Harvey, ao conceber essa dinâmica enquanto Loucura da razão econômica, e István Mészáros como a partir da pers-pectiva de irracionalidade sistêmi-ca não altera a contradição fun-damental e perigosa: o capital

destrói, degrada, descarta a fonte geradora de todo valor contido no trabalho.

As informações do último rela-tório da Oxfam, às vésperas do Fórum econômico Mundial, escan-caram a falácia liberal que pre-ga religiosamente o livre merca-do. Ao contrário de gerar equilí-brio, a "autorregulação" do mer-cado duplicou o número dos su-per-ricos. Esses sujeitos abasta-dos que não passam de 2,1 mil indivíduos possuem riqueza acu-mulada superior a 4,6 bilhões de pessoas, mais pobres do planeta (60% dos mais pobres no mun-do). As informações atestam ain-da que se tais sujeitos pagassem apenas 0,5% de impostos, 117 milhões de empregos sociais po-deriam ser criados para atenuar os 180 milhões de desemprega-dos existentes no mundo. Em su-ma, o relatório atesta a aberração recaída especialmente sobre mu-lheres e meninas pobres, às quais

juntas totalizam 12,5 bilhões de horas de trabalho não remunerado todos os dias. Isso equivale a U$S 10,8 bilhões em trabalho não pago por ano.

Mas quem será que apropria desse tempo de trabalho social pa-ra gozar de tempo livre? Marx em uma de suas passagens de "O Ca-pital" observou a que a produção de tempo livre para uma classe (a dominante) se dava a partir da conversão de todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho. Trata-se de algo muito significativo num mundo globalizado, em que o aprimoramento tecnológico não significou a extinção do trabalho, nem tampouco uma redução das jornadas, apesar da flexibilidade.

Enquanto poucos gozam de um tempo livre, a maior parte da po-pulação trabalhadora é levada à exaustão física e mental ao assu-mir duas ou três ocupações pouco remuneradas para garantir um mí-nimo de dignidade e as despesas que só ampliam. Na outra ponta, volumosos contingentes de traba-lhadores sem alternativas são em-purrados à informalidade e precari-edade de atividades degradantes como os entregadores de aplicati-vos (Iodo, Rapé, Uber Eats), cata-dores, vendedores ambulantes, limpadores de para-brisas etc.

Em decorrência disso, presenci-amos constantemente processos insurgentes de sujeitos "invisíveis" às estatísticas oficiais do mundo do trabalho formal, que se encontra cada vez mais retraído. Movimen-tos envolvendo grupos precariza-ções que, percebem a sociedade desde o abismo social, ao qual fo-ram submetidas, se somam a gru-pos de trabalhadores formais para sinalizar urgência nas transforma-ções estruturais da sociedade.

Não aleatório, percebemos vá-rias obras cinematográficas, que abordam as temáticas das desi-gualdades e formas de opressão, ganharem bastante apreço do pú-blico mundial, como se elas ex-pressassem uma necessidade soci-al de representação e explicitação do drama das injustiças que tem se acentuado. É assim que fil-mes como Coringa, Parasita, Ba-curau atingem o público, ao sinte-tizarem, as marcas de uma socie-dade que, por estar adoecida, in-duz milhares ao adoecimento psí-quico e físico, sobretudo pelas leis da competitividade que dispensam o bem estar individual-coletivo pa-ra a maior parte dos seres huma-nos, relegados ao abandono, à in-segurança e a efemeridade.

O mundo parece verdadeira-mente um barril de pólvora. Come-çando pela América Latina os mo-vimentos indígenas e de trabalha-

Kalmax Nunes

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dores que afloraram no Equador e no Chile (nesse caso até medidas de mudar a constituição e de redu-ção em 50% dos salários de parla-mentares conseguiram baixar os ânimos), bem como alguns movi-mentos grevistas que começam a tomar corpo no Brasil (como os Petroleiros), evidenciam o questio-namento do modelo privatizante intensificado pelo neoliberalismo. Da mesma forma, A Europa vive permeada por ondas de protestos em decorrência da ascensão da direita significar uma ameaça imi-nente a direitos trabalhistas conso-lidados. Após os movimentos dos coletes amarelos, a França é palco de uma greve geral que contraria e faz recuar as ameaças contra a previdência e a seguridade social. Há pouco, a Espanha, sobretudo a Catalunha, passou por ondas de protestos contra a judicialização da política e pela libertação de lide-ranças políticas com prisões arbi-trárias.

Saindo da Europa e aterrissando na Ásia, na Índia eclode a maior greve da história, mobilizando 250 milhões de trabalhadores de dife-rentes segmentos (gás, aço, petró-

leo, telecomunicações etc.), que mobilizados por diferentes federa-ções, sindicatos e movimentos reivindicam melhores condições de trabalho (diminuição da jorna-da e aumento salarial), recuo das pautas que destroem direitos bá-sicos, fim da dívida de agriculto-res, o fim das privatizações, entre outros.

Em suma, não é de hoje que o capitalismo provoca uma série de instabilidades pelo mundo. A emergência desses movimentos evidencia uma contestação da condição que o capitalismo impõe a maior parte dos trabalhadores, à medida que é a fonte geradora da precarização laboral, da des-truição da natureza e da amplia-ção das desigualdades sociais. A diversidade das revoltas espalha-das pelo mundo demarca uma nova morfologia assumida pelo trabalho no século XXI.

Como vimos, a junção entre um movimento objetivo da reali-dade social, que amplia as desi-gualdades, com formas subjetivas de consciência social contestató-rias ameaçam constantemente o sta-tus quo. Apesar de as lutas

Meditações sociológicas em um tempo agonizante

João José de Santana Borges

Professor da UNEB

Estamos no frenesi dos aconte-cimentos, no auge da biopolítica em que a vida nua de Agamben se vê radicalmente exposta, num pa-roxismo de exposição: a instabili-dade de nossa situação e a forte impressão de dissolvência ou mes-mo de desmonte das estruturas da vida moderna, que nos garantiria aquela sensação de segurança e confiança nos sistemas de perícia, tais como estudadas por Anthony Giddens, nos causa a sensação de corpos à deriva. Qualquer leitura atual sobre a cena contemporânea da pandemia do COVID 19 se tor-na obsoleta em função de um novo acontecimento. A intensidade dos acontecimentos é tão extensa que parecemos tatear no escuro, pare-cidos com os personagens de En-saio sobre a cegueira, de José Sa-ramago.

Por mais que a Ciência nos bali-ze de informações e dados estatís-ticos, resta-nos a pergunta não-respondida: como vamos sobrevi-ver? O que pode ser feito? O “lave suas mãos” tornou-se banal. Ou antes, nos desperta para a antiga lição das tradições historicamente banidas pela ciência, que nos ensi-navam “ritualizar nosso cotidiano”, “tomar consciência de cada gesto, estar presente aqui e agora.” A ciência ocidental tem que abrir

mão de sua racionalidade reduci-onista e dar algum crédito às prá-ticas ancestrais, indígenas, africa-nas, asiáticas, mesmo que se ve-ja obrigada a “lavar as mãos” di-ante de sua eficácia. Mesmo per-manecendo em sua posição de racionalidade para orientar nossas ações cotidianas.

Em outra perspec-tiva, assistimos estu-pefactos ao negacio-nismo de certas cor-rentes neopentecos-tais que, inflamadas pelo discurso e pelo gesto genocida e algo niilista do presidente Bolsonaro, rejeitam ferozmente as únicas medidas práticas que garantiriam uma re-dução de danos quan-to a avalanche de mortes e ao estrangu-lamento dos sistemas de saúde, tal como visto em países que nos antece-deram às fases da epidemia. Es-pecialistas revelam em seus gráfi-cos de crescimento da pandemia, em suas curvas e fases, a dimen-são irrazoável da tragédia. Os nú-meros gritam mais do que nunca, pois revelam a morte e o pavor

da morte. E revelam muito mais que a neutralidade axiológica do modelo epidemiológico convencio-nal nos permite antever.

E se por um instante, guiados por reflexos individualistas do pen-samento neoliberal instalados no

esoterismo hodierno, pensarmos em romantizar o momento, em glamourizar o vírus, não devemos esquecer das desigualdades estru-turais de nossa sociedade, e con-firmar que o vírus não tem nada de “comunista”: embora afete as classes privilegiadas de nosso pa-

Graziela Andrade

ainda se situarem num patamar de particularismos inerentes aos dife-rentes segmentos da classe, estes compartilham de traços comuns, devido ao fato de estarem subordi-nados ao mesmo sistema de opressões que atinge a totalidade da composição da classe trabalha-dora mundial. Essa unidade poten-cial poderá representar a centelha que, no hic et nunc da história concreta, após sucessivas experi-ências, poderá desembocar nu-ma consciên-cia de classe univer-sal (Gramsci, 2015) antagônica, colocando em xeque a sociabilida-de capitalista.

Referências HARVEY, D. A loucura da Razão econômica. São Paulo: Boitempo, 2019. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. São Paulo: Cia. das Letras. 1995. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015. MÉSZÁROS, I. Para além do capi-tal. São Paulo: Boitempo: 2002. SANTOS, M. Por uma outra globa-lização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janei-ro: Record, 2019.

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ís, e de todos os países, certamen-te os mais pobres dos países peri-féricos sofrerão muito mais. Prin-cipalmente porque nos salta aos olhos as radicalmente desiguais possibilidades de confinamento e de isolamento sociais. O pensa-mento progressista se ressente do desmantelamento do Estado, capi-taneado por um governo que pre-ga, conforme já dito por diversos analistas, não o Estado Mínimo,

mas o Estado Inexistente, o caos regido por clãs, milicianos, milita-res, liderado por lunáticos, orienta-do por pastores evangélicos ines-crupulosos. Mas o pensamento progressista não consegue discer-nir múltiplas perspectivas na sua gênese: o que dizer, nesse senti-do, das práticas integrativas em saúde, muitas vezes negligencia-das pelos arautos do pensamento progressista em nosso país?

Alargar as possibilidades de so-lução da crise nos aponta para as pesquisas negligenciadas pelo es-tablishment científico, relacionadas as diversas racionalidades médi-cas, que devem ser reconhecidas como complementares e que, em nada ameaçam a hegemonia da biomedicina e sua busca legítima pelo remédio e pela vacina. Mas os princípios integrativos das PICs precisam ser difundidos, sobretudo para ampliar a compreensão sistê-mica e o significado dessa pande-mia para o atual estado civilizató-rio da espécie humana. Talvez seja o momento de revermos, o quanto antes, o padrão dominante de re-lacionamento com os outros seres da natureza, com os reinos mine-ral, vegetal, animal e anímico do planeta.

Por outro lado, apontar novos

caminhos para a realidade econô-mica da crise civilizacional implica em revermos o modelo de relação capitalista e adotarmos, como possibilidade premente, urgente, novas formas de sociabilidade inspiradas na economia solidária, na dádiva de Mauss, em sistemas cooperativos como o PROUT, en-tre outras alternativas, na miríade de experiências e aprendizados que as comunidades ao redor do

mundo ofertam. Seja qual cami-nho devamos tomar, uma coisa é certa: pela primeira vez na histó-ria humana, pensarmos enquanto UNIDADE, em meio a diversidade irrefreável de modos de ser hu-mano, e UNIDADE Com toda a natureza e toda a Vida na qual existimos em teia, é uma saída emergencial para garantir nossa sobrevivência. A Natureza, diria Sri Aurobindo, exige de nós, nos desafia, a esse salto evolutivo: ou nos pensamos enquanto radical-mente interdependentes, ou pe-receremos. Se haverá Estado pa-ra garantir nossos direitos histori-camente constituídos, ou não, deverá haver a essência a qual essa concepção de Estado implica – o princípio de solidariedade ori-ginária, essencial, da fraternidade já aspirada pelos místicos de to-das as tradições. Somos UM. Es-tamos lançados em uma grande Nave que abriga a todos, que for-nece seus tesouros, “mas nin-guém dá o seu valor”. E a hora para reencontrar esses valores chegou.

Mas agora voltemos ao nosso corpo, onde quer que estejamos, em que posição corporal esse texto chegou até nós. Notemos primeiro o modo como estamos

sentados. Garantamos que nossa coluna vertebral assuma a sua na-tural condição, adquirida em milha-res de anos de evolução da espécie humana, de estar ereta. Coluna ereta e, ao mesmo tempo, guar-dando em suas costelas, toda a sua potencial flexibilidade de mover-se livremente em todas as direções, apoiada pela cinta abdominal, in-centivada pelos braços, sustentada por quadris e pernas, ancorada pe-los pés, orientada pela cabeça, gui-ada pelos sentidos da visão, da au-dição, do olfato, do paladar. Sinta-mos a pulsão e o desejo em estado de potência, como animal à esprei-ta do próximo movimento de sua presa. Mas não iremos caçar, como fizeram nossos ancestrais: vamos apenas acessar o estado de aten-ção plena que aprendemos a de-senvolver nessa aventura da Vida em nossa espécie.

Estamos atentos, presentes, em nosso corpo. E agora, vamos ob-servar o modo como respiramos as palavras que estamos lendo, e va-mos notar a respiração que nos alimenta de vida para além das pa-lavras, e quanto mais silêncio fizer-mos, menos barulho de pensamen-tos erráticos nos movimentando no tempo e na urgência, mais pode-mos sentir a nutrição espontânea que a respiração nos concede. Sin-tamos a gratuidade do ar que nos envolve e respiremos com um cer-to tipo de amor, amor mundi, amor ao mundo. E assim, respirar com prazer, sentindo a temperatura do ar, sentindo seu tato carinhoso nos condutos respiratórios, das narinas aos pulmões... sentindo que ele, o ar, realiza sua missão para conos-co, garantindo que no próximo ins-tante, estejamos vivos. Momento a momento.

Realizemos essa Unidade, a qual a nossa meditação nos levou a ad-mitir, no ar que respiramos. O ar que percorre o espaço e nos conec-ta, antes mesmo das tecnologias da informação, ao imenso oceano de consciência infinita ao qual per-tencemos todos nós. Repousemos nossa atenção nessa imagem de um vasto oceano invisível que nos abriga a todos, desde o início. Rea-lizemos isso através do pensamen-to. Fechemos os olhos e assim per-maneçamos enquanto pudermos, ou quisermos, respirando o silêncio e a quietude da mente.

Ao abrir os olhos, nova visão de mundo está à nossa disposição. Recriemos a vida que levamos, e vamos praticar o que aprendemos, desde nossa primeira atitude cons-ciente de estarmos no mundo, nes-se momento, compartilhando com todos dessa existência Una. Que atitude (política) exerceremos a partir de então?

Graziela Andrade

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10 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Os modelos de desenvolvimento econômico que regem nossa socie-dade, sob a égide do capitalismo, em suas diversas vertentes, insta-laram visões de mundo que propa-gam e afirmam concepções e pos-turas lastreadas no individualismo e na competição como únicos ca-minhos e modos possíveis de viver em sociedade.

Diversos/as pensadores/as, pes-quisadores/as, sábios/as de tradi-ções ancestrais, pessoas imbuídas de repertórios culturais que pri-mam pelos caminhos da coexistên-cia solidária, da ecohumanização há muito tempo têm alertado so-bre o que é flagrantemente óbvio: a predominância da lógica da com-petição, da supremacia do ter em detrimento do ser, do produtivismo predatório, arrasta a humanidade para a sua própria des-truição. Esses modos de desenvolvimento econô-mico têm se revelado ex-plicitamente insustentá-veis pelas consequências devastadoras que propor-cionam para os viventes do planeta terra, para o ecossistema.

A supremacia desses paradigmas incide num desenvolvimento econô-mico que privilegia o lu-cro pelo lucro, a riqueza material e financeira de uma pequena minoria através de processos des-trutivos das vidas, das relações entre os huma-nos e destes com a natu-reza/ecossistema. Um des-envolvimento extre-mamente utilitário e pro-dutivista, mecânico e fun-cional desprovido de en-volvimento humano, de respeito e de cuidado pa-ra com nossas vidas e as de todos os seres com os quais somos inter-dependentes e complementares na teia do co-pertencimento.

Os mananciais das mais varia-das fontes de sabedorias ances-trais (africanas, ameríndias....), muitas pesquisas realizadas nas áreas das humanidades e de ou-tras ciências, entre outras fontes, nos afirmam, de modo e imperati-vo, que nós, seres humanos, so-mos destinados, originariamente, aos vínculos de coexistência, de cooperação, de compartilhamento, de solidariedade. Na proporção em que, direta e indiretamente, somos interdependentes uns dos outros,

em dimensões tanto visíveis quanto invisíveis, carece de que cuidemos com afinco e prudência dessa teia in-tensiva de interliga-ção para que esta não se esfiape e se dilacere.

Para que essa teia de coexis-tência seja cuidada e renovada constantemente é preciso que cultivemos os valores primordiais da generosidade, do altruísmo, da equidade, da compaixão, dos mo-dos de ser-com, da ecofraternida-de. Enfim, do ecoamor que supõe amar a todos os viventes.

De modo geral, o que mais fi-zemos nos últimos tempos - salvo as boas exceções -, foi fragmen-tar e rasgar brutalmente essa re-de mediante ações individualistas

e competitivas de cunho extrema-mente mercantil e predatório im-pulsionadas pela voracidade de um consumismo que, se não to-marmos outro rumo, por fim, nos consumirá. Essas posturas preda-tórias têm nos levado a uma bar-bárie civilizóide, a uma brutaliza-ção autofágica e ecocida no reina-do do homo stupids.

Nossa história humana é movi-da pela gravitação dos fluxos ten-soriais, dos germes das contradi-ções que podem potencializar transformações profundas. Muitas vezes, torna-se necessário acon-tecerem eventos e fatos que re-velam crises intensas e impactan-

tes, de forma trágica e dilacerante, para que tomemos consciência (ou não) das ações doentias que esta-mos tendo para tocar a vida, as relações entre os humanos e com os outros seres viventes.

Foi preciso surgir um microorga-nismo invisível e imensamente pe-rigoso, em forma de um vírus, com potências corrosivas e letais para provocar uma interrupção abrupta e radical no ritmo frenético e de-vastador em que estávamos levan-do nossa vida cotidiana. Uma coroa invisível e espinhosa traz ameaças profundas de morte em massa pa-ra a raça humana e, de modo as-sustador, impõe freios violentos em nossos modos de estar no mundo, impulsionados por essas

posturas predatórias – ecocidas – em relação às vidas humanas e não hu-manas que perfazem o ecossistema. Considerando uma pers-pectiva vasta de compre-ensão humana que inclui e ultrapassa os vãos do sa-ber e nos descortina pelos desvãos da sabedoria, uma das lições que, de modo contundente, podemos aprender, é que, como afirma a expressão africa-na ubuntu, sou porque vo-cê é. Assim, sou porque nós somos. Ou seja, nessa teia de coexistência que nos interliga de forma mi-cro e macro nos comple-mentamos uns com os ou-tros; nos afirmamos e nos qualificamos humanamen-te na proporção em que nos entrecruzamos solida-riamente. Queiramos ou não, sozinhos não subsisti-mos. Somos, de modo es-truturante, interligados uns com os outros nas tra-

vessias de nossas sagas humanas, inter-humanas e ecohumanas.

Parece ficar patente que, ou cui-damos com desvelo e primor dos laços de co-pertencimento que nos entrelaçam mediante atitudes al-truístas e altaneiras ou nos esgar-çamos. Ou nos amamos, nos ecoa-mamos, ou nos armamos, nos de-voramos e nos dizimamos. Nossa existência somente pode se afir-mar através de nossa coexistência solidária. Ou assumimos essa coe-xistência ou sumimos. O que nos sustenta, como humanidade, não é a egocidadania mas a ecocidada-nia. Ou nos entrelaçamos ou nos lascamos!

Movimento Zapatista-México

Ou assumimos nossa coexistência ou sumimos

Miguel Almir

Professor da UEFS

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11 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Camélia

sem. sem dono. sem culpa

perdoada afinada com sua canção

camélia assumida se basta e flama

passeia rua chile de cima abaixo

bicicleta cabelos ao vento

desce a ladeira da vida sobre os degrau sem fama

traz vento e vácuo

alguma epistemologia aceita lírica

de bolsa

Andréa Mascarenhas Salvador-Ba

Paisagem do mundo O mundo é o retrato que vejo rabiscado nas íris dos homens. São pernas que marcham nas lembranças de ontem chutando os escombros das antigas cidades. O mundo é um rio que habita o vazio dos homens. É a nudez de Deus guardada na cegueira de outros homens que carregam seus pensamentos, seus mortos.

É preciso reinventar os homens

O amor está de luto, é tempo, tempo de sonhar. O vento chicoteia as consciências, é hora, é hora de avançar. A fome sangra os olhos das crianças, é preciso, é preciso despertar. Os mentirosos neblinam o país, não há mais verdades nas esquinas. A democracia é uma deusa amputada, tudo, tudo cabe num poema. O medo bate nos ombros, soldados e cavalos querem marchar. A política é um teatro em ruínas, seus atores estão mancos, embrutecidos. Os tempos parecem de chumbos, há pesadelos estendidos nos quintais.

Adriano Eysen Feira de Santana-Ba

Kalmax Nunes

Priscila Lopes

poemas

Po.e.sia

Sinestésica Artesania

Facho Diurno

Mar.e.sia

E

“logo eu”: filha da mãe descendente de Kariri . Kalancó . Geripancó . karuazú filha de alma e língua eterna: Tupi guarani

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12 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Educador ganha muito? Quanto vale um educador? Que seria da sociedade Sem a presença do educador? Para formar tantos profissionais E muitos destes não dão valor? Um educador vale um prefeito? Vale um médico que não é doutor? Vale um político partidário eleito? Que não estudam mais que o professor? Vale um advogado e um juiz? Vale também um promotor? Todos os profissionais citados Existem graças ao professor Cujo salário é um incômodo E às vezes rebaixam sem pudor Negando-lhe seus direitos Onde está o seu valor? São tantos anos de carreira Para atingir um maior patamar Rala nas cadeiras da escola A vida toda sem tempo de parar Doze anos até ao 2º grau Quatro anos para se graduar. Dois anos em cada especialização Dois no mestrado para se formar Quatro anos passa no doutorado

Em cada um habita um palhaço Oculto, adormecido Esculpir cada parte Para vê-lo vivo Em movimento É intenso, doloroso Tem que ter olhos pra ver E um coração gigantesco Neutro Capaz de acolher E mirar em cada gente a dor e a alegria O palhaço é instigante Conectar-se com ele É ver-se por inteiro É desconcertante Louco Por isso uns ignoram Outros encaram o abismo O ridículo se lambuzam de gargalhadas Sentem o seu palhaço vibrar Transbordar Esses não tem medo dos espelhos que encontram nas andanças Os que tem medo

resistem Não querem virar-se pelo avesso Quebrar as algemas do controle Ah! Quanta ilusão! A vida é um mergulho no vazio da imensidão de ser O palhaço flui quando abrimos espaço para o ridículo, para o não julgamento para o imprevisível Aí as sombras perdem o poder Surge a clarividência A excentricidade A comunicação sem palavras O olho no olho O silêncio se transforma em música Os sorrisos cantam A inocência é revelada A alma livre dança A consciência se expande Você presente Brinca, corre, Faz piruetas Cansa e descansa nos braços da vida E o palhaço em cada um Voa alto como um condor...

O palhaço em cada ser

Wiara Barreto Salvador-Ba

O valor de um(a) educador(a)

Muitas dificuldades para cursar O professor que nestes cursos ingressam Apesar da lei, não liberam para estudar. Quanto vale um educador? Não precisa nos dizer Basta apenas refletir O que seria de você? Do teu filho, do teu parente E da formação do teu ser?

Valoriza a luta de um educador Quem tem sensibilidade no olhar De enxergar e estabelecer relações Entre valor e caminho a trilhar São muitos anos de formação Com investimento particular. O Piso Nacional é início e é base Quanta dificuldade para se perceber! Não é o pico de uma ladeira Também não é o teto a receber Urge olhar-se para o caminho longo Que um educador precisa percorrer.

Urge parar de desvalorização Romper a dificuldade de interpretar A vida deste Ser que não é silvestre Mas é racional ao educar É sentimento, luta e resistência Ninguém pode nos parar.

André Nunes Bispo

Queimadas-Ba

Agnaldo Carvalho

Lugar de fala Poesia de Preto Poesia do Gueto Vejo… O lugar de fala De representação... Dos espinhos, das dores Das flores aos sabores, Amores… A preta engajada Não mais, apenas, desejada!!!! O preto outrora acorrentado, que hoje, por muitas vezes é algemado, assassinado! É também o preto politizado, armado, de munição. A munição…han, não se engane, É o livro na mão! É a voz ecoando no salão, no sarau de preto, Do povo do gueto… Que faz da fala, do grito, Do movimento, da expressão… Seu lugar de resistência, de ação- reflexão!

Poliana Pinheiro Feira de Santana-Ba

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13 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Rasgos da pandemia

Os usos e abusos Da cloroquina Parecem ser Mais não são Uma novidade Em meio a um dilema Em plena pandemia Do novo Coronavírus

Em sua dimensão mais profunda Vemos os contornos De mais uma cena obscena Em uma história Que ganha seus primeiros contornos Com a invenção do Outro Batizado de Novo

Achado Perdido Não importa O que importa É o fato de essa ter sido Uma falsa polêmica

De novo Não havia nada Só o truque De transformar o visível em invisível

Do visível ao invisível Muitas histórias e culturas De povos que passaram a não ser Sendo chamados de índios

Entre tantas evidências A ciência das ciências Conhecer o desconhecido Saber quais E como utilizar Vegetais e animas Para aplacar a fome Preparar remédios Curar doenças

É aí que se apresenta Em meio a uma profusão De relatos escritos E pinturas primorosas O pó de Quinino

Pó da planta Quina Quina Pó Pré-colonial Andino/Amazônico Remédio de índio Utilizado em um ritual completo Com rezas e cantos

Pó que se tornou O mais cobiçado remédio Em todo o mundo Com comprovada eficácia Para combater a Malária Mal epidêmico antigo Quase uma pandemia Que abalou estruturas de poder Como no caso do Império Romano Que se tornou o epicentro Dessa moléstia Por isso Passando a ser conhecida Como febre romana

A colonialidade do poder nos usos e abusos da cloroquina

Francisco Alfredo Morais Guimarães Salvador-Ba

Desenrolando os fios das narrativas coloniais E da colonialidade do poder Chegamos ao tempo presente Em que vemos Isolada A partir da quinina A cloroquina

Um artifício de pirataria Americana Alemã A partir da manha Artimanha plantada no século XVI Com levas e mais levas De mudas da planta Quina Quina Para a Europa Por padres jesuítas Sem reconhecer na planta As lições Da selvageria culta Dos nativos

Lições das leituras da floresta Dos seres que nela habitam Seres que andam pelo chão Que andam nas árvores Têm asas Moram nas águas

Ou seres que vivem dentro do chão Ou que se agarram ao chão Criam raízes Caules Lançam-se em direção ao sol Firmes

Lições da visão de poderes Poderes para debelar problemas de saúde Promover o bem estar físico Curar o espírito

Lições cosmológicas Do trânsito no plano da imanência Das visões e interações simbólicas

Quinina Quinidina Diidroquinidina Cinconidina Cinchonina Dhidrocinconina Fragmentos de uma velha ladainha farmacoquímica No roubo de invenções dos povos indígenas E a criação do mito Da supremacia branca

Representada em uma iconografia espanhola No século XVII A Quina Quina Aparece como um Presente Precioso Ofertada ao sacerdote da Ciência Pelas mãos de Peru Uma criança indígena

Assim A Quina Quina

Foi deixando de ser Ela mesma Em espírito Uma referência

Submetida à rituais de transubstanciação A cloroquina foi transformada Em mais uma droga com patente Uma droga Droga na mão invisível Que rege A orquestra do Deus Mercado Na religião capitalista

Como um Deus implacável Que fecha os olhos para a pobreza E os rastros de miséria Espalhados pelo seu caminho O Deus Mercado apresenta-se No exato momento Com sua liturgia de manipulação Dourando pílulas de cloroquina Para os que sofrem Em meio à pandemia Do novo Coronavírus Estando no centro De numa terrível polêmica Envolvendo o certo e o errado Numa disputa entre seus sacerdotes E os sacerdotes da Ciência

Gravura espanhola do século XVII, denomi-nada de Presente Precioso, publicada no Rassegna Medica, edição de março a abril de 1955. Licenciado sob domínio público. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File 3APeru_offers_a_branch_of_cinchona_t o_Science_(17th_century_engraving).jpg Na gravura, o Peru, simbolizado por uma criança indígena, oferece um ramo da plan-ta Quina Quina à figura da Ciência, que a recebe, reconhecendo suas propriedades farmacológicas.

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14 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Há uma guerra em todo mundo Cuja forma se anuncia Num combate mais profundo Contra a dor, contra agonia; Uma batalha cruel Onde a morte, em seu papel, Ceifa a vida em toda esquina; E quem combate o inimigo E faz da sorte um abrigo? - Os heróis da medicina!

Eles fazem juramento Para a vida, enfim, salvar A saúde é seu rebento Nesta guerra singular, Armados com seu saber A ciência é o seu poder Que a verdade contamina; Esses anjos são chamados Independente de Estados: - Os heróis da medicina!

Eles são como guerreiros Em luta contra gigantes Entre os últimos, primeiros, Entre os mudos, mais falantes, E hoje nessa pandemia Dia e noite, noite e dia, Perguntam lá de uma esquina Ou de dentro do ataúde: "Quais os anjos da saúde!?" - Os heróis da medicina!

Quem trabalha sem parar Para um vírus combater Sem poder voltar pro lar Lutando pra socorrer Quem não tem qualquer suporte Na labuta contra a morte Com semblante de assassina? Quem são estes combatentes Que salvam velhos, doentes? - Os heróis da medicina!

Vestidos da cor do céu De um azul pouco normal Eles cumprem seu papel Lá dentro de um hospital São médicos e enfermeiros Decididos, verdadeiros, Médicas vivendo a sina De cuidar do paciente; Como se chama essa gente?! - Os heróis da medicina!

As técnicas de enfermagem E também as enfermeiras Todas com muita coragem Engrossam nossas fileiras Amplificado o refrão Do final desta canção Dedicada a quem ensina A cumprir seu juramento Aplaudo neste momento - Os heróis da medicina!

Pessoas de carne e osso Humanos de toda cor Que sem fazer alvoroço Aliviam nossa dor Elas merecem respeito E por um justo direito Que a todos nós contamina Devem ser assim lembrados E por fim condecorados - Os heróis da medicina!

Quando o povo se livrar De toda dor deste mundo E o sofrimento estancar No que é raso ou no profundo O sangue que faz sofrer E quando a vida vencer A batalha repentina Contra tudo nesta terra; Sabe quem venceu esta guerra? - Os heróis da medicina!

Não basta a fé pra curar Não basta milagre apenas Não basta em casa ficar Cumprindo terríveis penas E preciso ter ciência E julgar com consciência Sem explicação divina Afinal, nesta batalha Sabe quem que mais trabalha? - Os heróis da medicina!

Por isso toda nação E seus bons sobreviventes Com justeza e com razão Deve ensinar aos carentes Tudo que aprenderam antes: Esqueçam seus governantes Que ao pequeno nada ensina No instante da despedida, Agradeça a vossa vida Aos heróis da medicina!

Queria que o mundo ouvisse O deserto a lhe chamar Dizendo: Tu me esquecestes, Desaprendestes de amar E da floresta das coisas Não consegues mais voltar. Chamei-te aqui, camarada Viva-me intensamente Tenha coragem, me abrace Quebre o gelo, interiormente, Que você criou enquanto Deixava o mundo mais quente. Venha e veja, se desligue Dessa pressa descabida Quem sempre andou devagar Foi quem mais andou na vida Chegou descansado e teve A coroa prometida. Foi quem soube vir a mim Para encontrar-se consigo Viu a terra como mãe Zelou dela e fez abrigo Não quis mais que o necessário Não inflou o seu umbigo. Hoje, viva-me, repito! Quero te dar essa chance Viver é caso de amor Chega de querer só lance Que esse entendimento agora O mundo inteiro o alcance. Sem deserto não há bosques Que a natureza não falha Só pode sair quem entra Quem para também trabalha Quem não resistiu ao golpe Nunca ganha uma batalha. Sou deserto, sou a voz Que grita silenciosa Para um mundo barulhento E uma gente teimosa Anuncio uma vida nova Mais justa e harmoniosa.

Romildo Alves

Feira de Santana-Ba

Os heróis da medicina

Piligra Itabuna-Ba

Rasgos da pandemia

Eu não consigo respirar Ar sujo mentes imundas almas sombrias

Eu não consigo respirar Hipocrisia (des)humanos insanos

Eu não consigo respirar rações e reações sem razões eu preciso respirar.

Jaderson Barbosa Feira de Santana-Ba

Do deserto

Renailda Cazumbá Feira de Santana-Ba

Tenho um Miguel em casa O Miguel que mora aqui Não sai para comprar pão sozinho Se sai, fico da janela a espiar Olhos compridos sigo os passos O coração aperta e bate forte. Rezo e vigio seu retorno. O Miguel aqui de casa vê Que não gostam do cabelo Do rosto e olhos que ele tem Encontra jeito de ser e sentir Em meio ao não-ser. O Miguel aqui de casa vive no cárce-re da casa e da tela

E quando sai e visto aos olhos da injustiça, da polícia Tateia em silêncio o pequeno mun-do e o existir de menino preto. Por nove andares Miguel chamou pela mãe Por oito minutos implorou Lloyd sem respirar Setenta e duas foram as balas para João Pedro Números escritos sem glória O horror inscrito na história Nos convida a novo lutar.

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15 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

Relógio Atrasado Estou sempre um pouco atrás tardio no contrapasso do furo da reportagem das novidades banais. Aéreo em digressões de versos, lirismos teses e antíteses sumários bagunçados do que fazer em dias normais.

Pego apenas as sinopses do que é fútil. Deixo os capítulos para as coisas essências.

Leio as páginas de Sapiens, Harari assisto as séries diárias dos crepúsculos e – arrepios! – sinto os arrebóis matinais.

Descoberta

Descobrir em casa: os livros que ficaram por ler o filho, com a luz do dia o prazer e o cansaço do sofá da sala ao quarto, a cozinha.

Ver repetidas vezes a notícia do jornal repetidas as horas com celeumas e celulares de pandemia

A reclusão das paredes, portas pausa compulsória higiene e profilaxia

As pontes e hiatos distâncias e nós caronas e eremitas da infectologia

E nossos olhos esticados no horizonte com grande desejo que o Amanhã se remonte

em abraços de calor, carne e osso beijos e contágios de alegria.

Arquitetura das sombras

Ficar em casa acostumar-se com a arquitetura das sombras as paredes brancas sofá, cama geladeira e fogão com o hábito da mão a preguiça dos olhos toda mecânica e automação dos nossos corpos biônicos

com hastes de óculos lentes de contato pontes de safena celular e controle remoto como epiderme ossos músculos links de extensão.

Wesley Almeida

Feira de Santana-Ba

Revolução A liberdade não é uma estátua de mármore isolada e fria no alto de um pedestal. A liberdade é uma escalada na fronteira das iniquidades. É erguer-se sobre o cavalo de Baquedano e empunhar a bandeira do Povo sobre a estandarte do Estado, enquanto ardem nas chamas os disparates do metal e da força. A liberdade não aceita abusos, torturas, estupros, assassinatos. A liberdade é justa e democrática.

Geraldo Lavigne de Lemos São Paulo-SP

Reclusão Neste instante um fantasma micrológico Nos assusta tal qual monstro invencível, Afirmando que a vida é perecível Sem valor nosso orgulho imunológico Como Cila, do mundo mitológico, O corona é mutante e mais temível Nos ataca de maneira invisível Destruindo o poder imunológico. Nossa arma é ficarmos em reclusão Reforçando os poderes da união, Em que a lei da distância é garantida Ao ficarmos em casa venceremos E depois sem vírus nós tomaremos Muitos brindes em louvor á nossa vida.

Amanhã quero ver

Amanhã quero ver o fim do pranto, O sorrindo florindo sobre o rosto, A beleza lunar do mês de agosto, Fulgurando o viver em cada canto. Amanhã quero ver luz no recanto Onde teve a tristeza do desgosto, A incerteza que existe no sol posto Quando a vida depara no espanto. Quero ver as pessoas se abraçando, Todo mundo nas ruas caminhando... As crianças brincando em cada praça E nos bares, conversas sem pudor, Em que a vida transborde de fulgor, E o amor seja o brinde em cada taça.

Gilmar Leite Ferreira João Pessoa-Pb

Rasgos da pandemia

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16 Janeiro/Abril de 2020 FUXICO Nº 46

E quando pular da cama, Como diz o nordestino, Faça logo uma oração, Se apegando com o Divino, E volte a tomar cuidado, Pois o corona espalhado, É um verdadeiro assassino.

Ao encontrar seu amigo, Ao invés de apertar a mão, Diga: Que Deus te abençoe, Com saúde e proteção, Isso não é preconceito, Mas, é agir com respeito, Contra a contaminação.

Tem gente fazendo pouco, E dizendo que não importa, Eu escrevi este texto, E alertar foi a proposta, Sei, como historiador, Que a peste negra passou, Fazendo estrago na Europa.

E o momento atual, Tem muita coincidência, O sistema de saúde, Tem tentado providências, Sem resolver quase nada, Pois o vírus se propaga, Mais rápido que a ciência.

Fica aqui o meu conselho, É bom que tomem cuidados, Pois é melhor prevenir, Para não pagar dobrado, Saibam que infelizmente, Muitos perderam parentes, E já estão infectados.

Para concluir, eu peço, Ao nosso Deus de bondade, Que entre com providências, Pelo bem da humanidade, Proteja com o seu auxilio, Tirando o corona vírus, Da nossa sociedade...

pela janela vejo uma dezena de copas de árvores uma verdidão finita que apenas numa mirada estática os olhos logram alcançar de cá do alto lá uma luz douradamente suave e oblíqua ascende parte do verde ao passo que sombreia a parte outra lá confundo-me entre a luz cálida o frio das sombras o verde vivo a própria natureza presenteia com imagem-metáfora imagem-dor imagem-esperança imagem-lágrima-riso e penso sobre isso como quem em sonho a anima cria devaneio e derrete-se feito relógio no tempo deserto do dia de hoje da dor que escorre agora por entre os ponteiros tortuosos derretidos

Ninguém durma Cantavam as rosas Não todas Algumas Rasurando Versos odiosos E Abomináveis escrituras Lançadas no ar eivado Trajado dum véu soturno Enquanto Feiuras pronunciadas Rompiam silêncios longínquos Doídos Ninguém durma Cantavam as amantes As rosas obstinadas Ensaiavam um novo dia Apesar do tudo Apesar da Tenebrosa fala A brisa fenecida Dum discurso odioso Ninguém durma Apesar de você Trovam esperanças

Gilucci Augusto Salvador-Ba

Quando eu era menino, Bastante ouvia dizer, -Um dia o mundo acaba, E terá que acontecer. Mas, enquanto respirar, A gente tem que lutar, A fim de nos defender.

Por isso a população, Nos mais diversos sentidos, Tem enfrentado problemas, Tem lutado e resistido, E, para evitar desastres, É fazendo a nossa parte, Que temos sobrevivido.

E neste exato momento, Quero chamar a atenção, Sobre um vírus perigoso, Que ataca a população, Chamam ele de corona, E anda pagando carona, Grudado em nossas mãos.

Não pensem que é brincadeira, Pois já morreu muita gente, Se alguém for infectado, Transmite rapidamente, Deixa os vírus no trabalho, Na escola eles se espalham, Quanto mais entre os parentes.

Se puder ficar em casa, Não saia fazendo ronda, Nem faça igual muita gente, Que fica tirando onda, Para fugir do perigo, E se livrar do inimigo, É melhor que se esconda.

E neste caso, esconder-se, É também se prevenir, Lave as mãos com frequência, Ponha mascara ao sair, Não ligue se alguém comenta, E use o álcool setenta, Até quando for dormir.

Coronavírus: para evitar

Justino Nunes Santa Luz-Ba

Rasgos da pandemia

No rol da dicotomia Negro é raça, preto é cor. No império da hipocrisia Recrudesce o desamor. Num país entregue à “sorte” Se dá risada com a morte, Num espetáculo de horror.

De um lado a pandemia, Febre de um vírus letal; Do outro lado, a tirania Com um rastro mais fatal De mãos dadas com o fascismo, Ódio, violência, racismo E mortandade dial.

Apartheid e eugenia São eventos atuais. Separam, selecionam Com instrumentos cruciais.

Modelos ultrapassados Já testados, reprovados Voltam com forças brutais. Carne humana tendo preço De acordo com a cor, Seguindo a selvageria Que já causou tanta dor. As feridas do escravismo Abertas pelo racismo Envergonham o sangrador. Que sejamos conscientes Da nossa situação. Reclamemos com direito Nosso espaço e condição De ser tratados como gente, Já que somos igualmente Nesta e em qualquer nação.

Luciano Ferreira Coração de Maria-Ba