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5/19/2018 CorpoeConscincia-MerleauPontyCrticodeDescartes-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/corpo-e-consciencia-merleau-ponty-critico-de-descartes Unesp  UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Filosofia e Ciências, Câmpus de Marília – SP Eloísa Benvenutti de Andrade Corpo e Consciência: Merleau-Ponty, crítico de Descartes  Marília 2010

Corpo e Consciência - Merleau Ponty Crítico de Descartes

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  • Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    JLIO DE MESQUITA FILHO Faculdade de Filosofia e Cincias,

    Cmpus de Marlia SP

    Elosa Benvenutti de Andrade

    Corpo e Conscincia: Merleau-Ponty, crtico de Descartes

    Marlia 2010

  • Elosa Benvenutti de Andrade

    Corpo e Conscincia: Merleau-Ponty, crtico de Descartes

    Dissertao apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias UNESP/Marlia, para obteno do Ttulo de Mestre em Filosofia. rea de concentrao: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lgica

    Orientador: Prof. Dr. Jonas Gonalves Coelho

    Marlia 2010

  • Andrade, Elosa Benvenutti A553c Corpo e Conscincia: Merleau-Ponty, crtico de Descartes / Elosa Benvenutti Andrade . Marlia, 2010.

    143 f. ; 30 cm.

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Faculdade de Filosofia e Cincias, Universidade Estadual Paulista, 2010

    Bibliografia: f. 141-146 Orientador: Prof. Dr. Jonas Gonalves Coelho

    1. Maurice Merleau-Ponty . 2. Ren Descartes. 3. Interao causal mente/corpo. I. Elosa Benvenutti Andrade II. Corpo e Conscincia: Merleau-Ponty, crtico de Descartes.

    CDD 152.72

  • Elosa Benvenutti de Andrade

    Corpo e Conscincia: Merleau-Ponty, crtico de Descartes

    Dissertao apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias UNESP/Marlia, para obteno do Ttulo de Mestre em Filosofia.

    rea de concentrao: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lgica.

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Jonas Gonalves Coelho (Orientador) Universidade Estadual Paulista UNESP Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicao, Cmpus de Bauru Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Prof. Dr. Luiz Damon Santos Moutinho Universidade Federal do Paran UFPR Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Profa. Dra. Dbora Cristina Morato Pinto Universidade Federal de So Carlos UFSCar Departamento de Filosofia e Metodologia da Cincia Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Marlia, ____ de _________________ de 2010.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao meu orientador Prof. Dr. Jonas Gonalves Coelho, pelo

    apoio durante a trajetria acadmica do mestrado.

    Agradeo Universidade Estadual Paulista, e a todo corpo do

    Departamento e Programa de Ps-Graduao de Filosofia de Marlia.

    Agradeo CAPES pelo financiamento da minha pesquisa.

    Agradeo aos docentes Dra. Dbora Cristina Morato Pinto e Dr. Luiz

    Damon Santos Moutinho pela disponibilidade em compor a banca

    examinadora deste trabalho, cujas contribuies se fazem

    fundamentais para o meu desenvolvimento acadmico. Para mim foi

    um privilgio t-los tanto na qualificao como na defesa da

    dissertao.

    Agradeo a todos os meus colegas de curso e os interlocutores da

    comunidade universitria: Karynn Vieira Capil, Thiago Evandro

    Vieira da Silva, Rodrigo Rocha, Mrcio Ricardo de Carvalho, Nayara

    Borges, Sinomar Ferreira do Rio, Hlio Alexandre da Silva, Mrcio

    Girotti, Joo Morais, Juliana Moroni. Principalmente agradeo aos

    meus amigos Gisele Ap. Ribeiro Sanches e Herbert Barucci

    Ravagnani pela amizade e cumplicidade sempre; tambm agradeo

    Andr de Deus Berger pelo companheirismo no decorrer deste

    trabalho.

  • Mas tambm pode ocorrer que essas mesmas coisas, que suponho no existirem, j que me so desconhecidas, no sejam efetivamente diferentes de mim, que eu conheo? Nada sei a respeito; no o discuto atualmente, no posso dar meu juzo seno a coisas que me so conhecidas: reconheci que eu era, e procuro o que sou, eu que reconheci ser. (DESCARTES. In: Meditaes, 1973, p. 102)

    A percepo no uma cincia do mundo, no nem mesmo um ato, uma tomada de posio deliberada; ela o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela pressuposta por eles. O mundo no um objeto do qual possuo comigo a lei de constituio; ele o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepes explcitas. A verdade no habita apenas o "homem interior", ou, antes, no existe homem interior, o homem est no mundo, e no mundo que ele se conhece. (MERLEAU-PONTY. In: Fenomenologia da percepo, 2006, p. 6)

  • Resumo O objetivo do presente trabalho analisar o estatuto da conscincia e do corpo no pensamento de Maurice Merleau-Ponty, tomando como fio condutor a sua interpretao do pensamento de Descartes. Em especial, entendemos que um estudo das teses merleau-pontianas, que criticam e problematizam as concepes de conscincia aliceradas sobre a ontologia dualista de Descartes, pode contribuir para a formulao de uma nova abordagem da mente que no reproduza os mesmos problemas desta ontologia, mais especificamente aqueles relacionados interao causal mente/corpo. Desta forma, a inteno mostrar como Merleau-Ponty constri a leitura sobre o dualismo supracitado em sua obra, e como pretende objetar tal fundamento. Para tal, deter-nos-emos principalmente nas referncias a Descartes presentes na Fenomenologia da percepo e tambm no apresentado em A estrutura do comportamento propondo, nesta medida, subsdios para uma possvel leitura de O visvel e o invisvel. Palavras-chave: Maurice Merleau-Ponty. Ren Descartes. Ontologia. Interao causal mente/corpo. Conscincia. Corpo.

  • Rsum

    Lobjectif de cette tude est danalyser le statut de la conscience et du corps chez Merleau-Ponty en prenant comme guide pour son interprtation de la pense de Descartes. Nous comprenons surtout que ltude des thses merleaypontyenne, celles qui critiquent et problmatisent les conceptions de la conscience soutenues par lontologie dualiste de Descartes, peut contribuer une formulation dune nouvelle approche de lesprit qui ne reproduise pas les mmes problmes de cette ontologie, plus spcifiquement ceux qui ont du rapport avec linteraction causale esprit/corps. Lintention est de montrer comment Merleau-Ponty construit sa lecture sur le dualisme cit et comment lui, il fait son opposition ce fondement. Pour en faire nous nous arrterons principalement sur les references Descartes prsentes dans la Phnomnologie de la perception et dans La structure du comportement en proposant, dans cette mesure, des subsides pour une possible lecture de lvre Le visible et linvisible. Mots-cls: Maurice Merleau-Ponty. Rn Descartes. Ontology. interaction causale esprit/corps. Conscience. Corps.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO...............................................................................................................11

    1 O PROBLEMA DA UNIO CORPO E ALMA EM DESCARTES..............................19

    1.1 Apresentao ................................................................................................................20

    1.2 O cenrio da crtica merleau-pontiana a Descartes..........................................................21

    1.3 A obra de Descartes por Merleau-Ponty: sobre a unio corpo e alma .............................25

    1.4 A importncia de Descartes ............................................................................................29

    2 A FILOSOFIA CARTESIANA E A FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY.................36

    2.1 Apresentao ................................................................................................................37 2.2 As relaes entre alma e corpo em Descartes interpretadas na Estrutura do comportamento..........................................................................................................................38

    2.3 A dvida.........................................................................................................................41

    2.4 A estrutura inteligvel dos objetos percebidos em Descartes............................................46

    2.5 A imaginao, o esprito e o corpo..................................................................................51

    3 ESTRUTURA E FENOMENOLOGIA .........................................................................58

    3.1 Apresentao ................................................................................................................59

    3.2 A proposta fenomenolgica de Merleau-Ponty...............................................................60

    3.3 Construdo, constitudo e situado: mecanicismo versus estrutura ....................................68

    3.4 O sujeito naturado da sexta meditao................................................................................72

    3.5O sujeito da percepo.........................................................................................................82

    4 CORPO, REFLEXO, NATUREZA E MUNDO..........................................................88

    4.1 Apresentao ................................................................................................................89

    4.2 Corpo Prprio ................................................................................................................90

    4.3 Percepo e reflexo.................................................................................................... .103

    4.4 Ambiguidade e natureza em Descartes: a ontologia do objeto e do existente.................113

    4.5 Mundo percebido .........................................................................................................119

    5 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................126

  • REFERNCIAS...............................................................................................................140

  • 11

    1 Introduo

    Ren Descartes (1596-1650) foi muito bem sucedido ao inaugurar, nas palavras de

    Granger1, uma filosofia da conscincia que deixaria algumas tarefas e dilemas importantes

    aos que o seguiram. Neste itinerrio encontra-se a obra de Maurice Merleau-Ponty (1908-

    1961), na qual possvel identificarmos tanto referncias diretas quanto indiretas obra de

    Descartes. O interesse por Descartes acompanha Merleau-Ponty em todo seu trajeto. Desde A

    Estrutura do comportamento (1942/2006), o filsofo j indicava a importncia que conferia

    ao pensamento cartesiano, e este aparece tambm j na primeira nota de O Visvel e o invisvel

    (1964/1971), Reflexo sobre as ontologias de Descartes o estrabismo da ontologia

    ocidental2. Nossa proposta mostrar e analisar tais referncias, detendo-nos principalmente

    nas presentes em Fenomenologia da percepo (1945/2006), atentando ao apresentado em A

    estrutura do comportamento e apontando apenas subsdios para a leitura de O Visvel e o

    invisvel. No entraremos, contudo, no mrito de analisar pormenorizadamente esta ltima

    obra.

    Para a realizao deste intento, propomos como fio condutor o dualismo substancial

    mente e corpo cartesiano, uma vez que por meio da anlise de tal dualismo podemos

    contrapor as diferentes ontologias que esto em questo: de um lado, Descartes e a admisso

    da existncia de um esprito e de um corpo no processo de aquisio do conhecimento das

    coisas do mundo, sendo o esprito o responsvel pelas representaes mentais, e as sensaes,

    a expresso da natureza composta; de outro, Merleau-Ponty e a admisso da imerso do

    sujeito perceptivo em um mundo prtico, onde a experincia originria no acontece pela

    elaborao de uma representao mental consciente, mas pelo comportamento, deslocando o

    carter intencional da psicologia cartesiana para o corpo em situao.

    No terceiro captulo de Conversas (1948/2004), Merleau-Ponty objeta contra as

    sensaes da psicologia clssica do tipo cartesiana escrevendo que todas as coisas esto

    revestidas de caractersticas humanas [...] e, inversamente, vivem em ns como tantos

    emblemas das condutas que amamos ou detestamos. O homem est investido nas coisas e as

    1 DESCARTES ,R. Discurso do mtodo, Meditaes, Objees e respostas, As paixes da alma, Cartas. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. So Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 1 2 MERLEAU-PONTY, 1971, p. 164.

  • 12

    coisas esto investidas nele3. A diferena entre sensao e percepo, entre Descartes e

    Merleau-Ponty, recair justamente nisso: no modelo merleau-pontiano um objeto j contm

    significado no campo da experincia que abertura para o mundo, e no requer a

    interpretao intelectual como no modelo cartesiano. Para Merleau-Ponty o mundo no

    precisa ser decodificado, ele no est mergulhado em obscuridades, ao contrrio, a obra

    merleau-pontiana parece estabelecer em seu conjunto a tentativa do encontro do ser com o

    mundo no mais como o encontro com um objeto, mas, sim, encontro com uma dimenso de

    ser que lhe visvel e mais bruta que os prprios atos e operaes do clssico ser-sujeito. Na

    obra que nos propomos pesquisar, a saber, a Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty

    questionar a dificuldade que o pensamento objetivo, do tipo empirista ingls, e

    intelectualista, do tipo cartesiano e kantiano, teve com a indeterminao e ambiguidade da

    experincia imediata. Para tanto, o filsofo propor, em contraste a este objetivismo e

    intelectualismo, uma anlise do corpo como expresso, tendo a percepo e a fala como

    atividades essenciais a serem analisadas por esta via, uma vez que para ele a expresso

    compreendida partindo da comunicao e da relao de alteridade.

    A ontologia de Descartes, consistindo no dualismo substancial e tendo como inteno

    estabelecer um fundamento indubitvel para o conhecimento cientfico, fundou um modelo

    ontolgico oriundo de uma epistemologia capaz de fundamentar as razes do conhecimento

    pela lgica e seus conceitos, como, por exemplo, o conceito de causalidade. Porm, para

    Merleau-Ponty, embora essa forma de organizar o mundo sensvel tivesse desprezado a

    riqueza dos fenmenos4, a obra cartesiana traz consigo pressupostos fecundos e digna de

    elogio. Se por um lado, a ideia de representao como aparncias intermedirias5, pelas

    quais os sujeitos se referem ao mundo no modelo clssico, foi contraposta por Merleau-Ponty

    ideia dos fenmenos como sendo uma apresentao do prprio mundo em toda a sua

    complexidade6; sobre Descartes, em A Prosa do Mundo (1969/2002), Merleau-Ponty escreve:

    Descartes uma dessas instituies que se esboam na histria das ideias antes de nela

    3 Idem, 2004, p. 24. 4 Ibid., p. 72. 5 FERRAZ, 2008, p. 197. 6 Ibid., p.197, grifo do autor.

  • 13

    aparecer em pessoa, como o sol anunciando-se antes de revelar de repente uma paisagem

    renovada7. Nesta ocasio, o filsofo argumenta que as ideias de Descartes no cessam de se

    acrescentar e transformar a si prprias suscitando coisas novas mas que no poderiam

    surgir sem elas, ilustrando o prprio movimento realizado no conjunto de seu pensamento:

    Descartes Descartes, mas tambm tudo o que posteriormente nos parece t-lo anunciado,

    ao qual ele deu sentido e realidade histrica e tambm tudo o que derivou dele8.

    Merleau-Ponty parte de uma premissa oposta cartesiana, no que tange ao

    entendimento das coisas do mundo: enquanto Descartes props que a evidncia das coisas do

    mundo poderia ser revogada pelo exerccio da dvida metdica praticada por um ser pensante

    que reconheceu pelo pensamento que ele, de fato, existe como fora apresentado em suas

    Meditaes (1641/1973), Merleau-Ponty indica que a comunho entre sujeito perceptivo e

    objeto percebido retoma algo absolutamente annimo, veremos que o mundo est j

    constitudo, mas tambm no est nunca completamente constitudo9. Contudo, Merleau-

    Ponty elogia Descartes e seu exerccio crtico contra o ceticismo e sua crena nas coisas

    extramentais.

    Na Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty argumenta que o corpo esta

    possibilidade, de ser existncia e de demitir-se dela, de fazer-se annima e passiva10. Isto

    porque, imbricado ao corpo, est a reflexo, e esta no ser, para Merleau-Ponty, o

    pensamento de ver, pois a viso funda o pensamento, uma vez que nossa relao com o

    mundo percebido algo absolutamente insupervel. Portanto, a exterioridade radical do

    mundo cartesiano ser contraposta pelo filsofo evidncia do mundo sempre ali. Para

    entender melhor estas questes e suas bases epistemolgicas e ontolgicas, propomos nos ater

    principalmente leitura da Fenomenologia da percepo, mas tambm recorreremos a A

    prosa do mundo, a Conversas e a A natureza (alm de A estrutura do comportamento)

    demonstrando de forma temtica (pela crtica de Merleau-Ponty a Descartes) estas e outras

    contraposies propostas por Merleau-Ponty nestas obras. Assim, adotaremos neste trabalho

    uma avaliao do prprio Merleau-Ponty sobre a obra cartesiana: as decises irrevogveis de

    7 MERLEAU-PONTY, 2002, p. 120. 8 Ibid., p. 121. 9 Ibid., p. 608. 10 MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 227.

  • 14

    Descartes se colocam um limite que nenhum futuro poder arrancar, e definem, acreditamos,

    um absoluto prprio de Descartes que nenhuma metamorfose pode mudar11. Assim,

    tentaremos focar em Descartes, considerando principalmente como fio condutor sua ontologia

    substancialista e, portanto, o trplice alma, corpo e Deus.

    Entendendo a Fenomenologia da percepo como uma obra que busca propor que o

    sentido das experincias fenomnicas no ordenado pelas capacidades cognitivo-

    conceituais dos sujeitos, mas pelas habilidades perceptivo-motoras do corpo prprio12,

    analisaremos a crtica de Merleau-Ponty ontologia de Descartes, focando a re-fundao, em

    sua ltima ontologia, da ideia de ser como um ser bruto, isto , a regio do sensvel que

    antecede a representao do mundo e, nesta medida, parte indivisvel de uma ontologia

    que o faz aparecer como signo e significado, conscincia e natureza, corpo e mundo.

    Os estudiosos do pensamento de Merleau-Ponty apontam outros grandes nomes da

    Histria da Filosofia, alm de Descartes, como ponto passivo de influncia e dilogo

    constante no conjunto da obra merleau-pontiana, tais como Kant (1724-1804), Husserl (1859-

    1938) e Heidegger (1889-1976). Sobre este ltimo, a ideia que Merleau-Ponty tenha se

    voltado a sua obra precisamente s suas consideraes sobre o ser de maneira mais

    aprofundada em seus ltimos anos de vida, com o intuito de fundamentar sua ontologia do ser

    bruto. Esta pode ser constatada em seu escrito pstumo O Visvel e o Invisvel13, em que nos

    apresentada uma concepo de ser sensvel ao mundo. Sobre Husserl e sua Fenomenologia,

    ntida a influncia e discusso explcita durante toda sua vida, sendo uma ruptura de fato

    defendida apenas na obra pstuma citada acima. Entretanto, gostaramos apenas de apontar

    que nesta primeira fase a inteno de Merleau-Ponty ser revelar uma subjetividade que nos

    interpela, para enfim, em sua ltima fase, dizer de fato sobre o sentido do mundo e a natureza

    dele. E, para dizer o que tal subjetividade que contrapomos sua ontologia ontologia de

    Descartes e suas objees s ambiguidades e contingncias do mundo, que justificam o status

    de sua ideia de pensamento.

    Dividiremos o trabalho em 4 captulos articulados da seguinte maneira:

    11 Idem, 2002, p. 124, grifo do autor, adaptao nossa. 12 FERRAZ, 2008, p. 193. 13 SCHMIDT, J. Maurice Merleau-Ponty: between phenomeology and structuralism. 1985, p.14..

  • 15

    No primeiro captulo, exporemos a leitura de Merleau-Ponty sobre a unio corpo e

    alma em Descartes, a partir do que foi exposto na segunda lio do curso ministrado pelo

    filsofo na cole Normale Suprieure entre os anos de 1947 e 1948, e que trata da unio da

    alma e do corpo em Descartes, publicada no texto intitulado L'union de l'me et du corps chez

    Malebranche, Biran e Bergson, publicado em 1978. Veremos que este texto mostra os pontos

    fundamentais para a forma como o autor realiza sua leitura sobre Descartes e critica a

    ontologia do mesmo. A partir disso, a inteno entender o sentido que fundamenta a

    proposta fenomenolgica merleau-pontiana. Conforme apontamento de Merleau-Ponty, na

    segunda lio do livro, a obra de Descartes apresenta um movimento que de extremo tesmo

    se une ao atesmo prtico, j que a verdade divina, uma vez reconhecida, nos dispensa de

    voltar a Deus14.

    Na sexta meditao, Descartes estabelece a unio da alma e do corpo como um

    pensamento confuso, ento Merleau-Ponty pergunta: [...] como pude descobrir o cogito? E se

    descobri o cogito, como posso ser o sujeito naturado da Sexta Meditao?15. Merleau-Ponty

    argumenta que nesta meditao Descartes fala que as inclinaes naturais tm a sua verdade,

    j que Deus no enganador. Mas se Descartes adota esta dupla atitude para Deus e para o

    mundo, pergunta Merleau-Ponty, ele pode sustent-la?16 O problema identificado por

    Merleau-Ponty na obra de Descartes e originrio das confuses, que permeiam a noo de

    mistura ntima e unio entre alma e corpo, significa o seguinte: se levarmos a srio os

    esforos da primeira meditao, no somos ns levados a considerar a sexta meditao como

    uma mera aparncia? E, inversamente, se levarmos a srio a sexta meditao, como os

    esforos da primeira foram possveis?17 Diante disso, ser a res cogitans ou o homem o sujeito

    da sexta meditao?

    No segundo e terceiro captulos apresentaremos a leitura crtica desenvolvida por

    Merleau-Ponty sobre Descartes considerando o exposto em suas Meditaes para depois tratar

    da ambiguidade presente nesta filosofia no ltimo captulo. Apontaremos como Merleau-

    Ponty realiza sua leitura sobre a ontologia substancial de Descartes e como esta leitura est

    14 MERLEAU-PONTY, 2002, p. 16.

    15 Ibid, p. 16.

    16Ibid, p. 15.

    17Ibid, p. 16.

  • 16

    relacionada com sua proposta de conciliao entre psicolgico e fisiolgico. Veremos como

    emergem conceitos como os de situao, percepo e constituio. Analisaremos, portanto, a

    obra Fenomenologia da percepo junto com as relaes entre a alma e o corpo interpretadas

    em Estrutura do comportamento, uma vez que a proposta merleau-pontiana configura-se

    como um deslocamento da intencionalidade antes posta na ideia de conscincia para uma

    intencionalidade no corpo. Assim, veremos como Merleau-Ponty inaugura a perspectiva do

    ser no mundo.

    O quarto captulo ser dedicado questo da reflexo e do corpo, atravs do mundo e

    da natureza. Discutiremos como Merleau-Ponty fundamenta sua ontologia pela noo de

    mundo percebido juntamente com os conceitos de situao, estrutura, percepo, pensamento

    e conscincia apresentados. Veremos que nesta perspectiva a conscincia encarnada, que

    possui como condio de existncia (ou de ser no mundo) a de existir como corpo, trata o

    indivduo como espessura enquanto passividade no sensvel e o significado enquanto objeto

    como atividade do percebido. Analisaremos ento a ideia de corpo elaborada por Merleau-

    Ponty, atravs de sua anlise da natureza e do mundo percebido, que nos traz tambm sua

    crtica ao objetivismo cientfico e sua proposta sobre pensamento e percepo; uma vez que a

    proposta merleau-pontiana configura-se como um deslocamento da intencionalidade, antes

    posta na ideia de conscincia, para uma intencionalidade no corpo que, desde sempre, se

    comunica. Veremos como Merleau-Ponty transpe a noo constituinte para a instituinte. A

    inteno analisar a proposta de um sensvel envolvido sob um arranjo que pura

    contingncia e liberdade. Examinaremos, portanto, a terceira parte da Fenomenologia da

    percepo.

    Por fim, apresentaremos uma concluso final e algumas consideraes, partindo do

    mundo vivido como indcio original para rever a ontologia de Descartes. Valorizaremos

    tambm o sentido existencial que a primeira fase de Merleau-Ponty concede ao pensamento

    transcendental. Pelas objees de Merleau-Ponty a res cogitans e o internalismo psquico

    cartesiano, poderemos apontar que o filsofo contemporneo foi muito bem sucedido em sua

    tentativa de livrar o sujeito da incomunicabilidade com o mundo exterior, fazendo do corpo

    abertura para o mundo. Observaremos que a autoridade concedida por Descartes ao esprito

    enuncia-se diferente na proposta merleau-pontiana, a saber, como sendo uma constante

    transformao real ou mesmo um nada, mas em hiptese alguma ideia ou representao.

    Isto porque o esprito merleau-pontiano incapaz de repousar sobre si mesmo, uma vez que

    se apresenta como unidade. A conscincia para Merleau-Ponty ser conscincia perceptiva,

    sempre de alguma coisa ali, um acontecimento corporal: a conscincia o ser para coisa

  • 17

    por intermdio do corpo18. Segundo Merleau-Ponty, originariamente a conscincia no um

    eu penso, mas um eu posso19, e, dessa maneira, ela no est dividida entre uma produo

    cultural e histrica, por um lado, e, natural, do outro, antes conjuga ambas as situaes.

    Redefinir o paradigma da conscincia em modelo clssico ser o desafio de Merleau-

    Ponty. Ao observamos a forma como o filsofo insere seu conceito de reflexo radical como

    alternativa ao conceito de reflexo idealista, cabe a nossa investigao dizer em que medida

    este novo conceito no retoma o propsito do modelo clssico que discuti, afinal, como a

    perspectiva merleau-pontiana supera de fato os problemas oriundos do cartesianismo.

    Em sua obra pstuma O Visvel e o invisvel, o filsofo sugere que a modulao

    moderna das coisas do mundo cria uma maneira de reconhecimento que poderia ser traduzida

    sensivelmente. Desse modo, Merleau-Ponty caminhar para a concepo de uma conscincia

    perceptiva como experincia natural de um corpo carne. Pela via de Merleau-Ponty, o

    sensvel ser pura exterioridade, um visvel que nos revela uma unidade, que no se reduz

    natureza composta proposta outrora por Descartes. Neste ltimo, a sensao era tida como

    uma reao motora que requeria uma interpretao intelectual. Para Merleau-Ponty, tal

    perspectiva internalista e dicotmica construiu certos paradoxos que geraram uma crena

    ilusria sobre o papel dos sentimentos, das experincias e das relaes entre os seres.

    A relevncia deste estudo emerge ao considerarmos que, ao invs de separar e dividir

    as possveis funes mentais, muitos filsofos contemporneos se perguntam sobre a

    possibilidade destas funes mentais formarem uma rede integrada de ao. Sendo assim, o

    ponto de partida no seria mais o dicotmico que responde ao problema da causalidade

    entre mente e corpo mas o de um todo integrado onde o efeito de uma inteno prvia

    seria responsvel por sua causa, privilegiando deste modo o agir no mundo.

    Nosso objetivo ao apresentarmos a leitura que Merleau-Ponty realiza de Descartes

    contextualizar algumas perspectivas importantes sobre a cognio, no sentido de questionar a

    estrutura corprea e suas aptides cognitivas como mutuamente independentes em maior ou

    menor grau. Assim, pretendemos ressaltar a relevncia de uma reviso da dade mente-corpo

    nas investigaes filosficas, e apresentar em que posio Merleau-Ponty se encontra em

    18 MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 193.

    19Ibid., p. 192.

  • 18

    relao s ditas filosofias da conscincia e seus pressupostos, alm do prprio dualismo, ou

    seja, como trabalha a relao psquico/fsico.

  • 19

    I

    O problema da unio corpo e alma, em Descartes,

    segundo Merleau-Ponty

    Descartes no sustenta, portanto, nada que se possa pensar em unio. Ele no tem nada a falar sobre isso. As noes que ele introduz a este respeito, so mticas, no sentido platnico da palavra: destinada a lembrar o ouvinte que a anlise filosfica no esgota a experincia. (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 15, traduo nossa)

  • 20

    1.1 Apresentao

    Neste primeiro captulo, trataremos da leitura de Merleau-Ponty sobre a unio corpo

    e alma em Descartes, partindo do que foi exposto na segunda lio do curso ministrado pelo

    filsofo na cole Normale Suprieure entre os anos de 1947 e 1948. Esta lio analisa a

    questo da unio da alma e do corpo em Descartes e se encontra no livro intitulado L'union de

    l'me et du corps chez Malebranche, Biran e Bergson, publicado em 1978. Apontaremos que

    os pilares da tal lio se apresentam como pontos-chave para a forma como o autor realiza sua

    leitura sobre Descartes e fundamenta sua proposta fenomenolgica. Faremos isso para que

    seja possvel, adiante, apresentar como emergem conceitos como os de situao, estrutura e

    constituio. Veremos primeiramente o cenrio merleau-pontiano e sua recepo da ontologia

    cartesiana para depois, no segundo captulo, analisarmos a crtica fundamental de Merleau-

    Ponty sobre as relaes entre alma e corpo, que recairo sobre a premissa de que a mistura

    entre ns e o mundo precede a reflexo.

  • 21

    1.2 O cenrio da crtica merleau-pontiana a Descartes

    Mais do que a importncia epistemolgica do projeto cartesiano para a filosofia

    moderna (e o que dela se segue), so os resqucios ontolgicos de tal empreendimento que

    inspiram e ressoam por toda a Filosofia Contempornea, fazendo-a querer procurar

    novamente o fundamento das coisas do mundo. Sistematicamente a obra cartesiana a

    protagonista deste debate: ora Descartes atacado por seu dualismo substancial, ora elogiado

    pela consistncia epistemolgica de seu duradouro edifcio do conhecimento. Para Merleau-

    Ponty, Descartes uma dessas instituies que se esboam na histria das ideias antes de

    nela aparecer em pessoa20. Neste sentido, iniciaremos nossa investigao apresentando um

    dos inmeros comentrios de Merleau-Ponty sobre Descartes na Fenomenologia da

    Percepo:

    [...] a palavra Cogito, a palavra sum, podem muito bem ter um sentido emprico e estatstico; verdade que elas no visam diretamente a minha experincia e fundam um pensamento annimo e geral, mas eu no lhes reconheceria nenhum sentido, nem mesmo derivado e inautntico, e no poderia nem mesmo ler o texto de Descartes, se eu no estivesse, antes de toda fala, em contato com minha prpria vida e meu prprio pensamento, e se o Cogito falado no encontrasse em mim um Cogito tcito. Era esse Cogito silencioso que Descartes visava ao escrever as Meditaes21.

    Aqui podemos enunciar a forma como Merleau-Ponty critica Descartes, dizendo que

    esta, sobretudo, alinha-se quase sempre a um elogio ao filsofo moderno. Como nos aponta

    Saint-Aubert, dessa maneira Merleau-Ponty far uma leitura mitolgica das Meditaes

    Cartesianas, na tentativa de ressaltar o lao entre a natureza e a unidade prpria do homem

    que foi avistado por Descartes e se manteve no [...] index do mistrio impenetrvel22,

    quando outrora Descartes fundou este lao em Deus e nos dispensou assim tanto de viver

    suas relaes tumultuosas quanto de compreender por ns mesmos sua profunda unidade23.

    Desse modo, nos parece que Merleau-Ponty l Descartes como Alqui quando este,

    20 MERLEAU-PONTY, 2002, p. 120.

    21 Idem, 2006b, p. 539, grifo e aspas do autor.

    22 SAINT-AUBERT, 2005, p. 127.

    23 Ibid. p. 241.

  • 22

    escrevendo sobre a prova da existncia de Deus nas Meditaes, aponta: O objetivo das

    Meditaes desprender o esprito dos sentidos, abducere mentem a sensibus. A via que elas

    nos propem no somente a de um encadeamento de razes, mas a de um itinerrio

    vivido.24. Isso quer dizer que a prpria filosofia de Descartes se apresenta tanto como uma

    ordem de razes como um itinerrio espiritual tendo, desse modo, espao suficiente para

    oscilar entre um extremo tesmo e um atesmo prtico. Tal oscilao, acreditamos,

    verificvel na passagem da segunda para a sexta meditao cartesiana, que evidenciaremos ao

    longo deste trabalho.

    De acordo com a leitura merleau-pontiana, a brilhante epistemologia de Descartes

    um percurso que deve ser considerado por suas implicaes ao estatuto ontolgico do ser,

    tanto em Filosofia quanto no cenrio poltico e cientfico da contemporaneidade, uma vez que

    esta trata de uma reflexo oriunda de uma experincia puramente humana e, dessa maneira,

    capaz de auxiliar no empreendimento que caro para Merleau-Ponty, a saber, confeccionar

    uma filosofia da identidade e da relao25. Isso significaria buscar, como dir Merleau-Ponty

    em sua ltima ontologia, a exterioridade conhecida no envolvimento das coisas medida que

    identifico tanto a dependncia como a autonomia destas mesmas coisas, decifrando, assim, o

    enigma da relao ou ligao das coisas26.

    Com isso, o que podemos dizer que sempre o que estar por detrs das palavras de

    Merleau-Ponty, de sua epistemologia, pressupor a necessidade de um debate ontolgico, uma

    vez que o que est em jogo, segundo sua leitura, a reforma do pensamento da instituio

    Descartes, ou seja, da tradio intelectualista e transcendental que segue desde a modernidade.

    Merleau-Ponty colocar que toda questo compreender bem o 'Cogito tcito', aquele que

    teria sido visualizado por Descartes antes do enlace total com Deus, e [...] no fazer da

    linguagem um produto da conscincia, sob o pretexto de que a conscincia no um produto

    da linguagem27, a tarefa criticar Descartes privilegiando o uso que este autor faz da

    experincia vivida, ou, uso da vida, na confeco de sua filosofia. Para que possamos tratar

    pormenorizadamente da complexidade destas questes atravs da anlise conjunta das

    24 ALQUI, 1987, p. 42, grifo do autor.

    25 SAINT-AUBERT, 2005, p. 241.

    26 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 35.

    27 Idem, 2006b, p. 539, grifo do autor.

  • 23

    meditaes cartesianas e a proposta mesma merleau-pontiana nos captulos seguintes,

    vejamos a primeira referncia encontrada sobre este contexto em sua obra Fenomenologia da

    Percepo.

    No prefcio da obra apontada, Merleau-Ponty, ao argumentar sobre seu

    empreendimento fenomenolgico, apresenta sua interpretao sobre os resultados alcanados

    pelas filosofias de Descartes e Kant:

    Descartes e sobretudo Kant desligaram o sujeito ou a conscincia, fazendo ver que eu no poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente eu no me experimentasse existente no ato de apreend-la; eles fizeram aparecer conscincia, a absoluta certeza de mim para mim, como a condio sem a qual no haveria absolutamente nada, e o ato de ligao como o fundamento do ligado. Sem dvida, o ato de ligao no nada sem o espetculo do mundo que ele liga; a unidade da conscincia, em Kant, exatamente contempornea da unidade do mundo e, em Descartes, a dvida metdica no nos faz perder nada, visto que o mundo inteiro, pelo menos a ttulo de experincia nossa, reintegrado ao Cogito, certo com ele, e apenas afetado pelo ndice pensamento de [...]28.

    Para Merleau-Ponty o real o campo originrio da constituio dos fenmenos que

    corresponde e tal campo j havia sido avistado nas filosofias citadas, no entanto, fora

    negligenciado pela assimilao da percepo s snteses que so da ordem do juzo, dos atos

    ou da predicao29. Contra isso, Merleau-Ponty sustenta que o real deve ser descrito, no

    construdo ou constitudo30. Concordar com Descartes, dizendo que possuo certeza do meu

    pensamento de ver e no da coisa vista, e desta maneira separar ato e correlato natural

    reduzindo o mundo ao ndice pensamento de..., subestimar o mundo sensvel31. Na

    filosofia de Merleau-Ponty, ver corresponder a certa proposta do mundo, adotando certa

    maneira de existir, ou seja, estar em comunho com o objeto do mundo, supondo disso a

    abertura ao real e ao mundo32. Vejamos o contexto de tal afirmao.

    28 Ibid., p. 4, grifo do autor.

    29 Ibid., p. 5.

    30 Ibid., p. 5.

    31 MOUTINHO, 2006, p. 223.

    32 Ibid., p. 223.

  • 24

    No cenrio fenomenolgico merleau-pontiano, podemos dizer que, o que deve ser

    considerado uma velha interrogao em filosofia: como possvel o conhecimento? Como

    efetivamente a subjetividade torna-se transcendental? Esta anlise, Merleau-Ponty far atravs

    da reduo fenomenolgica, ou, o retorno s coisas mesmas na inteno de compreender o

    mundo pr-reflexivo originrio das coisas a fim de remontar a este mundo anterior ao

    conhecimento, do qual toda determinao cientfica abstrata e dependente33. Em outras

    palavras, o que Merleau-Ponty est se propondo enfrentar uma questo que se apresenta na

    ordem do dia para a contemporaneidade: a representao versus mundo, ou, como dito antes,

    como uma subjetividade se desloca como transcendncia. O interesse do filsofo trabalhar

    a premissa de que o existente est no mundo em detrimento da mxima, do paradigma a ser

    confrontado, a saber, cartesiano, que reserva a ele conhecer o mundo. A importncia de

    destacar a categoria da existncia aqui que ela se apresenta como o cerne da teortica

    metafsica no que se refere unidade do mundo percebido, e permeia as questes da alma e

    do corpo, do fisiolgico e do psicolgico, do em si e para si tratadas por Merleau-Ponty; e,

    justamente neste ponto que encontramos pela primeira vez Descartes.

    O problema de Merleau-Ponty o que fora fundamentado outrora ao longo das

    Meditaes de Descartes: a unio entre alma e corpo donde aparentemente se estabeleceu o

    discurso da modernidade. Para ele, a tarefa agora reler e, se for o caso, refutar a sexta

    meditao cartesiana para fundamentar a importncia primordial da experincia perceptiva.

    Isto significa redefinir o estatuto da mente e do corpo. Para tanto, a retomada da questo da

    mistura entre alma e corpo, em Descartes, ser feita atravs da anlise da existncia como a

    juno entre psicolgico e fisiolgico como veremos em A estrutura do comportamento. A

    existncia merleau-pontiana ser o momento da unio ntima outrora relatada por Descartes e

    sua ontologia substancialista. Entretanto, no pensamento de Merleau-Ponty, tal ontologia ser

    intencionalmente tratada de maneira mais comunicativa na tentativa de extrair o que de mais

    original e fecundo nela existe por exemplo o uso da vida de que falamos , como

    verificaremos na Fenomenologia da percepo.

    Por este empreendimento, Merleau-Ponty buscar a motricidade originria do corpo

    como alternativa ao corpo mecnico cartesiano, promovendo uma reabilitao ontolgica do

    mesmo. Para tanto, propor a reintegrao do ser atravs de uma lgica essencialista, uma vez

    33 MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 3.

  • 25

    que, como apontamos acima, o real no deve ser construdo, nem constitudo, pois, ver ver

    alguma coisa, atingir a coisa mesma do mundo natural34, mundo este avistado por

    Descartes na sexta meditao como mostraremos adiante. Entretanto, conforme apontamento

    da Estrutura do Comportamento, Descartes partiu de certo pressuposto da existncia que no

    o de uma presena originria da natureza, que no integra significao e existncia na

    prpria experincia humana35. O que faltou, segundo Merleau-Ponty, um pressuposto

    filosfico que fundamente o mundo como algo sempre ali antes da reflexo; que considere

    o encarnado36. Desse modo, retomaremos tambm em nossa pesquisa o percurso de

    algumas das meditaes para que possamos esclarecer, de fato, o que fora fixado at agora.

    1.3 A obra de Descartes por Merleau-Ponty: sobre a unio corpo e alma

    Os passos dados nas Meditaes e fixados tambm no Discurso do Mtodo, de

    Descartes, carregariam, segundo Merleau-Ponty, um problema frtil, de tal modo que

    Descartes teria avistado a instituio do que ele chamar, em sua ltima, ontologia de carne,

    isto no momento em que, na sexta meditao, a res cogitans vive no mundo aps t-lo

    metodicamente explorado37. Para Merleau-Ponty, a carne este ciclo completo sensvel de

    imbricao entre corpo e mundo, no o corpo objetivo e tampouco o corpo pensado pela

    alma38. De acordo com Saint-Aubert, como j foi apontado, Merleau-Ponty identifica que o

    que foi avistado por Descartes se manteve filosoficamente no [...] index do mistrio

    impenetrvel39, e foi justamente na soluo deste mistrio que Merleau-Ponty trabalhou

    exaustivamente em seus escritos, e figurou, de maneira original em sua ltima ontologia, com

    34 MOUTINHO, 2006, p. 224.

    35 MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 221.

    36 Idem, 2006b, p. 1.

    37 Idem, 2004, pp. 320-321.

    38 Ibid., pp. 307-308.

    39 SAINT-AUBERT, 2005, p. 127.

  • 26

    a ideia de quiasma como um tipo de reflexo filosfica capaz de pensar a carne e seus modos

    de expresso40.

    Para Saint-Aubert, a importncia do esclarecimento dos dualismos oriundos da

    questo clssica sobre a unio da alma com o corpo, na obra de Merleau-Ponty, denota a

    complexidade passiva-ativa de nossa instituio e de nossa vida expressiva41. Este

    comentador nos aponta que ser pela contestao dos dualismos antropolgicos que Merleau-

    Ponty conduzir a problemtica da encarnao, que trabalharemos no decorrer desta

    dissertao, para a da carne 42. Fazemos isto, pois acreditamos que tal percurso resultar em

    subsdios para a elucidao da figura do quiasma apresentada na ltima ontologia de Merleau-

    Ponty. Portanto, iniciaremos a leitura merleau-pontiana sobre a unio corpo e alma em

    Descartes atravs da segunda lio do curso ministrado por Merleau-Ponty na cole Normale

    Suprieure intitulada L'union de l'me et du corps chez Descartes.

    O presente texto nos mostra que Merleau-Ponty sustenta que a unio da alma com o

    corpo na obra de Descartes no apenas uma mera dificuldade especulativa, como

    frequentemente se pode supor, mas traz com ela o problema da existncia do corpo humano43.

    Ao longo desta lio, Merleau-Ponty retoma vrios escritos de Descartes, tais como a Carta a

    Elizabeth, de 28 de junho de 1643, e a Carta a Arnauld, de 29 de julho de 1648, propondo

    analisar profundamente a legitimidade do que fora exposto na sexta meditao cartesiana, a

    saber, precisamente a mistura ntima da alma com o corpo luz do confronto com a primeira

    meditao cartesiana, ocasio onde so descartadas as experincias empricas pela adoo

    metodolgica da dvida metdica voluntria, radical e hiperblica.

    Na sexta meditao, lembra Merleau-Porty, a unio nos ensinada por sentimentos

    como a fome e a sede, que provm da mistura do esprito com o corpo, e, todos esses

    sentimentos no so nada alm de certas maneiras confusas de pensar44. Contudo,

    argumenta Merleau-Ponty, em 1645 Descartes escreve o seguinte a P. Mesland:

    40 Ibid., p. 160.

    41 Ibid., p. 18.

    42 Ibid., p. 18.

    43 MERLEAU-PONTY, 2002, p. 13.

    44 Ibid., p. 13, grifo do autor.

  • 27

    Como no deixa de ser muito verdadeiro que tenho o mesmo corpo que tive h dez anos, embora a matria do qual ele composto tenha mudado, porque a unidade numrica do corpo de um homem no depende da sua matria, mas da sua forma que a alma45.

    Sobre isso, Merleau-Ponty aponta que o corpo no para Descartes uma massa de

    matria, mas uma totalidade, no no sentido espinosista, mas como uma frmula constante, ou

    seja, existe a continuidade de uma funo na obra de Descartes donde sobressai que tal autor

    devia sim se colocar o problema do corpo vivente, confundido e misturado com a alma46. Para

    salientar isso Merleau-Ponty nos prope que recordemos trs textos: a carta de Descartes a

    Hyperaspistes, escrita em agosto de 1641; a carta a Elizabeth, de 28 de junho de 1643, e a

    carta a Arnauld, de 29 de julho de 1648.

    Analisando a primeira carta, Merleau-Ponty enfatiza que Descartes diz que se ns

    entendemos por corporal tudo o que pode afetar de alguma maneira o corpo, neste sentido o

    esprito tambm dever ser dito corporal47. Na segunda carta, Merleau-Ponty lembra que

    Descartes prope pensar a unio da alma e do corpo luz da fsica escolstica e argumenta

    que por esta a unio ainda continua impensvel, a menos que se atribua extenso um tipo de

    materialidade. Na terceira carta, Merleau-Ponty explica que Descartes reafirma o que foi dito

    na primeira, escrevendo que se por corporal ns entendemos tudo aquilo que pertence ao

    corpo, ainda que seja de uma outra natureza, a alma tambm poder ser dita corporal, uma vez

    considerado que ela prpria a se unir ao corpo48.

    Diante disso, Merleau-Ponty argumenta que, considerando tais escritos, observamos

    que eles esto sempre acompanhados de restries: cada vez que Descartes afirma em um

    determinado sentido a corporeidade da alma, ele acrescenta tambm que a alma no corporal

    no sentido de tudo aquilo que composto desta substncia chamada corpo, como faz a

    Hyperaspistes. Merleau-Ponty escreve ainda, que Descartes faz o mesmo quando escreve para

    Elizabeth dizendo que a extenso da matria (corpo) de natureza diversa da extenso do

    pensamento (alma), no sentido de que esta primeira natureza determinada a certo sentido, do

    45 Ibid., p. 13, traduo nossa.

    46 Ibid., pp. 13-14.

    47 Ibid., p. 14.

    48 Ibid., p. 14.

  • 28

    qual exclui completamente a extenso dos corpos, o que no acontece com a segunda

    natureza49. Merleau-Ponty argumenta que ser apenas numa carta a Morus, de 15 de abril de

    1649, que Descartes parece elaborar filosoficamente a unio da alma com o corpo quando

    distingue uma extenso de substncia e uma extenso de potncia, sendo a ltima pertencente

    alma. Merleau-Ponty cita Descartes: 'Pour ce qui est de moi, je ne conois ni en Dieu; ni

    dans les anges, ni en notre me une tendue de substance, mais seulement une tendue de

    puissance50.

    De acordo com isso, indaga e conclui Merleau-Ponty:

    Mas qual pode ser a coerncia desta noo? A alma, vista do corpo, aparece como se aplicando a este corpo e dotada de uma extenso por contgio. Mas trata-se apenas da alma dos outros, e no da alma enquanto alma. De fora, encontra-se o prolongamento da extenso, de dentro, s se pode apreend-la pela reflexo. Descartes no sustenta, portanto, nada que se possa pensar em unio. Ele no tem nada a falar sobre isso. As noes que ele introduz a este respeito so mticas, no sentido platnico da palavra: destinada a lembrar ao ouvinte que a anlise filosfica no esgota a experincia51.

    Sendo assim, citando a carta de Descartes Elizabeth, em 28 de junho de 1643,

    Merleau-Ponty argumenta que em Descartes, na verdade, a unio pode ser conhecida apenas

    pela unio52. Merleau-Ponty sustenta tal ponto de vista atravs da Carta de Descartes em

    questo, nela o filsofo moderno escreveu: [] usando apenas a vida e conversas

    ordinrias, e se abstendo de meditar e de estudar as coisas que promovem a imaginao, que

    se aprende a conceber a unio da alma e do corpo 53. Tal premissa poderemos entender

    adiante retomando a sexta meditao cartesiana, por hora situemos o problema.

    Merleau-Ponty assim o coloca: deixando de lado as questes de como conciliar a

    unio de fato e a distino de essncia em Descartes, afinal, como se faz para que haja um

    setor que no se possa pensar? Merleau-Ponty lembra que a sexta meditao fala de

    inclinaes naturais que tm a sua verdade, j que Deus no enganador, mas questiona

    49 Ibid., p. 15.

    50 Ibid., p. 15.

    51 Ibid., p. 15, traduo nossa.

    52 Ibid., p. 15.

    53 Ibid., p. 15, traduo nossa.

  • 29

    indagando o seguinte: se Descartes adota esta dupla atitude para Deus e para o mundo,

    pergunta Merleau-Ponty, ele pode sustent-la? Dessa maneira, o que Merleau-Ponty quer

    que consideremos os esforos da primeira meditao cartesiana, e atentemos que, se levarmos

    tal meditao a srio somos tambm levados a considerar a sexta meditao como mera

    aparncia. E, ao contrrio, se levarmos a srio a sexta meditao, podemos nos perguntar:

    como os esforos da primeira foram possveis?54

    Merleau-Ponty sinaliza uma concluso:

    Na obra de Descartes, o extremo tesmo (toda verdade repousa em Deus) se une ao atesmo prtico, j que a verdade divina, uma vez reconhecida, nos dispensa de voltar a Deus. Se a unio da alma e do corpo um pensamento confuso, como pude descobrir o cogito? E se descobri o cogito, como posso ser o sujeito naturado da VI Meditao? 55.

    Para o entendimento de toda esta problemtica devemos continuar a anlise

    retomando conjuntamente as Meditaes de Descartes citadas por Merleau-Ponty para que

    fique claro os pontos da crtica que est em questo e que buscaremos evidenciar nesta

    dissertao. Contudo, argumentamos novamente que nossa inteno , concluda esta

    trajetria, evidenciar a proposta filosfica merleau-pontiana e como esta se desenvolve para

    tambm analisar se a mesma foi bem sucedida no intento de superar as confuses da ontologia

    substancial de Descartes. Entretanto, devemos explicar a necessidade de retorno to

    minucioso obra de Descartes.

    1.4 A importncia de Descartes

    Sabemos que Descartes elabora sua metafsica no momento em que escreve a obra

    Mditations sur la Philosophie Prmire. Sabemos tambm que juntamente com a confeco

    do seu Discurso do Mtodo e os Princpios da Filosofia, o filsofo moderno apresenta uma

    ordem das razes medida que tenta encontrar um fundamento indubitvel para o

    conhecimento na inteno de efetivamente fazer Cincia. Por esta via, Descartes duvidar de

    54 Ibid., p.15-16.

    55 Ibid., p. 16, grifo do autor.

  • 30

    todas as coisas, e mais, ter certeza de que est duvidando. Por consequncia, estar certo do

    que pensa e existe; saber que Deus existe e no pode enganar; e, por fim, fundamentar uma

    cincia do mundo a partir das ideias claras e distintas. Dessa cincia, ele poder ento retirar

    as aplicaes tcnicas, tornando, dessa maneira, o eu que sabe senhor da Natureza56. O

    problema que neste itinerrio do sistema cartesiano surgiro implicaes ontolgicas, como

    as tratadas por Merleau-Ponty e que expusemos acima sobre a unio corpo e alma. Sobretudo,

    surgiro confuses quanto natureza deste eu que alcanou tudo isto que fora dito acima.

    Grosso modo, a questo que queremos evidenciar expondo isso : por tudo que Descartes

    exps nas Meditaes, ou seja, considerando sua ontologia substancialista, quem afinal este

    eu que conhece? Ser a res cogitans das duas primeiras meditaes, a mistura (corpo e alma)

    da sexta meditao, ou o homem que resulta de sua metafsica? O porque deste problema e

    sua possvel soluo queremos mostrar atravs da anlise das Meditaes feita por Merleau-

    Ponty. Mas, primeiramente devemos fazer alguns apontamentos para a compreenso do

    porque seja necessrio fazermos tal como o fazemos.

    Nos Princpios, lembra-nos Alqui, Descartes diz que toda filosofia como uma

    rvore, cujas razes so a metafsica; o tronco, a fsica; e os ramos, que saem deste tronco, as

    outras cincias, que podem ser reduzidas a trs princpios, quais sejam, medicina,

    mecnica e moral. Por isso, Alqui afirma que a maioria dos comentadores toma esta

    frmula como o segredo ltimo da ordem cartesiana, considerando o desenvolvimento de tal

    sistema por uma lgica rigorosa que nele j estaria intrnseca. Para eles, a metafsica seria o

    fundamento da fsica no pensamento cartesiano, e desta fsica, por sua vez, seria possvel

    deduzir aplicaes57. No entanto, Alqui sugere-nos considerar que Descartes no pretendeu,

    nesta metfora da rvore, apresentar uma ordem de dependncia lgica para interpretao

    correta de sua filosofia, pois, no pensamento deste filsofo moderno, a constituio histrica

    do sistema nunca negada em proveito do prprio sistema, ao contrrio, os fatos permanecem

    sempre recordados e retomados58. Para o comentador francs, longe de qualquer preconceito

    psicolgico, devemos analisar a ordem histrica dos pensamentos de Descartes pelo seu

    prprio nascimento: Descartes queria constituir uma cincia objetiva e, por volta de 1630,

    56 ALQUI, 1956, p. 5.

    57 Ibid., p. 5.

    58Ibid., p. 6.

  • 31

    pela perspectiva do plano do objeto e de seu criador, deu-se conta nas Meditaes, do cogito

    como princpio e fonte dessa superao, enquanto no descobria nas cartas a Mesland, de

    1645, que o pensamento contm uma liberdade que se pode desviar do prprio Ser59.

    Lembremos que tal carta foi tambm retomada por Merleau-Ponty como o momento em que

    Descartes coloca o problema do corpo vivo e conjugado com a alma que apontamos

    anteriormente.

    No sistema cartesiano, evidentemente nas Meditaes, a metafsica precede e

    fundamenta a fsica, entretanto, esta mesma metafsica sucede no tempo a fsica e apenas se

    constitui em reao contra esta mesma fsica. Isso significa, explica Alqui, que a metafsica

    descobre por oposio finitude no-ontolgica dos objetos que compem o universo da

    cincia, o Infinito que o faz ser e pela oposio ao homem tcnico que se encontra submetido

    s leis do mundo em que atua. Tal infinito Deus, ou seja, o criador destas leis. Desse modo,

    a dvida no incio das Meditaes j supe previamente a objetividade do que negar: a

    ordem em que aparece, embora no parea reter uma anterioridade cronolgica da cincia

    relativa metafsica, supe na prpria realidade essa anterioridade.

    Assim, a metafsica de Descartes parte da negao. Podemos observar isso na

    meditao primeira, quando Descartes coloca em causa as essncias matemticas, e tambm

    na segunda meditao, quando descobre o eu penso, ou, o homem como o ser desta

    contestao60. Todavia, Alqui argumenta que s vezes comentadores buscam analisar a obra

    de Descartes, buscando coerncia entre os textos para obter deles valor objetivo no conjunto

    das ideias que estes textos podem revelar, e acabam reduzindo esta obra. Por outro lado,

    existem comentadores que buscam explicar Descartes por sua histria, pois, para eles, a

    ordem legtima do cartesianismo no est no encadeamento lgico entre ideias, mas na ordem

    temporal em que seu pensamento vivo se desenvolveu61. Para tal impasse, o comentador

    francs sugere que consideremos um apontamento de Brhier em La philosophie et son pass

    , obra na qual escreve que a busca pela causalidade s possvel sobre o que existe de

    acidental numa filosofia e no no que nela existe de essencial. Alqui escreve que Brhier

    condena as tentativas daqueles que pretendem explicar os sistemas como fatos, buscando suas

    59 Ibid., p. 7.

    60 Ibid., p. 8.

    61 Ibid., p. 8.

  • 32

    causas nos acontecimentos do tempo e no temperamento do autor trabalhado. Para Brhier,

    essa conduta dos historiadores demonstra apenas a incompreenso destes do que seja

    realmente a Filosofia medida que esquecem que o projeto do filsofo o de se libertar da

    histria, julgando-a em vez de suport-la62. Disso, Alqui nos fornece um apontamento

    importante: A filosofia no para Descartes um conjunto de ideias, um pensamento: a sua ordem verdadeira no se pode confundir com o sistema, deve compreender o homem [] A filosofia de Descartes um itinerrio ontolgico vivido, um movimento para o Ser [] o que a dvida retoma, o prprio ser do homem [] Para Descartes, o absoluto aparece no fim, isto , depois da cincia, e depois da reflexo que descobre o cogito como fonte da prpria cincia. Mas permanece no comeo, razo pela qual o Deus de Descartes pode ir ao encontro do Deus do Cristianismo, simultaneamente Criador e reencontrado pelo homem no termo de uma ascese. Ele est no princpio, est antes do mundo e antes do eu que colocou no Ser. Mas Deus s pode ser atingido a partir do mundo que se abre diante dos nossos olhos ou do eu que contempla esse mundo63.

    A importncia desta colocao o fato de que nela est apoiada a maioria das

    interpretaes sobre o eu como sendo o prprio homem no pensamento de Descartes;

    interpretaes que emergem de uma anlise minuciosa e, ao mesmo tempo, conjunta da obra

    cartesiana. Parece-nos que a leitura mitolgica de Descartes, que Merleau-Ponty realiza,

    segue este mesmo caminho.

    Alqui argumenta sobre isto que, neste sentido, que a veracidade do homem

    equilibra o sistema e por esta via podemos perceber que no existe uma ordem cartesiana, mas

    duas, nas quais esta ideia de homem fundamental: 1) O movimento de Deus para o mundo

    pelo caminho da veracidade divina, da verdade das essncias e do conhecimento cientfico,

    o movimento temporal da tomada do mundo por uma tcnica segura; 2) O movimento do

    mundo posto em dvida para a certeza do eu e para a de Deus, o movimento da regresso ao

    ser, que toda a metafsica64. Para Alqui, apenas o homem torna possvel a coincidncia

    destes dois movimentos contrrios, que definem a sua situao [homem] e fazem do seu ser

    o de uma liberdade65, como avistava Descartes nas cartas a P. Mesland.

    62 Ibid., p. 9.

    63 ALQUI, 1969, p. 2, 1956, p. 9 grifo nosso.

    64 Ibid., p. 2.

    65 Ibid., p. 10, colchete nosso.

  • 33

    Mas, ser que podemos dizer que por este caminho Descartes se dirigiu efetivamente

    para a cincia que almejava, cincia que nos ofereceria os fins vitais e ao mesmo tempo os

    meios de os atingir? Alqui responde: evidente que no, muito pelo contrrio, Descartes se

    afasta dela e no consegue fundamentar um saber universal e certo a no ser despojando a

    Natureza de todo o ser prprio66. Para Alqui, o pensamento de Descartes resulta, sobretudo,

    numa tenso e num esforo dirigido contra a nossa apreenso espontnea das coisas. A atitude

    cartesiana traduz-se por uma espcie de herosmo antinaturalista, o oposto de uma viso

    confiante ou potica do real. O comentador explica: a concepo cartesiana no deixa de ser

    trgica: mas esse carter trgico , por excelncia, anti-romntico 67. Neste sentido, que no

    pensamento de Descartes, e em seu sculo (XVII), podemos dizer que o sentido da Natureza

    foi menosprezado, e apenas as paixes e a glria do homem foram exaltadas, uma vez que a

    Natureza, tanto na viso dos filsofos como na viso dos fsicos desta poca, foi interpretada

    exclusivamente como resultado do mecanicismo. Assim, o Ser, apenas, foi descoberto, neste

    momento, na conscincia e na vontade, isto , no homem e em Deus.

    Diante disso, a tarefa da crtica merleau-pontiana a Descartes indagar sobre a relao

    entre representao e mundo, subjetividade e objetividade, que fora destinada pela empresa do

    ltimo para a ligao exclusiva entre sujeito e objeto. Merleau-Ponty tomar o legado

    cartesiano pela perspectiva do problema da relao de alteridade e da Natureza. Em relao a

    Deus ou perspectiva e vontade substancialista de um nico ser, ao qual toda uma pluralidade

    dos indivduos estaria condenada, Merleau-Ponty argumentar que a humanidade no parece

    ser constituda de indivduos que participam de uma mesma essncia pensante. Para Merleau-

    Ponty, a humanidade parece estar sim destinada a uma situao instvel68. Segundo

    Merleau-Ponty, cada individuo parece acreditar no que reconhece interiormente como

    verdade, entretanto, ao mesmo tempo este individuo pensa e decide estando j preso relao

    com o outro: no h vida em grupo que nos livre do peso de ns mesmo, que nos dispense de

    ter uma opinio; e no existe vida interior que no seja como uma primeira experincia de

    nossas relaes com o outro69.

    66 Ibid., p. 27.

    67 Ibid., p. 27.

    68 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50.

    69 Ibid., p. 50.

  • 34

    Para Merleau-Ponty, posso perfeitamente pensar o esprito tal como Descartes o

    formulou, mas apenas posso conceb-lo se realizando, ou seja, saindo de si mesmo, medida

    que o vejo participando da vida do mundo. Estamos ss e misturados ao mesmo tempo, e esta

    situao ambgua emerge porque temos uma histria individual e coletiva, alm de um corpo.

    Segundo Merleau-Ponty, Descartes teria avistado isso quando criticou a metfora aristotlica

    da alma como o piloto em seu navio e a concebeu muito estreitamente unida ao corpo, como

    observamos quando dizemos que temos dor de dente70. Contudo, o problema surgiu quando,

    mesmo atribuindo o reconhecimento da unio s experincias obtidas atravs da vida prtica,

    Descartes ainda sustentou o pensamento vinculado a uma concepo mecanicista do corpo e

    manteve a separao radical da substncias que a prpria unio havia negado. Ele encontrou o

    homem e a estrutura da reflexo, mas quis retornar ao mundo da coisa pensante mesmo depois

    de t-la reconhecido homem, como se pudesse separar o que de princpio e o que de fato.

    O fato para Merleau-Ponty que s vezes acontece aos homens se reconhecerem e se

    encontrarem71, como num momento de raiva em que posso constatar tranquilamente este

    sentimento pelo pensamento; mas posso tambm, por minha experincia, constatar que tal

    sentimento s vezes no parece uma simples animao da alma, inexplicavelmente ele est

    presente em meu corpo e pode ser traduzido como um comportamento.

    Para esclarecer tal ponto de vista, Merleau-Ponty partir em suas primeiras obras da

    premissa de que o existente est no mundo em detrimento da mxima, do paradigma a ser

    confrontado, a saber, cartesiano, que reserva a ele conhecer o mundo, como j apontamos

    anteriormente. Merleau-Ponty descrever a fuso da conscincia com o universo e seu

    compromisso dentro de um corpo, ou seja, sua coexistncia com o outro. A proposta passa

    reviso e, se for o caso, refutao, da sexta meditao cartesiana para fundamentar a

    importncia primordial da experincia perceptiva, propondo assim um sujeito encarnado ao

    mundo. Neste empreendimento, veremos ento, no decorrer desta dissertao, como Merleau-

    Ponty buscar a motricidade originria do corpo como alternativa ao corpo mecnico

    cartesiano e tentar fundamentar que a mistura entre ns e o mundo precede a reflexo

    recuperando, como veremos em a Estrutura do comportamento, o legado existencial deixado

    70 Ibid., p. 47.

    71 Ibid., p. 53.

  • 35

    por Descartes numa tentativa de fixar o sentido dos sentimentos, ou melhor, do

    comportamento.

    Portanto, assim que podemos tambm argumentar com Alqui que a filosofia de

    Descartes apresenta-se simultaneamente como uma ordem de razes e como um itinerrio

    espiritual e que desdenhar um desses aspectos seria mutilar Descartes72. Por isso,

    apresentaremos as Meditaes supracitadas por Merleau-Ponty, tentando seguir seu rigor para

    melhor avaliar a que concluses podemos chegar. Para tanto, contamos com o auxilio dos

    comentadores de Descartes, para confeccionar uma anlise detalhada do pensamento deste na

    obra de Merleau-Ponty, principalmente nas obras merleau-pontianas Estrutura do

    comportamento e Fenomenologia da percepo. A inteno ser tambm ressaltar as

    aproximaes e distanciamentos da filosofia de Merleau-Ponty com a filosofia de Descartes.

    A questo sobre a natureza do eu exposta por Descartes nas Meditaes pelas ideias de

    corpo, alma e mistura, como dissemos, trazem consigo implicaes ontolgicas, e tais

    implicaes tentaremos ressaltar em nossa anlise confrontando ao passo que evidenciamos a

    leitura feita por Merleau-Ponty. Veremos ento adiante que, na segunda meditao,

    Descartes fornece a tese de que a alma substncia imaterial e puro intelecto, que caracteriza

    o que podemos chamar de movimento intelectualista na obra deste autor e que ser criticado

    por Merleau-Ponty. Na sexta meditao, no entanto, a existncia do corpo e do corpo unido

    a alma, introduzir a importante tese ontolgica de que o homem uma unidade composta

    que consiste numa mistura ntima entre duas substncias que so, entretanto, distintas e

    excludentes73. Neste momento que Descartes teria avistado a imbricao homem e natureza.

    A mistura ntima significaria que as substncias no esto de maneira alguma justapostas e,

    dessa forma, no se completam e tampouco so incompletas, tratando definitivamente de uma

    mistura. Portanto, a natureza da alma e do corpo ser apresentada por Descartes na sexta

    meditao, no apenas como naturezas diversas, mas contrrias. Aqui estaria mais um ponto

    da crtica de Merleau-Ponty: o movimento naturalista da sexta meditao, terreno frtil para a

    construo de uma nova filosofia capaz de tratar do encarnado. Ambos os movimentos sero

    importantes para a anlise da leitura merleau-pontiana de Descartes na Estrutura do

    Comportamento e na Fenomenologia da Percepo que adiante exporemos.

    72 ALQUIE, 1967, p. 11.

    73 ROCHA, 2006, p. 128.

  • 36

    II

    A filosofia cartesiana e a filosofia de Merleau-Ponty

    No que diz respeito percepo, a originalidade radical do cartesianismo consiste em se colocar no prprio interior dessa percepo, em no analisar a viso e o tato como funes de nosso corpo, mas apenas o pensamento de ver e de tocar (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 210, 301 citando Descartes, Rponses aux cinquimes objections).

  • 37

    2.1 Apresentao

    Neste segundo captulo, apresentaremos a interpretao de Merleau-Ponty sobre a ontologia substancialista cartesiana na tentativa de enfatizar a passagem do pensamento

    presente na Estrutura do comportamento para a Fenomenologia da percepo. Apontaremos

    aqui os pilares que formam a leitura crtica sobre Descartes e fundamentam a proposta

    merleau-pontiana de conciliao entre psicolgico e fisiolgico que exporemos no captulo

    seguinte. Partiremos das relaes entre a alma e corpo interpretadas em Estrutura do

    comportamento.

  • 38

    2.2 As relaes entre alma e corpo em Descartes interpretadas na

    Estrutura do comportamento

    O ltimo captulo de A estrutura do comportamento dedicado ao problema da

    conscincia perceptiva. Neste captulo Merleau-Ponty comenta o procedimento das

    Meditaes cartesianas, destacando o que para ele se apresenta como procedimento principal

    destas e que constituir tambm em sua originalidade. Para Merleau-Ponty, Descartes teria

    inaugurado a possibilidade de ver por atos mentais indubitveis, e teria conseguido promover

    com isto uma alternativa condenao filosfica ora ao ceticismo, ora ao realismo. Isto

    porque, tratando da questo da relao entre corpo e alma, teria como resultado da mistura

    entre res cogitans e res extensa uma experincia, no fim das contas, lcida. A avaliao

    merleau-pontiana a seguinte:

    O primeiro movimento de Descartes consiste em abandonar as coisas extramentais, que o realismo filosfico havia introduzido, para retornar a um inventrio, a uma descrio da experincia humana sem nada pressupor que a explique inicialmente de fora. No que diz respeito percepo, a originalidade radical do cartesianismo consiste em se colocar no prprio interior dessa percepo, em no analisar a viso e o tato como funes de nosso corpo, mas apenas o pensamento de ver e de tocar74.

    Isso quer dizer que, para Merleau-Ponty, Descartes no optou, a princpio,

    simplesmente por uma anlise na qual a percepo apareceria como resultado de uma

    relao causal com a natureza, diferente disso, o filsofo moderno buscou pela estrutura mais

    ntima, a estrutura interior, desvelando o sentido e o motivo pelo qual a conscincia tem

    acesso coisa. Para Merleau-Ponty, o argumento do pedao de cera na segunda meditao

    ilustra isso, quando neste momento Descartes apreende em tal pedao um ser slido e no

    uma aparncia transitria.

    Foi no dcimo segundo pargrafo da segunda meditao que Descartes nos

    apresentou o exemplo do pedao de cera que garantia a comprovao da segunda verdade

    do seu sistema, a saber, a legitimidade da coisa pensante. Em tal ocasio, Descartes props

    74 MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 210, citando Descartes, Rponses aux cinquimes objections.

  • 39

    que considerssemos um pedao de cera que contm elementos notveis pelo intermdio dos

    sentidos, tais como, odor, grandeza e gosto. Isso era necessrio, pois o eu estava certo da

    compreenso de sua existncia, mas no da existncia das outras coisas exteriores a ele e,

    sendo assim, era preciso saber mais distintamente alguma coisa sobre os corpos que via e que

    tocava. Contudo, ao aproximar tal pedao do fogo, Descartes argumentou que as coisas que se

    conhecia outrora com distino encontravam-se mudadas e, no entanto, a mesma cera

    permanecia75. O pensador moderno perguntou-se ento pelo que de fato proporcionava

    conhecer a cera e, assim, concluiu que talvez podia pensar que um corpo que aparece de certa

    forma se faz notar sobre outra forma e isso poderia significar que, o que resta dizer, afastando

    todas as outras coisas que no pertenam propriamente cera, que [...] nada permanece

    seno algo extenso, flexvel e mutvel [...]76.

    Desse modo, poderamos entender que a essncia da matria em Descartes a

    extenso, por isso o elogio de Merleau-Ponty a Descartes. Em nota deste fragmento cartesiano

    Lebrun explica o raciocnio de Descartes: 1, o que me permite reconhecer a mesma cera

    sua identidade na medida em que a cera coisa extensa; 2, mas este contedo s pode ser

    ideia e no imagem da extenso que o corpo ocupa atualmente ou daquelas [...] que poderia

    ocupar em seguida77.

    Lembremos ainda que ser no dcimo quinto e dcimo sexto pargrafos desta mesma

    meditao que Descartes encontrar pelo argumento da cera a confirmao da segunda

    verdade apresentada no nono pargrafo, a saber, que minha natureza puro pensamento

    exclusivo de todo elemento corporal. Descartes escreve:

    Mas, quando distingo a cera de suas formas exteriores e, como se a tivesse despido de suas vestimentas, considero-a inteiramente nua, certo que, embora se possa ainda encontrar algum erro em meu juzo, no a posso conceber dessa forma sem um esprito humano. [] Mas, enfim, que direi desse esprito, isto , de mim mesmo? Pois at aqui no admiti em mim nada alm de um esprito. Que declararei, digo, de mim, que pareo conceber com tanta nitidez e distino este pedao de cera? [] Do mesmo modo, se julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se- ainda a mesma coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo porque minha imaginao disso me

    75 DESCARTES, 1962, p. 104.

    76 Ibid., p. 104.

    77 Ibid., p. 104, grifo do autor.

  • 40

    persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me so exteriores e que se encontram fora de mim78.

    Isso quer dizer que est claro que s reconheo o pedao de cera pelo fato de que a

    mim possvel compreender, atravs do pensamento, a essncia da coisa. Entretanto, atenta

    Gueroult, no se coloca ainda neste momento a questo se conheo ou no a essncia do

    corpo, por hora trata apenas de saber se posso estar seguro de possuir a ideia clara e distinta

    deste corpo79. Tambm, segundo Lebrun, apenas uma coisa certa: eu penso perceber este

    corpo, seja compreendendo clara e distintamente a natureza dele, ou, seja imaginando ou

    tocando este corpo80.

    Assim, diferente da dvida ctica que se apega necessariamente a um dado

    extramental, e encerra o limite do conhecimento em si mesma, a dvida metdica tratava

    apenas de um estado de incerteza que, segundo a viso merleau-pontiana, no traz em tal

    operao nenhuma soluo. Na segunda meditao, eu apenas reconheo o pedao de cera

    pelo fato de que a mim era possvel compreender, atravs do pensamento, a essncia da coisa,

    embora no estivesse colocada ainda neste momento a questo se conheo ou no a essncia

    de um corpo, antes tratava apenas de saber se seria possvel estar seguro de possuir a ideia

    clara e distinta do corpo.

    Considerando isto, Merleau-Ponty aponta-nos que a diferena entre a dvida

    cartesiana e a dvida ctica que a ltima iguala sonho e percepo, pressupondo um

    conhecimento puramente ideal. Ela no extrai da experincia vivida nenhum dado para o

    conhecimento, pelo contrrio, transforma tudo em aparncia. A dvida cartesiana, pelo

    contrrio, graas a seu estado de incerteza radical, voluntrio e hiperblico, no traz consigo

    absolutamente nada. Isto quer dizer que ela no est apegada e nem dependente de um dado

    ideal extramental ou mesmo realista, antes Descartes desviou a ateno do tato e da viso,

    que, segundo argumenta Merleau-Ponty, vivem nas coisas81, para o pensamento de ver e de

    tocar, revelando assim o domnio indubitvel das significaes.

    Portanto, Descartes mostrou o sentido interior da percepo e do ato de

    conhecimento, permitiu acesso ao campo outrora velado nas anlises filosficas da tradio.

    78 Ibid., p. 134-135.

    79GUEROULT, 1953, pp. 144-145.

    80 DESCARTES, 1962, p. 134.

    81 MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 211.

  • 41

    Merleau-Ponty explica: [...] Mesmo que eu no veja e no toque nada que existe fora do meu

    pensamento, ainda assim verdade que penso ver e tocar alguma coisa e que, sobre o sentido

    desse pensamento como tal, juzos certos so possveis82. Com isso, atravs de um mtodo

    geral, a saber, a dvida metdica, o cogito permite acesso para um campo vasto de

    conhecimentos, a partir da prpria certeza da existncia do eu que duvida.

    2.3 A dvida

    Vejamos melhor o processo cartesiano de fundamentao da dvida metdica. No

    segundo pargrafo da primeira meditao apresentada a estratgia metodolgica para

    Descartes colocar em dvida todo o conhecimento at ento existente e fundamentar por fim

    uma Cincia. Descartes escreve:

    [...] aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opinies [...] o menor motivo de dvida que eu nelas encontrar bastar para me levar a rejeitar todas [...] visto, que a runa dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifcio, dedicar-me-ei inicialmente aos princpios sobre os quais todas as minhas antigas opinies estavam apoiadas83.

    No trecho acima, notamos que o filsofo enfatiza que todas as antigas opinies sero

    questionadas. Isso implica em compreender que existe uma impossibilidade, para Descartes,

    de dizer o que verdadeiro e o que falso. Podemos extrair tambm daqui as principais

    caractersticas do mtodo escolhido de que falvamos acima, a saber, a dvida metdica: ela

    voluntria medida que o filsofo se dedica a realizar tal feito; hiperblica, enquanto todas

    as coisas sero postas em dvida; e radical por no tolerar "o menor indcio de dvida". Uma

    importante consequncia de tal procedimento pode ser tambm notada: o desmoronamento de

    todo o edifcio previamente construdo para assentar o conhecimento das coisas do mundo

    culminar no estabelecimento de um estatuto novo, no apenas crtico do conhecimento, mas

    ontolgico, condicionado pela nova condio lgica estabelecida.

    82 Ibid., p. 211, p. 302, grifo nosso.

    83 DESCARTES, 1973, p. 93.

  • 42

    Atentemos que Descartes considera aqui a vontade como a faculdade de assentir ou

    negar o juzo; para ele, ela infinita, diferente do intelecto que ser finito. Embora o filsofo

    considere, como veremos ao longo da anlise de suas meditaes neste trabalho, o carter

    absoluto da deciso divina (infinita e perfeita), isto no o impede de relacionar a vontade ao

    intelecto medida que a esta est assegurado o carter decisrio de modo que o ato intelectual

    passa ao crivo de um ato de vontade como todos os outros atos, aes ou mesmo as paixes.

    Diante disso, este voluntarismo cartesiano ser extremamente paradoxal enquanto trata de um

    voluntarismo, na verdade, da razo84. No entanto, a partir do terceiro pargrafo da primeira

    meditao, que esta postura voluntria do processo de dvida seguir uma ordem e o

    procedimento crtico estabelecer uma generalizao crescente na ordem das razes de

    duvidar do terceiro ao dcimo pargrafo.

    Sobre isso, Merleau-Ponty escreve que foi assim que Descartes permitiu [...]buscar,

    pela reflexo, em cada domnio, o pensamento puro que o define, e o exemplo disso seria

    justamente o encontro com estatuto da percepo ilustrado no argumento da cera na segunda

    meditao citado acima , no qual pelo pensamento o eu reconhece a coisa pela compreenso

    da essncia desta coisa. Merleau-Ponty explica: [...] por exemplo, no que diz respeito

    percepo, analisar o pensamento de perceber e o sentido do percebido que so imanentes

    viso de um pedao de cera, o animam e sustentam interiormente85.

    Na viso merleau-pontiana, Descartes estava muito prximo com isso da noo

    moderna de conscincia, se a entendermos como o foco que empresta a todos os objetos

    sobre os quais o homem possa falar e a todos os atos mentais a que os visam uma clareza

    indubitvel86. Para Merleau-Ponty, Kant, por exemplo, apenas conseguiu superar o ceticismo

    e o realismo definitivamente graas ao reconhecimento dos aspectos descritivos e irredutveis

    da experincia externa e da interna como fundamento do mundo87.. Isso devido dade

    indubitvel de Descartes pensamento da coisa e pensamento do corpo passvel de traduo

    como significado coisa e significado corpo que fez com que o corpo no fosse apenas o

    intermedirio de uma ao causal, concepo que fazia da percepo apenas efeito da ao de

    uma coisa exterior em ns.

    84 FERRATER-MORA, 2001, pp. 725-26.

    85 MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 211, p. 302.

    86 Ibid., p. 211, 303.

    87 Ibid., p. 211, p. 302.

  • 43

    Entretanto, Merleau-Ponty lamenta que, embora Descartes avistasse tal terreno

    fecundo para a investigao filosfica, ele no tenha levado isto at o fim; pois a anlise do

    pedao de cera se encerra enquanto anlise do pensamento e no d conta das coisas

    corpreas. Afinal, a terceira certeza na ordem das razes apresentada na segunda meditao,

    a saber, de que mais fcil conhecer o esprito do que o corpo provm da crena na clareza

    da ideia sobre tal conceito, a saber, esprito. Enquanto o corpo ainda trata de algo confuso no

    plano da existncia, a ideia dele apresenta-se indubitvel pela introspeco, apenas uma coisa

    certa: a apreenso da natureza e da existncia de meu esprito imediata. Recordemos

    Descartes:

    Ora, se a noo ou o conhecimento da cera parece ser mais ntido e mais distinto, aps ter sido descoberto no somente pela viso ou pelo tato, mais ainda por muitas outras causas, com quo maior evidncia, distino e nitidez no deverei eu conhecer-me, posto que todas as razes que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, provam muito mais fcil e evidentemente a natureza de meu esprito?88.

    Para clarificar o contexto cartesiano, vejamos uma nota de Etienne Gilson contida

    em sua anlise quarta parte do Discurso do mtodo, ocasio em que Descartes retoma e

    esclarece suas Meditaes:

    As coisas exteriores so apenas substncias dotadas de extenso, dotadas de certas formas, de certas posies e de certos movimentos. Ora, eu mesmo sou uma substncia, tenho, portanto, em mim do que formar a ideia de simples modos de uma substncia. Assim, tenho em mim do que formar a ideia de coisas exteriores. Note-se que essa hiptese a prpria verdade segundo Descartes, com tudo o que h de claro e distinto em nossa representao do mundo exterior remetendo a ideia de extenso, que uma ideia inata89.

    A partir disso podemos entender como a passagem da tese da distino das

    substncias para a tese da unio na sexta meditao comea a ganhar forma. Como sabemos, a

    essncia da res cogitans cartesiana consiste em ser exclusivamente pensamento. No entanto,

    88 DESCARTES, 1962, p. 135.

    89Idem, 2007, p. 62.

  • 44

    considerando isto e o que ser dito por Descartes em sua sexta meditao, a saber, que o corpo

    est misturado e conjugado com o corpo mui estreitamente, levanta-se um problema.

    Considerando as teses da existncia dos corpos e a tese da unio alma e corpo, o homem no

    seria para Descartes o verdadeiro sujeito dos atos cognitivos e volitivos? Seria a res cogitans

    o sujeito da causa ou, ao passo que admitimos a existncia do composto alma e corpo,

    garantido pela mistura ntima, seria o homem a referncia da causa? Sendo que a res cogitans

    no possui nenhum atributo semelhante a res extensa, e vice e versa, no modelo cartesiano,

    haveria no dualismo ontolgico uma referncia diferente para a unio, tendo em conta a

    distino entre predicado mental e extensional? Se admitirmos uma sentena como a do tipo

    Eu ando, ela no passaria de um ato de conscincia, uma representao mental?90 Todavia, a

    partir da sexta meditao, como se define tal sentena, ou melhor, quem o sujeito desta

    sentena, como a unio consegue ir alm do mundo da representao mental? Ser

    exclusivamente o composto alma e corpo responsvel pelo que o eu conhece? So inmeras

    as questes que tomam corpo se considerarmos a leitura merleau-pontiana, que expomos no

    incio de nosso trabalho, qual seja, o extremo tesmo de Descartes, que assegurar o repouso

    de toda verdade em Deus unindo-se a um atesmo prtico ilustrado no s em relao

    prpria figura divina, mas tambm a doutrina do sujeito naturado, que aparece na sexta

    meditao.

    Devemos, no entanto, ainda nos lembrar de um outro pilar importante da doutrina

    cartesiana , a luz natural da razo, para que compreendamos porque seria possvel cobrar dela

    uma resposta para estas questes. Vejamos o comentrio de Forlin:

    preciso, pois, utilizar a luz da razo para alcanar outra realidade para alm da coisa pensante; uma realidade de tal ordem que, uma vez alcanada, seja capaz de fornecer uma garantia permanente para a luz da razo, isto , uma garantia que perdure para alm do exerccio da luz natural. Trata-se, pois, de um garantia absoluta, que transcenda a realidade da razo, e legitime a luz natural a partir da realidade em si mesma. Tal realidade no pode ser, claro, a realidade exterior dos corpos materiais, cuja prpria existncia objeto de dvida por parte da razo, de modo que, no estgio atual, no so mais que representaes na coisa pensante, tendo, portanto, a prpria razo como fundamento. Aps um minucioso exame de todas as suas representaes, a razo, ciente de que deve haver to ou mais realidade numa

    90LANDIM, 2009, p. 163.

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    causa do que no seu efeito, constata que uma e somente uma dentre as realidades representadas nela no pode ter a prpria realidade da razo como fundamento, mas, pelo contrrio, ela o fundamento da realidade de todas as coisas, inclusive, portanto, da coisa pensante, que foi feita sua imagem e semelhana. Tal a ideia de Deus, cuja realidade na mente remete necessariamente para a realidade, absolutamente necessria, fora da mente (ou, para usar os termos cartesianos, cuja realidade objetiva tem como causa necessria a realidade formal da prpria coisa representada nela)91.

    Ser, portanto, com a prova da existncia de Deus, na terceira meditao, que a res cogitans concebe sua causa primeira, a natureza perfeita de Deus. certo que alcanamos

    verdades indubitveis na razo, estes contedos [...]representam a essncia e as propriedades

    essenciais das coisas corpreas, isto , a extenso e suas propriedades fsico-matemticas, so

    inatos razo, criados com ela, mas no criados por ela. So verdades eternas, naturezas

    imutveis e eternas, colocadas por Deus na razo quando a criou92. Dessa maneira, Deus

    apresenta-se como o criador da prpria razo em Descartes, pois existindo verdades inatas,

    constata-se que existem verdades que no foram criadas pela razo, ou seja, foram colocadas

    por outrem. Isso um dado importante, pois nele talvez possamos entender o fundamento da

    tese e dos problemas que enfrentamos.

    A funo da segunda meditao e do argumento da cera foi conceder apenas a noo

    indubitvel da essncia de uma coisa pelo pensamento de ver ou de sentir, ela forneceu, dessa

    maneira, a estrutura inteligvel dos objetos percebidos, tais como tambm poderemos observar

    no argumento cartesiano do sonho. Neste momento da segunda meditao, o movimento

    exclusivamente intelectualista, temos a realizao de um ato de conscincia praticado por um

    eu que consciente deste ato. Por isso, podemos concluir que para Descartes ter conscincia

    significa realizar um ato de conscincia e realizar um ato de conscincia significa ser

    consciente deste ato.

    Contudo, Merleau-Ponty explica que tal movimento muda na sexta meditao e

    no temos mais uma anlise que se encerra num puro intelectualismo. Merleau-Ponty

    argumenta que possvel observar que na anlise da imaginao contida nesta meditao

    existe alguma coisa que essa anlise no considera93, embora ainda seja uma busca do

    esprito, e, desse modo, puramente intelectual ao modelo das duas primeiras meditaes. Para

    91 FORLIN, 2006, p. 118, grifo do autor.

    92 Ibid., p. 118, grifo do autor.

    93 MERLEAU-PONTY, 2006a, p 211, 302.

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    ele, esta anlise resgata o conhecimento sensvel para verificar a existncia das coisas

    materiais. Apuremos o contexto com o qual discute Merleau-Ponty.

    2.4 A estrutura inteligvel dos objetos percebidos em Descartes

    A primeira razo de duvidar do nosso conhecimento, segundo Descartes na primeira

    das Meditaes, foi argumentada pelo aspecto dos dados dos sentidos. Descartes escreve que

    tudo o que anteriormente admitiu como certo e verdadeiro, f-lo pelos sentidos. Vejamos o

    que diz Descartes no terceiro pargrafo desta meditao: [] Tudo o que recebi, at

    presentemente, com o mais verdadeiro e seguro, apreendi-o dos sentidos ou pelos sentidos:

    ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e de prudncia nunca

    se fiar inteiramente em quem j nos enganou uma vez []94. De acordo com a postura radical

    adotada anteriormente, Descartes no admite os sentidos como fonte do conhecimento. Isso

    quer dizer que as experincias empricas esto, por hora, descartadas, uma vez que os sentidos

    se mostraram, na experincia cotidiana de Descartes, "falazes", e no deve haver tolerncia

    para o menor indcio de dvida. Sobre o exposto, Forlin explica:

    O que est em jogo aqui no o que verdadeiro ou certo para Descartes, mas a prpria cincia humana.